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Revista
de
Antropologia
Publicação do Departamento de Antropologia
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo
Volume 54 nº 1
SÃO PAULO
janeiro-junho 2011
Revista de Antropologia
Comissão Editorial
Heloísa Buarque de Almeida; Laura Moutinho; Renato Sztutman
Conselho Editorial
†David Maybury-Lewis (Harvard University, EUA); Eduardo Viveiros de Castro
(Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ); Fernando Giobelina
Brumana (Universidad de Cádiz); Joanna Overing (The London School of Economics
and Political Science, Inglaterra); Julio Cézar Melatti (Universidade de Brasília, DF);
Klaas Woortmann (Universidade de Brasília, DF); Lourdes Gonçalves Furtado (Museu
Paraense Emílio Goeldi, PA); Marisa G. S. Peirano (Universidade de Brasília, DF);
Mariza Corrêa (Unicamp, SP); Moacir Palmeira (Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, RJ); †Roberto Cardoso de Oliveira (Unicamp, SP); Roberto Kant de
Lima (Universidade Federal Fluminense, RJ); Ruben George Oliven (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, RS); Simone Dreyfus Gamelon (École de Hautes Études
en Sciences Sociales, França); Terence Turner (University of Chicago, EUA)
Secretário
Edinaldo Faria Lima
Equipe Técnica
Editoração eletrônica: Guilherme Rodrigues Neto
Revisão: Carmem Cacciacarro e Maria Teresa Lourenço
Revisão do inglês: Pedro Lopes
Capa: Ettore Bottini
Os artigos serão aceitos para publicação após análise, pela Comissão Editorial, de sua adequação
ao formato e à linha editorial da Revista e avaliação do conteúdo por dois pareceristas externos.
Esta revista é indexada pelo Índice de Ciências Sociais – IUPERJ/RJ –, pela Ulrich’s International
Periodicals Directory, pela Hispanic American Periodicals Index.
ISSN 0034-7701
Revista
de
Antropologia
Volume 54 nº 1
SÃO PAULO
janeiro-junho 2011
Periódico – Revista de Antropologia da USP, Departamento de Antropologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo – vol. 54(1), janeiro-junho de 2011, São Paulo, SP.
Publicação semestral
ISSN 0034-7701
Artigos
PETER GOW
“Me deixa em paz!”. Um relato etnográfico preliminar
sobre o isolamento voluntário dos Mashco 11
MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ
Inscrito nos genes ou escrito nas estrelas?
Adoção de crianças e uso de reprodução assistida 47
ALEXANDRE WERNECK
O “egoísmo” como competência: um estudo de desculpas dadas nas
relações de casal como forma de coordenação entre bem de si e moralidade 133
ARIEL GRAVANO
¿Vecinos o ciudadanos? El fenómeno Nimby:
participación social desde la facilitación organizacional 191
GABRIEL BANAGGIA
Luz baixa sob neblina: por uma antropologia das oscilações
em Claude Lévi-Strauss 353
Resenhas
Tola, Florencia Carmen. Les conceptions du corps
et de la personne dans un contexte amérindien... 435
DANILO PAIVA RAMOS
Neves, Walter Alves & Piló, Luís Beethoven. O povo de Luzia... 473
JOSÉ FRANCISCO CARMINATTI WENCESLAU
Entrevista
A aculturação é um objeto legítimo da Antropologia:
entrevista com Peter Gow 517
MARTA AMOROSO & LEANDRO MAHALEM DE LIMA
Contents
Articles
PETER GOW
“Leave me alone!”: A Preliminary Ethnographic Report
on Mashco Voluntary Isolation 11
MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ
Inscribed in the Genes or Written in the Stars?
Children’s Adoption and the Use of Assisted Reproductive Technologies 47
ALEXANDRE WERNECK
“Egotism” as a Competence: a Study on Apologies in Couple Relationships
as a Way of Coordinating One’s Own Well Being with Morality 133
ARIEL GRAVANO
Neighbors or Citizens? The NIMBY Phenomenon:
Social Participation from the Perspective of Organizational Facilitation 191
GABRIEL BANAGGIA
Low Beam in Fog: Toward an Anthropology of Oscillations
in the Work of Claude Lévi-Strauss 353
FERNANDA ARÊAS PEIXOTO
The (Baroque) Candomblé of Roger Bastide 379
MARCIO GOLDMAN
“Horse of the Gods”: Roger Bastide and the
Transformations of African Religions in Brazil 407
Reviews
Tola, Florencia Carmen. Les conceptions du corps
et de la personne dans un contexte amérindien... 435
DANILO PAIVA RAMOS
Neves, Walter Alves & Piló, Luís Beethoven. O povo de Luzia... 473
JOSÉ FRANCISCO CARMINATTI WENCESLAU
Interview
Acculturation is a Legitimate Object of Anthropology:
an Interview with Peter Gow 517
MARTA AMOROSO & LEANDRO MAHALEM DE LIMA
Artigos
“Me deixa em paz!”
Um relato etnográfico preliminar
sobre o isolamento voluntário dos Mashco*
Peter Gow
University of St Andrews
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nos contar sobre os Mashco, porque eles falam dialetos de uma mesma
língua. Por isso, começo por uma história piro sobre eles.
Os Piro e os Mashco
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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”
com os Piro, o homem lutou por mais de meia hora, tão ferozmente, na
verdade, que eles tiveram que lutar também. Por fim, o homem parou e
surpreendeu seus captores ao repentinamente falar. “Me deixem sozinho”,
ele murmurou, assim contou-me o Piro.
Apesar desse pedido, o homem e o menino foram atados e levados de
canoa a Diamante, onde todos os habitantes saíram para ver o que eles
consideravam ser seus “parentes nus e selvagens”. Os Piro de Diamante
falaram a seus cativos, dando-lhes comida – que eles recusaram –, roupas,
machados e outros bens. Os Piro falaram aos Mashco que eles deviam dei-
xar de fugir, que os Mashco deviam vir morar com eles. De acordo com o
Piro, o homem falou apenas uma vez, pedindo que ele e o menino fossem
deixados a sós. Mais tarde, nesse mesmo dia, os Piro atravessaram o rio a
remo com seus cativos e os deixaram no lugar de sua captura. Instruindo
os Mashco a ir e trazer seus parentes, os Piro lhes falaram que iriam todos
receber mais presentes. Libertaram então seus cativos. Pouco tempo de-
pois, os Piro ficaram curiosos e seguiram a trilha dos Mashco. A cerca de
300 pés (100 m) dali, os Piro encontraram um lugar no qual os presentes
haviam sido abandonados. As vestimentas haviam sido igualmente joga-
das no chão. (MacQuarrie & Bärtschi, 1998, pp. 298-9)
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mavam a banana, sua dieta básica. As aldeias piro são rodeadas por
parantasha, bananais, que vem de paranta, “banana”, uma palavra que
certamente deriva do espanhol plátano, via o quíchua amazônico palanta.
No Bajo Urubamba, bosques silvestres de bananeiras são chamados, em
quíchua, supray chacra, “roças dos demônios”, e são o tipo de lugar em
que coisas estranhas acontecem.
O caçador Piro estava sozinho. Os termos Piro para “sozinho” são
idênticos àqueles que denotam “um” e intrinsecamente elidem um ou-
tro, um segundo, um par, algo para fazer companhia à pessoa solitária.
Usualmente, para um caçador, este é a caça que ele abate e traz de volta
para sua mulher. Na história de MacQuarrie, porém, o homem Piro
solitário encontra algo muito diferente de um animal de caça, já que ele
ouve pessoas que falam sua língua, Yineru Tokanu, “palavras humanas,
língua Piro”.
MacQuarrie relata esse momento na história do caçador Piro quan-
do escreve que ele “surpreendeu-se um dia ao ouvir vozes vindo do inte-
rior e que ele podia entender apenas parcialmente” (ibidem). Isso me
parece, portanto, uma interpretação de MacQuarrie. Quem se surpre-
enderia ao ouvir uma língua que pode entender apenas parcialmente?
A surpresa do homem Piro não está no fato de que ele a podia compre-
ender, mas na natureza parcial de sua compreensão. No início dos anos
1980, o modelo privilegiado pelos Piro para indios bravos, “índios bra-
vos”, eram os Nahua, falantes de Yaminahua que começavam a fazer
contato nas cabeceiras do Mishahua/Manu. Embora alguns Piro enten-
dessem o Yaminahua, dada a corresidência prolongada com falantes des-
sa língua, os de Diamante provavelmente não a entendiam.
“Me Deixem sozinho!”, disse o homem Mashco para os Piro de Dia-
mante em uma língua que eles podiam entender. Há, penso, dois signi-
ficados que podem ser atribuídos por um Piro a essa formulação. O pri-
meiro é o de estar sozinho, gapalushatachri ou satupje. Esse é um estado
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[...] a lista contém certas peculiaridades que me levam a pensar que o au-
tor não conhecia de fato a língua. Ela contém algumas palavras que pare-
cem com algum dialeto Háte [Harakmbút] e mais algumas palavras em
Piro, mas não as pude relacionar a outra língua existente na região [...].
(1975, p. 190)
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Palota, que foi abandonada, por sua vez, em cinco anos, em razão de
“ataques de índios” (MacQuarrie & Bärtschi, 1998). Não está claro se
esses ataques vieram dos Mashco ao norte ou dos Wachipaeri falantes
de Harakmút ao sul (cf. Lyon, 1975). Apesar da falta de registros, pare-
ce-me provável que os Mashco tenham tido contatos ocasionais com os
Piro, os Machiguenga e outros povos indígenas.
É provável que uma atenção mais cuidadosa dos registros dominica-
nos sobre o Madre de Dios revelasse, na condição de uma leitura crítica,
mais detalhes sobre os povos Mashco nesse período. Que eles sabiam de
sua existência está indicado na seguinte passagem de Barriales sobre a
vida do padre José Alvarez:
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dios selvagens” nas cabeceiras do Sepahua, o que ele fez. Isso teria ocorri-
do nos anos 1960.
Naquele tempo, concluí que essa busca tinha por motivação evitar a
aldeia, mas agora posso pensar em um motivo mais óbvio. Isto sugere
que o grupo Mashco setentrional, das cabeceiras de Sepahua, Cujar e
Purus, estava provavelmente em conflito com os Piro e outros trabalha-
dores indígenas da madeira. Esse conflito talvez os tenha levado das ca-
beceiras dos rios Sepahua e Cujar para leste, em direção à região entre o
Piedras e o Purus, onde os madeireiros não estavam trabalhando.
Ao fim dos anos 1960, eles começaram a ser vistos no Purus pelos
Sharanahua, que os identificaram como Mashco para os missionários
do SIL que com eles trabalhavam (Beier e Michael, apud Leite Pitman,
Pitman & Alvarez, 2003). Isso significa que os Sharanahua haviam de-
batido sobre isso com os Piro, tendo usado um nome piro: esses debates
podem ter tido lugar na base do SIL em Yarinacocha, em viagens para e
do Sepahua, e no próprio Purus (os Piro continuam a visitar esse rio
partindo do Urubamba). Beier e Michael registram uma expedição do
SIL para contatar os Piro Mashco que envolveu um homem Amarakaeri
(Arakmbut). O instituto obviamente interpretou o nome Mashco como
“falantes de Harakmbút”, apesar do fato de que nenhuma menção ja-
mais foi feita sobre tal povo tão ao norte. A expedição encontrou alguns
Mashco que claramente nada entendiam do que aquele Amarakaeri
lhes dizia.
Agora: se o Mashco não era uma língua Pano ou Harakmbút, o que
era? O candidato óbvio, nessa região, era Maipuran/Arawak. Em 1956,
Russell e Hart, os missionários do SIL que estavam trabalhando com os
Amahuaca, entrevistaram uma mulher Iñapari que vivia entre os
Amaracaeri/Arakmbut (Parker, 1995). Por volta de 1977, o instituto
decidiu que os Mashco poderiam talvez ser falantes de Iñapari (Ribeiro
e Wise, 1978). Apesar do engajamento do SIL em traduzir a Bíblia a
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todas as línguas humanas conhecidas, eles parecem não ter tentado, nesse
momento, trabalhar com a língua Iñapari. Em 1977, eles pareciam con-
siderar o Iñapari uma língua efetivamente extinta.
Os Mashco emergem
Tudo mudou no fim dos anos 1970, quando três mulheres Mashco se
revelaram a guardas do recém-criado Parque Nacional nas margens do
Rio Manu. Obviamente existentes, essas mulheres levantavam um pro-
blema. Quem são elas? Sua chegada coincide com o início de contatos
pacíficos entre os Nahua das cabeceiras do Mishahua-Manu e estrangei-
ros; e inicialmente se assumiu que elas também eram Nahua, falantes de
uma língua Yaminahua-Pano. No entanto, os Piro que as encontraram
disseram que elas falavam uma língua que eles podiam entender apenas
parcialmente, um dialeto Piro.
Em 1988, Juan Sebastián Sandoval, líder da aldeia Miaría e filho de
Juan Sebastián Perez, me contou ter feito uma longa viagem ao Manu,
onde encontrou e conversou com três mulheres Mashco. Ele me disse
que sua motivação era comer taricaya, ovos de tracajá, nas praias do
Manu, como seus antepassados faziam todo ano. Contou-me que o go-
verno buscava evitar que os Piro explorassem recursos do Rio Manu e
que ele queria garantir seu direito, bem como o direito de seus parentes
também. Essa viagem, através das cabeceiras dos rios Mishahua e Manu,
deve ter ocorrido após a remoção dos Nahua de Sepahua, tendo em vis-
ta que Juan Sebastián Sandoval não teria tentado viajar antes disso. Pen-
so que sua viagem era uma resposta a essas novas condições de paz para
reativar uma possibilidade mais antiga.
Sebastián Sandoval me contou que as mulheres Mashco falavam uma
língua que ele podia compreender apenas parcialmente, que elas fala-
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vam Piro. Estou certo de que eu não fui a única pessoa a quem ele con-
tou isso, porque Steven Parker, membro do SIL, registra o seguinte:
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social, o casal Piro teria que convencer todos os seus parentes a acom-
panhá-los. Isso requer a quebra da ligação da vida social coletiva a “per-
manecer em um lugar”. O valor de “viver bem” teria que mudar, passan-
do do valor de uma vida permanente em aldeias para o de movimento.
Gwashata, “permanecer em um lugar”, teria que dar lugar à valorização
do “movimentar-se continuamente”. Dadas as circunstâncias históricas
adequadas, posso imaginar essa dramática transformação ocorrendo.
Tais circunstâncias históricas seriam, penso, aquelas que experimenta-
ram os Mashco.
Tais mudanças são mais fáceis e desejáveis para algumas pessoas do
que para outras: a caminhada perpétua pela floresta é mais fácil para os
jovens e desincumbidos do que para os velhos e as mulheres com filhos
pequenos. A mudança para o nomadismo é uma mudança coletiva aos
valores de homens jovens e suas jovens esposas, e pode ser interpretada
como um processo de coletivização de um modo de ser especificamente
masculino, aquele do caçador. Ela leva, sem dúvida, a transformações
dramáticas na vida dos Mashco, muitas das quais são provavelmente
bastante indesejáveis para muitos deles; mas foi, sugiro, uma possibi-
lidade imanente em suas vidas sociais antes da violência da indústria
da borracha, sendo, portanto, uma rota significativa e potencial rumo
à sobrevivência.
Talvez meu argumento seja confirmado pela singularidade da oca-
sião em que as três mulheres no Manu se dispuseram a aceitar o contato
pacífico com estrangeiros. Seu permanente desligamento do resto do
grupo de Pinquén foi quase certamente causado por brigas. Um dos
meus informantes, que conheceu essas mulheres, descreveu uma delas
como seprolo, ou seja, “louca, sem limites, fora de controle, sexualmente
promíscua”. Mulheres classificadas como seprolo no Bajo Urubamba são
foco de sérias brigas entre outras mulheres e são forçadas a “viver por aí”
até que tenham filhos com idade suficiente para as defender. Algo simi-
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lar pode ter ocorrido com a mulher Mashco mais jovem. As outras duas
mulheres, sua mãe e irmã mais velha, podem ter ido ao curso principal
do Manu para protegê-la, ao se aproximarem desses outros, os estran-
geiros, que seus parentes tão cuidadosamente evitam.
Sabemos por que essas mulheres aceitaram o contato, pois MacQuar-
rie registra que:
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Conclusão
Notas
*
Agradecimentos: O presente relato foi originalmente escrito para Lev Michael e
Conrad Feather, e agradeço-lhes por seu auxílio e comentários. Luisa Elvira
Belaunde forneceu novas informações e também comentários, e agradeço ainda
aqueles que ouviram a versões anteriores na Universidade de St Andrews, no Mu-
seu Nacional e na Universidade de São Paulo por seus comentários. Minha pesqui-
sa de campo no Bajo Urubamba entre 1980 e 2001 foi financiada pelo Social
Science Research Council, pelo British Museum, pela Nuffield Foundation, pela
British Academy e pela London School of Economics.
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Os Mashco e seu isolamento voluntário levantam uma questão e um problema em
um contexto político contemporâneo que não discuto aqui, por falta tanto de es-
paço quanto de conhecimento especializado. Aqueles que estiverem interessados
nesse contexto podem encontrar informações relevantes digitando as palavras
Mashco, Mashco-Piro e Masco em um sistema de busca da Internet.
Bibliografia
ALVAREZ, Ricardo
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Inscrito nos genes ou escrito nas estrelas?
Adoção de crianças e uso de reprodução assistida*
Martha Ramírez-Gálvez
Introdução
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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?
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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?
A análise aqui apresentada faz parte de uma pesquisa maior, cujos dados
fora coletados ao longo de três anos (2004 a 2007), em fontes muito
variadas, mas que considerei necessárias para me aproximar, aprofundar
e observar os diversos ângulos e as perspectivas possíveis das diferentes
pessoas e instituições envolvidas na adoção de crianças.
Dada a ausência de dados estatísticos sobre adoção, esta pesquisa en-
volveu a elaboração de uma base de dados com informação de 388 casos
habilitados para adoção pelo Fórum de Santo Amaro, com o intuito de
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Uma das primeiras questões que chama a atenção ao pensar esses dois
campos é a naturalização feita por alguns especialistas em RA do fato de
os casais recorrerem a esse procedimento em várias ocasiões, antes de
optar pela adoção de crianças. Segundo alguns desses especialistas, os
casais sempre querem tentar, até último momento, ter o filho biológi-
co, colocando tal questão no plano dos direitos: as tecnologias reprodu-
tivas seriam uma opção e os casais teriam o direito de tentar um filho
próprio, antes de adotar o filho de outros (ibidem).
Com o acelerado desenvolvimento biotecnológico, a reprodução as-
sistida médica e tecnologicamente vem acompanhada pelo interesse na
qualidade do embrião, gerando uma espiral de indagações tecnológicas
e de consequentes manipulações, à procura da “perfeição biológica”,
ancorada numa extrema racionalização da procriação (Rotania, 1995).
Uma possível hipótese a ser explorada é que o crescimento e a conso-
lidação desse campo no país trazem um cenário no qual a adoção de
crianças tende a ser cada vez mais protelada, em benefício do uso de
tecnologias reprodutivas. A adoção de crianças continua sendo coloca-
da como uma alternativa; no entanto, esta seria cada vez mais adiada à
medida que surge uma nova técnica. Continua a ser um recurso para
quem tentou, sem sucesso, várias técnicas, em várias ocasiões.
As assistentes sociais e psicólogas entrevistadas em Campinas conce-
bem que, na procura de filho mediante a RA, os profissionais estariam
atendendo as necessidades e os desejos do casal, e não da criança.11 A
inversão de foco usada para diferenciar adoção e RA – dando prioridade
ou às necessidades da criança cedida para adoção, para quem se procura
uma família, ou ao desejo do casal infértil – é sustentada nas mudanças
introduzidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que
trouxe também mudanças na chamada “nova cultura da adoção”.
Na adoção considerada tradicional teria prevalecido o interesse do
casal adotante, que procurava constituir uma família com filhos ou au-
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alguns casais que adotariam pela primeira vez que era indiferente o sexo
da criança, por se tratar do primeiro filho/a, deixando tal definição ao
acaso, do mesmo modo como aconteceria com uma gravidez biológica,
em que “não se sabe o que vai vir”.
A maior preferência por meninas na adoção parece não ter a mesma
intensidade quando se trata de reprodução assistida. Apesar de não ter
dados oficiais sobre o desejo quanto ao sexo dos bebês gerados por essas
técnicas, ao se discutir a proibição desta escolha13 o que aparece frequen-
temente evocado é a demanda e o direito dos pais de escolher ter um
filho homem, sustentada em questões culturais ou religiosas. Na mídia,
esta possibilidade é apontada como um dos atrativos da RA, já que per-
mitiria adequar a composição das famílias a um tipo ideal, conformado
por mãe, pai, um primogênito menino e uma menina. O Dr. Roger
Abdelmassih, ex-proprietário do maior centro de reprodução assistida
da América Latina, localizado em São Paulo e com uma presença con-
tundente na mídia, manifesta o seguinte: se existem os meios e se há
pessoas para as quais, por questões culturais, ter um filho homem é de
grande importância, isso não deveria ser impedido (Besen, 1998/1999;
ComCiência, 2001). Numa reportagem de capa da revista Veja (Brasil,
2004), o tema é a possibilidade de escolha do bebê mediante o uso de
técnicas de reprodução assistida. Na matéria são narrados diversos casos
em que a seleção de sexo efetivamente se realiza, aduzindo como moti-
vo principal a busca de um balanceamento ou equilíbrio familiar entre
casais que têm vários filhos de um ou outro sexo. Nesses casos, embora
não houvesse um problema de infertilidade, eles não queriam arriscar
ter mais filhos/as do mesmo sexo.
A procura de uma criança com biótipo similar ao dos pais, assim
como a tendência a desejar crianças pequenas, preferivelmente recém-
nascidas, pode ser interpretada como uma forma de aproximar a adoção
ao desenvolvimento “natural” reprodutivo, que, neste caso, suprimiria
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família havia dois casos de adoção que ele julgava bem-sucedidos; para
ela, entretanto, foi preciso esgotar todas as tentativas de fertilização para
poder elaborar sua esterilidade e partir para “o plano B”: a adoção.
Segundo consta no parecer psicossocial, “o desejo manifestado pelo ca-
sal de adoção está pautado na edificação de uma família”. Desejam um
bebê recém-nascido e branco, “sadio, se possível que se assemelhasse com
nosso tipo bio-físico”.
João e Sonia, com 40 e 35 anos, respectivamente, brancos, com edu-
cação superior e uma renda familiar de 32 salários mínimos (12 mil
reais), decidiram adotar “para formar uma família e ganhar a alegria de
ter um filho”. Ela não queria ter filhos antes dos 30 anos, esperando que
os dois concluíssem o curso de pós-graduação e conseguissem uma me-
lhor estrutura econômica. Após uma cirurgia para tratar a endometriose,
fez diversos tratamentos entre 1999 e 2005, como ingestão de hormô-
nios, três IA e cinco FIV, além de tomar vacinas por “incompatibilidade
genética” do casal. Decidiram adotar estimulados por um primo que
havia adotado uma criança e depois de se sentirem desgastados por esses
procedimentos, ao longo desses seis anos. Desejam adotar uma criança
entre 0 a 12 meses e são indiferentes quanto ao sexo e à cor. Todavia,
Sonia se mostrou apreensiva com relação aos preconceitos que uma
criança “de cor” poderia vir a ter, inclusive por parte de sua cunhada.
Mas acreditam que “saberão lidar com os preconceitos da sociedade e
da família com tranquilidade”.
Longe de generalizar esses perfis, mas com o intuito de trabalhar ape-
nas com tendências ou deslocamentos possíveis, os casos apresentados
servem para considerar a relação entre a adoção e a possibilidade de ter
filho biológico. Na maioria dos processos analisados, os casais partem
para a adoção depois de constatar a impossibilidade de ter seu filho bio-
lógico. Alguns desses casais o fazem em razão das limitações financeiras
que inviabilizariam o acesso às tecnologias reprodutivas, ou porque tal
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Eles estavam dentro de um tubo de ensaio. Tudo o que se via era a gotinha cor-
de-rosa do soro anticoagulante sobre os embriõezinhos. Eles estariam mofando
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Considerações finais
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Notas
*
Uma versão anterior deste artigo foi apresentada na 26ª Reunião Brasileira de An-
tropologia (Porto Seguro, BA, 2008). Alguns dos dados apresentados correspondem
à pesquisa realizada durante o Programa de Formação de Quadros Profissionais do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, 2006; e à pesquisa “Sujei-
ções tecnológicas: gênero e identidade na reprodução assistida”, financiada pelo
CNPq. Agradeço os comentários das/os pareceristas que enriqueceram as ideias
apresentadas neste artigo.
1
Tal afirmação está baseada em uma pesquisa anterior (Ramírez-Gálvez, 2003), na
qual realizei um levantamento das notícias publicadas na imprensa escrita e mídia
eletrônica, tomando como fonte principal o jornal Folha de S. Paulo, no período de
1994 a 2001. O critério para escolher esta fonte obedeceu ao fato de esta ser uma
das mídias que mais veicula notícias sobre o assunto, segundo o monitoramento
feito pelo projeto “Olhar sobre a mídia”, da Comissão de Cidadania e Reprodução
(CCR) e da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. As 162
matérias que efetivamente abordaram o assunto foram analisadas em uma perspec-
tiva diacrônica, que permitiu observar a evolução da panorâmica geral daquilo que
é divulgado pela grande imprensa. Esse material foi complementado com matérias
publicadas nas revistas Veja e IstoÉ, e em outros jornais nacionais, que não tiveram
a mesma sistematicidade da busca feita na Folha de S.Paulo.
2
Trato, o tempo todo, da adoção plena, que implica a perda do pátrio poder dos
pais biológicos. Outras questões envolvidas na circulação de crianças (Fonseca,
1995) e na transferência de guarda para parentes e conhecidos (Vianna, 2002),
embora tenham alguma relação com a adoção, não são consideradas neste trabalho.
3
Dado que o Fórum de Santo Amaro/SP não tinha registros informatizados, foi
necessário construir uma base de dados com informação acerca dos candidatos/as
habilitados/as para adoção, com o intuito de traçar um perfil das/os requerentes.
A base conta com a informação coletada de 388 casos habilitados pelo Fórum en-
tre janeiro de 2003 e novembro de 2005. O casal ou as pessoas candidatas à ado-
ção são submetidas à avaliação, depois da qual são incluídas ou não no Cadastro de
Pretendentes à Adoção nessa Vara. Tal cadastro é um livro no qual são manuscritos
alguns dados, com base nos quais se organiza a colocação das crianças liberadas
para adoção. Esse livro foi a fonte para a realização da base de dados, com informa-
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ções sobre: número e ano de cadastro, idade, cor do pai e da mãe; características
das crianças desejadas, como sexo, cor e idade. Cabe destacar a dificuldade de siste-
matizar tais dados, uma vez que havia variabilidade na forma de registrá-los, asso-
ciada à inconstância da equipe encarregada. Cada equipe revê a estrutura e a forma
de atendimento, que se reflete na forma como os dados são registrados. Uma das
maiores dificuldades foi a variabilidade utilizada na nomenclatura para descrever o
quesito cor de pretendentes e das crianças desejadas. Em contrapartida ao acesso
de informação, o banco de dados foi entregue ao Fórum.
4
Segundo os dados levantados até 2007, no país funcionam aproximadamente cem
GAA, que, desde 1996, realizam um encontro anual com o objetivo de trocar ex-
periências e fortalecer uma rede que divulgue e consolide a adoção. Durante esses
eventos, procura-se refletir em torno das múltiplas manifestações da adoção, en-
volvendo famílias biológicas, famílias adotivas, pretendentes à adoção, represen-
tantes de abrigos, do sistema judiciário, profissionais e agentes que atuam nesse
campo, formuladores de políticas públicas, crianças e adolescentes que esperam ser
adotados, etc. (Schreiner, 2004). O 10º Enapa, realizado em Goiânia em maio de
2005, teve como temática central as adoções inter-raciais e as tardias.
5
O valor do salário mínimo em 2007 foi de R$ 380,00.
6
Agradeço a um/a da/os pareceristas por ter chamado a atenção sobre este ponto.
7
Coletar dados sobre adoção no Brasil, pelo menos no período em que foi feita a
tentativa de levantamento de informações estatísticas para esta pesquisa (entre 2004
e 2007), resultou ser uma tarefa árdua. Embora o Cadastro Nacional de Adoção,
atualmente em funcionamento, fosse apenas um projeto naquele tempo, não exis-
tia um órgão nacional que centralizasse tais dados. As informações, pelo menos no
estado de São Paulo, eram coletadas pela Comissão Estadual Judiciária de Adoção
Internacional – Cejai-SP, vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A Corregedoria Geral da Justiça, no provimento CC12/05, atribuiu à Cejai/SP a
condição de Cadastro Centralizado. Assim, as Varas da Infância e da Juventude do
Estado de São Paulo remetiam a esta Comissão os dados sobre todas as adoções
realizadas, funcionando como fonte de consulta aos Juízos Permanentes (Cejai,
2005). Por sua vez, esses dados eram repassados ao Cartório do Tribunal. Depois
de muitas burocracias, idas e vindas entre a Cejai/SP, a Vara da Infância e o Cartó-
rio da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, foram-me proporcio-
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
nados os números brutos de adoções por ano, que correspondem aos processos no
sistema judiciário de São Paulo sob a rubrica adoção.
8
Esses dados devem ser lidos com cautela e ponderados em função do número de
pretendentes e de crianças disponíveis para adoção. Além disso, é necessário levar
em consideração a queda da fecundidade no Brasil, a maior aceitação social de mães
solteiras, o maior acesso ao aborto seguro e a métodos contraceptivos – fatores es-
tes que podem criar condições favoráveis à diminuição de crianças disponíveis para
adoção. Também é necessário levar em conta as alterações resultantes da implemen-
tação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que, segundo uma das infor-
mantes da Corregedoria, tornou o processo de adoção mais rigoroso. Esta mesma
informante lembrou que o número de adoções no estado de São Paulo pode ter
sido afetado pela denúncia, realizada em 1999, do Movimento Mães da Praça do
Fórum de Jundiaí (SP) acerca da irregularidade na autorização de adoções interna-
cionais, que transformou esta cidade em um dos maiores polos de exportação de
crianças do país. Analisar a diminuição progressiva das adoções legais em São Pau-
lo seria matéria específica de outra pesquisa.
9
A equipe de psicólogas e assistentes sociais que atuavam ou tinham atuado na área
de adoção da Vara da Infância de Campinas foi convocada para uma reunião co-
migo. O que inicialmente tinha sido planejado como uma entrevista com a coor-
denadora de psicólogas da Vara se transformou em uma conversa grupal acerca das
impressões que tinham sobre adoção e RA, suscitadas pelas minhas indagações.
Depois desta reunião, tive outro encontro com uma das psicólogas, que se mostrou
mais disponível para conversar sobre o assunto.
10
Essa visão corresponde à chamada nova cultura da adoção, que responde às de-
mandas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e é discutida mais adiante.
11
Haveria de se considerar o contraste entre o “valor” atribuído a uma criança cedi-
da para adoção e o que se atribui ao filho gerado por reprodução assistida. Corri-
queiramente, considera-se que no primeiro caso a falta de desejo pelo filho, entre
outros motivos, estaria associada ao “abandono” da criança. No segundo, seria a
grande intensidade do desejo que levaria à realização de grandes investimentos
financeiros e emocionais na “caça do filho de ouro”, como é denominada na psi-
cologia a procura da gravidez a todo custo. No entanto, como indica Fonseca
(1995), na circulação de crianças entre as classes populares e a média baixa a ces-
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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?
são dos filhos pode estar associada à procura de melhores perspectivas de vida para
eles, e não à ausência de desejo ou de vínculo afetivo.
12
Em janeiro de 1986, uma mulher, simulando ser uma assistente social, raptou um
bebê recém-nascido de uma maternidade de Brasília, levando-o para Goiânia, onde
o registrou e criou como seu filho legítimo. A família de origem do bebê raptado,
chamado Pedrinho, conseguiu estabelecer em novembro de 2002 que o menino, à
época um adolescente, foi vítima de sequestro. A mulher foi condenada a oito
anos e oito meses de prisão, em regime semiaberto. Para fixar a pena, o juiz levou
em consideração os crimes de subtração de incapaz, parto suposto e falsificação de
documentos. O caso foi amplamente divulgado pela imprensa.
13
No Brasil, é proibida a seleção de embriões por sexo, a não ser quando este está
associado à transmissão de doenças. A seleção de sexo se faz, principalmente, me-
diante o diagnóstico genético pré-implantacional, que permite selecionar os em-
briões a serem implantados.
14
Na falta de outro termo, refiro o uso dessas técnicas como tratamento, embora, na
maioria dos casos, não se configure como cura ou restabelecimento da função
reprodutiva.
15
Todos os nomes são fictícios.
16
Utilizo aqui o termo socialidade, como entendido por Strathern (2006), para refe-
rir a complexidade das questões que acompanham e constituem as condições de
existência das relações, por exemplo, de filiação, nos contextos analisado (cf., tam-
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“Seu funeral, sua escolha”:
rituais fúnebres na contemporaneidade
RESUMO: Vida e morte são conceitos centrais para a compreensão das con-
cepções de pessoa e estão presentes em distintas culturas. Os modos de ad-
ministração do início e término da vida são os mais diversificados e depen-
dem das crenças compartilhadas, elaboradas por cada grupo social. Este
artigo se insere no conjunto de estudos antropológicos dedicados ao tema
da morte e aos rituais a ela correspondentes. Em sociedades ocidentais, ob-
servam-se, na contemporaneidade, mudanças significativas e permanências
no que tange ao estatuto dos vivos e dos mortos. Com base no exame de
notícias da mídia e de bibliografia sobre o tema, são desenvolvidas reflexões
acerca das mudanças nos rituais fúnebres. Tal escolha é justificada pela pos-
sibilidade de apreensão de noções, crenças e valores que constituem nódulos
centrais em nossa cosmologia, como pessoa/indivíduo, ciclo de vida, etapas
da vida, dor, natureza/cultura, vida/morte, entre outros.
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sidera a morte um tema a ser estudado como fato social total. Tristeza,
dor e perda consistem em experiências usualmente associadas à morte.
De acordo com Howarth (2007, p. 235), os estudos socioantropoló-
gicos indicam a existência de três explicações para o sentido dos fune-
rais: dar destino ao corpo morto; interceder pelo destino da alma; e re-
integrar os enlutados na vida social. Cada possibilidade não é excludente,
de modo que elas podem estar associadas. Seja como for, trata-se de efe-
tuar uma separação entre os vivos e os mortos. Para Douglas (1991), as
práticas e atitudes funerárias indicam que a morte e o sofrimento cons-
tituem partes essenciais e substantivas da vida humana e da natureza.
Tais aspectos não caracterizam apenas grupos ou culturas não ociden-
tais, apresentando-se também na sociedade ocidental moderna, ainda
que revestidos por distintas roupagens e nuances.
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respeitando sua trajetória individual, seja ela hippie, high tech, nerd, “pa-
tricinha”, ou outras possibilidades.
A adequação e satisfação dos desejos dos sujeitos e a afirmação de
suas afinidades integram a noção de consumo, conforme definida por
Douglas (2009, p. 105). Os bens são considerados “necessários para dar
visibilidade e estabilidade às categorias da cultura”, e “é prática etno-
gráfica padrão supor que todas as posses materiais carreguem significa-
ção social” (ibidem, p. 105). Eles constituem comunicadores. Assim, as
diferentes formas de caixão não se restringem ao mero consumo. Fami-
liares, amigos ou os próprios futuros “falecidos” promovem arranjos cria-
tivos nos rituais. Os objetos assinalam a celebração do término de uma
vida individual, transformando-a em um momento único para o grupo.
A vida de determinada pessoa é concluída com indicações precisas de
sua especificidade e singularidade. Suas mais significativas característi-
cas são expostas em seu ritual fúnebre. A última participação do faleci-
do em atividade coletiva é marcada pela centralidade da expressão visual
de sua identidade, pela afirmação de sua identidade pessoal.
Os objetos têm função mediadora entre o visível e o invisível, “entre
aquilo de que se fala e aquilo que se apercebe, entre o universo do dis-
curso e o mundo da visão” (Pomian, 1982, p. 68). São capazes de evo-
car e relembrar o passado, os estilos de vida, as experiências coletivas e
individuais. Em suma, refletem o ente que se foi. São também objetos
de desejo, que, no caso em análise, estão plenos de aspectos da persona-
lidade individual. Estes objetos são requeridos por aqueles que farão uso
deles, pelos que ensejam marcar e perpetuar a singularidade, prestando
uma última homenagem. Portanto, trata-se de afirmar a presença do
próprio indivíduo, sua perpetuação na memória do grupo, conforme se
observa na preferência por guardar em uma CPU as cinzas de um pa-
rente. Stewart classifica uma modalidade de souvenir, associada aos ritos
de passagem:
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Visibilidade, individualidade
e rituais fúnebres contemporâneos
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Notas
1
Professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Instituto de Estudos
em Saúde Coletiva – Brasil.
2
Professora adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, DFCS/
PPGMS-Unirio, e integrante do Núcleo de Antropologia Urbana/USP – Brasil.
3
Em artigo acerca das transformações nas relações familiares em camadas popula-
res, pluralismo religioso contemporâneo e ethos privado, Gomes (2006) analisa as
diferentes características de rituais fúnebres adotados pela rede familiar em ques-
tão. Mostra que, no intervalo de uma década, o formato do rito e os modos de
participação dos familiares se alteraram significativamente. O domínio da orienta-
ção católica na realização do funeral passou a dividir espaço com a orientação evan-
gélica, adquirida mediante conversão de vários membros da família. Observa, no
entanto, que tais mudanças não ocorrem sem conflitos e acomodações muito
marcantes em processos de disputa pela legitimidade familiar. Neste sentido, o rito
fúnebre, como fato social total (Mauss, 2003), torna-se objeto singular de análise
das combinações e dos ajustes necessários para a manutenção ou transformação da
organização social em questão.
4
Há uma vastíssima bibliografia antropológica sobre ritual, que acompanha toda a
trajetória da disciplina. Não cabe aqui retomá-la, mas reconhecer sua complexida-
de e relevância. Neste artigo, não consideramos a noção de ritual com base numa
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11
DaMatta discute ritos de passagem e modernidade com base na relação entre limi-
naridade e individualidade, refletindo sobre sua produção acerca do Carnaval no
Brasil, quando ocorre uma “verdadeira institucionalização do intermediário”
(2000, p. 14).
12
Esta proposta é denominada Cuidados Paliativos ou Medicina Paliativa. Sobre o
tema, ver Menezes (2004).
13
Utilizamos aqui o termo hospice no original, em inglês, uma vez que não há equi-
valente em português. Hospice tanto se refere a uma filosofia de atendimento às
necessidades de doentes diagnosticados como “fora de possibilidades terapêuticas
de cura”, quanto a instituição que promove esse tipo de assistência.
14
O “morrer ao seu próprio jeito” significa que a pessoa tenha acesso às possibilida-
des terapêuticas, efetue suas escolhas – não necessariamente de acordo com a ori-
entação médica –, de maneira a produzir uma morte singularizada. Esta concep-
ção se distingue da produção de uma “boa morte”, que vem sendo considerada
pelos estudiosos da temática como padronizada e medicamente controlada (Walter,
1997; Menezes, 2004).
15
O “subjetivismo” e o “naturalismo” são concebidos como valores estruturantes e
nódulos da religiosidade laica presente na cultura ocidental moderna. A “religiosi-
dade laica” integra a proposta de reflexão sobre o horizonte cultural moderno, con-
siderando que a adesão aos valores concernentes à ideologia individualista, por
mais paradoxal que se apresente, tem um cunho “religioso”, entendido como uma
cosmovisão (Duarte, 2006, p. 53). Tal característica propicia combinações, con-
flitos e ajustes nas relações estabelecidas entre indivíduos e instituições, religiosas
ou laicas; entre indivíduos e distintas redes de pertencimento (família, vizinhança,
trabalho, lazer, entre outras), que podem ser as mais díspares, como é o caso de
integrantes de religiões conservadoras que vivenciam, em segredo, experiências
transgressoras no que tange às decisões privadas (Natividade & Gomes, 2006).
16
Disponível em: <http://somostodosum.ig.com.br/d.asp?i=70> – Acesso em no-
vembro de 2011.
17
Disponível em: <http://www.centrodedharma.com.br/modules.php?name=
Content&pa=showpage&pid=6> – Acesso em novembro de 2011.
18
Para uma discussão sobre Antropologia e processos de circulação dos objetos, ver
Gonçalves (2007).
- 123 -
RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”
19
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/moreira/post.asp?cod_post=
233416> – Acesso em novembro de 2011.
20
Disponível em: <http://noticias.r7.com/esquisitices/noticias/cpu-velha-vira-
caixao-para-nerd-morto-20091001.html> – Acesso em novembro de 2011.
21
Com a disseminação da comunicação via Internet, a “cultura cibernética” (Amaral,
2003) produz diferentes modalidades de rituais, códigos, etiquetas, linguagens,
redes de pertencimento e, em suma, de relações sociais.
22
Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/popular/interna/0,,OI1872991-
EI1141,00.html> – Acesso em novembro de 2011.
23
Disponível em: <http://mulher.terra.com.br/interna/0,,OI3712984-EI1377,00-
funerarias+oferecem+ motos+urnas+tematicas+e+ate+sorvetes.html> – Acesso em
novembro de 2011. “Funeral personalizado é chance de gastar”. Disponível em:
<http://mulher.terra.com.br/galeria/0,,OI99051-EI1377-FI1173114,00.html> –
Acesso em novembro de 2011.
24
Diversamente do ocultamento social da morte em decorrência de doenças, o sécu-
lo XX assistiu a uma crescente exposição midiática do espetáculo da morte por
desastres, guerras e violência.
25
Elias considera a relutância dos adultos diante da familiarização das crianças com
a morte como um dos sintomas deste recalcamento, um mecanismo de defesa.
26
Cabe ressaltar que os estudos não se restringem ao exame de ritos destinados ao
término da vida: uma produção recente vem enfocando o surgimento de novas
práticas de demarcação da passagem de etapas e ciclos de vida.
27
Timothy Leary (1920-1996) foi psicólogo e neurocientista, professor de Harvard.
Pertenceu à geração Woodstock. Promoveu experiências com psicotrópicos e aluci-
nógenos com seus alunos, e este foi o motivo de sua expulsão da universidade. Bus-
cou divulgar uma nova perspectiva sobre o processo do morrer. Faleceu em casa,
cercado por amigos, e seus últimos momentos foram transmitidos pela Internet.
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ABSTRACT: Life and death are central keys for the conception of
personhood at different cultures. The ways of dealing with the beginning
and the end of life are highly diversified and depend upon shared beliefs,
elaborated by each social group. This article examines the theme of death
and its rituals, under an anthropological perspective. In contemporary
Western societies significant changes are observed concerning the status of
the living and the dead. In this paper, reflections on the changes in burial
rituals are presented, from the exam of media news and literature dedicated
to the theme. This choice is justified by the possibility of apprehending
notions, beliefs and values that constitute central aspects in our cosmology,
such as person/individual, life cycle, phases of life, pain, nature/culture and
life/death.
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O “egoísmo” como competência:
um estudo de desculpas dadas nas
relações de casal como forma de coordenação
entre bem de si e moralidade1
Alexandre Werneck2
Sophie,
Há muito tempo venho querendo lhe escrever e responder ao seu último
e-mail. Ao mesmo tempo, me pareceria melhor falar com você e dizer o
que tenho a dizer de viva voz. Mas pelo menos será por escrito. Como você
pode ver, não tenho andado bem ultimamente. É como se não me reco-
nhecesse na minha própria existência. Uma espécie de angústia terrível,
contra a qual não posso fazer grande coisa, senão seguir adiante para ten-
tar superá-la, como sempre fiz. Quando nos conhecemos, você impôs uma
condição: não ser a “quarta”. Eu mantive meu compromisso: há meses dei-
xei de ver as “outras”, não achando obviamente um meio de vê-las, sem
fazer de você uma delas.
Achei que isso bastasse, achei que amar você e o seu amor seriam sufici-
entes para que a angústia que me faz sempre querer buscar outros horizon-
tes e me impede de ser tranquilo e, sem dúvida, de ser simplesmente feliz e
“generoso”, se aquietasse com o seu contato e na certeza de o amor que
você tem por mim foi o mais benéfico para mim, o mais benéfico que ja-
mais tive, você sabe disso. Achei que a escrita seria um remédio, que meu
“desassossego” se dissolveria nela para encontrar você. Mas não, estou pior
ainda, não tenho condições sequer de lhe explicar o estado em que me
encontro. Então, esta semana, comecei a procurar as “outras”. E sei bem o
que isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou entrando.
Jamais menti para você e não é agora que vou começar.
Houve uma outra regra que você me impôs no início de nossa história:
no dia em que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para você
me ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa,
injusta (já que você ainda vê B..., R...) e compreensível (obviamente); com
isso, jamais poderia me tornar seu amigo.
Mas hoje você pode avaliar a importância da minha decisão, uma vez
que estou disposto a me curvar diante da sua vontade, pois deixar de ver
você e de falar com você, de apreender o seu olhar sobre as coisas e os seres
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e a doçura com a qual você me trata são coisas das quais sentirei uma sau-
dade infinita.
Aconteça o que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você da ma-
neira que sempre amei, desde que nos conhecemos, e esse amor se estende-
rá em mim e, tenho certeza, jamais morrerá.
Mas hoje seria a pior das farsas manter uma situação que você sabe tão
bem quanto eu ter se tornado irremediável, mesmo com todo o amor que
sentimos um pelo outro. E é justamente esse amor que me obriga a ser
honesto com você mais uma vez, como última prova do que houve entre
nós e que permanecerá único.
Gostaria de que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.
Cuide de você.
X.
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fia; uma analista de etiqueta avalia seu grau de cortesia; uma juíza a in-
terpreta como um encerramento de contrato; uma terapeuta de casal
promove um debate entre Sophie e... a carta; uma adolescente lança so-
bre ela um olhar próprio de sua idade; e várias outras mulheres apresen-
tam suas contribuições.3
Pois quero me deter, ainda que rapidamente, sobre um traço comum
em todas aquelas interpretações, que apresentarei aqui de modo conver-
tido em emblema por uma das intérpretes, a atriz francesa Jeanne
Moreau: filmada a uma mesa, cigarro a fumegar em um cinzeiro, um
copo quase vazio de vinho rosé, usando uma blusa azul intenso, rodeada
por manchas de luz, o olhar colado ao papel, ela lê a carta e a comenta.
Ao chegar ao trecho em que o autor fala de seu sofrimento, Jeanne pro-
clama a imagem que dele reteve: “É alguém que tem múltiplas relações
femininas. E... este homem não está bem. Tem uma angústia terrível...
Um enorme egoísmo”.
Egoísmo. Grégoire (ou X, como é apresentado às analistas) é descri-
to como um homem capaz de abrir mão do bem do outro (que o classi-
ficaria como altruísta), tornando-se uma síntese da ação no horizonte
apenas do bem de si. De fato, ele próprio se diz “impedido” de ser “ge-
neroso”, ou seja, de aceitar o sofrimento que o corroeria e se manter fiel
ao juramento de não procurar as outras mulheres, que tornariam Sophie
apenas “uma delas”. E esse “egoísmo” aparece, então, não apenas como
um traço específico do caráter do escritor, mas como antítese formal do
amor: para aquelas mulheres, agindo assim um homem provaria que
nunca amou a mulher com quem tivera um relacionamento.4 Mas não
apenas para mulheres francesas. E não apenas para mulheres em relação
aos homens.
Em minha pesquisa, que aqui reporto, na qual entrevistei trinta ca-
sais, vemos um mesmo movimento de adjetivação de parte a parte.5
Por exemplo, com Marcos.6 Ele chega a sua casa mais tarde em algumas
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“Egoísmo” e individualismo
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E, mais adiante:
Quanto mais temos em comum com outro [...], mais facilmente nossa to-
talidade será envolvida em cada uma das relações com ele. Daí a violência
absolutamente desproporcional para a qual pode ser deslocada uma pessoa
que, em geral, é controlada em suas relações com quem lhe cerca. A felici-
dade completa e a profundidade da relação com outra pessoa com quem,
por assim dizer, nos sentimos idênticos repousam no fato de que nem mes-
mo um contato, nem mesmo uma palavra, nem mesmo uma atividade ou
sofrimento comuns permanecem isolados, mas sempre revestem toda a
alma, que se dá por completo e é recebida por completo nesse processo.
Assim, se uma discussão surge entre pessoas com esse grau de intimidade,
em geral isto é passionalmente muito expansivo e sugere o esquema do
fatal “esse não é você”. Pessoas ligadas umas às outras dessa maneira estão
muito acostumadas a investir cada aspecto de seus relacionamentos na to-
talidade de seu ser e sentir. (Ibidem, p. 92)
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A pessoa que se dá conta de que algo não está funcionando raramente per-
manece em silêncio. Ela não guarda seus sentimentos para si. O momento
em que ela se dá conta disso é, na maioria das vezes, aquele em que perce-
be não poder mais suportar esse estado de coisas. A pessoa deve expressar
descontentamento em relação às outras com quem, até então, estivera de-
sempenhando uma ação conjunta. A demonstração desse descontentamen-
to pode terminar em um “escândalo”. O escândalo propriamente dito as-
sume diferentes formas. Pode facilmente se converter em violência.
Contudo, não investigaremos essa possibilidade. Mais frequentemente, o
escândalo torna-se uma discussão na qual são trocadas críticas, acusações e
queixas. Ele assim se desdobra em uma controvérsia. A palavra “escânda-
lo” sugere querelas domésticas, e a palavra “controvérsia”, litígio judicial.
O primeiro é visto como informal, enquanto a segunda é conduzida pelo
sistema judicial. No entanto, há uma profusão de casos intermediários,
como, por exemplo, as discussões em lojas ou repartições, entre clientes e
funcionários, ou os desentendimentos na rua entre motoristas.
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A hora marcada
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uma vez: “Eu não vou me esconder”. Ele então cedeu e a beijou no meio
da pista, diante de todo mundo.
A jovem, no momento da entrevista, justifica a ação de seu namora-
do como algo “nobre”. – “Ele só não queria machucar uma pessoa que de
alguma maneira ainda gostava dele”, declarou. Mas naquela hora, consi-
derou algo inadmissível. Eles tinham acabado de se conhecer e ele não
podia fazer exigências. E Laura deixou isso claro. Tanto que ele teve que,
em um primeiro momento, falar do relacionamento, o que justificaria a
saída do lugar. Entretanto, a situação marcaria aquele início com uma
tensão com “outras pessoas”.
Marcelo e Laura ficaram juntos por onze meses.15 Ao longo desse
tempo, a questão do ciúme se traduziu basicamente em uma economia
da diversão: para ela, era importante sair, frequentar boates, festas, o que
em geral é chamado de “noite”; para ele, esse movimento não fazia mui-
to sentido. Embora os dois tenham se identificado inicialmente pelos
mesmos gostos musicais – estávamos, afinal, indo os quatro assistir a
uma mesma apresentação, e ela descreveu a ambos como “fãs fundamen-
talistas de Beatles, diferentes dos que gostam de Yesterday” –, ir a uma boa-
te para ouvir rock o desagradava “um pouco”. Dizia: “O lugar é baru-
lhento, chato”. Mas a principal questão era que, para Marcelo, a ida a
esses ambientes representava um ritual com outro sentido: “Sair, para
um cara, serve para conhecer meninas. O único sentido é achar alguém.
Quando estou namorando, não vejo sentido em ir”. Era esse o argumento
que ele usava para tentar convencê-la de fazerem outra coisa ou simples-
mente ficar em casa. Chama a atenção, entretanto, a forma de articula-
ção, uma tentativa de dizer “é assim mesmo”: sair tem determinada
serventia “para um cara”. Ele usa uma certa articulação de gênero como
desculpa, porém, mais que isso, usa a criação de uma normalidade alter-
nativa, “para todo cara”.
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não gosto de atraso!” – “E você sabe como eu sou!”. Foi quando ela resolveu
mostrar a bolsa para mim: “Olha, aqui, não é linda? Você mesmo, sendo
homem, não pararia para olhar... para dar para sua namorada?”. Mas nem
precisei fazer comentário nenhum. Minha amiga e Marcela cobriram o
ar: “Nossa!” (com o “o” bem prolongado). – “Menina!” Sim, elas haviam
amado a bolsa. Ficou claro que a desculpa era que “é assim mesmo”, Nina
é assim mesmo; e, generalizando um pouco, “mulher é assim mesmo”,
embora o argumento passasse por uma normalização do gosto: o que é
belo é obrigatório.
Quando me deram entrevistas em casa – primeiro Nina, depois
Marcela, ao chegar de um passeio de bicicleta em um sábado pela ma-
nhã –, ficaria claro para mim que a questão fundamental das duas era o
tempo, em dois sentidos. O primeiro era justamente essa problemática
do não chegar na hora, dos atrasos, um “desvio” recorrente da parte da
ruiva, como eu já havia constatado – assim como a reação da parceira –
no restaurante. O segundo era com relação ao tempo dedicado uma à
outra. Marcela ouvia da companheira uma reivindicação de mais dedi-
cação às duas. A loura podia andar de bicicleta de manhã sozinha, mes-
mo que a namorada, Nina, menos afeita a exercícios físicos (“Eu gosto de
dançar, queima gordura à beça”), não gostasse tanto (mas havia duas bikes
penduradas no porta-bicicletas da casa). – “Ela consegue ficar horas no set
de um comercial, entrar em casa e me tratar como se tivesse ido ali, no mer-
cado”, reclamava Nina. – “É que eu sinto que é mesmo como se não tivésse-
mos nos separado, como se fosse só retomar a conversa”, respondeu-me
Marcela, ao lembrar de que a outra sempre chamava atenção para esta
suposta desatenção. As duas, entretanto, articulavam o problema do tem-
po com outro nome: desamor. O uso do termo começou com Marcela,
ao nomear os atrasos de Nina. Mas desamor tornou-se um termo geral
para as ações que causavam mal-estar em cada lado – como para outros
casais, aliás.
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tato, “para não complicar”. Um dia, chateada, resolveu ligar para Túlio,
mas, antes que pudesse fazê-lo, recebeu um telefonema dele.
Apesar das experiências anteriores com parceiros do mundo virtual,
Viviane mantinha uma série de rituais de segurança: revisão dos perfis
do candidato, de amigos e parentes no site de comunidades virtuais
Orkut, observação de ocorrências em buscadores, em comentários, em
blogs, etc. Inquérito concluído, ela aceitou encontrá-lo. Marcaram de ir
ao cinema num domingo. Encontrariam um ao outro no saguão. Ao
chegar, viu-o de longe. Quando o viu, pensou: “Até que dá pro gasto!”.
Ia cumprimentá-lo com um par amistoso de beijos no rosto, mas foi
surpreendida pelo movimento do rapaz, que lhe deu um forte abraço.
Ela pensou: “Que fofo!”. Viram um filme, e os dois “ficaram”. Depois,
marcaram de se encontrar uma semana depois. Nesse dia, ela foi
encontrá-lo para o almoço. Ao pegá-la, de carro, em um local público,
ele novamente a surpreendeu: “Você se incomoda se a gente der uma para-
da no caminho? Eu... tenho que colocar a roupa pra lavar”. Ela aceitou,
apesar de achar que era um estratagema. Não era.18 Ele de fato trazia um
saco de roupas no banco de trás, que, junto com ela, levou para a lavan-
deria. – “Me fez pensar. A gente conhece uns caras que são sempre mal-
intencionados, e ele fez uma coisa diferente. Achei aquilo tão humano! Não
parecia ter algo arquitetado, foi espontâneo. Achei bonito, gostei muito”,
relembra. Esse fato fez Viviane tomar uma atitude. – “Você quer namo-
rar comigo?”, perguntou a Túlio em uma praia, ao final do que chamou
de “uma tarde perfeita”. Ele aceitou. Eles estavam juntos por três anos
quando a entrevistei. Foram morar juntos em outubro de 2006 (“No
dia 3”, ela se lembra).
Destaquei esse caso porque a maneira como Viviane constrói o co-
meço do relacionamento é bastante indicativa de um procedimento ge-
ral de produção do outro. Essa imagem parece ser determinante na ma-
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dos elementos que compõem a matriz. Esses elementos são, eles pró-
prios, assim como a própria familiaridade, noções, representações sim-
bólicas (e, portanto, abstraídas) em referência às quais os atores, no pla-
no de suas interações cotidianas, atuam.
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Uma desculpa, conforme tenho descrito, é uma ação social que toma
uma situação centrada no universalismo da utopia moral e promove
justamente uma torção de rumo à circunstancialidade, permitindo a
efetivação de uma ação segundo uma forma de bem que seja não uni-
versalizada, mas, muito diferente disso, uma forma particularizada, in-
dividual, o “bem de si”.
A observação das desculpas volta o olhar para essa capacidade. É ela
que se ergue poderosamente da observação de como a familiaridade em
relações afetivas se torna uma metafísica moral em si própria e de como
ela pode ser conservada justamente pela possibilidade de arrefecimento
produzida pelo decaimento tornado possível por essa capacidade. E não
se trata apenas de um puro realismo, de um “senso prático”, mas de uma
incorporação no repertório de práticas disponíveis para que o bem seja
feito de um repertório plural de formas de bem. Se, conforme descre-
vem Boltanski e Thévenot (1987; 1991; 1999), em um horizonte me-
tafísico moral, a paz, bem como, portanto, a vida social cotidiana,
é mantida por uma referência utópica ao “bem comum”, a desculpa aju-
da a enxergar que a vida social comporta outras formas de referenciamen-
to do bem que permitirão, cada um à sua maneira, formas de efetiva-
ção de significações e, portanto, de ações de conteúdos da vida social.
E uma dessas referências – o a si –, produzindo o bem de si, pode ser
efetivado pelo ato de dar um desculpa, esse “algo que é dito para não se
falar mais nisso”.
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Notas
1
Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no 33o Encontro Anual da
Anpocs, no GT 38, Subjetividade e Emoções. Agradeço, pelos valiosos comentá-
rios, aos professores Maria Claudia Coelho, Octavio Bonet, Susana Durão, Clau-
dia Barcellos Rezende e Laura Moutinho.
2
Professor adjunto do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciên-
cias Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisa-
dor do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU)
da UFRJ. Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia (PPGSA) do IFCS/UFRJ, com estágio doutoral (“sanduíche”) na
École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/CNRS) e na Université de
Paris X. Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação (ECO)
da UFRJ.
3
A análise dessas respostas ultrapassaria o fim específico deste artigo, e não me pren-
derei a elas. Mas tenho a convicção de que ela pode ser considerada mais do que
uma alegoria ou um caso exemplar, configurando-se como uma verdadeira pesqui-
sa, no sentido de que a aproximação que Sophie Calle exercita em relação às mu-
lheres permite isolá-las como produtoras de uma série de discursos a respeito da-
quele caso particular, mas igualmente sobre a masculinidade e o amor romântico.
4
É curioso que a obra tenha causado polêmica por conta da “evasão de privacida-
de”: sim, está ali a artista a expor seu caso de amor. O uso da própria vida, entre-
tanto, é recorrente no trabalho de Sophie Calle. E, no caso de Bouillier, parece
ainda mais contraditório o choque: seu primeiro romance, Rapport sur moi (2002),
foi premiado justamente pela maneira como o autor expunha sua vida pessoal.
O posterior, L’invité mystère, de 2004 (lançado no Brasil em 2009 como O convi-
dado surpresa), é sobre como os dois se conheceram – em uma festa de aniversário
de Sophie, que servia justamente como obra, na qual ela guardaria os presentes de
festas feitas por anos e dados por um convidado desconhecido, trazidos por um
convidado seu – e sobre o relacionamento.
5
Ao longo de um ano e meio, entrevistei cada um dos integrantes do casal em sepa-
rado, com intervalos os mais curtos possível. Esta separação foi primordial: não
apenas por servir como “prova dos nove” das histórias de um sobre o outro, mas
também porque ela dava liberdade para que as desculpas fossem formuladas com
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8
A ideia de violência utilizada aqui não está necessariamente ligada à agressão física.
Trata-se, antes, de um regime no qual se torna impossível o acordo, no qual ne-
nhuma condição de legitimidade é produzida e a efetivação da ação depende do
uso desmedido da força, seja ela física ou simbólica. Para uma discussão sobre uma
noção pragmatista de violência, ver Clavérie (2009).
9
A título de exemplo, Comte sugere, em seu Curso de Filosofia Positiva (2009[1831])
que a tensão altruísmo–egoísmo é a questão humana fundamental. Já Durkheim
modeliza o próprio individualismo por meio da pendularidade com o egoísmo: o
adjetivo (de sua vez, sem aspas) caracteriza uma das formas de individualismo mo-
derno descrever uma forma de ação que tensiona profundamente a ordem, uma
vez que ela atua sem o horizonte da solidariedade mecânica (e de seus arroubos na
vida moderna). Na outra forma, o individualismo “moral”, o individualismo é ca-
racterizado como a própria lógica da vida moderna, uma vez que ele é o que carac-
teriza a solidariedade orgânica, na qual o ato de o indivíduo se diferenciar é um
dado de sua própria inserção na vida social.
10
Para uma discussão mais alongada, uma etimologia do termo e uma comparação
entre “dar uma desculpa” e “pedir desculpas”, além de uma revisão bibliográfica a
respeito, ver Werneck (2009b).
11
Com essa definição, fica definitivamente claro que estou me referindo a apenas
um dos sentidos da palavra “desculpa” em português, aquele em que ela opera
como discurso de accountability social. Não me refiro aqui, em nenhum momen-
to, à desculpa como mecanismo de “remediação” (Goffman, 1971), ou seja, à des-
culpa como reparação, como forma temporalmente rearticulada do perdão.
12
Esta fala foi usada por um de meus entrevistados para explicar, em uma confidên-
cia, um “deslize”, ficar com uma outra mulher em uma viagem, o que abalou seve-
ramente seu casamento. Na conversa comigo, ele recorreria um “é assim mesmo”,
na forma do apelo à masculinidade; mas, com sua mulher, ele chamaria a atenção
para um “não era eu”. Isso demonstra mais uma vez a versatilidade da desculpa,
independentemente de seu conteúdo discursivo.
13
O termo “ficar” remete a alguns diferentes sentidos na dinâmica amorosa contem-
porânea. Basicamente, refere-se a um momento furtivo em que se constitui um
casal (eles se beijam, se abraçam, podem chegar a fazer sexo), em geral de desco-
nhecidos ou recém-conhecidos (mas nem sempre), em que a interação não neces-
sariamente se converte em relação. O casal “fica” e depois se desfaz. Entretanto, o
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
termo também se refere a cada vez que um casal constituído interage afetivamente
de maneira física; e, algumas vezes, para designar um casal que ainda não assumiu
um “namoro” (“É, a gente fica”, ou “Estamos ficando”; e diz-se ainda que esse
fulano é um “ficante”).
14
Esta é outra expressão recorrente entre os entrevistados e com dois sentidos bas-
tantes definidos. Primeiro, trata-se ao mesmo tempo de um sinônimo para des-
culpa esfarrapada, quando alguém conta alguma história para dar conta de algo
errado (em geral, para se livrar de alguém incômodo). Mas o sentido mais interes-
sante é o de um simulacro de desculpa esfarrapada, no qual o argumento é usado
para fingir que se considera algo errado, mas se está, na verdade, tentando obter
alguma vantagem com essa desculpa dada. O caso de Marcelo é paradigmático.
15
Acabaria por não entrevistar Marcelo. Trocaríamos alguns e-mails, no intuito de
marcar a entrevista, estabelecendo alguma conversação prévia, da qual pude ex-
trairia alguma informação. Mas, após várias tentativas, a efetivação do encontro
esbarraria em um primeiro rompimento do casal e, depois, sucumbiria ao fim do
relacionamento. Ocorreria em mais dois casos eu não conseguir entrevistar o se-
gundo membro do casal – nos dois casos, o homem.
16
A sigla DR significa “discussão de relação” e se refere a um ritual social recorrente
nas relações afetivas contemporâneas (embora sem nenhuma regularidade ou
previsibilidade de erupção). Trata-se do momento em que os integrantes de um
casal colocam sobre a mesa algum tema sensível, alguma “problemática” específica
da relação. É uma “metainteração” em que os assuntos deixam de ser da relação (“o
que vamos comer no jantar?”, “na casa da sua mãe ou na da minha?”, “como va-
mos pagar aquela conta?”) e passam a ser a relação (“você não é compreensivo”,
“como vai nossa vida a dois?”, “preciso de mais espaço”).
17
Assim, o que busquei nos casais com quem conversei foi esmiuçar uma relação
entre o estabelecimento e a manutenção de um cotidiano, e os argumentos usados
para dele dar conta. Assim, embora eu tenha feito entrevistas consideravelmente
informais e até bastante diferentes das outras, em alguns casos, algumas questões
gerais sempre estiveram presentes: (1) Como se deu a formação e o reconheci-
mento de um relacionamento? (2) Que características do entrevistado são compli-
cadores no cotidiano do relacionamento? (3) O que o entrevistado diz para dar
conta dessas características complicadoras? (4) Que características do outro são
complicadores no cotidiano do relacionamento? (5) O que o outro diz para dar
- 183 -
ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...
conta dessas características complicadoras? (6) Que mal-estares são dignos de ser
lembrados na história dos dois?
18
Todas as impressões subjetivas apresentadas nas descrições são transcrições de im-
pressões apresentadas pelos entrevistados. Assumo que essas informações são rele-
vantes por mostrarem a maneira como os atores interpretam as situações. Mas eu
as uso como evidências apenas dessas representações, e não como fontes de infor-
mação direta sobre os conteúdos transmitidos por esses discursos.
19
Thévenot tem trabalhado com o conceito de familiaridade (constituindo mesmo
um regime para ela), mas utilizo o termo de maneira independente de suas defini-
ções aqui. Adotei-o, a princípio, por dedução teórica, mas ele foi se tornando cada
vez mais uma forma induzida de várias impressões que obtive no campo das entre-
vistas, impressões que vinham de falas como: “Ele é a minha família, não pode
fazer isso comigo”; “Com o tempo, a gente vai sentindo que ele entra na família”; ou
“Minha mãe trata o Leandro exatamente como me trata. É exatamente como se ele
fosse filho dela. Dá as mesmas broncas”.
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¿Vecinos o ciudadanos?
El fenómeno Nimby: participación social
desde la facilitación organizacional
Ariel Gravano1
1. Introducción
1.1. Objeto
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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?
que se nos pedía una especie de “recetario”, primera asunción (la propia
demanda) que problematizamos aplicando las mismas técnicas de obs-
taculización del enfoque etnometodológico de Harold Garfinkel (2006).
Pero, a la vez, debimos problematizar nuestra misma posición como
registradores de campo implicados, en un proceso que nos incluía pro-
tagónicamente, si bien con el rol de colaborar externamente. Fronteras
difusas en las representaciones de los agentes, que en ocasiones notaban
con nitidez nuestra externalidad y en otras no dejaban de vernos o in-
tentaban colocarnos como parte de la línea ejecutoria del proceso
participativo y no como facilitadores de lo que ellos debían ejecutar.
No nos detendremos acá en mostrar este complejo entramado4 pues el
objetivo del trabajo es otro, pero debe constar como parte de las caucio-
nes epistemológicas a tener en cuenta, que lógicamente condicionaron
nuestro registro etnográfico.
1.3. El contexto
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- 195 -
ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?
nes que brindan un servicio a una totalidad mayor (la ciudad o una re-
gión) que la que ellos defienden o referencian para oponerse. Depósitos
de residuos sólidos, cuarteles de bomberos, cementerios, estaciones de
transporte, plantas de energía, líneas de alta tensión, antenas de telefo-
nía móvil, depósitos o almacenes, centros de atención sanitaria, escue-
las, destacamentos policiales, son algunas de las instalaciones que se esgri-
men como causa de la molestia o directamente se consideran la molestia
en sí. También se manifiesta por el tránsito pesado de camiones o el
trayecto de las líneas de transporte colectivo y mucho más ante el traza-
do de autovías. En general, esto pasa cuando las áreas consolidadas como
residenciales comienzan a reconvertir parte de su morfología territorial
debido a esas instalaciones, mediante el flujo del mercado inmobiliario,
o bien por la acción directa del Estado. Esto es: cuando aparece la posi-
bilidad de un cambio en el paisaje urbano, originado en principio desde
el exterior de la identidad local.
En los últimos años, parte de este fenómeno, o con cierta semejanza,
se ha tornado recurrente en la ciudad de Buenos Aires y su Región
Metropolitana, pero asociado a otros tipos de instalaciones “molestas”.
Por un lado, comercios de gran envergadura (los hipermercados), ferias
callejeras, grandes torres de viviendas en propiedad horizontal o la con-
centración de un único rubro comercial (gastronómico, indumentaria,
por ejemplo), esto es: ligados a la actividad comercial. Por otro lado, la
novedad de la asociación de algunas de estas reacciones con estigmati-
zaciones sociales y discriminación hacia ciertos sectores. Se da en los
casos de centros de rehabilitación de toxicómanos, centros peniten-
ciarios, plantas procesadoras de residuos urbanos (por la presencia de
los cartoneros6) y realojos de población proveniente de asentamientos
“marginales”.
Esto se acrecienta cuando se desarrollan procesos de “participación
ciudadana”, con la intención de completar la efectividad de la planifi-
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Es rico el jamón, pero que al cerdo lo maten lejos de mi casa, esta sería la
síntesis ilustrativa; la instalación – necesaria para la faena – que esté don-
de no se la pueda ver (ni oler), a pesar de su necesidad y a pesar de estar
a favor de la actividad o del resultado específico de la actividad. Implica
una traslación: de la oposición al efecto de la actividad a la oposición a
la actividad en sí; lo que adquiere importancia en términos de planifica-
ción participativa, como veremos. En realidad, no habría Nimby sin
molestia o representación del efecto nocivo de la actividad, pero el
Nimby implica la oposición a la actividad por la proximidad. Y es el no a
la proximidad lo que transforma al movimiento en un no a la actividad.
Toda actividad humana (y por lo tanto, también la urbana) produce
transformaciones en el entorno total, en el que pueden distinguirse ni-
veles o dimensiones como la natural, la social, la cultural, la ambiental,
etc. Dentro de estas transformaciones se incluyen los efectos “molestos”
(siempre desde una cierta racionalidad, frente a otra), en una dialéctica
donde los contra-efectos, o paliativos, son también actividades que a su
vez tienen su propio impacto.
Cuando un barrio ve reconvertirse la distribución de los usos del sue-
lo, de lo residencial a lo comercial, a la actividad de servicios y aun al
desarrollo de pequeños talleres industriales, debido a la necesidad de sus
grupos familiares de diversificar bocas de ingreso ante la cíclicas crisis de
desempleo, se ven proliferar actividades hasta ese momento no habitua-
les. Y el movimiento reactivo – de parte de quienes no necesitan esas
opciones – suele anclar sus argumentos en la “pérdida de la identidad
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estas reservas (...) lejos de suponer una rémora a sortear con mano izquier-
da, deben asumirse como parte inseparable de dichas políticas dentro de
una nueva filosofía apoyada explícitamente en la participación pública, en
la toma de decisiones, tal como se recoge en todos los textos que emanan
de la Unión Europea. (Sancho, 2008)
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nico del Consejo del PUA había elaborado un estudio que se intentaba
exponer a los vecinos. Estaba compuesto por media docena de arquitec-
tos y urbanistas, al igual que los miembros del mismo Consejo, que eran
en total catorce, nombrados en partes iguales por el Poder Ejecutivo del
Gobierno de la Ciudad y por la Legislatura. Tomemos como muestra el
desarrollo del proceso participativo institucional de este territorio barrial.
Antes que comenzara el primer taller, incluso sin presencia de los
consejeros, ya se escuchaban gritos y comentarios en tono de queja des-
de los casos individuales entre los participantes (unos cuarenta adultos
de clase “media”, mujeres y hombres en una misma proporción, que se
presentarían todos como vecinos de la zona en cuestión y algunos como
miembros de organizaciones e instituciones vecinales): (“a mi madre, que
la tengo postrada, la está matando el ruido de las máquinas que destruyen
todo, están masacrando el barrio” (...) “el olor es nauseabundo, no puedo
estar en la sala del frente que se mete todo aunque cierre las ventanas” (...)
“yo (...) somos tres generaciones de mi familia en el barrio, si esto lo viera así
mi abuelo, lloraría”).
El clima se enrarecía, crecía el volumen de las voces, que se cruzaban
sin destinatario frontal, como líneas paralelas; como intentos de escu-
charse sólo a sí mismos, pero a coro, construyendo una serie de supues-
tos compartidos, una plataforma ideológica para la constitución de un
“nosotros”, tácito, homogéneo y – sobre todo – reactivo, bajo la asun-
ción de un “en contra de” capaz no sólo de construir identidad y acuer-
do implícito, sino de tejer una especie de red de autocontención, res-
pecto del enemigo.
La metodología de facilitación organizacional antropológica con que
se coordinaba el Foro requería ciertos pasos, como la presentación de
los participantes, su ubicación en círculo para que se vieran los rostros
cuando hablaran, un frente con afiches en un rotafolio donde el facilita-
dor escribía lo que se expresaba de acuerdo con una agenda previamen-
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¿Alguien puede tener todas las respuestas a estas preguntas? ¿Alguien pue-
de suponer que el saber está en estado puro en alguno de los presentes y
que por eso el resto estaría imposibilitado de ese saber?
¿Nos podremos poner de acuerdo en todo esto, planteándolos como dile-
mas o será mejor exponer los desacuerdos, escuchándolos como proble-
mas, un desafío que no va a tener nunca un final definitivo, pues la ciudad
es una permanente re-forma, física e imaginaria? Una de esas voces es la
profesional, la de los técnicos, que con una visión de la ciudad y del barrio,
la pueden poner ahora a consideración de ustedes, esto es: su saber profe-
sional puesto al servicio de los ciudadanos destinatarios, o por lo menos
algunos de esos destinatarios, pues ustedes no son totalmente representati-
vos de la gente del barrio [...].
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4. Conclusiones y epígonos
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Notas
1
Doctor en Ciencias Antropológicas, Universidad de Buenos Aires; investigador del
Conicet, profesor titular de Antropología Urbana, Universidad del Centro de la
Prov. de Buenos Aires. E-mail: gravano@ciudad.com.ar.
2
Definimos “núcleo rígido de creencias” como aquellas representaciones que actúan
como prejuicios que se constituyen en obstáculos para el cumplimiento de objeti-
vos, principalmente porque impiden el registro de la otredad (Gravano, 1992).
3
Lo hemos expuesto en nuestros trabajos “Antropología práctica” (1992), “La ima-
ginación antropológica” (1995), “Imaginarios regionales y circularidad en la pla-
nificación” (2006), “Desafíos participativos en la planificación urbano-ambiental:
el aporte antropológico” (2007a), “Claves para la facilitación organizacional...”
(2007b) y “La proyección del enfoque etnográfico hacia la facilitación organiza-
cional en procesos participativos de planificación urbana” (2009).
4
Una muestra anecdótica de esta trama fueron las palabras con que nos describió
nuestra propia acción y función uno de los consejeros del Plan: “si vos nos hubieras
contado cuando te contratamos lo que ibas a hacer, quizá no te hubiéramos contratado,
porque queríamos una receta y vos nos hacés pensar mejor, analizando nuestros supuestos
y no nos decís lo que debemos hacer, sino que promovés que seamos nosotros los que lo
decidamos, pero en forma más efectiva, con un método” (dicho por un urbanista con-
sejero, que en principio se había opuesto a que el trabajo le fuera encargado a un
antropólogo, “porque nos vendrá a estudiar como a indios” y luego se convirtiera en
ferviente partidario de la metodología de facilitación, hasta el extremos de propo-
nerla como parte de todos los procesos participativos del Gobierno de la Ciudad).
5
El concepto amplio de imaginario urbano apunta al sistema de representaciones
que tienen al espacio urbano como referente y lo hemos desarrollado en diversos
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trabajos de investigación desde hace quince años (Gravano, 2006, 2005a, 2004,
1999a, 1999b, 1996, 1995, 1994) y lo tomamos principalmente del referente Ar-
mando Silva (1992).
6
Recolectores de cartón, de amplia notoriedad en los escenarios urbanos argentinos
a partir sobre todo de la crisis del desempleo 1995-2002 (Schamber & Suárez,
2002).
7
En nuestras investigaciones sobre los imaginarios barriales, lo opuesto al núcleo de
la identidad barrial “auténtica” está compuesto en parte por ese “adelanto”
corporizado – entre otros indicadores – por edificaciones de consumos colectivos
(Gravano, 2003, p. 141).
8
El ejemplo más cercano es el caso de las ciudades medias de la Provincia de Buenos
Aires, adonde se pretende cada tanto llevar la basura de la Ciudad de Buenos Aires
y los intendentes de esas ciudades lo esgrimen como un factor de ingreso y hasta
como un logro para la dinámica económica regional, hasta que la población se
opone (ver Gravano, 2005a; Suárez, 1998).
9
Ver Castells, 1974; Harvey, 1977; Lojkine, 1979; Topalov, 1979; Singer, 1980;
Wacquant, 2007.
10
Las principales ideas en este sentido las volcamos en la conferencia que nos encar-
gó el Instituto Interamericano de Derechos Humanos para un encuentro interna-
cional de Defensores del Pueblo, que titulamos: Ciudad y Derechos Humanos –
Ciudad y Hechos Humanos (Gravano, 2008).
11
Ver: <http://exaps.blogspot.com/2008/06/el-fenmeno-nimby.html>.
12
Vale la pena señalar cómo suele extenderse la nominación misma de Nimby, desde
la señalización de los movimientos sociales reacios a cierta instalación urbana, los
grupos (más o menos espontáneos) que constituyen estos movimientos, y su uso
para referirse a las mismas instalaciones (“existe un gran problema ligado a la eva-
luación de los proyectos de instalación de Nimbys”) (Ver: <http://www.prourbana.cl/
upload/Nimbys.pdf )>.
13
Ver: Alberdi Bidaguren, de la Peña Varona & Ibarra Güell, 2002..
14
Ver: Reviews Boing Boing Gift Guide, 2009: media! (part 2/6) Science More Insight
on Those Leaked Climate Change Emails 39share maggie koerth-baker posted at
5:00 am november 23, 2009 featured • science • business • community • energy •
nimby • renewables • sustainability • wind Rethinking Nimby: Why Wind Power
Could Lead To New Ways of Defining (and Dealing With) Public Naysaying.
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15
Es lo que tratamos como “delantes” y “detrases” de las ciudades (Gravano, 2004).
16
Ver Gravano, 2009, p. 86.
17
Ver Gravano, 1999a; 2007a; 2007b.
18
En Gravano (2009) nos detenemos en estos conceptos activos, que toman como
base la proyección del enfoque etnográfico. En cuanto a la dinámica de la facili-
tación, incluyó el trabajo con agenda previa, tiempos acotados, técnicas partici-
pativas de taller, análisis de actores y racionalidades y específicamente en la detec-
ción de núcleos de creencias a contrastar con datos y tácticas de obstaculización
(Gravano 1992), propias del enfoque etnometodológico.
19
Esta investigación la desarrollamos entre 2005 y la actualidad y consistió en un
registro empírico de todas las instancias del proceso participativo del PUA, de sus
reuniones internas y de sus escenarios institucionales abiertos, participando inclu-
so de la confección de los documentos públicos del proceso. El contacto directo
implicó a 136 y 327 personas interesadas y convocadas al Foro, y el Consejo más
sus técnicos. Para mayor información sobre el PUA, ver: Velásquez, 2005, Plan
Urbano Ambiental, 2000 y 2007; y http://www.buenosaires.gov.ar/areas/
obr_publicas/copua/?menu_id=13769. Para una perspectiva general de la ciudad,
ver: Cerrutti & Grimson, 2005; Gorelik, 2004; Leveratto, 2005; y Rodríguez,
2005.
20
El nombre es ficticio. El área en sí está situada en un sector de transición respecto
al centro de la ciudad, con población de sectores medio-bajos y mezcla de usos
residencial, comercial, de equipamientos y servicios diversos.
21
En los trabajos ya citados se expone en detalle el sistema participativo que nos
tocó proponer y llevar a cabo, desde la facilitación organizacional (ver principal-
mente Gravano, 2007a, pp. 11-2).
22
Si bien las minutas y actas de estas reuniones son documentación pública y estu-
vieron (hasta que las quitara el gobierno de Macri) en la Web del PUA y quienes
concurrieron están explicitados en dichos documentos, transcribimos aquí las eva-
luaciones de estos talleres por los concurrentes: “caos valioso – orden=fascismo;
nos pudimos expresar; reunión interesante, que tenga continuidad; algo más que
interesante: que sigan con esta propuesta interactiva; interesante; idea excelente
siempre y cuando se haga con toda la ciudad; bien el trabajo del equipo técnico;
positivo participar, que nos tengan en cuenta; muy positiva; que nuestra opinión
sea vinculante; positivo poder participar; Satisfactorio; me gustaría que tenga con-
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As flechas perigosas:
notas sobre uma perspectiva indígena
da circulação mercantil de artefatos
Introdução
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quele ano. Pouco depois de concluir esta etapa, Delgado anunciou sua
intenção de procurar na floresta pela envira, entrecasca de árvore em-
pregada na fabricação da corda do arco. Foi aí que nosso, digamos, “de-
sentendimento” teve início.
Uma semana após a preparação da ripa de paxiúba, procurei Delga-
do para saber do andamento do trabalho. Ele me disse que ainda não
conseguira a envira e avisou-me que, antes, sairia à procura de peninhas
de pássaros para colar ao longo do corpo do arco, produzindo um colo-
rido efeito visual que eu certamente apreciaria, além, claro, de aumen-
tar o valor da peça. Eu lhe disse, então, que não queria tal investimento
estético, mas gostaria de “um arco de caça, igual ao que se usava para ca-
çar ‘era tempo’1 [ou seja, no passado recente]”. Como ele parecia não
entender minha solicitação, perguntei-lhe se os arcos de caça (que, a
bem da verdade, eu jamais tinha visto, pois os Karitiana não mais os
empregam para caçar, preferindo espingardas, e os mais jovens hoje mal
sabem utilizá-los) tinham as tais peninhas decorativas, e a resposta foi,
obviamente, que não.
Satisfeito, pensei que Delgado havia compreendido o que eu queria.
Ledo engano, pois na manhã seguinte ele foi me procurar em casa para
avisar que sairia naquele dia para buscar as tais penas para a decoração
do arco. Fiz, então, a mesma advertência do dia anterior: queria um arco
“original, de caça mesmo”, e não uma peça decorativa – e frágil –, da-
quelas que havia para venda aos turistas na loja da sede da Associação do
Povo Indígena Karitiana (Akot Pytim Adnipa – APK) em Porto Velho,
anexa ao prédio da Funai local.
Obviamente, o arco e as flechas que eu queria tinham propósitos
puramente decorativos. Embora eu brincasse com os índios a respeito,
jamais empregaria as armas para caçar; elas seriam destinadas à parede
de minha casa, testemunhos heroicos da passagem por uma aldeia indí-
gena amazônica. No entanto, esta aura (Benjamin, 1996) dependia da
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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS
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Aqui, o veneno das cobras surge de uma taquara produzida por es-
trangeiros. É um jovem raptado pelos Karitiana que fabrica a ponta de
flecha mortal, como acrescentou Valter: “Antigamente não existia cobra.
Foi outro índio [opok pita, “outro índio”, termo com o qual os Karitiana
se referem aos povos vizinhos, todos inimigos] que fez cobra com taquara
de flecha de guerra, muito venenosa, não pode nem triscar”. Confirma-se,
por outro lado, a associação entre as origens da dor e do veneno, pois
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Cobra que não recebeu remédio [mel] são as mais venenosas: boroja papydna
[lit. “cobra com asas”, jequitiranabóia, uma serpente para os Karitiana] e
boroja’o [lit. “cobra-calango”]. O remédio era boko se e on’se misturados [boko
se e on’se são dois tipos de mel]. Cobra que tomou muito remédio não tem
veneno hoje. Cobra que tomou só gotinha tem pouco veneno. Cobra que não
tomou são mais venenosas.
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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS
Levar as bokore para a floresta é, então, perigoso: seu gosto por sangue
arrisca a fazê-las incontroláveis, na atração fatal que exercem sobre os ani-
mais de presa. Por esta razão, penso, crianças e jovens não devem mane-
jar arcos grandes e flechas para caça grossa: mais do que forma de treina-
mento, os pequenos utilizam armas reduzidas como uma forma de
precaução, evitando os riscos postos pelo sangue que só mais tarde apren-
derão a administrar. Também por isso, me parece, os arcos e as flechas
produzidos para a venda a turistas e antropólogos são versões reduzidas
das peças eficazes, confeccionadas com materiais impróprios e adornadas
com elementos plásticos inúteis do ponto de vista de um caçador.
Pouco antes de minha saída da aldeia Kyõwã no final de julho de
2003, quando arrumava minha tralha, Valdomiro esteve em casa e viu o
maço de flechas – entre elas, quatro bokore – que eu havia conseguido
com Antonio José e traria para minha casa. Na ocasião, ele observou:
- 252 -
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“Flecha tem que comer, tem que dar sangue. Mesmo se não usar para caçar,
para guerra, precisa dar sangue para taquara. Fura seu dedo, às vezes, e passa
sangue na ponta da flecha, assim, esfrega, senão taquara apodrece, some”.
Já vimos os perigos que envolvem guardar flechas em casa: famintas
de sangue, elas perecem, transformando-se em seres peçonhentos, co-
bras e vários outros. Pior se tiverem provado sangue humano, na guerra,
e não tiverem sido descartadas: neste caso, elas podem atrair perigos ain-
da mais mortais, expondo seu guardião aos riscos do mundo. Mais se-
guro seria, portanto, comprar um arco e algumas flechas na loja da APK
na cidade.
Em uma das minhas últimas visitas aos Karitiana que se hospedam
na Casa do Índio em Porto Velho, ganhei de Antonio Paulo um arco de
pequenas dimensões, decorado com peninhas e palha trançada, e uma
flecha com ponta confeccionada numa madeira mole. Esta teria sido
claramente improvisada, pensei, e os demais Karitiana ali zombaram da
peça: “Não presta”, diziam, examinando sua ponta. Contudo, hoje me
parece que era melhor assim, na perspectiva de Antonio Paulo, como
era melhor, do ponto de vista de Delgado, que eu não tivesse um arco
de caça “original” acompanhado de flechas bokore.
A questão não parece ser, então, que os Karitiana não entendessem
de que forma um instrumento, digamos, de trabalho poderia estar pen-
durado na minha parede como um objeto decorativo. Inicialmente, eu
pensara nisso: que Delgado queria enfeitar o arco porque era para deco-
rar uma casa, e é isso que a maioria dos visitantes e consumidores dos
artefatos karitiana quer, algo bonito, cheio de penas, porque penas,
afinal, são um índice seguro do artesanato indígena (Barbosa, 1999).
Mas eu queria autenticidade, e isso significava eficácia, valor de uso, se
assim posso me expressar: um arco de verdade era aquele destinado, efe-
tivamente, a utilizar na caça ou na guerra. De preferência, eu apreciaria
um que já tivesse sido usado, ou ainda estivesse em uso.
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primas, e mais ainda por serem peças desprovidas de elementos que po-
dem ser agressivos e potencialmente mortais.
Penas de galinha, pontas de madeira mole, trançados de palha para
arcos, todos parecem ser recursos a sinalizar que a transposição de arcos
e flechas de um regime de valor (Appadurai, 2008) para outro não im-
plica necessariamente, e de modo imediato, sua mudança para outro
regime de objetos (Hugh-Jones, 2009). No olhar karitiana, as bokore,
mesmo vendidas ou trocadas com os brancos, guardam sua potência
ameaçadora. Como no caso das máscaras wauja, das quais os olhos são
removidos para a venda (Barcelos Neto, 2009), a passagem dos arcos e
das flechas karitiana das mãos dos caçadores nativos para as paredes dos
consumidores de arte deve se fazer acompanhar por artifícios técnicos
destinados a destruir ou atenuar sua agentividade, suas afecções, seus pe-
rigos potenciais: dessubjetivá-los (de-subjetictivize). Os Karitiana até re-
conhecem que as flechas “originais, de caça mesmo”, são mais belas que
os símiles produzidos para o mercado; mas, se na Amazônia, “o belo é a
fera” (van Velthem, 2003), toda precaução é necessária.
Considerações finais
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Notas
1
“Era tempo” é a forma com a qual os Karitiana iniciam, em português, narrativas
que se referem a um passado não muito distante, mas cuja memória ainda pertence
a alguns velhos que o vivenciaram ou ouviram contar de seus antecessores. Ele se
opõe ao tempo atual e ao tempo evocado pela expressão “tempo antigamente”, que
remete a um passado não acessível à experiência (vivida ou ouvida) dos vivos; tem-
po “mítico”, dirão alguns.
2
Passei por uma situação semelhante a do caminhoneiro descrito por Marco Anto-
nio Gonçalves (2010, p. 91), que se negava a comprar o arco feito de paxiúba (“bas-
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tante fraca para ser usada como arco”) oferecido por um caçador paresi. Para o
índio, a autenticidade da peça não estava em questão: este era o artesanato paresi
na década de 1980, segundo Gonçalves (pp. 89-90); entretanto, o caminhoneiro
queria um arco “de verdade, um original, aquele que o índio fazia para ele mesmo,
resistente”. A resposta do Paresi foi emblemática: “E pra que você quer um arco de
verdade se você não sabe caçar com ele?”. Este episódio coloca, ainda, a questão da
autenticidade/eficácia de artefatos cujas “versões” tecnicamente funcionais não são
mais fabricadas, e o que se tem são apenas as cópias “decorativas”.
3
Bypan é o nome genérico para armas, inclusive espingardas. Note-se que estou
empregando o verbo no passado porque me refiro aos artefatos feitos e apropriados
para o uso efetivo. Os Karitiana continuam confeccionando arcos e flechas, mas,
tirando aqueles utilizados para a pesca – arcos de menores dimensões –, a maioria
das peças vai para venda aos turistas e interessados e, por esta razão, são intencio-
nalmente diferenciados dos arcos de tempos antigos, como veremos no decorrer
do texto.
4
Aqui, no presente, me baseio em algumas poucas peças ainda existentes.
5
Os termos técnicos em uso aqui e em todo o texto foram extraídos da sistematiza-
ção proposta por Chiara (1987).
6
Na grafia das palavras em língua karitiana, uso a proposta ortográfica de Storto
(1996).
7
Essas flechas eram usualmente confeccionadas por caçadores na floresta, que podi-
am, do mesmo modo, improvisar arcos com forquilhas de madeira e encordoamento
de cipó-titica: estes são denominados tepy e são comparados à “espingarda de pres-
são para matar passarinho”; provavelmente, a eficácia desses arcos e flechas não vai
além de poder abater aves de pequeno porte. As kendopa não são mais confeccio-
nadas, exceto para uso de meninos que se divertem atirando em peixinhos e outros
pequenos animais (“para aprender a caçar e a guerrear”): são denominadas pojo.
8
Outros tipos de flechas são mencionados, como as bypan hyto, com pontas lisas e
compridas de paxiúba, desprovidas de fisga. Contudo, sempre que perguntados, os
Karitiana falam nos três tipos descritos. Provavelmente, estes definem não tanto a
forma das pontas de flecha, mas suas funções: para caça grande (bokore), caça pe-
quena (ndapisù) e passarinhos (kendopa). Desta forma, as bypan hypo seriam classi-
ficadas como ndapisù, já que servem para abater pequenas presas.
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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS
9
Mesmo assim, os Karitiana fazem referência a alguns tipos de veneno empregados
para aumentar a letalidade das flechas de taquara: bypan o’tidimo era um veneno
extraído de um pequeno arbusto encontrado na floresta, o qual tinha a casca raspa-
da e esfregada na ponta da flecha, que se tornava negra. Diz-se que era “veneno de
caça, veneno forte, se trisca [toca, fere] animal ele morre”. Epitácio diz, ainda, que
usavam esfregar o veneno de serpentes nas pontas das bokore, que “fica[vam] muito
venenosa[s]”. O veneno podia ser, ainda, esfregado nas mãos do caçador, deixando
as flechas “duras”.
10
Vilma Chiara (1987, p. 134) menciona autores que fizeram referência à fabrica-
ção de “pontas de flecha de bambu que, em vez de serem envenenadas, são feitas
de bambu venenoso”. Acrescenta, porém, que essas matérias-primas “não foram
identificadas de maneira absoluta”.
11
Sojoty (talvez Dieffembachia spp., conhecida popularmente como “comigo-nin-
guém-pode”) é uma planta utilizada, antigamente, no ritual denominado osiipo,
que se destinava a tornar os jovens bons caçadores: depois que os rapazes ataca-
vam um enorme vespeiro e sofriam múltiplas picadas dos insetos (que têm vene-
no), sumo de sojoty era esfregado na pele machucada, sobretudo nos braços. Di-
zem os Karitiana que a pele descamava, o que produzia um caçador não apenas
amargo (como o próprio sojoty), mas também livre da podridão, cujo cheiro repele
as presas e o faz panema (um dos termos para panema, naam, traduz-se literal-
mente como “podre”). Diz-se, ainda, que os animais “bêbados por causa do vene-
no do sojoty” chegavam bem perto dos caçadores, fazendo fácil seu abate (cf. Vander
Velden, 2004, p. 144-7).
12
Alguns aspectos deste sistema foram por mim abordados em outro trabalho (Van-
der Velden, 2008).
13
As narrativas míticas foram coletadas na língua indígena e traduzidas pelos pró-
prios Karitiana, com o auxílio do antropólogo. Todos os Karitiana são falantes do
português, que empregam no convívio comigo e com outros não-Karitiana; além
disso, a maioria de meus informantes sabe ler e escrever, tanto em português como
em língua karitiana.
14
Notemos que as serpentes podem, como as flechas, ter seu veneno potencializado
quando devoram o sapo-cururu (kyryryt), que os Karitiana afirmam ser uma das
criaturas mais venenosas: o sapo é dito “pimenta das cobras”, pois elas adquirem
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
seu veneno comendo sapos; logo, serpentes não peçonhentas não se alimentam de
sapos. Note que o veneno, aqui, é novamente associado à pimenta.
15
O mel (doce) se opõe, portanto, ao amargo-veneno, contrariando Lévi-Strauss
(2004, pp. 45-62), que sugere que, no pensamento indígena, passa-se diretamen-
te “do delicioso ao venenoso”. Não obstante, Lévi-Strauss (ibidem) afirma que o
mel e o veneno (de pesca) estão, juntamente com o tabaco, incluídos pelos ame-
ríndios na categoria dos “alimentos”. O consumo de mel é muito raro (eu mesmo
nunca vi mel em Kyõwã), e a aquisição do sabor amargo-venenoso (nos corpos) é
obtida menos pela alimentação que por procedimentos feitos sobre a pele. Assim,
mel e veneno talvez estejam associados de outras formas que não “alimentícias” (e
que não a simples oposição). Lembremos que, no mito narrado por Valter, a mis-
tura de méis que anula a peçonha das cobras é chamada, em português, de “remé-
dio”, termo em geral aplicado á substâncias amargas (gopatoma, as folhas empre-
gadas nos ritos para “amargar” o corpo e, assim, afugentar as doenças. Os Karitiana
não cultivam tabaco.
16
Os dois termos podem ser cognatos: lembremos que as línguas karitiana e o aché-
guayaki pertencem ao tronco Tupi, respectivamente Tupi-Arikém e Tupi-Guarani.
17
Para a guerra, os Karitiana – tanto nas flechas como nos cocares e em outros ador-
nos dos guerreiros, como braçadeiras – podiam usar penas de arara, mutum, pa-
pagaio e curica (periquito). Dizem que essas aves “têm pena boa, [porque] voa lá
no alto e não têm doença, têm tudo saúde”. Não empregavam penas de “bichos do-
entes”: de jacu, pois “jacu tem cabeça doida, e quem usa cocar de jacu fica doido”; de
urubu (não tem sorte na caça, pois come carcaças podres, e por isso o caçador/
guerreiro não teria sorte); de tawotapo (um tipo de gavião – se usar esta pena, o
caçador mata apenas uma caça e depois se torna panema); de pãrãmo (gavião-de-
anta, que se alimenta de carrapatos de anta) e de nambu.
18
Infelizmente, não consegui elucidar a razão desta prática/técnica.
19
Isso talvez explique o costume, difundido por todas as terras baixas da América do
Sul, de se deixar as armas nos locais de combate ou sobre o corpo dos inimigos
tombados. Sobre “bordunas agressivas” entre os Xavante, ver Maybury-Lewis
(1984, pp. 306-10).
20
Exemplo disso são as flechas wayana, que, nos tempos da gênese do mundo, pos-
suíam olhos, índices de seu caráter predatório, característico das “produções caóti-
cas” daqueles momentos de origem (van Velthem, 2000b, p. 77).
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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS
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A propósito dos Achuar, ver também a discussão acerca das tsentsak, flechinhas
mágicas empregadas pelos xamãs, as quais, embora invisíveis, são “princípios
animados ou autômatos incorpóreos” que precisam “se acostumar” com o corpo
do xamã em que vivem e que podem passar a “apreciar carne humana” e, daí,
desenvolver “uma espécie de malignidade indistinta que as leva a escapar ao con-
trole daquele que a capturou a fim de caçar por conta própria” (Descola, 2006,
pp. 374-87).
22
Eu mesmo nunca vi um om’et. Carlos Frederico Lúcio (1996, p. 68) viu e fotogra-
fou um. Sobre a cerâmica, é possível que considerações sobre a agentividade tam-
bém estejam presentes, uma vez que os cacos cerâmicos quebrados encontrados
na floresta – peças de interesse arqueológico – são, segundo os Karitiana, a última
transformação dos psam’em pyyt, uma das almas-espírito que vagam pelo mato após
a morte da pessoa, da qual são imagem enfraquecida.
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
ABSTRACT: Based on recent studies that show the agency and subjective
qualities of certain artifacts in native Amazonia, this article addresses some
issues related to the circulation of these personalized/agentivized objects in
non-Indian contexts, especially in the art’s and craft’s markets. The text ex-
plores the problem of bows and arrows among the Karitiana (Tupi-Arikém,
Rondônia). These artifacts are dangerous and unforeseeable, so their circu-
lation out of the Karitiana’s villages requires some precautions, such as the
reduction of their sizes and the use of different materials for their manufac-
ture. The paper, therefore, offers some notes on an indigenous’ (Karitiana’s)
perspective on the objects circulating through exchange and market net-
works in the non-Indian world.
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Cronologia e conexões culturais na Amazônia:
as sociedades formativas
da região de Santarém – PA*
Introdução
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Entre 2001 e 2003, foram realizadas pesquisas numa área de terra firme
localizada a cerca de cem quilômetros ao sul de Santarém, na margem
esquerda do Rio Tapajós, num local que hoje corresponde à comunida-
de de Parauá, situada na Resex Tapajós-Arapiuns (Gomes, 2008). Os
trabalhos arqueológicos tiveram como hipótese o teste dos limites e da
influência política do suposto cacicado Tapajó. Neste sentido, a expec-
tativa era encontrar comunidades satélites associadas à Santarém, que
evidenciassem relações de hierarquia e centralização política, conforme
sugerido por Roosevelt (1987; 1992; 1999b, p. 27).
A abordagem desenvolvida buscou reconstituir a comunidade pretérita
e, desse modo, optou-se pela realização de um levantamento sistemático-
geométrico (Plog, Plog & Wait, 1978; Redman, 1973 e 1975; Schiffer,
Sullivan & Klinger, 1978; Zeidler, 1995), que também aliou procedi-
mentos oportunísticos,1 numa área de dimensões reduzidas, de 36 km2,
embora densamente florestada. Este levantamento foi realizado por meio
da abertura de trinta quilômetros de transects, cujas linhas de seis quilô-
metros foram dispostas em distâncias iguais com cerca de um quilôme-
tro, seguindo uma orientação leste-oeste, partindo da margem do Rio
Tapajós em direção ao interior. Os transects são considerados por autores,
tais como Chartkoff (1978) e Zeidler (1995), como a melhor alternativa
par lidar com problemas de acessibilidade e visibilidade em áreas
florestadas, e ao longo destes foram realizadas sondagens a cada cinquenta
metros, o que fornece um parâmetro da intensidade do levantamento.
Esta alternativa consiste numa estratégia dispendiosa, sendo adequa-
da no contexto amazônico para trabalhos em áreas de dimensões redu-
zidas, não consistindo numa boa opção para extensas áreas florestadas.
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Marajó, que revela um hiato cronológico entre 2800 a.P. e 2000 a.P.,
atribuído a episódios de seca, segundo Meggers & Danon (1988, p. 250),
a cronologia de ocupação de Parauá/Santarém mostra-se contínua. Esta
representa uma característica importante da ocupação formativa de San-
tarém, em termos não só locais, como regionais.
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tes da base do sítio Boa Vista, revelaram uma antiguidade bem maior da
fase Pocó – entre 2950 + 130 a.P. e 3280 + 45 a.P. –, tendo sido a prin-
cípio rejeitadas. Outras datas obtidas por Klaus Hilbert em nova cam-
panha na década de 1990, em seu retorno ao sítio Boa Vista, situaram a
ocupação Pocó em 1820 + 60 a.P.; e do sítio São José, em 2800 + 70 a.P.
e 1980 + 60 a.P. (Klaus Hilbert, 2000, informação pessoal; Gomes,
2002, p. 45).
Pesquisas recentes realizadas por Guapindaia (2008) na região de
Porto Trombetas – situada a cerca de cinquenta quilômetros a noroeste
da foz do Rio Trombetas, na Floresta Nacional de Saracá-Taquera – pos-
sibilitaram ampliar o conhecimento sobre a ocupação Pocó nesta área.
Além dos padrões incisos curvilíneos associados a elementos modela-
dos, de influência barrancoide, Guapindaia documenta a existência de
pintura policrômica, vermelho e alaranjado sobre branco, além de ou-
tras variações de vermelho e vinho, cuja pintura é organizada em pa-
drões geométricos bastante elaborados. As formas Pocó incluem pratos
com flanges labiais; vasilhas esféricas com pescoço para armazenamento
de líquidos, decoradas por pintura vermelha e alaranjada sobre engobo
branco; vasilhas rasas de formato elipsoide, de contorno simples ou com-
posto, destinadas ao serviço, podendo ser pintadas e incisas.
Um conjunto de datações dos sítios Aviso I e Boa Vista confirmou
a posição cronológica da ocupação Konduri entre os séculos XI e XV
d.C. o que permite uma correlação cronológica com a ocupação Tapa-
jônica, em Santarém. Quanto às datas obtidas por Guapindadia (2008,
p. 171) para a cerâmica Pocó, no sítio Boa Vista, estas ocupam uma
posição entre 2100 a.P. e 1700 a.P. e estão associadas a solos de cor bru-
no, sendo portanto anteriores ao fenômeno de formação das terras pre-
tas na Amazônia.
Além da área do Rio Trombetas, afinidades com as indústrias cerâ-
micas Pocó foram registradas na Amazônia Central. A Arqueologia da
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Em sua fase tardia (1320 a.P. a 910 a.P.), a cerâmica Borda Incisa de
Parauá-Santarém exibe diversas características formais – tais como jarros
com gargalo, vasilhas rasas de formato elipsoide com base plana e bordas
extrovertidas, vasilhas globulares de perfil infletido, tigelas em forma de
calota esférica e assadores –, além de características decorativas, a exem-
plo de incisões transversais nos lábios ou bordas, ponteado, engobo ver-
melho e, em alguns casos, apêndices mamiformes, em comum com a
tradição Uru do Brasil Central. Outro aspecto relevante na comparação
proposta são os padrões de assentamento e de organização intrassítio,
identificados na região de Santarém, que apontam para a existência de
aldeias circulares e lineares, conforme evidenciado pela pesquisa
conduzida nos sítios da comunidade de Parauá (Gomes, 2008, p. 220).
A gênese amazônica da tradição Uru já havia sido postulada por di-
versos pesquisadores (Oliveira & Viana, 2000; Prous, 1992; Robrahn-
González, 1996; Schmitz et al., 1982). Por sua vez, Wüst & Barreto
(1999), ao discutirem o surgimento das aldeias circulares do Brasil Cen-
tral por volta de 800 a.D., relacionado aos grupos Aratu e Uru, conside-
raram este como um processo local, associado a pressões demográficas,
interação com grupos vizinhos e necessidades de defesa. As mesmas au-
toras rejeitaram a ideia de que a emergência dessas aldeias circulares es-
tivesse relacionada a movimentos migratórios originários da Bacia Ama-
zônica, conforme sugerido por alguns estudiosos com base em
semelhanças artefatuais e modelos de competição e pressão populacional
(Robrahn-González, 1996; Schmitz & Barbosa, 1985), argumentando
com relação à ausência de evidência direta de indicadores dessas migra-
ções nos tributários do Amazonas.
As semelhanças desses conjuntos cerâmicos, dos padrões de organi-
zação intra-sítio, ao lado da cronologia existente e, finalmente, da posi-
ção geográfica estratégica que ocupa o Rio Tapajós como via natural de
ligação entre a Amazônia e o Brasil Central, sugerem que a hipótese mi-
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Considerações finais
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Notas
*
Este artigo dialoga com as hipóteses de Eduardo Neves sobre as cronologias ama-
zônicas. O argumento aqui construído se beneficiou de discussões com Eduardo
Viveiros de Castro sobre as diferentes possibilidades de integração sociopolítica das
sociedades indígenas. A ambos os pesquisadores registro meus agradecimentos. As
pesquisas que embasam esta análise foram financiadas pela Fapesp (Processos: 00/
04563-0; 02/04916-5 e 08/58701-6) e pelo CNPp (Processo: 473224/2006-2).
1
Os métodos de levantamento arqueológico na Amazônia têm se limitado a estraté-
gias oportunísticas, baseadas em informações orais, localização de vestígios de su-
perfície, além de contar com acessos proporcionados pela existência de caminhos e
estradas. Entretanto, não se observam tentativas de desenvolvimento de levanta-
mentos sistemáticos, com a abertura de transects em meio à densa vegetação, con-
forme realizado nesta área do Baixo Tapajós.
2
O reconhecimento desses sítios de “terra mulata”, que consistem em áreas de culti-
vo, foi possível por meio das discussões que vêm sendo realizadas por pesquisado-
res tais como Woods, McCann e Kern, que identificam essas áreas pela cor do solo
marrom acinzentado (7.5YR 3/2; 10YR 4/2), pelos altos teores de matéria orgâni-
ca, além da ocorrência de raros artefatos cerâmicos.
3
Embora a abordagem de análise cerâmica adotada nas pesquisas ora apresentadas
esteja voltada para a reconstrução dos padrões de uso dos artefatos, em razão da
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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA
- 314 -
O sentir dos sentidos dos pescadores artesanais
Apresentação
- 316 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
O corpo vai sendo formado no tempo. No início, o pescador mais novo tem que
ficar mais parado, olhando o cara que sabe fazer. De primeiro, ele aprende a se
equilibrar no barco e a ficar em pé, porque, se não equilibrar o corpo, ele não
faz nada. Também ele aprende a ver e a ouvir lá no mar. (Seu Gidinha, pes-
cador mestre, 70 anos)
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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
O que eu tento fazer aqui é religar a idéia de corpo com temas políticos
mais tradicionais como o estado, a luta de classes e os modos de produção,
usando a categoria da estética como mediação; e desse modo distancio-me
igualmente dos estudos de política de classe, que pouco têm a dizer sobre o
significado do corpo, como dos de política pós-classista que se escondem
nas intensidades do corpo para fugir a questões exageradamente “globais”.
(1993, p. 11)
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Já fiz algumas pescarias boas com o meu filho, mas só que ele começava a vo-
mitar e a sentir aquele enjoo, aquele negócio ruim. Aí eu tinha que dizer:
“Meu filho, vá pegar um facão e vá cortar cana, mas não penda pra pescaria.
Não vai dar resultado”. Ele ficava desanimado pra pesca, porque toda vez que
ele ia mais eu ele vomitava. Agora, se ele aguentasse, eu dizia vamos pescar pra
ganhar mais dinheiro. (Seu Luiz, pescador mestre, 66 anos)
A pessoa pra pescar, lá fora, tem que ter estrutura física, porque se não for
acostumado ele pode enjoar, perder a cor, vomitar. Aguentou o tranco, pode
embarcar. Agora, lá pra fora, tem que ter uns 18 anos acima pra aguentar, o
balanço lá é danado. Tem que ter força nas pernas pra aguentar o mar.
(Conrado, pescador mestre, 39 anos)
Comecei a pescar com 15 anos. Quando entrei na pesca, o meu corpo tava
numa fase boa pra poder pescar. Tá numa fase boa é o corpo tando em
forma, a mente também e a vontade de pescar. Também, aos poucos, fui
me acostumando, pois, quando meu pai ia, eu também ia.
- 323 -
CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
A pesca mais difícil é a de covo, pois depende de força pra colocar ela pra cima.
Já de linha é maneira, e eu podia fazer. (Conrado, pescador mestre, 39 anos)
- 326 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Eu ajudava a puxar a rede ou arrumar uma corda com pai. Era o mais ma-
neiro, porque, pela minha idade, eu não podia pegar ainda uma coisa mais
pesada, aí fazia isso no mar. (José Edson, pescador mestre, 41 anos)
Eu entrei na pescaria acho que com uns 14 anos. Eu estudava pela tarde e, de
manhã, eu ia pro mar. Saía às 4h30 da manhã, mais meu pai. Pescava até 8
ou 9 horas e descansava um pouquinho pra ir pro colégio. Na época, era pesca-
ria de linha. Não muito pesada. Depois ele começou a me ensinar pra gente
pescar de mergulho perto da barra, quando a água estava limpa. A gente pega-
va serra, xaréu, garajuba, essas qualidades de peixes. (Gildo, pescador proeiro,
35 anos)
Aos 10 anos, fazia pesca de arrasto, de sauneiro. Arrastava pra praia logo que
entrei pra pescaria. Pescava a tainha, que era pesca de cerco, redonda. Depois,
já maior, fui pescar lá fora e abandonei essas pescarias. (Seu Neneu, mestre,
67 anos)
- 327 -
CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
Quem entra na pesca fica no meio do barco, pra desmalhar ou pesca de linha
mesmo. Ele não pode puxar rede, que ele não sabe. Não tem técnica e nem
manobra nas pernas, devido ao balanço do mar. (Seu Gidinha, pescador
mestre, 70 anos)
Tudo que a cultura humana criou até hoje nasceu não de misteriosas moti-
vações internas espirituais (ou coisa que o valha), mas do fato de que, des-
de o começo, os homens se esforçaram por resolver questões emergentes
da existência social. É à série de respostas formuladas para tais questões
que damos o nome de cultura humana. (1969, p. 170)
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Desde cedo, por volta dos cinco anos de idade, os meninos já começam a
ir com seus pais ou parentes para a pescaria, para ajudar nas pequenas tare-
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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Muda tudo. Meus dedos engrossaram demais. É... engrossam. É muito traba-
lho de força, de puxar e consertar rede. É muito diferente de um cara de escri-
tório. Se um cara de escritório for uma vez com a gente, ele fica com o dedo
todo cortado, porque o couro dele é muito fino, e o da gente não. A gente, com
o costume, o couro vai engrossando, pescando e levando sol. Cada vez mais que
a gente vai trabalhando o couro vai engrossando. (Marco, pescador mestre,
32 anos)
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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
Tem proeiro muito bom, que é o da frente, e ele é quase mestre. Falta somente
marcar. Agora todos do barco são importantes. (Genildo, pescador mestre,
35 anos)
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
O proeiro que fica na ponta ele tem a maior prática. Ele é proeiro. Todo aque-
le que não é mestre é proeiro. Todos eles são proeiros. Agora tem um que sabe
mais, aí ele fica lá na frente, porque ele tem a prática de pegar a boia, puxar
âncora, largar a rede. Ele é quem faz o primeiro movimento. Ele sempre tra-
balha ao contrário na proa do barco. Ele não pode puxar uma rede pra frente
do barco. Ele tem que puxar e dar as costas pro mar, e tem que ter equilíbrio
ao mesmo instante. (José Edson, pescador mestre, 41 anos)
- 335 -
CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
radas sem valor ou de valor menor. Tudo tem seu grau de significância
para o funcionamento do barco, por isso os ganhos são repartidos igual-
mente através do quinhão, cabendo apenas ao mestre sua parte e a que é
destinada à rede, especialmente por ela ficar sob sua responsabilidade
no que diz respeito aos reparos necessários da malha.
O corpo é o espaço do diálogo, dos sinais e signos produtivos utili-
zados pela tripulação para se entender no mar, formando uma semiótica
da pescaria. No barco, “ninguém fala” por palavras, pois “a gente se comu-
nica com os gestos” (Gildo) típicos do saber-fazer pesqueiro. Essa é uma
forte linguagem, a do uso corporal.
Câmara Cascudo escreveu que
- 336 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
O mestre sabe usar melhor a visão e o ouvido. Sabe mais os locais de pescar.
(Gildo, pescador proeiro, 45 anos)
Ele descobre o pesqueiro quando o peixe tá fazendo batida e tem brilho dife-
rente, ou o pescador sente mais peixe no anzol ou, desconfiado, pôs a rede e
veio mais peixe. O peixe tá passando por ali. Aí ele fica pra ele. (Seu Milton,
pescador mestre, 67 anos)
Marcar tem que ter muita alembração. O esquecimento é ruim. (Seu Gidinha,
pescador mestre, 70 anos)
A fala do pescador Gildo indica que marcar é saber usar bem o cor-
po, sua fruição. O mestre, como nenhum outro ser humano, “sabe usar
- 337 -
CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
- 338 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
A cor na água diz que tem peixe. Já o vento, as folhas dos coqueiros ajudam
pra entender que tipo é, além da gente sentir ele. (Joaquim5, pescador proeiro,
25 anos)
Puxar a rede no mar é difícil, ruim, porque vai puxar o peso e tem que saber
ficar no barco pra não cair. Se você for bom no equilíbrio de perna, não cai.
E não cai mesmo. Você vai pela onda do mar. Ele tem que tombar. Se ele não
tiver bom equilíbrio, oxente, o cabra se atola, cai na água. Por isso o cama-
rada tem que tá prestando atenção no mar. (Seu Milton, pescador mestre,
67 anos)
- 339 -
CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
Tem peixe que a gente sabe pela sua batida na água e a cor. Além disso, na
pesca de linha a gente usa também o cabo de vassoura. A borda do barco é
furada e aí pega ele e coloca, colocando o náilon em cima do cabo. A gente
mela em cima dele com óleo diesel. Aí, quando o peixe puxa faz zoada.
(Conrado, pescador mestre, 39 anos)
Tava pescando lagosta. Tava dando aquele vento terral, aquele vento que bota
a gente pra fora, aí eu fui dar outro mergulho e tinha certeza, quando voltei
de baixo, que senti... havia cheiro de lagosta, que eu trazia de lá, nas coisas
que peguei. Aí direcionei o barco mais pra frente. Desceu eu e mais um, e ti-
nha lagosta. (José Edson, pescador mestre, 41 anos)
- 340 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Para evitar equívocos, vale a pena realçar novamente que o fato de a cons-
ciência se elevar a “momento essencial ativo” no ser social, de deixar ser
mero epifenômeno, não significa que deixem de existir as determinações
advindas do fato de que essa consciência está sempre ontologicamente li-
gada a um corpo biológico e, ao fim e ao cabo, de estar a serviço da repro-
dução deste mesmo corpo. (Lessa, 2002, p. 182)
- 341 -
CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
O vento, ele... o pescador gosta de vento calmo. Vento forte, o mar fica agitado;
e o vento calmo, o mar fica brando, fica legal. E esse vento sul faz a água correr
pro norte, e o vento norte, faz a água correr pro sul. O terral, o de terra, faz a
água subir. Eu sinto esses ventos por eles tocarem em mim. Pode virar o rosto
assim e você sente ele topar de um lado, ele mais na frente. (Conrado, pesca-
dor mestre, 39 anos)
O mais difícil pro pescador é o mau tempo. O mar fica violento. Já chovendo
não. Mas quando tá ventando, oxente, só navio. O vento fica ruim porque o
mar fica vagueado, voga7 alta. Vento assim, o mar fica vagueado. O vento
brabo faz o mar embrabecer. Tem o vento leste, de fora, é bom pra pescar. Ele
vem de fora. O vento fica brandinho e é bom pra pescaria. Tem o vento gerar,
e ele é ruim. É sudoeste. Terral é um vento mais manso, ele é da terra pro mar.
(Seu Milton, pescador mestre, 67 anos)
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Quando a gente tá perto de uma área de pesca a gente escuta. A gente escuta a
lapada que o peixe dá com a calda n’água. Aí a gente diz: “Tá batendo aracioba
por ali”. A gente sabe pela lapada que ela dá, que é mais forte que a de outros
peixes. Quando a garajuba bate ela faz a superfície ficar diferente, pois ela é
amarela. O xixarro é um pouco esverdeado, e a cavala vem um pouco cinza.
(Gildo, pescador proeiro, 45 anos)
O peixe, quando bate na água, ela sai diferente, mesmo em maré branda. A
garajuba pula um pouquinho da água e bate com a calda em cima, pra pegar
a comidinha. A cavala é mais brilhosa. (Santiago, pescador proeiro, 52 anos)
Quando eu pesco o serra de linha... o serra dá uma carrerinha curta, mas é
curta, ele volta logo. Eu sinto sua carreira na mão. (Seu Gidinha, pescador
mestre, 70 anos)
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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
A gente sente o tipo de peixe pela topada que ele dá no náilon, dá no anzol. Aí
a gente sabe qual o tipo de peixe que tá lá embaixo. Pelo tamanho, ele... ele
fica tirando o náilon que tá na mão da gente. Tudo a gente sente a qualidade
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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
do peixe pela força que ele vai fazer. A cavala, quando pega no náilon, ele
corre muito. A velocidade é maior do que o serra, o xixarro, do que esses peixes.
Acho que é por isso que tem esse nome de cavala. O xixarro, quando você larga
a linha e ele pega, ele pega de mansinho, fazendo força pra baixo. (Marco,
pescador mestre, 32 anos)
- 346 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Conclusão
- 347 -
CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS
- 348 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Notas
1
Pesquisa que foi financiada pelo CNPq.
2
Os impactos ambientais existentes em Suape não serão aqui abordados, porque
isso já foi feito em estudo anterior. Ver Ramalho (2006).
3
Este é um nome fictício, por solicitação do próprio pescador.
4
Forma de mapear o mar e suas áreas piscosas, ver Maldonado (1994) e Ramalho
(2009).
5
Este também é um nome fictício, por solicitação do pescador.
6
O pôr teleológico (pensar e fazer) é o trabalho concretizado (Lukács, 1981).
7
Onda do mar.
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
- 357 -
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O cânone da transformação
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Têmpera
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Intercâmbios
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Dualismos ameríndios
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Como o fogo, ora celeste, ora doméstico, o nevoeiro ora une o céu e a
terra, ora os separa, interpondo-se entre os dois. E, se a água celeste extin-
gue o fogo, impossibilitando a culinária, ao passo que a água terrestre lhe é
propícia (devido aos peixes que fornece), o vento desenfreado destrói toda
vida na terra [...]; mas, disciplinado, atiça o fogo doméstico. (HL, p. 189)
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Notas
1
Doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (MN/UFRJ).
2
Para mais considerações acerca do lugar que ocupam no pensamento de Lévi-Strauss
os tomos que compõem as chamadas grandes e pequenas Mitológicas, ver, por exem-
plo, Perrone-Moisés (2008, pp. 20-35).
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3
A partir deste ponto e até o final do presente ensaio, qualquer indicação à obra
História de lince de Lévi-Strauss (1993[1991]) será feita com a abreviação HL.
4
Sobre a fórmula canônica do mito, considerada simultaneamente “um dos tópicos
mais intratáveis na obra de Lévi-Strauss” e “uma das idéias mais fascinantes e per-
sistentes do grande antropólogo”, ver sobretudo Almeida (2008, pp. 147-51, 169-
74), bem como Viveiros de Castro (2008, p. 20).
5
Isto permanece válido, ainda que a notação mítica possa vir a ser abreviada de modo
similar ao que é feito no xadrez, no qual escrever somente Bb5+ Cd7 pode signifi-
car o duplo movimento de um xeque do bispo do rei branco frustrado pelo cavalo
da rainha preta. Enquanto o leigo se esforça, em passos lentos e concatenados, para
ler as coordenadas de cada uma das casas e os códigos relativos a cada peça, o enxa-
drista já vislumbra aí os fluxos que possibilitam remontar às casas de saída das
maiúsculas, aos possíveis novos destinos das peças que chegam às minúsculas nu-
meradas, além dos paralelos a serem traçados entre esses movimentos e outros aná-
logos em partidas de configurações bastante distintas. A nosso ver, são procedi-
mentos similares que passeiam pela mente do analista dos mitos, Lévi-Strauss
estando sem dúvida mais para Kasparov do que para Deep Blue.
6
Há aqui um paralelo possível com o raciocínio lógico-matemático dos teoremas da
incompletude de Gödel, segundo a qual, mesmo em sistemas autoconsistentes, exis-
tem proposições verdadeiras que não podem ser comprovadas com base nos axio-
mas que o sustentam.
7
É deste modo que entendemos a aproximação feita por Wagner (1981[1975],
p. 52) entre o que este autor chama de “contradição” e aquilo que Lévi-Strauss
chama de “oposição”, e talvez vice-versa: “Se me permitem uma imagem arriscada,
eu diria que, tomando impulso, a transformação salta por cima do contrário e vai
cair em cheio sobre o contraditório, mais além” (HL, p. 125). Em um registro si-
milar, num livro publicado no mesmo ano de História de lince, Strathern indica
como organiza sua monografia baseada não na constatação de oposições, mas numa
construção na chave da aposição, na qual justaposições são realizadas segundo pen-
samentos remanescentes de posições anteriores (1991, pp. xxiv-xxv; cf. tmb. p. 53).
8
Aqui o autor atenta para o risco de se constituir a mitologia como uma língua sem
redundância, na qual o emissor (ou mesmo o analista) possuiria liberdade plena
para estabelecer quaisquer conexões possíveis, aventando teorias “acerca de qual-
quer encaminhamento atestado ou simplesmente possível” (HL, p. 173). Numa
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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA
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O candomblé (barroco) de Roger Bastide*
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É por isso que pertenço ao partido que vocês diriam, com desgosto, abur-
guesa a revolução: o protestantismo, o socialismo SFIO e, em literatura,
ah em literatura, digamos que é preciso comprar o surrealismo, mas nego-
ciando-o em parcelas. (Bastide, 1994[1928], p. 98)
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Quase vinte anos depois, Bastide parece seguir o que ele próprio ha-
via indicado: compra o surrealismo (ou parcelas dele), pensando-o como
uma projeção barroca. E mais que isso: como possibilidade de criação
de uma arte moderna original em solo brasileiro. Lança, então, nos três
artigos antes mencionados, de 1944, um convite aos potenciais “surrea-
listas brasileiros”: “encontrar a déraison brasileira pelo recurso às fontes
propriamente nacionais e, principalmente, ao imaginário que se revela
na cultura popular e no folclore, que deveria servir de matéria ao
‘surrealismo barroco brasileiro’” (1944b).
O ponto é retomado de forma contundente no texto de 1947,
“A volta do barroco ou a lição do Brasil”, no qual ele se dirige direta-
mente à arte e à arquitetura moderna, reeditando ressalvas indicadas,
em outros momentos, ao “cubismo do urbanismo moderno das cida-
des”. O texto pode ser lido como um manifesto: uma defesa da “volta
ao barroco” como matriz e fonte de criações originais. Tal plataforma
encontra-se amparada em exemplos retirados da produção artística da
época, na qual é possível localizar, defende ele, ecos barrocos que sub-
vertem a simplicidade e o despojamento do modernismo arquitetural:
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Notas
*
‘Esta reflexão articula-se diretamente a outra, dedicada às análises de Bastide sobre
as cidades brasileiras, “Roger Bastide e as cidades: dois ângulos e uma perspectiva”,
in Lanna et alii (2011); os dois textos, na origem um só, foram separados por razões
de coerência argumentativa e narrativa. Este artigo liga-se ainda ao Projeto “Ilicia
– Inscripciones literarias de la ciencia. Ámbitos interdiscursivos, transferencias
conceptuales y procesos semióticos” (Universidad de Salamanca y Dirección Ge-
neral de Universidades e Investigación de la Junta de Castilla y León), que integro.
1
Fernanda Arêas Peixoto é professora do Departamento de Antropologia da USP,
pesquisadora do CNPq e autora, entre outros, de Diálogos brasileiros: uma análise
da obra de Roger Bastide (2000).
2
Uma dificuldade (mas não um impedimento, é claro) que se coloca para um exame
estilístico da obra diz respeito à sua deriva particular. Publicado pela primeira vez
em português com base em um original francês extraviado (sem informações sobre
o tradutor), o texto foi vertido ao francês por Charles Beylier, em 1995, baseando-
se na tradução brasileira.
3
Cf. “A arte e as influências raciais”, “Sociologia do barroco no Brasil” e o “Mito do
Aleijadinho” in BASTIDE, R., Psicanálise do cafuné: estudos de sociologia estética
brasileira (1941).
4
Em 1939 e 1940, Bastide ministra um curso sobre arte e sociedade (cf. Arte e socie-
dade, 1945b) e outro, em que se volta para a análise de casos empíricos, entre os
quais o barroco (o mineiro e o nordestino) e o Aleijadinho. Sobre estes últimos,
além dos textos de Bastide reunidos em Psicanálise do cafuné (1941), cf. os comen-
tários de sua ex-aluna, Gilda de Mello e Souza (1978 e 1980).
5
Guilherme S. Gomes Jr. fala na “lição inovadora” de Bastide em relação aos deba-
tes brasileiros sobre a noção (Gomes Jr., 1998, p. 17). Eu mesma, em livro anterior,
corroboro essa visão: o ponto de vista sociológico de Bastide sobre o barroco auxi-
lia a afastar as ambiguidades e imprecisões que rondam as discussões travadas no
Brasil até esse momento (Peixoto, 2000).
6
O livro de Guilherme Simões Gomes Jr., já mencionado, é indispensável para a
compreensão dos debates sobre o barroco no país. Indica o autor como a retomada
da arte colonial pelos modernistas, sobretudo por Mário de Andrade, não elimina
as grandes ambiguidades que cercam as considerações sobre o estilo nesse momento:
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curvas que tomam as fachadas modernas, ainda que ele não cite o arquiteto nos
artigos em questão.
14
Affonso Ávila chama a atenção para a predileção barroca pelos “espetáculos para
os olhos” (1980, p. 216).
15
Cf. Bastide, Psicanálise do cafuné (1941), além dos artigos de Gilda de Mello e
Souza (1978 e 1980).
16
O ponto é destacado em Imagens do Nordeste místico em branco e preto (1945a) e
retomado, quase literalmente, em Brasil, terra de contrastes ([1957]1979), quando
Bastide descreve as igrejas de fachadas austeras, mas que escondem interiores que
nos levam a penetrar “no mundo maravilhoso das Mil e uma Noites. Ouro a cin-
tilar, orgia de riquezas, torrentes de cores suntuosas, imensa sinfonia de sombras e
luzes a brincar, a se perseguir, a se separar, a se enlaçar, forçando o espírito do
devoto, ao mesmo tempo ferido pelas fulgurações do ouro e acalmado pela carícia
das sombras, a se refugiar no êxtase, a se abismar na oração” (p. 60).
17
Difícil evitar aqui a referência ao Guia do Recife, de autoria de Gilberto Freyre
(1934). No volume, Freyre estabelece um contraponto entre o centro e os subúr-
bios da cidade, construído com o auxílio de uma série de oposições encadeadas,
que se organizam em torno do par “subúrbios mais orientais” (da pequena bur-
guesia, do comércio barato e de sociabilidade intensa) e o centro, “grave, masculi-
no e europeu do Recife”. Ricardo Benzaquen de Araújo mostra como, ao longo da
narrativa, quanto mais nos afastamos do centro, mais os sentidos são despertados:
cheiros de fruta madura, repique de sinos, cores de gentes e festa (1994, p. 167).
Bastide, leitor cuidadoso do escritor pernambucano, seguramente conhece o guia
escrito pelo colega, embora tenha comentado o guia posterior, dedicado à cidade
de Olinda (1939). Nesse texto, “Evocações de Olinda”, não por acaso publicado
no mesmo ano de 1945d (Diário de S. Paulo, 12 de janeiro), Bastide destaca o
“estilo sensual” de Freyre – “seus livros são uma festa para todos os sentidos” –,
que encontra reverberações na narrativa do seu Nordeste místico (1945a). Para uma
leitura dos guias de cidades de Gilberto Freyre, cf. Peixoto (2005).
18
A menção a Leiris refere-se a seu artigo publicado no Journal de Psichologie de
1938, “La croyance aux génies ‘zar’ em Éthiopie du nord”, que é retomado, poste-
riormente, no livro La possession et eses aspects théâtraux chez les Éthiopiens de Gondar
(1958).
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
19
Mesmo sem desenvolver o ponto nesse momento, ele chama a atenção aí para a
existência de uma filosofia sutil no candomblé (1945a, p. 134), aspecto sobre o
qual só irá se deter em O candomblé da Bahia (1958) com o auxílio das formula-
ções de Marcel Griaule. Lembremos que as eideias de Griaule chegam até Bastide
por intermédio do volume Dieu d’eau (1948), que consiste numa série de entre-
vistas feitas pelo africanista francês com Ogotemmêli, o caçador Dogon, o que
permite ao intérprete enveredar pelos enredos da complexa cosmologia africana.
20
Operatória definida pela potência da dobra, entendida ao infinito: “pli selon pli”
(Deleuze, 1988, p. 47). Em entrevista sobre Leibniz do mesmo ano, Deleuze volta
a esclarecer o conceito de dobra, “sempre um singular, e só pode ganhar terreno se
bifurcando, se metamorfoseando” (1998, pp. 194-5).
21
John Law (2004) realiza uma proposta interessante de pensar o barroco como uma
visão alternativa da complexidade – “looking down” –, que ele contrapõe a uma
“visão romântica” (“looking up”). É curioso perceber como o autor inverte, assim,
o sentido das discussões artísticas propriamente ditas, nas quais o barroco é con-
traposto ao “clássico”. Agradeço a Márcio Goldman a indicação desse texto.
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- 405 -
Cavalo dos Deuses:
Roger Bastide e as transformações
das religiões de matriz africana no Brasil*
Marcio Goldman1
feita por intermédio dos livros dos afrologistas. Pois seria um erro acreditar
que os “zeladores de santo” (nome pelo qual se designam hoje em dia os
pais-de-santo) são pessoas ignorantes. Eles lêem os livros que se escrevem
- 408 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
sobre eles e pode haver uma influência dos mesmos sobre suas crenças ou
religiões, principalmente na medida em que esses livros cotejam os fatos
brasileiros com os fatos africanos, pois na impossibilidade de ir à África,
como se fazia outrora, o zelador de hoje estuda a África através dos livros
para reformar sua própria religião. (Ibidem, p. 168)
Nesse ponto, Bastide insere uma nota que peço licença para citar na
íntegra:
- 409 -
MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.
Quer tenham ou não sido bem sucedidos esses esforços (e quase sem-
pre se imagina que não foram), o fato é que os intelectuais teriam influ-
enciado os próprios adeptos, de tal forma que estes, aparentemente, te-
riam começado a perceber algumas vantagens na proclamação dessa
fidelidade a uma África ancestral cantada pelos livros, que teriam passa-
do, assim, a ser consumidos por aqueles que deveriam ser apenas seus
objetos ou personagens.
Nessa história, iniciada grosso modo por Nina Rodrigues, Roger
Bastide teria ocupado uma posição ao mesmo tempo soberana e termi-
nal. Porque, depois dele, nós teríamos nos tornado muito mais inteli-
gentes, deixando de perseguir a sombra de uma África imaginária e nos
contentando, sabiamente, com a muito real “sociedade brasileira”.
Não pretendo aqui, é claro, apreciar em detalhes essa versão dos es-
tudos afro-brasileiros que considera a si mesma revolucionária.3 Eu gos-
taria de observar apenas que me parece algo estranha a tentativa de fazer
justamente de Roger Bastide o principal ator, ou dramaturgo, desse tea-
tro de sombras. Afinal, e como bem se sabe, um dos objetivos mais ex-
plícitos da obra de Bastide – talvez o que ele considerasse como mais
relevante do ponto de vista científico – consistia exatamente na tentati-
va de elaboração de uma perspectiva propriamente sociológica a respei-
to das religiões de matriz africana no Brasil. Perspectiva que devia ex-
plorar, justamente, as relações entre níveis da realidade social que Bastide
ora denominava infra e superestruturas (ao empregar um vocabulário
marxista), sociedade e cultura (quando se aproximava da antropologia)
ou morfologia social e representações coletivas (quando adotava seu
modelo preferido, o sociologismo durkheimiano, ainda quando tempe-
rado por Lévy-Bruhl, Griaule ou Gurvitch).
De toda forma, e qualquer que fosse o vocabulário empregado, o
problema mais geral de Bastide é muito claro: como correlacionar reli-
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gião e sociedade – o que não parece tão distante do que se fará mais
tarde e, muitas vezes, contra o próprio autor. Mas em dois pontos ao me-
nos o modelo bastidiano difere daquele elaborado a partir dos anos 1970.
Em primeiro lugar, a perspectiva que Bastide elabora pretende ser
histórica ou dinâmica. É nesse sentido que o caso das “religiões africa-
nas no Brasil” aparece a seus olhos como uma espécie de caso privile-
giado, um laboratório, onde seria possível investigar empiricamente uma
grande questão do pensamento sociológico. Pois se marxismo, antropo-
logia social ou durkheimianismo concordam, grosso modo, em atribuir à
“base” uma precedência e um poder de determinação sobre as “repre-
sentações”, o que fazer de um conjunto religioso que, ao ser arrancado,
literalmente à força, de sua base, em lugar de desaparecer parece, ao con-
trário, insistir em se manter? Seria preciso, neste caso, inverter todo o
esquema e, apelando para Lévy-Bruhl e sobretudo para Griaule, optar
por atribuir às representações o poder de determinar a morfologia?
Sabe-se que, por vezes, é nessa direção que Bastide caminha. Assim,
em O candomblé da Bahia, ele chega a afirmar que “não é a morfologia
social que domina e explica a religião, como queria Durkheim, mas ao
contrário é o aspecto místico que domina o social” (2001, p. 45), ou
que “o social é fruto do místico, como indica Griaule, a organização
material reflete a organização espiritual” (ibidem, p. 111). Mas sabe-se,
também, que não é exatamente esta sua posição mais geral.
De fato, na obra que escreveu diretamente acerca dessa questão,
Bastide apresenta uma posição muito mais matizada, que se modifica
várias vezes ao longo do livro. Assim, se em alguns momentos o autor
parece optar por uma precedência do “místico” (1971, pp. 96, 113, 426,
por exemplo), sua hipótese fundamental é muito mais interessante do
que uma simples inversão de determinismos. Ao analisar as conexões
entre organização social e pensamento por meio das “religiões africanas
no Brasil”, Bastide privilegia uma perspectiva mais diacrônica do que
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co, por outro. Termos, aliás, praticamente sinônimos, já que aqui, como
em tantas outras partes, Bastide segue quase fielmente os ensinamentos
de Durkheim e Mauss.6
Nesse engenhoso modelo permanece, contudo, algo de inexplicado
e mesmo de misterioso. Na verdade, o mesmo tipo de mistério que pa-
rece obcecar os intelectuais de Nina Rodrigues até hoje: afinal, por que
– e, às vezes, como – “sobrevive” o candomblé? Ou seja, por que o can-
domblé não se transforma de uma vez por todas em cristianismo,
umbanda, espiritismo ou secularismo, de acordo com o gosto do fre-
guês? Ou, ao menos, por que não se dissipa na forma corrompida, sim-
plificada ou libertária da macumba? “Por que, pois, há sempre candom-
blés?” (Bastide, 1971, p. 231).7
A resposta de Bastide a essa bela questão não é de todo clara. Por
vezes, os terreiros são tidos por “nichos” que sobrevivem por pura inércia
quando as condições “exteriores” são favoráveis (ibidem, pp. 225, 389,
entre outras); mas, outras vezes, Bastide não pode deixar de sublinhar o
caráter ativo da produção desses nichos, verdadeiras linhas de fugas ca-
pazes de escapar de toda “determinação infraestrutural”: “esse primeiro
momento de adaptação é seguido por um segundo, o de criação”
(ibidem, p. 226). Tudo se passa como se o autor não fosse capaz de re-
sistir à sua própria descoberta de que “nichos” de resistência podem ser
criados em e contra uma infraestrutura dominante. E, em certo senti-
do, é isso o que cabe fazer com o próprio Bastide: liberar suas ideias da
“infraestrutura” de que dependem a fim de que também possam ser uti-
lizadas como “nichos de resistência” ou linhas de fuga.
É claro que os autores “modernos” não formularão o problema nes-
ses termos, que eles, ao contrário, o empregam como instrumento de
acusação contra os autores “antigos”. No entanto, escrevendo justamen-
te num momento em que as religiões de matriz africana no Brasil pare-
ciam estar sofrendo um processo de crescimento e expansão, os autores
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Não creio ser excessivo imaginar que, embora Bastide não seja aqui
mencionado, ele poderia ser incluído na lista dos intelectuais suspeitos
de terem involuntariamente contribuído para a codificação das religiões
de matriz africana no Brasil pelo fato de terem voluntariamente se dedi-
cado à busca das tradições africanas que teriam sobrevivido à diáspora.
A própria Boyer (1993b) o sugere em outro texto, e são muitos os que
situam Bastide entre aqueles cuja obra é constantemente lida pelos
adeptos e que teriam contribuído para a “invenção do candomblé” (cf.
Despland, 2009).
Tudo isso é provavelmente verdadeiro, mas, não obstante, deixa de
lado uma série de pontos que eu gostaria aqui ao menos de levantar. Em
primeiro lugar, a ausência de uma investigação etnográfica sistemática a
respeito do modo como os trabalhos dos intelectuais são de fato lidos e,
se for o caso, utilizados por diferentes fiéis das religiões de matriz africa-
na no Brasil. Ou seja: quem lê essa literatura, o que dessa literatura é
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lido, que valor é atribuído ao que é lido. Quando esse importante traba-
lho for enfim realizado, ele certamente mostrará que não é nem neces-
sário, nem correto projetar os padrões acadêmicos com os quais está acos-
tumado o intelectual sobre aqueles cujas singularidades ele está, em tese,
investigando. Como se esses padrões fossem universais quando, na ver-
dade, não são sequer muito comuns…
Assim, em sua magnífica tese de doutorado sobre o candomblé em
Recife (à qual retornarei adiante), Arnaud Halloy (2005, pp. 97, 125,
187, 191-194, 645) observa como os membros dos terreiros que estu-
dou consideram o saber que se aprende diretamente muito superior,
confiável e estável do que aquele que pode ler nos livros – saber livresco
do qual eles desconfiam muito e que consideram volátil demais, sempre
escapando da memória e exigindo a prática constante da leitura. E, no
meu próprio trabalho de campo, essa oposição hierárquica é sempre acio-
nada, opondo os que “nasceram em um terreiro” àqueles que “aprende-
ram nos livros”. Mais do que isso, como observou Serra (1995, p. 124),
“basta conversar” com o povo-de-santo “para perceber que não recebem
sem crítica tudo quanto se diz ou escreve a respeito do candomblé”.
Em lugar de projetar nossas teorias e, sobretudo, nossa vivência do
campo intelectual sobre o mundo das religiões de matriz africana no
Brasil, eu preferiria, bem ao contrário, tentar aprender o que for possí-
vel acerca dessas outras formas de relação com a prática da leitura e do
tratamento dos intelectuais. Como argumentei em outro lugar,
aquele que deseja aprender alguma coisa no candomblé sabe muito bem
[...] que deve tratar de ir reunindo pacientemente, ao longo dos anos, os
detalhes que recolhe aqui e ali, com a esperança de que, em algum mo-
mento, esse conjunto de saberes adquira uma densidade suficiente para
que com ele se possa fazer alguma coisa. (Goldman, 2005)
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Notas
*
Este texto faz parte de um trabalho em andamento, que retoma, após longa inter-
rupção e em novas bases, pesquisas sobre as “religiões africana no Brasil” iniciadas
há muito tempo. Nesse trabalho, ao mesmo tempo muito antigo e muito recente,
o pensamento de Roger Bastide sempre ocupou uma posição central em virtude,
creio, de uma potência de desterritorialização que lhe é própria. Assim, ao escrever,
em uma bela e mal compreendida frase, “africanus sum”, Bastide apontava para o
fato de que, independentemente de suas “origens”, nosso pensamento é sempre
capaz de se tornar outra coisa – devir-negro que faz que sua obra domine ainda o
campo dos estudos afro-brasileiros (para uma visão de conjunto de sua obra, ver
Peixoto, 2000). Versões deste texto foram apresentadas ano painel “Rethinking the
Foundations of Afro-Atlantic Anthropology” (no XXVIII Congresso Internacio-
nal da Associação de Estudos Latino-Americanos, Rio de Janeiro, 2009) e no Co-
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5
Deleuze (2002, pp. 11-2) distingue dois tipos de ilhas: “ilhas continentais são ilhas
acidentais, ilhas derivadas: elas se separaram de um continente, nasceram de uma
desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, elas sobreviveram ao engolimento
daquilo que as continha. As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora cons-
tituídas por corais, elas nos apresentam um verdadeiro organismo – ora elas sur-
gem de erupções submarinas, trazem ao ar livre um movimento subterrâneo; algu-
mas emergem lentamente, algumas, também, desaparecem e retornam, não se tem
tempo de anexá-las. Esses dois tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão teste-
munho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lem-
brar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estru-
turas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e
congrega suas forças para romper a superfície”. É tentador imaginar que os terrei-
ros-ilhas de Bastide começaram “continentais”, na medida em que nasceram de
uma separação de sua terra de origem, mas que, muito rapidamente, se tornaram
“oceânicos”, na medida em que adquiriram o poder de emergir de todas as partes e
em várias direções.
6
De fato, não é fácil permanecer impassível a formulações como “a macumba resul-
ta no parasitismo social, na exploração desavergonhada da credulidade das classes
baixas ou no afrouxamento das tendências imorais, desde o estupro, até, freqüen-
temente, o assassinato” (Bastide, 1971:, p. 414). Essas observações reaparecem por
diversas vezes, mas eu arriscaria dizer que, apesar de seu caráter claramente
etnocêntrico e racista, elas têm, do ponto de vista de seu autor, a função de ajudar
a defender ao menos algumas das religiões de matriz africana das perseguições e
dos preconceitos de que sempre foram alvo.
7
A questão decorre, evidentemente, do pressuposto historicista que orienta não ape-
nas Bastide, como praticamente todos os estudiosos das religiões de matriz africa-
na. Pois é difícil imaginar alguma razão para que candomblé, umbanda, macumba
e todas as inumeráveis formas dessas religiões que conhecemos não possam sim-
plesmente coexistir em lugar de uma dever necessariamente suceder a outra. Como
observei em outro lugar (Goldman, 2009, pp. 109 e 133), a “história” deve ser
compreendida apenas como a sucessão de devires entendidos como blocos de coe-
xistências virtuais-reais (ver Deleuze e Guattari 1980, pp. 536-7).
8
A lista seria longa demais. Mencionemos apenas Maggie, 2001; Dantas, 1989;
Capone, 2004; e, em especial, Fry, 1986.
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9
Hipótese menos gratuita na medida em que outros trabalhos de Boyer (1993a e,
principalmente, 1993b) são muito mais explícitos em relação a Bastide.
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e animais, lhe permite perceber que a distância que separa seres huma-
nos e não-humanos é contextual e não ontológica (p. 246).
A participação das mulheres na procriação, por exemplo, mudou ra-
dicalmente a constituição prévia dos homens-animais, transformando-
os nos homens dos quais descenderiam os Qom. Além disso, sua parti-
cipação foi também responsável pela finitude, pela morte, no momento
em que elas possibilitaram a corporização (p. 61). Segundo a interpreta-
ção da autora, o mito de origem da corporificação dos Qom representa
a legitimação de comportamentos, a prescrição de ações e a origem da
construção arbitrária do corpo sexuado (p. 62).
O aspecto da constituição corporal progressiva dos personagens
míticos é percebido por ela como representativo de uma noção de pes-
soa em devir, resultado da agência das extensões de outros corpos-pes-
soa em um dado corpo-pessoa (p. 64). Em suas palavras, “L’homme a
adopté le regard de l’animal humanisé ainsi que sa perception du monde,
ses émotions et ses pensées. Quant aux animaux nés de ces entités, ils ont
perdu – tout au moins – la faculté du langage articulé” (p.54).
A vida social dos personagens míticos é também explorada pelo traba-
lho que aborda o modo como os mitos tematizam os hábitos ancestrais
de moradia, caça, pesca, hábitos alimentares, parentesco, ciclo vital, hi-
erarquias sociais, bem como a possibilidade ou não de comunicação
entre humanos e não-humanos (p. 65). Nesse sentido, os Qom não são
produto de uma única criação, mas resultam de uma transformação que
gera pessoas diferenciadas dos outros seres existentes pelo corpo (p. 72).
Após a interpretação das narrativas míticas, seguem reflexões sobre a
perspectiva Toba do cosmos, ressaltando a continuidade existente entre
as entidades que o habitam. Para tanto, tornam-se aspectos importantes
a geografia dos mundos habitados, a qualidade metamórfica dos corpos
e a sociedade dos não-humanos.
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sur les humais, d’exercer une influence sur leur volonté et déterminer des actions
sont les signes centraux de la différence entre humains et non-humais. (p. 90)
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Les stratégies et les démarches mises em oœvre pour résoudre les situations de
tension révèlent la manière dont le conflit fait partie de la vie des Qom et se
concrétise dans des situations où l’endocannibalisme symbolique, la differénce
sexuelle, les réclusions féminines et les rapports de tension avec les Blancs tra-
duisent moins une harmonie généralisée qu’un rapport de tension constante.
(p. 139)
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Pendant la gestation, par des rapports sexuels répétés, les parents confèrent à
leurs enfants une partie de leurs pensées et de leur apparence physique; préa-
lablement aux premières règles, la jeune fille assimile les valeurs qui feront d’elle
une femme et, au cours du rituel, elle absorbe les attributs des autres personnes.
(p. 167).
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Notas
1
O sistema de parentesco pode ser caracterizado pela diferenciação entre as termi-
nologias de parentesco de afins e cognatos, pela oposição entre cruzados e parale-
los, e ainda por uma terminologia de tipo havaiana para G0 e de tipo esquimó para
G1 (p. 34).
2
A pele, humana ou não-humana, é compreendida como um invólucro que não
corresponde a um limite da pessoa (p. 89).
3
Os xamãs têm acesso visual e cognitivo ao princípio vital (nqui’i) dos não-huma-
nos, já que seu nqui’i viaja por diversos mundos e conhece a natureza dos não-
humanos. Guardando sua posição de guerreiro, ele obtém dos não-humanos can-
tos terapêuticos, conselhos sobre plantas medicinais e sobre as causas da doença de
um paciente (p. 120).
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CABALZAR, Aloisio. Filhos da Cobra de Pedra: organização social e tra-
jetórias tuyuka no Rio Tiquié (Noroeste Amazônico). Prefácio de Stephen
Hugh-Jones. São Paulo, Edunesp/ISA; Rio de Janeiro, Nuti, 2009,
pp. 362 il.
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mais de 1.200 pessoas (do lado brasileiro) – foi baseada numa convi-
vência de quase vinte anos do autor na região do Rio Tiquié. Em 1995,
ele defendeu uma dissertação na Universidade de São Paulo, da qual o
livro é uma versão revisada.
Na Introdução, Cabalzar faz uma breve apresentação dos Tuyuka e
dos demais grupos linguísticos falantes do tronco Tukano Ocidental.
Também apresenta aportes de sua história de contato no Brasil desde os
primeiros registros no século XVIII, enfatizando o projeto colonial, o
ciclo extrativista de látex que assolou a região, a implantação das mis-
sões salesianas no início do século XX, a descoberta de ouro no Rio Tra-
íra na década de 1980 e o surgimento do movimento político indígena,
fundamentado na luta pela demarcação das terras indígenas, constante-
mente ameaçadas pelos projetos desenvolvimentistas e por empresas
mineradoras. A homologação das terras em 1995 criou condições para
um projeto indígena de desenvolvimento local que contou com inicia-
tivas como a criação da Escola Tuyuka Utapinopona em 1998, experiên-
cia de auto-gestão escolar indígena da qual o autor participou como as-
sessor. É apresentado também um levantamento sociodemográfico
sucinto dos Tuyuka no Brasil, com informações detalhadas sobre cada
um dos territórios ocupados.
O primeiro capítulo, “Estrutura social do Uaupés: modelos e ques-
tões”, objetiva fazer uma necessária revisão bibliográfica dos principais
trabalhos realizados entre os Tukano Orientais que abordaram o tópico
da organização social: Irving Goldman (Cubeo), Artur Sorensen, Jean
Jackson (Bará) e Christine Hugh-Jones (Barasana), Kaj Arhem (Maku-
na) e Janet Chernela (Wanano). Cabalzar destaca as principais categorias
utilizadas por cada autor e, em seguida, dedica-se a uma leitura apro-
fundada de dois estudiosos que elaboraram comparações entre o Uaupés
e outras áreas etnográficas: Joanna Overing e Eduardo Viveiros de Cas-
tro. O debate empreendido com esses autores leva Cabalzar a defender
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Ao utilizar essa citação como tema central de seu livro, Francisco Ortega
tenta apresentar um ponto em comum que interligue os quatro ensaios
que o compõem. A contemporaneidade, afirma o autor, é marcada por
um excessivo culto ao corpo (o que caracteriza o que ele chama de cul-
tura somática), como se pode notar nas diversas práticas, discursos e tec-
nologias que investem no corpo humano, seja para controlá-lo, seja para
modificá-lo, seja para visualizá-lo de uma forma mais completa. Entre-
tanto, apesar dessa intensa valorização e da tentativa de compreensão
total do corpo, este escapa de uma delimitação conceitual precisa, visto
ser uma experiência incerta, ambígua e de difícil apreensão.
Essa ambiguidade se realça com o paradoxo contemporâneo de ha-
ver tanto uma incitação quanto uma negação do corpo. Essas mesmas
práticas e discursos que investem no corpo humano tendem a um certo
“pavor à carne”, uma vez que as principais representações do corpo e
modelos de estética corporal remetem a um corpo ideal, modificado por
meio de tecnologias, que caracteriza o que Ortega denomina de “rejei-
ção corporal da corporeidade”.
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Mariana Paladino1
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Notas
1
Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro; pesquisadora associada do La-
boratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento, do Museu Na-
cional, UFRJ; professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Fe-
deral Fluminense.
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NEVES, Walter Alves & PILÓ, Luís Beethoven. O povo de Luzia: em
busca dos primeiros americanos, São Paulo, Globo, 2008, pp. 336.
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a megafauna ainda presente ali no final da última era glacial, sem, con-
tudo, ter dependido dela como fonte de recursos, como aconteceu na
América do Norte.
Com essas e outras proposições é que o livro pretende divulgar para
o público não especializado conceitos sobre evolução humana, ocupa-
ção da América, e, acima de tudo, explicar como o estudo do povo anti-
go de Lagoa Santa vem influenciando os rumos da arqueologia nas
Américas. Com linguagem fácil e tentando sempre se aproximar ao
máximo do público leigo, os autores passam pelos bastidores de todo o
processo científico que teve como ápice a divulgação de Luzia pela mídia
nacional e internacional a partir de 1999. Assim, trazem à tona todos os
percalços pelos quais passa uma descoberta antes que ela chegue ao gran-
de público, mostrando, definitivamente, que no Brasil também pode se
fazer pesquisa de ponta. É assim que Neves e Piló iniciam seu livro.
No primeiro capítulo, fornecem aos leitores o conhecimento cientí-
fico necessário para se compreender o trabalho na área, mas sem tornar
a leitura maçante aos mais experientes. Abordam de maneira resumida,
mas suficiente, conceitos sobre genética e evolução, derrubando alguns
mitos criados a esse respeito, atendo-se posteriormente à evolução da
nossa própria linhagem, os hominíneos. Este cenário abrange desde a
nossa diferenciação dos chimpanzés, partindo de um ancestral comum,
até as adaptações anatômicas e comportamentais que proporcionaram o
surgimento do Homo sapiens e sua expansão pelo mundo, culminando
na chegada às Américas.
É sobre a colonização do Novo Mundo que o capítulo 2 mantém seu
foco. Nele, os autores resumem os trabalhos mais importantes com re-
lação à chegada do homem ao nosso continente, trabalhos esses pratica-
mente monopolizados pelos cientistas norte-americanos. Sobre isso, é
interessante salientar o parêntesis que fazem com relação à “receita per-
feita para a falta de êxito” da arqueologia latino-americana, nas páginas
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gião nos últimos 12 mil anos; e, por fim, confirmar ou não a tese da
convivência entre o homem e a megafauna extinta em Lagoa Santa.
Dessas metas, a última foi a que talvez trouxe os resultados mais
reveladores. Foi confirmada, através da datação por C14, a contempora-
neidade entre a megafauna extinta e a população humana lagoassantense.
Mas, por enquanto, não foi encontrado nenhum registro de que tenham
interagido de alguma forma. Ao contrário do que se observa na cultura
Clóvis na América do Norte, Luzia e seus contemporâneos davam pre-
ferência à coleta, sendo a caça limitada aos pequenos animais que ainda
hoje existem na região. Aliás, esta acabou se tornando uma importante
evidência de que a matança em massa não foi responsável pela extinção
da megafauna na América do Sul.
Em 2005, o projeto atingiu seu ápice, ao reunir 81 crânios de Lagoa
Santa medíveis e bem datados. Suas idades ficaram entre 9 e 7,5 mil
anos (com exceção de Luzia) e todos mostraram semelhanças morfoló-
gicas com populações australo-melanésicas. Já não havia mais como ne-
gar a hipótese de Neves e associados: a América foi realmente coloniza-
da minimamente por uma leva migratória anterior àquela que deu
origem à cultura Clovis; mais ainda, a população siberiana responsável
por essa migração ainda não tinha traços mongoloides. Uma batalha foi
vencida. Superando todos os obstáculos e as dificuldades para conseguir
emplacar uma descoberta científica, logrou-se publicar tais conclusões
no PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences), validando
definitivamente todo o trabalho feito durante os anos anteriores (Neves
& Hubbe, 2005).
No penúltimo capítulo passamos a entender não só a biologia do
povo de Luzia, mas também seus costumes e seu modo de vida. Os au-
tores tentam reconstruir o cotidiano desse povo, tendo em vista o deba-
te entre as duas linhas teóricas da antropologia cultural: a escola simbo-
lista, pregando que “o comportamento humano depende única e
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KLEIN, Richard G. The Human Career: Human Biological and Cultu-
ral Origins, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2009,
pp. 989.
Walter Neves
Universidade de São Paulo
Tendo em vista que sua tarefa não é nem um pouco fácil, Klein ado-
tou uma estratégia bastante inteligente para dar conta dela: novas edi-
ções de seu livro são colocadas no mercado a cada dez anos, sempre com
um aumento expressivo no número de páginas, diga-se de passagem.
A primeira edição (1989) contava com 524 páginas; a segunda (1999),
com 810; e a presentemente resenhada (2009), com 989 páginas. Nun-
ca antes um livro texto na área da paleoantropologia conseguiu reunir
em seu bojo tamanha densidade de informações. Milford H. Wolpoff
tentou fazer o mesmo em seu Paleoanthropology (1980/1999), mas deu
com os burros n’água.
Aqui tomo a liberdade de fazer um alerta: aqueles interessados em
utilizar The Human Career em sala de aula devem se assegurar de que
dispõem de fato de uma erudição mínima em Biologia Evolutiva, Prima-
tologia, Antropologia Biológica, Paleoantropologia, Arqueologia e Pré-
História Geral, para dar conta do recado… Posso falar com autoridade
porque, no segundo semestre de 2009, utilizei-o como leitura principal
no curso de pós-graduação sobre evolução humana avançada que ofere-
ço, de forma irregular, no Instituto de Biociências da Universidade de
São Paulo. Quase joguei a toalha... E olha que tenho trinta anos de ja-
nela perambulando pela maior parte das áreas acima!
Os Capítulos 1 e 2 são, de longe, os mais difíceis de serem atravessa-
dos, tendo em vista a enormidade de tecnicalidades envolvidas. Para um
público de Ciências Sociais, são tão chatos quanto absolutamente ne-
cessários. No primeiro, Klein, ainda que de forma modesta, apresenta
alguns conceitos básicos sobre evolução biológica, classificação taxonô-
mica e nomenclatura.
Entre outras efemérides planetárias, o autor apresenta com bastante
elegância os dois modos/tempos de evolução biológica até o momento
conhecidos: gradualismo filético (leia-se demorado) e saltatório (leia-se
rápido), este último também encontrado na literatura sob a etiqueta
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pede palmigrado. Richard Klein teve muita sorte da nova edição de seu
livro ter saído antes desse pandemônio...
Voltando ao texto resenhado (se não redesenhado) e deixando de lado
os saelântropos e os orrorins da vida (pelo menos da minha), nove espé-
cies de hominínios Plio-pleistocênicos são definidas e apresentadas de
forma detalhada pelo autor: Ardipithecus ramidus (4,51 a 4,32 Ma3);
Australopithecus anamensis (4,2 a 3,9 Ma), Australopithecus afarensis
(3,7 a 2,8 Ma), Kenyanthropus platyops (3,5 a 3,2 Ma), Australopithecus
africanus (3,0 a 2,5 Ma), Australopithecus garhi (2,5 Ma), Paranthropus
aethiopicus (2,7 a 2,3 Ma), Paranthropus boisei (2,3 a 1,2 Ma), Paranthro-
pus robustus (1,8 a 1,0 Ma) – e, ainda sob suspeita, Ardipithecus kadabba
(5,8 a 5,2 Ma) e Australopithecus bahrelghazali (3,6 a 3,3 Ma), este últi-
mo, para muitos, apenas uma variedade centro-norte de A. afarensis.
Basicamente, há ainda problemas sem solução com todas essas espé-
cies, sendo a mais notória a relação de ancestralidade–descendência en-
tre elas. Outro ponto nevrálgico levantado por Klein – corretamente, a
meu ver – é que, em vários pontos do nosso percurso evolutivo, tudo
parece indicar que houve mais de uma linhagem hominínea no planeta
ao mesmo tempo. Algumas até vivendo muito próximas, geograficamen-
te. Neste ponto, sempre me lembro daquela maldita figurinha mundi-
almente conhecida de um macaquinho atrás do outro, ficando cada vez
mais bípede, como se a evolução fosse necessariamente gradual e linear.
A figura só fica pior, se é que isso é possível, quando algum engraçadi-
nho coloca no final da fila um executivo, uma mulher, um travesti, ou
alguém curvado sobre um computador... Tem pai que é cego! Portanto,
nossa evolução foi muito mais uma sucessão de moitas, do que uma ár-
vore com apenas alguns galhos.
Essa pletora de possibilidades tomou proporções alarmantes entre 3
e 2 milhões de anos atrás, quando também surgem no registro fossilífero
os primeiros representantes do gênero Homo: habilis e rudolfensis. Este
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uma abstração, e muita coisa teve que ser varrida para baixo do tapete (e
um bem grande) pra ideia emplacar. De fato, os erectus javaneses apresen-
tam uma enorme robustez e um grau de angulação do neurocrânio que
salta aos olhos de qualquer pessoa, em especial o espécime Sangiran-17.
Mas os igualmente clássicos espécimes chineses, apesar de asiáticos, apre-
sentam formas muito menos dotadas, com toros supraorbitais e occipitais
mais delicados. Na África a coisa também não é simples: apesar de a mai-
oria dos espécimes apresentar formas mais gráceis e menos angulosas, o
OH-09, datado por volta de 1,2 milhão de anos, é extremamente robus-
to, com toros superproeminentes e uma calota angulozérrima.
Dmanisi agregou confusão ao caos. Também, o que esperar de um
Paraguai comunista? Datados de 1,75 milhão de anos, em pleno Cáu-
caso, representam os primeiros hominínios que deixaram a África em
direção ao Oriente e quiçá, ao Ocidente Europeu. Ao todo, já foram
encontrados cinco crânios numa área de escavação que pouco supera o
tamanho de uma cozinha (de pobre). Dos quatro já relatados na litera-
tura, um é muito grácil e parece lembrar o Homo habilis; outros, o fina-
do Homo ergaster, e dois, extremamente robustos, o Homo erectus. Para
desespero total das estrelas que vêm dominando o mundo da paleoantro-
pologia há décadas (leia-se norte-americanos e ingleses) e que, portan-
to, pontificaram sobre tudo de importante que foi encontrado na Áfri-
ca nas últimas quatro décadas, a distribuição espacial (horizontal e
vertical) dos espécimes encontrados em Dmanisi não deixa margem a
dúvidas quanto a pertencerem a uma mesma população local, portanto,
a uma mesma espécie. Saia mais justa é impossível! Vão ter que revisar o
maxima cagacio que fizeram na África. Mas vai demorar... As estrelas
demoram muito pra morrer! Klein é econômico sobre o assunto e, como
todo mundo mais, incluindo os georgianos, opta por alocar os fósseis
do Cáucaso na espécie Homo erectus (senso lato), reforçando a ideia da
extinção por decreto do Homo ergaster.
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no planeta. Como os demais capítulos, este começa com uma breve his-
tória das descobertas dos neandertais, sobretudo os da Europa, sem ne-
gligenciar, contudo, os do Oriente Médio, ou seria Oriente Próximo?
Whatever... Aquela faixa estreita de areia no extremo oriental do Medi-
terrâneo, onde as pessoas cismam de não se entender desde 120 mil anos
atrás. No capítulo se aprende, logo na entrada, que até hoje já foram
encontrados restos de aproximadamente 350 espécimes neandertais,
oriundos de cerca de setenta sítios no Velho Mundo.
Até recentemente, dizia-se que a distribuição dos neandertais era cir-
cunscrita à Europa e ao Levante (agora achei a palavra certa), com ape-
nas uma exceção: Teshik-Tash, no Uzbequistão. Há alguns anos, entre-
tanto, foram encontrados restos neandertais em Okladnikov na Rússia,
ao sul da Sibéria, mostrando que a distribuição desses hominínios pode
ter sido bem mais extensa do que imaginávamos até há pouco. Mas sem-
pre seguindo o frio. Por isso, sempre achei que sobre as geladeiras deve-
ríamos ter um neandertalzinho de louça e não um pinguim. Nada con-
tra os pinguins, mas pelo menos estaríamos homenageando algo mais
próximo de nós. Apesar de os sítios neandertais se concentrarem entre
70 e 30 mil anos atrás, Ehringsdorf, na Alemanha, e Biache-Saint-Vaast,
na França, apontam para antiguidades que beiram 190 mil anos.
Cerca de dez páginas são gastas com a apresentação das peculiarida-
des morfológicas (cranianas e pós-cranianas) dos neandertais e a inter-
pretação desse conjunto de traços que apontam, todos, para a mesma
direção: adaptação ao frio. Klein titubeia quanto a esta interpretação no
que diz respeito ao crânio. Aqui uma nova digressão se faz necessária:
nos últimos cinco anos, alguns autores bem dotados de domínio mate-
mático, e que se dedicam ao que chamamos de Genética de Populações
(esconjura!), vêm mostrando que a esmagadora maioria da variabilidade
craniana atual do homem moderno deve-se não à seleção natural im-
posta pelos distintos climas a que nos submetemos nos últimos milha-
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res de anos, mas sim à deriva genética, neutra. Nesse sentido, pode-se
dizer que a evolução da morfologia craniana entre os modernos tem se
dado de forma randômica e não por razões adaptativas, como críamos
desde sempre, sobretudo com base nos estudos clássicos de L. L. Cavalli-
Sforza e associados no final dos anos 1970 e início dos anos 1980.
A única exceção nesse quadro seria a morfologia mongoloide, esta, sim,
produto da exposição do Homo sapiens a frio intenso.
Tal abordagem, quando aplicada à evolução hominínea como um
todo, revelou surpresas, entre elas a de que a morfologia craniana
neandertal surgiu não pela exposição desses hominínios ao frio intenso
da Europa glacial, mas sim por simples e bocejante deriva genética. No
máximo dois ou três paleoantropólogos (e suas respectivas progenitoras)
acreditam nessa lenga-lenga. Mas, obviamente, ninguém ousa questio-
nar os gênios da matemática por trás dela. Acuado, tadinho, Klein cai
como um patinho nessa conversa e se transforma num Frankenstein: a
morfologia craniana neandertal teria sido fixada por deriva (apesar de
atender magnificamente bem as necessidades do frio...), ao passo que a
morfologia pós-craniana (atarracadézima9), essa sim, teria sido fixada por
seleção ao frio.
Quanto à origem dos neandertais, ninguém mais tem dúvidas hoje
em dia: os fósseis encontrados em Sima de los Huesos, Atapuerca,
Espanha, inicialmente datados em 300 mil anos e recentemente reda-
tados para 600 mil anos, para o desespero geral da nação, mostram uma
clara transição entre heidelbergensis e neanderthalensis no norte da Euro-
pa Ocidental. Vivaldinos, os espanhóis logo sugeriram que o último an-
cestral comum entre neandertais e nós não seria o heidelbergensis, como
desejam todos, menos eles, mas sim o tal do antecessor discutido no ca-
pitulo anterior. De fato, os hominínios encontrados em Sima de los
Huesos mostram vários dos traços que mais tarde serão encontrados de
forma totalmente fixada entre os neandertais. Entre eles, a migração da
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sentado por mim no próximo capítulo. Aqui me restrinjo a dizer que tal
explosão de criatividade coincidiu com as primeiras manifestações de
elaboração simbólica por parte de nossa espécie.
Em outros termos, só nos tornamos o que somos hoje depois que
entrou em nossa mente um módulo de significação (atribuição de valo-
res simbólicos às coisas). Nesse sentido, desde o Capítulo 5, Klein
desqualifica com especial crueldade qualquer evidência de manifestação
simbólica antes de 50 mil anos atrás. Não interessa a seu modelo que
essas evidências antigas de atribuição de significado abstrato às coisas se
mantenham de pé. Exemplos: a grande simetria e “beleza” dos macha-
dos de mão acheulenses a partir de 600 mil anos atrás, os possíveis se-
pultamentos ritualizados dos neandertais, o uso de osso como matéria-
prima antes do Paleolítico Superior, bem como a existência de
manifestações estéticas e artísticas antes de 50 mil anos. É atendendo
esta agenda que os últimos quatro capítulos do livro foram urdidos.
Vamos ao penúltimo.
O Capítulo 7 trata do surgimento de nossa espécie, o Homo sapiens,
no planeta. Bem menos portentoso que os anteriores, tem um certo sa-
bor de déjà vu, tendo em vista que no capítulo anterior Klein adiantou
muitas das discussões aqui tratadas. Como os demais capítulos, o pre-
sentemente resenhado apresenta uma pequena história das descobertas
daquilo que Klein denomina homem completamente moderno (fully
modern man). Grande parte desse histórico é dedicado aos Cro-Magnon
da Europa, mas Klein adicionou também uma tabela muitíssimo útil
com os fósseis modernos de outros continentes até o momento conheci-
dos. Após uma breve caracterização da morfologia craniana e pós-crania-
na dos primeiros modernos completos, o autor apresenta as duas hipóte-
ses ainda disponíveis no mercado para a origem de nossa espécie: a mo-
nogênese africana (o modelo Out of África) e o modelo multirregional.
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Como não poderia deixar de ser, ele apresenta farto material sobre o
primeiro (incluindo as evidências derivadas da diversidade do DNA atual
e fóssil da humanidade), reduzindo o segundo a migalhas. Sou absolu-
tamente favorável ao modelo da monogênese africana. Minhas próprias
descobertas sobre os primeiros americanos indicam que também os pi-
oneiros do Novo Mundo exibiam uma morfologia tipicamente africa-
na. Na verdade, quanto mais conhecemos os primeiros modernos com-
pletos de toda parte do mundo, mais nos convencemos de que entre 50
e 10 mil anos atrás todo o planeta estava ocupado por uma cepa huma-
na pan-africana, em termos morfológicos, craniano e pós-craniano.12
Os Cro-Magnon, por exemplo, apesar de terem vivido sob frio in-
tenso na Europa, apresentavam tamanho e proporções corporais (fenó-
tipo) similares aos de seus ancestrais africanos. O processo de raciação
em nossa espécie parece bastante recente. Os mongoloides, por exem-
plo, não ultrapassam muito a barreira do Holoceno. Talvez por isso os
geneticistas e os biólogos moleculares debatam há décadas a existência
ou não de raças humanas. Mas, voltando à discussão principal, e Klein
o reconhece, o Sudeste Asiático continua sendo um espinho na goela
do modelo que defende. O inferno de Java! E não estou falando do
Cracatoa...
Sob o título “Arqueologia e origens dos humanos modernos”, ele dis-
cute novamente a questão da explosão da criatividade no Paleolítico
Superior. É aqui que o texto se torna mais repetitivo. Vou poupar o lei-
tor desta resenha o máximo que puder (pelo menos bem mais do que
Klein poupou a mim e a meus alunos) da redundância. Vamos ao Paleo-
lítico Superior, de A a Z. A indústria Musteriense foi substituída em
todo o planeta (exceto no Extremo Oriente, onde nenhum esquema clas-
sificatório funciona), por volta de 45 mil anos atrás, por uma indústria
lítica muito mais avançada em termos tecnológicos. Esta indústria é de-
nominada, numa enorme falta de criatividade por parte dos pré-historia-
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da a contento tão cedo, uma vez que ela passa necessariamente por uma
melhor compreensão do que aconteceu no período no leste da África.
Após uma longa discussão sobre o surgimento do Homo sapiens, Klein
termina o capítulo dando uma palhinha sobre a ocupação das partes
mais remotas do globo: Sibéria, Austrália e América. No que se refere a
essa última, é digno de nota (e eu mereço) a menção que faz a meu tra-
balho (junto com diversos associados) sobre a morfologia craniana dos
primeiros sul-americanos, em especial os de Lagoa Santa, e de como es-
ses estudos têm apontado para novas possibilidades a respeito do povo-
amento do Novo Mundo. Klein, muito diferentemente de seus colegas
norte-americanos, capta um detalhe fundamental no “Modelo dos Dois
Componentes Biológicos Principais”, por mim proposto no final dos
anos 1980 junto com Hector Pucciarelli, da Universidad Nacional de
La Plata: o fato de os primeiros americanos apresentarem uma morfo-
logia craniana muito similar à hoje encontrada entre africanos e austra-
lianos não significa, de forma alguma, que o modelo supõe migrações
transoceânicas para explicar tal similaridade. Como ele muito bem sa-
lienta, populações com morfologia similar à dos primeiros americanos,
assim como dos africanos e australianos atuais, estavam também pre-
sentes no nordeste da Ásia, de onde muito provavelmente se expandi-
ram em direção ao Novo Mundo.
No capítulo final (Capítulo 8), o autor apresenta uma sinopse das
principais discussões apresentadas nos anteriores. Sabiamente opta por
problematizá-las de maneira sistemática, em vez de concluí-las. Quan-
do o faz, ele se refugia no conservadorismo. Pelo menos assim concluí-
ram meus alunos. Dessa sinopse eu icei alguns gargalos que me parecem
mais limitantes. Vamos a eles:
1. No que se relaciona aos primeiros hominínios, identifiquei dois
gargalos, sem cuja solução ficaremos andando em círculos por um bom
tempo: o primeiro se refere à existência ou não de linhagens símias bí-
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Notas
1
Ver WHITE, T.D. et al. (2009), Ardipithecus ramidus and the paleobiology of early
hominids, Science, vol. 326:75-86.
2
Leia-se: caminhar com o tronco inclinado sobre quatro membros, com os mem-
bros anteriores apoiando-se no solo sobre os nós dos dedos das mãos.
3
Ma: milhões de anos.
4
Digo corajosamente tendo em vista que é mais fácil, hoje em dia, encontrar um
urso panda na Avenida Paulista, do que uma árvore hominínia completa na litera-
tura especializada.
5
O Ardi tinha até o dedão do pé divergente, como gorilas, chimpanzés e organtotangos.
6
Falo com propriedade, porque lá estive em 2002 e, entre outras coisas, pude teste-
munhar mais um crânio de 1,75 milhão de anos sendo removido do sedimento.
Foi um dos momentos mais emocionantes de minha carreira.
7
O Olduvaiense e o Acheulense são também conhecidos, na África, como Idade da
Pedra Antiga (Early Stone Age).
8
Lista ou relação de fósseis de uma espécie.
9
Pense numa tartaruga ninja.
10
Na África, o Musteriense é denominado Idade da Pedra Média, do inglês Middle
Stone Age.
11
Na África, o Paleolítico Superior é denominado Idade da Pedra Tardia (Late Stone
Age).
12
Sobre o assunto, ver o recente e excelente artigo de HARVATI, K. (2009), “Into
Eurásia: A geometric morphometric re-assessment of the Upper Cave (Zhoukoudian)
specimens”, Journal of Human Evolution, vol. 56:751-63. Disponível em: <http://
www.sciencedirect.com/science/journal/00472484/57>. Acesso em nov. 2011.
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Entrevista
A aculturação é um objeto legítimo
da Antropologia
Entrevista com Peter Gow
RA: Nas suas primeiras palestras da década de 1980 na USP você já domi-
nava perfeitamente a língua. Como aprendeu português?
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Buryat, habitantes das ilhotas. Eles dois não tinham vergonha do exo-
tismo na Antropologia, porque de fato tinham visto coisas incríveis.
Aquele filme do Stephen Hugh-Jones sobre os Barasana, com aqueles
missionários do Summer Institute of Linguistics ensinando coisas ridí-
culas, do tipo “cristianismo para os coitados dos Barasana”.
Também Caroline Humphrey fez um trabalho com os Buryat em
uma fazenda coletiva soviética, no meio dos negócios do “uncle Josef
Stalin”. Ela esteve com esses Buryat geniais que faziam parte da União
Soviética. Isto tudo para um jovem escocês foi um mundo. Porque, do
lado de cá os Estados Unidos, e do lado de lá a União Soviética. Eu não
tinha essa ideia: “Ah! Os antropólogos têm que ser mais sérios”. Porque
a situação política foi muito séria, e para mim a Antropologia foi
uma possibilidade de não ser muito sério, com os Barasana e os Buryat.
E o pensamento de Lévi-Strauss tem a ver com isso; em O pensamento
selvagem (1962b), é muito preciso o que ele fala sobre uma seriedade
como essas.
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va lá, eles tinham muito medo de mim. E tinham sua razão, porque não
se sabia de nada. Mas eles me consideraram – suponho, já que eles nun-
ca me falaram disso – um pouco interessante, porque fui muito novo,
tinha perdido o pai, estava viajando perdido no mundo, e eles pensa-
ram que eu poderia ensinar algumas coisas para eles do meu mundo.
Eu morava na casa desse casal, Don Maurício Fasabi e a que chamo
de Yeyê Clotilde Gordón, ou seja, a minha irmã mais velha. Eles me
receberam de um jeito muito bom, o que obviamente não entendi. Mas,
quando hoje penso, acho que tinham me visto quando eles tomavam
ayahuasca, eles eram xamãs. Isso é uma coisa muito mística, ou, na lin-
guagem da gente, eles haviam previsto a possibilidade de neste mundo
existir brancos bons que poderiam de fato ensinar e explicar as coisas
para eles. E, então, os velhos me receberam muito bem.
Mais ou menos. Os filhos mais novos do casal mais velho que me rece-
beu tinham muito medo de mim, e eu deles. Mas, na época, não tinha
consciência desse medo, só anos depois reconheci. E, então, foi muito
difícil, mas, pouco a pouco – isso é uma coisa muito Piro –, eles ficaram
olhando pra mim, olhando. A velha finada Yeyê Clotilde Gordón – que
passei anos achando que não falava espanhol, já que só falava piro comi-
go e eu não entendia nada no começo – falava e repetia em piro quando
eu não entendia. Muito tempo depois, descobri que ela falava perfeita-
mente o espanhol.
Mais que isso: a língua e o que eles chamam de “nshinikanchi”, que tra-
duzo como uma informação, o dever de prestar atenção quando uma
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pessoa está falando. Bem, pode ser que você não entenda, mas tem que
prestar atenção quando a pessoa está falando. E, então, você vai prestan-
do atenção, você vai aprendendo. Eu tinha um modelo de que, para
aprender a língua, tem que ir para o colégio. Não, eles me ensinaram
que o que você precisa fazer é prestar atenção quando as pessoas estão
falando, e assim você vai aprender. Como o português, que eu aprendi
na rua, prestando atenção quando os brasileiros estavam falando. As
primeiras palavras que eu aprendi em português com uma amiga minei-
ra eram: “Vamos fofocar”. Eu perguntei: “Fofocar? O que é fofocar?”.
Ela falou: “Falar mal dos outros. Vamos?”. É assim que a gente apren-
de, foi como aprendi piro, ainda que ache que não falo piro. Os Piro
acham muito esquisito quando eu falo a língua deles, acham muito es-
quisito um homem de fora falando sua língua. Mulher é outra coisa,
mulher pode.
No trabalho de campo, também aprendi o espanhol de lá, que é
muito diferente do espanhol que tinha estudado no colégio. Aprendi
piro, ashaninka, quéchua, amawaka, yaminawa e também português,
porque tudo estava lá. Tenho estudantes que fazem trabalho de campo
com os povos de língua pano e ficam totalmente surpresos porque en-
tendo muito da língua dos Kaxinawa e Yaminawa. Estive no Chaco re-
centemente com meu ex-aluno Rodrigo Villagra Carron7, que me levou
para conhecer o povo Sanapana e Angaité. Eles falam guarani, angaité e
enxet, e não dá pra entender nada. Mas, no Urubamba, quando as pes-
soas estão falando ashaninka, entendo um pouco, se prestar muita aten-
ção: “Ah, tá falando disso...”. Só ficando assim “calado e escutando”.
Aprendi isso em casa. Na Universidade de Cambridge. conheci aquela
mania dos ingleses de não ficar calado. Tem que ficar falando, falando,
em vez de escutar... (Será preconceito?)
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clos, tudo isso. É, sim, mas de fato é muito naïf. Tem uma ingenuidade
que acho muito boa: repeti o que eles tinham me falado. Mas, quando
eu comecei a escrever o livro sobre mito (An Amazonian Myth and its
History, 2001), tinha esse problema, porque tinha que falar sobre os Piro.
Parece que são dois povos totalmente diferentes, mas são somente dois
lados da mesma coisa. Quando você fala da vida cotidiana, eles são de
sangue misturado, mas quando você fala do mito, eles são Piro. Porque
o mito foi o Piro que contou.
Agora estou terminando outro livro que é exatamente sobre acultu-
ração. Estou querendo resgatar a noção de aculturação para nós. Por-
que, se você verifica a história daquela palavra, os alemães a usavam para
explicar o porquê de todas as culturas amazônicas serem muito parecidas.
Todas têm macaxeira, mandioca, rede, canoa, tudo isso... Eles chamaram
isso de aculturação. Só depois, nos Estados Unidos, é que o conceito de
aculturação virou um apelido para “índio fodido”, e desde então essa
palavra ficou com uma conotação ruim, o nome de um objeto ilegítimo
da Antropologia. Mas eu quero resgatar essa palavra para dizer: “Não
é ilegítimo, não”. É uma coisa que é muito antiga e muito interessante.
O problema da aculturação não é o conceito em si, é o uso do conceito.
Sim, gosto muito do trabalho de Margaret Mead, mas ela escreveu aquele
livro sobre os Omaha que, de fato, é totalmente nojento. É impressio-
nante que Margaret Mead, tão consciente sobre raça e gênero, possa ter
escrito um livro super-racista sobre uma comunidade indígena dos Es-
tados Unidos. Dá vergonha ler esse livro, The Changing Culture of an
Indian Tribe (1932). Se não me engano, tem pseudônimo e tudo o mais,
uma coisa horrível. Eu li, não entendi e achei totalmente horrível, mas
se você ler esse livro agora, no contexto do trabalho dela, a problemática
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da Margaret Mead naquele livro é por que esse povo Omaha não está
virando americano.
Sempre achei muito esquisito que um país racista como os Estados
Unidos tenha a ideia de que índio tem que virar branco. Índio pode
fingir ser branco, mas índio parece índio. Índio que parece mais como
branco é mexicano. É impossível, num país racista como os Estados
Unidos, uma antropóloga se esforçar para fazer os Omaha virarem bran-
cos. Os Omaha podem até pensar como brancos, mas têm pele de ín-
dio; e nunca vão ser aceitos como brancos, sempre vão ser índios. Pode-
se imaginar os Estados Unidos cheio de índios? Lindo, não é? Eu gosto.
São os mexicanos que estão pouco a pouco retomando aquele país.
Vou falar uma coisa um pouco estranha: vou falar bem do George
W. Bush. Com todos os problemas que ele tinha, conseguia lidar muito
bem com o México: falava espanhol, usava aquele chapéu. A gente de
fora achava muito ofensivo aquele modo “texan” dele. Mas, se você pen-
sar de onde vem toda aquela relação com as terras, não é da Europa,
vem do norte do México, da cultura de Chihuahua. Quando George
W. Bush está fazendo toda aquela performance que os europeus acharam
muito ofensiva, ele estava na verdade fazendo show para os mexicanos.
Agora temos Barack Obama, que é muito melhor. Mas Bush tinha
aquele jeito que não era da elite de Harvard, Yale, esse tipo de pessoa.
Os europeus achavam que ele fingia não ser de elite para agradar os bran-
cos pobres, mas, na verdade, ele estava fazendo isso para agradar os me-
xicanos, que são poderosos, já que são muitos. E para um presidente
americano mostrar que fala espanhol! Francês, superchique; espanhol,
língua proibida.
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Bom, isso de fato eu acho muito difícil. Tem aquele artigo lindo do fi-
nado mestre chamado “Reciprocidade e hierarquia” (Lévi-Strauss, 1944),
sobre os Bororo, que gostaria de levar muito a sério. Não sei como lidar
com isso. Muitas pessoas criticaram o meu trabalho, dizendo que ig-
noro a questão do poder. Alguém disse que meu livro Of Mixed Blood
tem uma visão poliana de lá. Voltei para o texto – geralmente não leio
meus próprios textos –, mas voltei e lá tem a descrição de um velho,
Virgílio Gabino, onde ele falava: “Os patrões tratavam a gente muito mal,
eles pegavam com pau”. Ele falava que ser “índio” era muito forte, eles
não usavam essa palavra não: “No Peru, a palavra ‘índio’ é muito forte”.
Reli essas passagens e me perguntei: como as pessoas podem ler esse li-
vro cheio de coisas para chorar e achar que ele tem uma visão poliana,
que não haja preocupação com o poder? O livro está cheio de coisas
horríveis, só que minha experiência com eles não tinha que ver com
isso, eles tinham otimismo. E, para mim, isso é muito lindo e muito
estranho; eles não estavam lá como coitadinhos.
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RA: Mas queríamos que falasse um pouco mais sobre as hierarquias internas
entre “povos misturados”. A questão de famílias que emergem do grupo, mas
que se distanciam e adotam uma posição de patrão frente ao próprio grupo.
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racial. No jogo dos Piro ele não era branco, era muito branco, porque,
quando ele ficava com raiva, batia nas pessoas, sovinava coisas só pra
ele. Ele entendia muito bem o negócio dos Piro.
Eu me pergunto por que é que ele entendia tão bem as coisas dos
Piro. Porque ele pensava como eles! Um branco, eu estou há quase trin-
ta anos pensando as coisas dos Piro e entendo muito pouco, mas o
Pancho Vargas parece que entendeu muito, justamente porque ele era
índio mesmo. Então aquela relação patrão/peão, “patron/peon”, pode
surgir dentro da sociedade indígena. Está lá, imanente, não precisa de
uma Roma. Roma é muito importante, mas os índios também têm
Roma dentro de si.
RA: O contraste com Roma tem rendido muito para você pensar, falar,
escrever nesse momento. E o chamado Império do continente sul-americano,
Cuzco?
Anos atrás, eu estava viajando pela Escócia com minha amiga canaden-
se Patty Peach e a gente chegou na Inglaterra. Passamos pelo Muro de
Adriano, que eu nunca tinha visto. Era um dia de chuva e vento. Subi
aquele muro de quase dois mil anos com o seguinte pensamento: “Eu
vou olhar pro norte! Vou olhar pra minha terra, dos meus antepassados! Vou
ficar orgulhoso olhando para lá!”. Subi, olhei para lá, mas o lado norte e o
lado sul do muro são iguais. Fiquei com raiva: “Os romanos achavam que
os meus antepassados eram selvagens”. Eu estava com uma consciência tipo
“Braveheart”; e a consciência dos escoceses tem muito mais a ver com
Trainspotting, filme que é um retrato incrível da Escócia, é uma inspira-
ção. Como um escocês pode fazer um retrato tão lindo de como é ser
escocês. Pois, naquele dia, diante do Muro de Adriano, em vez de pen-
sar os meus antepassados como valentes, eu pensei o pensamento que os
romanos tinham da gente, pensei a partir do lado de lá, isto é, de Roma.
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O finado mestre nos ensinou que temos de ter muito cuidado com as
ferramentas que vamos usar. É muito melhor usar as ferramentas que
ficam lá, do lado de fora, do que usar as ferramentas de Roma. Rapida-
mente você se perde usando esse tipo de ferramenta.
A gente sempre pensou Cuzco, o Império Inca, como uma versão de
Roma. No Império Romano, o grande negócio eram as fronteiras. O
que quer dizer o Muro de Adriano? Todos dizem que era para proteger
o Império dos selvagens de fora, que queriam entrar, roubar, estuprar
mulheres. Aqueles selvagens lá de fora do muro são os meus antepassa-
dos, os escoceses, e sou muito orgulhoso deles. Mas os muros que os
romanos fizeram eram cheios de portas. O Muro de Adriano não era
como a grande Muralha da China, que não tinha portas e servia para
fechar o lado de dentro contra os de fora.
Os muros romanos eram cheios de portas para controlar o mercado
e o comércio: o lado de fora pagava imposto para o lado de dentro. Já o
Estado Inca não tinha fronteiras, era um mundo inteiro. O que eles não
tinham era controle efetivo, e onde não havia esse controle não se
construíam muros. Simplesmente ignoravam. Ou os oficiais do Impé-
rio Inca mentiam para o Inca e diziam que já tinham conquistado a
Amazônia: “A Amazônia a gente já conquistou, estão mandando pena de
arara”. Só que eles tinham que comprar dos antepassados dos Piro.
Obviamente, é muito importante a ideia do igualitarismo presente
do trabalho de Joanna Overing sobre os Piaroa, e os Piaroa e os Piro são
superigualitários. Mas lá perto tem outro tipo de projeto, tem um Cuzco.
Entretanto, Cuzco não pode ser pensado como se fosse Roma. Roma é
outra coisa. Cuzco não coloca os problemas que Roma coloca.
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RA: Cuzco, o Império Inca, não tinha fronteiras, mas tinha caminhos muito
extensos. Talvez seja interessante destacar não as fronteiras, mas os caminhos
que ligam.
Sim. Este ano fui para Oaxaca, no México, com Sylvia Caiuby e Regina
Müller. Visitamos o Monte Albán, um sítio muito velho, cidade antiga.
Em Oaxaca, dizem que foi a primeira cidade das Américas, o que deve
ser coisa de “oaxaquenho”. Eles dizem: “A gente não é muito grande, mas
é muito antigo”. E perguntei para a Sylvia: “O que é isso? Como se vai dos
Bororo para isso?”.
Uma aldeia bororo é cheia de coisas super interessantes, mas feitas de
materiais muito vagabundos. Materialmente vão sumir em alguns me-
ses. E como ir dessas aldeias para o Monte Albán que dura até agora?
Eu acho tem a ver com a pedra, não pedra à disposição, mas mexer com
pedra. Quem mexe com pedra já está mexendo com o futuro.
Certa vez eu estava em uma aldeia piro chamada Miaría. É uma al-
deia interessante, porque é a única aldeia que eu conheço que costuma
receber turistas. Um cara genial estava me dando um tour. E tinha ali
um muro vagabundo, que estava se desfazendo na chuva, e perguntei:
“O que é esse muro?”. Ele respondeu: “Esse muro é um muro de argila, é da
escola antiga. Hoje a gente faz as escolas de cimento, mas essa foi feita com
barro”. E ele continuou: “Quando os turistas chegam aqui, a gente fala
que isso são ruínas incaicas e eles acreditam”. É mentira de Piro, mas eu
acho que ele tinha um pouco de razão, porque os Piro acham muito
esquisito as casas de pedra dos Incas.
Temos que repensar Cuzo a partir disso: o que é a casa de pedra?
Meu amigo me ensinou sobre a sociedade andina, que o teto da casa é
afinidade. É o genro que faz o teto. Então, se você pensa isso, a casa
andina é cheia de relações sociais.
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veem floresta; eles veem árvores, eles veem que tipo de peixe que tem
naquele rio. Gosto muito daquilo: “Como é o nome desse rio?”. E eles:
“Esse rio não tem nome, não!”.
É algo que estou querendo fazer agora com a ideia de conjunto do
finado mestre, estou superconsciente que tenho que escrever sobre lu-
gares. O Purus é assim, o Urubamba é assim. Porque vira para outra
pessoa, Urubamba vira A, Purus vira B, em contraste. O Purus é muito
particular, é um inferno de carapanã, pium, mutuca. O Urubamba não
é, eles sabem disso. “Ah, você foi pro Purus? É um inferno de pium!”. Eles
dizem que o Napo é o pior de todos. Quando visitei os Kaxinawa e os
Yaminawa. que moram lá no Alto Purus, eles não poderiam morar lá
sem roupa. No passado, eles tinham um pouco de roupa. Andar nu na
beira do Purus ia ser impossível.
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Notas
1
Ministro de Estado da Educação e Ciência por três mandatos de Primeiros-Minis-
tros, orientou a reforma conservadora do ensino universitário durante a gestão de
Margareth Thatcher e é considerado o pai do “thatcherismo”.
2
Peter Lachlan Silverwood-Cope (1945-1989), aluno de E. Leach, que teve publi-
cado em 1990 seu livro Os Makú: povo caçador do noroeste da Amazônia, pela Edi-
tora da Universidade de Brasília.
3
Paul Henley é professor de Antropologia Visual em Manchester.
4
Bernard Arcand (1945-2009), antropólogo franco-canadense que foi professor do
Departamento de Antropologia da Université Laval, em Quebec, Canadá, e fez
seu doutorado em Manchester, em 1972.
5
O casal Stephen e Christine Hugh-Jones fizeram trabalho de campo, nos anos 1970,
entre os Barasana do Alto Rio Negro (AM), sob supervisão de E. Leach.
6
Caroline Humphrey é professora aposentada do King´s College, Cambridge, espe-
cialista em Antropologia Social da Ásia.
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7
Rodrigo Villagra Carron, autor da tese de doutorado orientada por P. Gow intitu-
lada: The Two Shamans And The Owner Of The Cattle: Alterity, Storytelling And
Shamanism Amongst The Angaité Of The Paraguayan Chaco, University of St.
Andrews, 2010.
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BLOCH, Maurice
1971 Placing the Dead: tombs, ancestral villages and kinship organization in
Madagascar, London, Berkeley Square House; New York, Seminar Press.
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2001 An Amazonian Myth and its History, Oxford, Oxford University Press.
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1932 The Changing Culture of an Indian Tribe, New York, Columbia University Press.
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1975 The Piaroa: a People of the Orinoco Basin: A Study in Kinship and Marriage,
Oxford, Clarendon Press, 236 pp.
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de Brasília.
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1961[1952] O rio comanda a vida, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2.ed.
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b) no caso de coletânea: sobrenome (em caixa alta), nome do autor; ano de publi-
cação, título do texto entre aspas, in sobrenome (em caixa alta), nome do organizador
(org.), título do livro em itálico, local, editora, página inicial-página final. Ex.:
VIDAL, Lux
1992 Pintura corporal e arte gráfica entre os Kaiapó-Xicrin do Cateté». In VIDAL,
L. (org.), Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo, Studio
Nobel/Fapesp/Edusp, pp. 143-89.
c) no caso de artigo: sobrenome (em caixa alta), nome do autor; ano de publicação,
título do artigo entre aspas, título do periódico em itálico, local, número do periódico:
página inicial-página final. Ex.:
MARCUS, George
1991 «Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobre
a modernidade, no final do século XX a nível mundial». Revista de Antropo-
logia, São Paulo, vol. 34: 197-221.
d) no caso de tese acadêmica: sobrenome (em caixa alta), nome do autor; ano de
publicação, título da tese em itálico, local, dissertação (mestrado) ou tese (doutorado),
instituição, número de páginas. Ex.:
ALMEIDA, Heloisa Buarque de
2001 Muitas mais coisas: telenovela, consumo e gênero. Campinas, tese, UNICAMP,
320p.
2. Quanto às resenhas:
As resenhas críticas e informativas devem ter no máximo 6 laudas.
3. Quanto às entrevistas:
Será publicada apenas uma entrevista por número de revista.
Os artigos, resenhas e entrevistas deverão ser enviados para: revant@usp.br
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