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100 crônicas escolhidas
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100 crônicas escolhidas

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Seleção de crônicas feita pelo escritor Paulo Gustavo em homenagem ao centenário do autor. Os textos foram originalmente publicados na coluna Agenda de Mauro Mota, no Diario de Pernambuco, e datam do período de 1966 a 1984. Os temas abordados tratam, em grande parte, do cotidiano recifense, assim como de diversos aspectos da cultura pernambucana.
LanguagePortuguês
PublisherCepe editora
Release dateSep 1, 2015
ISBN9788578583255
100 crônicas escolhidas

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    100 crônicas escolhidas - Mauro Mota

    Mauro Mota em Nossa Agenda

    Paulo Gustavo

    Escritor e Mestre em Teoria da Literatura

    Estás perto de mim quando te leio.

    Jaci Bezerra, no poema Variações em torno de Mauro Mota

    De 1966 a 1984, ano em que faleceu no seu amado Recife, Mauro Mota escreveu quase que diariamente uma coluna intitulada Agenda . O nome, logo se vê, não poderia ser mais feliz, mais conciso e mais objetivo. Uma agenda (observem que nem o nome nem a coisa envelheceram, pelo contrário!) é algo suficientemente simples e abrangente, prendendo-nos ao tempo e espelhando a nossa própria vida. É com ela que nos instalamos — pública ou privadamente — no cotidiano, submetendo-nos a um cosmos que nos livra do caos, organizando a brevidade da vida e as nossas circunstâncias de trabalho, de compromissos, de lazer e de amor. A rigor, nossa agenda só termina com a morte. A Agenda de Mauro, no Diario de Pernambuco , também praticamente só se encerrou com sua vida. E não duvido que sob a maciez interior dessa palavra tenha entrevisto, com sua habitual perspicácia, todo o dinamismo do verbo latino fazer , que a origina, e toda essa brevidade ou concisão que esconde e por vezes realça a tapeçaria do tempo.

    Antes de ser singularmente crônica ou puramente artigo de jornal — se atentarmos para dois gêneros que convivem na imprensa —, a Agenda de Mauro Mota goza de licença poética para o trânsito em vários gêneros. A Agenda se multiplica, sem se desagendar, em textos que fazem honra ao poeta e que vocalizam o resenhista dos lançamentos literários, o investigador social, o tribuno das causas culturais, o memorialista, o humorista, o geógrafo, o folclorista e o contador de causos.

    Pela Agenda de Mauro passava o dia a dia do Recife, mesmo quando o dia a dia já não era o presente e se tornara uma relíquia histórica. Assim como passava, não sem o crivo da caricatura ou do humor, a linguagem dos retóricos, dos eruditos, dos tipos populares, além dos bichos que vivem na fala da gente. Bichos aos quais o escritor devotava um amor não apenas verbal, mas um amor de quem passara a infância no mundo rural de sua nunca esquecida Nazaré da Mata. Bichos como o jumento, o boi, o cavalo, o cão e o gato. Tão simples, tão presentes. Bichos que também frequentam suas obras de uma forma tão íntima quanto generosamente humana.

    Fiel a uma cronotopia toda sua, o cronista nos leva a um Recife e a um tempo que só ilusoriamente se afasta de nós. Lendo suas crônicas, não mergulhamos num passado idílico. Não se trata disso. Mas vemos o mover-se da própria história social, entre luzes e sombras, entre a fugacidade do tempo e a inscrição humana. Não é curioso e patético, por exemplo, sabermos que um dia se cogitou mudar o nome Rua da Aurora para Avenida Aurora? (Aquela que para Gilberto Freyre seria a mais recifense das ruas!) E que certa autoridade da década de 1960 chegou seriamente (é claro!) a sugerir que o Parque 13 de Maio se tornasse um estacionamento de automóveis?

    Mas, felizmente, muitas outras crônicas se inspiram nas artes, nos talentos, nos valores pernambucanos. Nelas o foco é, por assim dizer, a personalidade cultural. Assim nos encontramos ou nos reencontramos com Joaquim Nabuco, Lauria, Abreu e Lima, Capiba, Maximiano Campos, Hermilo Borba Filho, Agamenon Magalhães, Nelson Chaves, Aloísio Magalhães, Willy Lewin, Wellington Virgulino, Aníbal Fernandes, Cícero Dias, Renato Carneiro Campos. Toda uma nuançada galeria que se complementa com uma não menos nuançada coleção de tipos populares: loucos, chatos, figuras folclóricas e pitorescas, quase todos ricos em humor ou melancolia — os dois grandes e inarredáveis polos da sensibilidade mauromotiana.

    Foi em nome do seu incontornável senso de humor que o escritor criou o alter ego Mateus Camorim, que surge aqui e ali com suas provocações e graças. Mas, mesmo sem estar travestido do popular Camorim, Mauro se deleita em nos fazer beber das águas do riso. Com aguçado radar para o cômico, faz do limão uma limonada ou — se preferirem, não sem motivo — do caju uma boa cajuada. Inúmeras crônicas dão conta dessa sua inspirada faceta. Mauro e Camorim não querem perder amigos (quem não sabe que o poeta foi um homem tão gentil quanto cordial?), mas sobretudo não querem perder a piada...

    Quanto à seleção dos textos em meio a um corpus/arquivo de quase mil crônicas do acervo do escritor na Fundação Joaquim Nabuco, gostaria de lembrar que, como ocorre nesses casos, o que conta ou prevalece, ao fim e ao cabo, é o gosto ou a visão pessoal do organizador. Não necessariamente por capricho, mas por inevitabilidade. Em todo caso, tentei, a meu modesto modo, a sabedoria da escolha poundiana. Por isso, me dei à disciplina de seguir alguns critérios, dentre os quais: mostrar a diversidade da prosa do autor; revelar o seu gosto pelo cuidado metalinguístico com a própria palavra (no que sempre se solidarizou com o magnífico poeta que é); selecionar de modo igualitário as crônicas textualmente irmãs; escolher, sempre que possível, aquelas com temas que se inter-relacionam a outras obras suas, a exemplo dos que tratam da paisagem, da flora, da fauna e dos valores culturais pernambucanos — do artesanato à arquitetura, da pintura à história e à literatura; evidenciar o senso de humor do autor, e, na medida do possível, optar pelas crônicas cujos temas transcendessem a circunstância imediata.

    Congratulo-me, portanto, com a Companhia Editora de Pernambuco, pela sensibilidade da parceria com a Fundação Joaquim Nabuco. Sem essa cooperação institucional, este livro não seria o que é. A acolhida editorial da Cepe — materializada sobretudo nas pessoas de sua presidente, Leda Alves, e de seu diretor de produção editorial, Ricardo Melo — possibilitou essa ressurreição de palavras, seres e vozes de um Recife que Mauro viveu e eternizou, porquanto fez da memória a poesia que não acaba mais e da poesia a memória mais duradoura.

    Agradeço à Dona Marly, viúva do escritor, a quem devemos a ideia deste livro, e a sua filha Teresa Motta — minha colega na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) —, pela confiança que depositaram no meu trabalho. A essa confiança, procurei responder com grata dedicação e laborioso empenho. E, não obstante isso, que fique claro que qualquer pecado, senão ou falha a serem apontados só a mim devem ser atribuídos.

    No curso da organização desta antologia, lendo e relendo centenas de Agendas do acervo da Diretoria de Documentação, da Fundação Joaquim Nabuco — instituição que o cronista dirigiu de 1956 a 1970 —, também pude rever, com grata satisfação, o amigo que sempre me incentivou. Dessa forma, voltei a encontrar o homem cordial que parecia repetir, com o próprio exemplo, a percepção de Caetano Veloso de que gente é para brilhar.

    E por último, mas não menos importante, agradeço à historiadora Rita de Cássia de Araújo, diretora de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco, a prazerosa missão de, em nome da instituição que tanto nos honra, reverenciar, com este livro, a memória do escritor pela passagem dos seus cem anos. Concluída essa missão — por sinal, de feliz coincidência —, saboreio a verdade do verso camoniano de que Mauro tanto gostava: Transforma-se o amador na coisa amada.

    Recife, Apipucos, 4 de julho de 2011

    p7.jpg

    Arvoredo e arbusto

    Em três dias, apesar da pressa, pularam o domingo, pois consideram o domingo sem ócio indigno de figurar no calendário — os estudantes de Psicologia conduziram o mais original inquérito, já feito por estas plagas maurícias, como gosta de falar o André Bicalho. O inquérito sobre a presente derrubada das árvores do Recife.

    Que originalidade besta é essa?, indaga o Mateus Camorim. Mas baixa o fogo quando explico: não é de estatística, seu bobo, saber quantos troncos rolaram, quantas copas caíram mutiladas, quantas raízes foram expulsas da terra, que as árvores, ao contrário dos homens e dos bichos, sepultam-se acima do chão.

    O relatório é conclusivo. Refere-se às causas recônditas da fitofobia, às que pululavam no inconsciente, à espera de fuga. Todos os comentaristas veem a devastação somente de fora, de bengala branca diante das origens dela.

    Ninguém lhe faça a injustiça de julgá-lo inimigo desses ditos gratuitos da vegetação, que o nosso burgomestre até fica bem sob um caramanchão de begônias ou buganvílias. Ele tem suas razões, diz, pedindo segredo a Doutor Aderbal Galvão, demissionário pela 76ª vez da Secretaria da Educação e Cultura e solidário com as evidências da pesquisa. Quando menino, em Catolé do Rocha, levou uma bicada de xexéu de bananeira e engasgou-se com um caroço de macaíba.

    — Não entendo a relação com o arvorecídio, volta o Bicalho, querendo ensaiar o neologismo.

    — Burrice, entra o Mateus Camorim, depois de ler o resumo do inquérito. Compreendo: fitogeograficamente, ele é um homem arbustivo e complexamente adversário político e pessoal das frutas e dos passarinhos. Logo, com o poder e o machado na mão, teria de usá-los para libertar-se dessas cargas da infância. Nem os pés de oitis-cagões escapam. Crescem demais. Das acácias e dos flamboyants tão belos pelo verão, nem se fala. Tombam com esta recompensa irônica: espichados no calçamento e cobertos das próprias flores.

    Maldito xexéu de bananeira faminto dos dedos do futuro homem público. Tornou-o um antiornitológico, um ressentido sem distinções nas represálias. No Recife nada mais de sombras, nada mais de fruteiras, de frutescência, de frutescente, de frutífero, de frugívero frutificativo. Mas tudo de futricas, de futricidas, de futricagem, de futriquices.

    Com a destruição dos hábitats, todo animal voante sob este céu recifense de abril cai em coisa pior do que armadilhas: nas sanções da Prefeitura. Adeus canários amarelos, sabiás, patativas, galos-de-campina dos nossos quintais. Sem galhos para os ninhos, pagando a culpa do antigo pega paraibano. De agora em diante, só terão vida e liberdade na gaiola.

    23 de abril de 1966

    Check-up

    Encontra o filólogo André Bicalho no hall da Clínica. Algo apreensivo, como ele gosta de dizer. Mateus Camorim finge que nem percebe:

    — Tudo em ordem?

    — Deixe de insistência. Já expliquei demais os motivos por que prefiro a indireta. Nas orações...

    — Não é isso, Deus me livre. Quero saber como vão esses órgãos vitais. Foi assim que você disse, outro dia.

    — Ah, não sei ainda. Telefonei para a moça do consultório. Ela marcou a minha vez e agora fala em equívoco, aliás o vocábulo adequado na circunstância. O Doutor mostra-se intransigente e escrupuloso quanto ao número de clientes que recebe todos de hora marcada. Só poderei ser atendido sexta-feira, embora estejamos na segunda. Um martírio. Apavoram-me os sintomas, no meu entender de homem sem neurose, de câncer ou enfarte.

    — Essa conciliação só duas pessoas entendem: o Diabo e o nosso epistoleiro José.

    — Não brinque com um enfermo, por favor.

    Baixa o pano.

    Três semanas depois — uma controvérsia pronominal — Camorim vai à casa de Bicalho. Pijama, cama, drama, a aflição da madama, quando ele chama.

    — Que é que há?

    — Cuidado com a eu...fo...nia, diz numa voz quase de agonizante.

    — E o diagnóstico?

    — Não houve tempo ainda. Os exames de laboratório continuam. Os de sangue, mais de cinco, os de escarro, os de saliva, os de tudo quanto produzo.

    — Das suas gramáticas?

    — Não volte a brincar com um enfermo. Houve dezoito radiografias. Tive de engolir dois metros de borracha para a verificação do status estomacal. Feriram-me em pontos diversos para as biópsias. Fizeram nem sei quantos eletrocardiogramas. Ouvidos, garganta, os olhos todos foram vasculhados. O psiquiatra conversou muito fiado, mas com o dinheiro na frente. E ainda não sei o que tenho. Isto é, sei que tenho as pernas bambas de tanto ficar nas filas e subir escadas; alguns quilômetros de viagem em elevador e ânsia pela espera dos resultados.

    —Amigo Bicalho, essa é a sua doença. Deixe os especialistas de lado, volte à rua, aos uísques, aos crustáceos; volte às pesquisas sematológicas. Tenha cuidado com a vida. Lembre-se do velho Raul. Quando foi aconselhado a fazer um check-up, saiu-se com esta:

    — Ah, meu filho, não tenho mais saúde para isso, não.

    7 de julho de 1966

    Nomes de gente

    Recebo a visita do jornalista de São Paulo, José Ramos Tinhorão. É jovem e simpático, dá chance à caçoada:

    — O senhor é da família das aráceas? Mostra os dentes, responde:

    — Foi no Diário Carioca. Pompeu de Souza, o secretário, botou numa reportagem minha. Disse que Josés Ramos existiam aos lotes; que era difícil distinguir-me no meio deles. Com aquele acréscimo original na assinatura, eu ficaria outro, o único da imprensa do Rio. Fiquei mesmo. Até no meu livro de ensaios.

    Saiu Tinhorão e fiquei pensando no problema dos onomásticos. Há muitos de morte, capazes de matar a carreira dos seus donos involuntários. Embora alguns resistam. Caso daqueles irmãos do Rio Grande do Norte, todos batizados com números, e números em francês, na ordem de nascimento. Um foi governador de Estado, outro cientista, outro é senador, outro ainda prefeito é pesquisador social. E todos de primeiro plano. Caso, ainda em nossa época — antes poder-se-ia colher coisas interessantíssimas —, de um deputado federal chamado Último e de outro chamado Epílogo.

    Exceções. Balzac estava certo: o destino do homem pode ser feito pelo nome de batismo. Também, e mais ainda, pelo do registro civil. A respectiva lei brasileira tem um artigo mais ou menos assim: Os oficiais não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores, etc. Lei incompleta. Qual a bitola da maioria dos oficiais de cartório para atender a tal

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