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ISSN 0034-7701

Revista
de
Antropologia
Publicação do Departamento de Antropologia
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo

Volume 54 nº 1

SÃO PAULO
janeiro-junho 2011
Revista de Antropologia

Fundada por Egon Schaden em 1953


Editora Responsável: Heloisa Buarque de Almeida

Comissão Editorial
Heloísa Buarque de Almeida; Laura Moutinho; Renato Sztutman

Conselho Editorial
†David Maybury-Lewis (Harvard University, EUA); Eduardo Viveiros de Castro
(Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ); Fernando Giobelina
Brumana (Universidad de Cádiz); Joanna Overing (The London School of Economics
and Political Science, Inglaterra); Julio Cézar Melatti (Universidade de Brasília, DF);
Klaas Woortmann (Universidade de Brasília, DF); Lourdes Gonçalves Furtado (Museu
Paraense Emílio Goeldi, PA); Marisa G. S. Peirano (Universidade de Brasília, DF);
Mariza Corrêa (Unicamp, SP); Moacir Palmeira (Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, RJ); †Roberto Cardoso de Oliveira (Unicamp, SP); Roberto Kant de
Lima (Universidade Federal Fluminense, RJ); Ruben George Oliven (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, RS); Simone Dreyfus Gamelon (École de Hautes Études
en Sciences Sociales, França); Terence Turner (University of Chicago, EUA)

Secretário
Edinaldo Faria Lima

Equipe Técnica
Editoração eletrônica: Guilherme Rodrigues Neto
Revisão: Carmem Cacciacarro e Maria Teresa Lourenço
Revisão do inglês: Pedro Lopes
Capa: Ettore Bottini

Os artigos serão aceitos para publicação após análise, pela Comissão Editorial, de sua adequação
ao formato e à linha editorial da Revista e avaliação do conteúdo por dois pareceristas externos.

Esta revista é indexada pelo Índice de Ciências Sociais – IUPERJ/RJ –, pela Ulrich’s International
Periodicals Directory, pela Hispanic American Periodicals Index.
ISSN 0034-7701

Revista
de
Antropologia
Volume 54 nº 1

SÃO PAULO
janeiro-junho 2011
Periódico – Revista de Antropologia da USP, Departamento de Antropologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo – vol. 54(1), janeiro-junho de 2011, São Paulo, SP.

Publicação semestral

ISSN 0034-7701

1. Antropologia; 2. Etnografia; 3. Teoria e Método; 4. História da Antropologia.

Tiragem: 500 exemplares

A Revista de Antropologia tem como objetivo a divulgação e discussão


de temas, resultados de pesquisas e modelos teórico-metodológicos
próprios da Antropologia, em suas diversas áreas e interfaces com
disciplinas afins, a partir de textos inéditos, resenhas e traduções, de
forma a proporcionar aos leitores um panorama sempre atualizado das
questões mais relevantes de seu campo de pesquisa e reflexão no país
e no exterior.

Endereço para correspondência /Address for correspondence:


Revista de Antropologia – Departamento de Antropologia – FFLCH/USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
e-mail: revant@usp.br
Edição eletrônica: http://www.revistasusp.sibi.usp.br
Sumário

Artigos
PETER GOW
“Me deixa em paz!”. Um relato etnográfico preliminar
sobre o isolamento voluntário dos Mashco 11

MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ
Inscrito nos genes ou escrito nas estrelas?
Adoção de crianças e uso de reprodução assistida 47

RACHEL AISENGART MENEZES & EDLAINE DE CAMPOS GOMES


“Seu funeral, sua escolha”: rituais fúnebres na contemporaneidade 89

ALEXANDRE WERNECK
O “egoísmo” como competência: um estudo de desculpas dadas nas
relações de casal como forma de coordenação entre bem de si e moralidade 133

ARIEL GRAVANO
¿Vecinos o ciudadanos? El fenómeno Nimby:
participación social desde la facilitación organizacional 191

FELIPE FERREIRA VANDER VELDEN


As flechas perigosas: notas sobre uma perspectiva indígena
da circulação mercantil de artefatos 231

DENISE MARIA CAVALCANTE GOMES


Cronologia e conexões culturais na Amazônia:
as sociedades formativas da região de Santarém – PA 269

CRISTIANO WELLINGTON NOBERTO RAMALHO


O sentir dos sentidos dos pescadores artesanais 315

GABRIEL BANAGGIA
Luz baixa sob neblina: por uma antropologia das oscilações
em Claude Lévi-Strauss 353

FERNANDA ARÊAS PEIXOTO


O candomblé (barroco) de Roger Bastide 379
MARCIO GOLDMAN
Cavalo dos Deuses: Roger Bastide e as transformações
das religiões de matriz africana no Brasil 407

Resenhas
Tola, Florencia Carmen. Les conceptions du corps
et de la personne dans un contexte amérindien... 435
DANILO PAIVA RAMOS

Cabalzar, Aloisio. Filhos da Cobra de Pedra... 449


FABIANE VINENTE DOS SANTOS

Ortega, Francisco. O corpo incerto... 459


GABRIEL DE FREITAS GIMENES

Czarny, Gabriela. Pasar por la escuela... 467


MARIANA PALADINO

Neves, Walter Alves & Piló, Luís Beethoven. O povo de Luzia... 473
JOSÉ FRANCISCO CARMINATTI WENCESLAU

Klein, Richard G. The Human Career... 483


WALTER NEVES

Entrevista
A aculturação é um objeto legítimo da Antropologia:
entrevista com Peter Gow 517
MARTA AMOROSO & LEANDRO MAHALEM DE LIMA
Contents

Articles
PETER GOW
“Leave me alone!”: A Preliminary Ethnographic Report
on Mashco Voluntary Isolation 11

MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ
Inscribed in the Genes or Written in the Stars?
Children’s Adoption and the Use of Assisted Reproductive Technologies 47

RACHEL AISENGART MENEZES & EDLAINE DE CAMPOS GOMES


“Your Funeral, Your Choice”: Contemporary Death Rituals 89

ALEXANDRE WERNECK
“Egotism” as a Competence: a Study on Apologies in Couple Relationships
as a Way of Coordinating One’s Own Well Being with Morality 133

ARIEL GRAVANO
Neighbors or Citizens? The NIMBY Phenomenon:
Social Participation from the Perspective of Organizational Facilitation 191

FELIPE FERREIRA VANDER VELDEN


Dangerous Arrows: Notes on an Indigenous Perspective
of the Artifacts Market Circulation 231

DENISE MARIA CAVALCANTE GOMES


Chronology and Cultural Connections in Amazonia:
the Formative Societies in Santarém Region – PA 269

CRISTIANO WELLINGTON NOBERTO RAMALHO


Fishermen’s Feeling on Senses 315

GABRIEL BANAGGIA
Low Beam in Fog: Toward an Anthropology of Oscillations
in the Work of Claude Lévi-Strauss 353
FERNANDA ARÊAS PEIXOTO
The (Baroque) Candomblé of Roger Bastide 379

MARCIO GOLDMAN
“Horse of the Gods”: Roger Bastide and the
Transformations of African Religions in Brazil 407

Reviews
Tola, Florencia Carmen. Les conceptions du corps
et de la personne dans un contexte amérindien... 435
DANILO PAIVA RAMOS

Cabalzar, Aloisio. Filhos da Cobra de Pedra... 449


FABIANE VINENTE DOS SANTOS

Ortega, Francisco. O corpo incerto... 459


GABRIEL DE FREITAS GIMENES

Czarny, Gabriela. Pasar por la escuela... 467


MARIANA PALADINO

Neves, Walter Alves & Piló, Luís Beethoven. O povo de Luzia... 473
JOSÉ FRANCISCO CARMINATTI WENCESLAU

Klein, Richard G. The Human Career... 483


WALTER NEVES

Interview
Acculturation is a Legitimate Object of Anthropology:
an Interview with Peter Gow 517
MARTA AMOROSO & LEANDRO MAHALEM DE LIMA
Artigos
“Me deixa em paz!”
Um relato etnográfico preliminar
sobre o isolamento voluntário dos Mashco*

Peter Gow

University of St Andrews

RESUMO: Este artigo procura oferecer uma discussão etnográfica sobre o


significado do isolamento voluntário para o povo Mashco da Amazônia pe-
ruana. A natureza mesma do isolamento voluntário escapa à pesquisa
etnográfica, baseada na observação participante. Na ausência de tal tipo de
pesquisa, explora-se o que se sabe sobre esse povo por meio de fontes escri-
tas e, especialmente (etnograficamente), por meio do que sabem os Piro
(Yine), seus vizinhos e “parentes”. Será dada atenção especial aos possíveis
significados do “deixar em paz” para os Mashco, bem como à história e aos
prováveis sentidos do uso continuado que eles fazem de machados de pedra
e do fato de terem abandonado a agricultura.

PALAVRAS-CHAVE: Mashco, Piro (Yine), Amazônia peruana, isolamen-


to voluntário, política e história.

Os Mashco são a mais mítica das entidades, um povo indígena amazô-


nico em isolamento voluntário; são ainda mais perturbadores por serem
perfeitamente reais. Enquanto falo, eles estão por aí em algum lugar,
mas ninguém, que não eles, sabe exatamente onde. Vivem em nosso
mundo, mas não querem fazer parte dele. Parecem não querer nada
conosco. Aparentemente, não buscam ter contato com outros, além
PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

deles mesmos, e sempre fogem de contatos assim. Muitos tentam con-


tatá-los, muitos outros tentam evitar que essas pessoas entrem em
contato com eles, e assim os Mashco têm muitos inimigos e amigos.1
Mas eles se mantêm bem longe de nós.
O conceito de isolamento voluntário me interessa e, sendo um
etnógrafo, me interesso por ele como uma questão etnográfica. Interes-
sa-me dar um significado genuinamente etnográfico a esse conceito,
aquele dos Mashco – um fundamento etnográfico concreto para argu-
mentos em defesa do isolamento voluntário que normalmente se basei-
am apenas em princípios dos direitos humanos. Está claro que, se for-
mos respeitar o isolamento voluntário dos Mashco, o que apoio
inteiramente, esse significado etnográfico não poderá ser baseado em
uma pesquisa etnográfica de longo prazo, nem no que os Mashco nos
contam. Mas não será esse desafio fascinante para um antropólogo?
Maurice Bloch, em uma frase famosa, disse que a pesquisa etnográfica é
uma longa conversa (1977). Podemos ter uma conversa assim longa com
um povo como os Mashco, que vivem em isolamento voluntário? Acre-
dito que sim, porque eles já estão em um longo diálogo com outros;
ouvindo esse diálogo, entramos nessa conversa.
Com que se parecem as conversas dos índios amazônicos? Etnógrafos
dos povos indígenas amazônicos escreveram um bocado a esse respeito
recentemente, em exposições detalhadas, seja de pessoas falando baixi-
nho ao entardecer, seja de conversas mantidas em ciclos de expedições
de caça às cabeças. O outro está sempre presente nas ações dos povos
indígenas amazônicos, e pode-se argumentar que é onde essas ações se
originam (Viveiros de Castro, 2002). O isolamento voluntário dos
Mashco é uma recusa a um certo tipo de relação social, uma ação inten-
cional, e seu sentido é dado na interlocução. Eu não sei quase nada so-
bre os Mashco, mas sei bastante sobre seus vizinhos e parentes, os Piro
(Yine) do Bajo Urubamba. Os Piro são, a meu ver, quem melhor pode

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

nos contar sobre os Mashco, porque eles falam dialetos de uma mesma
língua. Por isso, começo por uma história piro sobre eles.

Os Piro e os Mashco

A história, contada por Kim MacQuarrie em um livro sobre o Parque


Nacional Manu, refere-se a eventos que aconteceram em 1982.
MacQuarrie escreveu:

Um índio Piro aculturado de Diamante, caçando no meio de alguns pés


de banana brava que cresceram logo ao norte do Rio Alto Madre de Dios,
surpreendeu-se um dia ao ouvir vozes vindo do interior e que ele podia
entender apenas parcialmente. Rastejando nessa direção e espreitando por
entre a vegetação, o Piro viu à distância uma pequena clareira com cabanas
rústicas e cerca de 25 índios nus ao redor. Eles, pensou, deviam ser Piro
Mashco não contatados. O Piro correu a Diamante e retornou ao entardecer
com cerca de 10 companheiros. Quando escureceu e os sons da noite sur-
giram, os índios Piro começaram a avançar devagar, sem fazer ruído.
Gradativamente, à distância, eles puderam distinguir o brilho dos fogos
do acampamento e sons de vozes. Aos poucos, os Piro se aproximaram do
acampamento até perceberem um grupo de índios ao redor de várias fo-
gueiras, nas quais pareciam estar moqueando carne de anta. Quando caiu
a noite e as estrelas surgiram, os Mashco Piro repentinamente se puseram a
cantar, e assim continuaram por horas. Os Piro, por sua vez, esperaram.
Finalmente, a 1 ou 2 da madrugada, o último Mashco Piro foi dormir.
Com um sinal pré-combinado, os índios Piro irromperam e avançaram
para o acampamento Mashco Piro, com a intenção de capturar ao menos
um deles. A maioria dos índios, atônitos, imediatamente fugiu; um homem
e um menino, no entanto, foram alcançados e jogados no chão. De acordo

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

com os Piro, o homem lutou por mais de meia hora, tão ferozmente, na
verdade, que eles tiveram que lutar também. Por fim, o homem parou e
surpreendeu seus captores ao repentinamente falar. “Me deixem sozinho”,
ele murmurou, assim contou-me o Piro.
Apesar desse pedido, o homem e o menino foram atados e levados de
canoa a Diamante, onde todos os habitantes saíram para ver o que eles
consideravam ser seus “parentes nus e selvagens”. Os Piro de Diamante
falaram a seus cativos, dando-lhes comida – que eles recusaram –, roupas,
machados e outros bens. Os Piro falaram aos Mashco que eles deviam dei-
xar de fugir, que os Mashco deviam vir morar com eles. De acordo com o
Piro, o homem falou apenas uma vez, pedindo que ele e o menino fossem
deixados a sós. Mais tarde, nesse mesmo dia, os Piro atravessaram o rio a
remo com seus cativos e os deixaram no lugar de sua captura. Instruindo
os Mashco a ir e trazer seus parentes, os Piro lhes falaram que iriam todos
receber mais presentes. Libertaram então seus cativos. Pouco tempo de-
pois, os Piro ficaram curiosos e seguiram a trilha dos Mashco. A cerca de
300 pés (100 m) dali, os Piro encontraram um lugar no qual os presentes
haviam sido abandonados. As vestimentas haviam sido igualmente joga-
das no chão. (MacQuarrie & Bärtschi, 1998, pp. 298-9)

MacQuarrie conta essa história em um lustroso livro de mesa de cen-


tro sobre uma grande atração turística, o Parque Nacional Manu. Ela é
contada em inglês e em formato impresso, contendo detalhes que não
consigo imaginar um Piro falando. Os Piro não se descrevem como
“aculturados”, e eles definitivamente não se pensam como “índios”. No
entanto, essa história contém aspectos que me convencem de que seja
uma tradução quase literal de uma narrativa piro de experiência pessoal.
A história tem início com um homem Piro de Diamante caçando sozi-
nho em um sapnasha, um bosque de bananeiras selvagens. A palavra piro
para banana selvagem é sapna, que, dizem, é como seus ancestrais cha-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

mavam a banana, sua dieta básica. As aldeias piro são rodeadas por
parantasha, bananais, que vem de paranta, “banana”, uma palavra que
certamente deriva do espanhol plátano, via o quíchua amazônico palanta.
No Bajo Urubamba, bosques silvestres de bananeiras são chamados, em
quíchua, supray chacra, “roças dos demônios”, e são o tipo de lugar em
que coisas estranhas acontecem.
O caçador Piro estava sozinho. Os termos Piro para “sozinho” são
idênticos àqueles que denotam “um” e intrinsecamente elidem um ou-
tro, um segundo, um par, algo para fazer companhia à pessoa solitária.
Usualmente, para um caçador, este é a caça que ele abate e traz de volta
para sua mulher. Na história de MacQuarrie, porém, o homem Piro
solitário encontra algo muito diferente de um animal de caça, já que ele
ouve pessoas que falam sua língua, Yineru Tokanu, “palavras humanas,
língua Piro”.
MacQuarrie relata esse momento na história do caçador Piro quan-
do escreve que ele “surpreendeu-se um dia ao ouvir vozes vindo do inte-
rior e que ele podia entender apenas parcialmente” (ibidem). Isso me
parece, portanto, uma interpretação de MacQuarrie. Quem se surpre-
enderia ao ouvir uma língua que pode entender apenas parcialmente?
A surpresa do homem Piro não está no fato de que ele a podia compre-
ender, mas na natureza parcial de sua compreensão. No início dos anos
1980, o modelo privilegiado pelos Piro para indios bravos, “índios bra-
vos”, eram os Nahua, falantes de Yaminahua que começavam a fazer
contato nas cabeceiras do Mishahua/Manu. Embora alguns Piro enten-
dessem o Yaminahua, dada a corresidência prolongada com falantes des-
sa língua, os de Diamante provavelmente não a entendiam.
“Me Deixem sozinho!”, disse o homem Mashco para os Piro de Dia-
mante em uma língua que eles podiam entender. Há, penso, dois signi-
ficados que podem ser atribuídos por um Piro a essa formulação. O pri-
meiro é o de estar sozinho, gapalushatachri ou satupje. Esse é um estado

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

importante para os Piro e central para as dinâmicas do xamanismo.


Mas é pouco provável que fosse o que disse o homem Mashco àqueles
Piro, embora a história tenha tido início precisamente com um Piro es-
tando sozinho. Em nenhum ponto dessa história o homem Mashco era
um gapalushatachri, “aquele que está habitualmente sozinho”, já que ele
estava sempre com o menino. De fato, da segunda vez em que o ho-
mem pede para ser deixado só, esse pedido é feito também em benefício
do menino.
O segundo sentido viria com o acréscimo do verbo kojwaka, “per-
turbar, amolar”. ¡Gi pkojwakanno!, “me deixe em paz”, é uma frase Piro
muito comum e expressa a insatisfação do enunciador com a forma cor-
rente que toma a relação social, não com as relações sociais em geral.
Por exemplo, pais Piro estão constantemente falando para seus filhos
deixarem em paz seus irmãos mais novos, um passatempo favorito. “Dei-
xe-o em paz” poderia ser dirigido a uma criança de cinco anos que esti-
vesse perturbando sem misericórdia, até o ponto do berreiro, seu irmão
de dois anos. Irmãs mais velhas deveriam amar e cuidar de seus irmãos
menores, mesmo que crianças de cinco anos apreciem muito mais fazer
o oposto.
Nos termos Piro, a frase “Deixe-me sozinho”, na tradução para o
português, é ambígua. Desejar ficar sozinho é uma afirmação ou de que
não se quer ter nenhuma relação social com outros ou de que não se
quer esse tipo específico de relação com o outro. Se o homem Mascho
tivesse dito “Eu não quero uma relação social de nenhum tipo com
você”, então o isolamento voluntário dos Mashco significaria exatamente
isso: nenhuma relação social. Mas se o homem Mashco tiver dito a seus
captores “Me deixem em paz!”, “Parem de me forçar a ter essa forma de
relação social com vocês!”, isso sugeriria que ele pensou que eles já ti-
nham uma relação social de algum tipo. De fato, ao falar isso, ele pedia
a seus captores para tratá-lo com respeito, nshinkanchi. Nshinikanchi,

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“pensamento, amor, memória, cuidado, respeito”, é um valor chave para


os Piro, a definição de sua humanidade.
O homem Mashco pede ao Piro duas vezes que o deixem em paz.
Uma vez ao fim da briga, e outra novamente quando os Piro lhe dizem
que seu povo deve parar de fugir e que eles devem ir morar com os Piro.
Toda a força da história piro reside em que os Mashco já têm uma rela-
ção social com eles, mas que se recusam a ativá-la da maneira correta.
Eles são wumolene, “nossa gente”, uns para os outros, e fugir, lutar e se
recusar a comer a comida reconhecidamente piro não é como parentes
devem agir. Em um sentido que não deve ser menosprezado, o homem
Mashco concorda com os Piro, já que lhes pede que lhe deixem em paz.
Ele lhes fala em yineru tokanu, “palavras humanas, língua Piro”. Ele fala
esperando ser ouvido e compreendido, e, portanto, tratado com respei-
to. E ele o é, já que os Piro o deixam em paz. Eles dão presentes a ele e
ao menino, e os levam de volta até onde os haviam encontrado.

Quem são os Mashco?

Os Mascho inquestionavelmente existem, como disse, mas quem são


eles? São três os grupos de Mashco por nós conhecidos: três mulheres
que fizeram contato com guardas florestais do Parque Nacional Manu;
o grupo de origem dessas mulheres, localizado em algum lugar na re-
gião do Rio Pinquén; e pelo menos um grupo que está em algum lugar
entre os rios Piedras e Purus no Peru e/ou Brasil. Lev Michael resume o
que se sabe do terceiro grupo Mashco assim, em termos que tanto são
tradicionalmente antropológicos quanto denotam urgência política:

[...] é razoável concluir que os Mashco são ou substancialmente nômades


ou um grupo inteiramente nômade que provavelmente não pratica a agri-

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

cultura. Os Mashco parecem passar apenas uma parte do ano na região do


Purus, o que sugere que se movimentam por uma ampla área. Os Mashco
parecem pouco inclinados a ser beligerantes ou violentos, mas demons-
tram um forte desejo de evitar interações com outros. De fato, evidências
sugerem que os Mashco não possuem ferramentas de metal, o que aponta
para a ausência de qualquer contato substantivo com estrangeiros por um
longo período. É provável que os Mashco não sejam um grupo de língua
Pano, o que torna o Arawak a família linguística mais provável, por razões
geográficas se não outras. (Comunicação pessoal)

As conclusões de Lev Michael baseiam-se em uma cuidadosa revisão


das evidências disponíveis e recentes, em três confiáveis relatos de con-
tatos com Mashco Piro e no exame de dois acampamentos abandona-
dos. Beier e Michael (em Leite Pitman, Pitman & Álvarez, 2003) rela-
tam a descoberta do linguista Alejandro Smith de que as três mulheres
falam um dialeto do Piro, o que foi confirmado por informantes meus
que se encontraram com elas.
Muito do que se escreveu recentemente sobre os Mashco tem uma
aura de mistério, como se esse povo não só vivesse em isolamento volun-
tário, mas fosse completamente desconhecido por estrangeiros. No en-
tanto, como notou o padre dominicano Ricardo Alvarez, de Sepahua,
no Bajo Urubamba, é possível reconstituir sua história desde o fim do
século XVII até o presente com certa precisão (Alvarez, s.d.). Meu rela-
to aqui refina e amplia sua afirmação. Um dos maiores problemas para
entender esse povo está em seu nome, Mashco, e na relação recente en-
tre as onomásticas dos antropólogos e dos índios. O nome Mashco veio
a ser tomado por um nome pejorativo e, portanto, errado, para outro
povo indígena; como tal, foi expurgado da literatura. Infelizmente, nes-
se processo, os Mashco acabaram por ser também eliminados. Não que-
ro dizer que “Mashco” é a “autodenominação autêntica” para esse povo,

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e obviamente tenho pouco desejo de aprender seu nome submetendo-


os a toda a amolação que seria necessária para isso e tirá-los de sua paz.
Este artigo é simplesmente minha tentativa de restaurar esse povo à lite-
ratura etnográfica do modo menos problemático possível.

A história dos Mashco desde 1686

Alvarez (s.d.) registra que o missionário franciscano Biedma menciona


os Mashco ainda em 1686. Sua primeira aparição ocorreu em um mo-
mento muito dramático da história da Amazônia peruana. Nesse ano,
um grupo de soldados espanhóis e um exército de Conibo subiu o Rio
Ucayali para vingar a morte do padre jesuíta Richter, morto pelos Piro.
Enquanto subiam o rio, o chefe Conibo Don Felipe Cayá-bay contou a
Biedma que, a três dias rio acima, em um tributário oriental do Ucayali,
morava a “muito numerosa nação dos Mashcos” (Biedma, 1981). A pa-
lavra mashco existe na língua Conibo e significa “pequeno, baixo em es-
tatura” (“na cabeça” + dim.), como em “quando eu era pequeno...”
(Loriot, Lauriault & Day, 1993). O nome do rio, Manipabro, em con-
traste, é uma palavra piro, manipawlo, uma espécie de gavião.
Mais de um século e meio depois, os padres franciscanos Busquets e
Rocamora, em princípios do século XIX, registrou a existência dos
Guirineris, que são membros da nação “Mashco” (apud Gray, 1999,
p. 11). “Guirinieris” é claramente uma hispanização de Kiruneru, “pes-
soa palma pupunha”, o nome piro para os Machiguenga. O relato de
Busquets e Rocamora localiza os Mashco, portanto, muito mais ao sul
do que o de Biedma.
Patricia Lyon, em sua cuidadosa discussão do uso do termo mashco
em fontes do século XIX e do início do século XX (1975), escreve: “(...)
deve-se lembrar que esse nome foi originalmente aplicado a um grupo

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

localizado nas cabeceiras do Camisea e Mishahua, e talvez também no


Rio Manu. Aparentemente, eles eram um bando de Piro, e foram diver-
samente chamados Masco, Piro-Mashco, Mashco e Mashco-Piro (...).
Esses eram, muito claramente, os ancestrais dos Mashco de hoje.
A palavra mashco existe no Piro contemporâneo como o nome pró-
prio de um grupo de pessoas. Matteson define esta palavra como
“membro da assim chamada ‘tribo Mashco’”, e anota também a palavra
marakayri, “Amarecaeri” (1965). O Diccionario Piro, que lhe é poste-
rior, traduz mashco como “Amarecaeri (nome de um grupo nativo),
membro do grupo Mashco” (Nies, 1986). Alvarez (s.d.) menciona o
termo mashkoneri (mashkoneru), “grupo endogâmico mashco”. Isso fa-
ria de Mashco um de uma série limitada de grupos endogâmicos no-
meados, os Nerune, que os Piro do Bajo Urubamba descrevem como
seus ancestrais.
As cabeceiras dos rios Camisea, Mishahua e Manu não foram visita-
das por não-índios até a última década do século XIX, quando essa área
foi muito violenta e dramaticamente incorporada ao sistema capitalista
mundial por Carlos Fermín Fitzcarrald. A fonte básica sobre Fitzcarrald
é o livro de Reyna (1942), que é uma biografia peruana típica sobre um
herói local feita por um intelectual local. Reyna nunca se encontrou com
Fitzcarrald e parece nunca ter viajado pela Amazônia, baseando, por-
tanto, seu relato em registros de eventos cheios de mal-entendidos.
Muito mais confiável é o testemunho de Valdez Lozano (1942), escrito
em resposta ao livro de Reyna (1942). Valdez Lozano trabalhou para
Fitzcarrald e estava presente na primeira visita de não-índios ao Manu
de Ucayali.
O autor relata que, quando eles primeiro viajaram desde Camisea
até o Manu em 1891, encontraram uma aldeia piro nas cabeceiras desse
rio, cujos habitantes eram amigáveis e lhes contaram que a três dias rio
abaixo se encontrava um assentamento de Piro-Mashco. Fitzcarrald para

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lá se dirigiu com “uma força de 1.500 homens” e encontrou a popula-


ção Piro-Mashco, assim chamados, escreve Valdez Lozano, por causa da
“conjunção de duas tribos”. Os Piro-Mashco receberam os visitantes
amistosamente e contaram a Fitzcarrald que rio abaixo havia um rio,
chamado Sutlija, habitado por muitos Mashco, que eram pacíficos.
Fitzcarrald os chamou e lhes deu machados, facas e vários bens, que eles
receberam “com grande curiosidade”. Um mês depois, os Mashco mas-
sacraram os caucheiros no Rio Cumarjali, e uma série de ataques e
contra-ataques violentos se seguiu. Valdez Lozano (1942) escreve sobre
essa violência:

Os índios Mashco, dos mais beligerantes que existem atualmente, vivem


ao longo do Rio Colorado e foram encontrados espalhados nos bancos do
Madre de Dios e do Manu; mas em face dos ataques do pessoal de
Fitzcarrald, tiveram que recuar mais para o interior do Colorado e às suas
terras originais das cabeceiras dos rios, que eles chamam, em sua língua,
Pinquene, Panahua, Cumarjali e Sutilija, e que são afluentes do Manu.

Colorado é claramente um topônimo espanhol, mas Cumarjali e


Sutilija são sem dúvida topônimos piro.
O relato de Valdez Lozano é importante porque ele foi uma teste-
munha visual desses eventos. Ele aparentemente nomeia três popula-
ções aqui: os Piro, os Piro-Mashco misturados, e os Mashco. No entan-
to, a referência aos rios Madre de Dios e Colorado sugere que seu uso
de Mashco inclui dois povos muito distintos, mas igualmente hostis:
os Mashco propriamente ditos e vários povos Haramkbút. Suspeito que
os Piro estavam cientes de que os primeiros Mashco e os Mashco
“Haramkbút” eram diferentes, já que a palavra makayari é aparentemen-
te antiga, tendo sido seu uso citado por Gray em 1910 (1999). Mas pa-
rece que os patrões da borracha, provavelmente pouco curiosos em ques-

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

tões linguísticas, assumiram que a categoria piro de mashco se referia a


um único grupo hostil. Essa confluência liga-se, evidentemente, a uma
prática do trabalho seringalista: todos os povos indígenas hostis na re-
gião são “Mashcos”, até prova em contrário, e, portanto, devem ser aba-
tidos assim que avistados. Essa confluência perdurou na literatura.
Tal confluência foi certamente produzida pela dependência de
Fitzcarrald e seus trabalhadores no conhecimento dos Piro, tanto do Bajo
Urubamba quanto do Manu. Fica claro pelas fontes históricas que os
Piro guiaram Fitzcarrald em seu novo território e lhe contaram onde ele
estava e com quem. É muito provável que chamassem a todos os povos
da região do Manu de Mashco, e assim eles vieram a se unificar nos rela-
tos dos não-índios. Mais, depois que os Mashco de fato recuaram e se
esconderam, os únicos contatos e conflitos que os patrões da borracha
e seus trabalhadores tiveram foram com os “Mashco” falantes de
Haramkbút, de modo que o nome lhes foi transferido.
Um aspecto importante do relato de Valdez Lozano (1942) é que ele
muda os dados históricos apresentados por Lyon em um ponto de im-
portância. Os falantes de Piro da região das cabeceiras do Mishahua-
Manu eram os Piro, enquanto os Mashco viviam rio abaixo, no Manu
propriamente. Isso é confirmado pelo antropólogo americano Farabee
(1922), que registra ter encontrado os Piro vivendo em 1907 na região
das cabeceiras do Mishahua-Manu, trabalhando para o Señor Torres.
Presume-se que eram os mesmos que Valdez Lozano descreveu na mes-
ma região poucos anos antes. Pela descrição e pelas fotografias de Lozano
(1942), são muito certamente Piro do Urubamba, não Mashco. Ele des-
creve a região como território tradicional dos Piro, ignorando os Piro
do Bajo Urubamba.
É verdade que muitos poucos Piro estavam vivendo no Urubamba
na época da visita de Farabee, pois a maioria estava mais a leste, no Purus
ou Yuruá, trabalhando com borracha (ver Gow, 1991). Aqueles que

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Farabee (1922) descreveu se esconderam na região das cabeceiras do


Mishahua-Manu depois de terem matado o patrão Baldomero Rodri-
guez em 1908. Alguns deles acabaram por se mudar para o Bajo
Urubamba para viver com Francisco Vargas em Sepa, e outros se muda-
ram rio abaixo para a foz do Manu, presumivelmente para ficarem pró-
ximos às fontes de bens de mercado (Alvarez, 1959). Parece-me prová-
vel, pelo que Conrad Feather me contou, que os Nahua estavam se
mudando para essa região nesse período, e é possível que isso tenha esti-
mulado esses Piro a abandonar seu território (ver Feather, 2010).
Farabee (1922) reporta os Mashco como vivendo ao sul do Rio
Manu, entre os rios Sutlija e Alto Madre de Dios, exatamente onde
Valdez Lozano mencionou sua localização. Eles haviam trabalhado para
Baldomero Rodriguez, mas teriam partido, e ninguém sabia para onde.
Farabee com certeza encontrou ao menos um homem Mashco, já que
lhe tomou as medidas. Não fica claro em seu relato se eram os Mashco
propriamente ditos de Valdez Lozano ou se eram seus Piro-Mashco.
Farabee escreve: “Em suas relações matrimoniais, não são tão restritos
quanto algumas outras tribos, já que frequentemente casam com Cam-
pa ou Piro. O chefe atual é um homem Piro casado com uma mulher
Mashco” (ibidem, p. 77)
Essa afirmação, em sua aparente simplicidade, contém muito do pro-
blema da história Mashco. Os Piro-Mashco de Valdez Lozano, uma co-
munidade formada pelo casamento de Piro e Mashco, efetivamente desa-
pareceram nesse ponto para reaparecerem na década de 1980. Os Mashco,
nesse meio tempo, responderam à violência extrema se escondendo. Sus-
peito que os trabalhadores de Rodriguez eram os Piro-Mashco de Valdez
Lozano, e, no entanto, “ninguém sabia para onde tinham ido”. A visita
de Farabee aconteceu justo quando os trabalhadores Amahuaca, do pa-
trão Carlos Scharff, o tinham matado no Rio Piedras, em uma cadeia de
eventos que levou os Piro do Manu a matar Rodriguez um ano depois.

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

Rodriguez deu a Farabee uma lista de palavras na língua Mashco.


Patricia Lyon comenta:

[...] a lista contém certas peculiaridades que me levam a pensar que o au-
tor não conhecia de fato a língua. Ela contém algumas palavras que pare-
cem com algum dialeto Háte [Harakmbút] e mais algumas palavras em
Piro, mas não as pude relacionar a outra língua existente na região [...].
(1975, p. 190)

A autora nota, ainda, que essa lista de palavras, estranha e de segunda


mão, foi usada por todos os estudiosos que tentaram classificar as lín-
guas locais, causando grande confusão. Parece-me provável que Rodri-
guez tenha dado a Farabee uma lista de palavras faladas pelos Mashco,
no sentido que esse termo veio a adquirir na região de Madre de Dios:
palavras de um “índio selvagem” genérico. Essa pequena lista de pala-
vras é também a fonte de uma persistente suspeita de que a língua
Mashco é de algum modo uma mistura das línguas Piro e Haramkbút.
A lista de palavras de Farabee levou a uma série de confusões notáveis
na literatura antropológica e linguística sobre essa região da Amazônia
peruana. Levou à ilusão de que as línguas Arawak e Haramkbút eram
intimamente relacionadas; à confusão dos diferentes grupos chamados
Mashco pelos Piro; e à provável ilusão de que a língua Mashco é uma
fusão Piro-Haramkbút. Obviamente, essa última ilusão pode ou não ser
provada como verdadeira. Imagino que a língua Mashco, dada a locali-
zação histórica de seus falantes, tem um maior número de empréstimos
linguísticos do Haramkbút do que o Piro do Urubamba, assim como o
extinto dialeto Piro dos Kuniba, antes falado no Médio Yuruá, contin-
ha empréstimos de línguas locais. Mas nada justifica as muitas conclu-
sões tiradas com base na lista de palavras de Farabee, a não ser a quase
completa falta de informação sobre os povos indígenas dessa região.

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Não consigo encontrar referências sobre os Mashco de 1907 até os


anos 1940. Penso que essa falta de referências não é fortuita. Com o
aumento da violência e a queda do preço da borracha, o Madre de Dios
tornou-se marginal e uma área largamente abandonada pela economia
da Amazônia peruana, que ainda estava centrada em Iquitos, no Rio
Amazonas. Os mercadores e patrões da área reorientaram suas ativida-
des para a Bolívia, e de fato viajar partindo dessa região para a costa do
Peru era mais fácil por essa via. Os principais autores sobre o Madre de
Dios nesse período foram os dominicanos, que inicialmente tiveram de
chegar à área subindo o rio pela Bolívia. A região de Manu/Alto Madre
de Dios, que foi a zona proximal dos trabalhadores de Fitzcarrald, tor-
nou-se zona distal aos desenvolvimentos posteriores. Lyon (1975) nota
que o termo mashco é usado pelos brancos da região do Madre de Dios
de um modo pejorativo, significando selvagem, maligno, incivilizado,
beligerante, etc. Ela apresenta o importante argumento de que, nessa
região, mashco substitui o termo chuncho, com o significado de povos
indígenas que resistem às incursões dos brancos.
Para os dominicanos, o termo mashco era absolutamente identifica-
do com falantes de línguas Harakmbút, em particular os Arasairi, e de-
pois os Amarakaeri. Nada em minha pequena familiaridade com a lite-
ratura dominicana no Manu/Madre de Dios indica uma percepção da
parte deles de que os Mashco podiam ser qualquer outra coisa que não
um povo falante de Harakmbút. Suspeito que, durante esse período,
eles permaneceram na área a eles atribuída por Farabee (1922), onde
dois dos grupos Mashco ainda vivem.
O Rio Manu foi efetivamente abandonado por estrangeiros quando
o preço da borracha caiu durante a Primeira Guerra Mundial, embora
uma missão tenha sido fundada em sua foz pelos dominicanos, em 1908,
abandonada em 1921, porque muitos haviam partido. Eles então fun-
daram uma nova missão para os recém-contatados Machiguenga do Rio

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

Palota, que foi abandonada, por sua vez, em cinco anos, em razão de
“ataques de índios” (MacQuarrie & Bärtschi, 1998). Não está claro se
esses ataques vieram dos Mashco ao norte ou dos Wachipaeri falantes
de Harakmút ao sul (cf. Lyon, 1975). Apesar da falta de registros, pare-
ce-me provável que os Mashco tenham tido contatos ocasionais com os
Piro, os Machiguenga e outros povos indígenas.
É provável que uma atenção mais cuidadosa dos registros dominica-
nos sobre o Madre de Dios revelasse, na condição de uma leitura crítica,
mais detalhes sobre os povos Mashco nesse período. Que eles sabiam de
sua existência está indicado na seguinte passagem de Barriales sobre a
vida do padre José Alvarez:

Em 20 de junho [1940], chegou um hidroplano comandado pelo capitão


Conterno. Nele, padre José sobrevoou, na região de Colorado, Manu,
Pinkén e Alto Madre de Dios, as casas e as aldeias dos Mashco, jogando
inúmeros presentes. Sua ânsia em chamá-los enquanto eles corriam louca-
mente para se esconder na floresta quase o derrubou pela janela. (Barriales,
s.d., p. 49)

Essa passagem sugere que os dominicanos estavam cientes da exis-


tência dos Mashco, mas assumiram que eram falantes de Harakmbút,
como os não contatados Amarakaeri do Rio Colorado. O sobrevoo das
aldeias mashco fazia parte dos eventos dramáticos envolvendo a expedi-
ção Wenner-Green, liderada por Paul Fejos, que efetivamente alçou a
identificação dos Mashco como falantes de Harakmbút a fato científico.
As próximas referências de que disponho sobre os Mashco vêm de
minha própria pesquisa nos inícios de 1980 no Rio Bajo Urubamba.
Os Piro mais velhos me contaram que haviam encontrado os Mashco
no Rio Manu no início da década de 1940, quando trabalhavam com
borracha para o patrão Manuel Basagoitía. Contam-me que “eles não

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

são verdadeiros Piro, eles falam diferente”. Um homem lembrou que


tinham muitos perus domésticos, e outro comentou sobre sua falta de
vestimentas. Concluí, de princípio, que falavam dos Piro de Diamante.
Os Piro frequentemente buscam se diferenciar de outros como os
“Piro verdadeiros”: meus informantes das aldeias abaixo do Sepa diriam
que os de Miaría, acima do Sepa, não eram “verdadeiros Piro, eles são
diferentes, eles são Machiguenga” (i.e., casaram com Machiguenga). Isso
não significa que eles não possam simultaneamente reconhecer essas
pessoas como Piro em outros contextos, mas dizem que ser Piro vem de
berço, ou algo assim. Cheguei então à conclusão de que era provável
que meus informantes considerassem o povo de Diamante como
“Mashco-Piro”, no sentido de que eles vivem perto dos Mashko de
Shintuya e arredores. Isso refletiria o uso contemporâneo dos Piro: se
lhes pedir que definam a palavra Mashko, eles dirão “Amarakaeri”.
Hoje em dia não tenho tanta certeza de que meus informantes fala-
vam de um único grupo de pessoas, já que, como muitos estrangeiros,
no início dos anos 1980, eu não sabia que dois povos falantes de Piro
viviam no Manu, sendo portanto incapaz de formular questões que meus
interlocutores pudessem facilmente responder. Se a referência à abun-
dância de perus domésticos é talvez relativa aos Piro de Diamante, a
referência à falta de vestimentas certamente não o é. Os Piro de Dia-
mante sabiam da existência dos Mashco e que eles eram diferentes de-
les, e estou seguro de que os Piro do Urubamba também o sabiam. Um
homem, que tinha visitado recentemente sua filha mais velha que mo-
rava em Diamante me relatou, em 1984, que as pessoas daquele local
lhe haviam contado sobre três mulheres e de como as conheceram pes-
soalmente. Disse que elas falavam Mashco, e que eles conseguiam en-
tender metade do que falavam. “Elas são nossos parentes Piro”, disse-me,
em oposição aos Amahuaca, Nahua ou Amarakaeri, que falam línguas
completamente diferentes. Tampouco se referia a uma língua relaciona-

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

da, já que os Piro negam categoricamente que Asháninka e Machiguen-


ga, que dividem muitos cognatos com o Piro, se pareçam de algum
modo com sua língua. Ele quis dizer que o Mashco é um dialeto do
Piro, como a língua Manitineri, falada no Brasil e na Bolívia. Assegu-
rou-me que o Mashco eram totalmente diferentes das pessoas de Dia-
mante. Disse-me que o povo de Diamante era exatamente como os Piro
do Urubamba, “gente civilizada”, mas que os Mashco eram um “povo
indígena selvagem que vive na floresta”. Disse, ainda: “Eles vivem nus na
floresta, e eles são meus parentes Piro! É verdade!” – e riu do absurdo disso.
O padre dominicano Alvarez (s.d.) afirma que os Mashco visitaram a
missão dominicana de El Rosário del Sepahua nos anos que se seguiram
à sua fundação, em 1948. Ele escreve que, quando chegou em Sepahua,
em 1952, conheceu cinco famílias Mashco compostas de mulheres
Mashco casadas com homens Amahuaca, cujos filhos frequentavam as
escolas primária e secundária. Os homens teriam obtido suas esposas na
região do Alto Purus, no Rio Cujar. Elas eram mais altas que seus mari-
dos e falavam um dialeto Piro. Alvarez diz que essas famílias retornaram
ao Purus e que seus filhos vivem hoje no Juruá. Relata, ainda, que em
1953 outras três famílias de mulheres Mashco com maridos Amahuaca
(dos rios Inuya e Curiuja) mudaram-se do Sepahua para o Tambo, a fim
de viver com seus parentes na hacienda La Colonia, de Francisco Vargas
(na verdade, Vargas morreu em 1940), sob comando de mulheres.
Alvarez registra outro casal, um homem Mashco casado com uma mu-
lher Yaminahua do Alto Purus, que também visitaram o Tambo; depois
um homem Mashco com sua mulher Machiguenga, que visitaram igual-
mente o Tambo e viviam em Sepahua; e, enfim, outras quatro famílias
de homens e mulheres Mashco que permaneceram na missão.
O que me parece um tanto estranho nesse relato de Alvarez é que
toda essa movimentação dos Mashco não tenha atraído a atenção do
Summer Institute of Linguistics (SIL). Seguramente, a linguista Esther

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Matteson iria querer encontrar falantes de um dialeto do Piro tão dife-


rente, e com certeza nunca ouviu falar deles. Isso me faz suspeitar que a
maior parte dessas pessoas não era Mashco, mas simplesmente Piro, do
Rio Manu, ou Manitineri, do Rio Yaco, com quem Matteson de fato
trabalhou, engajados em sua habitual mobilidade. Penso, porém, que as
esposas dos primeiros cinco casais que Alvarez menciona poderiam bem
ter sido mulheres Mashco, já que ele descreve suas casas como redondas
e parecidas com favos de colmeia. Afirma que essas famílias permanece-
ram alguns meses e depois retornaram ao Rio Purus, presumivelmente
sem seus filhos (um fato importante que Alvarez não explora).
Uma possível confirmação vem de uma enigmática história narrada
por Juan Sebastián Perez e publicada por Matteson (1965) como Kokga
gwachine [“Habitantes do Purus”]. Ela fala de um ritual de magia de
caça que os Piro do Urubamba não conheciam. Matteson a traduz como
uma história dos Piro ancestrais, mas ela também pode ser lida como
uma descrição de um povo contemporâneo que vive no Rio Purus-Cujar
e que age como seus ancestrais. Fica claro pela história de Sebastián Perez
que ele não havia encontrado essas pessoas, mas não diz quem lhe con-
tou sobre elas. Contém a palavra ¡powrapotutayy!, que talvez possa ser
traduzida por “o parente verdadeiramente distante!”, uma forma que
poderia corresponder às imagens mais recentes dos Mashco.
Esses casamentos Amahuaca-Mashco sugerem as origens dos Mashco
nos rios Piedras e Purus. Parece que, por volta dos fins de 1940, um
grupo de Mashco se mudou da região Manu ao Rio Cujar – suspeito
que em razão da retomada da coleta da borracha causada pela Segunda
Guerra Mundial. Essa mudança estava ligada provavelmente a contatos
com os Amahuaca, talvez com homens que haviam ido trabalhar com
borracha no Manu.
Alvarez (s.d.) escreve:

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

Minha experiência no Sepahua é a de que, se os Piro e os Machiguenga


temiam o “povo isolado” e se organizaram para se defender deles, os
Amahuaca, ao contrário, esperaram a estação seca para sair em expedição e
encontrar o “povo isolado”, com quem podiam fazer alianças e reparar seu
déficit demográfico.

Gertrude Dole e Robert Carneiro, excelentes etnógrafos americanos


dos Amahuaca do início dos anos 1960, aparentemente não fazem refe-
rência alguma aos Mashco em seus escritos. Dole, porém, confirma a
política matrimonial registrada por Alvarez e nota o seguinte, em uma
discussão sobre subgrupos amahuaca: “O (...) grupo Cha’yahuo (os
Afins) ou Chiayahuo é dito ter vivido em um tributário do Sepahua e
nos rios Piedras e Manu, mas hoje está desaparecido. Informantes não
tinham certeza se eles eram parentes ou diferentes, ‘outra nación’, outra
nação” (1998). Os Afins, “o povo cunhado”, seria uma descrição perfei-
ta para os Mashco de uma perspectiva amahuaca. Se essas pessoas fos-
sem Mashco, isso confirmaria o relato de Alvarez.
Os informantes Amahuaca de Dole contaram-lhe que os Cha’yahuo
desapareceram no início dos anos 1960, e o mesmo é verdade para o
grupo Mashco setentrional. À falta de qualquer evidência, posso apenas
especular que eles entraram em conflito com os novos exploradores da
região do Bajo Urubamba, os madeireiros. Meus informantes relutavam
ao extremo em discutir ataques a “índios selvagens” nesse período. Eles
me contaram de ataques dos quais foram vítimas, mas ouvi apenas dois
relatos que tinham trabalhadores da madeira como agressores. Ambos
são muito incertos. Um homem falou com admiração de um velho
Asháninka que atacou uma aldeia de “índios selvagens” no Alto Yuruá e
matou alguns. Um homem de meia idade de Sepahua me contou ter
visto, quando jovem, um outro homem Piro tomar o poderoso alucinó-
geno toé, a pedido de um madeireiro, para encontrar uma “aldeia de ín-

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dios selvagens” nas cabeceiras do Sepahua, o que ele fez. Isso teria ocorri-
do nos anos 1960.
Naquele tempo, concluí que essa busca tinha por motivação evitar a
aldeia, mas agora posso pensar em um motivo mais óbvio. Isto sugere
que o grupo Mashco setentrional, das cabeceiras de Sepahua, Cujar e
Purus, estava provavelmente em conflito com os Piro e outros trabalha-
dores indígenas da madeira. Esse conflito talvez os tenha levado das ca-
beceiras dos rios Sepahua e Cujar para leste, em direção à região entre o
Piedras e o Purus, onde os madeireiros não estavam trabalhando.
Ao fim dos anos 1960, eles começaram a ser vistos no Purus pelos
Sharanahua, que os identificaram como Mashco para os missionários
do SIL que com eles trabalhavam (Beier e Michael, apud Leite Pitman,
Pitman & Alvarez, 2003). Isso significa que os Sharanahua haviam de-
batido sobre isso com os Piro, tendo usado um nome piro: esses debates
podem ter tido lugar na base do SIL em Yarinacocha, em viagens para e
do Sepahua, e no próprio Purus (os Piro continuam a visitar esse rio
partindo do Urubamba). Beier e Michael registram uma expedição do
SIL para contatar os Piro Mashco que envolveu um homem Amarakaeri
(Arakmbut). O instituto obviamente interpretou o nome Mashco como
“falantes de Harakmbút”, apesar do fato de que nenhuma menção ja-
mais foi feita sobre tal povo tão ao norte. A expedição encontrou alguns
Mashco que claramente nada entendiam do que aquele Amarakaeri
lhes dizia.
Agora: se o Mashco não era uma língua Pano ou Harakmbút, o que
era? O candidato óbvio, nessa região, era Maipuran/Arawak. Em 1956,
Russell e Hart, os missionários do SIL que estavam trabalhando com os
Amahuaca, entrevistaram uma mulher Iñapari que vivia entre os
Amaracaeri/Arakmbut (Parker, 1995). Por volta de 1977, o instituto
decidiu que os Mashco poderiam talvez ser falantes de Iñapari (Ribeiro
e Wise, 1978). Apesar do engajamento do SIL em traduzir a Bíblia a

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

todas as línguas humanas conhecidas, eles parecem não ter tentado, nesse
momento, trabalhar com a língua Iñapari. Em 1977, eles pareciam con-
siderar o Iñapari uma língua efetivamente extinta.

Os Mashco emergem

Tudo mudou no fim dos anos 1970, quando três mulheres Mashco se
revelaram a guardas do recém-criado Parque Nacional nas margens do
Rio Manu. Obviamente existentes, essas mulheres levantavam um pro-
blema. Quem são elas? Sua chegada coincide com o início de contatos
pacíficos entre os Nahua das cabeceiras do Mishahua-Manu e estrangei-
ros; e inicialmente se assumiu que elas também eram Nahua, falantes de
uma língua Yaminahua-Pano. No entanto, os Piro que as encontraram
disseram que elas falavam uma língua que eles podiam entender apenas
parcialmente, um dialeto Piro.
Em 1988, Juan Sebastián Sandoval, líder da aldeia Miaría e filho de
Juan Sebastián Perez, me contou ter feito uma longa viagem ao Manu,
onde encontrou e conversou com três mulheres Mashco. Ele me disse
que sua motivação era comer taricaya, ovos de tracajá, nas praias do
Manu, como seus antepassados faziam todo ano. Contou-me que o go-
verno buscava evitar que os Piro explorassem recursos do Rio Manu e
que ele queria garantir seu direito, bem como o direito de seus parentes
também. Essa viagem, através das cabeceiras dos rios Mishahua e Manu,
deve ter ocorrido após a remoção dos Nahua de Sepahua, tendo em vis-
ta que Juan Sebastián Sandoval não teria tentado viajar antes disso. Pen-
so que sua viagem era uma resposta a essas novas condições de paz para
reativar uma possibilidade mais antiga.
Sebastián Sandoval me contou que as mulheres Mashco falavam uma
língua que ele podia compreender apenas parcialmente, que elas fala-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

vam Piro. Estou certo de que eu não fui a única pessoa a quem ele con-
tou isso, porque Steven Parker, membro do SIL, registra o seguinte:

Aos cuidados do SIL, o professor escolar bilíngue Juan Sebastián Sandoval,


do grupo étnico Piro, realizou uma expedição ao Departamento de Madre
de Dios em novembro de 1990 para descobrir que grupos nativos eram
encontradiços nessa região. O professor Sebastián encontrou uma família
nos bancos do Rio Piedras que falava Iñapari. Dado o interesse do SIL em
todas as línguas autóctones da Amazônia peruana, mandamos um peque-
no aeroplano a esse lugar. Neste voo, o professor Sebastián estava acompa-
nhado de Stephen Parker, um linguista de campo do SIL que tem expe-
riências similares com outros grupos pequenos. Graças ao contato inicial
do professor Sebastián, a família Iñapari nos recebeu com entusiasmo.
(Parker, 1995)

Dada a falta de interesse anterior do SIL nos Iñapari, essa viagem


dramática me sugere que Parker suspeitava que os Mashco podiam bem
ser falantes de Iñapari e que eles tinham agora uma comunidade de fala
funcional, tornando-se desse modo alvo da evangelização.

Política Mashco 1: machados de pedra

Os aspectos mais surpreendentes dos relatos sobre o isolamento volun-


tário dos Mashco são seu uso de ferramentas de pedra e sua falta de agri-
cultura. Estas duas características evocam nos ocidentais poderosas ima-
gens míticas. Os Mashco são caçadores e coletores da Idade da Pedra.
É claro que esse é um mito ocidental e que é extremamente improvável
que os Mashco usem ferramentas de pedra e não pratiquem a agricultu-
ra, porque eles são, por assim dizer, sobreviventes anacrônicos de um já

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

ultrapassado estágio evolucionário do desenvolvimento humano. A uti-


lização de ferramentas de pedra por povos indígenas contemporâneos e
seu engajamento na caça e na coleta são extremamente raros, e têm sig-
nificados políticos discerníveis, contanto que pensemos em política ao
modo indígena amazônico. Inicio com os machados de pedra.
A descrição forense de Beier e Michael acerca de suas casas e o teste-
munho do SIL sobre sua tecnologia em 1971 são notáveis: essas pessoas
usam machados de pedra e não demonstram nenhum interesse em ad-
quirir ferramentas de metal. Conrad Feather me contou que mesmo os
mais velhos Nahua nunca viram um machado de pedra e sempre usa-
ram os de metal. Os Nahua parecem ter tido muito menos contatos
pacíficos com povos que possuem machados de metal que os Mashco,
mas de algum modo sempre conseguiam tomar posse deles. Parece-me
extremamente improvável que os Piro usassem machados de pedra há
séculos, e, dadas as relações pacíficas entre os Mashco e outros povos
Piro desde no mínimo o século XIX, é provável que os Mashco conhe-
cessem ferramentas de metal e as tivessem adquirido se assim o desejas-
sem. Por que, então, usariam eles ferramentas de pedra?
Valdez Lozano escreveu sobre o primeiro encontro entre Fritzcarrald
e os Mashco, dizendo que ele “lhes deu ferramentas de metal, como
machados, facões, facas e outros bens, que foram recebidos com grande
curiosidade pelos índios porque era a primeira vez que eles os viam (...)”
(1942). Ele não conta como sabia que os Mashco nunca haviam visto
ferramentas de metal, e me parece muito improvável que eles nunca as
tivessem visto. Sua afirmação parece uma paráfrase do comentário piro
sobre a “grande curiosidade” que os Mashco demonstraram pelos pre-
sentes de Fitzcarrald. Valdez Lozano podia certamente ter visto o inte-
resse intenso que os Mashco demonstravam pelos presentes, mas apenas
uma pessoa Piro poderia tê-lo explicado.

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Matteson registra a seguinte afirmação piro de fins de 1940 ou co-


meço de 1950: “A geração anterior usava bambus cortados por facas e
machados de lâmina de pedra. Os machados eram pouco usados para o
trabalho com madeira, servindo antes para abrir cascas de tartaruga e
como armas” (1954, p. 55).
Do modo como foi exposta, essa afirmação é absurda, porque os Piro
da região do Bajo Urubamba provavelmente não usaram machados de
pedra com alguma frequência por muitos séculos, e certamente não o
usaram nos fins do século XIX. Mas uma afirmação piro muito comum
é a de que seus ancestrais, Tsrunni, “os mortos antigos”, viviam na flo-
resta, não conheciam machados de metal (giyawa, gepchi) e usavam os
de pedra (malyawa). Nesse contexto, o registro de Valdez Lozano era
provavelmente o de um comentário dos Piro de que os Mashco eram
como seus próprios ancestrais, “Gi gepchi rumata wa mashko” [“Os
Mashco não conhecem ferramentas de metal”].
Farabbe registrou em 1907 que os Mashco “São os últimos índios da
região a fazer e utilizar ferramentas de pedra” (1922). Relatos recentes
sobre os Mashco confirmam esse ponto, mas penso que devemos limpá-
los de seu sentido ocidental e lhes dar um sentido amazônico. Por essa
última perspectiva, o uso de ferramentas de metal pelos Mashco é uma
evidência de sua recusa em trocar ou saquear ferramentas de metal dos
outros. É essa recusa que é notável em todos os relatos sobre os Mashco
desde 1890. O que então ela pode significar? Suspeito que ela significa
que os Mashco têm como característica e conhecimento próprio a habi-
lidade de fazer machados de pedra. Esse conhecimento os posiciona de
um modo específico aos olhos de seus vizinhos. Fabricantes de macha-
dos de pedra, seus vizinhos deles dependeriam para adquirir tais obje-
tos, e essa dependência colocaria os Mashco no centro de um complexo
sistema de trocas. No fim do século XIX, porém, os patrões da borracha

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

começaram a inundar o Manu com substitutos baratos de metal aos


machados de pedra. E enfatizo “barato”. A maioria dos que escrevem
sobre a história amazônica tende a enfatizar o alto custo comparativo
dos machados de metal para os povos indígenas, em termos de trabalho
duro, vidas desperdiçadas, destruição cultural. De um ponto de vista
indígena, machados de metal eram assustadoramente abundantes, já que
os brancos tinham quantidades notáveis deles. A dificuldade está em
tentar tomá-los das mãos desses brancos, tomar posse deles. Isto é o que,
de uma perspectiva amazônica, dá à história sua natureza trágica.
Penso que essa perspectiva, e esse sentido de tragédia histórica, expli-
ca o isolamento voluntário dos Mashco. É uma resposta ao fato de que
nenhum de seus vizinhos queira mais machados de pedra. Como
Stephen Hugh-Jones (1992) demonstrou acerca da troca na Amazônia,
bens equivalem a uma relação social, e, se ninguém quer trocar com os
Mashco os objetos que produzem, então ninguém quer ter uma relação
de troca com eles. Os Mashco responderam na mesma moeda. Eles se
isolaram voluntariamente.
A mitologia da indústria de borracha nos conta que Fitzcarrald e seus
seguidores foram constantemente violentos contra os povos indígenas,
mas está claro que a política de Fitzcarrald era tentar endividar os povos
indígenas e torná-los trabalhadores. O relato de Valdez Lozano (1942),
que está longe de ser cheio de pruridos ou modéstia, deixa claro que a
primeira tentativa de Fitzcarrald foi de habilitar, preparar os Mashco.
Eles então responderam, mais tarde, atacando os trabalhadores da bor-
racha. De uma perspectiva indígena, este foi um movimento da troca à
guerra, um movimento que, como argumentou Lévi-Strauss (1976), é
típico da ação política indígena amazônica. É possível que essa mudan-
ça para a violência da parte dos Mashco tenha sido uma tentativa de
defender seu monopólio sobre os machados de pedra da competição
dada pelo fluxo de machados de metal. Evidentemente, os Mashco

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

não podiam ter previsto quão violentos os trabalhadores da borracha de


Fitzcarrald estavam dispostos a se tornar.

Política Mashco 2: nomadismo

Os Mashco, então, abandonaram também a agricultura. É pouco pro-


vável que eles não fizessem roças no século XIX. Farabee (1922) relata
que eles as faziam em 1907 e, portanto, o abandono da agricultura por
eles é um fenômeno do século XX. A Amazônia é um ambiente muito
difícil para se viver de caça e coleta; e Balée (1994) argumentou que é
provavelmente impossível fazê-lo em áreas que não são marcadas pelo
cultivo intensivo prévio. Apenas florestas secundárias antigas contêm
uma vegetação suficientemente apropriada para sustentar caçadores e
coletores. Todos os relatos localizam os Mashco em tais áreas de floresta
de regeneração de roças antigas, seja no Manu (suas roças ancestrais),
seja em Purus e Piedras, antigas roças dos Piro e mais tarde de povos
Pano, e dos Iñapari e Amahuaca, respectivamente.
Um dos problemas do estado corrente de nosso conhecimento sobre
os Mashco é que todos os contatos com estrangeiros de que temos notí-
cia ocorreram durante a estação seca, quando eles transitam pelas praias
dos grandes rios em busca de ovos de tracajá e outros recursos sazonais.
Ninguém sabe onde ou como eles passam a estação chuvosa. Isto signi-
fica que é possível que, como os Araweté do Brasil, eles pratiquem algu-
ma forma de agricultura durante a estação chuvosa, baseada talvez em
milho. No entanto, como me apontou Lev Michael, as regiões em que
eles poderiam passar a estação chuvosa foi intensamente fotografada pelo
ar e nenhuma evidência de atividade agrícola foi revelada.
Trabalhos recentes sobre o retrocesso agrícola, sobre a decisão de pa-
rar de fazer roças, sugerem que essa decisão é exatamente isso, uma deci-

- 37 -
PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

são. Como demonstrou Turner (1979) em sua análise da história recen-


te dos Kayapó, essas decisões nunca são tomadas apenas por necessida-
de econômica ou ecológica, sendo sempre decisões políticas, com conse-
quências dramáticas para o corpo político. Não temos acesso ao processo
de tomada de decisão dos Mashco, mas, seguindo o trabalho de Turner
sobre os Kayapó e o de Townsley (1994) sobre os Yaminahua, é prová-
vel que ela não tenha sido uma decisão súbita, e sim uma intensificação
ou um prolongamento de um padrão anterior de expedições sazonais.
Em uma comunicação pessoal, Lev Michael me expressou sua sur-
presa com o fato de que um grupo de falantes de Piro tenha escolhido
viver como vivem aparentemente os Mashco. De fato, eu também te-
nho dificuldades em acreditar nisso. Mais significativo ainda, nossa in-
credulidade é partilhada, como demonstrei, por muitos Piro. Dito isto,
penso que a “escolha” de se tornar nômades em isolamento voluntário
reflete algumas pequenas transformações em aspectos importantes das
relações sociais e práticas econômicas piro.
A mais surpreendente característica dos Mashco, quando compara-
dos aos Piro, é sem dúvida sua rejeição a um estilo de vida muito depen-
dente da proximidade de grandes rios, com uma subsistência fortemen-
te baseada na pesca e na agricultura, em grandes aglomerações que são
semipermanentes. De fato, a vida em tais aldeias, cercados por paren-
tes, é um valor central aos Piro: é para eles o “viver bem” (Piro: gwashata).
O verbo piro significa, literalmente, “ficar por muito tempo em um
lugar”, sendo fortemente contrastado com uma vida em constante
movimento, consequentemente impeditiva de se construir casas, de fa-
zer roças e de se engajar nas trocas cotidianas de comida com paren-
tes corresidentes.
Parece extremamente improvável que os Mashco tenham gwashata
como um valor importante, mas que também não é importante para
todos os Piro. Em particular, não é um valor-chave para os jovens.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Homens Piro jovens afirmam sua masculinidade mediante sua mobili-


dade e disposição de enfrentar a solidão. Eles fazem longas viagens a
outras comunidades em busca de esposas potenciais, ou simplesmente
por aventura. Uma versão disso, o equivalente diário das longas viagens,
é a caça. Pela caça, o jovem Piro mostra aos outros, e em especialmente
para si, ser um homem que não apenas é um provedor, mas também
capaz de enfrentar a solidão.
De um ponto de vista piro, os Mashco são uma solidão coletivizada,
uma coletivização da condição do caçador na floresta. O que impede os
Piro de coletivizar a solidão é precisamente a necessidade do caçador de
retornar à aldeia, de dar a caça a uma mulher (sua mãe ou esposa) para
que ela a prepare. É no “viver bem” da aldeia que o produto do caçador
é distribuído a outras mulheres, por sua mãe ou esposa, para ser prepa-
rada e consumida. Para “se tornarem Mashco”, os caçadores Piro teriam
que convencer suas parentas e esposas a acompanhá-los nas expedições
de caça.
Essa possibilidade permanece imanente, mas muito latente na vida
social piro. Em primeiro lugar, ao contrário da maioria das mulheres
amazônicas, muitas mulheres Piro sabem caçar e poderiam fazê-lo. Elas
caçam com as mesmas técnicas usadas pelos homens, e com as mesmas
armas. Aprendem a caçar acompanhando seus maridos em expedições
de caça, especialmente se são jovens e desincumbidas de filhos peque-
nos. Muitas mulheres Piro parecem de fato apreciar essas escapadas só
com seus maridos para a floresta, liberando-se do circuito diário das pre-
visíveis tarefas femininas e indo para a excitante variedade da floresta.
Pela caça, as mulheres Piro são capazes de acessar e apreciar alguns dos
aspectos da experiência masculina.
As expedições de caça de um casal Piro não constituem um mundo
social completo, porque as relações sociais de que seu casamento é feito
permanecem na aldeia. Para desenvolver um nomadismo plenamente

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

social, o casal Piro teria que convencer todos os seus parentes a acom-
panhá-los. Isso requer a quebra da ligação da vida social coletiva a “per-
manecer em um lugar”. O valor de “viver bem” teria que mudar, passan-
do do valor de uma vida permanente em aldeias para o de movimento.
Gwashata, “permanecer em um lugar”, teria que dar lugar à valorização
do “movimentar-se continuamente”. Dadas as circunstâncias históricas
adequadas, posso imaginar essa dramática transformação ocorrendo.
Tais circunstâncias históricas seriam, penso, aquelas que experimenta-
ram os Mashco.
Tais mudanças são mais fáceis e desejáveis para algumas pessoas do
que para outras: a caminhada perpétua pela floresta é mais fácil para os
jovens e desincumbidos do que para os velhos e as mulheres com filhos
pequenos. A mudança para o nomadismo é uma mudança coletiva aos
valores de homens jovens e suas jovens esposas, e pode ser interpretada
como um processo de coletivização de um modo de ser especificamente
masculino, aquele do caçador. Ela leva, sem dúvida, a transformações
dramáticas na vida dos Mashco, muitas das quais são provavelmente
bastante indesejáveis para muitos deles; mas foi, sugiro, uma possibi-
lidade imanente em suas vidas sociais antes da violência da indústria
da borracha, sendo, portanto, uma rota significativa e potencial rumo
à sobrevivência.
Talvez meu argumento seja confirmado pela singularidade da oca-
sião em que as três mulheres no Manu se dispuseram a aceitar o contato
pacífico com estrangeiros. Seu permanente desligamento do resto do
grupo de Pinquén foi quase certamente causado por brigas. Um dos
meus informantes, que conheceu essas mulheres, descreveu uma delas
como seprolo, ou seja, “louca, sem limites, fora de controle, sexualmente
promíscua”. Mulheres classificadas como seprolo no Bajo Urubamba são
foco de sérias brigas entre outras mulheres e são forçadas a “viver por aí”
até que tenham filhos com idade suficiente para as defender. Algo simi-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

lar pode ter ocorrido com a mulher Mashco mais jovem. As outras duas
mulheres, sua mãe e irmã mais velha, podem ter ido ao curso principal
do Manu para protegê-la, ao se aproximarem desses outros, os estran-
geiros, que seus parentes tão cuidadosamente evitam.
Sabemos por que essas mulheres aceitaram o contato, pois MacQuar-
rie registra que:

Finalmente, em 1979, a mais nova das mulheres se aventurou até a praia


justamente quando um barco com funcionários do parque passava. Os
guardas rapidamente aportaram o barco e viram surpresos que a mulher
começou a fazer gestos inconfundíveis de querer fogo. (MacQuarrie &
Bärtschi, 1998)

Agora, não consigo imaginar o que esses “gestos inconfundíveis de


querer fogo” podem ser. Penso que o que aconteceu foi que ela lhes dis-
se chichi, fogo. Essa palavra é comum ao Piro e às línguas Pano locais, e
seria reconhecível por qualquer um que tenha mesmo que uma fugaz
familiaridade com as línguas indígenas locais, tal como a que os guardas
do parque provavelmente têm.
Por que essas mulheres estavam sem fogo? Suspeito que seja porque
fazer fogo é um conhecimento masculino para os Mashco. Parece-me
muito improvável que elas não saibam como fazer fogo, já que devem
ter crescido vendo as pessoas fazendo. Parece-me muito mais provável
que elas considerem o fogo como um atributo masculino, e que viver
sem fogo fosse uma consequência de sua condição de viver sem homens.
Quando decidiram encontrar homens, foi fogo o que primeiro pedi-
ram. E esses novos homens, os guardas florestais, lhes deram uma caixa
de fósforos, mostraram-lhes como usá-los e as deixaram em paz mais
uma vez.

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PETER GOW. “ME DEIXA EM PAZ!”

Conclusão

Como conclusão, quero reiterar brevemente um ponto sobre a natu-


reza do conhecimento antropológico. Meu argumento aqui poderia
muito apropriadamente ser descrito como especulativo, no sentido de
que não está fundamentado em um conhecimento etnográfico genuíno.
Afinal, eu nunca encontrei uma pessoa Mashco e muito menos tive com
eles aquela longa conversa que é a observação participante, a base do co-
nhecimento etnográfico. Como sabemos, todo conhecimento etnográ-
fico tem uma dimensão política e, talvez ainda mais importante, ética.
No caso dos Mashco, um conhecimento etnográfico genuíno baseado
em observação participante requereria uma série de circunstâncias histó-
ricas e eventos que, como espero ter demonstrado, poderiam ser franca-
mente indesejados por eles. Com a exceção das três mulheres do Manu,
parece claro que os Mashco não gostariam de ser amolados por formas
indesejáveis de relações sociais. Especular não é saber, mas, em algumas
circunstâncias, o primeiro é infinitamente preferível ao segundo.

Notas
*
Agradecimentos: O presente relato foi originalmente escrito para Lev Michael e
Conrad Feather, e agradeço-lhes por seu auxílio e comentários. Luisa Elvira
Belaunde forneceu novas informações e também comentários, e agradeço ainda
aqueles que ouviram a versões anteriores na Universidade de St Andrews, no Mu-
seu Nacional e na Universidade de São Paulo por seus comentários. Minha pesqui-
sa de campo no Bajo Urubamba entre 1980 e 2001 foi financiada pelo Social
Science Research Council, pelo British Museum, pela Nuffield Foundation, pela
British Academy e pela London School of Economics.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

1
Os Mashco e seu isolamento voluntário levantam uma questão e um problema em
um contexto político contemporâneo que não discuto aqui, por falta tanto de es-
paço quanto de conhecimento especializado. Aqueles que estiverem interessados
nesse contexto podem encontrar informações relevantes digitando as palavras
Mashco, Mashco-Piro e Masco em um sistema de busca da Internet.

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2002 A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, São Paulo, Cosac
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ABSTRACT: The paper attempts to give an ethnographic account of the


meaning of voluntary isolation for the Mashco people of Peruvian Ama-
zonia. The very nature of voluntary isolation rules out ethnographic research
based on participant observation. In the absence of that kind of research,
the paper explores what is known about these people through written
sources, and especially through what is known ethnographically of their
neighbours and relatives, the Piro (Yine) people. Particular attention is paid
to what being “left alone” might mean to Mashco people, and to the history
and probable significance of their continued use of stone axes and their aban-
donment of agriculture.

KEY-WORDS: Mashco, Piro (Yine), Peruvian Amazonia, voluntary isola-


tion, politics and history.

Recebido em março de 2011. Aceito em junho de 2011.

- 46 -
Inscrito nos genes ou escrito nas estrelas?
Adoção de crianças e uso de reprodução assistida*

Martha Ramírez-Gálvez

Universidade Estadual de Londrina

RESUMO: Procura-se, neste artigo, explorar os deslocamentos que podem


estar associados à proliferação do uso de tecnologias de reprodução assistida
(RA) no país. São comparadas as narrativas sobre adoção e RA, atentando
para os discursos e as adequações ao modelo “biológico-natural” de repro-
dução, com o propósito de intuir caminhos possíveis para traçar um diálogo
entre essas duas formas de ter filhos. Discute-se o lugar das possibilidades de
escolha das características dos filhos oferecidas por cada um destes campos,
observando qual o seu referente, assim como o lugar simbólico atribuído ao
uso das tecnologias reprodutivas antes da adoção. Discute-se, ainda, o lugar
das crianças em cada um desses campos (adoção e RA) na preservação do
caráter estrutural da família consanguínea. Observa-se que a tecnologia per-
mite radicalizar a preferência generalizada e documentada em diversas pes-
quisas acerca de adoção de crianças recém-nascidas e com biótipo similar ao
dos pais. A adoção de embriões permite antecipar, ao máximo possível, tal
tendência, abrindo espaço para a realização da experiência corporal da ma-
ternidade, comumente associada à realização da feminilidade. Finalmente,
observa-se o lugar atribuído ao uso de tecnologias reprodutivas conceptivas
no processo de habilitação para adoção.

PALAVRAS-CHAVE: Reprodução assistida, adoção, família, biotecnologia.


MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

Introdução

A reprodução assistida (RA), termo com o qual se designa uma série de


métodos que colocam a intervenção médico-tecnológica como condi-
ção para a ocorrência de uma gestação, está se configurando como uma
forma moderna e amplamente divulgada para resolver a ausência
involuntária de filhos. Em pesquisa anterior (Ramírez-Gálvez, 2003)
acerca da configuração e consolidação do campo da RA no Brasil, veri-
ficou-se o rápido crescimento do número de clínicas que proporcionam
esses serviços no estado de São Paulo e o aumento progressivo do nú-
mero de matérias publicadas na imprensa sobre essa questão.1
A RA é um tipo de intervenção médica relativamente recente no país,
iniciada na década de 1980, e, desde seu começo, tem contado com es-
tratégias midiáticas, através das quais são divulgados os avanços e suces-
sos de técnicas, clínicas e especialistas que oferecem os serviços, assim
como diversas campanhas que visam “popularizar o bebê de proveta”.
Meios de comunicação de natureza diversa promovem a circulação
de informação entre a população em geral, permitindo uma ponte entre
as descobertas do mundo tecnocientífico e as/os potenciais usuários/as.
Além das matérias publicadas na imprensa escrita, esta temática tem sido
abordada, de maneira central ou tangencial, em diversas telenovelas bra-
sileiras (como Barriga de aluguel, Araponga, O clone, Laços de família)
ou é assunto de reportagens publicadas ou transmitidas, sobretudo em
datas comemorativas, como o Dia das Mães ou Dia dos Pais. Cabe des-
tacar o papel estratégico atribuído à televisão na difusão, reiteração ou
institucionalização de novos padrões de comportamento e de novas ati-
tudes. As telenovelas, particularmente, seriam exemplo de como um
gênero televisivo divulga informações que seus espectadores interpreta-
riam como as novidades do que poderia ser o Brasil moderno (Ham-
burger, 2001; Faria e Potter, 2002; Almeida, 2003).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

A mídia joga um papel importante na difusão da RA como um bem


de consumo moderno, sofisticado e valorizado. Nesse processo, popula-
riza-se a temática, privilegiando os aspectos que mais combinam com
os dramas de família e com os valores tradicionais a ela associados. É
pelo seu aspecto dramático que o tema aparece ligado aos sentimentos,
o que supõe um impacto considerável que transcende uma dimensão
meramente informativa. Como afirma Corrêa (2001), além do papel
da mídia, o interesse pela RA por parte da população se nutre da mobi-
lização de valores ligados à reprodução, à paternidade, à maternidade.
A despeito do caráter sensacionalista e pouco crítico das matérias
divulgadas na impressa escrita, interessa destacar o lugar desse tipo de
reportagens nas transformações coletivas e na constituição dos proces-
sos sociais. A mídia reflete significados vigentes, como também contri-
bui com o processo de inserção, familiarização, suscitação de interesse e
aceitação das novidades tecnológicas. Como afirma Birman (2002) acer-
ca da clonagem:

As ficções passaram a ser reconfiguradas pela tradução midiática, forma-


tadas que eram numa retórica cientificista [...]. Com isso, os seus conceitos
ganharam volume no imaginário, no qual circulam agora palavras novas
na gramática do senso comum. O significante célula-tronco [por exem-
plo] se inscreve agora na linguagem do cotidiano.

O crescimento do número de matérias sobre RA se dá concomitan-


temente ao crescimento de serviços disponíveis no Brasil, sobretudo no
estado de São Paulo (Ramírez-Gálvez, 2003). Segundo a Sociedade Bra-
sileira de Reprodução Assistida (SBRA, 2001), que realizou o Cadastro
Nacional em Reprodução Humana Assistida, até o ano 2000 seriam 117
as clínicas que ofereceriam serviços de RA no país: 47% estavam locali-
zadas no estado de São Paulo, das quais 54% se concentravam na capi-

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

tal (ibidem). No primeiro cadastro da Sociedade Brasileira de Reprodu-


ção Humana, realizado em 1992, o mesmo estado contava com dez ser-
viços de RA (Barbosa, 1999), passando a 23 em 1994 (Arilha, 1996).

Tabela 1: Registro dos centros de RA no Brasil


Estado Número de centros de RA
1992* 1994** 2000***
Alagoas - - 1
Bahia 1 - 3
Ceará - - 4
Distrito Federal 1 - 3
Espírito Santo - - 3
Goiás 1 - 2
Mato Grosso - - 1
Mato Grosso do Sul - - 3
Minas Gerais 2 - 9
Pará - - 1
Paraná 4 - 8
Pernambuco 2 - 5
Piauí - - 1
Rio de Janeiro 1 - 10
Rio Grande do Norte - - 1
Rio Grande do Sul 1 - 6
Santa Catarina - - 1
São Paulo 10 23 55
Total 23 44 117

* Dados da SBRH (Barbosa, 1999).


** Dados de Arilha (1996), discriminados só para o Estado de São Paulo.
*** Dados da SBRA (2001).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

À vista desse panorama, muito mais complexo e extenso do que pode


ser aqui discutido, considero conveniente colocar o campo da RA em
diálogo com a adoção de crianças, na medida em que as duas possibili-
dades se configuram como alternativa para superar o resolver a ausência
involuntária de filhos, centrando a análise na lógica subjacente a cada
um desses campos e nas possíveis relações que podem ser traçadas entre
eles. Ainda que o resultado efetivo ou esperado no final de cada um des-
ses processos seja o mesmo “ isto é, a obtenção de uma criança “, parece-
nos relevante analisar as narrativas que acompanham cada um desses
campos, especialmente a dimensão simbólica do patrimônio genético,
das possibilidades de escolhas das características genéticas, da experiên-
cia de gravidez, assim como interessa também observar o lugar essencial
da filiação, em particular a consanguinidade, na configuração da famí-
lia. Tal análise tem de levar em consideração as marcas de classe social,
uma vez que, apesar das iniciativas para baratear os custos, os serviços
de RA não estão disponíveis para todas as pessoas. Todavia, a dimensão
de classe não deve ser considerada apenas no aspecto econômico, pois,
embora esta se torne uma condição necessária, não é suficiente para ex-
plicar o uso de reprodução assistida.
Assim sendo, o objetivo de presente artigo é analisar as narrativas
produzidas sobre adoção, fazendo o contraste pertinente com o campo
da RA e observando possíveis deslocamentos que poderiam estar acon-
tecendo com o crescimento e a popularização dos “bebês de proveta” no
Brasil, em particular no estado de São Paulo.2 A palavra “deslocamen-
to”, na fase inicial da pesquisa, foi tomada no seu sentido lato, para me
referir à plausível mudança na temporalidade atribuída a uma possível
adoção de crianças, na procura por descendência, com o crescimento da
RA – isto é, a uma presumível protelação do projeto de adotar ou va-
riação de posição da adoção na trajetória pela busca de um/a filho/a.
No entanto, é inegável que o uso desse termo para colocar em relação

- 51 -
MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

esses dois campos está impregnado dos desenvolvimentos teóricos de


Marilyn Strathern (1992), que inspiraram muitas das análises da pes-
quisa anterior sobre reprodução assistida. Para esta autora, as ideias são
sempre enunciadas em um ambiente de outras ideias, em contextos já
ocupados por outros pensamentos e imagens. Esses ambientes ou con-
textos fornecem uma série de domínios e o deslocamento se dá na for-
ma de alterar nossa forma de fazer conexões entre domínios não consi-
deráveis antes das possibilidades postas pelas tecnologias. Encontrar um
lugar para novas ideias se torna um ato de deslocamento (ibidem, p. 6).
Neste sentido, analisa-se, por exemplo, o significado atribuído ao uso
de RA no processo de adoção de crianças e de pré-embriões, como será
visto mais adiante.
Ciente das limitações e dificuldades metodológicas para a realização
desse tipo de análise, até pela ausência de literatura disponível acerca de
uma iniciativa similar, limito-me a apresentar uma aproximação e ex-
ploração, ainda parcial, do campo da adoção de crianças, com o objeti-
vo de intuir caminhos mais certeiros e possíveis para traçar tal diálogo.

Dados e processos de adoção


do Fórum de Santo Amaro – São Paulo (SP)

A análise aqui apresentada faz parte de uma pesquisa maior, cujos dados
fora coletados ao longo de três anos (2004 a 2007), em fontes muito
variadas, mas que considerei necessárias para me aproximar, aprofundar
e observar os diversos ângulos e as perspectivas possíveis das diferentes
pessoas e instituições envolvidas na adoção de crianças.
Dada a ausência de dados estatísticos sobre adoção, esta pesquisa en-
volveu a elaboração de uma base de dados com informação de 388 casos
habilitados para adoção pelo Fórum de Santo Amaro, com o intuito de

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

traçar o perfil dos/as requerentes e da criança desejada.3 Esta informa-


ção quantitativa foi aprofundada mediante análise qualitativa de 25 pro-
cessos de pretendentes habilitados pelo referido fórum de Santo Amaro
que aguardavam pela colocação de uma criança. Foram realizadas, tam-
bém, observações etnográficas dos encontros, geralmente mensais, de
três Grupos de Apoio à Adoção – GAA, um do interior e dois da capital
do estado de São Paulo. Nesses espaços e durante esses encontros, foram
realizadas entrevistas informais com voluntárias/os de tais grupos e com
casais em processo de adotar que os frequentavam. Psicólogas e assisten-
tes sociais – das Varas da Infância e da Juventude de Campinas, do
Fórum de Santo Amaro e da Comissão Estadual Judiciária de Adoção
Internacional de São Paulo – gentilmente me concederam entrevistas,
tendo realizado vários encontros com algumas delas. Entrevistas em pro-
fundidade foram realizadas com quatro casais que já tinham uma ou
duas crianças adotadas. Além do mais, com o intuito de compreender
as redes, as conexões e a filosofia que orienta os GAA, participei como
observadora do 10o Encontro Nacional de Grupos de Apoio à Adoção
(Enapa), realizado em Goiânia, em 2005.4
Para os efeitos deste artigo, focalizo a informação obtida em 25 pro-
cessos de pretendentes habilitadas/os pelo Fórum de Santo Amaro que
aguardavam a colocação de uma criança: dezenove cadastrados em 2005,
cinco em 2002 e um em 2001. No entanto, a análise desses casos está
informada pelas diversas fontes antes mencionadas. Tais processos são
peça-chave, pois constituem o material de avaliação que auxilia o juiz
no deferimento ou não de um pedido de habilitação e, portanto, na
definição da alocação de uma criança. São compostos de três formulá-
rios do Poder Judiciário e outros documentos, cujo conteúdo descrevo
a seguir.

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

Formulário 1 – Cadastro de Adoção


Nele constam as seguintes informações: dados de um/a ou dois re-
querentes, com nome, idade, cor, data de nascimento, estado civil, es-
colaridade, religião, profissão, dados do empregador, tempo de serviço
do emprego atual; dados e condições habitacionais, com endereço, tipo
de moradia, tamanho, construção; dados econômico-financeiros, com
salário dele e dela, propriedades, bens, rendimentos adicionais; dados
sobre saúde e atendimento médico, se fizeram tratamento de saúde,
cirurgias, uso de medicamentos, se têm ou não convênio médico; infor-
mações sobre o grupo famíliar, com nome, idade, sexo e escolaridade de
cada um dos filhos, se o caso, sobre a contribuição dos filhos no
orçamento doméstico, saúde, se eles concordam ou não com a adoção.
O formulário tem um tópico sobre adoção, no qual há perguntas aber-
tas acerca das motivações que levaram ao desejo de adotar, se os famili-
ares sabem desse desejo, qual a reação deles, se há casos de adoção na
família, o que o/a requerente pensa a respeito de contar à criança sobre
ela ser adotada, quais dúvidas tem com relação à adoção. Pergunta, ain-
da, sobre o perfil da criança desejada, tais como sexo, idade, idade máxi-
ma, cor; se o/a pretendente já pensou em adotar irmãos e, em caso afir-
mativo, com que idade; se tem disponibilidade para adotar crianças com
problemas de saúde ou alguma deficiência. O formulário encerra per-
guntando quais informações a pessoa gostaria de receber naquele mo-
mento em que se inicia o processo de cadastramento para adoção.

Formulário 2 – Qualificação do/a pretendente


Contém dados de identificação, números dos documentos de iden-
tidade, dados residenciais, opções e informações para contato. A este
formulário devem ser anexadas cópias de RG; CIC/CPF; certidão de
casamento com data de expedição não superior a três meses ou, em caso

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

de o/a pretendente ser solteiro/a, certidão de nascimento; comprovante


de residência; comprovante de rendimentos; atestado ou declaração
médica de sanidade física e mental; fotografia das pessoas pretendentes
e da residência (parte externa e interna).

Formulário 3 – Planilha para cadastramento de interessados nacionais


São repetidos vários dos dados das/os requerentes consignados nos
formulários anteriores. Além destes, há um campo no qual é especificada
a data e o número de inscrição na Vara da Infância e da Juventude, além
da data de habilitação. Entretanto, são mais qualificados ou específicos
os dados acerca dos/as filho/as biológicos/as do e da requerente e/ou do
casal, se há ou não filhos adotivos, indicando, em cada um dos casos, o
número e a idade do mais velho e do mais novo. Também os dados so-
bre a criança desejada são qualificados com opções fechadas de resposta:
se o/a pretendente aceita irmãos, quantos, idade máxima (em meses); se
aceita irmãos só em caso de serem gêmeos; sexo preferido, se feminino,
masculino, indiferente; cor, se branca, negra, parda, amarela, índio ou
indiferente; cabelo, se liso, crespo, ondulado, carapinha ou indiferente.
Uma parte indica a opção “Sim” ou “Não” para traços negroides, com a
seguinte observação em negrito: “Se os requerentes optarem por cor in-
diferente, esta opção abrangerá inclusive a cor negra e portanto deverão
aceitar a opção “Traços Negróides” (transcrito literalmente do formulá-
rio, inclusive com o sublinhado). Finalmente, o formulário pede para
colocar “Sim” ou “Não” em cada uma das dezoito opções acerca das ca-
racterísticas e origem da criança, tais como problemas físicos, mentais,
psicológicos, com gradação para: não tratáveis, tratáveis graves, tratáveis
leves; com pais aidéticos, viciados em drogas, álcool; portadores de HIV;
provenientes de estupro, incesto; vítimas de estupro ou de maus tratos.

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

Após a entrega dos respectivos formulários, de documentos e foto-


grafias, bem como da pesquisa de antecedentes nos distribuidores civis
e criminais (solicitada pelo juiz), procede-se ao agendamento da ou das
entrevistas psicossociais. Na Vara, a avaliação psicossocial pode ser feita
por uma funcionária ou por uma assistente social contratada. As pro-
fissionais responsáveis pelo atendimento efetuam o laudo psicossocial
com parecer relativo à inclusão ou não no Cadastro de Pretendentes à
Adoção. Com base nesses elementos, o juiz defere ou não o pedido de
habilitação durante uma audiência. Em caso de deferimento, as/os
pretendentes passam a fazer parte do Cadastro da Vara da Infância e
da Juventude e da Comissão Estadual de Adoção Nacional e Internacio-
nal (Cejai).
Após dois anos de espera, os dados dos pretendentes são atualizados
e a demanda é reavaliada, se houver reafirmação do pedido ou solicita-
ção pela/o pretendente. Deste modo, os processos analisados em nosso
estudo com espera superior a dois anos tinham mais de uma avaliação.
Os processos a que tive acesso foram escolhidos pelas funcionárias, le-
vando em consideração meu pedido de ter casos recentes e mais anti-
gos, e que, na medida do possível, tivessem um perfil variado da/os pre-
tendentes. Não foi possível ter acesso a processos mais antigos ou
encerrados, pois estes são arquivados e não ficam disponíveis no prédio
onde funciona o Fórum.
Dentre os 25 processos examinados, quatro correspondem a requeri-
mentos de mulheres sozinhas, com idades entre 42 e 49 anos, e com
uma renda média de R$ 2.822 (7,4 salários mínimos5). Três delas ti-
nham curso superior, e uma tinha segundo grau completo. Somente uma
delas nunca teve um relacionamento; outra ficou viúva aos dois anos de
casada, depois do qual não mais se relacionou; as outras duas tiveram
convivência com parceiros por períodos curtos, sem gravidez, tendo uma

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

delas atribuído o desgaste do relacionamento à falta de filho. Duas des-


sas mulheres tiveram diagnóstico de infertilidade, mas nunca tentaram
fazer reprodução assistida.
Curiosamente, todas foram babás, professoras de escola, ou tiveram
sob seu cuidado os irmãos mais novos. A adoção é manifestada por elas
como um projeto de longa data, mas dificilmente viável no momento
em que foi desejado, por avaliarem que as condições não eram as mais
adequadas. O fator econômico e o fato de planejarem ser mães sozi-
nhas, sem infraestrutura familiar para dividir o cuidado das crianças,
foram determinantes para adiarem o requerimento de adoção. Três des-
sas mulheres, que vivem sozinhas em casas próprias, manifestaram que
esperaram construir um patrimônio e a aposentadoria para poder se
dedicar ao cuidado de uma criança.
Os 21 processos restantes correspondem a requerimentos de casais
heterossexuais. A renda é muito variada, com uma média de R$ 10.573
(27,8 salários mínimos), sendo a menor renda de 1.100 reais (2,9 salá-
rios mínimos), e a maior de 50 mil reais (131,6 salários mínimos). Quan-
to ao nível de instrução, a maioria (quinze homens e quinze mulheres)
tinha curso técnico ou superior completo; apenas um dos parceiros ti-
nha até primeiro grau, e as sete pessoas restantes tinham segundo grau.
A idade média dos homens era de 41 anos, enquanto a das mulheres
era de 37,7 anos.
Entre os 21 casais, apenas um, sem problemas de fertilidade, optou,
após dois anos de casamento, por ter o primeiro filho mediante adoção,
independentemente de ter ou não um filho biológico no futuro. No
caso deste casal, a mulher tem três irmãs biológicas e duas adotadas.
Nos vinte casos restantes, a motivação pela adoção foi determinada pela
impossibilidade de engravidar, embora, em alguns casos, um dos mem-
bros tivesse filho de relações anteriores. Para o objetivo principal deste

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

artigo, que é observar os possíveis deslocamentos e as interconexões en-


tre os dois campos, interessa apontar que o uso de tecnologias repro-
dutivas (referidas no processo como inseminação artificial [IA] e fertili-
zação in vitro [FIV]) foi manifestado por dez desses vinte casais
solicitantes. Alguns deles abandonaram rapidamente a possibilidade de
intervenção médica e tecnológica por considerá-la muito cara e invasiva,
ou por avaliar que não tinham garantia de sucesso. No entanto, outros
casais, especialmente aqueles com maior renda familiar, se submeteram
a esses procedimentos repetidas vezes ao longo de vários anos. Embora
as considerações que serão apresentadas mais adiante se centrem nestes
casos, as tendências percebidas não inviabilizam outros perfis possíveis
de serem traçados.6

Famílias para crianças ou crianças para casais?

O número de adoções concedidas legalmente no Estado de São Paulo


apresenta uma diminuição constante e progressiva. Dados coletados na
Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo7 mostram que, de 7.165 adoções nacionais e internacionais auto-
rizadas em 1994, passou-se para 3.555, em 2001, e para 3.339, em 2004,
o que representa uma diminuição de mais de 50%. Em 2002 e 2003,
observa-se uma estabilização no número de adoções, porém, em 2004,
a tendência de queda continuou.8

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Tabela 2: Adoções legais no Estado de São Paulo (1994 a 2004)


Ano Total de adoções Estrangeiros Nacionais
1994 7.165 410 6.755
1995 6.590 338 6.252
1996 6.207 345 5.862
1997 5.767 298 5.469
1998 5.075 271 4.804
1999 4.760 174 4.586
2000 4.338 119 4.219
2001 3.555 96 3.459
2002 4.155 89 4.066
2003 4.150 120 4.030
2004 3.339 157 3.182

Fonte: Corregedoria Geral de Justiça – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Apesar desta tendência verificada nos registros numéricos, psicólo-


gas e assistentes sociais da Vara da Infância e da Juventude de Campi-
nas9 manifestaram não ter percebido uma diminuição na demanda de
casais por adoção nos últimos anos. Ao serem indagadas sobre a possível
relação entre RA e adoção, afirmaram que são processos totalmente di-
ferentes. Segundo elas, enquanto na adoção se procura uma família para
uma criança,10 na RA se procura um filho para um casal. Essa inversão
nos termos da procura coloca prioridades, valores e interesses diferencia-
dos em cada uma das alternativas, na perspectiva destas profissionais.
Na procura por famílias adotantes, pelos menos como foi exposto
por esse grupo de psicólogas e assistentes sociais, o trabalho que reali-
zam é o de avaliar os lares que possam proporcionar um espaço seguro e
adequado para o crescimento e o desenvolvimento das crianças, assim

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

como da aceitação do filho adotado independentemente de suas carac-


terísticas físicas ou mentais. Todavia, os casais, na sua maioria, deman-
dam crianças recém-nascidas e brancas ou, no máximo, pardas. A “crian-
ça ótima” para adoção, além de ser recém-nascida e de pele clara, é aquela
da qual se conhece a procedência: vinda de uma mãe de “boa família,
com bons valores morais, trabalhadora e honesta, ainda que pobre” (Cos-
ta, 1991, p. 111).
No panorama das possibilidades oferecidas pelas tecnologias repro-
dutivas, passa-se a dar relevo ao fato de que, na adoção, a criança é
introduzida na nova família meses ou anos depois do seu nascimento,
sendo o casal privado de participar da gestação, dos cuidados pré-natais
e do parto, eventos considerados como dos mais gratificantes da vida
reprodutiva. Esses aspectos foram debatidos durante a I Jornada de Psi-
cologia e Reprodução Assistida (São Paulo, 2001), ao se discutir a ovo-
doação. As psicólogas palestrantes deste evento destacavam que a ansie-
dade das receptoras de óvulos doados por outras mulheres, inseminados
com o sêmen do parceiro, poderia ser equiparada à verificada na situa-
ção de adoção de crianças. As dúvidas sobre as características físicas,
emocionais, sociais e de saúde da doadora de óvulos seriam recorrentes
e geradoras de ambiguidades, somadas aos temores quanto à aceitação
da criança após o nascimento. No entanto, uma vez conseguida a gravi-
dez, também seria frequente que fosse esquecida a origem do óvulo, sem
interferir na relação posterior com o/a filho/a (Ramírez-Gálvez, 2003).
Desse modo, quando a fecundação não pode ser feita com o material
genético do casal, é oferecida a possibilidade de doação de gametas ou
de embriões, procedimento que permitiria fazer um tipo de adoção
numa fase anterior ao nascimento, com a possibilidade de vivenciar o
processo de gestação e parto, e supostamente com mais opções de esco-
lha das características desejadas.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Uma das primeiras questões que chama a atenção ao pensar esses dois
campos é a naturalização feita por alguns especialistas em RA do fato de
os casais recorrerem a esse procedimento em várias ocasiões, antes de
optar pela adoção de crianças. Segundo alguns desses especialistas, os
casais sempre querem tentar, até último momento, ter o filho biológi-
co, colocando tal questão no plano dos direitos: as tecnologias reprodu-
tivas seriam uma opção e os casais teriam o direito de tentar um filho
próprio, antes de adotar o filho de outros (ibidem).
Com o acelerado desenvolvimento biotecnológico, a reprodução as-
sistida médica e tecnologicamente vem acompanhada pelo interesse na
qualidade do embrião, gerando uma espiral de indagações tecnológicas
e de consequentes manipulações, à procura da “perfeição biológica”,
ancorada numa extrema racionalização da procriação (Rotania, 1995).
Uma possível hipótese a ser explorada é que o crescimento e a conso-
lidação desse campo no país trazem um cenário no qual a adoção de
crianças tende a ser cada vez mais protelada, em benefício do uso de
tecnologias reprodutivas. A adoção de crianças continua sendo coloca-
da como uma alternativa; no entanto, esta seria cada vez mais adiada à
medida que surge uma nova técnica. Continua a ser um recurso para
quem tentou, sem sucesso, várias técnicas, em várias ocasiões.
As assistentes sociais e psicólogas entrevistadas em Campinas conce-
bem que, na procura de filho mediante a RA, os profissionais estariam
atendendo as necessidades e os desejos do casal, e não da criança.11 A
inversão de foco usada para diferenciar adoção e RA – dando prioridade
ou às necessidades da criança cedida para adoção, para quem se procura
uma família, ou ao desejo do casal infértil – é sustentada nas mudanças
introduzidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que
trouxe também mudanças na chamada “nova cultura da adoção”.
Na adoção considerada tradicional teria prevalecido o interesse do
casal adotante, que procurava constituir uma família com filhos ou au-

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

mentar sua descendência. Em contraste, a nova cultura de adoção, ajus-


tada ao ECA, teria como valor absoluto o bem-estar da criança, ao de-
terminar como dever da família, da comunidade, da sociedade e do Es-
tado garantir os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, entre
eles, o direito à convivência familiar e comunitária.
Na visão tradicional, em que predomina a importância atribuída à
proteção do patrimônio/herança “ não só do capital econômico, como
também do genético “, e também a valorização dos laços consanguíneos,
destaca-se o perfil desejado, ou seja, menina, branca e recém-nascida,
para o qual há muitos pretendentes e poucas crianças. Uma das preocu-
pações do 10º Enapa foi a de trazer para o centro da reflexão as chama-
das adoções necessárias, de crianças mais velhas, negras e com necessida-
des especiais, e, nesses casos, a relação se inverte, havendo poucos
pretendentes. Tal situação, no ver das/os organizadoras/es desse encon-
tro, implica a diminuição de oportunidades para essas crianças e esses
adolescentes de terem respeitado seus direitos à convivência familiar.
Ao priorizar a reflexão e o debate em torno das adoções necessárias,
procura-se estimular uma nova cultura da adoção no país, que visa mu-
dar a atitude das pessoas na hora de adotar. Pretende-se privilegiar os
interesses das crianças, em vez dos interesses dos que manifestam inten-
ção de adotar. Esta nova cultura da adoção, segundo Vieira, articula-se a
um verdadeiro projeto social que extrapola o domínio do privado: “a
adoção, a família e a infância guardam uma importância pública, de
modo que a paz social depende da implementação de políticas que pro-
porcionem o fortalecimento das famílias e o bem-estar da infância e ju-
ventude” (Viera, 2004, p. 94).
O deslocamento da adoção da esfera privada para a pública, regulada
pelo Estado, e, ainda, o fato de a adoção passar a ser um campo de inter-
venção profissionalizado – que demandou estudos e reflexões, especial-
mente de psicólogas, assistentes sociais e advogados – introduziram

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

mudanças bastante contrastantes na forma pela qual ela é encarada. Prá-


ticas como a adoção ilegal e a preservação do segredo sobre a origem das
crianças, tão presentes e centrais na pesquisa realizada por Costa (1988)
entre as camadas médias, antes de entrar em vigor o ECA, são frequen-
temente desestimuladas entre os grupos de adoção.
A revelação da origem da criança é correlata à insistência dos Grupos
de Apoio à Adoção (GAA) nas adoções legais. A existência e o fácil aces-
so ao teste de DNA, assim como a ocorrência de histórias amplamente
divulgadas pela mídia, como o “caso Pedrinho”,12 são usados para deses-
timular a adoção ilegal. A ênfase é colocada não só na ocorrência de um
ato criminoso, mas também na falta de sossego para os pais, que teriam
que lidar com o “fantasma da mãe” que busca seu filho. Sobre este as-
sunto, voltarei mais adiante.
A adoção de crianças mostrou-se um universo rico de interpretações
sobre a concepção de família, sobre o que significa pertencer ou confi-
gurar uma família, como também acerca dos valores colocados em jogo
com relação ao sangue, à transmissão genética, e do que se tolera ou não
quando o filho é “um estranho”.
A participação dos/as pretendentes à adoção nos GAA, o tempo de-
mandado pela avaliação para habilitação do juiz, assim como o tempo
de espera pela chegada da criança, são concebidos como um período de
“gestação adotiva”, de preparação psicológica para analisar e fundamen-
tar a decisão que permitirá acolher o filho alheio como próprio. O pro-
cesso se pauta por negociações que supõem a aceitação da esterilidade
(na maioria dos casos) e o acolhimento de um estranho que não parti-
lha a mesma carga genética e, geralmente, vem de outra classe social.
Nesse processo, Costa (1988) observa uma espécie de biologização na
relação com os filhos adotivos, entendida como a intencionalidade de
preencher o espaço do biológico (dos laços de sangue), ausente na ado-
ção. Essa biologização se daria através de várias estratégias. Uma delas é

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

a equivalência dada ao tempo da burocracia como um período de espe-


ra semelhante ao tempo de gestação de um filho biológico. Outra estra-
tégia é dada pelo desejo de adotar crianças recém-nascidas, pois as mais
velhas teriam um passado que deixaria marcas que não são as das pesso-
as adotantes. Uma terceira estratégia, e talvez a mais fundamental, é a
escolha de crianças com biótipo similar ao dos pais adotivos. Adotar uma
“neguinha que nem eu ou um branquinho que nem o pai” torna-se um
ideal e um aspecto transcendente para que a adoção dê certo ou seja
bem-sucedida. A correspondência de sexo e cor contida na frase anteri-
or refletia os traços físicos de um casal que assistia pela primeira vez ao
GAA de Campinas. Ela, de pele escura, e ele, de cor mais clara e traços
indígenas, estavam casados fazia sete anos e não tinham filhos. O casal,
que morava em um bairro periférico da mesma cidade, ficou sabendo
da existência do GAA pelo irmão dele, um cobrador de ônibus, que co-
nheceu uma mulher que lhe passou a informação. Estavam indo ao gru-
po para “pegar filho”, pois já tinham ido à Vara da Infância, onde foram
informados que o processo poderia demorar entre três ou quatro anos.
Era a primeira vez que o casal tinha contato com o GAA, e a expectativa
de “pegar filho”, contrapondo à demora que haveria na Vara, evidencia-
va seu desconhecimento inicial quanto aos objetivos destes grupos.
A adoção cria relações pela via jurídica, e não pelo sangue. No entan-
to, nem todas as crianças destituídas de relações familiares têm possibi-
lidade de encontrar uma família. Como afirma Vieira (2004), na rela-
ção efetivada através de adoção são colocados em jogo critérios de escolha
das crianças a serem adotadas que não podem ser desprezados na com-
preensão deste campo.
Entre as/os pretendentes do Fórum de Santo Amaro, identifica-se a
tendência reportada pelos operadores de Justiça e por outras pesquisas
acerca de uma preferência generalizada por meninas. Em consequência,
a escolha de meninos é mais reduzida. Nos GAA foi possível escutar de

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

alguns casais que adotariam pela primeira vez que era indiferente o sexo
da criança, por se tratar do primeiro filho/a, deixando tal definição ao
acaso, do mesmo modo como aconteceria com uma gravidez biológica,
em que “não se sabe o que vai vir”.
A maior preferência por meninas na adoção parece não ter a mesma
intensidade quando se trata de reprodução assistida. Apesar de não ter
dados oficiais sobre o desejo quanto ao sexo dos bebês gerados por essas
técnicas, ao se discutir a proibição desta escolha13 o que aparece frequen-
temente evocado é a demanda e o direito dos pais de escolher ter um
filho homem, sustentada em questões culturais ou religiosas. Na mídia,
esta possibilidade é apontada como um dos atrativos da RA, já que per-
mitiria adequar a composição das famílias a um tipo ideal, conformado
por mãe, pai, um primogênito menino e uma menina. O Dr. Roger
Abdelmassih, ex-proprietário do maior centro de reprodução assistida
da América Latina, localizado em São Paulo e com uma presença con-
tundente na mídia, manifesta o seguinte: se existem os meios e se há
pessoas para as quais, por questões culturais, ter um filho homem é de
grande importância, isso não deveria ser impedido (Besen, 1998/1999;
ComCiência, 2001). Numa reportagem de capa da revista Veja (Brasil,
2004), o tema é a possibilidade de escolha do bebê mediante o uso de
técnicas de reprodução assistida. Na matéria são narrados diversos casos
em que a seleção de sexo efetivamente se realiza, aduzindo como moti-
vo principal a busca de um balanceamento ou equilíbrio familiar entre
casais que têm vários filhos de um ou outro sexo. Nesses casos, embora
não houvesse um problema de infertilidade, eles não queriam arriscar
ter mais filhos/as do mesmo sexo.
A procura de uma criança com biótipo similar ao dos pais, assim
como a tendência a desejar crianças pequenas, preferivelmente recém-
nascidas, pode ser interpretada como uma forma de aproximar a adoção
ao desenvolvimento “natural” reprodutivo, que, neste caso, suprimiria

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

só a etapa da gravidez. Se houve a aceitação de uma criança com carga


genética diferente da dos pais, espera-se poder neutralizar, modelar ou
domesticar, o mais cedo possível, as marcas da “natureza”. Como afirma
Vieira (2004), a tendência de adotar uma criança com a menor idade
possível pode ser um artifício que ajuda a conter as próprias inseguran-
ças dos pais com relação às marcas genéticas de estranhos ao grupo fa-
miliar. Mas, também, cabe considerar que adotar crianças muito peque-
nas, com as quais não há uma identidade genética, pode ter como
objetivo impregnar as marcas do casal adotante – isto é, diminuir o tem-
po de exposição a uma sociabilidade que se supõe negativa, seja pelas
condições de institucionalização, seja pelo abandono, seja pelas condi-
ções difíceis de vida.
Quanto aos temores associados à adoção de crianças, o que mais pre-
valeceu nos processos analisados do Fórum de Santo Amaro foi a preo-
cupação com as características herdadas de comportamento. No entan-
to, tais medos parecem ir diminuindo ao longo do processo, durante o
qual é frequente a procura por informações e contato com outras pesso-
as que tiveram a experiência de adoção, encontrada nos grupos de apoio,
na literatura sobre o tema e em outras fontes de informação que trazem
maior familiaridade com essa experiência. Em alguns dos processos ana-
lisados, foi explicitada a importância de ter conhecido de perto, através
de amigos ou de familiares, experiências avaliadas de modo positivo. Um
dos casais diagnosticados com infertilidade sem causa aparente partiu
diretamente para a adoção, por haver acompanhado de perto dois casais
de amigos que adotaram crianças recém-nascidas, “coincidentemente,
muito parecidas com eles”.
Na descrição das motivações para adotar também se observa certa
idealização da criança esperada. Além de procurar alguém com biótipo
semelhante, no qual se conjuguem as características do casal, há também
expectativas quanto à sua personalidade. Espera-se que uma criança sem-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

pre tenha condições de “encher de alegria” as casas, de ser “sapeca, ex-


trovertida e inteligente”, que tenha semelhanças com as pessoas que con-
formam o núcleo familiar, seja o casal, seja os filhos biológicos existentes.

Bebê, branco e, na medida do possível, com características


físicas semelhantes às dos pais

Entre as matérias publicadas na imprensa sobre RA há poucas referên-


cias à adoção de crianças como uma possibilidade, também desejável,
para superar a ausência involuntária de filhos. Todavia, os casais cuja
infertilidade a tecnologia ainda não poderia superar são animados a con-
tinuar à espera do acelerado desenvolvimento tecnológico que, teori-
camente, superaria todas as formas de infertilidade. Se o problema não
for técnico e sim financeiro, também surgem alternativas esperanço-
sas, como os planos de financiamento ou a venda de pacotes que visari-
am “popularizar o bebê de proveta”. Para mulheres ou casais mais po-
bres são oferecidos programas, tais como o da “doação compartilhada
de óvulos”, no qual mulheres mais pobres doam seus óvulos em troca
do tratamento14.
A presença de filhos aparece como determinante para a conformação
de uma família. Entre os casais sem filhos é recorrente a manifestação
do desejo de formar uma família ou de vê-la crescer, do contrário a
família parece incompleta. O momento em que se inicia a procura por
uma criança parece estar associado ao fato de se ter atingido uma meta
de estabilidade profissional e financeira, como também a uma questão
geracional que implica a interação do casal com amigos que tenham
crianças pequenas. Como indica Fonseca (1995), para a classe média o
modelo de família mais comum está centrado no tipo conjugal em que
as crianças, foco daquela unidade, são o resultado de um projeto parental

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

de longo tempo. Nesses casos, como frisa a autora, as pessoas trabalham


seu relacionamento conjugal e investem nos filhos a fim de construir
uma família, que parece estar verdadeiramente completa com mais de
um filho, modelo que atende ao imaginário do ideal de família, com-
posto pelo casal e dois filhos, de preferência de sexo diferente. Nos casos
em que algum dos cônjuges teve filhos de casamento anterior, o desejo
de adotar também se manifesta pela sensação de incompletude na au-
sência de um projeto parental partilhado com o/a parceiro/a atual.
Como foi mencionado antes, entre os 21 processos de casais, houve
apenas um pedido de habilitação para adotar sem que houvesse problemas
de fertilidade. Neste caso, a adoção sempre foi um projeto, especialmente
relacionado à história de vida da mulher, que tinha irmãos biológicos e
adotivos. Em outros casos, nos quais foi diagnosticada a infertilidade ou
se fizeram tentativas de RA sem sucesso, os/as pretendentes à adoção tam-
bém a mencionaram como uma possibilidade que estava presente desde
antes de conhecer as limitações biológicas para engravidar.
O uso de tecnologias reprodutivas conceptivas, como a inseminação
artificial (IA) e a fertilização in vitro (FIV), foi reportado em dez dos 21
processos de casais solicitantes. Em outros casos, as pessoas manifesta-
ram que haviam feito procedimentos mais simples, tais como a ingestão
de hormônios ou, inclusive, tratamento psicológico para engravidar.
Alguns casais disseram ter abandonado rapidamente a possibilidade de
intervenção médica e tecnológica, por considerá-la muito cara, invasiva,
ou por avaliarem que não havia garantias de sucesso. No entanto, há
outros casos, especialmente de casais com maior renda familiar, que se
submeteram a esses procedimentos repetidas vezes.
É o caso de Bruno,15 com 36 anos, e Paula, com 34, casados havia
nove anos, os dois com curso superior, bancários, com renda familiar de
aproximadamente 132 salários mínimos (50 mil reais), que se cadas-
traram para adoção depois de sete anos de tentativas para engravidar.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Quando estavam no terceiro ano de casamento, decidiram ter filhos,


mas foi constatada baixa produção de espermatozóides. Realizaram três
IA e, na terceira tentativa, ela teve uma gravidez gemelar ectópica que
requereu a realização de cirurgia. Depois disso, quando as chances de
uma gravidez se veriam ainda mais diminuídas com a perda de um dos
ovários, o casal parou para pensar alternativas, pois esse processo tinha
sido extremamente desgastante, na esfera física e emocional.
A opção de ter filhos via adoção começou a ser considerada e
amadurecida por ambos, embora a decisão tenha sido tomada em mo-
mentos diferentes. Para ela, foi fundamental conversar com outras mu-
lheres que haviam passado pela experiência de gestação para se aproxi-
mar da ideia de que poderia se sentir mãe sem ter uma gravidez. Embora
se sentisse pronta há muito tempo, esperou pacientemente o momento
do marido, para quem esta decisão foi mais difícil e lenta, pois, confor-
me ele manifestou, havia passado por vários períodos de dúvidas e in-
quietações, que agora considera terem sido importantes, porque sente
que sua decisão está mais bem fundamentada. O casal é branco e optou
por uma criança parda. São indiferentes com relação ao sexo e ao tipo
de cabelo, embora não aceitem “traços negroides”.
Outro caso é o de Júlia e Pedro, brancos, com curso superior, ela
com 41 anos e ele com 50, com rendimento familiar de 79 salários mí-
nimos (30 mil reais). Casados fazia sete anos, decidiram adotar para
“completar a família” depois de realizar seis IA sem êxito. Durante o
período de tentativas de gravidez com tecnologias reprodutivas, ela es-
tava voltada para o sucesso do tratamento, que lhe permitiria vivenciar
a gestação e o parto de uma criança, o que a impediu de cogitar a ado-
ção anteriormente. Depois de certo tempo, os médicos descartaram a
possibilidade de gravidez, o que levou o casal a considerar a ideia de
adotar. Atualmente, avaliam que a infertilidade é uma questão resolvi-
da. Ele foi o primeiro a falar da possibilidade de adoção, pois na sua

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

família havia dois casos de adoção que ele julgava bem-sucedidos; para
ela, entretanto, foi preciso esgotar todas as tentativas de fertilização para
poder elaborar sua esterilidade e partir para “o plano B”: a adoção.
Segundo consta no parecer psicossocial, “o desejo manifestado pelo ca-
sal de adoção está pautado na edificação de uma família”. Desejam um
bebê recém-nascido e branco, “sadio, se possível que se assemelhasse com
nosso tipo bio-físico”.
João e Sonia, com 40 e 35 anos, respectivamente, brancos, com edu-
cação superior e uma renda familiar de 32 salários mínimos (12 mil
reais), decidiram adotar “para formar uma família e ganhar a alegria de
ter um filho”. Ela não queria ter filhos antes dos 30 anos, esperando que
os dois concluíssem o curso de pós-graduação e conseguissem uma me-
lhor estrutura econômica. Após uma cirurgia para tratar a endometriose,
fez diversos tratamentos entre 1999 e 2005, como ingestão de hormô-
nios, três IA e cinco FIV, além de tomar vacinas por “incompatibilidade
genética” do casal. Decidiram adotar estimulados por um primo que
havia adotado uma criança e depois de se sentirem desgastados por esses
procedimentos, ao longo desses seis anos. Desejam adotar uma criança
entre 0 a 12 meses e são indiferentes quanto ao sexo e à cor. Todavia,
Sonia se mostrou apreensiva com relação aos preconceitos que uma
criança “de cor” poderia vir a ter, inclusive por parte de sua cunhada.
Mas acreditam que “saberão lidar com os preconceitos da sociedade e
da família com tranquilidade”.
Longe de generalizar esses perfis, mas com o intuito de trabalhar ape-
nas com tendências ou deslocamentos possíveis, os casos apresentados
servem para considerar a relação entre a adoção e a possibilidade de ter
filho biológico. Na maioria dos processos analisados, os casais partem
para a adoção depois de constatar a impossibilidade de ter seu filho bio-
lógico. Alguns desses casais o fazem em razão das limitações financeiras
que inviabilizariam o acesso às tecnologias reprodutivas, ou porque tal

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

alternativa não faz parte de seu universo, como no caso de um casal de


espíritas kardecistas. Para outras pessoas, a impossibilidade é dada pelas
falhas das técnicas. De qualquer modo, o que parece ser constante é a
necessidade de elaborar o luto pelo filho biológico como condição para
entrarem no processo de adoção. Esta opção parece ganhar corpo verda-
deiramente e se consolidar apenas depois de renunciarem à possibilida-
de de ter um filho biológico.

A reprodução assistida como ritual

Os processos descritos anteriormente trazem como aspecto importante


o papel exercido pelas tentativas de procedimentos de reprodução assis-
tida. Considero que estas teriam como função simbólica o fato de saber
esgotadas as possibilidades de ter filho biológico para poder se decidir
pela adoção. Embora, segundo aparece em alguns processos, a adoção já
fosse concebida como uma alternativa antes de constatar a infertilidade,
reporta-se a necessidade de tentar esgotar a possibilidade de ter um fi-
lho biológico como uma forma de amadurecer e consolidar essa opção.
Este aspecto parece ser avaliado positivamente no laudo de psicólo-
gas e assistentes, ao ser apontado como um indicador do amadureci-
mento do projeto de adoção. No processo relatado de João e Sonia, que
se reporta à realização de cirurgia por endometriose, tratamento hormo-
nal para ovulação e, ao todo, a oito procedimentos de RA realizados ao
longo de seis anos, o parecer indica que “os requerentes percorreram
todos os caminhos para gerar um filho biologicamente e hoje estão
tranquilos e seguros de sua escolha em exercer a maternagem/paterna-
gem por meio da adoção”.
Segundo Franklin (1997), a infertilidade parece se configurar como
um obstáculo à progressão considerada normal e natural de realização

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

da identidade feminina e da conjugalidade. Nas narrativas de mulheres


inglesas que fizeram RA, Franklin assinala a brecha existente entre a es-
perança de sucesso e as possibilidades reais de alcançar o desejado filho
mediante reprodução assistida. As falas dessas mulheres, de acordo com
esta autora, parecem se fundamentar na ambiguidade e na contingên-
cia, mais do que na certeza; e na convenção do romance no qual se es-
pera superar, de forma heróica, grandes obstáculos que conduzam a um
final feliz, em concordância com as normas convencionais de unidade
da função conjugal e procriativa.
Para Franklin (ibidem), pessoas com problemas de infertilidade opta-
riam por soluções tecnológicas motivadas não necessária ou unicamente
pelo desejo de terem um filho biológico, mas também por procurarem
uma solução ao problema da infertilidade. Haveria menos “desespero”
por ter um filho do que manifestações relativas à frustração da progres-
são normal e natural da conjugalidade, assim como uma consciência acer-
ca da probabilidade de falha dos procedimentos – intensificada, em al-
guns casos, pelos fracassos repetidos, ainda que com a esperança de êxito
preservada, o que anima a continuar em frente.
Nessas condições, a RA teria a função de ritual que permitiria sair de
uma situação limiar, de um limbo criado pela infertilidade. Todavia, nota
Franklin (ibidem), dadas as altas chances de fracasso de efetivamente ter
um bebê mediante as tecnologias reprodutivas, é a própria mulher que
faz o ritual, seja colocando termo à sua infertilidade (com a realização
do desejo de ter um filho), seja colocando termo às várias tentativas frus-
tradas que a conduzem a assumir sua condição de mulher sem filhos
biológicos. Franklin conclui, então, que não é a técnica em si mesma
que produz a passagem, mas o fato de a mulher ter realizado algum pro-
cedimento para tentar resolver sua infertilidade.
Ao pensar na função simbólica atribuída por Franklin aos procedi-
mentos de RA, seria também possível pensá-la nos termos dos ritos de

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

instituição formulados por Bourdieu (1996), que funcionam como


mecanismos imperativos de se tornar aquilo que se é (“Torne-se o que
você é.”), sob os quais se naturalizam processos sociais ou se estabelece
uma essência conferida pela nomeação, como pode ser a maternidade
como afirmação de feminilidade ou a procriação para a constituição de
uma família. Postulamos que, dadas as chances de pouco sucesso das
técnicas de RA, a tentativa, em si mesma, poderia ser pensada como
uma forma de reafirmação ou permanência dentro de uma ordem: a da
constituição da família consanguínea, validada por um agente, devida-
mente autorizado, que realiza o ato mediante formas reconhecidas, con-
forme as convenções sociais.
Para Bourdieu (ibidem, p. 105), “Atos de magia social (...) logram
êxito no caso de a instituição (...) constituir um ato de instituição num
outro sentido, qual seja, um ato garantido por todo o grupo ou por uma
instituição reconhecida”. A crença de todos, preexistente ao ritual, é a
condição de sua eficácia, afirma o autor. Mas, neste caso, não pensamos
na eficácia simbólica no sentido de considerar o êxito ou o sucesso da
técnica. O sucesso da técnica continua sendo baixo, e a questão é justa-
mente essa: se o custo financeiro e emocional é alto, sendo o sucesso tão
baixo, como explicar a grande demanda por esses procedimentos, a in-
sistência em tentativas sucessivas e, sobretudo, a aparente necessidade
de passar por essa experiência antes de optar pela adoção, em alguns
casos? Postulo que a eficácia simbólica estaria na constituição de um
novo lugar atribuído à RA: o de experiência necessária de renúncia ao
filho biológico, que se converte em condição ou sinal de estar verdadei-
ramente preparada/o para adoção de uma criança.
Tal questão leva a uma outra: à necessidade de indagar o lugar da
ciência, da tecnologia, como elemento a ser investido dentro da lógica
da crença no progresso científico, uma vez que as baixas taxas de sucesso
não desacreditam a técnica. Diz Bourdieu: “A força do juízo categórico

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

de atribuição realizado pela instituição é tão grande que se mostra capaz


de resistir a quaisquer desmentidos práticos” (ibidem, p. 103).
Contudo, se, por um lado, encontramos um investimento na ordem
da fé do universo tecnológico, por outro lado, observamos o domínio
de um essencialismo, do “sangue que puxa” no universo da adoção.
Alguns depoimentos de participantes dos GAA indicam que as relações
que se estabelecem pela adoção são encontros que estariam predestina-
dos entre filhos e pais adotivos, que forças do universo teriam separado
na hora do nascimento. Para eles, o trabalho dos pais adotantes seria o
de esperar o momento certo para encontrar seus filhos, que por um aca-
so do destino teriam nascido em lugares distantes.
A força do sangue também parece ser um fantasma que ronda o uni-
verso da reprodução assistida. Em alguns casos, são identificadas formas
de interdição do encontro entre receptores e doadores de gametas, acio-
nadas através de vários dispositivos, entre eles, o do anonimato. A exi-
gência do anonimato seria uma estratégia ante o perigo simbólico
consubstanciado na pessoa do doador: “é como se sua mera manifesta-
ção ou identificação fosse capaz de fazer aflorar envolvimentos emocio-
nais intensos e dramáticos entre ele e a criança” (Salem, 1995, p. 51).
Observa-se, nesse caso, uma semelhança com a tendência de evitar o
encontro entre a criança e a mãe biológica, pois o que parece estar em
jogo, em um e outro caso, é a força da natureza, o perigo de apego afetivo
suposto no fato de partilhar o mesmo sangue ou substância.
Se, por um lado, faz-se manifesto um encontro predestinado entre
pais/mães e filhos adotivos, por outro, a força do cordão umbilical, o
laço de sangue, cria o fantasma da mãe. Os laços podem ser construídos;
no entanto, a relação entre pais e filhos, especificamente entre mãe e
filho/a, é colocada em um lugar quase sagrado. Note-se que o vínculo
“fantasmático” é com a mãe. Neste campo também se reproduz a divi-
são entre a evidência biológica do envolvimento da mãe com o filho e

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

de uma paternidade presumida como uma relação social, como conce-


be Strathern (1992, p. 26). O vazio do sangue parece ser preenchido
por um determinismo que é colocado em outro registro, o místico, mas
que se mantém “fora de controle”. No final, tanto a natureza quanto o
destino parecem ter seu caprichos. Todavia, os filhos gerados por RA
também são concebidos como milagres que conseguem dar curso ao
desenrolar natural do ciclo de vida das pessoas, preservando, de algum
modo, o caráter natural/sagrado/estrutural da família consanguínea.
Enquanto uns parecem que vão ao encontro do seu destino ao se re-
conhecerem sem filhos biológicos – o que não os impede de se mobili-
zar para configurar uma família mediante a adoção –, outros parecem
não aceitar o limite imposto pela infertilidade e tentam dar uma “mão-
zinha à natureza” para realizar o também naturalizado desejo de uma
família consanguínea. Se na adoção o milagre é atribuído a um encon-
tro bem-sucedido que, através do gesto, busca substituir o sangue
(Rotania, 1995), na reprodução assistida é o “milagre tecnológico” que
possibilita a realização de um gesto mimetizado na natureza. No caso
específico de adoção de embriões – bom para pensar as possíveis relações
a serem traçadas entre os dois campos de interesse para este artigo –,
haveria que se perguntar, com base na frase de Rotania, se através da
gestação corporal se estaria buscando “substituir” a genética. A tecnolo-
gia possibilitaria o surgimento da figura da adotante-gestante, que, em-
bora não seja necessária para a existência de embriões, torna-se condi-
ção para que estes se desenvolvam. Talvez sangue e gene, usados muitas
vezes como sinônimos, apareçam nesse contexto como campos semân-
ticos diferenciados. Citar aqui um instigante depoimento de uma mu-
lher adotante-gestante pode ser mais esclarecedor:

Eles estavam dentro de um tubo de ensaio. Tudo o que se via era a gotinha cor-
de-rosa do soro anticoagulante sobre os embriõezinhos. Eles estariam mofando

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

num freezer se eu não os tivesse tirado de lá. Eu os alimentei dentro do meu


útero durante nove meses. Eles não existiriam sem o meu corpo. (Depoimento
de uma médica, 48 anos, apud Carelli, 2001)

Parecem existir gradações quanto ao tipo de adoção a realizar quan-


do não é possível procriar com o próprio material genético. A adoção de
crianças é uma alternativa, mas a tecnologia permite radicalizar a prefe-
rência generalizada, sobretudo entre os casais, de terem crianças pe-
quenas, preferivelmente recém-nascidas e com biótipo similar ao seu.
A possibilidade de adotar embriões permite antecipar tal tendência ao
máximo possível, abrindo espaço para a realização da experiência cor-
poral da maternidade, tão ligada, e agora reativada, à realização de uma
feminilidade plena.

Considerações finais

A RA permite, mediante o deslocamento no tempo, radicalizar os mes-


mos desejos que estão presentes na adoção. Até recentemente, este ter-
mo era reservado e associado à adoção de crianças. Hoje, como parte
dos repertórios das tecnologias de vida, pode-se falar também de ado-
ção de embriões, como explicitado na manchete: “Cerca de 200 brasi-
leiros foram adotados em forma de embrião nos últimos cinco anos”
(Carelli, 2001).
É até possível considerar que, nos casos de adoção de embriões, o
casal ou a mulher receptora realize-a em termos similares aos da adoção
de uma criança. Não obstante, o momento em que esta se realiza pode
ser bastante antecipado, permitindo, por via da tecnologia, atribuir o
estatuto de criança ou de bebê a um pré-embrião, como no depoimento
anteriormente citado.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

A preocupação ao adotar os “filhos dos outros” não estaria apenas na


carga genética, como também nas marcas impregnadas durante a gesta-
ção e nos primeiros meses ou anos de vida, pelo que pode ter ficado
estampado de modo indelével na história e nas características físicas das
crianças. A grande diferença entre os pré-embriões que mofam num
freezer e as crianças que crescem num abrigo pareceria estar no processo,
tempo e contexto da socialidade.16 As adoções realizadas o mais rapida-
mente possível, mesmo antes do nascimento, podem até criar ou simu-
lar uma condição de naturalidade da reprodução que faz a grande dife-
rença entre adoção de pré-embriões ou de crianças. Na adoção de
embriões, o casal participaria desde o começo do processo, e a experiên-
cia corporal da gravidez permitiria a conexão ou troca de substâncias.
Esta, em última instância, seria uma forma mais radical da preferência
entre as/os candidata/os à adoção por crianças recém-nascidas e com
biótipo similar ao dos pais adotivos. A chance de ter filhos com a cara
dos pais, determinante para que a adoção dê certo, como mostrou Costa
(1988), seria maior com a adoção de embriões, na medida em que pos-
sibilita diminuir o tempo de exposição ou “socialidade do feto” em ou-
tro contexto, o que também pode redundar num imaginário de natura-
lização ou de outra forma de naturalização.
Uma das questões que chama a atenção, comum aos dois campos, é
a tentativa de aproximação da adoção ao modelo biológico da reprodu-
ção. Isto é, apesar de os Grupos de Apoio à Adoção apostarem nos “fi-
lhos do coração”, tentando se contrapor a uma naturalização do amor
materno/paterno, que resgata a ideia de um amor construído, passível
de ser desenvolvido sem um vínculo consanguíneo, encontra-se um ape-
lo, por assim dizer, ao mimetismo ou à aproximação a esse desenrolar
natural. Isto se dá através da “biologização da adoção”, da procura de
uma semelhança entre o biótipo dos pais e o das crianças adotadas, com
as quais, na maioria dos casos, se pretende encontrar alguma semelhança.

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

O discurso da nova cultura da adoção, promovido para estimular e


priorizar adoções como as inter-raciais e tardias, torna-se um ideário
pouco corroborado nas fontes consultadas para esta pesquisa, que mos-
traram a vigência da procura por um biótipo semelhante. A parecença se
configura como um ideal a ser atingido e, em certa medida, como indica
Costa (1988), uma condição para que a adoção dê certo. Isto é, a proxi-
midade ao modelo biológico está colocada em outros termos ou, de
outro modo, como uma situação ideal a ser atingida ou a ser mimetizada.
Na escolha de um “problema social” não há uma relação direta entre a
gravidade do problema e o tamanho das atenções que esse recebe.
O que se define como prioritário depende mais das prioridades mediá-
ticas, do oportunismo e da sensibilidade de classe do que da realidade
(Fonseca e Cardarello, 1999). O risco, como estas autoras afirmam, é
a criação de uma cortina de fumaça que ofusque diversos interesses.
À biotecnologia é atribuída a virtude de realizar o sonho reprodutivo. En-
tretanto, no contexto do entusiasmo biotecnológico, a adoção é vista
como uma forma de aliviar “um pouco” a frustração de casais ou pessoas
sem filhos, sem que os satisfaça plenamente. O status conferido a cada
uma dessas formas de superar a infertilidade parece ser diferente. Ainda
que a adoção de crianças possa ser considerada uma espécie de interlocutor
oculto na discussão sobre RA, é ignorada na maioria das pesquisas desen-
volvidas no país sobre esse assunto. Parece que a omitimos nas análises da
mesma forma que os especialistas em reprodução assistida a ignoram
como alternativa desejável para contornar a infertilidade (Ramírez, 2003).
Mais do que oferecer respostas fundadas em um campo ainda a ser
explorado, este artigo teve como objetivo propor estratégias de análise,
pelas quais seja possível traçar diálogos que nos permitam compreender
aspectos da nossa sociedade que se colocam em jogo nos modos de pen-
sar descendência, parentesco e constituição de família no contexto da
reprodução assistida.

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Notas
*
Uma versão anterior deste artigo foi apresentada na 26ª Reunião Brasileira de An-
tropologia (Porto Seguro, BA, 2008). Alguns dos dados apresentados correspondem
à pesquisa realizada durante o Programa de Formação de Quadros Profissionais do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, 2006; e à pesquisa “Sujei-
ções tecnológicas: gênero e identidade na reprodução assistida”, financiada pelo
CNPq. Agradeço os comentários das/os pareceristas que enriqueceram as ideias
apresentadas neste artigo.
1
Tal afirmação está baseada em uma pesquisa anterior (Ramírez-Gálvez, 2003), na
qual realizei um levantamento das notícias publicadas na imprensa escrita e mídia
eletrônica, tomando como fonte principal o jornal Folha de S. Paulo, no período de
1994 a 2001. O critério para escolher esta fonte obedeceu ao fato de esta ser uma
das mídias que mais veicula notícias sobre o assunto, segundo o monitoramento
feito pelo projeto “Olhar sobre a mídia”, da Comissão de Cidadania e Reprodução
(CCR) e da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. As 162
matérias que efetivamente abordaram o assunto foram analisadas em uma perspec-
tiva diacrônica, que permitiu observar a evolução da panorâmica geral daquilo que
é divulgado pela grande imprensa. Esse material foi complementado com matérias
publicadas nas revistas Veja e IstoÉ, e em outros jornais nacionais, que não tiveram
a mesma sistematicidade da busca feita na Folha de S.Paulo.
2
Trato, o tempo todo, da adoção plena, que implica a perda do pátrio poder dos
pais biológicos. Outras questões envolvidas na circulação de crianças (Fonseca,
1995) e na transferência de guarda para parentes e conhecidos (Vianna, 2002),
embora tenham alguma relação com a adoção, não são consideradas neste trabalho.
3
Dado que o Fórum de Santo Amaro/SP não tinha registros informatizados, foi
necessário construir uma base de dados com informação acerca dos candidatos/as
habilitados/as para adoção, com o intuito de traçar um perfil das/os requerentes.
A base conta com a informação coletada de 388 casos habilitados pelo Fórum en-
tre janeiro de 2003 e novembro de 2005. O casal ou as pessoas candidatas à ado-
ção são submetidas à avaliação, depois da qual são incluídas ou não no Cadastro de
Pretendentes à Adoção nessa Vara. Tal cadastro é um livro no qual são manuscritos
alguns dados, com base nos quais se organiza a colocação das crianças liberadas
para adoção. Esse livro foi a fonte para a realização da base de dados, com informa-

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

ções sobre: número e ano de cadastro, idade, cor do pai e da mãe; características
das crianças desejadas, como sexo, cor e idade. Cabe destacar a dificuldade de siste-
matizar tais dados, uma vez que havia variabilidade na forma de registrá-los, asso-
ciada à inconstância da equipe encarregada. Cada equipe revê a estrutura e a forma
de atendimento, que se reflete na forma como os dados são registrados. Uma das
maiores dificuldades foi a variabilidade utilizada na nomenclatura para descrever o
quesito cor de pretendentes e das crianças desejadas. Em contrapartida ao acesso
de informação, o banco de dados foi entregue ao Fórum.
4
Segundo os dados levantados até 2007, no país funcionam aproximadamente cem
GAA, que, desde 1996, realizam um encontro anual com o objetivo de trocar ex-
periências e fortalecer uma rede que divulgue e consolide a adoção. Durante esses
eventos, procura-se refletir em torno das múltiplas manifestações da adoção, en-
volvendo famílias biológicas, famílias adotivas, pretendentes à adoção, represen-
tantes de abrigos, do sistema judiciário, profissionais e agentes que atuam nesse
campo, formuladores de políticas públicas, crianças e adolescentes que esperam ser
adotados, etc. (Schreiner, 2004). O 10º Enapa, realizado em Goiânia em maio de
2005, teve como temática central as adoções inter-raciais e as tardias.
5
O valor do salário mínimo em 2007 foi de R$ 380,00.
6
Agradeço a um/a da/os pareceristas por ter chamado a atenção sobre este ponto.
7
Coletar dados sobre adoção no Brasil, pelo menos no período em que foi feita a
tentativa de levantamento de informações estatísticas para esta pesquisa (entre 2004
e 2007), resultou ser uma tarefa árdua. Embora o Cadastro Nacional de Adoção,
atualmente em funcionamento, fosse apenas um projeto naquele tempo, não exis-
tia um órgão nacional que centralizasse tais dados. As informações, pelo menos no
estado de São Paulo, eram coletadas pela Comissão Estadual Judiciária de Adoção
Internacional – Cejai-SP, vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A Corregedoria Geral da Justiça, no provimento CC12/05, atribuiu à Cejai/SP a
condição de Cadastro Centralizado. Assim, as Varas da Infância e da Juventude do
Estado de São Paulo remetiam a esta Comissão os dados sobre todas as adoções
realizadas, funcionando como fonte de consulta aos Juízos Permanentes (Cejai,
2005). Por sua vez, esses dados eram repassados ao Cartório do Tribunal. Depois
de muitas burocracias, idas e vindas entre a Cejai/SP, a Vara da Infância e o Cartó-
rio da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, foram-me proporcio-

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nados os números brutos de adoções por ano, que correspondem aos processos no
sistema judiciário de São Paulo sob a rubrica adoção.
8
Esses dados devem ser lidos com cautela e ponderados em função do número de
pretendentes e de crianças disponíveis para adoção. Além disso, é necessário levar
em consideração a queda da fecundidade no Brasil, a maior aceitação social de mães
solteiras, o maior acesso ao aborto seguro e a métodos contraceptivos – fatores es-
tes que podem criar condições favoráveis à diminuição de crianças disponíveis para
adoção. Também é necessário levar em conta as alterações resultantes da implemen-
tação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que, segundo uma das infor-
mantes da Corregedoria, tornou o processo de adoção mais rigoroso. Esta mesma
informante lembrou que o número de adoções no estado de São Paulo pode ter
sido afetado pela denúncia, realizada em 1999, do Movimento Mães da Praça do
Fórum de Jundiaí (SP) acerca da irregularidade na autorização de adoções interna-
cionais, que transformou esta cidade em um dos maiores polos de exportação de
crianças do país. Analisar a diminuição progressiva das adoções legais em São Pau-
lo seria matéria específica de outra pesquisa.
9
A equipe de psicólogas e assistentes sociais que atuavam ou tinham atuado na área
de adoção da Vara da Infância de Campinas foi convocada para uma reunião co-
migo. O que inicialmente tinha sido planejado como uma entrevista com a coor-
denadora de psicólogas da Vara se transformou em uma conversa grupal acerca das
impressões que tinham sobre adoção e RA, suscitadas pelas minhas indagações.
Depois desta reunião, tive outro encontro com uma das psicólogas, que se mostrou
mais disponível para conversar sobre o assunto.
10
Essa visão corresponde à chamada nova cultura da adoção, que responde às de-
mandas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e é discutida mais adiante.
11
Haveria de se considerar o contraste entre o “valor” atribuído a uma criança cedi-
da para adoção e o que se atribui ao filho gerado por reprodução assistida. Corri-
queiramente, considera-se que no primeiro caso a falta de desejo pelo filho, entre
outros motivos, estaria associada ao “abandono” da criança. No segundo, seria a
grande intensidade do desejo que levaria à realização de grandes investimentos
financeiros e emocionais na “caça do filho de ouro”, como é denominada na psi-
cologia a procura da gravidez a todo custo. No entanto, como indica Fonseca
(1995), na circulação de crianças entre as classes populares e a média baixa a ces-

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MARTHA RAMÍREZ-GÁLVEZ. INSCRITO NOS GENES OU ESCRITO NAS ESTRELAS?

são dos filhos pode estar associada à procura de melhores perspectivas de vida para
eles, e não à ausência de desejo ou de vínculo afetivo.
12
Em janeiro de 1986, uma mulher, simulando ser uma assistente social, raptou um
bebê recém-nascido de uma maternidade de Brasília, levando-o para Goiânia, onde
o registrou e criou como seu filho legítimo. A família de origem do bebê raptado,
chamado Pedrinho, conseguiu estabelecer em novembro de 2002 que o menino, à
época um adolescente, foi vítima de sequestro. A mulher foi condenada a oito
anos e oito meses de prisão, em regime semiaberto. Para fixar a pena, o juiz levou
em consideração os crimes de subtração de incapaz, parto suposto e falsificação de
documentos. O caso foi amplamente divulgado pela imprensa.
13
No Brasil, é proibida a seleção de embriões por sexo, a não ser quando este está
associado à transmissão de doenças. A seleção de sexo se faz, principalmente, me-
diante o diagnóstico genético pré-implantacional, que permite selecionar os em-
briões a serem implantados.
14
Na falta de outro termo, refiro o uso dessas técnicas como tratamento, embora, na
maioria dos casos, não se configure como cura ou restabelecimento da função
reprodutiva.
15
Todos os nomes são fictícios.
16
Utilizo aqui o termo socialidade, como entendido por Strathern (2006), para refe-
rir a complexidade das questões que acompanham e constituem as condições de
existência das relações, por exemplo, de filiação, nos contextos analisado (cf., tam-
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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

ABSTRACT: This research explores the displacements that are associated


to the proliferation of assisted reproductive technologies in Brazil. We com-
pare the narratives about adoption and assisted reproduction, paying
attention to the discourse that assimilates them to the “biological-natural”
model of reproduction. We discuss the significance of the ability to choose
the characteristics of the children offered by each of these modes, observing
what the referent of the choice is in each case, as well as the symbolic place
given to the use of reproductive technologies before adoption. We discuss
the place of children in each of these situations (adoption and assisted
reproduction) as preserving the structure of the consanguine family. We
observe that reproductive technology radicalizes the generalized bias towards
adoption of newborn children with phenotypes similar to those of the pa-
rents, documented in several studies. The adoption of embryos allows
parents to anticipate the moment of adoption to the point of allowing the
bodily experience of childbirth, commonly associated to the actualization
of femininity. Finally, we note the place given to the use of reproductive
technologies conceptive in the qualification process for adoption.

KEY-WORDS: Assisted reproduction, adoption, family, biotechnology.

Recebido em outubro de 2010. Aceito em junho de 2011.

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“Seu funeral, sua escolha”:
rituais fúnebres na contemporaneidade

Rachel Aisengart Menezes1 & Edlaine de Campos Gomes2

Universidade Federal do Rio de Janeiro


& Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

RESUMO: Vida e morte são conceitos centrais para a compreensão das con-
cepções de pessoa e estão presentes em distintas culturas. Os modos de ad-
ministração do início e término da vida são os mais diversificados e depen-
dem das crenças compartilhadas, elaboradas por cada grupo social. Este
artigo se insere no conjunto de estudos antropológicos dedicados ao tema
da morte e aos rituais a ela correspondentes. Em sociedades ocidentais, ob-
servam-se, na contemporaneidade, mudanças significativas e permanências
no que tange ao estatuto dos vivos e dos mortos. Com base no exame de
notícias da mídia e de bibliografia sobre o tema, são desenvolvidas reflexões
acerca das mudanças nos rituais fúnebres. Tal escolha é justificada pela pos-
sibilidade de apreensão de noções, crenças e valores que constituem nódulos
centrais em nossa cosmologia, como pessoa/indivíduo, ciclo de vida, etapas
da vida, dor, natureza/cultura, vida/morte, entre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Ritos funerários, individualização, vida/morte, ciclo


de vida.

“Um dos maiores paradoxos do cristianismo é o de


retirar da morte esta significação apriorística, co-
locando a vida sob o ângulo da sua própria eterni-
dade. E isto não só porque promete uma continui-
RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”

dade após o último instante de vida na terra; mas


também porque coloca o destino eterno da alma
sob os conteúdos da vida: cada um mantém ao infi-
nito a sua significação ética como causa determi-
nante do nosso futuro transcendente, quebrando
assim a sua própria limitação intrínseca. Nestes ter-
mos, a morte parece suplantada: primeiro porque
a vida, esta linha que se estende no tempo, ultra-
passa o limite formal do seu fim; mas também por-
que ela nega a morte, que opera através de todos
os momentos da vida e os limita do interior; ela a
nega precisamente em virtude das consequências
eternas desses momentos singulares.” (Simmel,
1998, p. 3)

Nos anos 1990, na cidade do Rio de Janeiro, pessoas que chegavam ao


velório de uma senhora eram surpreendidas por uma ópera transmitida
por aparelhagem de som. Segundo o filho, as árias eram as preferidas de
sua mãe. Bastões de incenso eram constantemente acesos e repostos, até
o momento do enterro, escolhidos pelos familiares por se tratar do per-
fume do agrado da falecida. Outro episódio ilustrativo do tema deste
artigo ocorreu também na cidade do Rio de Janeiro, na década de 2000,
em torno do funeral de um homem de mais de quarenta anos. Em seu
enterro, em cemitério da comunidade israelita, um grupo de amigos não
se aproximou do local do sepultamento. Eles permaneceram na entrada
do cemitério, todos trajados de branco, cantando mantras e acendendo
incenso. Alguns expressaram indignação pelo fato de a família ter se-
guido a tradição judaica, pois o finado havia se convertido à crença
Hare Krishna anos antes do adoecimento e término de sua vida. Segun-
do os preceitos deste grupo, a cremação deveria ser o destino dado ao

- 90 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

corpo, respeitando a escolha do falecido. Houve polêmica, pois, de acor-


do com os parentes mais próximos, com a piora da doença, o enfermo
teria declarado sua preferência pela realização do funeral segundo o ri-
tual judaico. Entretanto, por todo o período de enfermidade, manteve
a dieta vegetariana, escutou gravações de mantras e de falas dos mestres
Hare Krishna.3
Estas situações indicam mudanças recentes nas formas de expressão
e nas práticas referentes à morte, temática enfocada por diversos autores
(Walter, 1996; Howarth, 2007; Kellehear, 2007). Não se trata de novi-
dade o exame de rituais4 referentes à demarcação da existência de uma
pessoa. Em todas as sociedades, no evento da morte de alguém, a famí-
lia e seu círculo social respondem de maneira estruturada com base nos
sentidos compartilhados pelo grupo. As referências culturais determi-
nam os cuidados com o corpo e seu destino, além da configuração e
prescrição de normas para o período de luto. Os rituais em torno da
morte, assim como quaisquer outros rituais – de união conjugal, fertili-
dade e reprodução, nascimento, entrada na idade adulta, de guerra, en-
tre outros –, refletem os valores e as crenças compartilhados por cada
grupo, cultura ou sociedade. Citando Mary Douglas, Antônio Gonçal-
ves afirma que “não há amizade sem ritos de amizade; não há morte sem
ritos de morte. Os ritos são a forma indispensável para exprimir e soli-
dificar os vínculos, suscitar a partilha de emoções, valorizar certas situa-
ções, assegurar e reforçar a coesão social” (2001, p. 12).
A atitude e a forma de participação de uma pessoa em um velório,
enterro, cremação ou cerimônia religiosa evidenciam tanto sua posição
no grupo quanto seu vínculo com o falecido. O exame das práticas
mortuárias fornece um conjunto de dados acerca do comportamento
dos parentes – e da própria estrutura familiar –, e também da comuni-
dade (Cohen, 2002, p. 1). A reflexão sobre o tema possibilita a apreen-
são de várias ideias e noções, como vida após a morte, espíritos, alma,

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RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”

deuses, feitiçaria, entre outras. As relações entre os vivos e os mortos, a


influência destes sobre aqueles e as formas de controle e equilíbrio entre
eles integram as concepções elaboradas por cada grupo ou cultura. Indo
além, o destino concedido ao corpo e as formas pelas quais o morto é
lembrado e/ou cultuado informam a identidade social dos vivos
(Kaufman & Morgan, 2005, p. 323).
Vida e morte são conceitos centrais para a compreensão das concep-
ções de pessoa presentes em diversas culturas. Todo grupo social cons-
trói sua própria definição de pessoa (Mauss, 2003; Duarte, 2003) e,
consequentemente, delimita o período em que ela passa a ser – e deixa
de ser – reconhecida como tal. Os modos de administração do início e
término da vida são os mais diversificados e dependem das crenças ela-
boradas pelo grupo social. Em cada contexto, de acordo com a concep-
ção dominante, são produzidas práticas coletivas e individuais, que sus-
citam sentimentos e interpretações as mais diversas relativas ao
nascimento e à morte. Como exemplo, podemos citar grupos australia-
nos que classificam como naturais certos tipos de morte considerados
violentos em outros contextos (Mauss, 2003, p. 352). Para eles, um
ferimento, assassinato ou fratura são causas naturais. Para os Azande, a
morte de uma pessoa resulta da ação de um feitiço (Evans-Pritchard,
2005). Seja na Austrália, seja entre os Azande, o que está em jogo são as
distintas formas de mobilização e de definição de natureza, nos diferen-
tes contextos e construções sociais.
Apesar das diferenças, a determinação dos limites entre a vida e a
morte é regida, no Ocidente, por uma lógica análoga à construída por
outras culturas. Na sociedade ocidental moderna,5 vida e morte podem
ser concebidas segundo posicionamentos religiosos, fundamentalmen-
te pautados pela tradição judaico-cristã (Duarte & Giumbelli, 1994).
A perspectiva científica é, concomitantemente, uma relevante interlo-
cutora. Pode-se aplicar aqui a noção formulada por Mauss (2003) acer-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

ca da preeminência das “causas coletivas precisas”, conceito utilizado em


sua análise da “morte sugerida pela coletividade”. Trata-se da atribuição
do grupo ao indivíduo de ações morais que atingem a condição física da
pessoa de modo marcante. Já na cultura ocidental moderna há uma cren-
ça generalizada na ciência/razão como método de leitura objetiva da
natureza (Camargo Jr., 2003, p. 102). Tal perspectiva é de suma impor-
tância na configuração das práticas referentes aos moribundos, aos mor-
tos e, também, daqueles que permanecem vivos.
Em sociedades ocidentais, observa-se na contemporaneidade tanto
mudanças significativas quanto permanências, no que tange ao estatuto
dos vivos e dos mortos, e ainda no que concerne aos rituais referentes ao
início ou ao término da existência de uma pessoa. Nesse sentido, este
artigo se insere no conjunto de estudos antropológicos dedicados ao
tema da morte e seus rituais na contemporaneidade. Com base no exa-
me de notícias recentes na mídia, são desenvolvidas reflexões acerca das
práticas fúnebres. Tal escolha é justificada pela possibilidade de apreen-
são de noções, crenças e valores que constituem nódulos centrais em
nossa cosmologia, como pessoa/indivíduo, ciclo de vida, etapas da vida,
dor, natureza/cultura, vida/morte, entre outros.

Ciclo de vida e rituais em torno da morte

Seja em qual for o contexto, momento histórico, grupo social ou socie-


dade, em toda a história da humanidade ocorreu – e segue ocorrendo –
um intenso trabalho cultural dedicado ao destino de um membro morto
(Laqueur, 2001, p. 16).6 Os espaços e as formas de sepultamento são
objeto de estudos de distintas áreas, como história, arquitetura, arqueolo-
gia, religião, entre outras. O mesmo pode ser afirmado relativamente às
maneiras como o cadáver é cuidado: os rituais de cremação, com locais

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RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”

específicos para tal prática e destinação das cinzas; a exposição do corpo


com o objetivo de alimentar aves, como abutres e gaviões; ou o enterro.
Desde os primórdios da antropologia, a morte e os rituais a ela
concernentes constituem importante objeto de interesse e de pesquisa.
As relações entre o cadáver, a alma e as práticas dos enlutados são de
utilidade para o desenvolvimento de reflexões e análises culturais, após
o estudo pioneiro de Hertz (2008[1907]), que demonstrou que a mor-
te não coincide com a destruição de uma vida individual. Para este au-
tor, a morte é um evento social, marcando o início de um processo ceri-
monial no qual o falecido pode se tornar um ancestral. Uma extensa
produção antropológica (Cunha, 1978; Douglas, 1991; Reis, 1991;
Howarth & Jupp, 1996; Albery & Wienrich, 2000; Laqueur, 2001;
Howarth, 2007, entre outros) vem desenvolvendo e ampliando as per-
cepções pioneiras de Hertz, ao analisar as relações mutáveis entre os vi-
vos e os mortos, a alteração da identidade dos enlutados, o papel da
memória e do esquecimento (e/ou ocultamento) na configuração da
morte e dos mortos, as transformações da materialidade do corpo e da
alma/espírito, que delimitam e configuram as diferentes etapas na cons-
tituição da morte. Tal produção evidencia que o exame de questões ati-
nentes à morte possibilita o acesso às concepções elaboradas por cada
grupo social acerca da pessoa, de sua existência, corpo, vida, morte e
sistemas de crenças a elas associadas.
Todas as sociedades transformam os modos de gestão do corpo mor-
to em rituais, que variam segundo graus de complexidade, de acordo
com a posição da morte no sistema de valores vigente (Howarth &
Leaman, 2001, p. 362). As cerimônias e rituais associados a este evento
não apenas efetuam uma separação entre dois – ou mais – mundos, mas
estabelecem alteridades, enfatizando especialmente a oposição central
vivos/mortos, instituinte da condição de existência da pessoa. Para Cu-
nha (1978, p. 145), baseado na investigação entre os Krahó, “os mortos

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

servem para afirmar, circunscrever os vivos”. Neste contexto, a qualida-


de de estar vivo seria um atributo fundamental de pertencimento e de
identidade Krahó. Se o “eu” reside privilegiadamente no corpo, os mor-
tos passam a ser “puras imagens, sombras evanescentes, formas sem con-
teúdo” (ibidem, p. 146). Em consequência, os mortos formam uma an-
tissociedade, antagônica à dos vivos.
Para Strathern, em algumas culturas não ocidentais a morte determi-
na um processo de “desconcepção” (deconception) da pessoa pelo grupo
social, quando o nome do morto é apagado, em um processo de perso-
nalização. Em suas palavras:

Do ponto de vista dos trobriandeses e de outras sociedades no Massim,


isto representa uma curiosa inversão na conceituação de pessoa. Lá, a pes-
soa é definida através de suas relações sociais ao longo da vida (...). Com a
morte, elas não são destruídas. Quando a vida cessa – quando a pessoa não
é mais ativa em suas relações com os outros –, os que se relacionaram com
o falecido devem alterar seu vínculo. Sem que isto seja realizado, o morto
continua a influenciar os vivos. (Strathern, 1992, p. 64)7

O não cumprimento das prescrições de cada cultura pode ocasionar


situações não desejadas e prejudiciais ao equilíbrio do grupo, como, por
exemplo, a possibilidade de a alma permanecer em errância sobre a Ter-
ra, não conseguindo se direcionar ao mundo dos mortos, o que pode
acarretar riscos para os vivos.
A produção antropológica sobre o tema indica que a morte não é
um acontecimento, mas um processo. De acordo com Hertz (2008),
entre os Dayak de Bornéu, quando a respiração cessa o corpo é enterra-
do temporariamente. Um período transicional até o sepultamento final
fornece condições para a decomposição do corpo, a purificação dos os-
sos, a travessia da alma e a liberação dos enlutados. Na etapa intermediá-

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RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”

ria, o vínculo entre os vivos e o morto se mantém. Os parentes do fale-


cido o visitam, falam com ele e fornecem refeições. Assim, o morto per-
manece como membro do grupo até o momento da cerimônia final.
Para os Dayak, os vivos e os mortos estabelecem uma relação de recipro-
cidade e dependência: os vivos necessitam de proteção e oferecem res-
peito e comemorações aos mortos. O cuidado mútuo consiste no ingre-
diente essencial de uma conexão adequada (Cohen, 2002, p. 5).
Baseado na ótica da morte como processo, Van Gennep (1978) afir-
ma que seus rituais se assemelham a todos os outros referentes a perío-
dos críticos da vida, como nascimento, puberdade social, casamento,
entre outros. A pessoa é um passageiro que atravessa um percurso, no
qual se apresentam desafios a serem por ela enfrentados para que consi-
ga atingir o estágio seguinte. A sociedade elabora respostas cerimoniais
e rituais, com o objetivo de auxiliar a transposição dessas crises, nomea-
das por Van Gennep como ritos de passagem, que seguem um padrão:
um rito de separação é seguido por um de transição e concluído por um
rito de incorporação. Os temas da separação, transição e incorporação
marcam cada ciclo cerimonial de vida, com diferente ênfase em cada
etapa, de acordo com o grupo e com o evento. Assim, ritos de separação
são preeminentes na morte; os de transição caracterizam a gravidez, a
iniciação e a morte; e os de incorporação são de especial relevância no
casamento. Nas palavras de Van Gennep (ibidem, p. 157): “viver é con-
tinuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de estado e de forma,
morrer e renascer”.
O movimento é gradual nos ritos de passagem, de uma a outra posi-
ção. A pessoa ingressa em uma etapa transicional, um período sagrado e
perigoso, no qual as atividades rotineiras e ordinárias são interrompi-
das. Ela permanece em suspenso entre dois mundos, entre passado e
futuro, entre uma condição anterior e um novo destino social, na limi-
naridade (Turner, 2005).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

No ritual de morte podemos identificar os seguintes elementos: se-


paração simbolizada pelo depósito do corpo na cova, no caixão ou no
cemitério; enterro dos objetos individuais do morto; assassinato das viú-
vas, dos escravos e de seus animais favoritos (Cohen, 2002, p. 6). A tran-
sição se refere ao período do nojo, quando os enlutados são segregados
dos vivos, física e socialmente. Na liminaridade, eles são afastados do
morto, de seus amigos e vizinhos. A suspensão da vida cotidiana é pres-
crita pelo tempo de luto, e suas atividades são objeto de tabu. O retorno
aos padrões de normalidade ocorre com a fase de incorporação, quando
as obrigações rituais foram cumpridas e os parentes do morto podem
compartilhar uma refeição com a comunidade (ibidem, p. 7). A vida
cotidiana é então retomada.
Para Van Gennep (1978), os temas da morte e do renascimento ocor-
rem periodicamente em toda a vida de uma pessoa. A morte ocorre com
a cessação da respiração, o que, para este autor, se dá apenas uma vez,8
enquanto, socialmente, a pessoa morre muitas vezes ao passar por um
processo de transição de uma condição social para outra. Sob sua in-
fluência, Turner (2005) concebe os eventos conflituosos como “drama
social”, no qual os rituais se dirigem à resolução de tensões e rivalidades.
Para ele, todos os ritos de iniciação contêm símbolos e metáforas da
morte. Apoiando-se na reflexão de William James, segundo a qual “ini-
ciação e morte se correspondem palavra por palavra e coisa por coisa”,
Turner (ibidem, p. 140) observa que um neófito, como “ser-transicional”
ou “persona liminar”, pode ser tratado como um cadáver, já que, em ter-
mos estruturais, é considerado como “morto”.
Uma vertente dos estudos sobre o ritual concede ênfase à sua função,
no sentido de reforço e permanência dos laços individuais e sociais de
uma comunidade (Cohen, 2002). Para Hertz (2008), o ritual de morte
oferece uma pausa, um tempo de acomodação em face de uma mudan-
ça dramática, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo. A morte

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física não é necessariamente um evento capaz de convencer o grupo da


morte de uma pessoa. Imagens do falecido e suas conexões com a socie-
dade podem ser tão intensas a ponto de não se esvanecerem logo. Elas
ainda persistem por um período de tempo. O conhecimento e a toma-
da de consciência, no cotidiano, ocorrem lentamente. A etapa interme-
diária, na qual se desenrolam as cerimônias relativas à morte, proporci-
ona uma oportunidade de reajuste social.
Os rituais mortuários promovem a solidariedade do grupo. Entre os
Kanuri do Sudão (Cohen, 2002), a morte reitera os vínculos entre os
membros da comunidade e confirma o pertencimento individual. A par-
ticipação de todos integrantes do grupo – sejam quais forem suas dife-
renças sociais – é obrigatória: “não participar é impensável” (ibidem). Já
entre os Wari da Amazônia, o principal destino do corpo morto é sua
ingestão canibal, por se tratar da maneira de romper os laços entre os
vivos e o falecido (Kaufman & Morgan, 2005, p. 232; Vilaça, 1998).
Segundo Van Gennep (1978), os rituais de passagem são cruciais para
a revitalização do grupo ou da cultura. Eles demarcam o ciclo, as etapas
da vida, e muitos ritos funerários indicam a ideia de que a sequência de
atividades humanas se completou. Neste sentido, a sociedade toma co-
nhecimento do término das relações sociais. As práticas e seus significa-
dos variam extensamente, em contextos e diferentes culturas. Tanto para
Hertz (2008) quanto para Douglas (1991), o corpo morto é considera-
do fonte de perigo e de contaminação, por expressar a desordem
provocada pela morte. A prática de duplo enterro dos Dayak de Bornéu,
por exemplo, é dirigida a assegurar a retomada da ordem social.
A construção de sentimentos em torno da morte e do morto tam-
bém constitui objeto de uma produção cultural específica. O ritual é
acompanhado pela expressão de emoções: os sentimentos tidos como
convenientes (ou aqueles não adequados) ao conjunto de normas e regras
sociais de cada comunidade. Desta maneira, Mauss (2003, p. 364) con-

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sidera a morte um tema a ser estudado como fato social total. Tristeza,
dor e perda consistem em experiências usualmente associadas à morte.
De acordo com Howarth (2007, p. 235), os estudos socioantropoló-
gicos indicam a existência de três explicações para o sentido dos fune-
rais: dar destino ao corpo morto; interceder pelo destino da alma; e re-
integrar os enlutados na vida social. Cada possibilidade não é excludente,
de modo que elas podem estar associadas. Seja como for, trata-se de efe-
tuar uma separação entre os vivos e os mortos. Para Douglas (1991), as
práticas e atitudes funerárias indicam que a morte e o sofrimento cons-
tituem partes essenciais e substantivas da vida humana e da natureza.
Tais aspectos não caracterizam apenas grupos ou culturas não ociden-
tais, apresentando-se também na sociedade ocidental moderna, ainda
que revestidos por distintas roupagens e nuances.

A morte e o morto na sociedade ocidental moderna

No Ocidente, vem sendo atribuída ao processo de secularização a res-


ponsabilidade sobre as mudanças e transformações nos cuidados dos
moribundos, dos mortos, e na configuração dos rituais fúnebres. Isto
decorre da crescente separação e fragmentação das esferas da vida social,
além da preeminência e centralidade dos saberes científicos e biomé-
dicos. Para examinar este panorama, faz-se necessário apresentar estu-
dos que abordam tais questões.
A principal referência, no que concerne à investigação sistemática dos
rituais em torno da morte no Ocidente, é o historiador francês Philippe
Ariès (1981; 2003), por sua extensa pesquisa sobre as atitudes ante o
processo do morrer e da morte, originada na constatação de mudanças
no tempo das cerimônias fúnebres e nas atitudes dos presentes. Em sua
infância no interior da França, ele frequentou velórios e enterros com

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maior duração e solenidade, comparativamente ao que observou em


Paris décadas mais adiante, já na segunda metade do século XX.
Para alcançar uma compreensão histórica das transformações ocorri-
das desde a Alta Idade Média até a modernidade, Ariès empreendeu ex-
tensa investigação sobre tais alterações nas atitudes coletivas perante a
morte. Ele descreveu detalhadamente cada período histórico. A “morte
domada”, na Alta Idade Média, era ritualizada, comunitária e enfrenta-
da com dignidade e resignação. Caso exemplar é a morte dos cavaleiros:
o aviso da proximidade do término da vida era dado por sinais naturais
ou, mais frequentemente, por uma convicção íntima, mais do que por
premonição sobrenatural (Ariès, 1981, p. 6). Tendo esta consciência, o
moribundo tomava suas providências e a morte ocorria em uma ceri-
mônia pública, organizada e presidida pela própria pessoa que estava
morrendo. Os ritos eram aceitos e cumpridos, sem caráter dramático ou
gestos de emoção considerados excessivos. A familiaridade com o faleci-
mento espelhava a aceitação da ordem da natureza, na qual o homem
estava inserido. Com a morte, o indivíduo se sujeitava a uma das gran-
des leis da espécie e não cogitava em evitá-la ou exaltá-la: simplesmente
a aceitava.
A segunda modalidade de morte – a “morte de si” – surge por volta
dos séculos XI-XII e se estende até o século XIV, sendo marcada pelo
reconhecimento da finitude da própria existência. Para Ariès, nesse pe-
ríodo foram lançadas as bases do que viria a ser a civilização moderna: o
sentimento mais pessoal e mais interiorizado da morte, da própria mor-
te, traduzindo o apego às coisas da vida. As origens do individualismo
estariam aí situadas, quando os homens passam a conviver com o pen-
samento na morte. Surge, então, uma Ars moriendi, dirigida à produção
da “morte bela e edificante” (ibidem, 1981, p. 23).
A partir do século XIX e até o século XX, a morte do outro se torna
dramática e insuportável. Inicia-se então um processo de afastamento

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social da morte. Finalmente, na segunda metade do século XX surgem


novas formas de relação com a morte: ela é “invertida, escamoteada,
oculta, vergonhosa e suja” (ibidem, p. 309). Esta modalidade de morte
foi designada por este historiador como modelo de “morte moderna”,
em oposição aos tipos anteriores, denominados, em conjunto, como
modelo de “morte tradicional”.
A abordagem histórica de Ariès é fundada na concepção de uma de-
gradação progressiva da relação com a morte, estabelecida pelos indiví-
duos e pelas sociedades. Sua visão é particularmente crítica quanto ao
período moderno, que afastou o morrer do cotidiano, transformando
este processo em tabu e privando o homem de sua própria morte. Indo
além, teria ocorrido uma crescente desritualização, com a secularização
da cultura ocidental.
Elias (2001) concorda parcialmente com Ariès, por considerar a vi-
são do historiador excessivamente romântica no que se refere à morte
nas sociedades tradicionais. Para Elias, Ariès teria encarado com descon-
fiança o presente inglório – no sentido da perda da reverência – em
“nome de um passado melhor” (ibidem, p. 19). De acordo com o soci-
ólogo alemão, entre os séculos XVIII e XX houve uma transformação
do comportamento social referente à morte. Nesse período, ocorreu uma
série de mudanças sociais, alterando atitudes, práticas e sentimentos, que
acarretaram um processo de internalização e o consequente aumento
do autocontrole.
Na sociedade tradicional, a morte era vivenciada de modo mais fa-
miliar e onipresente, menos oculta, o que não significava que se tratasse
de uma experiência tranquila, pois os sentimentos religiosos de culpa e
medo do castigo eram frequentes (ibidem, p. 22). Rituais demonstra-
vam a continuidade social e demarcavam claramente o final da vida.
Os que permaneciam vivos eram reposicionados socialmente: por exem-
plo, a escolha do filho que iria herdar os bens do pai, ou do núcleo fa-

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miliar com o qual a viúva passaria a habitar após o falecimento do mari-


do. Para Elias, tais condutas eram possíveis graças à existência de um
sistema de crenças que delimitava a posição e o valor de um membro
em determinada cultura. Ao mesmo tempo, os comportamentos refor-
çavam o mesmo sistema de crenças dos quais haviam emergido.
Com os processos de urbanização, o crescimento das indústrias e de
individualização nas sociedades ocidentais modernas, sobretudo nos sé-
culos XIX-XX, a organização de funerais e/ou de cremação passa a ser
institucionalizada e burocratizada. A responsabilidade pela organização
dessas práticas torna-se atribuição de especialistas. Conhecimentos es-
pecíficos são elaborados e transmitidos a profissionais (Howarth, 2007,
p. 244), que demarcam espaços para o contato entre os vivos e os mor-
tos. Por exemplo, o corpo morto não é mais lavado por leigos, parentes
ou vizinhos, como nas sociedades tradicionais, mas por profissionais,
que tanto podem ser de funerárias como de congregações religiosas, a
exemplo de judeus e muçulmanos.
Com o advento da modernidade, emergem duas instâncias, que pas-
sam a ser fundamentais na vida social e tornam-se pilares da cultura oci-
dental individualista. Trata-se da instituição médica – o hospital –, ba-
seada em saberes científicos e na biomedicina, e do médico, personagem
central nesse contexto.9 Vida e morte passam a ser foco da atenção desse
profissional, sobretudo a partir do século XX. A medicalização é instau-
rada, o que significa uma redescrição, do ponto de vista médico, de even-
tos como gravidez, parto, envelhecimento e morte, entre outros. Com-
portamentos tidos como desviantes, como uso de drogas, passam a ser
enfocados pela ótica da biomedicina. Em suma, a medicalização refere-
se à ampliação de atos, produtos e consumo médico, bem como à inter-
ferência crescente de informações científicas e médicas no cotidiano in-
dividual, com a imposição de normas de conduta social (Corrêa, 2001,
p. 24; Howarth, 2007, p. 119). O processo de medicalização é basica-

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mente ancorado no corpo, sendo este o vetor da individualização, ao


estabelecer a fronteira da identidade pessoal. Assim, individualização e
medicalização são processos intrinsecamente vinculados e articulados.
No que concerne à morte, ao morrer e ao destino do morto, profissio-
nais – sejam eles dedicados à saúde, aos cuidados com o corpo ou aos
rituais fúnebres – passam a ocupar posição social privilegiada, em de-
corrência de sua expertise.
No modelo de “morte moderna”, administrado pelo saber e pela ins-
tituição médica, marcado pelo ocultamento institucional do término
da existência,10 passa a haver uma estigmatização dos profissionais que
lidam com o sofrimento e a morte (Sudnow, 1967). O crescente afasta-
mento entre vivos, moribundos e mortos caracteriza a segunda metade
do século XX. Segundo Elias (2001, p. 54), isto se dá por diversas ra-
zões, dentre as quais se destacam: o processo civilizador (idem, 1997), o
aumento da expectativa de tempo de vida, com o controle de doenças
infecciosas e da mortalidade neonatal; a criação de técnicas e de apare-
lhagem direcionadas ao prolongamento e à manutenção da vida; a pro-
dução de fantasias de autocontrole e de autonomia em relação aos ou-
tros (idem, 2001, p. 63).
A morte típica, após 1960, acontece em modernas unidades de tra-
tamento intensivo, com o enfermo isolado, com pouco contato com
familiares e amigos, com o corpo invadido por tubos e conectado a apa-
relhos. O embaraço e a dificuldade de expressão de sentimentos de to-
dos os envolvidos no processo do morrer são referidos por Elias (ibidem,
p. 67) como a tônica dessa cena. Após o óbito – termo técnico utilizado
por profissionais de saúde –, o corpo é limpo e cuidado por auxiliares
de enfermagem, sendo transportado discretamente para a morgue, de
preferência sem que doentes e/ou familiares percebam o “fracasso” da
equipe médica. Nesse contexto, um falecimento pode ser considerado
pelos profissionais como uma falha (Herzlich, 2003, p. 6).

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Com as novas tecnologias de respiração artificial, transplante de ór-


gãos, inseminação artificial, clonagem, entre outras técnicas continua-
mente criadas e aperfeiçoadas, cada vez mais a medicina e os médicos
vêm se tornando personagens centrais na gestão da morte e do morrer.
Muitas críticas ao modelo de “morte moderna” são endereçadas a este
profissional e à instituição em que atua. No entanto, cabe lembrar que
os encargos da doença e do morrer foram socialmente delegados ao
médico e ao hospital, em um longo processo histórico. Não se trata,
portanto, de denunciar a crescente racionalização e institucionalização
dos cuidados dos moribundos e dos mortos, mas de compreender a
manutenção de antigos rituais e a emergência de novas modalidades de
cerimônias em torno da morte.
“A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas”,
diz Elias (2001, p. 10). Cabe aos vivos a gestão deste processo. Para
muitos estudiosos dedicados ao tema, como Walter (1997, p. 177),
Kellehear (2007, p. 249), Howarth (2007), entre outros, a morte mo-
derna é caracterizada por controle e gestão médica, tendo se tornado,
paradoxalmente, um acontecimento privado, por não mais ser compar-
tilhado pela – e na – comunidade. O mesmo pode ser afirmado acerca
dos rituais fúnebres: velórios, funerais, cremações e cerimônias religio-
sas, como missas ou cultos, passam a ser controlados por profissionais e
instituições. A medicalização das condutas está presente, com a prescri-
ção de normas higiênicas de cuidados com o cadáver, seu enterro e cre-
mação. Contudo, ela não se restringe aos falecidos, pois também orien-
ta e elabora preceitos para o processo de luto, passível de se tornar um
evento patológico, objeto de tratamento psicológico e psiquiátrico.
DaMatta (1997, p. 138) sugere que a falta de um tempo para o luto,
a existência de instituições especializadas “em tomar conta do morto”,
as técnicas de maquiagem empregadas, que “apagam do morto o grande

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castigo da morte” – frase sugestiva do poema de Pedro Nava, “O defun-


to” (1946) – e a conservação do corpo podem ser compreendidas à luz
do “credo individualista”.11 A valorização da escolha individual, em opo-
sição à atribuição dos valores tradicionais (grupo social, familiar ou reli-
gioso) se apresenta como um dos valores estruturantes da cosmologia
moderna. Nesse sentido, “a referência a um ‘subjetivismo’ busca enfatizar
a preeminência da representação de uma escolha pessoal do sujeito, de
uma presumida liberdade individual principial prevalecente no campo
da experiência religiosa hoje” (Duarte et al., 2006, p. 18).
O incremento de incinerações e de cremações é apontado como evi-
dência da crescente institucionalização e racionalização dos cuidados
com o corpo morto (Howarth, 2007, p. 245). Para Antônio Gonçalves
(2001, p. 12), os ritos de incineração e cremação eram considerados por
alguns estudiosos como um retorno às origens, pois seriam reservados
aos heróis da antiga Grécia. Entretanto, também constituíam fenôme-
nos tradicionais em outras culturas. Atualmente, na Europa Setentrio-
nal, as taxas de incineração e cremação são elevadas, enquanto nos paí-
ses do Mediterrâneo estão em lenta, mas constante progressão. Para esse
autor, a cremação traduz a necessidade de evacuar a morte, de forma
definitiva e expedita. Entretanto, recentemente são criadas novas for-
mas de cerimônias, no caso da cremação. Muitas vezes são produzidos
rituais reservados aos familiares e amigos íntimos do falecido. Assim, a
morte é associada à esfera privada.
A relação com o morto é expressa nas lembranças de sua existência, o
que pode ser transmitido de geração a geração, por objetos como retra-
tos, joias, livros, cartas, louça e, no caso da cremação, a urna com as
cinzas. A persistência da individualidade do falecido na memória dos
vivos indica as relações estabelecidas entre eles, em vida. Trata-se de
enfatizar tanto a permanência da singularidade de cada pessoa que se

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foi, quanto a manutenção dos vínculos relacionais. Na contemporanei-


dade, é preciso efetuar uma clara demarcação entre vida e morte, pois à
noção de vida é atribuído estatuto central, o que pode ser observado
pela crescente atenção e valorização do corpo sadio e jovem.

Morrer do seu próprio jeito:


autonomia, singularidade e consumo

A partir da década de 1960, surgem críticas ao modelo de “morte mo-


derna” e propostas de novas formas de assistência a doentes considera-
dos “terminais”.12 Nos Estados Unidos, as reivindicações se inserem no
conjunto de demandas do movimento pelos direitos civis e abrangem
os direitos dos doentes, a “morte com dignidade” e a regulamentação da
eutanásia. Na Inglaterra, é fundado o primeiro hospice, instituição exem-
plar de uma nova filosofia, remetida à humanização do morrer e ao res-
peito à autonomia individual.13 Do silêncio, ocultamento e negação,
passou-se à colocação da morte em discurso.
As principais palavras de ordem são: “morrer bem” (Castra, 2003),
“com dignidade” e “ao seu próprio jeito” (Walter, 1997).14 A esta forma
inovadora de gestão da morte, na qual é conferida primazia à autono-
mia e às escolhas individuais, é atribuída as designações: morte “neo-
moderna”, “pós-moderna” ou “contemporânea” (Menezes, 2004, p. 38).
Nesta perspectiva, surge na Inglaterra, nos anos 1990, a proposta de
“morte natural”, que enfatiza o contato com a natureza e a integração
na totalidade, por intermédio do processo do morrer (Albery &
Wienrich, 2000).
Os militantes da causa da “boa morte” são herdeiros de dois movi-
mentos sociais: o movimento pelos direitos civis – no qual se inserem as
reivindicações por transformações da relação de poder entre médico,

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equipe de saúde e doentes – e o movimento Nova Era, com forte cono-


tação antitecnológica, projetos de comunidades alternativas, discursos
ecológico de sacralização da natureza e de autodesenvolvimento, pro-
postas terapêuticas atraídas por experiências místicas e filosofias
holísticas, encontro com religiões orientais, populares e indígenas, espi-
ritualidade centrada na perfeição interior (Campbell, 1997, p. 18;
Amaral, 2000, p. 15; Magnani, 2000, p. 12). A influência do fenômeno
Nova Era no projeto de produção de uma “boa morte” se refere à noção
da vida como um fluxo, no qual está inserido um indivíduo único e
singular, em cuja interioridade se encontra a sua verdade. Nesse contex-
to, é concedida significativa ênfase à espiritualidade: os valores espiritu-
ais passam a integrar uma visão de mundo e as práticas sociais.
Em concordância com Duarte (2003; 2005) e Duarte et alii (2006),
a cultura ocidental moderna é caracterizada pela existência de linhas de
força ideológicas, articuladas de forma complexa. Os valores de um “in-
dividualismo ético”, um “hedonismo”, um “naturalismo” e uma “racio-
nalização corporal” (Duarte, 2005, p. 154) são estruturantes de nossa
cosmologia contemporânea e se apresentam em distintas esferas da vida.
A expressão “individualismo ético” enfatiza a preeminência da escolha
pessoal e da presumida liberdade individual. Para Duarte, o “individua-
lismo ético” também está presente no crescente subjetivismo que tende
a prevalecer nas atitudes religiosas, em todos os domínios confessionais
(ibidem, p. 155).15
A segunda grande linha de força que integra a composição de um
ethos privado é a disposição “hedonista” generalizada (ibidem, p. 157).
Trata-se do “privilégio da satisfação ou prazer a ser obtido neste mundo,
sob a forma de uma realização emocional pessoal” (ibidem, p. 155). O
terceiro ponto se localiza em torno da ideia de natureza, categoria cen-
tral para a ordenação dos horizontes modernos, expressa sob diferentes
roupagens e em distintas tradições de conhecimento (ibidem, p. 158).

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A relevância desse conjunto de características da cosmologia ociden-


tal moderna é perceptível na formulação das recentes propostas
concernentes ao processo do morrer, à morte e aos rituais a ela vincula-
dos. Segundo Howarth (2007, p. 243), “o século XX assistiu a um pro-
cesso de ampla inovação nas práticas funerárias”. Desde os anos 1970,
vem ocorrendo extensa diversificação de cerimônias, formas de cuidado
do cadáver e, sobretudo, maior espaço para expressão de desejos, inclu-
sive com a legitimação de um documento, especificamente destinado
ao registro de escolhas individuais: o living will (Howarth & Leaman,
2001, p. 286).
As situações mencionadas no início deste artigo ilustram a variabili-
dade de atitudes, tanto no último período de vida de doentes, quanto
em rituais fúnebres. Com a fragmentação das esferas da vida na moder-
nidade, cabe ao indivíduo formular suas escolhas profissionais, afetivas,
sexuais, bem como de vínculos sociais, adesão/conversão religiosa,
pertencimento a grupos, cuidados de si, visibilidade (ou não) de suas
opções. Em suma, trata-se do primado da autonomia, do subjetivismo e
do hedonismo. Combinações e arranjos complexos são possíveis, entre
identidades aparentemente díspares e conflitantes, como no caso do ju-
deu Hare-Krishna.
A crescente personalização dos funerais contemporâneos é dirigida a
“delimitar a individualidade do defunto, adaptando-se ao estilo de vida
e temperamento que foram seus” (Segalen, 2002, p. 59). Para esta auto-
ra, as próprias instituições religiosas, como a Igreja Católica, passaram a
adotar novas “invenções rituais”. A desritualização das últimas décadas
promoveu o desamparo dos que permanecem, já que estes não podem
mais exercer os “gestos que autorizam a retomada do curso normal da
vida” (ibidem, p. 59). A rotinização da cremação é considerada como
um dos fatores que indicam a perda de referências temporais e espaciais.

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Em sua abordagem, o rito é concebido por sua plasticidade e polisse-


mia, características que permitem sua inscrição na mudança social.
Segundo a autora, “cada época tem os ritos que merece. O importante é
compreender que eles são o resultado de situações sociais específicas”
(ibidem, p. 38).
Três situações destacadas pelas autoras evidenciam as chamadas “in-
venções rituais”, relativas à complexa relação entre vivos e mortos, luto,
ritual e disposições individuais. Com a perda do poder e da capacidade
de produção de sentido de crenças, cerimônias, ritos tradicionais e re-
presentantes religiosos, apresentam-se modalidades inovadoras de ritua-
lização, que contam com novas categorias profissionais dedicadas à ela-
boração da morte. Assistentes espirituais, médicos, psicólogos e
terapeutas se especializam na assistência a doentes terminais e enluta-
dos. Workshops, cursos e palestras são oferecidos na maioria dos países
ocidentais, em âmbito privado e público.
No Brasil, as primeiras iniciativas ocorreram nas cidades de São Pau-
lo e Rio de Janeiro, em reuniões com familiares de doentes falecidos há,
no mínimo, um mês (Menezes, 2004, p. 192). A psicóloga Bel César,
que “pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano des-
de 1990” em São Paulo, dedica-se “ao acompanhamento daqueles que
enfrentam a morte” e coordena grupos para elaboração do luto em seu
sítio, no interior do estado de São Paulo.16 Nestes, os enlutados com-
partilham suas experiências de perda, dor e sofrimento (César, 2001).
Após alguns encontros, a profissional propõe que cada um associe a per-
sonalidade do morto com uma árvore. A partir de então, é efetuado um
ritual personalizado, denominado “Luto e Natureza”, com o plantio de
uma árvore “que represente a continuidade da energia daquele que se
foi em nosso Planeta Terra”.17 Em suas palavras, divulgadas no site do
Centro de Dharma da Paz: “O processo de luto para cada pessoa será

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sempre único. No entanto, ao compartilhar nossa experiência com pes-


soas que estejam passando por algo similar, nos ajuda a atenuar a inten-
sificação de nossa dor”.
Há uma tônica na individualidade e na escolha pessoal. Seja na in-
trodução de novos elementos em rituais tradicionais, seja na formula-
ção de novas modalidades de cerimônia, há uma ênfase nos atributos de
cada indivíduo, o que pode ser ilustrado por uma Missa de Sétimo Dia,
no Rio de Janeiro. O convite, impresso em jornal, contava com o em-
blema de um time de futebol desta cidade e grande parte do público
presente trajava camiseta deste time. A cerimônia teve duração de cerca
de duas horas. A viúva afirmou publicamente seu afeto pelo falecido,
relatando experiências vivenciadas em conjunto, inclusive abordando
situações da vida sexual do casal – tema usualmente tido como da esfera
privada. O padre exibiu uma fotografia do morto e suas músicas prefe-
ridas eram tocadas. A missa foi concluída pela canção “Eu te amo”, de
Roberto Carlos, e por distribuição de “santinhos” com uma foto do
morto sorrindo, antes de seu adoecimento. O choro não era disfarçado,
mas compartilhado entre os presentes. As marcas da singularidade do
falecido foram enfatizadas: seu vínculo com a música popular brasileira,
sua identidade de torcedor de futebol, sua alegria e dedicação à família e
aos amigos. Enfim, as diferentes esferas de sua vida constituíram objeto
de celebração.
Segundo Walter (1997, p. 156), os religiosos declaram que os “fune-
rais são para os vivos” e que “o propósito de um funeral é auxiliar o pro-
cesso de luto”. No entanto, quando se indaga às pessoas por que vão a
determinado enterro, elas respondem que “é para prestar minha última
homenagem”. Elas referem duas razões: pelo bem do falecido ou para
apoiar algum familiar. Contudo, quando parentes próximos são questi-
onados sobre sua participação em rituais fúnebres, afirmam que se trata
de cumprir um dever. Nesse sentido, a dimensão coletiva (familiar,

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social, religiosa) é crucial para a produção de significados para vida e


morte. Apesar da crescente individualização e, nos termos de Elias (2001,
p. 63), da imagem solitária do “homo clausus”, da “mônada isolada”, o
sentido é construído por “pessoas em grupos mutuamente dependen-
tes” (ibidem); é uma categoria social e, como tal, demanda trocas, nego-
ciações e um processo de elaboração individual e coletivo, no qual o
ritual é de suma importância.
Um terceiro exemplo indica a mesma direção. Nota-se uma série de
situações curiosas acerca da escolha de caixões, urnas mortuárias e ou-
tros objetos18 utilizados nos ritos funerários contemporâneos. No blog
de Fernando Moreira, no jornal o Globo (19 out. 2009), foi publicada
matéria intitulada “Um carro funerário para a geração Woodstock”.19
O criador da pintura deste veículo, o empresário inglês Matthew Shuter,
declarou ao Daily Mail que “as pessoas da geração Woodstock estão
morrendo agora. Elas realmente tiveram uma vida colorida e não gosta-
riam de ir para o próprio funeral em um carro preto sem graça”.

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Esta formulação pode ser associada ao modelo de “morte natural”.


Para Albery (Albery & Wienrich, 2000, p. 6), a proposta surgiu em de-
corrência do envelhecimento da geração de vanguarda dos anos 1960,
que criou o movimento hippie, buscou a expansão da consciência pelo
uso de drogas alucinógenas e, com o advento da pílula anticoncepcio-
nal, promoveu mudanças nas relações sexuais e de gênero, com o cha-
mado “amor livre”. Foi também a geração dos movimentos pacifistas, a
favor da liberdade de expressão e, ainda, que liderou e participou das
revoltas estudantis de 1968. Para Velho (1998), a principal característica
desta geração é a busca contínua por mudança e transformação. As esco-
lhas de indumentária, alimentação, métodos de parto e de morte “natu-
rais”, de intensidade (Duarte, 1999) e, por fim, de transporte funerário
marcariam a diferença entre esta e as outras gerações, entre este grupo e
os demais – simples usuários de veículos pretos, “sem graça”.
Em notícia divulgada pelo site R7, a CPU de um computador da
década de 1990 foi utilizada como urna mortuária de um nerd.20 Se-
gundo o irmão do falecido, tratava-se de uma homenagem “para quem
nos deixou para ir ao grande banco de dados do céu”. Vale referir que
uma das etapas do ritual consistiu na postagem de fotografias em site de
hospedagem na web.21 Não se dispersa sem deixar vestígio (Segalen,
2002). Mesmo em cinzas, o ente querido está ali guardado, mantendo
sua singularidade.
No site Terra, a reportagem “Caixões pink fazem sucesso em feira fu-
nerária em SP” (1º set. 2007) ressalta as novidades do mercado funerá-
rio, especialmente as urnas dedicadas ao público jovem e feminino.22
“Tira um pouco da tristeza. Está todo mundo gostando. Eu já tinha vis-
to de várias cores, mas nenhum tão feminino. Esse é bem para menini-
nha patricinha”, afirma a idealizadora do novo conceito de “moda” para
os defuntos. O conforto também é muito valorizado, consistindo um

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

mote para os novos modelos. Um entrevistado declara: “Os jovens estão


tomando conta do mercado funerário. Isso traz novidades. Não precisa
ser aquela urna escura e feia. Hoje nós queremos colocar as pessoas que
gostamos em um lugar bonito e confortável”.
O sorriso e as palavras da criadora desses modelos de caixão revelam
o afastamento da tristeza, sentimento usualmente associado à perda.
Efetua-se um deslocamento: da feiura, do desamparo e do sofrimento
em face da morte, para a beleza, o conforto e a visibilidade de um atri-
buto de gênero. A ideologia da perfeição corporal e a valorização da ju-
ventude constituem referências centrais em nossa sociedade ocidental
contemporânea. Com a falência da saúde e do corpo, faz-se necessário
estabelecer uma significação para o término da existência, sobretudo ao
se tratar de pessoa jovem. Neste sentido, evidencia-se a construção de
uma imagem da “bela morte”, pacífica e controlada.

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RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”

A matéria intitulada “Funerárias oferecem motos, urnas temáticas e


até sorvete”, publicada no jornal The New York Times (20 abr. 2009),
indica diversas características dos rituais funerários contemporâneos.23
Tais aspectos encontram-se intrinsecamente identificados ao modelo in-
dividualista, como o processo de secularização, o primado da escolha, o
hedonismo (Duarte, 2005) e o prazer do consumo. A satisfação do gos-
to individual pelas funerárias seria decorrente das múltiplas demandas
de “despedidas personalizadas”. A matéria menciona alguns exemplos,
como um senhor que solicitou que fossem oferecidos sorvetes ao final
de seu próprio funeral, para “confortar seus netos”; e o pedido de “aman-
tes de motocicleta”, que alugassem uma Harley-Davidson, ao custo de
duzentos dólares. A disposição em responder a esses desejos é apontada
como um dos motivos de manutenção do setor funerário em tempos de
crise, além de estimular a concorrência.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Em pesquisa em sites da Internet ou em jornais, verifica-se a existên-


cia de inúmeros aparatos e novidades, fornecidos pelo mercado de bens
materiais, referentes aos ritos funerários contemporâneos. Caixões com
símbolos de times de futebol, com formato de instrumentos musicais,
de carros, de garrafa de Coca-Cola, entre outras opções, são alguns dos
modelos oferecidos. A ideia da confecção de caixões personalizados pare-
ce se confrontar com o que Antônio Gonçalves (2001) nomeia de “crise
dos rituais fúnebres”. Por um lado, emergem “novas simbolizações dos
rituais fúnebres, privilegiando a simplificação e a profissionalização”
(ibidem, 2001, p. 12). Por outra vertente, surgem aparatos inovadores,
utilizados em rituais não menos complexos do que os realizados sob for-
matos tradicionais. É possível aventar aqui a hipótese de uma crise entre
esses tipos de rituais fúnebres e aqueles dedicados à coletividade, transmi-
tidos de geração a geração. Os rituais contemporâneos mesclam antigas
e novas práticas. A diversidade de opções de caixão ou de urna mor-
tuária é exemplar desse processo. Apresentados como bizarros, excêntri-
cos e até engraçados, os modelos privilegiam a singularidade do morto,

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RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”

respeitando sua trajetória individual, seja ela hippie, high tech, nerd, “pa-
tricinha”, ou outras possibilidades.
A adequação e satisfação dos desejos dos sujeitos e a afirmação de
suas afinidades integram a noção de consumo, conforme definida por
Douglas (2009, p. 105). Os bens são considerados “necessários para dar
visibilidade e estabilidade às categorias da cultura”, e “é prática etno-
gráfica padrão supor que todas as posses materiais carreguem significa-
ção social” (ibidem, p. 105). Eles constituem comunicadores. Assim, as
diferentes formas de caixão não se restringem ao mero consumo. Fami-
liares, amigos ou os próprios futuros “falecidos” promovem arranjos cria-
tivos nos rituais. Os objetos assinalam a celebração do término de uma
vida individual, transformando-a em um momento único para o grupo.
A vida de determinada pessoa é concluída com indicações precisas de
sua especificidade e singularidade. Suas mais significativas característi-
cas são expostas em seu ritual fúnebre. A última participação do faleci-
do em atividade coletiva é marcada pela centralidade da expressão visual
de sua identidade, pela afirmação de sua identidade pessoal.
Os objetos têm função mediadora entre o visível e o invisível, “entre
aquilo de que se fala e aquilo que se apercebe, entre o universo do dis-
curso e o mundo da visão” (Pomian, 1982, p. 68). São capazes de evo-
car e relembrar o passado, os estilos de vida, as experiências coletivas e
individuais. Em suma, refletem o ente que se foi. São também objetos
de desejo, que, no caso em análise, estão plenos de aspectos da persona-
lidade individual. Estes objetos são requeridos por aqueles que farão uso
deles, pelos que ensejam marcar e perpetuar a singularidade, prestando
uma última homenagem. Portanto, trata-se de afirmar a presença do
próprio indivíduo, sua perpetuação na memória do grupo, conforme se
observa na preferência por guardar em uma CPU as cinzas de um pa-
rente. Stewart classifica uma modalidade de souvenir, associada aos ritos
de passagem:

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Tais souvenirs são raramente escolhidos em separado; ao contrário, eles for-


mam um conjunto, que é uma autobiografia. Blocos com anotações, ál-
bum de fotografias e livros de bebês são ilustrativos. As memórias são
emblemáticas da dignidade daquela vida e da capacidade individual de
gerar valores, em decorrência de sua conexão com a biografia e sua impor-
tância na constituição da noção de vida individual. (Stewart, 1984, p. 139).

No mesmo sentido, Meneses (1998, p. 93) observa que “a biografia


dos objetos introduz novo problema: a biografia das pessoas nos obje-
tos”, embora compreenda que há ambiguidade e flexibilidade entre as
esferas “pessoal” e “pública”. Identifica situações críticas, ao se tratar do
polo intermediário, no qual ambas se confundem, e quando sobressai o
aspecto coletivo.
É justamente pelo fato de a fronteira entre vivos e mortos ser tênue
que as demarcações, por intermédio de rituais, são necessárias. Os obje-
tos, como mediadores, expressam esta tensão. A utilização de determi-
nadas peças que identificam a trajetória e a identidade do morto é recor-
rente em distintas sociedades. A escolha prévia dos artefatos funerários,
que carreiam e expressam a singularidade do indivíduo, como um cai-
xão com a forma de carro ou uma CPU como depósito das cinzas, evi-
dencia uma particularidade da sociedade contemporânea. Os chamados
“objetos biográficos” permanecem em nossas relações, e a eles é atribuí-
do estatuto de extrema relevância. O privilégio de receber certos objetos
antes pertencentes ao falecido é indicativo da qualidade e importância
dos vínculos estabelecidos entre eles. Afinal, o que se pretende com as
escolhas por rituais e objetos ao morrer é que estes expressem a “pacífica
impressão de continuidade” (Bosi, 1983, p. 360).

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RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”

Visibilidade, individualidade
e rituais fúnebres contemporâneos

Quando morto estiver meu corpo,


Evitem os inúteis disfarces,
Os disfarces com que os vivos,
Só por piedade consigo,
Procuram apagar no Morto
O grande castigo da Morte.
Não quero caixão de verniz
Nem os ramalhetes distintos,
Os superfinos candelabros
E as discretas decorações.
Quero a morte com mau-gosto!
Dêem-me coroas de pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enorme salva-vidas,
Com fitas negras pendentes.
E descubram bem minha cara:
Que a vejam bem os amigos.
Que não a esqueçam os amigos.
Que ela ponha nos seus espíritos
A incerteza, o pavor, o pasmo.
E a cada um leve bem nítida
A ideia da própria morte.
Descubram bem esta cara [...].
(Pedro Nava, “O defunto”)

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Na modernidade, as práticas referentes à morte e ao morrer devem


ser ocultadas, afastadas da visão dos vivos e devidamente controladas.
A expressão de emoções associadas à perda deve atender às exigências da
ordem pública e privada. Para Bauman (1998, p. 199), a morte causa
horror, que é “exorcizado pela sua onipresença, tornado ausente pelo
excesso de visibilidade, tornado ínfimo por ser ubíquo, silenciado pelo
barulho ensurdecedor”. Com o processo de rotinização da morte, o pro-
cesso do morrer se torna banalizado.24 Segundo interpretação de Elias
(2001, p. 75), ao longo do século XX ocorre um recalcamento da ideia
da morte, resultante de um processo individual e coletivo.25
A estrutura de personalidade dos indivíduos é alterada com o esvazi-
amento dos rituais seculares e o maior controle individual sobre a ex-
pressão de sentimentos em face do sofrimento e da morte. Seja com a
redução da importância do ritual nos dias atuais, seja com a transforma-
ção das cerimônias por meio de incorporações e inovações, o ritual con-
tinua a capturar emoções em circunstâncias sagradas ou seculares.26
Em 1955, Geoffrey Gorer afirmou que a morte havia se tornado o
tabu do século XX (apud Walter, 1997, p. 1). Nas décadas seguintes,
foram apontadas críticas à banalização e rotinização das práticas fúne-
bres. Nos últimos anos, observa-se uma crescente visibilidade da morte
em filmes, programas de televisão, reportagens com fotografias e decla-
rações de doentes terminais, transmissão via Internet dos momentos fi-
nais da vida, como ocorreu com Timothy Leary, por exemplo.27 É possí-
vel levantar diversas indagações após a constatação das recentes
transformações em torno do final da vida. Seriam estas práticas estraté-
gias de defesa e de proteção coletivas, diante da evidência da fragilidade
humana? A morte teria deixado de ser tabu na cultura ocidental con-
temporânea? Trata-se da construção de um “dispositivo da morte”, aná-
logo ao da sexualidade (Foucault, 1993).

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RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”

Na contemporaneidade, o ritual configura uma imagem específica


do falecido, produzindo consenso ou controvérsia entre familiares, ami-
gos e grupos de pertencimento. Tal aspecto evidencia a existência de
tensões entre as distintas esferas da vida, por serem fragmentadas e
compartimentadas. Neste caso, as opções do morto são sujeitas a dife-
rentes interpretações, segundo a qualidade de seu vínculo com os gru-
pos sociais por ele escolhidos. A aceitação ou a recusa dos desígnios do
falecido podem ser objeto de negociações entre os atores sociais envol-
vidos, pois vida e morte sempre foram – e seguem sendo – representa-
das coletivamente.
A morte permanece como objeto de reverência, independentemente
da interpretação desse processo e dos sentimentos a ele associados, por
se tratar de uma ruptura, uma transformação marcante e significativa.
A pessoa morta é embalsamada, maquiada, preparada e vestida para a
cerimônia final para que dê a impressão de estar viva, de ter algum sinal
de vida, ou, ainda, para evidenciar suas características singulares. Des-
pistar a iminência do processo de despersonalização que ocorre com o
falecimento por piedade dos vivos, como no poema “O defunto”, de
Nava, ou enfatizar o caráter único do morto, ainda que seus desejos se-
jam tidos como excêntricos e de mau-gosto, são dinâmicas presentes nos
rituais fúnebres contemporâneos.
O respeito à escolha individual dos procedimentos ao final da vida
convive, paradoxalmente, com a necessidade de visibilidade dos rituais.
Aquilo que foi prescrito como atinente ao privado, devendo ser oculta-
do, passa a ser concebido segundo outra lógica. Se o ritual confere or-
dem, também fixa os significados. Para Douglas (2009, p. 112), “sem
modos convencionais de selecionar e fixar significados acordados, falta
uma base consensual mínima para a sociedade”. Sejam eles de acordo
com o modelo tradicional, moderno ou contemporâneo, “os rituais são
convenções que constituem definições públicas visíveis”.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

As novas tecnologias de comunicação, especialmente a Internet, pro-


piciam acessos rápidos e diferenciados à difusão de imagens e outros
conteúdos. Desta forma, o processo de crescente visibilidade da morte,
surgido em oposição ao seu ocultamento, pode ser interpretado como
um meio de elaboração coletiva, já que, na contemporaneidade, a trans-
cendência religiosa deixou de ser uma noção central. É preciso reveren-
ciar o indivíduo e sua existência, marcando seus feitos, sua personalida-
de e singularidade até o final: em seus últimos momentos de vida e em
seus rituais fúnebres.

Notas
1
Professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Instituto de Estudos
em Saúde Coletiva – Brasil.
2
Professora adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, DFCS/
PPGMS-Unirio, e integrante do Núcleo de Antropologia Urbana/USP – Brasil.
3
Em artigo acerca das transformações nas relações familiares em camadas popula-
res, pluralismo religioso contemporâneo e ethos privado, Gomes (2006) analisa as
diferentes características de rituais fúnebres adotados pela rede familiar em ques-
tão. Mostra que, no intervalo de uma década, o formato do rito e os modos de
participação dos familiares se alteraram significativamente. O domínio da orienta-
ção católica na realização do funeral passou a dividir espaço com a orientação evan-
gélica, adquirida mediante conversão de vários membros da família. Observa, no
entanto, que tais mudanças não ocorrem sem conflitos e acomodações muito
marcantes em processos de disputa pela legitimidade familiar. Neste sentido, o rito
fúnebre, como fato social total (Mauss, 2003), torna-se objeto singular de análise
das combinações e dos ajustes necessários para a manutenção ou transformação da
organização social em questão.
4
Há uma vastíssima bibliografia antropológica sobre ritual, que acompanha toda a
trajetória da disciplina. Não cabe aqui retomá-la, mas reconhecer sua complexida-
de e relevância. Neste artigo, não consideramos a noção de ritual com base numa

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definição rígida. Seguindo a sugestão de Peirano (2003, p. 8), trabalhamos aqui


com uma “definição operativa”, que precisa ser “etnográfica, isto é, apreendida pelo
pesquisador em campo junto ao grupo que ele observa (...) deve, portanto, desen-
volver a capacidade de apreender o que os nativos estão indicando como sendo
único, excepcional, crítico, diferente” (ibidem). Sobre o tema, ver, em especial, Van
Gennep (1978) e Turner (1974; 2005).
5
Em concordância com Duarte (2005, p. 158), compreendemos cultura ocidental
contemporânea como um constructo cosmológico, no qual a ideia de natureza de-
sempenha papel crucial na ordenação dos horizontes modernos. Nesta perspectiva,
apresenta-se uma valoração nova e radical da realidade física do mundo, apreensível
pela razão humana (vista como natural) e oposta ao privilégio tradicional da
sobrenatureza e da transcendência moral. No escopo desta concepção, é atribuída
preeminência a duas instâncias: a objetividade da natureza e a autonomia da con-
dição humana.
6
Estudos arqueológicos indicam que rituais e práticas concernentes à morte e ao ca-
dáver são tão antigos quanto o homem de Neanderthal ou seus ancestrais. O trata-
mento concedido ao corpo, sua posição no sepultamento, os objetos colocados junto
a ele, as urnas funerárias, as pinturas e as inscrições consistem em indícios da ela-
boração e existência de valores e crenças sobre vida e morte (Cohen, 2002, p. 2).
7
Tradução das autoras.
8
Cabe referir que esta definição da morte era vigente à época em que Van Gennep
elaborou sua teoria, no início do século XX. Entretanto, a partir dos anos 1950,
quando foi criado o respirador artificial e foram desenvolvidas diversas técnicas e
sofisticadas aparelhagens para manutenção e prolongamento da vida, não é mais
possível afirmar o mesmo. A definição de morte se alterou, desde então, e vem
sendo objeto de reflexões contemporâneas. Sobre o tema, ver Gomes & Menezes
(2008) e Menezes (2010).
9
Não é possível desenvolver aqui o tema, descrito extensa e profundamente em
Foucault (1994; 1995; 1999). Sobre a questão, ver também Menezes (2004).
10
Sobre o tema, os estudos pioneiros de Glaser & Strauss (1965; 1968) são de espe-
cial importância, por sua descrição detalhada dos processos pelos quais são
efetuadas estratégias de ocultamento dos moribundos e da morte em hospitais
norte-americanos.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

11
DaMatta discute ritos de passagem e modernidade com base na relação entre limi-
naridade e individualidade, refletindo sobre sua produção acerca do Carnaval no
Brasil, quando ocorre uma “verdadeira institucionalização do intermediário”
(2000, p. 14).
12
Esta proposta é denominada Cuidados Paliativos ou Medicina Paliativa. Sobre o
tema, ver Menezes (2004).
13
Utilizamos aqui o termo hospice no original, em inglês, uma vez que não há equi-
valente em português. Hospice tanto se refere a uma filosofia de atendimento às
necessidades de doentes diagnosticados como “fora de possibilidades terapêuticas
de cura”, quanto a instituição que promove esse tipo de assistência.
14
O “morrer ao seu próprio jeito” significa que a pessoa tenha acesso às possibilida-
des terapêuticas, efetue suas escolhas – não necessariamente de acordo com a ori-
entação médica –, de maneira a produzir uma morte singularizada. Esta concep-
ção se distingue da produção de uma “boa morte”, que vem sendo considerada
pelos estudiosos da temática como padronizada e medicamente controlada (Walter,
1997; Menezes, 2004).
15
O “subjetivismo” e o “naturalismo” são concebidos como valores estruturantes e
nódulos da religiosidade laica presente na cultura ocidental moderna. A “religiosi-
dade laica” integra a proposta de reflexão sobre o horizonte cultural moderno, con-
siderando que a adesão aos valores concernentes à ideologia individualista, por
mais paradoxal que se apresente, tem um cunho “religioso”, entendido como uma
cosmovisão (Duarte, 2006, p. 53). Tal característica propicia combinações, con-
flitos e ajustes nas relações estabelecidas entre indivíduos e instituições, religiosas
ou laicas; entre indivíduos e distintas redes de pertencimento (família, vizinhança,
trabalho, lazer, entre outras), que podem ser as mais díspares, como é o caso de
integrantes de religiões conservadoras que vivenciam, em segredo, experiências
transgressoras no que tange às decisões privadas (Natividade & Gomes, 2006).
16
Disponível em: <http://somostodosum.ig.com.br/d.asp?i=70> – Acesso em no-
vembro de 2011.
17
Disponível em: <http://www.centrodedharma.com.br/modules.php?name=
Content&pa=showpage&pid=6> – Acesso em novembro de 2011.
18
Para uma discussão sobre Antropologia e processos de circulação dos objetos, ver
Gonçalves (2007).

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RACHEL A. M. & EDLAINE DE C. G. “SEU FUNERAL, SUA ESCOLHA”

19
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/moreira/post.asp?cod_post=
233416> – Acesso em novembro de 2011.
20
Disponível em: <http://noticias.r7.com/esquisitices/noticias/cpu-velha-vira-
caixao-para-nerd-morto-20091001.html> – Acesso em novembro de 2011.
21
Com a disseminação da comunicação via Internet, a “cultura cibernética” (Amaral,
2003) produz diferentes modalidades de rituais, códigos, etiquetas, linguagens,
redes de pertencimento e, em suma, de relações sociais.
22
Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/popular/interna/0,,OI1872991-
EI1141,00.html> – Acesso em novembro de 2011.
23
Disponível em: <http://mulher.terra.com.br/interna/0,,OI3712984-EI1377,00-
funerarias+oferecem+ motos+urnas+tematicas+e+ate+sorvetes.html> – Acesso em
novembro de 2011. “Funeral personalizado é chance de gastar”. Disponível em:
<http://mulher.terra.com.br/galeria/0,,OI99051-EI1377-FI1173114,00.html> –
Acesso em novembro de 2011.
24
Diversamente do ocultamento social da morte em decorrência de doenças, o sécu-
lo XX assistiu a uma crescente exposição midiática do espetáculo da morte por
desastres, guerras e violência.
25
Elias considera a relutância dos adultos diante da familiarização das crianças com
a morte como um dos sintomas deste recalcamento, um mecanismo de defesa.
26
Cabe ressaltar que os estudos não se restringem ao exame de ritos destinados ao
término da vida: uma produção recente vem enfocando o surgimento de novas
práticas de demarcação da passagem de etapas e ciclos de vida.
27
Timothy Leary (1920-1996) foi psicólogo e neurocientista, professor de Harvard.
Pertenceu à geração Woodstock. Promoveu experiências com psicotrópicos e aluci-
nógenos com seus alunos, e este foi o motivo de sua expulsão da universidade. Bus-
cou divulgar uma nova perspectiva sobre o processo do morrer. Faleceu em casa,
cercado por amigos, e seus últimos momentos foram transmitidos pela Internet.

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ABSTRACT: Life and death are central keys for the conception of
personhood at different cultures. The ways of dealing with the beginning
and the end of life are highly diversified and depend upon shared beliefs,
elaborated by each social group. This article examines the theme of death
and its rituals, under an anthropological perspective. In contemporary
Western societies significant changes are observed concerning the status of
the living and the dead. In this paper, reflections on the changes in burial
rituals are presented, from the exam of media news and literature dedicated
to the theme. This choice is justified by the possibility of apprehending
notions, beliefs and values that constitute central aspects in our cosmology,
such as person/individual, life cycle, phases of life, pain, nature/culture and
life/death.

KEY-WORDS: Funeral rites, individualization, life/death, life cycle.

Recebido em setembro de 2010. Aceito em junho de 2011.

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O “egoísmo” como competência:
um estudo de desculpas dadas nas
relações de casal como forma de coordenação
entre bem de si e moralidade1

Alexandre Werneck2

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar como atores sociais podem


utilizar o “egoísmo” como um elemento central para a efetivação de suas
ações no âmbito de relações duradouras, mesmo diante de demandas de um
bem comum como guia moral. Por meio de entrevistas com casais e da aná-
lise de situações de potencial conflito entre os companheiros, estuda-se como,
em um tipo de relação centrada no amor, tomado como um ambiente no
qual se estabelece um pacto de altruísmo mútuo, o “bem de si” precede
muitas vezes o “bem comum” como princípio de efetividade das ações e,
portanto, como uma competência moral para a conservação das relações
e, ao mesmo tempo, das regras morais com elas envolvidas. Para que isso
seja operado, entra em cena o ato de dar uma desculpa, ou seja, uma de-
manda para que a situação de disputa se desloque do plano universalista da
regra moral para um plano circunstancialista, com base nas condições espe-
cíficas da ação, revelando uma capacidade cognitiva primordial para a vida
social, que chamo de capacidade metapragmática, e que permite se dar con-
ta da distância entre universal e particular.

PALAVRAS-CHAVE: “Egoísmo”, desculpa, casal, efetivação, capacidade


metapragmática.
ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

Sophie,
Há muito tempo venho querendo lhe escrever e responder ao seu último
e-mail. Ao mesmo tempo, me pareceria melhor falar com você e dizer o
que tenho a dizer de viva voz. Mas pelo menos será por escrito. Como você
pode ver, não tenho andado bem ultimamente. É como se não me reco-
nhecesse na minha própria existência. Uma espécie de angústia terrível,
contra a qual não posso fazer grande coisa, senão seguir adiante para ten-
tar superá-la, como sempre fiz. Quando nos conhecemos, você impôs uma
condição: não ser a “quarta”. Eu mantive meu compromisso: há meses dei-
xei de ver as “outras”, não achando obviamente um meio de vê-las, sem
fazer de você uma delas.
Achei que isso bastasse, achei que amar você e o seu amor seriam sufici-
entes para que a angústia que me faz sempre querer buscar outros horizon-
tes e me impede de ser tranquilo e, sem dúvida, de ser simplesmente feliz e
“generoso”, se aquietasse com o seu contato e na certeza de o amor que
você tem por mim foi o mais benéfico para mim, o mais benéfico que ja-
mais tive, você sabe disso. Achei que a escrita seria um remédio, que meu
“desassossego” se dissolveria nela para encontrar você. Mas não, estou pior
ainda, não tenho condições sequer de lhe explicar o estado em que me
encontro. Então, esta semana, comecei a procurar as “outras”. E sei bem o
que isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou entrando.
Jamais menti para você e não é agora que vou começar.
Houve uma outra regra que você me impôs no início de nossa história:
no dia em que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para você
me ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa,
injusta (já que você ainda vê B..., R...) e compreensível (obviamente); com
isso, jamais poderia me tornar seu amigo.
Mas hoje você pode avaliar a importância da minha decisão, uma vez
que estou disposto a me curvar diante da sua vontade, pois deixar de ver
você e de falar com você, de apreender o seu olhar sobre as coisas e os seres

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

e a doçura com a qual você me trata são coisas das quais sentirei uma sau-
dade infinita.
Aconteça o que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você da ma-
neira que sempre amei, desde que nos conhecemos, e esse amor se estende-
rá em mim e, tenho certeza, jamais morrerá.
Mas hoje seria a pior das farsas manter uma situação que você sabe tão
bem quanto eu ter se tornado irremediável, mesmo com todo o amor que
sentimos um pelo outro. E é justamente esse amor que me obriga a ser
honesto com você mais uma vez, como última prova do que houve entre
nós e que permanecerá único.
Gostaria de que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.
Cuide de você.
X.

A mensagem acima foi enviada em 24 de abril de 2004 pelo escritor


francês Grégoire Bouillier. O destinatário, como o cabeçalho apenas
parcialmente indica, foi a artista plástica Sophie Calle, um dos nomes
mais famosos e celebrados da arte conceitual francesa. Mas, apesar de
ser claramente uma mensagem particular entre essas duas pessoas famo-
sas, a missiva tornou-se pública por uma via um tanto peculiar: serviu
de ponto de partida para uma das obras mais conhecidas de Sophie,
Prenez soin de vous (Calle, 2007), Cuide de você, que consistiu na reinter-
pretação dessa mensagem por mulheres, que apresentam na obra tra-
duções e juízos para o rompimento e a maneira como este foi feito.
Ao todo, 107 delas, escolhidas por Sophie segundo seus papéis sociais
(a grande maioria, segundo as profissões), apresentam leituras da carta,
analisando-a de acordo com suas competências ocupacionais ou a rees-
crevendo conforme suas competências artísticas. Assim, dezoito atrizes
a interpretam de variadas maneiras, o mesmo sendo feito por nove can-
toras (de variados gêneros); duas dançarinas a convertem em coreogra-

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

fia; uma analista de etiqueta avalia seu grau de cortesia; uma juíza a in-
terpreta como um encerramento de contrato; uma terapeuta de casal
promove um debate entre Sophie e... a carta; uma adolescente lança so-
bre ela um olhar próprio de sua idade; e várias outras mulheres apresen-
tam suas contribuições.3
Pois quero me deter, ainda que rapidamente, sobre um traço comum
em todas aquelas interpretações, que apresentarei aqui de modo conver-
tido em emblema por uma das intérpretes, a atriz francesa Jeanne
Moreau: filmada a uma mesa, cigarro a fumegar em um cinzeiro, um
copo quase vazio de vinho rosé, usando uma blusa azul intenso, rodeada
por manchas de luz, o olhar colado ao papel, ela lê a carta e a comenta.
Ao chegar ao trecho em que o autor fala de seu sofrimento, Jeanne pro-
clama a imagem que dele reteve: “É alguém que tem múltiplas relações
femininas. E... este homem não está bem. Tem uma angústia terrível...
Um enorme egoísmo”.
Egoísmo. Grégoire (ou X, como é apresentado às analistas) é descri-
to como um homem capaz de abrir mão do bem do outro (que o classi-
ficaria como altruísta), tornando-se uma síntese da ação no horizonte
apenas do bem de si. De fato, ele próprio se diz “impedido” de ser “ge-
neroso”, ou seja, de aceitar o sofrimento que o corroeria e se manter fiel
ao juramento de não procurar as outras mulheres, que tornariam Sophie
apenas “uma delas”. E esse “egoísmo” aparece, então, não apenas como
um traço específico do caráter do escritor, mas como antítese formal do
amor: para aquelas mulheres, agindo assim um homem provaria que
nunca amou a mulher com quem tivera um relacionamento.4 Mas não
apenas para mulheres francesas. E não apenas para mulheres em relação
aos homens.
Em minha pesquisa, que aqui reporto, na qual entrevistei trinta ca-
sais, vemos um mesmo movimento de adjetivação de parte a parte.5
Por exemplo, com Marcos.6 Ele chega a sua casa mais tarde em algumas

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

quintas-feiras esporádicas. É o dia do chope com os amigos. Em três


anos de casamento, sua mulher, Cláudia, nunca escondeu a insatisfação
com isso. Mesmo sendo constantemente convidada a se juntar a ele e
mesmo confiando “total e irrestritamente” no marido, ela diz preferir
que fizessem algo apenas a dois, no único dia em que ele sai um pouco
mais cedo. Ela reclama constantemente. Até que, em uma ocasião – ela
se lembra de que era julho, já que, professora, estava de férias e se sentia
particularmente sozinha –, resolveu dizer ao companheiro o quanto a
incomodava essa preferência pelos amigos (e pelo samba e pela cerveja
que o faziam por vezes voltar para casa um pouco “alto”): “Eu queria
que você desse prioridade a nós dois!”. Marcos responde: “Mas eu preciso
de um chope, encontrar o pessoal!”. A resposta dela: “Você está sendo egoís-
ta”. Isso quase o deixa mudo.
Quase. Em vez de se calar e deixar a sala, incitando um período de
“ficar de mal”, ele demonstraria que a rotulação moral não poderia defi-
nir apenas uma negatividade: “Mas o que há de mal em fazer isso que você
tá chamando de [e faz sinal de aspas com as mãos] ‘egoísmo’?”.
O objetivo deste artigo é analisar como os atores sociais podem utili-
zar o “egoísmo” como uma “competência” (Boltanski, 1990), uma “ação
que convém” (Thévenot, 1990) ou, como tenho preferido tratar, uma
“competência de efetivação” (Werneck, 2009a; 2009b) de suas ações,
usando como operador dessa competência o ato de dar uma desculpa.
Ou seja, trata-se de demonstrar como o reconhecimento da localização
da referência de uma ação no “bem de si” pode ser o elemento central
de concretização de uma ação, uma vez que a representação moral dessa
ação seja coordenada com uma operação de circunstancialização.
Trata-se, assim, de ampliar o escopo de uma descrição pragmatista
da vida social, partindo de um modelo constituído por uma “disposição
para o acordo” (Boltanski & Thévenot, 1987), baseado na “capacidade
crítica” (idem, 1999) das pessoas, para um modelo centrado em uma

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

“disposição para o bem”, baseada em uma forma plural de bens. Ou seja,


trata-se de construir um modelo em que a circunstancialidade possa ser
articulada como recurso, e não como “desvio” em relação uma generali-
dade moral, e em que a efetividade das ações sociais possa estar associada
a várias formas de bem e não apenas a uma referência no “bem comum”.
Para tanto, analiso, por meio de entrevistas e observações situadas, o
modo como atores, quando envolvidos em relações de familiaridade, dão
conta de suas ações e da aceitação das ações de seus companheiros quan-
do estas forem baseadas apenas no bem de si, no que será aqui chamado
de “egoísmo”, demonstrando o papel do ato de dar uma desculpa na
manutenção dessas relações, que representam para essas pessoas uma
gramática moral em si e um mundo do qual esperam geralmente o bem
comum ou mesmo que o outro dê preferência ao altruísmo, priorizando
o bem do outro.
Justamente por conta disso, este não é um trabalho sobre casais ou
sobre a vida de casal. É, antes, um trabalho a partir deles. Não se trata de
dar conta das peculiaridades e particularidades desse tipo de encontro
afetivo entre duas pessoas. Trata-se, em vez disso, de considerá-lo um
pequeno mundo, uma lógica abstrata, ou, tomando Simmel (1971
[1908a]) como referência, como um “conteúdo” de uma “forma”, for-
ma que, aqui, tira partido do casal para se manifestar e que encontra
nele seu rebate pragmático: é de relações duradouras e de sua constitui-
ção como moralidades que trata este texto.
Aqui me debruço sobre o modo como os elementos constituintes de
uma relação de casal – cujo pressuposto mais básico é o “bem querer”, o
“amor”, entre os integrantes – podem ser entendidos ao mesmo tempo
como sistema de normatividade (no qual se diferenciam ações “corretas”
de ações “incorretas”) e como sistema de administração do bem (no qual
as ações são efetivadas por diferentes referências do bem produzido por
essas ações). Ou, em um sentido mais geral e tomando por base a abor-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

dagem pragmatista aqui em voga, a questão é como o relacionamento


amoroso pode ser pensado como uma moralidade de si próprio, com
suas exigências morais próprias, e, a partir disso, como operam as com-
petências morais mobilizadas em seu interior. Ou, ainda, como ele pode
ser visto como um mundo no qual estão em jogo os usos de três capaci-
dades cognitivas: uma “capacidade moral” (Boltanski & Thévenot,
1991, p. 42), que dota os atores para distinguir os diferentes valores das
variáveis desses dois sistemas; uma “capacidade crítica” (Boltanski &
Thévenot, 1999); e uma terceira, que chamo de “capacidade metaprag-
mática” (Werneck, 2009b), que aqui caracterizarei segundo justamente
o papel desempenhado pelo ato de dar um desculpa na manutenção
dessas relações.
Por isso, então, faço uso dessa categoria nativa, o “egoísmo”, mobili-
zada, além de Marcos, por outros entrevistados, e de sua reconstrução
como conceito sociológico. Ela é tida como uma representação, uma atri-
buição subjetiva oferecida por um ator em relação a outro. Mas Marcos
não me permite ser levado pelas emoções: ele apresenta sua definição
entre aspas. Ele sabe, explica-me, da carga moral que o termo carrega e,
assim, quer usá-lo de maneira relativizada. Quer deixar para Cláudia,
aquela que atribui, a responsabilidade da atribuição. Seu “egoísmo” não
é – e a discussão que se seguiria serviria para o mostrar – simplesmente o
ato de chamar o outro de egoísta, apontando em sua ação um conteúdo
não apenas não altruísta, mas sobretudo para o prejuízo do outro. Trata-
se, em vez disso, de um chamar a atenção para um bem de si (nas palavras
dele) “cabível”, “absolutamente normal” e, portanto, legítimo, efetivo.
Então, assim como Marcos, usarei o termo entre aspas, para entre parên-
teses depositar a carga atributiva: “egoísmo” (a forma substantivada), para
este trabalho, significa, como ele é interpretado pelos atores nas situa-
ções descritas, a capacidade de agir pelo bem de si sem que essa desigualda-
de produza um mal-estar que torne a interação insustentável.

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

Tratar esse “egoísmo” como uma “competência” significa, adotando-


se um enquadramento pragmatista, tratá-lo como uma faculdade apre-
sentada pelos atores para a desenvoltura em uma determinada lógica de
ação; ou, como querem Boltanski e Thévenot (1991, p. 183), “uma ca-
pacidade de reconhecer a natureza de uma situação e de colocar em ação
o princípio (...) que a ela corresponde”. Trata-se, então, de situar a dis-
cussão em um quadro ao mesmo tempo de reflexividade (uma vez que
as pessoas são consideradas senhoras de suas ações)7 e de manutenção da
paz, por meio das capacidades dos atores de produzir acordos que man-
tenham essa paz, sem chegar à violência8, segundo princípios univer-
sais, “metafísicas”, para os autores, mobilizados conforme o tipo de situa-
ção. Ou, em uma definição mais “actancial” (Latour, 1997, p. 148),
podemos considerar uma competência não apenas como um traço re-
conhecido como principio cognitivo nas pessoas, mas como um traço
demonstrado nas próprias ações localizadas, apontando para sua alocação
em uma determinada gramática actancial moral, com desenvoltura em
regras que verificam critérios de concretização da ação, o critério nela
procurado quando se verifica se ela pode ou não ser admitida. Trata-se,
então, de colocar de forma prática a ideia de “ação sujeita à indagação
valorativa” (Scott & Lyman, 2008[1968], p. 139), considerando, en-
tão, um social em que as coisas não são apenas “taken for granted”
(Garfinkel, 1967); em que, assim, antes de tudo, estão em questão; em
que as pessoas se veem impelidas a prestar contas por outras, que lhes
pedem satisfações.
Entre essas coisas “questionáveis”, está a referência do bem. Assim,
se Cláudia encerrou o assunto e permitiu que Marcos conduzisse seu
“egoísmo”, seguindo para o chope com os amigos, mantendo a relação
sem uma ruptura, isso se dá porque, em uma “disputa” (Boltanski &
Thévenot, 1991, pp. 24-5), esse ato foi considerado passível de se con-
cretizar. O que chama a atenção é que isso se deu, mas não porque esse

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

“egoísmo” foi determinado por um traço identitário; nem porque foi


imposto pela força (o que o situaria em um “regime de violência”, se-
gundo Boltanski, 1990, p. 111); nem pelo ajuste a um regramento táci-
to, imposto por tradição (o que o caracterizaria em um regime de
“justesse”, ainda segundo Boltanski); e também sem poder ser conside-
rado “justificado” (cfe. Boltanski e Thévenot, 1991, p. 118), uma vez
que não foi afirmado um princípio de equivalência, um “princípio su-
perior comum”. Pelo contrário, o que é afirmado é justamente um prin-
cípio de desigualdade: Marcos obtém um bem (estar com os amigos)
que não é obtido objetivamente por Cláudia (pelo menos nos termos
de sua reivindicação). E o motivo para manter em ação seu próprio bem
é... seu próprio bem.
Não. O que permite que Marcos pratique esse “egoísmo” sem mais
conflitos é o caráter eventual, circunstancial, de sua prática: ela não é
uma nova regra moral universal (nem é a reivindicação da necessidade
de uma), é apenas um “ponto fora da curva”, um “ato espontâneo” que
só pode ser entendido como circunstância imprevista.
Neste estudo, o ato de dar uma desculpa aparece justamente como
ponto de resolução dessa aparente tautologia. Em minha pesquisa com
casais, investiguei a maneira como eles articulam esse tipo de prestação
de conta de suas ações como forma de coordenar aquelas que possam
ser acusadas de egoísmo (sem aspas, o adjetivo de uma pura negatividade
inaceitável). Quero demonstrar, com isso, que ações centradas no bem
de si são mais habituais e mais efetivas do que se pode pensar a princí-
pio, sobretudo diante das duas principais formas como são habitualmen-
te vistas: por um lado, como desvio moral em uma relação baseada no
bem do outro (como demonstram as interpretações das mulheres ante o
rompimento supostamente egoísta de Grégoire com Sophie e as deman-
das dos entrevistados); por outro, como resíduo lógico de uma aborda-
gem baseada na escolha racional (na qual todas as ações são pensadas

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

estritamente como movidas pelo bem de si, reduzindo então ao absurdo


o bem do outro).
As relações amorosas são um espaço pródigo para pensar esse proble-
ma, uma vez que são o lócus em que o amor é o princípio maior de
manutenção. Em um caso de amor romântico, não temos um laço san-
guíneo a unir os integrantes; tampouco temos um elo institucional que
preceda ao princípio de amor. Segundo os atores ouvidos, é o amor que
os une, por mais diferentes que sejam eles e seus interesses individuais.
A pesquisa que realizei com casais teve lugar no âmbito de um estu-
do mais amplo sobre o papel do ato de dar uma desculpa no processo de
manutenção das relações sociais (Werneck, 2008a; 2008b; 2009a;
2009b; 2011). A motivação principal para usá-los foi justamente o fato
de o amor poder ser configurado como um espaço de demanda de fide-
lidade a um “bem comum”: a própria relação. Neste sentido, o amor é
lido, aqui, analiticamente, não como uma emoção, mas como “compe-
tência” (Boltanski, 1990), no sentido que apontei antes, ou seja, como
um elemento a ser buscado nas ações em questão, a fim de verificar sua
possibilidade de serem legítimas ou não. Em uma relação afetiva, uma
gramática moral se estabelece, na qual está constantemente em opera-
ção um questionar a condição de “amorosidade” da própria ação e da
ação do outro. E, por certo, uma ação não amorosa em uma relação cuja
base é o amor será considerada incorreta, errada, criticável, produtora
de mal-estar relacional.
Quero demonstrar aqui, então, que uma competência “egoísta” é
constituída por uma coordenação entre o caráter autorreferente, do bem
de si, da ação praticada, e as circunstâncias – justamente o elemento cen-
tral e definidor da desculpa; e mostrar que ela ocupa um papel impor-
tantíssimo na manutenção das relações. Ao fazê-lo, quero demonstrar
como o ato de dar uma desculpa é a forma operacional dessa competên-
cia, caracterizando esse próprio “egoísmo” como circunstancial, tornan-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

do-o como efetivo em uma situação em que se constroi uma utopia de


bem comum.
Para tanto, analiso, em situações de disputa entre casais, o ato de dar
uma desculpa (a apresentação de um account circunstancial para uma
ação) como um dispositivo mobilizado de modo recorrente por eles na
resolução das situações de mal-estar relacional. Na vida de casal, o duo
amor-“egoísmo” é constantemente mobilizado como formador de uma
economia da manutenção daquilo que sustenta a relação, constituindo
uma tensão lógica fundante: ao mesmo tempo que uma ação “egoísta” é
classificada pelos atores como “desamor” e, portanto, como a negação
do próprio princípio da relação, o “egoísmo”, ou seja, o recurso ao bem
de si sem levar em consideração o bem do outro, é mobilizado e aceito
pelos atores como “válvula de escape” ante a opressão produzida pela
obrigação de mobilizar constantemente a generalidade constituinte da
relação, um quadro de singularização do outro.

“Egoísmo” e individualismo

Vários autores, como Heilborn (1980), Vaughan (1986), Salem (1987),


Illouz (2011), entre muitos outros, têm dado ênfase a uma “transforma-
ção da intimidade” (conforme Giddens, 1993, mais um autor desta sé-
rie), marcante na atual fase da vida moderna: aquela na qual tem lugar
uma afirmação da individualidade, mais especificamente do “indivi-
dualismo”, no âmbito das relações de casal. Uma ótima tradução dessa
transformação é dada pela ideia de “casal igualitário” de Salem (1987;
1989; 2007), uma “modalidade ideal de relação conjugal”, modulada
por uma série de princípios racionais e que passa a ser centrada no indi-
vidualismo moderno, aquele no qual a relação diádica está em grande
parte a serviço de uma relação contratualmente igualitária.

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

Outros autores mais “pós-modernos”, como Bauman (2004), levam


ao extremo esse sistema do livre exercício das individualidades, pressu-
pondo que as relações afetivas contemporâneas estão a serviço do livre
exercício dos interesses individuais, das individualidades, do indivíduo.
Bem, o individualismo é antes de tudo um conceito político: foi
Tocqueville quem o cunhou, em A democracia na América (1987), para
falar de uma nova condição que ele enxergava nos Estados Unidos da
metade do século XIX. Tratava-se da liberação da livre iniciativa, sobre-
tudo econômica. E esse conceito tem sido objeto de inúmeras descri-
ções nas Ciências Sociais, desde as mais definidoras do espírito moder-
no – em Comte ou Durkheim, por exemplo, ao longo de todas as suas
obras – às mais particularistas, como em Dummont (1985). Em cada
um desses modelos, o egoísmo surge sempre como variável e, em geral,
como elemento contrapositivo ao altruísmo, na condição de compo-
nentes da forma moderna de inserção na vida social.9
Simmel (1971[1957]) oferece uma descrição mais útil para a manei-
ra como estou tratando o tema: ele distingue entre uma faculdade “quan-
titativa” do indivíduo, caracterizada pela singularidade (Einzelheit), a
própria afirmação do indivíduo autônomo na igualdade, e uma facul-
dade “qualitativa”, caracterizada pela unicidade (Einzigkeit). Ele apre-
senta melhor que qualquer outro a descrição de uma coordenação vivida
com uma condição dual do homem moderno: o homem é autodeter-
minado pela igualdade, mas se diferencia nas interações. No entanto,
uma descrição do egoísmo como contraponto ao individualismo per-
mite pensar em sua inserção em um sistema de regramento para o plano
dos contratos: a ação individualista é a legítima defesa do bem de si,
acomodado no horizonte de um sistema equânime de regras competiti-
vas. Conceito político, sobretudo porque a autodeterminação moderna
– ali descrita não apenas como fato empírico, mas como (e essa dimen-
são é aquela para a qual é mais relevante ser apontado aqui) utopia e

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

pressuposto – confere ao homem um direito: a orientação segundo seu


interesse individual.
Uma torção lógica primordial nesta análise: enquanto todos aqueles
trabalhos citados anteriormente estão apontando para as peculiaridades
do ingresso desse direito no horizonte das reivindicações e das rotinas
dos casais contemporâneos, é para um outro lado da moeda que estou
apontando aqui. Para todos os efeitos, no campo, isso surge como uma
condição sine qua non, uma linha de base. O fenômeno para o qual que-
ro chamar a atenção é aquele que se dá não quando o exercício da indi-
vidualidade é o valor moral em jogo em uma disputa, mas aquele quan-
do, tomado esse valor como rotina, uma outra discussão moral se coloca:
aquela que torna fator da vida cotidiana um imperativo de altruísmo ou,
como querem alguns atores ouvidos, “da entrega”. A “entrega” é uma
demanda de dedicação à relação e de altruísmo em relação ao outro.
Articulam-se aí duas formas de bem: o “comum” e o “do outro”.
Parece ser uma versão avançada do que Carole Gayet-Viaud chamou
de “disputa de cortesia” aquela situação em que “uma forma de violência
específica (…) pode surgir onde as interações constantemente fazem re-
ferência às exigências da cortesia e das civilidades” (Gayet-Viaud, 2008,
p. 63). Mas ela fala de estranhos. Entre casais, todavia, a exigência de
gentileza ou, mais amplamente, de “se pensar no outro” é muito mais
intensa, como nos chama a atenção ainda Simmel (1971[1908b]), p. 91):

Pessoas que têm muitas características em comum inúmeras vezes agem


umas com as outras pior ou erram “mais errado” do que aquelas apenas
estranhas. Por vezes, fazem isso porque a larga área que lhes é comum tor-
nou-se uma questão e, em consequência, o que é temporariamente dife-
rente, mais do que o que há em comum, determina suas posições mútuas.
Entretanto, fazem isso sobretudo porque há muito pouco de diferente en-
tre si; em decorrência, mesmo o mais diminuto antagonismo tem sua rela-

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

tiva significância, muito diferentemente do que ocorre entre estranhos, que


contam, antes de tudo, com toda sorte de diferenças mútuas.

E, mais adiante:

Quanto mais temos em comum com outro [...], mais facilmente nossa to-
talidade será envolvida em cada uma das relações com ele. Daí a violência
absolutamente desproporcional para a qual pode ser deslocada uma pessoa
que, em geral, é controlada em suas relações com quem lhe cerca. A felici-
dade completa e a profundidade da relação com outra pessoa com quem,
por assim dizer, nos sentimos idênticos repousam no fato de que nem mes-
mo um contato, nem mesmo uma palavra, nem mesmo uma atividade ou
sofrimento comuns permanecem isolados, mas sempre revestem toda a
alma, que se dá por completo e é recebida por completo nesse processo.
Assim, se uma discussão surge entre pessoas com esse grau de intimidade,
em geral isto é passionalmente muito expansivo e sugere o esquema do
fatal “esse não é você”. Pessoas ligadas umas às outras dessa maneira estão
muito acostumadas a investir cada aspecto de seus relacionamentos na to-
talidade de seu ser e sentir. (Ibidem, p. 92)

Desse modo, a dimensão do egoísmo aqui em jogo é sua forma adje-


tiva, atributiva, aquela em que ele aparece como negativo de um dever:
o egoísmo seria, no “momento crítico” (Boltanski e Thévenot, 1991),
a antítese da exigência de altruísmo esperada como rotina da relação.
O ator que se sinta agredido em seu direito ao altruísmo do outro (e
não em seu direito ao individualismo) reconhecerá nesse caso um ato de
desamor e, a partir daí, demonstrará (intencionalmente ou não) o mal-
estar. A desculpa surgirá justamente como o elemento de efetividade
deste caso.

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Adjetivo. Mas de quem? Pois o “egoísmo” apresentado pelos atores


é mais um traço que se revela nas ações do que uma condição do pró-
prio ator. É de “egoísmo” que estamos aqui falando, não de “pessoas
egoístas” que passam a ter dependuradas em si uma placa, um “rótulo”
(Becker, 2008). Trata-se de um rótulo temporário, no gerúndio, sem
capacidade identitária. Nesses casos, a pessoa “é” menos “egoísta” do
que “está sendo” egoísta, ou melhor, do que pratica ações de egoísmo.
E, como em qualquer rotulação, são os atores que em vários momentos
atribuem essa dimensão egoica a ações de outros ou deles mesmos. Mas
dizer isso é, antes de tudo, tratar o “egoísmo” como uma representação
dos atores sobre os outros. Por isso também usei aspas para me referir ao
“egoísmo”: a fim de chamar a atenção para sua dimensão relativa e loca-
lizada. É de ações e de suas competências que estamos falando, afinal.

A desculpa, dispositivo moral

Desculpa: tenho me debruçado sobre esse tema há algum tempo.10


E, sobre esse tipo de ação, esse ato de algo dizer para “explicar” o que se
fez “de errado” e que tenha incomodado outra pessoa, coloquei que
se trata de um dispositivo moral privilegiado para entender a manuten-
ção das relações sociais duradouras. Esse objeto tem despertado interesse
esparso nas Ciências Sociais, sobretudo no campo dos estudos intera-
cionistas. A observação seminal se deu no plano da filosofia da lingua-
gem, no trabalho de John Austin (1979[1956]), que enfatiza os elemen-
tos linguísticos formais, mas sugere, ao mesmo tempo, uma definição
situacional (p. 176):

Em geral, a situação é aquela em que alguém é acusado de ter feito algo, ou


(para deixar mais claro) na qual é dito que alguém fez algo de mal, errado,

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

inepto, indesejado ou de alguma entre inúmeras outras formas desfavorá-


vel. Logo depois, o próprio, ou alguém que esteja a seu lado, tentará de-
fender sua conduta ou tirá-lo da situação.11

A partir desse trabalho, autores como Sykes e Matza (1957),


Garfinkel (1967), Scott e Lyman (2008[1968]) e Goffman (1971) de-
ram início a uma agenda de pesquisa em que a desculpa aparece como
categoria de um quadro no qual os discursos são utilizados para “dar
conta” das ações. Scott e Lyman (2008[1968]), baseados em Austin, si-
tuam formalmente o ato de dar uma desculpa como tipo de account, ou
seja, como o ato de prestar conta, de dar satisfação por algo – ou, mais
formalmente: “uma afirmação feita por um ator social para explicar um
comportamento imprevisto ou impróprio – seja este comportamento
seu ou de outra pessoa, quer o motivo imediato para a afirmação parta
do próprio ator ou de alguém mais” (ibidem, p. 112).
Eles estão interessados na qualificação desses discursos como “habili-
dade para manter de pé as vigas da sociação rompida, para estabelecer
pontes entre o prometido e o executado, para consertar o que está que-
brado e trazer de volta quem está longe” (ibidem, p. 111). A desculpa,
nesse modelo, é um dos dois tipos de account, ao lado das “justifica-
ções”. A primeira é um account “em que alguém admite que o ato em
questão seja ruim, errado ou inapropriado, mas nega ter plena respon-
sabilidade sobre ele”; a outra, aquele “em que alguém aceita a responsa-
bilidade pelo ato em questão, mas renega a qualificação pejorativa asso-
ciada a tal ato” (ibidem). A justificação tenta demonstrar que algo está
na verdade correto, enquanto a desculpa tenta demonstrar que não foi
possível agir de outra forma que não fosse a “incorreta”.
Mais recentemente, dois principais tipos de abordagens têm analisado
esse objeto. Por um lado, autores como Benoit (1995), McEvoy (1995),
McDowell (2000) e Boltanski (2004) têm olhado para a desculpa como

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uma forma de autodefesa em quadros de intensa acusação moral. Por


outro lado, trabalhos mais antropológicos, como os de como Herzfeld
(1982; 2006) e Idomeneos (1996), exploram seu papel nas formas de
legitimação de elementos culturais. No primeiro caso, a desculpa apare-
ce diante de uma tensão entre o bem de si e o bem comum; no segun-
do, surge como uma forma universalizada de diferenciação cultural.
Esses modelos, quer nas abordagens clássicas, quer nas mais recentes,
pressupõem o próprio reconhecimento da relevância da desculpa: sua
construção como categoria sociológica/antropológica advinda do fato
de que ela é um elemento relevante da vida social, integrante do grupo
de ações capazes de garantir que o próprio social se mantenha. Entre-
tanto, no fundo de todos esses trabalhos repousa uma dimensão mais
abstrata e que não tem recebido a atenção devida: relegada à sua dimen-
são de ação discursiva, a desculpa tem sido subestimada em sua mecâni-
ca actancial.
De certa maneira, tem sido legado à desculpa um lugar de resíduo
lógico da justificação: quando não pudéssemos constituir uma explica-
ção universalista, seríamos obrigados a recorrer a essa “muleta lógica”.
Mas a desculpa não é um operador lógico, ela não se insere de maneira
tal que seu conjunto argumentativo seja avaliado como legítimo ou não
pelos atores de acordo com um regime de competência moral dotado
de algum princípio de legitimidade, tampouco recorre, como na justifi-
cação, a uma “prova” (Boltanski & Thévenot, 1991). Em vez disso, a
desculpa opera uma mudança na forma segundo a qual uma ação tem
continuidade: em vez de oferecer a quem a avalie um motivo justo para
que tal ação ocorra, ela oferece uma circunstância que, ao se apresentar
como tal, torna a ação inevitável e informa que a avaliação não pode ser
feita, naquele caso específico, por meio de um critério de justiça.
Pois há, contida na tipologia que distingue desculpas e justificações,
a tensão central que me chamou a atenção no ato de dar uma desculpa,

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

a tensão entre geral e circunstancial. Uma justificação surge como uma


recusa de descompasso entre princípio moral (universal) e ação (locali-
zada); uma desculpa dada surge justamente como uma constatação de
descompasso entre esse princípio moral e essa ação. Mas não se trata de
um descompasso qualquer, e sim de um descompasso contaminado,
como demonstrarei ao tratar da tipologia de diferentes reações a ações
que causam mal-estar.
Trabalho aqui para demonstrar que a ação operacionalizada pela des-
culpa é justamente a de descendência de uma esfera comprometida com
a abstração da regra universal para outra disposta a aceitar a dimensão
pragmática de uma ação circunstancialista. Desta forma, posso pensar na
situação de dar uma desculpa como composta por alguns passos: a) um
ator pratica uma ação que, por algum motivo, causa mal-estar em outro
ator; b) seja por meio da admoestação por alguém, seja por uma ação de
consciência, tem início um processo de demonstração/percepção de mal-
estar relacional; c) o ator praticante da ação se vê impelido a apaziguar o
mal-estar gerado na situação; d) esse mesmo ator oferece para isso um
argumento, que não procura recusar a incorreção da ação, mas, ao con-
trário, admite-a (ainda que sub-repticiamente, em alguns casos); e) esse
argumento se mostra deslocado em relação aos princípios morais que
deram base às acusações e ligado a circunstâncias peculiares da situação
e/ou do praticante; f ) esse deslocamento se referencia no bem dele, o
“culpado”, e não no bem sobre o qual o mal-estar foi construído.
Um primeiro elemento digno de nota nessa sistematização – quando
observada ao lado da ideia de account de Scott e Lyman, e da definição
de Austin – é o modo como se relaciona com a noção de acusação.
Uma vasta literatura sobre sociologia dos conflitos e dos chamados com-
portamentos desviantes tem articulado o movimento de acusação como
uma dimensão primordial nos conflitos e no controle social. Ao mesmo
tempo, em um modelo como o de Boltanski e Thévenot (1999), um

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

mesmo movimento assume uma dimensão um grau mais abstrata: se a


acusação pode ser entendida como um processo formal, constituído por
uma série de procedimentos mais ou menos ritualizados – caso da acu-
sação policial ou judicial, por exemplo –, a “crítica” (ibidem, p. 359)
surge como uma forma abstraída:

A pessoa que se dá conta de que algo não está funcionando raramente per-
manece em silêncio. Ela não guarda seus sentimentos para si. O momento
em que ela se dá conta disso é, na maioria das vezes, aquele em que perce-
be não poder mais suportar esse estado de coisas. A pessoa deve expressar
descontentamento em relação às outras com quem, até então, estivera de-
sempenhando uma ação conjunta. A demonstração desse descontentamen-
to pode terminar em um “escândalo”. O escândalo propriamente dito as-
sume diferentes formas. Pode facilmente se converter em violência.
Contudo, não investigaremos essa possibilidade. Mais frequentemente, o
escândalo torna-se uma discussão na qual são trocadas críticas, acusações e
queixas. Ele assim se desdobra em uma controvérsia. A palavra “escânda-
lo” sugere querelas domésticas, e a palavra “controvérsia”, litígio judicial.
O primeiro é visto como informal, enquanto a segunda é conduzida pelo
sistema judicial. No entanto, há uma profusão de casos intermediários,
como, por exemplo, as discussões em lojas ou repartições, entre clientes e
funcionários, ou os desentendimentos na rua entre motoristas.

Assim, mais do que como categoria lateral em um mesmo esquema,


a crítica aparece acima da acusação em grau de abstração (a acusação
surgiria, então, como um caso particular, formalizado, da crítica). Mas,
seja em um nível, seja no outro, em ambos os casos as definições articu-
lam a dimensão apenas aparentemente mais habitual de seus fenôme-
nos, a dos discursos, a das acusações e/ou críticas verbalizadas. Entre-
tanto, minha pesquisa com casais demonstrou um traço importante e

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que reivindica um grau ainda mais abstrato na definição. A insatisfação


de que falam Boltanski e Thévenot (ibidem) pode ser demonstrada por
um urro, por um suspiro, por um silêncio, por um movimento corpo-
ral. Essa insatisfação, aliás, pode nem mesmo ser demonstrada, mas ser
apenas percebida, ou seja, ela pode ser notada pelo lado ofensor sem
que o lado ofendido tenha feito um movimento consciente e/ou discre-
to para tal. Justamente por conta disso, resolvi operar com uma forma
ainda mais geral de fenômeno, que chamarei aqui de demonstração/per-
cepção de mal-estar interacional. Diferenciei mal-estar simplesmente de
mal-estar interacional para indicar, com este último, que se trata de um
mal-estar de um dos participantes de uma interação e que pode fazer
diferença para o estatuto desta.
A lógica do ato de dar uma desculpa pode ser apresentada, então,
pela seguinte sequência:
1) Uma ação social de um ator A causa mal-estar interacional em
outro ator, B;
2) Esse mal-estar é demonstrado (de forma não necessariamente cons-
ciente) por A e percebido por B; A dá uma desculpa e/ou pede desculpas;
3) B o desculpa (ou não) e o mal-estar interacional é “congelado”
(ou não).
Pois bem, tomado esse modelo que apresentei anteriormente, o au-
tor da ação, chamado a oferecer um account, pode apresentar uma das
seguintes reações:
1) Mostrar-se indiferente (não dar nenhuma resposta). Chamarei esta
opção simplesmente de indiferença.
2) Negar que tenha praticado a ação (uma resposta do tipo: “Eu não
comi da árvore, Javé Deus”; ou “Eu não bati em nenhuma mulher, ima-
gine!”; ou: “Não, eu nunca dormi com sua amiga, amor, que ideia!”).
Chamarei esta opção de negação.

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3) Afirmar desconhecimento da regra moral (uma resposta do tipo:


“O Senhor havia falado da árvore do conhecimento do bem e do mal?
Eu não sabia!”; ou: “Ah, então dar um tapinha de nada é considerado
errado?”; ou, ainda: “Mas, amor, eu não sabia que não podia fazer isso.”).
Chamarei esta opção de declaração de inocência.
4) Admitir que praticou a ação e apresentar um account. Isto inserirá
o actante em uma economia de disputa de justiça, proposta pela per-
cepção do mal-estar, e o fará explicar sua ação segundo uma de quatro
possíveis formas:
a) Renegar o princípio moral/legal que produziu o mal-estar (uma
resposta do tipo: “Eu não ligo se ele tinha direito a um julgamento jus-
to!”). Chamarei esta opção de desengajamento.
b) Admitir que praticou a ação, mas recusar que ela esteja em de-
sacordo com o princípio moral/legal que gerou o mal-estar, apontando
uma justificativa para a prática da ação atrelada a uma ideia de bem co-
mum (uma resposta do tipo: “Fiz isso, sim, mas foi pelo nosso bem”, ou
“Não vou com você porque não é justo que eu pague o pato por algo
que você fez errado.”). Chamarei esta opção pelo nome usado por
Boltanski e Thévenot (1987; 1991), “justificação”.
c) Admitir que praticou a ação e reconhecer o desacordo com o
princípio moral/legal em questão, mas mesmo assim solicitar não re-
ceber mau tratamento. Essa paralisação da justiça se baseia na criação
de um puro efeito anulador (uma resposta recorrente entre casais:
“Cheguei atrasado e não poderia chegar, mas não vá embora, eu te
amo”). É o perdão.
d) Admitir que praticou a ação e reconhecer o desacordo com o prin-
cípio moral/legal em questão, mas solicitar uma permissão para o
descumprimento da regra especificamente no caso em avaliação, em de-
terminadas circunstâncias. Essa permissão será baseada em uma parti-

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cularização das condições de cumprimento da universalidade da regra


mesma (uma resposta do tipo: “Dormi, sim, com sua amiga, mas eu
estava deprimido e bebi muito.”). É o ato de dar uma desculpa.
Pois bem, quando me refiro à efetivação, estou, como já coloquei,
localizando a análise em um modelo em que a pergunta essencial sobre
a vida social não são as causas das ações, nem a causa da existência da
ordem, mas sim, em vez disso, a modelização de como as coisas aconte-
cem em sentido último (e não em sentido primeiro). Assim, ao retornar,
segundo essa perspectiva, a um tratamento pragmatista centrado na com-
petência dos atores, a questão sociológica primordial passa a ser: de que
fenômeno se está falando quando se responde a uma ação que está
em questão?
As Ciências Sociais e outros modelos de pensamento têm usado vários
termos para dar conta dessa questão: “legitimação” em Weber (2004
[1910]); “justificação”, com um sentido em Goffman (1971) e outro
em Boltanski e Thévenot (1987; 1991); “validação” para Habermas
(1981), entre vários outros modelos. Tenho proposto usar o termo
efetivação. Essa opção tem a ver com a ideia de pensar uma forma mais
abstrata, que dê conta desses vários modelos, permitindo tratar cada um
deles como uma diferente manifestação do fenômeno. Com esse termo,
desenho a forma mais pragmática possível para a categoria: efetivação
aponta para a produção de efeitos, para a criação de consequências.
E, conforme um dos pressupostos do pragmatismo, é nas consequên-
cias que se podem ler as ações sociais: como diz a máxima de William
I. Thomas, “se os homens definem as situações como reais, elas são reais
em suas consequências” (Thomas e Thomas, 1938[1928], p. 572).
Assim, o processo de concretização de uma ação é, nos dois sentidos,
fenomênica e analiticamente, um processo de constatação de suas conse-
quências, de seus efeitos. Mas isso não significa apenas uma neutraliza-
ção da categoria. Representa também o reconhecimento de sua pragmá-

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tica: essas consequências se colocam segundo uma pluralidade de gramá-


ticas, um conjunto finito de formas de produzir consequências. Isso cor-
responde a fazer duas afirmações sobre a vida social em sentido amplo:
1) Ela é atravessada constitutivamente por um imperativo moral.
2) A moral pode/deve, antes de ser pensada como um plano de
normatividade (a definir uma gestão do correto e do incorreto), ser con-
siderada como um plano de gestão do bem: se a justificação, conforme
descrita pela sociologia pragmatista da crítica, é operada segundo o “bem
comum”, situações mais complexas moralmente exigem pensar em di-
ferentes regimes para dar conta de outras formas de bem: além do “bem
comum”, pesar o “bem de si”, o “bem do outro”, o “bem de todos” e,
claro, uma condição de “tudo bem” (a rotina).
Digo isso porque este foi o problema que se colocou em todas as
minhas incursões sobre o tema, sobretudo esta: têm-se diante do pes-
quisador uma ação voltada para o bem de si e que carece de prestação de
conta. Para tal ser efetiva, um processo específico se constrói: dar uma
desculpa, um argumento falsamente lógico, mas cuja lógica textual pou-
co importa, sendo mais importante pela operação de tradução que faz
do que pela operação de reflexividade. Como já disse, a desculpa não
é um argumento racional – daí ela não raro recorrer a cachorros que
comem deveres de casa (Werneck, 2009a). É, antes, um ativador, cujo
formato ilógico serve justamente para ativar um dispositivo que leva a
situação do plano universalista da regra moral para o plano das circuns-
tâncias pragmáticas contidas na situação localizada.
Pois minhas observações da desculpa me levaram a mapear dois mo-
delos principais segundo os quais ela opera, tipos que chamei, com base
em várias nomeações nativas, de:
1) “Não sou/era eu” – Dá-se um deslocamento do plano universal
para o circunstancial com o ator: ele é alguém que tipicamente obede-
ceria à regra moral em questão (mantendo-se no mesmo plano universal

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em que se baseie qualquer questionamento sobre a ação em tensão com a


regra), mas que, naquela circunstância, viu-se transformado, deslocado
de sua condição normal. É o tipo de desculpa mobilizada quando se diz:
“A serpente me tentou com a maçã e eu a comi”; “Eu tinha bebido um
pouco demais”12; ou “Não consigo mais fazer isso como antigamente”.
2) “É assim mesmo” – Dá-se um deslocamento do plano universal
para o circunstancial com a situação: ela é um momento em que tipica-
mente qualquer um obedeceria à regra moral em questão, mas que, na-
quela circunstância, se construiu de uma maneira peculiar, revelando
uma “normalidade paralela”, uma situação incontrolável. É o tipo de
desculpa mobilizada quando se diz: “Você sabe que eu não consigo acor-
dar a essa hora!”; “No Brasil, as coisas sempre acontecem desse jeito”;
ou “Você sabe que sou assim!”.
Ambos os casos são modelares. Na verdade, uma das características
observadas em minhas pesquisas com casais, políticos, manuais de des-
culpa e idosos (Werneck, 2009a; 2009b; 2009c; 2011) é que uma des-
culpa, uma vez que não pertence a um sistema de avaliação lógica, não é
operada necessariamente por apenas um “argumento” para cada situa-
ção. Na verdade, o comportamento típico, ao se dar uma desculpa, é
oferecer uma sequência delas, nem sempre todas encadeadas logica-
mente. A situação permite, então, coordenar esses dois tipos, efetivan-
do seus diferentes planos.
Essa coordenação, entretanto, nem sempre é nítida, já que o recurso
à circunstância se dá envolto em várias parcelas da situação. Mas a dife-
rença tipológica tem se mostrado valorosa em termos explicativos, por-
que permite a noção da diferença entre, de um lado, um investimento
forte em si (e em uma diferença em relação a algo que tenderia a se
manter), como referência do bem de si, e, de outro, um investimento
forte no mundo (e em uma manutenção de algo que tenderia a mudar),
como referência do mesmo bem de si: se, por um lado, a pessoa pode

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acessar a margem de manobra ao deixar de ser momentaneamente quem


é, por outro, ela pode chegar ao mesmo ponto ao ver ser momentanea-
mente a mesma a situação que, de hábito, não se manifesta (e que se
manifesta de modo sub-reptício). E é nesse sentido que esta pesquisa
mostrou-se pródiga: as micropolêmicas morais que observei nas dispu-
tas de casal apontam para uma forma peculiar de coordenação entre es-
sas duas formas, que, em diferentes proporções, permitem tratar de
maneira efetiva as situações de mal-estar relacional.

A hora marcada

Conheci Laura na porta de um teatro. No dia, esperava na escadaria,


para assistir a um concerto. Àquela hora, esperava não mais pelo início
da apresentação, aliás, mas sobretudo por Cláudia, minha amiga, que,
“presa no trabalho”, ligava-me de quinze em quinze minutos, oferecen-
do-me boletins atualizados sobre sua demora. Fardado de terno, con-
forme a certa pompa que o ambiente exigia, eu amargava já ter passado
a hora marcada para a apresentação preliminar. De pé, eu olhava para a
movimentação das pessoas retardatárias enquanto ouvia os brados do
vendedor de balas. Até que, de súbito, ficamos praticamente eu e Laura
nas escadas. Eu, sentado, sem cerimônia; ela, de pé, celular ao ouvido.
E, de repente, não havia outro som no mundo: “Como assim, está saindo
agora, Marcelo? Você é que queria vir ao concerto. Você é muito relax... Não
acredito no que você está falando... Você não podia beber com seu pai... [si-
lêncio e, depois, um tom abaixo:] É, tá bem, eu entendo, não podia...”.
E se virou para mim, como se me devesse uma satisfação: “Atrasado...
Tem que entender, né?”.

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Começamos a conversar. Namorados havia apenas três meses, eles


não teriam um desenrolar totalmente feliz – como mostrarei. Ela com
23 anos e ele com 25 anos, os dois tinham um relacionamento que
ambos caracterizariam como “normal”: viam-se regularmente, falavam-
se todos os dias, saíam juntos, faziam coisas juntos, já trocavam juras de
amor eterno. Pois, com tudo de peculiar que apresentavam Laura e
Marcelo, quero chamar a atenção para alguns traços de sua relação
que se mostrariam recorrentes em todos os casais com que me deparei
na pesquisa.
O primeiro traço é que eles construíram uma narrativa em torno de
uma questão moral fundamental. Parece haver, no núcleo de qualquer
relacionamento, uma problemática, algo apesar do que a relação se man-
tém. Essa diferença será maior ou menor conforme o caso e poderá in-
terferir mais ou menos no relacionamento. De fato, os entrevistados re-
latam histórias de pendularidade, de retorno e afastamento dessa questão
fundamental, mas eles sempre retornam a ela.
No caso de Laura e Marcelo, a questão era o ciúme. Começou com o
dele, mas depois mudou, e as posições se inverteram, de modo que “hoje
parece que eu sou a louca psicótica”, diz ela. Teve início já na primeira
noite, um 30 de dezembro, quando eles “ficaram”13 pela primeira vez,
em uma boate, durante uma festa. Era a primeira vez dela naquele lugar,
do qual ele era frequentador. Eles se conheceram na pista e ela o achou
bonito (“Nossa, que menino alto”), e logo se estabeleceu um “clima” (uma
situação de atração mútua) e começaram a conversar. Mas, a certa altu-
ra, Marcelo “veio com um papinho”.14 Disse: “Vou ser muito sincero, estou
muito a fim de você, mas... eu tenho namorada”. Ele passou a sugerir que
os dois saíssem da boate e fossem para “outro lugar”, escondidos. Diante
da recusa da moça, ele disse: “Na verdade, não é bem namorada, a gente
já terminou, mas os amigos dela estão todos aqui”. Ela se recusou mais

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uma vez: “Eu não vou me esconder”. Ele então cedeu e a beijou no meio
da pista, diante de todo mundo.
A jovem, no momento da entrevista, justifica a ação de seu namora-
do como algo “nobre”. – “Ele só não queria machucar uma pessoa que de
alguma maneira ainda gostava dele”, declarou. Mas naquela hora, consi-
derou algo inadmissível. Eles tinham acabado de se conhecer e ele não
podia fazer exigências. E Laura deixou isso claro. Tanto que ele teve que,
em um primeiro momento, falar do relacionamento, o que justificaria a
saída do lugar. Entretanto, a situação marcaria aquele início com uma
tensão com “outras pessoas”.
Marcelo e Laura ficaram juntos por onze meses.15 Ao longo desse
tempo, a questão do ciúme se traduziu basicamente em uma economia
da diversão: para ela, era importante sair, frequentar boates, festas, o que
em geral é chamado de “noite”; para ele, esse movimento não fazia mui-
to sentido. Embora os dois tenham se identificado inicialmente pelos
mesmos gostos musicais – estávamos, afinal, indo os quatro assistir a
uma mesma apresentação, e ela descreveu a ambos como “fãs fundamen-
talistas de Beatles, diferentes dos que gostam de Yesterday” –, ir a uma boa-
te para ouvir rock o desagradava “um pouco”. Dizia: “O lugar é baru-
lhento, chato”. Mas a principal questão era que, para Marcelo, a ida a
esses ambientes representava um ritual com outro sentido: “Sair, para
um cara, serve para conhecer meninas. O único sentido é achar alguém.
Quando estou namorando, não vejo sentido em ir”. Era esse o argumento
que ele usava para tentar convencê-la de fazerem outra coisa ou simples-
mente ficar em casa. Chama a atenção, entretanto, a forma de articula-
ção, uma tentativa de dizer “é assim mesmo”: sair tem determinada
serventia “para um cara”. Ele usa uma certa articulação de gênero como
desculpa, porém, mais que isso, usa a criação de uma normalidade alter-
nativa, “para todo cara”.

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

A mensagem, entretanto, era a de um certo ciúme. Ele dizia que não


queria ir às boates. A resposta dela, contudo, era o outro lado da moeda
da reivindicação dele: “Sinto muito. Seria muito melhor ir com você, mas
se você não quer ir, eu posso ir sozinha”. Para mim, Laura direciona o resto
da justificação, a busca por justiça: “Eu, abrir mão daquilo, da minha
diversão? Ele tem que abrir mão de algo também!”. Articulação dupla: ao
mesmo tempo que apela para uma reivindicação de igualdade – no rela-
cionamento, ambos têm que abrir mão –, ela sustenta seu direito ao
exercício de uma ação que é um bem apenas para si.
Marcelo e Laura ficaram juntos de janeiro a dezembro de 2008. Ele
tomou a iniciativa de terminar. O motivo? Ciúme. Os dois haviam ido
a uma boate e discutiram (“Uma discussão bêbada”, desculpa-se Laura),
daí foram para casa, onde conversaram. O argumento central para o fim,
apresentado em uma longa conversa, “uma DR16 imensa até 8 horas da
manhã” (atravessada por longas sessões de choro de ambos), como ela
descreveria depois por e-mail, foi o de que “namorar não é legal porque
prende, tem cobrança, expectativa, projeto”.
Já Nina e Marcela moravam juntas havia três anos e meio quando as
entrevistei, uma logo em seguida da outra. – “Claro, isso será uma opor-
tunidade rara de falar dela pelas costas”, brincava a primeira diante da
namorada, ao receber a proposta, quando fui apresentado a elas, em um
almoço, por uma amiga em comum. Cheia de tiradas bem-humoradas
e ironias, é de Nina esta definição de desculpa: “É um negócio que se diz
para não se falar mais nisso”. Marcela, entretanto, seria protagonista de
uma das situações mais interessantes – e providenciais – por que eu pas-
saria em minha pesquisa de campo, justamente nesse almoço em que
nos conhecemos.
Ao chegar, Marcela informou, enquanto se acomodava, à guisa de
justificação prévia sobre sua namorada: “Nina chega num instante, ela
disse que consegue chegar em 20 minutos. Tava no Flamengo. Vai pegar o

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metrô”. Aceitamos esperar aquele tempo. Entretanto, uma hora depois,


ainda estávamos “tomando café”. Um certo ar constrangido começou a
se formar em Marcela, no que, depois me contaria, eram os trinta mi-
nutos do prazo, dez depois do que a parceira havia prometido. Formada
em Psicologia, mas trabalhando em como produtora de cinema, ela di-
zia ser cuidadosa com prazos. Naquele momento, telefonou para Nina.
Seu aparelho tinha bom som e eu pude ouvir sua caixa postal. A medida
se repetiu mais duas vezes, até que finalmente a namorada chegou, pou-
co mais de uma hora depois da chegada de Marcela, tendo prometido
vinte minutos de espera. Ou seja, cerca de hora e meia depois que eu e
minha amiga nos encontramos. Era de se esperar que estivéssemos cha-
teados. Eu de minha parte, entretanto, estava mesmo era entretido, ob-
servando a chateação da jovem diante de mim, nos seus 27 anos, cabe-
los louros compridos, um discreto piercing de brilhante (ou imitação)
no nariz, celular enorme guardado em uma meia infantil de bichinho,
tons sóbrios nas roupas.
Nina chegou como um furacão. Não precisou nem que notássemos as
duas bolsas de compras que se somavam à sua de estilo carteiro chique,
colorida. Cabelos pintados de ruivos, óculos de armação quadrada, ela já
se apresentou disparando: “Oi, oi, oi, desculpa o atraso, gente! Eu tava cor-
rendo pra cá, mas, quando saí do metrô, não andei cinquenta metros, dei com
uma bolsa linda, mas inacreditável de bonita! Eu tinha que parar pra olhar!
Foi mais forte que eu! E a menina ainda me mostrou esse sapato, e aí foi...”.
Marcela recebeu o beijo da namorada com certa frieza e reclamou
com veemência, sem cerimônia, já desenvolta diante de mim: “Poxa,
mô, a gente esperou um hora por você! Não podia ter avisado? Te liguei à
beça”. Eu, minimizando: “Ah, que é isso, a gente estava aqui se divertindo,
não tem problema...”. Mas Nina quis responder: “Ela é assim mesmo, que-
rido, não liga... Mô, não vi o celular. Tava dentro da bolsa e não ouvi. Mas
eu cheguei, né? Você tem que ver a bolsa. É linda!” – “Mas você sabe que eu

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

não gosto de atraso!” – “E você sabe como eu sou!”. Foi quando ela resolveu
mostrar a bolsa para mim: “Olha, aqui, não é linda? Você mesmo, sendo
homem, não pararia para olhar... para dar para sua namorada?”. Mas nem
precisei fazer comentário nenhum. Minha amiga e Marcela cobriram o
ar: “Nossa!” (com o “o” bem prolongado). – “Menina!” Sim, elas haviam
amado a bolsa. Ficou claro que a desculpa era que “é assim mesmo”, Nina
é assim mesmo; e, generalizando um pouco, “mulher é assim mesmo”,
embora o argumento passasse por uma normalização do gosto: o que é
belo é obrigatório.
Quando me deram entrevistas em casa – primeiro Nina, depois
Marcela, ao chegar de um passeio de bicicleta em um sábado pela ma-
nhã –, ficaria claro para mim que a questão fundamental das duas era o
tempo, em dois sentidos. O primeiro era justamente essa problemática
do não chegar na hora, dos atrasos, um “desvio” recorrente da parte da
ruiva, como eu já havia constatado – assim como a reação da parceira –
no restaurante. O segundo era com relação ao tempo dedicado uma à
outra. Marcela ouvia da companheira uma reivindicação de mais dedi-
cação às duas. A loura podia andar de bicicleta de manhã sozinha, mes-
mo que a namorada, Nina, menos afeita a exercícios físicos (“Eu gosto de
dançar, queima gordura à beça”), não gostasse tanto (mas havia duas bikes
penduradas no porta-bicicletas da casa). – “Ela consegue ficar horas no set
de um comercial, entrar em casa e me tratar como se tivesse ido ali, no mer-
cado”, reclamava Nina. – “É que eu sinto que é mesmo como se não tivésse-
mos nos separado, como se fosse só retomar a conversa”, respondeu-me
Marcela, ao lembrar de que a outra sempre chamava atenção para esta
suposta desatenção. As duas, entretanto, articulavam o problema do tem-
po com outro nome: desamor. O uso do termo começou com Marcela,
ao nomear os atrasos de Nina. Mas desamor tornou-se um termo geral
para as ações que causavam mal-estar em cada lado – como para outros
casais, aliás.

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Nos dois casos, a maneira pela qual administravam o desamor era a


circunstancialização. Perguntei diretamente, a cada uma, por que não
desmentir o desamor simplesmente afirmando o amor. – “Isso não é neces-
sário, ela sabe que eu a amo. E a gente já diz ‘eu te amo’ o bastante. O lance
é que essa coisa de ela chegar sempre atrasada é um desamor prático, é uma
coisa que exige amor prático”. Prova de amor? –”Não, nada nem tão sério
nem tão cafona assim, mas pelo menos uma satisfação, né?”
Essa demanda por “amor prático” encaminhava a história para mais
uma partição entre abstrato e concreto: o amor-sentimento e o amor-
ação. O primeiro é aquele de uma utopia de sentimento; o segundo é
articulado a um exercício cotidiano de ações que demonstrem compe-
tência amorosa. A dimensão abstrata não está em questão entre os apai-
xonados, mas a concreta está em questão o tempo todo e poderá amea-
çar a outra, caso provoque desgaste. Daí as satisfações, as tentativas de
desarticular o desamor com o descontrole, o desempoderamento, a im-
possibilidade de agir de outra maneira. Papel exercido – por definição –
pelo ato de dar uma desculpa.
Entre as duas, o desamor é sempre desmentido pela fato de que o
tempo é uma entidade incontrolável. Nina é mais direta que Marcela,
oferece desculpas mais claramente centradas em um bem de si inevitá-
vel: a bolsa que tinha que ser comprada, a preocupação com a combina-
ção das roupas, o fato de não gostar das pessoas com quem as duas se
encontrariam (que não parecia ser o caso de minha amiga). Este segun-
do caso levou Marcela a esperar por Nina no interior de uma casa de
shows, e acabaram por se encontrar apenas ao final. – “Ah, você tava com
o Amauri e a Claudia, não suporto aquele cara”, disse. – “Se fosse outro
dia, eu até aguentava. Mas hoje eu tava a fim de ser feliz.” Já Marcela
transfere claramente a responsabilidade para os entes maiores: “Meu di-
retor é maluco”, “Você já fez uma cotação de cabeamento alguma vez?” (por
acaso, Nina já tinha feito, o que acabou resultando em uma pequena

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

discussão). Ou alegava que um comercial exigia administrar muitas pes-


soas, a quem era preciso dar atenção.
Em todas essas situações, o desamor é apontado como centro do con-
flito, e não só por elas. Aquilo que nas bocas de Nina e Marcela é “desa-
mor”, ganha o nome de “falta de atenção” nos casos de Claudia, sobre
Marcos, e de Heloísa, mulher de Alex. E também no caso de Sandro,
marido de Ilda, que diz que “ela podia ser mais atenciosa”, assim como de
Verônica e seu companheiro Rubens, pelos dois, que revelam que “quan-
do uma coisa assim acontece, é como se ele/ela não me amasse”. Essa per-
cepção se espalha entre os entrevistados, levando-me a concluir que esse
desamor era uma categoria substantiva importante, que mais tarde se
tornaria uma categoria embasada primordial (Glaser & Strauss, 1967).
Ela coloca uma pergunta indispensável sobre o próprio estatuto do rela-
cionamento: qual é o outro lado, o que é o amor quando o desamor não
se manifesta?
O uso dessa categoria me fez pensar em uma outra oposição, tam-
bém da ordem da dicotomia concreto versus abstrato. É que, ante essas
afirmações, perguntei a Marcela e Nina – e a outros entrevistados – por
que não se podia admitir esse tipo de coisa da pessoa amada. A resposta
foi muito semelhante: “Ué, porque ela é a pessoa que eu amo, é a pessoa a
quem eu dou atenção, é a pessoa que me trata diferente das outras, para
quem eu sou especial e que é especial por isso”, elaborou Nina. Marcela
declara: “Se eu não for bem tratada por ela, se ela, logo ela, minha ‘cara-
metade’ [os dedos sinalizando], não me tratar como especial, quem vai tra-
tar?”. As duas usam o termo “especial”, as duas articulam uma singulari-
dade do(a) companheiro(a): aquela pessoa que me trata como mais
ninguém me trata e por quem tenho amor justamente porque ela me
trata assim.
A partição estabelecida no desamor pode ser entendida, então, como
aquela que ocorre entre uma condição de singularidade absoluta do ente

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amado e os momentos em que essa singularidade é desmentida ou, pelo


menos, posta em questão. Na ação desamorosa, o outro se banaliza, dei-
xa de ser especial, deixa de ser único – e pode até se ressingularizar, mas
nas antípodas, como objeto de ódio, no horizonte de um rompimento,
como assinala Vaughan (1986). No momento em que se estabelece um
mal-estar em uma relação amorosa, a questão fundamental do relacio-
namento vem à tona de outra forma: é aquilo que desmente a singulari-
dade do outro. E é fundamental, aliás, justamente por isso: quando isto
se mostra, o reconhecimento do outro como único no mundo a mere-
cer o amor cai por terra.

Uma dinâmica peculiar para as conversações


e a construção de um relacionamento

Os dois primeiros casos que apresentei serviram para estabelecer uma


dinâmica. O fato de ambos serem articulados por situações de atraso
ajudou a torná-los emblemáticos. O atraso (o tempo, em geral) é um
problema recorrente entre casais, embora nem sempre possa ser aponta-
do como questão fundamental. Mas esses três traços gerais observados –
a questão fundamental, o desamor e a singularidade do amado – represen-
tam elementos de um teatro moral recorrente.17
O início de uma vida a dois “é uma aventura”, diz Kaufmann (2007,
p. 28): “Uma aventura mental, isto é claro, que desenraiza a antiga exis-
tência, mas uma aventura também cotidiana, que redefine profunda-
mente as duas identidades”. Mas qual é o caminho dessa redefinição?
Ao perguntar a meus entrevistados pelo processo de transformação de
seus relacionamentos em uma relação de longo prazo, uma coisa ficou
clara para mim: esse processo passava pelo que chamarei aqui de criação
de um idioma comum, uma forma de falar própria dos dois. A questão

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

determinante pareceu ser a partilha de definições. As narrativas de co-


meço de relacionamento que ouvi passam pela construção daquela sin-
gularidade que apontei antes e pela integração de uma série de defini-
ções, termos compartilhados entre os dois: o que é amor, o que é vida a
dois, o que é bem, o que é mal, o que é bom, o que não é, o que dá
prazer, o que não dá, o que causa desprazer. Entretanto, esta definição é
um processo invisível, tácito. As pessoas não se sentam para debater e
compartilhar definições previamente. O único momento em que isso
ocorre é no ritual da DR, quando justamente fazem partilhas e reajustes
dessas definições.
Na prática, então, no que diz respeito a definições, o que as pessoas
operacionalizam são redefinições (e as definições se mantêm lá como
metafísicas, mitos de origem constituintes de uma relação ideal, utópi-
ca, e que servem sobretudo de parâmetro para os redesenhos nas DRs,
ou simplesmente após momentos de conflito). No processo de produ-
ção do relacionamento, isso é feito de maneira indireta, pela observação
do que coincide e do que não coincide nas ações. E essas definições cons-
tituirão uma imagem do outro que será central para definir a própria
manutenção das relações.
Viviane e Túlio, por exemplo, se conheceram pela Internet. Em fe-
vereiro de 2005, ela recebeu e-mail de um estranho, que dizia que estava
se mudando de outro estado, para o Rio. Ela tivera contato com ele em
uma lista de discussão virtual sobre fotografia. Túlio enviara a mensa-
gem apenas para as meninas da lista, e Viviane foi a única que respon-
deu, dando boas-vindas. – “Foi por educação”, afirma. Ela já teve três
namorados que conheceu na Rede, mas só encontrou Túlio pessoal-
mente em agosto. Nesse meio tempo, comunicavam-se por e-mail ou
por programas de bate-papo, e, eventualmente, se falavam por telefone.
Ele era separado e se dizia “traumatizado”, de modo que ela evitou con-

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tato, “para não complicar”. Um dia, chateada, resolveu ligar para Túlio,
mas, antes que pudesse fazê-lo, recebeu um telefonema dele.
Apesar das experiências anteriores com parceiros do mundo virtual,
Viviane mantinha uma série de rituais de segurança: revisão dos perfis
do candidato, de amigos e parentes no site de comunidades virtuais
Orkut, observação de ocorrências em buscadores, em comentários, em
blogs, etc. Inquérito concluído, ela aceitou encontrá-lo. Marcaram de ir
ao cinema num domingo. Encontrariam um ao outro no saguão. Ao
chegar, viu-o de longe. Quando o viu, pensou: “Até que dá pro gasto!”.
Ia cumprimentá-lo com um par amistoso de beijos no rosto, mas foi
surpreendida pelo movimento do rapaz, que lhe deu um forte abraço.
Ela pensou: “Que fofo!”. Viram um filme, e os dois “ficaram”. Depois,
marcaram de se encontrar uma semana depois. Nesse dia, ela foi
encontrá-lo para o almoço. Ao pegá-la, de carro, em um local público,
ele novamente a surpreendeu: “Você se incomoda se a gente der uma para-
da no caminho? Eu... tenho que colocar a roupa pra lavar”. Ela aceitou,
apesar de achar que era um estratagema. Não era.18 Ele de fato trazia um
saco de roupas no banco de trás, que, junto com ela, levou para a lavan-
deria. – “Me fez pensar. A gente conhece uns caras que são sempre mal-
intencionados, e ele fez uma coisa diferente. Achei aquilo tão humano! Não
parecia ter algo arquitetado, foi espontâneo. Achei bonito, gostei muito”,
relembra. Esse fato fez Viviane tomar uma atitude. – “Você quer namo-
rar comigo?”, perguntou a Túlio em uma praia, ao final do que chamou
de “uma tarde perfeita”. Ele aceitou. Eles estavam juntos por três anos
quando a entrevistei. Foram morar juntos em outubro de 2006 (“No
dia 3”, ela se lembra).
Destaquei esse caso porque a maneira como Viviane constrói o co-
meço do relacionamento é bastante indicativa de um procedimento ge-
ral de produção do outro. Essa imagem parece ser determinante na ma-

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

nutenção da relação: um mal-estar relacional é um exercício de afasta-


mento dessa imagem.
Os começos de relacionamento que pesquisei mostram uma série de
padrões interessantes. Assim como as “manhãs seguintes” descritas por
Kauffman (2002), esses momentos que os próprios amantes conside-
ram “de nascimento” da história são importantes, pois indicam temas
gerais conformadoras do relacionamento e o estabelecimento disso como
uma linha de base de sua normalidade, a condição com que se depara a
desculpa dada. Cada relacionamento estabelece um “mundo” próprio,
um conjunto de princípios que será respeitado como princípio superior
entre os envolvidos. Eles servirão como fontes para a produção de mo-
mentos críticos, para situações em que os mal-estares relacionais serão
colocados sobre a mesa e se estabelecerá uma demanda por um account,
a fim de evitar que o estado da relação ou dos atores seja alterado.

Familiaridade

O quadro que apresentei até agora estabelece uma economia de tensões.


Primeiro, aquela entre a imagem singular do outro e a questão moral fun-
damental. Cotidianamente, uma pressiona a outra, a segunda à primeira,
oferecendo constantes condições para o estabelecimento de mal-estares
relacionais quando no exercício das interações próprias do relacionamen-
to. É, como já disse, uma manifestação da outra tensão, aquela entre
abstrato e concreto, que é fundante na relação dos atores com o mundo
moral. Aqui uma observação para aplacar um engano fácil de cometer:
embora a questão moral fundamental seja, ela também, uma abstração,
ela o é porque é uma integração apenas formalmente abstraída de uma
série de condicionamentos pragmáticos. A questão moral fundamental
não é a moral, e portanto, a dimensão mais elevada, metafísica. Quem

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assume essa posição é a imagem singular do outro, é o ideal utópico


sobre o qual se constrói a relação. A questão moral fundamental é uma
integração da pressão que a dimensão pragmática, de práticas localiza-
das, exerce sobre o mundo dos seres metafísicos.
O que aponto com este quadro é que essa singularidade, em sua rela-
ção tensa com a questão fundamental – também a cada momento em
que ela interage com as questões eventuais ocorridas quando uma pro-
blemática moral é mais consagrada –, compõe uma imagem simbólica,
segundo a qual os atores tomam decisões e praticam ações. Isso me le-
vou a pensar essa construção como uma matriz de vários elementos de
significação – como planos de significação que se coordenam e ou su-
bordinam. A essa matriz dei o nome de familiaridade.19 O termo sugere
uma partição entre dois mundos e dois tipos de pessoas, aquelas que
pertencem à nossa família e aqueles que a ela não pertencem. Essa ma-
triz nasceu de um conjunto de observações feitas nas interações com os
entrevistados. Eles não apenas se referem a essa familiaridade – ainda
que por vezes indiretamente –, como trazem à tona essa série de ele-
mentos que a compõem. Assim, a familiaridade parece ser a noção cen-
tral articulada pelos atores para o estabelecimento e a manutenção de
uma relação.
Esse conceito se define com base na própria construção da matriz:
familiaridade é a noção de que uma relação está plenamente efetivada,
ou seja, se constitui como uma unidade social capaz de produzir uma
vasta gama de efeitos, efetivos para todos os atores nela envolvidos e
estabelecidos de acordo com uma noção de singularidade do outro ator
– o que aponta para a dimensão familiar e mesmo íntima das relações
ou, a princípio, pelo menos para um determinado tipo de relação, as
mais privadas, mais íntimas: “Uma relação íntima é a menor organiza-
ção que criamos” (Vaughan, 1986, p. 18). Mas essa definição é, à pri-
meira vista, tautológica. Ela depende, para ser plenamente funcional,

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dos elementos que compõem a matriz. Esses elementos são, eles pró-
prios, assim como a própria familiaridade, noções, representações sim-
bólicas (e, portanto, abstraídas) em referência às quais os atores, no pla-
no de suas interações cotidianas, atuam.

1) Previsibilidade: o outro nos é conhecido


e agirá sempre de uma mesma maneira

Ao longo de todas as entrevistas, um mesmo padrão de constituição da


linha de base dos relacionamentos moldou uma ideia de reconhecimen-
to. A singularização do outro como alguém com quem se quer estar ao
lado é o estabelecimento de uma memória: aquele ali com quem man-
tenho uma relação (aquele que amo) é a pessoa com quem quero
interagir sempre, porque a interação com ela não apenas é boa, mas é
sempre boa – isto, claro, é uma utopia. “O que eu mais gosto nele? Ele está
sempre dizendo e fazendo coisas novas, diferentes!”, diz-me Bruna, casada
há sete anos, desde os 20, com Wilson. Os dois estudaram juntos, en-
traram para a mesma faculdade, formaram-se de juntos e, hoje, traba-
lham cada um em uma área do Direito. A fala da moça de cabelos muito
pretos e pele muito alva soa curiosa, por conta da aparente contradição.
Mas é uma definição central: o marido muda, se reinventa, mas faz isso
“sempre”. Por mais que varie, ele se mantém como a mesma pessoa.
Assim, o começo de um relacionamento, que Kaufmann (2007)
aponta como uma “aventura”, o é não porque seja um mergulho no des-
conhecido, mas porque se dirige para o conhecimento. – “Aos poucos, a
distância segura se estabelece”, diz Gustavo, explicando como conviver
com o “excesso de iniciativa” de Cinthia. – “Rapidinho eu me acostumei
com aquelas coisas dela de incenso, astrologia, essas coisas. Imagina! Eu, co-
munista!”, conta Sérgio, marido de Maria. Trata-se de um constante pro-
cesso de aprendizado daquilo que é uma regra entre os dois integrantes

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da relação. Ora, um relacionamento não é uma relação com regras da-


das – embora haja algumas mais ou menos difundidas e mais ou menos
universais no mundo ocidental moderno, como pressupostos tais como
fidelidade, co-habitação, etc. (todos obviamente desuniversalizáveis,
como qualquer observação mais detida acabaria por demonstrar) –, nem
é uma relação com regras pré-estabelecidas.
O que há de relevante, aqui, é que esse conjunto de regras, articula-
do com a imagem singularizada do outro, será o outro lado da questão
fundamental. Será em referência a essas definições e a essa imagem sin-
gularizada do outro que se estabelecerão os mal-estares relacionais em
cada relação. E será justamente com base nesse mito de previsibilidade
que se estabelecerá a confiança, elemento apontado como central por
todos os entrevistados.
De fato, aquilo que surge quando um cônjuge ou namorado age se-
gundo uma forma com qual o outro não está acostumado é uma des-
confiança, uma perda de chão diante da impossibilidade cognitiva de
reconhecer o outro. – “Ah, mas eu acho que a gente sempre se surpreende
com o outro, né?”, diz Mário. Para completar: “Mas não vou dizer que não
dói quando isso acontece”. Algo semelhante vem de Viviane, com uma
racionalidade que aponta para o mesmo tipo de “é assim mesmo” – ape-
nas apresentado em uma, digamos, ordem inversa: “A gente confia des-
confiando, né? Deus me livre de acontecer alguma coisa, mas a gente tem
que estar pronto para sofrer um baque. Mas a gente tem que confiar. Se não
confiar, como é que vai ter um relacionamento?”; Isto, vindo dela, que se
encantou com o fato de o namorado demonstrar uma atitude não cal-
culista, despojada de estratégias, ajuda a mostrar o grau da importância
que os atores atribuem à previsibilidade: mesmo diante de uma consci-
ência forte de que ela é um princípio ideal, e em parte uma representa-
ção mais do que um dado estatístico, é um mito a ser alimentado, sem o
qual a relação seria impossível.

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2) Inevitabilidade: a relação é inevitável,


determinada por um princípio superior

O amor é o centro de um relacionamento amoroso. Pode parecer uma


tautologia redundante. Mas, diante de meus entrevistados, ela faz todo
o sentido. É que o amor é um símbolo importante e, no caso de uma
relação afetiva, é o “princípio superior comum” que estabelece a lógica
de uma ordem moral específica. Os entrevistados procuram justificar a
aceitação de circunstâncias – as desculpas dadas por seus companheiros
– e a aceitação das idiossincrasias do outro com base no fato de que ele
é o ente amado e, se o é, é merecedor desse amor, justamente pelas sin-
gularidades enxergadas no processo de construção da relação. Trata-se
de uma definição circular: é amado porque é singular, e se torna singular
porque é amado.
A principal consequência disso é o princípio de inevitabilidade. Esse
princípio opera em dois sentidos: primeiro, como instaurador, ou seja,
como justificativa da própria relação; depois, como mantenedor, como
justificação para que a relação se mantenha. O primeiro é sustentado
por ideias como “Tinha que ser ela”, “Nascemos um pro outro” (que ouvi
de alguns casais aqui e que é recorrente em qualquer relacionamento)
ou “Quando a vi pela primeira vez, vi que ela era meu número” (Ricardo,
marido de Soraya, casados há oito anos).
A segunda forma do princípio é o uso de um modo de dar conta da
circunstancialidade proposta pelo outro. De maneira geral, esse princí-
pio é uma forma de dar conta da continuidade da oposição em relação à
questão moral primordial. Em uma discussão aparentemente banal en-
tre Olívia e Umberto, levou a uma discussão sobre as bases de sua rela-
ção. Casados havia apenas seis meses (no momento da entrevista, eles
estavam juntos havia três anos), ele usava o notebook dela, sentado no
sofá da sala. Como o utilizasse com a bateria e o monitor estivesse “es-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

curo”, encaixou no aparelho o cabo de alimentação, que permitia forne-


cimento diretamente da rede elétrica. A companheira, ao ver o gesto,
virou-se para ele com “o rosto vermelho” (a descrição é do marido) e dis-
se: “Não pode colocar o cabo de energia com a bateria pela metade, estra-
ga”. – “É só desta vez, eu tenho que entregar isso aqui amanhã sem falta.” –
“Mas retira a bateria, por favor.” – “Tá, assim que der, eu tiro.” – “Você
não tem nenhuma consideração!”, gritou ela, enfurecida. Ele se manteve
trabalhando. Ela voltou minutos depois e gritou novamente: “Você não
tem nenhuma consideração!”. Ele ergueu a voz (segundo ela, “com frieza”;
para ele, “calmamente”): “Eu não acredito que você tá brigando comigo por
causa de uma bateria de computador”. Ela ficou em silêncio e se pôs a
chorar. Mais tarde, após um longo silêncio, disse: “Eu te amo! É só por
isso que eu aturo isso!”.

3) Intimidade: há pouca ou nenhuma limitação


em relação ao outro

A intimidade é a forma mais externa, mais visível, da familiaridade. De


fato, costuma-se tratar uma pela outra, e muitos estudos centrados em
sociologia das relações afetivas – como Jamieson (1988) e Jeudy (2007)
– usam o grau de intimidade como parâmetro da efetividade de uma
relação. Mas a intimidade se mostra, demonstra a pesquisa, como um
componente da familiaridade. Por intimidade entendo, aqui, uma no-
ção de eliminação (ou redução, variável segundo o grau de intimidade)
de limitações de interação em relação a outro(s) ator(es). Esse conceito
é o que mais explicitamente divide as pessoas do mundo em dois tipos,
as que são íntimas de nós (e que podem agir ou falar de maneira dife-
rente das outras) e as que não íntimas. Essa divisão conduz para uma
tipologia de dois elementos:

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

a) Intimidade actancial: a noção de que não há limitações na gama


de ações que se pode praticar em relação ao outro. Essa forma de intimi-
dade corresponde a tudo que deixamos – e que se espera que deixemos
– que o outro faça conosco e vice-versa. É um pressuposto das relações.
Por exemplo, “na sociedade americana, nós usualmente não pergunta-
mos por que pessoas se engajam em relações sexuais” (Scott & Lyman,
2008[1968], p. 112). Estabelece-se, assim, um acordo tácito de que
podemos tocar no outro de determinada maneira (abraçá-lo, beijá-lo,
ter relações sexuais com ele, bater nele, vendê-lo, matá-lo, etc.).
b) Intimidade informacional ou “disclosing intimacy” (Jamieson,
1988): a noção de que não há limitações na gama de informações que se
pode ter do outro e que a ele se pode apresentar. Essa forma mostra que,
no âmbito de uma relação amorosa, negocia-se em torno de dois tipos
de fluxo de informação. Primeiro, em um fluxo privativo: a pessoa ínti-
ma é aquela que pode saber de nossos segredos, que nos conheceria bem
e mereceria ouvir de nós o que poucos teriam o direito de ouvir. O se-
gundo tipo de fluxo é o de perda de censura ou de manifestação de cora-
gem: a pessoa íntima é aquela a quem podemos falar determinadas coi-
sas que não teríamos coragem de dizer a outros e que teria o dever de
ouvi-las. – “Você é muito mais cruel com quem ama, porque você perde
totalmente a cerimônia, você é você mesmo”, diz Paulo, tal qual um Simmel
carioca, que leciona Filosofia em um colégio secundário, marido de
Margarida, professora de História. E ela prova (assim como vários outros
entrevistados, entre eles Carolina, que repete várias vezes que “se alguma
coisa me incomoda, eu falo”); conta que nunca teve cerimônia de dizer o
que pensava do marido, mas se sentiu “até mal” no dia em que lhe disse
que ele não passara em um concurso porque escrevia mal. – “O que se
espera é que você fique ali, dando apoio, falando um monte de eufemismos,
mas chega uma hora em que a pessoa tem que ouvir a verdade”, diz ela,
mostrando uma normalidade alternativa ao papel esperado da esposa

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compreensiva. Esperado por ele: “Você vira noites trabalhando, estudan-


do, não passa por causa sei lá do quê e se chateia com isso. E quando acha
que vai encontrar um ombro amigo em casa, escuta que tinha que fazer
oficina de texto, que você escreve mal”. A história desencadeou uma crise
que quase separou o casal e despertou outras “crueldades”. Ele a acusou
de ser uma mãe relapsa, da filha do primeiro casamento, que mora com
os dois: “É por isso que ela vira a cara pra você quando você tenta mostrar
sua autoridade”. – “Mas você não tem medo de perdê-la, dizendo coisas as-
sim?”, pergunto. – “De jeito nenhum, ela é minha mulher, meu amor, pos-
so falar essas coisas pra ela.”

Conclusão: o amor e o “egoísmo” como competências

O amor romântico é a utopia da familiaridade máxima. Máxima por-


que artificializada. Alguém com quem a relação não é obrigatória, não é
previsível e não é íntima vive uma interação pontual. Do outro lado,
alguém com quem a previsibilidade, a inevitabilidade e a intimidade se
manifestam ao limite, tudo interage, tudo efetiva, tudo vive, com o ou-
tro. Mas toda relação, reconhecida como uma instância de interações
habituais entre (pelo menos) dois atores, tem certo grau de familiarida-
de: toda relação, para se constituir, parece depender de um processo de
formação no qual o outro é instituído simbolicamente, no qual ele é
tornado diferente dos demais outros e em relação ao qual é estabelecido
um critério de reconhecimento. É um signo que se conserva, algo que se
mantém na memória e serve de parâmetro para o que acontece no social.
A familiaridade será sempre a instância da linha de base sobre a qual se
estabelecem os pilares de uma relação. É a negociação tácita sobre defi-
nições que, dependendo do grau de generalidade da relação, nem preci-
sa ser tácita, pode mesmo ser estabelecida por contrato.

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

O que esses vários maridos, esposas, namoradas, namorados, ficantes,


e outras configurações, ajudaram aqui a enxergar é uma economia pe-
culiar entre os pares amor/egoísmo e bem comum/bem de si. Ou, em
sentido mais amplo, entre a relação amorosa como lócus do bem (pro-
duzido pela experiência absolutamente única com um outro absoluta-
mente único) e ela própria como lócus da vida prática. Ou, ainda, entre
a dimensão idealizada, abstrata, em que o bem é total, e o exercício de
pequenos bens que é possível se viver nas ações pragmaticamente locali-
zadas. Pois quando uma ação em desacordo com essa unicidade (e, por-
tanto, esse bem) se estabelece, uma solução recorrente encontrada pelos
atores é mobilizar a demonstração de que essa deriva em relação à
singularização é pontual, circunstancial, aconteceu apenas “aquela vez
ali” (ou “não vai acontecer de novo” ou “tenho certeza de que ela não fará
isso novamente”, dizem-me).
Assim, em todos os casos de oferta de desculpas que analisei em várias
pesquisas, três ações compõem a desculpa:
1) Uma narração: apesar do esvaziamento do peso argumentativo da
desculpa que demonstrei, uma série de elementos discursivos, em geral
redundantes e verborrágicos – como demonstrei em Werneck (2009a)
– constitui um sistema de ativação do dispositivo actancial moral. Mes-
mo sem apresentar uma prova de adequação a algum critério universal
de correção moral, essa narratividade serve, antes de tudo, para identifi-
car a desculpa. E isso se dá em grande medida pelo reconhecimento dos
atores de uma mecânica incorporada por suas competências práticas: o
recurso ao “não era eu” e ao “é assim mesmo” deixam claro que a situa-
ção em questão está sendo encaminhada para a desculpa.
2) Uma proposta de decaimento por meio da narração: uma vez que
se identifica como o que é, a desculpa opera sua demanda, que o siste-
ma de verificação da possibilidade de efetivação da ação em questão saia

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do plano do universal da regra moral, contido na percepção/demons-


tração de mal-estar, e se aloque no plano da circunstância. Essa é a pró-
pria mecânica que define a desculpa. Se há um termo que pode repre-
sentar essa prática é convite: ela constitui uma oferta de solução do
mal-estar relacional por meio de uma “chamada à realidade”, de um “tra-
zer ao chão” algo que estava a flutuar em um plano no qual estão inscri-
tos os ideais. Retomarei esse deslocamento logo adiante.
3) Uma defesa da efetividade desse decaimento: uma vez identificada
como o que é, a desculpa defende sua demanda pela demonstração de
que a ação em questão é, antes de tudo, desculpável. E isto se dá por um
processo de particularização. Se uma ação é desculpável é porque: a)
aquele que a deu está tão embebido da relação que sua manutenção é
inevitável – torce-se o universal para o particular pelo reconhecimento
da particularidade do ator (o tipo de desculpa que chamei de “não era
eu”); b) aquilo sobre o que se deu está tão embebido da relação que sua
manutenção é inevitável – torce-se o universal para o particular pelo
reconhecimento da particularidade da situação (o tipo que chamei de
“é assim mesmo”).
Dessa maneira, o ato de dar uma desculpa se mostra como uma for-
ma de manutenção da paz – e, com isso, das relações – capaz de reafir-
mar ao mesmo tempo os dois lados da tensão circunstancial-universal:
de um lado, o recurso à circunstância demonstra como “pelo menos da-
quela vez” (diz-me Marcos) aquela ação, que não pode ser considerada
“nunca” como aceitável, pode ser aceita, afirmando uma margem de
manobra e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de ampliação da com-
preensão das possibilidades de uma ação na dimensão pragmática. Do
outro, esse mesmo mecanismo, é preciso notar, não nega a regra moral,
o princípio universal cujo descumprimento gerou o mal-estar – o que
poderia acontecer em uma situação de “crítica radical” (Boltanski &

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

Thévenot, 1999, p. 374). Pelo contrário: ele a afirma, porque afirma


justamente que o princípio deve ser mantido “em geral” (em nome do
bem comum).
Com isso, o ato de dar uma desculpa torna o bem de si um critério
cabível no processo de avaliação efetivadora das ações sociais: ainda que
uma ação não inclua o bem do outro e possa até, circunstancialmente,
negar-lhe o bem, se ela é articulada como circunstancialidade formal,
como oriunda de uma especificidade de uma mudança no estado do
ator ou da situação, ela torna a ação de “egoísmo” uma ação competen-
te, ou seja, efetiva em uma gramática operada no interior de uma rela-
ção duradoura. Isso leva a pensar a desculpa como um agente de uma
consciência da pragmática das ações localizadas. Se não, vejamos: todos
nós temos, em diferentes dimensões, uma maquinaria moral que nos
leva a buscar/interpretar o bem. Da mesma maneira, todos nós, segun-
do Boltanski e Thévenot (1987; 1991; 1999), contamos com uma “ca-
pacidade crítica” que nos permite nos manifestar diante de ações alheias
(e mesmo nossas) que possam estar em desacordo com alguma noção de
bem (para os autores, em seu modelo sobre a ordem moderna, “bem
comum”), para cujo horizonte estejamos voltados.
Sugiro pois que, ao mesmo tempo e ao lado desses dois elementos,
operacionalizamos também essa terceira capacidade, que chamo de
metapragmática. Trata-se de uma capacidade cognitiva dos atores sociais
para operacionalizar a distância existente entre a dimensão utópica e
universalista (portanto, a metafísica), conduzida pelas regras morais, e a
dimensão circunstancialista com que as pessoas se deparam nas situa-
ções cotidianas, pragmáticas. É uma capacidade de se dar conta de que
um não é o outro e que, vez por outra, é preciso desmobilizar a mecâni-
ca de leitura do mundo pelos olhos das gramáticas metafísicas morais. É
uma capacidade, portanto, que nos permite ter “jogo de cintura”,
operacionalizar “margens de manobra” para a rigidez das duas outras.

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Uma desculpa, conforme tenho descrito, é uma ação social que toma
uma situação centrada no universalismo da utopia moral e promove
justamente uma torção de rumo à circunstancialidade, permitindo a
efetivação de uma ação segundo uma forma de bem que seja não uni-
versalizada, mas, muito diferente disso, uma forma particularizada, in-
dividual, o “bem de si”.
A observação das desculpas volta o olhar para essa capacidade. É ela
que se ergue poderosamente da observação de como a familiaridade em
relações afetivas se torna uma metafísica moral em si própria e de como
ela pode ser conservada justamente pela possibilidade de arrefecimento
produzida pelo decaimento tornado possível por essa capacidade. E não
se trata apenas de um puro realismo, de um “senso prático”, mas de uma
incorporação no repertório de práticas disponíveis para que o bem seja
feito de um repertório plural de formas de bem. Se, conforme descre-
vem Boltanski e Thévenot (1987; 1991; 1999), em um horizonte me-
tafísico moral, a paz, bem como, portanto, a vida social cotidiana,
é mantida por uma referência utópica ao “bem comum”, a desculpa aju-
da a enxergar que a vida social comporta outras formas de referenciamen-
to do bem que permitirão, cada um à sua maneira, formas de efetiva-
ção de significações e, portanto, de ações de conteúdos da vida social.
E uma dessas referências – o a si –, produzindo o bem de si, pode ser
efetivado pelo ato de dar um desculpa, esse “algo que é dito para não se
falar mais nisso”.

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Notas
1
Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no 33o Encontro Anual da
Anpocs, no GT 38, Subjetividade e Emoções. Agradeço, pelos valiosos comentá-
rios, aos professores Maria Claudia Coelho, Octavio Bonet, Susana Durão, Clau-
dia Barcellos Rezende e Laura Moutinho.
2
Professor adjunto do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciên-
cias Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisa-
dor do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU)
da UFRJ. Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia (PPGSA) do IFCS/UFRJ, com estágio doutoral (“sanduíche”) na
École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/CNRS) e na Université de
Paris X. Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação (ECO)
da UFRJ.
3
A análise dessas respostas ultrapassaria o fim específico deste artigo, e não me pren-
derei a elas. Mas tenho a convicção de que ela pode ser considerada mais do que
uma alegoria ou um caso exemplar, configurando-se como uma verdadeira pesqui-
sa, no sentido de que a aproximação que Sophie Calle exercita em relação às mu-
lheres permite isolá-las como produtoras de uma série de discursos a respeito da-
quele caso particular, mas igualmente sobre a masculinidade e o amor romântico.
4
É curioso que a obra tenha causado polêmica por conta da “evasão de privacida-
de”: sim, está ali a artista a expor seu caso de amor. O uso da própria vida, entre-
tanto, é recorrente no trabalho de Sophie Calle. E, no caso de Bouillier, parece
ainda mais contraditório o choque: seu primeiro romance, Rapport sur moi (2002),
foi premiado justamente pela maneira como o autor expunha sua vida pessoal.
O posterior, L’invité mystère, de 2004 (lançado no Brasil em 2009 como O convi-
dado surpresa), é sobre como os dois se conheceram – em uma festa de aniversário
de Sophie, que servia justamente como obra, na qual ela guardaria os presentes de
festas feitas por anos e dados por um convidado desconhecido, trazidos por um
convidado seu – e sobre o relacionamento.
5
Ao longo de um ano e meio, entrevistei cada um dos integrantes do casal em sepa-
rado, com intervalos os mais curtos possível. Esta separação foi primordial: não
apenas por servir como “prova dos nove” das histórias de um sobre o outro, mas
também porque ela dava liberdade para que as desculpas fossem formuladas com

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base em uma revisão dos comportamentos de si e do outro. Mas um ponto digno


de nota é que, como esta é uma pesquisa sobre um dispositivo moral, uma questão
se colocou: como entrevistador, apesar das vantagens oferecidas pela posição, eu
me tornava alguém a quem as pessoas davam desculpas e não alguém que observa-
va as desculpas dadas de um a outro. Por conta disso, optei por coordenar o critério
aleatório de aproximação dos entrevistados como uma maneira de tirar vantagem
de minha inclusão no dispositivo analítico: procurei casais amigos de amigos. Eram
desconhecidos para mim, mas, ao mesmo tempo, tinham relações com pessoas que
conheço mais ou menos bem. Isso criou um importante jogo de perspectiva: eu era
alienígena o suficiente para a conversação comigo ser considerada “uma sessão”
(várias pessoas me relataram se sentir “na terapia de casais”, ou seja, um momento
analítico, deslocado da relação habitual, apartado do cotidiano) e, ao mesmo tem-
po, era alguém a quem eles “não queriam desagradar” – “Você é amigo de...”, “Faço
tudo por...”, me diz, por exemplo, uma entrevistada, oito meses de namoro. Isso me
colocou efetivamente na posição de alguém a quem accounts eram direcionados.
Então, em vez de não querer me “desagradar”, prejudicar a pesquisa por indicar
uma resposta “tendenciosa” ou “orquestrada”, ela colaborou justamente por um
movimento ao mesmo tempo de confiança, comprometimento, e por levar em con-
ta justamente esse bias: uma desculpa dada, no final das contas, sempre é uma ope-
ração de agradar o outro. – “Imagina se eu não dou essa satisfação a ela! Ela me mata.
Eu podia dizer que tinha ido comprar pão ou que estava jogando fliperama, o que eu
não podia era deixá-la sem resposta. Seria desagradável demais para ela”, defende um
outro entrevistado, cinco anos de casado.
6
Os nomes dos entrevistados foram mudados para garantir o sigilo. Ao apresentá-
los, citarei os nomes fictícios e o nome fictício do companheiro, além do tempo
de relacionamento entre os dois à época da entrevista. Apenas em algumas situa-
ção, e quando for relevante para a desscrição, citarei um outro detalhe, como a
profissão e/ou a idade de cada um, mas sempre com o cuidado de não identificar o
interlocutor.
7
Essa reflexividade é correlata àquela construída pela etnometodologia, por meio do
conceito de “agente competente” de Garfinkel (1967). Para o autor, trata-se de um
dado cognitivo essencial à vida social o fato de que os atores “não são dopados
culturais”, ou seja, têm competência para avaliar as situações, exigindo prestações
de contas para que as ações nelas envolvidas tenham prosseguimento.

- 181 -
ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

8
A ideia de violência utilizada aqui não está necessariamente ligada à agressão física.
Trata-se, antes, de um regime no qual se torna impossível o acordo, no qual ne-
nhuma condição de legitimidade é produzida e a efetivação da ação depende do
uso desmedido da força, seja ela física ou simbólica. Para uma discussão sobre uma
noção pragmatista de violência, ver Clavérie (2009).
9
A título de exemplo, Comte sugere, em seu Curso de Filosofia Positiva (2009[1831])
que a tensão altruísmo–egoísmo é a questão humana fundamental. Já Durkheim
modeliza o próprio individualismo por meio da pendularidade com o egoísmo: o
adjetivo (de sua vez, sem aspas) caracteriza uma das formas de individualismo mo-
derno descrever uma forma de ação que tensiona profundamente a ordem, uma
vez que ela atua sem o horizonte da solidariedade mecânica (e de seus arroubos na
vida moderna). Na outra forma, o individualismo “moral”, o individualismo é ca-
racterizado como a própria lógica da vida moderna, uma vez que ele é o que carac-
teriza a solidariedade orgânica, na qual o ato de o indivíduo se diferenciar é um
dado de sua própria inserção na vida social.
10
Para uma discussão mais alongada, uma etimologia do termo e uma comparação
entre “dar uma desculpa” e “pedir desculpas”, além de uma revisão bibliográfica a
respeito, ver Werneck (2009b).
11
Com essa definição, fica definitivamente claro que estou me referindo a apenas
um dos sentidos da palavra “desculpa” em português, aquele em que ela opera
como discurso de accountability social. Não me refiro aqui, em nenhum momen-
to, à desculpa como mecanismo de “remediação” (Goffman, 1971), ou seja, à des-
culpa como reparação, como forma temporalmente rearticulada do perdão.
12
Esta fala foi usada por um de meus entrevistados para explicar, em uma confidên-
cia, um “deslize”, ficar com uma outra mulher em uma viagem, o que abalou seve-
ramente seu casamento. Na conversa comigo, ele recorreria um “é assim mesmo”,
na forma do apelo à masculinidade; mas, com sua mulher, ele chamaria a atenção
para um “não era eu”. Isso demonstra mais uma vez a versatilidade da desculpa,
independentemente de seu conteúdo discursivo.
13
O termo “ficar” remete a alguns diferentes sentidos na dinâmica amorosa contem-
porânea. Basicamente, refere-se a um momento furtivo em que se constitui um
casal (eles se beijam, se abraçam, podem chegar a fazer sexo), em geral de desco-
nhecidos ou recém-conhecidos (mas nem sempre), em que a interação não neces-
sariamente se converte em relação. O casal “fica” e depois se desfaz. Entretanto, o

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termo também se refere a cada vez que um casal constituído interage afetivamente
de maneira física; e, algumas vezes, para designar um casal que ainda não assumiu
um “namoro” (“É, a gente fica”, ou “Estamos ficando”; e diz-se ainda que esse
fulano é um “ficante”).
14
Esta é outra expressão recorrente entre os entrevistados e com dois sentidos bas-
tantes definidos. Primeiro, trata-se ao mesmo tempo de um sinônimo para des-
culpa esfarrapada, quando alguém conta alguma história para dar conta de algo
errado (em geral, para se livrar de alguém incômodo). Mas o sentido mais interes-
sante é o de um simulacro de desculpa esfarrapada, no qual o argumento é usado
para fingir que se considera algo errado, mas se está, na verdade, tentando obter
alguma vantagem com essa desculpa dada. O caso de Marcelo é paradigmático.
15
Acabaria por não entrevistar Marcelo. Trocaríamos alguns e-mails, no intuito de
marcar a entrevista, estabelecendo alguma conversação prévia, da qual pude ex-
trairia alguma informação. Mas, após várias tentativas, a efetivação do encontro
esbarraria em um primeiro rompimento do casal e, depois, sucumbiria ao fim do
relacionamento. Ocorreria em mais dois casos eu não conseguir entrevistar o se-
gundo membro do casal – nos dois casos, o homem.
16
A sigla DR significa “discussão de relação” e se refere a um ritual social recorrente
nas relações afetivas contemporâneas (embora sem nenhuma regularidade ou
previsibilidade de erupção). Trata-se do momento em que os integrantes de um
casal colocam sobre a mesa algum tema sensível, alguma “problemática” específica
da relação. É uma “metainteração” em que os assuntos deixam de ser da relação (“o
que vamos comer no jantar?”, “na casa da sua mãe ou na da minha?”, “como va-
mos pagar aquela conta?”) e passam a ser a relação (“você não é compreensivo”,
“como vai nossa vida a dois?”, “preciso de mais espaço”).
17
Assim, o que busquei nos casais com quem conversei foi esmiuçar uma relação
entre o estabelecimento e a manutenção de um cotidiano, e os argumentos usados
para dele dar conta. Assim, embora eu tenha feito entrevistas consideravelmente
informais e até bastante diferentes das outras, em alguns casos, algumas questões
gerais sempre estiveram presentes: (1) Como se deu a formação e o reconheci-
mento de um relacionamento? (2) Que características do entrevistado são compli-
cadores no cotidiano do relacionamento? (3) O que o entrevistado diz para dar
conta dessas características complicadoras? (4) Que características do outro são
complicadores no cotidiano do relacionamento? (5) O que o outro diz para dar

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ALEXANDRE WERNECK . O “EGOÍSMO” COMO COMPETÊNCIA...

conta dessas características complicadoras? (6) Que mal-estares são dignos de ser
lembrados na história dos dois?
18
Todas as impressões subjetivas apresentadas nas descrições são transcrições de im-
pressões apresentadas pelos entrevistados. Assumo que essas informações são rele-
vantes por mostrarem a maneira como os atores interpretam as situações. Mas eu
as uso como evidências apenas dessas representações, e não como fontes de infor-
mação direta sobre os conteúdos transmitidos por esses discursos.
19
Thévenot tem trabalhado com o conceito de familiaridade (constituindo mesmo
um regime para ela), mas utilizo o termo de maneira independente de suas defini-
ções aqui. Adotei-o, a princípio, por dedução teórica, mas ele foi se tornando cada
vez mais uma forma induzida de várias impressões que obtive no campo das entre-
vistas, impressões que vinham de falas como: “Ele é a minha família, não pode
fazer isso comigo”; “Com o tempo, a gente vai sentindo que ele entra na família”; ou
“Minha mãe trata o Leandro exatamente como me trata. É exatamente como se ele
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ABSTRACT: This work aims to analyze how “selfishness” can be a central


feature for the effectiveness of actors’ actions in the scope of long lasting
relationships, even if there is an imperative of “common good”. Using in-
terviews with couples and analyzing situations of potential conflict within
the relationship, we discuss how “one’s own good” many times precedes the
“common good” and becomes the principle of legitimacy for the actions.
This is true even in relations based on love and therefore considered as an
environment in which a pact of mutual altruism is established. Thus, “self-
ishness” is described as a moral competence for the maintenance of the rela-
tions and at the same time of the moral rules attached to them. It is shown
that, in order to operate that competence, people use excuses, that is, de-
mands for moving the situation of dispute from the general status of the
moral rule into the circumstantial frame of the specific moment. That re-
veals a cognitive capacity which I call metapragmatic capacity, a central fea-
ture of social life that let the actors be aware of this gap between the univer-
sal and the particular frames.

KEY-WORDS: “Selfishness”, excuse, couple, effectiveness, metapragmatic


capacity.

Recebido em março de 2011. Aceito em novembro de 2011.

- 190 -
¿Vecinos o ciudadanos?
El fenómeno Nimby: participación social
desde la facilitación organizacional

Ariel Gravano1

Universidad del Centro de la Provincia de Buenos Aires

RESUMEN: En el trabajo se focaliza un tópico del imaginario urbano pues-


to en juego con recurrencia en procesos de participación social dentro de la
planificación urbano-ambiental, el llamado Nimby (not in my back yard: no
en mi patio trasero) o SPAN (sí, pero aquí no), que plantea el eje de discu-
sión en torno al”de quién” y “para quién” de la ciudad y de lo urbano: ¿veci-
nos o ciudadanos? Lo exponemos en un caso de demanda desde el Estado al
antropólogo para colaborar en un proceso de participación institucional,
dentro de un Plan Urbano Ambiental. Se analizan las bases ideológicas del
fenómeno Nimby, sus distintos enfoques, ejes de debate y necesidad de arti-
cular el registro y la intervención en torno al poder participativo vecinal y
ciudadano, como un desafío permanente.

PALAVRAS-CLAVE: Imaginarios urbanos, participación social, vecinos,


ciudadanos.

1. Introducción
1.1. Objeto

En este artículo se focaliza el análisis de una manifestación de los imagi-


narios urbanos puesta en juego con recurrencia en general y, más
ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

específicamente, en procesos de participación social dentro de la plani-


ficación urbano-ambiental: el llamado Nimby (not in my back yard: “no
en mi patio trasero”) o Span (“sí, pero aquí no”), que plantea el eje de
discusión en torno al “de quién” y “para quién” de la ciudad y de lo urba-
no: ¿vecinos o ciudadanos?
Lo exponemos en un caso de demanda desde el Estado al antropólogo
para colaborar en un proceso de participación institucional, dentro del
Plan Urbano Ambiental (PUA) de la Ciudad de Buenos Aires, Argenti-
na. Se analizan las bases ideológicas del fenómeno Nimby, sus distintos
enfoques, ejes de debate y necesidad de articular el registro y la inter-
vención en relación con el poder participativo ciudadano.
Se pondrán en cuestión las relaciones entre el poder de los aparatos
institucionales de Estado y de la sociedad civil, tan invocada en las últi-
mas décadas como una forma de impulsar la participación ciudadana y
así paliar las deficiencias de los dispositivos de la democracia representa-
tiva. Y también la relación principal entre el poder de los vecinos, defi-
nidos por la proximidad espacial, y el de los ciudadanos, como destina-
tarios universales de la institucionalidad estatal moderna.

1.2. Nuestra implicación

Lo haremos describiendo el proceso desde una posición de riesgo


epistemológico no muy recurrente en el perfil del trabajo antropológico:
la facilitación organizacional. La definimos como el rol metodológico
de promover con rigor disciplinar la reflexividad sobre las propias prác-
ticas en actores institucionales, con el propósito de colaborar con el avan-
ce de procesos de gestión organizacional. El rol metodológico consiste
en aportar a los actores formas de enfocar la realidad, registrarla y ope-
rar con ella, sin sustituirlos en esta tarea, sino facilitando que sean ellos

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

los que la lleven a cabo, de acuerdo con sus reflexiones y decisiones, a


partir de la problematización de su propio sistema de creencias. Por eso,
el rigor disciplinar radica en la transferencia en acto de herramientas
analíticas propias del enfoque antropológico, como la construcción de
la otredad, el análisis situacional de actores y racionalidades, tanto de
los destinatarios (actores) de la gestión cuanto de los mismos
destinadores (agentes). Y este análisis es promovido a partir de la obs-
taculización de lo Vale que llamamos “núcleos rígidos de creencias”2
propios y ajenos, a partir de tácticas sistemáticas con las cuales opera el
facilitador y, a su vez, transfiere en la misma operación, mostrando o
promoviendo la evaluación de los efectos del proceso de reflexividad a
partir de objetivos determinados.
Esta actividad la hemos venido desarrollando en numerosas ocasio-
nes y están plasmadas en diversos trabajos,3 la mayoría de las cuales han
sido y son producto de demandas concretas institucionales, como la que
narraremos. Pero la primera tarea del propio enfoque consiste en
problematizar esa misma demanda y sobre todo en problematizar el pro-
pio rol que se le asigna en esa demanda al antropólogo como “consul-
tor” y no como facilitador, ya que – como dijimos – esta función no es
parte del perfil clásico. Por ejemplo, para el caso del PUA, el pedido
inicial fue que brindáramos una serie de “recomendaciones” de cómo
desarrollar una participación efectiva, ya que el proceso anterior había
“fracasado” (al decir de los actores), debido a presentaciones ante la jus-
ticia de parte de diversas ONGs que revindicaban que la participación
no había resultado “verdadera”, lo que llevó a que la Legislatura de la
ciudad no impulsara la promulgación del propio Plan como Ley, tal
como establecía la Constitución de la Ciudad Autónoma de Buenos
Aires. En rigor, de acuerdo con una primera proyección de la “negati-
vidad” (Lourau, 1988) del propio pedido, lo que hicimos fue partir de

- 193 -
ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

que se nos pedía una especie de “recetario”, primera asunción (la propia
demanda) que problematizamos aplicando las mismas técnicas de obs-
taculización del enfoque etnometodológico de Harold Garfinkel (2006).
Pero, a la vez, debimos problematizar nuestra misma posición como
registradores de campo implicados, en un proceso que nos incluía pro-
tagónicamente, si bien con el rol de colaborar externamente. Fronteras
difusas en las representaciones de los agentes, que en ocasiones notaban
con nitidez nuestra externalidad y en otras no dejaban de vernos o in-
tentaban colocarnos como parte de la línea ejecutoria del proceso
participativo y no como facilitadores de lo que ellos debían ejecutar.
No nos detendremos acá en mostrar este complejo entramado4 pues el
objetivo del trabajo es otro, pero debe constar como parte de las caucio-
nes epistemológicas a tener en cuenta, que lógicamente condicionaron
nuestro registro etnográfico.

1.3. El contexto

El proceso se inicia con la reforma constitucional que autonomiza a la


Ciudad de Buenos Aires (1996), luego de una década y media de reinicio
de la democracia en Argentina. Por Ley se instituye que la ciudad debía
tener un Plan Urbano Ambiental (PUA) que orientara y regulara el de-
sarrollo y la promoción del espacio físico urbano y fuera base de los có-
digos y del sistema de planeamiento. Y esa ley obligaba a realizar un
proceso participativo, que comenzó a implementarse en 1999 y que era
lo que fue frenado cinco años después, cuando este antropólogo fue
convocado. En esos momentos (1999-2004) el gobierno fue ejercido
por corrientes ideológicas que podríamos caracterizar de socialdemócra-
tas, auto-consideradas de “centro-izquierda”, que impulsaron la iniciati-
va de una forma más discursiva que concreta y sostenida. A partir de la
tragedia de Cromañón (donde murieron 194 jóvenes en un concierto)

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

y la destitución del titular del Gobierno (que a su vez ejercía la presi-


dencia del PUA), todo se vio condicionado, mucho más las convocato-
rias a la Participación Ciudadana.
Así y todo, en tres años de trabajo (2005-2007) el sistema de partici-
pación fue convertido en norma y los contenidos del Plan fueron apro-
bados por la Legislatura. Y paradójicamente se lo convirtió en Ley en el
mismo momento que asume el gobierno de la ciudad un inédito parti-
do político de derecha (con Mauricio Macri como Jefe de Gobierno)
que en la práctica fue diluyendo todo el sistema hasta convertirlo en
letra muerta. Uno de los saldos de esta dilución es, sin duda, el convul-
sionado estado en que se encuentra Buenos Aires mientras escribimos
estas líneas, con un gobierno local en cuyo vocabulario no se incluye el
concepto de “ciudadano” y que reivindica con explícita xenofobia una
“ciudad exclusivamente para los vecinos” (en detrimento de migrantes bo-
livianos y paraguayos que conforman mayoritariamente la fuerza de tra-
bajo que construye literalmente la ciudad).
Focalizamos ahora nuestra atención en el objeto de nuestro trabajo.

2. El fenómeno Nimby del imaginario urbano

2.1. Sus características

Un tópico de los imaginarios urbanos5 modernos es el fenómeno por el


cual los vecinos de un barrio o de un área (independientemente de su
clase social, pero más recurrentemente por parte de sectores sociales
medios) se oponen a la instalación – en ese lugar – de servicios, activi-
dades o equipamientos que consideran o bien nocivos desde un punto
de vista ambiental o bien contrarios a la propia identidad de ese territo-
rio. El punto en común es la molestia que expresan ante esas instalacio-

- 195 -
ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

nes que brindan un servicio a una totalidad mayor (la ciudad o una re-
gión) que la que ellos defienden o referencian para oponerse. Depósitos
de residuos sólidos, cuarteles de bomberos, cementerios, estaciones de
transporte, plantas de energía, líneas de alta tensión, antenas de telefo-
nía móvil, depósitos o almacenes, centros de atención sanitaria, escue-
las, destacamentos policiales, son algunas de las instalaciones que se esgri-
men como causa de la molestia o directamente se consideran la molestia
en sí. También se manifiesta por el tránsito pesado de camiones o el
trayecto de las líneas de transporte colectivo y mucho más ante el traza-
do de autovías. En general, esto pasa cuando las áreas consolidadas como
residenciales comienzan a reconvertir parte de su morfología territorial
debido a esas instalaciones, mediante el flujo del mercado inmobiliario,
o bien por la acción directa del Estado. Esto es: cuando aparece la posi-
bilidad de un cambio en el paisaje urbano, originado en principio desde
el exterior de la identidad local.
En los últimos años, parte de este fenómeno, o con cierta semejanza,
se ha tornado recurrente en la ciudad de Buenos Aires y su Región
Metropolitana, pero asociado a otros tipos de instalaciones “molestas”.
Por un lado, comercios de gran envergadura (los hipermercados), ferias
callejeras, grandes torres de viviendas en propiedad horizontal o la con-
centración de un único rubro comercial (gastronómico, indumentaria,
por ejemplo), esto es: ligados a la actividad comercial. Por otro lado, la
novedad de la asociación de algunas de estas reacciones con estigmati-
zaciones sociales y discriminación hacia ciertos sectores. Se da en los
casos de centros de rehabilitación de toxicómanos, centros peniten-
ciarios, plantas procesadoras de residuos urbanos (por la presencia de
los cartoneros6) y realojos de población proveniente de asentamientos
“marginales”.
Esto se acrecienta cuando se desarrollan procesos de “participación
ciudadana”, con la intención de completar la efectividad de la planifi-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

cación urbana, como es el caso del Plan Urbano Ambiental de la Ciu-


dad, que hemos venido referenciando en trabajos recientes (Gravano,
2007a; 2007b; 2009).
En ocasiones, lo nuevo en realidad es la movilización de los vecinos
en forma notoria más allá, o bien en contra, de esos procesos de interven-
ción. Nuestras investigaciones demuestran que en muchos barrios ese sen-
timiento de “no me pongan eso aquí” tiene arraigo a partir de lo que en el
imaginario se configura como “invasiones” de este tipo de instalaciones
(que se condensa en la asunción: “antes esto era un verdadero barrio, ahora
el progreso arruinó todo”). Este “progreso” puede estar representado por
ese tipo de edificaciones, instalaciones y cambios “molestos”.7
El mecanismo de rechazo ha sido bautizado en los países anglosajo-
nes con las siglas Nimby (Not In My Back Yard), cuya traducción literal
sería “no en mi patio trasero”, pero que se refleja más con la imagen de
un “no en mi lugar” o lo que algunos rebautizaron en español Span
(Sí, Pero Aquí No). El “sí” representa que se reconoce la necesidad de la
instalación para abastecimiento de una totalidad mayor, ciudadana,
incluida la de uno, pero no el hecho de que se sitúe cerca o vecino al
lugar de uno.
Tal oposición (ciudadanos o vecinos) se coloca en el fondo de la emer-
gencia de estas situaciones, donde el Estado (cuya unidad de alcance
total es la ciudad o la región) aparece como amparador por omisión, o
directamente impulsor de los cambios locales, y quienes se oponen son
considerados como vecinos (de una parte minoritaria de esa totalidad)
“no solidarios” con la vida ciudadana general o con determinados grupos
en particular (para el caso del rechazo de relocalizaciones de residentes
de áreas “marginales”). La crítica desde la planificación y la acción del
Estado es que esos vecinos no se oponen cuando esos servicios, instala-
ciones o cambios urbanos son situados lejos de su entorno próximo.

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

Lo dicho nos permite establecer al menos dos dimensiones que, en


principio, parecerían dicotómicas: una fáctica, que condicionaría el sur-
gimiento del fenómeno reactivo en términos específicamente espacia-
les, para evitar que surja o amortiguarlo, apelando a la instalación de
algunos de estos equipamientos en zonas periféricas (“no en este lugar”),
o directamente colocando la cuestión en forma pragmática en términos
exclusivamente políticos, de disputa y manejo del conflicto.8
La otra es axiológica, ya que consiste en plantearse la disyuntiva en-
tre vecinos o ciudadanos en el plano del “derecho a vivir la ciudad”.
Una ciudad que trasciende ser mero espacio físico, para ser ponderada
por su valor de uso concreto y público, como parte del sistema de servi-
cios y consumos colectivos concentrados, que hacen posible la produc-
ción y reproducción de la vida humana. ¿Cuáles son los derechos de la
ciudad? Precisamente los que se derivan del hecho de vivir en la ciudad:
el derecho a la vivienda, a una vida digna, a “usar” los servicios que la
ciudad brinda o debe brindar para todos, como ámbito público sociali-
zado de la producción humana. Quienes no gocen de esos beneficios
podrán – y de hecho lo vienen haciendo desde hace décadas – reivindi-
carlos y luchar legítimamente por ellos, lo que implica una lucha por el
derecho al uso de la ciudad misma. Esta situación se da, de hecho, por
la relación de dominio que implica la apropiación del excedente urbano,
cuando éste se distribuye por el valor de cambio de esos servicios trans-
formados en mercancía. Es así que la máxima socialización pública de la
producción cultural humana – la ciudad – deviene en apropiación pri-
vada, cuyo indicador es la fragmentación y segregación urbana.9
La señal del incumplimiento de los derechos de los ciudadanos res-
pecto a la ciudad como valor de uso, debido a la apropiación de la ciu-
dad misma como valor de cambio, necesita, para su concepción, de la
premisa del derecho universal del uso del sistema urbano, capaz de satisfa-
cer el cumplimiento de necesidades para posibilitar la vida digna de la

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

universalidad de los ciudadanos y no exclusivamente de los vecinos resi-


dentes en ciertas partes de la ciudad ni de los que tienen acceso al con-
sumo no necesario.10
Y anticipamos una tercera dimensión, en la que se daría un entrecruce
de planos, con reclamos públicos desde intereses privados fuera o den-
tro de procesos participativos institucionales oficiales, junto a la disyun-
tiva entre la solución espacial de hecho, pensando en los vecinos, o el
desafío de la opción por el derecho de los ciudadanos.

2.2. Sus bases ideológicas

Se sitúan aquí nuestras reflexiones e interrogantes principales: ¿Qué


opción tomar ante el desafío de tener que operar desde una gestión
“participativa” respecto al fenómeno Span o Nimby, dentro de los ima-
ginarios urbanos contemporáneos donde éste tiene una extensa vigen-
cia y en relación con la transformación planificada? ¿Cómo se articula
esta problemática con el poder urbano, diseminado o concentrado?
¿Cómo se relaciona con políticas de gobierno o de Estado, intereses de
parte (partidarios o sectoriales) o totales y sobre todo con la invocación
a la efectividad de la gestión?
Es de conocimiento recurrente que el Nimby emerge en los estudios
sociales urbanos de los países capitalistas centrales desde los años seten-
ta del siglo XX (USA, Reino Unido), de lo que da cuenta su propia no-
minación. El hallazgo de su presencia se extendió luego a casi todos los
países occidentales y hoy se ha acrecentado. Desde un enfoque concep-
tual más recurrente (y orientado al ambientalismo) se lo ha asociado, en
principio, a todo rechazo hacia políticas urbano-ambientales, a la vez
que – en forma también recurrente – se lo califica de “obstáculo” para el
desarrollo de éstas: “Las resistencias sociales que se levantan de manera
espontánea frente a determinadas políticas con incidencia territorial re-

- 199 -
ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

presentan una dificultad añadida al desarrollo de las mismas” (Foro La


Ciudad Humanizada, 2008).
También se las concibe como reacciones inherentes a todo proceso
de desarrollo de políticas urbano-ambientales: “El efecto Nimby (...)
estas reservas, poco organizadas en su origen, lejos de suponer una ré-
mora a sortear con mano izquierda, deben asumirse como parte insepa-
rable de dichas políticas (...)” (Fernando Sancho, profesor de Ecología
de la Universidad de Sevilla, ibid.).
Y en otros casos, se lo describe como una manifestación objetiva-
mente sostenida sobre la base de una percepción de riesgos reales: “Con-
siste en la reacción que se produce entre determinados ciudadanos que
se organizan para enfrentarse a los riesgos que supone la instalación en
su entorno inmediato de ciertas actividades o instalaciones que son
percibidas como peligrosas”.11
De acuerdo con estas concepciones, el Nimby sería toda reacción
inherente ante un riesgo real. Pero también se lo concibe como sinóni-
mo de movimiento social urbano, más o menos espontáneo.12 Es una
valoración ambivalente que, en realidad, confunde o caracteriza todo
movimiento de actores urbanos de resistencia como Nimby, a veces apto
para resultar ámbito de acción política partidaria y otras como peligro-
samente a-políticos: “Las plataformas son a la vez una señal del renaci-
miento de la democracia de base y una amenazadora manifestación de
la antipolítica. Y no hay que olvidar que surgen por la incertidumbre
creciente de una sociedad que se siente agredida por riesgos que cada
vez controla menos” (Pérez, 2008).
Se llega así a considerar que la conflictividad desatada por los “movi-
mientos Nimby” se debe, por ejemplo, en opinión del geógrafo catalán
Oriol Nello:

- 200 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

a la importancia creciente del territorio – se da la paradoja de que nunca


ha sido tan fácil mover personas y capitales y eso provoca conflictos, por-
que los territorios compiten por atraerlos –, a las dificultades de las admi-
nistraciones de planificar y explicar las políticas públicas y, sobre todo, al
descrédito de la clase política. (Nello, 2003, apud Pérez, 2008)

Son movimientos “locales, defensivos, que suelen ser apolíticos e


institucionales, y a los que suele ser difícil convencer una vez que se han
creado” (ibid.).
Respecto a la valoración más común que ve a “los Nimby” en forma
negativa, este tipo de opiniones también pondera lo contrario: “Suele
usarse demasiado a la ligera, y tiene connotaciones claramente negati-
vas. Pero algunos de estos movimientos han demostrado que tienen ar-
gumentos sólidos (...) y no es raro que, cuando rechazan algo, planteen
alternativas” (Pérez, 2008).
En síntesis, las resistencias sociales de este tipo no serían manifesta-
ciones egoístas e insolidarias, como podría entenderse en una primera
interpretación, sino la expresión de malestares profundos que no han
encontrado otros cauces para ser manifestados.
La nota más importante de lo que subyace ideológicamente cuando
se usa el concepto es que se lo suponga un fenómeno cuasi-natural, dado,
como una reacción automática general, inherente a todo proceso de ins-
talación o innovación urbana. Algo parecido al latiguillo “resistencia al
cambio” de los procesos de gestión, donde a ese “cambio” se lo presupo-
ne como inevitable y único camino, legitimado a priori, y toda fuerza
que se le oponga queda vista de antemano como inherente y, por lo tan-
to, inevitable, algo que hay que “soportar”. Lo que impide problematizar
el propio “cambio” y la propia “resistencia” y verlos como dos racionali-
dades en pugna.

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

En otros contextos de enunciación (incluso científico) al Nimby se


lo califica en términos de cultura, una especie de “cultura de la resis-
tencia”, o “de la protesta” o incluso “cultura del no”, sobrentendida pa-
radójicamente como “natural”, proveniente de un generalizado y “ló-
gico” “miedo natural ante lo desconocido”, proveniente del “esquema
orgánico de supervivencia”, o hasta como una manifestación reactiva
de “autoprotección”.
No es casual que se hable, en consecuencia, de “síndrome actitudinal
del Nimby”,13 como si su esencia natural y, por lo tanto, inevitable, se
incluyera dentro de la lógica de toda planificación, renovación, innova-
ción o intervención. El biologicismo subyacente a esta conceptualiza-
ción tiene consecuencias importantes en el enfoque con que se encaren
estos procesos.
La confusión entre Nimby y movimientos sociales urbanos, en con-
secuencia, le quita a la primera noción su especificidad (si bien expresa-
da en forma retórica), y al segundo lo cataloga en forma reduccionista
como reacción casi auto-refleja e inevitable y, por lo tanto, despojada de
su carácter político, analizable y capaz de ser comprendido en procesos
de acción institucional. Dos reduccionismos en uno, cuyos efectos se
pueden notar a la hora de conceptualizar e intervenir ante el fenómeno.

2.3. Cuestiones conceptuales del Nimby

2.3.1. ¿Oposición a la actividad o a sus efectos?

Entre las variables explícitas asociadas a la noción de Nimby se destaca


la proximidad vecinal, una de cuyas consecuencias es la confusión entre
actividad y efecto.

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NIMBY is traditionally defined as what happens when people are, generally, in


favor of something, but don’t want the necessary infrastructure built anywhere
they can see it. Bacon is delicious, but you don’t want to live next door to a pig
farm.14

Es rico el jamón, pero que al cerdo lo maten lejos de mi casa, esta sería la
síntesis ilustrativa; la instalación – necesaria para la faena – que esté don-
de no se la pueda ver (ni oler), a pesar de su necesidad y a pesar de estar
a favor de la actividad o del resultado específico de la actividad. Implica
una traslación: de la oposición al efecto de la actividad a la oposición a
la actividad en sí; lo que adquiere importancia en términos de planifica-
ción participativa, como veremos. En realidad, no habría Nimby sin
molestia o representación del efecto nocivo de la actividad, pero el
Nimby implica la oposición a la actividad por la proximidad. Y es el no a
la proximidad lo que transforma al movimiento en un no a la actividad.
Toda actividad humana (y por lo tanto, también la urbana) produce
transformaciones en el entorno total, en el que pueden distinguirse ni-
veles o dimensiones como la natural, la social, la cultural, la ambiental,
etc. Dentro de estas transformaciones se incluyen los efectos “molestos”
(siempre desde una cierta racionalidad, frente a otra), en una dialéctica
donde los contra-efectos, o paliativos, son también actividades que a su
vez tienen su propio impacto.
Cuando un barrio ve reconvertirse la distribución de los usos del sue-
lo, de lo residencial a lo comercial, a la actividad de servicios y aun al
desarrollo de pequeños talleres industriales, debido a la necesidad de sus
grupos familiares de diversificar bocas de ingreso ante la cíclicas crisis de
desempleo, se ven proliferar actividades hasta ese momento no habitua-
les. Y el movimiento reactivo – de parte de quienes no necesitan esas
opciones – suele anclar sus argumentos en la “pérdida de la identidad

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

barrial”, o hasta en la pérdida del valor de cambio de las propiedades,


aunque esas unidades productivas y de servicios (kioscos, remiserías,
comercios de ventana a la calle, pequeños talleres) sean utilizadas tanto
por los mismos vecinos cuanto por un radio urbano de mayor alcance.
Una cosa es que el taller de hilandería produzca una disrupción en la
tranquilidad auditiva real del barrio y otra cosa es que no se puedan
tomar medidas para paliar esa molestia mediante la aplicación de con-
troles tecnológicos que amortigüen esa molestia real. Pero el Nimby se
opone a la actividad, no mide la molestia ni trata de contrarrestarla con
otra actividad regulatoria.
En el Nimby, que implica un rechazo porque está cerca, próximo, veci-
no, se parte de la confusión de la actividad con su efecto, que resulta ser
una molestia a escala local, pero, a la vez, con tácito acuerdo con su
valor de uso ciudadano o general. En el Nimby, como rechazo a que se
instale en este lugar, no se distingue entre causa y efecto y la oposición a
la actividad se manifiesta como una naturalización de su efecto, al que
ni siquiera se considera capaz de ser neutralizado, eliminado o subsana-
do. Los movimientos que sí se ocupan de las condiciones del efecto y su
sanación ya dejan de ser Nimbys, por definición, pues su oposición no se
reduce a impedir o protestar por la proximidad.
Oponerse a los efectos nocivos de una actividad o instalación, debi-
do a la toma de conciencia de esos efectos, no puede entrar dentro de la
categoría de Nimby.
Adquiere importancia, entonces, la cuestión de dónde empieza lo
próximo y dónde termina lo vecino, o más bien cómo emerge la di-
mensión total o ciudadana dentro del sentir local o vecinal. Esta cues-
tión de “límites” trasciende el espacio meramente físico, ya que se sitúa
en una dimensión imaginaria e identitaria.15
Se asocian entonces a la proximidad, como variable disparadora, la
conciencia de lo propio, la identidad local y el grado de homogeneidad

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

de esa representación de la identidad, de manera que se pueda ponderar


su alcance desde la dimensión vecinal hasta la contextual total ciudada-
na; desde el propio y feudal “patio trasero” hasta la región, la nación o la
visión internacionalista global: “yo soy ciudadano del mundo”, expre-
saba un miembro argentino del movimiento No a las papeleras en Uru-
guay, cuando se le señalaba que ese país era una nación soberana.
El ejemplo del movimiento defensor de la “identidad local” y del aire y
agua puros de Gualeguaychú (Provincia de Entre Ríos), basado sobre el
fundamentalismo ecologista y posturas anti-industrialistas, es rotunda-
mente Nimby, pues la queja o rechazo a la actividad (en este caso la
industrial) surge de la locación cercana a nosotros, esgrimiendo el supues-
to efecto nocivo en ese lugar.

2.3.2. Las partes y el todo

Esto recuerda a las discusiones acerca de la teoría de la unidad vecinal


“en manos de sus vecinos”, de la década del cuarenta, sobre la base de la
homogeneidad como valor sustancial y cuyo efecto real fue que se con-
virtió en un “instrumento de segregación de grupos étnicos y económi-
cos” (Isaacs, 1949, p. 5). Un modelo que se mantuvo para las ulteriores
evaluaciones sobre la “satisfacción del lugar” vecinal, que tomaban como
variable no problematizada ese sentimiento local más que a la ciudad
como un todo, y que recibiera la crítica de Jane Jacobs (1964), Henri
Lefebvre (1973) y la más contundente que conocemos, de Matthew
Crenson (1983). Éste estableció que el sentimiento barrial toma al ba-
rrio extenso como referente, más que las idealizadas relaciones de vecin-
dad de la sociología funcionalista (cuyo paradigma es el trabajo de
Suzzane Keller, 1977) y que el poder en el barrio – tal como habían
establecido los pioneros estudios de Robert Park, William F. Whyte o
Eliott Liebov (ver Gravano, 2005a) – estructuraba la participación social

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

e institucional de sus vecinos, reproduciendo la misma desigualdad en


la distribución económica y política.
Y en nuestras propias investigaciones hemos mostrado cómo las iden-
tidades barriales y más precisamente la ideología de lo barrial, asociada
a ciertos valores como el arraigo y la relacionalidad primaria, se invocan
dentro de una arena dialéctica de lucha por los significados y construc-
ción de hegemonía. En este escenario el cambio (el “progreso”) es una
construcción simbólica erigida como lo opuesto a un “antes” que confi-
gura la “época base” de un barrio idealizado y deshistorizado por razo-
nes históricas: por el hecho de que los vecinos no participaron del proce-
so de construcción o ni siquiera de conocimiento (mucho menos en la
proyectación ni en la planificación) de la necesidad de esas edificacio-
nes, instalaciones, vías de transporte y demás servicios. El “aquí no”, en
consecuencia, parecería ser más una impugnación o dispositivo simbó-
lico a esa carencia de participación que una reacción “natural”, como es-
grimen no pocos planificadores, y con lo cual se curan en salud para no
impulsar una participación efectiva.
Ese imaginario del “cambio” resulta de la vivencia de la ajenidad res-
pecto a esos procesos, de un no-control por las propias condiciones de
existencia y producción de esos componentes urbanos (Gravano, 2003).
En síntesis, los emprendimientos inmobiliarios, los equipamientos, las
vías rápidas (autopistas), los comercios no habituales, conforman el
imaginario del “cambio”, hasta del “progreso”, pero vividos como aje-
nos a esas identidades por no haberse protagonizado como propio el
control de las condiciones de existencia, producción y uso de esos com-
ponentes urbanos.
La participación (ya lo hemos tratado16) se convierte en un tópico
necesario para la planificación urbana por los costos y dificultades que a
ésta misma le acarrea no tener en cuenta las representaciones, valores y
expectativas de los actores, si bien esta cuestión ha sido abordada tanto

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por la investigación sobre gustos y pareceres de los destinatarios y su


ulterior aplicación al modo de llevar a cabo las políticas, cuanto por la
realización de procesos participativos institucionales más o menos efec-
tivos. Así lo repiten nuestros referentes:

estas reservas (...) lejos de suponer una rémora a sortear con mano izquier-
da, deben asumirse como parte inseparable de dichas políticas dentro de
una nueva filosofía apoyada explícitamente en la participación pública, en
la toma de decisiones, tal como se recoge en todos los textos que emanan
de la Unión Europea. (Sancho, 2008)

Con lo que se pretende encauzar formalmente (con mano “institu-


cional”, que en cierto sentido es mejor que hablar de mano derecha) los
fenómenos de reacción ante los efectos de la planificación. Y, de acuer-
do con nuestros estudios,17 dos cuestiones adquieren importancia a la
hora de plantearse estos procesos participativos institucionales: la rela-
ción entre representatividad y significatividad, por un lado, y la relación
entre relativismo y profesionalismo, por el otro.
La primera se refiere al entrecruce entre la lógica del sistema demo-
crático representativo, donde los poderes de gestión (entre ellos, el de
planificar) toman como base el voto republicano como aval, y la lógica
propia de los especialistas de la temática, por su experiencia, su conoci-
miento y la disciplina profesional con que abordan la problemática en
cuestión (por ejemplo, urbanistas, arquitectos, economistas, especialis-
tas en servicios específicos). Esto es lo que veremos para nuestro caso en
particular (en el que agregamos al antropólogo urbano).
La segunda representa el desafío de tener en cuenta a los destinata-
rios de la planificación y sus distintas visiones otras (enfoque relativista),
sin perder el hilo y el posicionamiento del saber disciplinar profesional.

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

En ambas cuestiones parece plasmarse la misma necesidad de tras-


cender el restringido abordaje que sólo tenga en cuenta la eficacia (el
logro de objetivos) y la eficiencia (el hacer de acuerdo con ciertas posibi-
lidades de la lógica de costos), hacia la efectividad de las acciones, medi-
ble por la otredad del registro en el destinatario y el contexto que, en
términos de participación, pondera a la vez la práctica participativa en
sí y la imagen que de esa práctica se hacen los actores.
Veamos cómo se despliega este conjunto de variables en nuestro caso.

3. El caso del Foro Participativo Permanente


del Plan Urbano-Ambiental de Buenos Aires

3.1. La facilitación organizacional antropológica desde el Estado

Una de las experiencias donde se condensan estas cuestiones es el caso


de la participación institucional en el Plan Urbano-ambiental (PUA) de
la Ciudad de Buenos Aires (Argentina), que relatamos en trabajos ya
citados. Nuestra actuación consistió en facilitar el proceso de participa-
ción institucional (impuesto por la misma ley que constituyó el Plan),
luego de una etapa frustrada en la que diversas organizaciones interpu-
sieron amparos judiciales invocando que la participación no había re-
sultado “verdadera”.
Trabajando en principio con los técnicos urbanistas designados por
el poder Ejecutivo y el Legislativo, esto es: con mandato dado por el
sistema representativo, pero expertos en la temática específica del Plan
(su significatividad, en nuestras palabras), hubimos de colaborar para la
sistematización de lo que dimos en llamar el Foro Participativo Perma-
nente del PUA (FPP). Sus principios eran, en cuanto al sistema, que las
reuniones debían ser organizadas como talleres sistemáticos, periódicos

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y permanentes, donde se llegara a conclusiones y con obligación, de


parte de los consejeros del Plan, de dar respuesta a todas las cuestiones
que se plantearan dentro de esa significatividad o incumbencia de la te-
mática urbano-ambiental.
En cuanto al modo de gestionar el Foro, el criterio principal fue el
de la facilitación de la circularidad y reflexividad 18 permanentes de to-
dos los actores, acentuando la referenciación con datos y estudios en
contraste con supuestos y prejuicios y con argumentaciones en contras-
te con opiniones y discusiones sin fin. Pero la paradoja consistió en que
para procesar esas tensiones se debía trabajar con las representaciones de
los actores (incluidos sus supuestos, opiniones, gustos, etc., sus imagi-
narios), en un escenario donde cambiaran sus prácticas – su gestión –
respecto al proceso anterior frustrado; y sobre todo, con el propósito de
que mejoraran su gestión los agentes (consejeros) del PUA.
Donde más se hizo presente el Nimby-Span fue en los talleres que se
denominaron territoriales, en los que se dirimirían los destinos urbanos
de algunos sectores de la ciudad, sobre todo respecto al uso del suelo,
ocupaciones y actividades.19
A los mismos concurrían organizaciones vecinales, vecinos en forma
individual, y actores institucionales u organizaciones (públicas o priva-
das) implicadas en las decisiones de planificación y regulación urbanas
particulares de esas áreas. Fueron convocados por problemáticas con-
cretas y en el contexto de las movilizaciones vecinales. Por ejemplo, en
una de las áreas (Barrio Nuevo Escolares 20) la instalación (consolidada
desde dos décadas atrás, en plena dictadura) de una estación de transfe-
rencia de residuos, con circulación barrial de camiones con efectos de
ruidos molestos nocturnos y emanaciones, el auge de grandes construc-
ciones en altura, y la concentración del rubro audiovisual (estudios de
televisión), comercial y gastronómico, como factores de cambio de la
fisonomía, la “calidad de vida” y la identidad del barrio. El equipo téc-

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

nico del Consejo del PUA había elaborado un estudio que se intentaba
exponer a los vecinos. Estaba compuesto por media docena de arquitec-
tos y urbanistas, al igual que los miembros del mismo Consejo, que eran
en total catorce, nombrados en partes iguales por el Poder Ejecutivo del
Gobierno de la Ciudad y por la Legislatura. Tomemos como muestra el
desarrollo del proceso participativo institucional de este territorio barrial.
Antes que comenzara el primer taller, incluso sin presencia de los
consejeros, ya se escuchaban gritos y comentarios en tono de queja des-
de los casos individuales entre los participantes (unos cuarenta adultos
de clase “media”, mujeres y hombres en una misma proporción, que se
presentarían todos como vecinos de la zona en cuestión y algunos como
miembros de organizaciones e instituciones vecinales): (“a mi madre, que
la tengo postrada, la está matando el ruido de las máquinas que destruyen
todo, están masacrando el barrio” (...) “el olor es nauseabundo, no puedo
estar en la sala del frente que se mete todo aunque cierre las ventanas” (...)
“yo (...) somos tres generaciones de mi familia en el barrio, si esto lo viera así
mi abuelo, lloraría”).
El clima se enrarecía, crecía el volumen de las voces, que se cruzaban
sin destinatario frontal, como líneas paralelas; como intentos de escu-
charse sólo a sí mismos, pero a coro, construyendo una serie de supues-
tos compartidos, una plataforma ideológica para la constitución de un
“nosotros”, tácito, homogéneo y – sobre todo – reactivo, bajo la asun-
ción de un “en contra de” capaz no sólo de construir identidad y acuer-
do implícito, sino de tejer una especie de red de autocontención, res-
pecto del enemigo.
La metodología de facilitación organizacional antropológica con que
se coordinaba el Foro requería ciertos pasos, como la presentación de
los participantes, su ubicación en círculo para que se vieran los rostros
cuando hablaran, un frente con afiches en un rotafolio donde el facilita-
dor escribía lo que se expresaba de acuerdo con una agenda previamen-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

te acordada o por lo menos informada, preparada por el Consejo, que


era quien convocaba (en este caso la reunión era en sede del PUA). Tam-
bién se imponía que los consejeros presentes respondieran todos los re-
clamos, consideraciones, preguntas, propuestas, etc. de los participan-
tes, salvo que decidieran posponerlo para tratarlo en particular en el
Seminario del Consejo y luego sí dar las respuestas (obligatoriamente).
El taller tenía establecida una hora de comienzo y otra de final, de ma-
nera que todos pudieran calcular sus tiempos y no se hiciera intermina-
ble, ya que eso en general sólo posibilita que permanezcan hasta el final
unos pocos. Media hora antes de las tres estipuladas, se debían obliga-
damente explicitar “conclusiones” del taller, las que constarían en un
acta, que debía ser firmada por la totalidad de los presentes en ese mo-
mento. Como contenido de esas conclusiones podía constar todo lo que
los presentes consideraran como tales, incluyendo sobre todo los des-
acuerdos y temas que quedaran pendientes.21
Otra de las condiciones de realización del Foro Participativo Perma-
nente era que el Estado (Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires) ga-
rantizara un espacio apropiado, lo suficientemente amplio, con todos
los medios necesarios para que las reuniones fueran cómodas y efecti-
vas. Esto mayormente no se cumplió en sede del Plan, dado el remiso
apoyo dado por el propio Ejecutivo a la iniciativa de la que era respon-
sable. El hecho fue que por razones de inadecuación del espacio y el
clima construido previamente, ya al plantearse las presentaciones una
de las concurrentes se descompensó emocionalmente y tuvo que ser re-
tirada para recomponerse.

3.2. Voces cruzadas: dueños del barrio y de la palabra

Lo importante a destacar es que las formas de expresión y de accionar


de todos los actores dentro del espacio que debía ser participativo impe-

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

dían precisamente que se plantearan posiciones y argumentaciones con


las cuales el debate fuera posible. Los consejeros que habían concurrido
no se habían preparado – como establecía el propio sistema, mediante
la realización del Seminario del FPP, previo y posterior a los talleres –
para afrontar las asunciones, las formas y los contenidos que se plantea-
rían. Por ejemplo, ante un estentóreo “nos están cambiando la identidad
de nuestro barrio”, sin esperar a pedir la palabra, interrumpiendo y con
explícita actitud de suficiencia (por no decir soberbia) académica, un
consejero espetó: “¿Y usted es el dueño del barrio?”, lo que produjo
un abierto y disonante intercambio de inentendibles voces cruzadas.
Otro consejero -que tampoco se había preparado para la ocasión-, pare-
ció saturar la paciencia de los presentes, cuando intercaló con una son-
risa gardeliana: “No les podemos explicar las cosas que hacemos porque no
las entenderían”.
Quien esto escribe – y que actuaba de facilitador del proceso – hubo
de interrumpir el tiroteo verbal con preguntas que apuntaron a la
problematización del conjunto de asunciones:

¿A quién beneficia que preguntemos sobre el “dueño” de un barrio?


¿Cuál es el supuesto? ¿Existe o debería existir precisamente un dueño de
una identidad compartida socialmente? ¿Es posible estar en contra del sen-
timiento que proporciona identificarse con un barrio? El primer consejero
ni se inmutó.
¿Alguien puede generalizar ese sentimiento propio y asignarlo a una totali-
dad de vecinos? ¿No son los propios vecinos los que venden sus propieda-
des para que se instale todo lo que les molesta a los otros y que rompe con
la identidad residencial del barrio? Algunos asintieron.
¿Será el mercado inmobiliario el que determine las identidades barriales,
tan sentidas? ¿El barrio, como parte de la ciudad, debe ser totalmente ho-
mogéneo, igual para todos, o debe contener un grado de diversidad de usos,

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morfología, etc. que permita que su propia identidad no quede congelada


como fuera de la historia de la ciudad misma?

Finalmente, cuando ya el propio tono inquisidor hacia los propios


consejeros había producido por lo menos un silencio necesario para con-
tinuar con el debate:

¿Alguien puede tener todas las respuestas a estas preguntas? ¿Alguien pue-
de suponer que el saber está en estado puro en alguno de los presentes y
que por eso el resto estaría imposibilitado de ese saber?
¿Nos podremos poner de acuerdo en todo esto, planteándolos como dile-
mas o será mejor exponer los desacuerdos, escuchándolos como proble-
mas, un desafío que no va a tener nunca un final definitivo, pues la ciudad
es una permanente re-forma, física e imaginaria? Una de esas voces es la
profesional, la de los técnicos, que con una visión de la ciudad y del barrio,
la pueden poner ahora a consideración de ustedes, esto es: su saber profe-
sional puesto al servicio de los ciudadanos destinatarios, o por lo menos
algunos de esos destinatarios, pues ustedes no son totalmente representati-
vos de la gente del barrio [...].

Este bombardeo a diestra y siniestra produjo, a partir de cierta bus-


cada perplejidad, la anuencia tácita para que se pasara a escuchar el in-
forme técnico preparado por los arquitectos del Consejo, mientras el
propio consejero motivador del bullicio quedaba tan en silencio como
los demás participantes, sin dar señales de haber revisado sus formas de
actuar, pero cambiando de hecho su forma de actuar en ese momento,
que era el objetivo de nuestra intervención.
Se hace necesario aclarar que el rol del facilitador que sostenemos no
es de neutralidad, ni siquiera de imparcialidad y mucho menos de media-
ción, de alguien que se sitúa en el “medio” de una controversia, sino pre-

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

cisamente lo contrario, se mete en el debate, toma partido, y no se aparta


del contexto de significación vigente en el momento de actuar. Pero lo
hace desde una ubicuidad que pretende obstaculizar los posicionamientos
de los actores, con el propósito de producir su propia reflexividad activa.
No importa si el actor cambia su modo de pensar, ni se pretende eso: se
trata de interrumpir la normalidad instaurada por esas mismas reglas tá-
citas que parten de naturalizar posiciones donde lo que está en juego es –
en última instancia – el poder de alocución y de acción. Y el facilitador
no puede producir la ruptura de esa normalidad naturalizada sin situarse
a la vez dentro y fuera de la misma, aún transgrediéndola de hecho.
En el caso narrado, el facilitador actuó – podría aceptarse – con la
misma actitud académica del consejero de marras, con un lenguaje crí-
tico-conceptual y teñido de metodologismo, pero sobre todo, y paradó-
jicamente, para nada “fácil”. Y con una actitud de implícito reclamo afín
con los vecinos. La diferencia principal fue que hizo preguntas provoca-
doras. El silencio que acompañó (y se produjo por) su alocución fue
muy probablemente el producto de ese posicionamiento profesional,
“experto”, técnico, asumido desde una actitud lindante (ex profeso) con
la “provocación”, aunque fuera desde el método y la voz firme: ¿a ver
quién se atreve a seguir gritando y sólo escuchándose a sí mismo? El primer
supuesto latente a imponer desde la facilitación fue: a respetar al facili-
tador. El segundo: que cada uno de los presentes decidiera por sí mismo
no continuar con esa especie de hacinamiento discursivo porque le ser-
vía la interrupción del griterío. En síntesis: al poder autoritario del gri-
terío se le impuso la autoridad del respeto por la hegemonía de la coor-
dinación del taller. Paradójicamente, una facilitación basada sobre la
obstaculización de algunos significados hegemónicos (reactivos), com-
partidos por los presentes, ejercida al mismo tiempo con herramientas
discursivas capaces de construir una hegemonía distinta, desde la asun-
ción de cada parte, esto es: participativa.

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3.3. Algunos resultados

El contenido de los reclamos de los participantes había sido generalista


y abstracto, del tipo: queremos equilibrio en los usos del suelo, preservación
patrimonial en relación con identidades barriales, incentivos para que el
barrio crezca favorablemente, tener en cuenta las necesidades individuales y
colectivas, el impacto ambiental, y a la vez casuísticos y particulares, plan-
teados desde cada caso individual.
El informe técnico (producido por consejeros pero sobre todo por
los técnicos, con intenso trabajo en el terreno) expuesto por una profe-
sional arquitecta con ajustado aplomo, en forma no defensiva, mostran-
do ante cada problema las posiciones posibles y las opciones propuestas
por el Consejo, con datos no abrumantes sino ilustrativos y pertinentes,
sin fundamentaciones abstractas sino posibilitando las inferencias que
esos mismos datos producían en la audiencia. El clima de esta nueva
instancia del debate podría haberse medido en decibeles no sólo físicos,
sino de productos conceptuales y actitudes de trabajo y concentración,
principalmente de quienes más conocían el terreno, los propios veci-
nos, acompañado del silencio conveniente de los consejeros.
El resultado consistió en una serie de líneas de acción acordadas en-
tre vecinos, empresas (sobre todo la planta de transferencia de residuos)
y organismos, incluyendo acciones conjuntas para realizar presentacio-
nes que establecieran regulaciones inexistentes o bien la necesidad de su
modificación. Por ejemplo, la empresa de transferencia de residuos tomó
nota de la ilegalidad de ciertos “descuidos” en las emanaciones y filtra-
ciones de sus camiones y del límite sonoro que traspasaban y propuso
que los vecinos fueran los que auditaran estos efectos a partir de un plan
de neutralización de los mismos, con visitas periódicas a la planta y pre-
sentación de denuncias concretas a las que se obligaban a dar respuestas.
Esto impuso que alguien se preguntara, con dudas ¿por qué no lo hicie-

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

ron antes? Interrogante que quedó respondido de hecho con la certeza


de que el escenario de participación efectiva había producido al menos
ese inicio, sin que fuera garantía de su consecución, pero sí un indicio
de cambio en la gestión del proceso de interpelación a los efectos de la
actividad, trascendiendo la mera oposición a la actividad en sí.
La exposición técnica incluso produjo que algunos consejeros vali-
daran teóricamente, desde la significatividad de su saber (nuestra varia-
ble ya mencionada), las posiciones del Plan que expuestas desde la so-
berbia sólo habían producido reacción de parte de los vecinos y ahora
los colocaba en el pasaje a pensar la totalidad ciudad y no sólo el límite
del “patio trasero” de la asunción Nimby, de vecinos a ciudadanos.
El tecno-centrismo evidenciado tuvo su contrapartida relativista, me-
diante la facilitación, colocando al agente también como alguien con
“su” identidad barrial. Pero en realidad mostró una debilidad de la ges-
tión participativa, pues el consejero lo debería haber planeado táctica-
mente antes, como lo habían hecho otros colegas suyos. Lo que ocurrió
es que se partía del prejuicio del Nimby como si fuera la única asunción
de los actores y, como dijimos antes, no todo es Nimby.
Los vecinos demostraron, por el contrario, tener conocimientos no
sólo empíricos respecto a la realidad – además de sus representaciones
sentimentales y de adhesión identitaria – sino conceptuales, teóricos
respecto al urbanismo y a la distribución de equipamientos riesgosos, y
una prospectiva de opciones (hasta internacionales) que no se agotaban
en el “aquí no”, sino que avanzaban en el aquí sí, pero de una manera
apropiada.
Significatividad y profesionalismo dados por el informe técnico y las
respuestas técnicas, lo que colocó los debates en ese plano y no en el
inefable de las “reivindicaciones sentimentales”. Quiere decir que
el Nimby no es el resultado de una actitud esencial y autocontenida en

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personas u organizaciones de por sí, sino que se construye en el propio


escenario (en este caso, de la participación y el diálogo), y es precisa-
mente la forma de desarrollar éste lo que permitía u obstaculizaba su
emergencia.
En talleres posteriores, se trabajó con una agenda que abrió paso a las
distintas visiones acerca del territorio, con arribo a conclusiones y op-
ciones que superaron el grado de generalidad y reactividad previo, prin-
cipalmente por el acuerdo de no oponerse a priori a la actividad en sí,
sino actuar respecto a la prevención y medición de sus efectos, teniendo
en cuenta también los “positivos” respecto a la visión de otros actores y
de otra relación de totalidad, no sólo la vecinal. Este cambio de postura
no implicó una renuncia a las reivindicaciones identitarias en cuanto al
uso del suelo o a la oposición a la instalación, sino respecto a cómo ac-
tuar esas asunciones, cómo gestionar desde lo propio la participación en
los procesos de elaboración, procesamiento y, en última instancia, de
la planificación.
Los resultados concretos fueron diversos; en algunos casos, los con-
sejeros respondieron en forma positiva ante los reclamos. Por ejemplo,
límites de altura de las construcciones e instalaciones de equipamientos
en ciertas zonificaciones; regulación previa del vació urbano, como una
oportunidad dentro de una visión integral del barrio como proyecto
urbano; posibilidad de “control morfológico” mediante la acción previa
de los concursos de diseño; aplicación o creación de normativas de
insonorización; límites a ciertos rubros comerciales mediante incenti-
vos al desarrollo de componentes ambientalmente más “amigables” (pul-
món de la manzana), directa prohibición en algunas zonas para la cons-
trucción de torres, apuntando a la baja densidad residencial; y acciones
de gestión urbana no propias de las atribuciones del Consejo pero que
podían influir en acciones de gobierno.

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

Pero también quedó contrastada la perspectiva esencialista de los ve-


cinos que consideraban a priori que un habitante de una torre “no es un
verdadero vecino”, sobre la base de la asunción rígida de que la única
residencia digna es el “chalet propio” y el único paisaje barrial válido es
el de “casas bajas”. En el fondo, esto se vio superado en los discursos y
en las líneas de acción, pero no en las representaciones de los actores
(sus imaginarios), pues esto no estaba ni puede estar en cuestión en una
instancia participativa. El vecino podrá seguir pensándolo, pero lo que
se establece en forma explícita es su propio discurso de que “las torres
no son ni buenas ni malas de por sí” y, en términos más teóricos, quedó
fuera de discusión que – como enunció un consejero – “las ciudades tie-
nen tal dinámica de crecimiento que la ciudad como organismo vivo, com-
plejo y en cambio siempre representa un conflicto”.
Y, de última, las conclusiones principales – presentes en las minutas
y actas de los talleres – se correspondían, por boca de algunos actores,
con nuestro convencimiento de que la participación institucional debía
estar al servicio de la transformación y no de la reproducción, y que
reconvertir en forma planificada la ciudad implica un desafío ante ese
conflicto de poderes de fondo, pero que debe afrontarse con visión po-
lítica ciudadana, estudios técnicos y evaluación permanente, mediante
la participación efectiva y pro-activa. Y esto se logra con un escenario
donde se compartan problemáticas y se las traten con rigurosidad de
datos y método analítico y no se expongan dilemas desde la teoría abs-
tracta o asunciones como la del patio trasero.22
Significatividad de la incumbencia específica (urbano-ambiental en
este caso); representatividad de los poderes democráticos de quienes
designen a sus técnicos con perspectiva profesional, pero incluyendo la
relatividad necesaria para pensar en el destinatario y no sólo en la disci-
plina abstracta. Y el instrumento apto para lograr, con eficacia, eficien-
cia y efectividad el resultado de la planificación: el poder centrado del

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Estado – como parte de la construcción de los intereses de parte pero


debiendo abarcar el todo –, y la “sociedad civil” (vecinos y ciudadanos),23
como parte de la construcción diseminada de poderes, incluidos en la
relación de totalidad histórica en conflicto permanente.

4. Conclusiones y epígonos

Luego de situarnos ante el fenómeno Nimby en cuestión y su abanico


de aproximaciones conceptuales (del movimiento al grupo y a la instala-
ción), señalamos las dimensiones de análisis fácticos (en la que las opcio-
nes resultan meros caminos de neutralización del fenómeno), axiológi-
cos (desde los principios del derecho ciudadano universal) y la disyuntiva
entre ambas, sobre la base de la tensión entre lo local y lo total.
Al detenernos en las bases ideológicas del Nimby, se nos evidenció su
carácter reactivo concebido como inherente y “natural” de todo proceso
de innovación, sobre la base de confundirlo con toda resistencia y todo
movimiento social urbano: un “síndrome actitudinal”, con tufillo biolo-
gicista y homeostático, por lo tanto, supuestamente inevitable e incapaz
de ser abordado desde una perspectiva crítica y problematizadora.
Parte de esa interesada confusión (conciente o no) es correspondiente
con la confusión sobre la actividad y sus efectos, que los Nimbys coloca-
rían en su frente de batalla, cuando en realidad, la variable independien-
te de emergencia del fenómeno no son la actividad y el efecto sino la
proximidad al lugar propio. Con lo cual curamos en salud a aquellos mo-
vimientos que puedan coincidir en reclamos y reivindicaciones afines,
pero que no pueden ser calificados como Nimbys, por sus diferencias de
posición y de modos de acción. Lo afirmamos taxativamente: la mera
oposición a los efectos nocivos reales de una actividad-instalación no
puede ser catalogado de Nimby, salvo que lo que prive sea el “aquí no”.

- 219 -
ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

Resaltamos que la concepción ideológica del Nimby como algo in-


herente produce un vacío de acción y planificación estratégico-táctica
de parte de agentes del Estado y una resignación que, como se vio en el
ejemplo de los talleres territoriales del Foro, terminan en una actitud
donde la soberbia del técnico es un dispositivo para ensanchar la brecha
con el actor participante y a la vez una profecía auto-cumplida: contra el
Nimby no se puede hacer nada.
Y los desafíos cruzados ante las relaciones de totalidad y localidad o
parcialidad en la teoría urbana, hubimos de plantearlos en términos de
entrecruce de dos pares de opuestos en unidad: representatividad vs.
significatividad y profesionalismo vs. relativismo extremo, con eje en la
otredad, dentro de la relación entre planificación que tenga en cuenta
los imaginarios y la participación con facilitación organizacional.
Para ello, la reflexividad, la circularidad, un sistema de participación
permanente con facilitación sobre las prácticas de gestión, desde la pro-
yección del enfoque etnográfico, rico en el análisis de actores en situa-
ción, han sido mostrados en el caso donde se dirimía el contraste entre
la reactividad a la proactividad, en aras de los resultados proyectados,
principalmente la aprobación – mediante un proceso participativo con
poder significativo, no impugnado como el anterior – del Plan Urbano-
ambiental de la Ciudad por la Legislatura (poder representativo) y even-
tualmente puesto luego en marcha por el Ejecutivo.
En el caso del Foro Participativo Permanente del PUA, el punto más
vulnerable desde sus mismos principios fue el de acotar la convocatoria
a una parcialidad de organizaciones y no impulsar la concurrencia de
otras cuya pertinencia resultaba específica, debido a la lógica de no pro-
ducir “ruidos” en un proceso que el mismo Poder Ejecutivo (entonces
de “centro-izquierda”) se ocupaba de no apoyar en forma consecuente.
La escenificación, entonces, del mismo proceso participativo en ciertos
lugares de la ciudad, su acotamiento a ciertos temas, es lo que hizo que

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

no se llegara a colocar el Plan mismo en la agenda de la opinión públi-


ca, más allá de cuando fue utilizado como forma de calmar las manifes-
taciones de vecinos por el Nimby de las torres de determinados barrios,
sin consecuencias positivas, ya que el gobierno terminó negociando con
criterios puramente clientelísticos. Y esto porque los barrios en cuestión
eran los de más cara renta del suelo de la ciudad. Sabido es que cuando
las instalaciones molestan en sectores más pobres, las protestan merman
en aras de una compensación más conveniente.24
Es altamente sintomático cómo el Estado mismo propende a impul-
sar el Nimby como forma autoritaria y elitista de movilización urbana:
el gobierno actual de derecha en Buenos Aires (gestión Macri) está re-
gulando que toda innovación de uno de los barrios de “clase alta” deba
ser consultada previamente con los “vecinos”, representados por su So-
ciedad de Fomento, lo que implica de hecho echar por tierra con el pro-
ceso participativo del Plan que tenía como unidad de visión a la ciudad
y convalidar la opinión de los vecinos más influyentes como la “repre-
sentativa del barrio”, en una contradicción con la relación entre represen-
tatividad y significatividad ya señaladas.
En otro de los ejemplos recientes, la negociación directa con los ve-
cinos de una avenida de otro barrio de clase “alta” tradicional ha fortale-
cido la idea de un “gobierno para los vecinos”, pero – como hemos se-
ñalado – estos vecinos y no la totalidad. Y los episodios de mayor
notoriedad, a fines de 2010, con la usurpación de terrenos públicos por
parte de habitantes de la propia ciudad, para reclamar por planes de vi-
vienda, fueron catalogados por el propio jefe de gobierno de la ciudad
como parte de la inmigración (de Bolivia y Paraguay) “narcotraficante y
mafiosa”, en contra de “los vecinos de los barrios”, que a voz en cuello
reivindicaban “que les den vivienda, pero en sus países, no acá”.
El Nimby surge por razones históricas. Es una racionalidad produci-
da por el manejo de las relaciones y el modo de gestionar, no como algo

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

inherente. Es el resultado de la acción del Estado y de los aparatos polí-


ticos que, por acción u omisión, producen el vacío de canales de partici-
pación por donde la pro-actividad de todos los actores pueda tener cauce.
En síntesis: el Nimby-Span es generado por el modo de gestionar la ciu-
dad sin participación de los vecinos en tanto ciudadanos.

Notas
1
Doctor en Ciencias Antropológicas, Universidad de Buenos Aires; investigador del
Conicet, profesor titular de Antropología Urbana, Universidad del Centro de la
Prov. de Buenos Aires. E-mail: gravano@ciudad.com.ar.
2
Definimos “núcleo rígido de creencias” como aquellas representaciones que actúan
como prejuicios que se constituyen en obstáculos para el cumplimiento de objeti-
vos, principalmente porque impiden el registro de la otredad (Gravano, 1992).
3
Lo hemos expuesto en nuestros trabajos “Antropología práctica” (1992), “La ima-
ginación antropológica” (1995), “Imaginarios regionales y circularidad en la pla-
nificación” (2006), “Desafíos participativos en la planificación urbano-ambiental:
el aporte antropológico” (2007a), “Claves para la facilitación organizacional...”
(2007b) y “La proyección del enfoque etnográfico hacia la facilitación organiza-
cional en procesos participativos de planificación urbana” (2009).
4
Una muestra anecdótica de esta trama fueron las palabras con que nos describió
nuestra propia acción y función uno de los consejeros del Plan: “si vos nos hubieras
contado cuando te contratamos lo que ibas a hacer, quizá no te hubiéramos contratado,
porque queríamos una receta y vos nos hacés pensar mejor, analizando nuestros supuestos
y no nos decís lo que debemos hacer, sino que promovés que seamos nosotros los que lo
decidamos, pero en forma más efectiva, con un método” (dicho por un urbanista con-
sejero, que en principio se había opuesto a que el trabajo le fuera encargado a un
antropólogo, “porque nos vendrá a estudiar como a indios” y luego se convirtiera en
ferviente partidario de la metodología de facilitación, hasta el extremos de propo-
nerla como parte de todos los procesos participativos del Gobierno de la Ciudad).
5
El concepto amplio de imaginario urbano apunta al sistema de representaciones
que tienen al espacio urbano como referente y lo hemos desarrollado en diversos

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

trabajos de investigación desde hace quince años (Gravano, 2006, 2005a, 2004,
1999a, 1999b, 1996, 1995, 1994) y lo tomamos principalmente del referente Ar-
mando Silva (1992).
6
Recolectores de cartón, de amplia notoriedad en los escenarios urbanos argentinos
a partir sobre todo de la crisis del desempleo 1995-2002 (Schamber & Suárez,
2002).
7
En nuestras investigaciones sobre los imaginarios barriales, lo opuesto al núcleo de
la identidad barrial “auténtica” está compuesto en parte por ese “adelanto”
corporizado – entre otros indicadores – por edificaciones de consumos colectivos
(Gravano, 2003, p. 141).
8
El ejemplo más cercano es el caso de las ciudades medias de la Provincia de Buenos
Aires, adonde se pretende cada tanto llevar la basura de la Ciudad de Buenos Aires
y los intendentes de esas ciudades lo esgrimen como un factor de ingreso y hasta
como un logro para la dinámica económica regional, hasta que la población se
opone (ver Gravano, 2005a; Suárez, 1998).
9
Ver Castells, 1974; Harvey, 1977; Lojkine, 1979; Topalov, 1979; Singer, 1980;
Wacquant, 2007.
10
Las principales ideas en este sentido las volcamos en la conferencia que nos encar-
gó el Instituto Interamericano de Derechos Humanos para un encuentro interna-
cional de Defensores del Pueblo, que titulamos: Ciudad y Derechos Humanos –
Ciudad y Hechos Humanos (Gravano, 2008).
11
Ver: <http://exaps.blogspot.com/2008/06/el-fenmeno-nimby.html>.
12
Vale la pena señalar cómo suele extenderse la nominación misma de Nimby, desde
la señalización de los movimientos sociales reacios a cierta instalación urbana, los
grupos (más o menos espontáneos) que constituyen estos movimientos, y su uso
para referirse a las mismas instalaciones (“existe un gran problema ligado a la eva-
luación de los proyectos de instalación de Nimbys”) (Ver: <http://www.prourbana.cl/
upload/Nimbys.pdf )>.
13
Ver: Alberdi Bidaguren, de la Peña Varona & Ibarra Güell, 2002..
14
Ver: Reviews Boing Boing Gift Guide, 2009: media! (part 2/6) Science More Insight
on Those Leaked Climate Change Emails 39share maggie koerth-baker posted at
5:00 am november 23, 2009 featured • science • business • community • energy •
nimby • renewables • sustainability • wind Rethinking Nimby: Why Wind Power
Could Lead To New Ways of Defining (and Dealing With) Public Naysaying.

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ARIEL GRAVANO . ¿VECINOS O CIUDADANOS?

15
Es lo que tratamos como “delantes” y “detrases” de las ciudades (Gravano, 2004).
16
Ver Gravano, 2009, p. 86.
17
Ver Gravano, 1999a; 2007a; 2007b.
18
En Gravano (2009) nos detenemos en estos conceptos activos, que toman como
base la proyección del enfoque etnográfico. En cuanto a la dinámica de la facili-
tación, incluyó el trabajo con agenda previa, tiempos acotados, técnicas partici-
pativas de taller, análisis de actores y racionalidades y específicamente en la detec-
ción de núcleos de creencias a contrastar con datos y tácticas de obstaculización
(Gravano 1992), propias del enfoque etnometodológico.
19
Esta investigación la desarrollamos entre 2005 y la actualidad y consistió en un
registro empírico de todas las instancias del proceso participativo del PUA, de sus
reuniones internas y de sus escenarios institucionales abiertos, participando inclu-
so de la confección de los documentos públicos del proceso. El contacto directo
implicó a 136 y 327 personas interesadas y convocadas al Foro, y el Consejo más
sus técnicos. Para mayor información sobre el PUA, ver: Velásquez, 2005, Plan
Urbano Ambiental, 2000 y 2007; y http://www.buenosaires.gov.ar/areas/
obr_publicas/copua/?menu_id=13769. Para una perspectiva general de la ciudad,
ver: Cerrutti & Grimson, 2005; Gorelik, 2004; Leveratto, 2005; y Rodríguez,
2005.
20
El nombre es ficticio. El área en sí está situada en un sector de transición respecto
al centro de la ciudad, con población de sectores medio-bajos y mezcla de usos
residencial, comercial, de equipamientos y servicios diversos.
21
En los trabajos ya citados se expone en detalle el sistema participativo que nos
tocó proponer y llevar a cabo, desde la facilitación organizacional (ver principal-
mente Gravano, 2007a, pp. 11-2).
22
Si bien las minutas y actas de estas reuniones son documentación pública y estu-
vieron (hasta que las quitara el gobierno de Macri) en la Web del PUA y quienes
concurrieron están explicitados en dichos documentos, transcribimos aquí las eva-
luaciones de estos talleres por los concurrentes: “caos valioso – orden=fascismo;
nos pudimos expresar; reunión interesante, que tenga continuidad; algo más que
interesante: que sigan con esta propuesta interactiva; interesante; idea excelente
siempre y cuando se haga con toda la ciudad; bien el trabajo del equipo técnico;
positivo participar, que nos tengan en cuenta; muy positiva; que nuestra opinión
sea vinculante; positivo poder participar; Satisfactorio; me gustaría que tenga con-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

tinuidad; me gustaría otra convocatoria para abordar la presencia de los cartoneros;


La participación de varios vecinos de la zona dejó evidencia de su compromiso y
conocimiento de las distintas trasformaciones del barrio; esta situación me resultó
de gran riqueza y merecería rescatarse; Sería de mayor dinamismo recibir una or-
den del día, al sólo efecto de poder tener posibilidades de estar en condiciones de
opinar con mayor énfasis sobre temas puntuales y no un a dónde salgo; Creo que
fue una reunión positiva; los temas se discutieron con nivel y buscando alternati-
vas y soluciones; fue en lo personal un buen principio que espero continúe hasta
llegar a un buen final; gracias por dejarnos participar; Primera experiencia puede
ser positiva; se necesita conseguir práctica personal en este método, La reunión es
muy positiva; creo que se demoró excesivamente en el tema de la basura, lo cual
quitó importancia al tema que nos reunió; para la próxima es importante contro-
lar los tiempos y los temas con cierta fuerza; Me sentí totalmente cómoda, con
gente deseosa de compartir proyectos; gracias por invitarnos a estas reuniones;
Se trató de un ámbito de participación y debate en un clima de respeto y enten-
dimiento; bien manejado y con respeto del tiempo; Reunión organizada, buen
clima, exagerado tratamiento de un tema particular (CEAMSE), nivel de propues-
tas razonables”.
23
Vale la pena destacar que esto va más allá de las definiciones taxativas que poda-
mos encontrar, como por ejemplo en el Distrito Federal de México, para el cual
son habitantes las personas que residan en su territorio; se consideran vecinos a los
habitantes que residan por más de seis meses y son ciudadanos los mexicanos veci-
nos. Para el proceso del PUA establecimos que podían participar todos los ciuda-
danos, independientemente de su nacionalidad, lugar de habitación, etc. porque
Buenos Aires es recorrida, producida, habitada y consumida por una cantidad
mucho mayor de quienes duermen (variable de la residencia) en ella.
24
Está el caso de la ecuación pobreza = instalación molesta (y supuestamente el con-
siguiente Nimby, o Span) como señalan los expertos chilenos (Paredes, 2008, in
<http://www.prourbana.cl/upload/Nimbys.pdf>: Prourbana, op.cit.), para el caso
de algunas comunas pobres de Santiago de Chile, pues allí donde la población es
más necesitada se aceptaría con mayor resignación la compensación monetaria
por la instalación, o bien “exageraría los costos” lo que nos hace pensar que recon-
vertiría los términos del Span hacia un SPAS (“Sí, pero aquí sí”).

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ABSTRACT: In this work a subject of the urban imaginary is being analyzed


and how this subject is placed recurrently in social participation processes
within the urban-environmental planning, the so-called Nimby (not in my
back yard) or YBNH (Yes but not here) that proposes the focus of the discus-
sion about “whose” and “for whom” is the urban and the city: citizens or
neighbours? We show this in a demand from the State to the anthropologist
to collaborate in a process of institutional participation, within an urban-
environmental plan. The ideological foundations of the Nimby are analyzed,
their different approaches, discussion focus, and the need to articulate the
register and the intervention towards the citizen-neighbour participative
power, as a continuous challenge.

KEY-WORDS: Urban imaginary, social participation, neighbours, citizens.

Recebido em julho de 2010. Aceito em junho de 2011.

- 230 -
As flechas perigosas:
notas sobre uma perspectiva indígena
da circulação mercantil de artefatos

Felipe Ferreira Vander Velden

Universidade Federal de São Carlos

RESUMO: Com base em estudos recentes que apontam para as qualidades


agentivas e subjetivas de certos artefatos nas cosmologias indígenas da Ama-
zônia, este artigo busca discutir algumas questões colocadas pela circulação
desses objetos personalizados/agentivizados em contextos não indígenas,
notadamente no mercado de artes e artesanatos indígenas. Aqui, explora-se
a questão dos arcos e flechas dos índios Karitiana (Tupi-Arikém, Rondônia),
artefatos perigosos e imprevisíveis, cuja circulação fora das aldeias demanda
algumas precauções, como a redução de seu tamanho e o uso de materiais
diferenciados em sua confecção. Pretende-se, assim, oferecer algumas notas
acerca de uma perspectiva indígena (Karitiana) dos objetos que circulam em
redes de troca e de comércio não indígenas.

PALAVRAS-CHAVE: Arcos e flechas, artefatos, agência, mercado, Amazô-


nia, índios Karitiana.

“Ninguém deve virar a ponta da faca na


direção de alguém, como se num ataque.
O mero significado simbólico desse ato, a
recordação de uma ameaça belicosa, é de-
sagradável.” (Norbert Elias, 1994, p. 130)
FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS

Introdução

A recente coletânea de artigos sobre “a vida oculta das coisas” (Santos-


Granero, 2009) instiga-nos a abrir a reflexão sobre a importância crucial
dos objetos e artefatos para as cosmologias nativas das terras baixas sul-
americanas. Argumentando que uma ênfase desmedida vem sendo dada
pelos etnólogos destas sociedades aos animais – notadamente a partir
das poderosas sínteses propostas por Eduardo Viveiros de Castro (1996)
e Philippe Descola (1992; 1999) –, os autores do volume defendem uma
abordagem ampliada que integre, na reflexão sobre socialidades,
cosmologias e ontologias ameríndias, o papel dos objetos àqueles – clas-
sicamente abordados – dos animais, das plantas, dos espíritos e de ou-
tros seres sobrenaturais (Santos-Granero, 2009, p. 1). Os artefatos, de-
fendem os autores, devem ser abordados não da perspectiva clássica dos
estudos de cultura material, mas das seminais contribuições de Alfred
Gell (1998), tomados como seres dotados de agência (agency), subjeti-
vidade (subjectivity), intencionalidade (intentionality) ou certos atribu-
tos de pessoalidade (personhood) e possuidores de uma vida social (San-
tos-Granero, 2009, pp. 1-23; e também Lagrou, 2007; 2009).
Venho trabalhando desde 2002 com os Karitiana (Yjxa), povo de lín-
gua Tupi-Arikém cuja população, de aproximadamente 350 indivíduos,
distribui-se por três aldeias no município de Porto Velho, norte do esta-
do de Rondônia (Vander Velden, 2010, pp; 95-107). Nos últimos anos,
meu interesse tem sido majoritariamente os animais – em especial os
animais de criação ou animais familiares – e sua importância na consti-
tuição dos universos sociais e simbólicos indígenas (ibidem). Não obs-
tante, a leitura do livro organizado por Fernando Santos-Granero (2009)
levou-me a reconsiderar alguns dados de campo que se referem a certos
artefatos produzidos – hoje e no passado – pelos Karitiana. Mais do que
isso, instigado pelas sugestões dos autores da obra, fui conduzido a re-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

pensar algumas relações entre objetos e animais que apareciam durante


minhas observações do cotidiano dos Karitiana, mas que ficaram em
segundo plano enquanto desenvolvia minha tese de doutorado (Vander
Velden, 2010). Esses dados que agora me interessam apareciam, ainda,
no diário que mantive durante minha primeira estadia em campo (maio
a agosto de 2003), no qual eu anotava acontecimentos de tom por vezes
anedótico que pontuavam meu relacionamento com os Karitiana e que
nunca julguei que poderiam vir a ter alguma relevância etnográfica ou
teórica. Não tive, na aldeia, aquele momento de “‘revelação’ etnográfica
– na qual coisas imprevistas, ou mesmo previamente inconcebíveis, tor-
nam-se aparentes” – a respeito de certos objetos significativos (Henare,
Holbraad & Wastell, 2007, p. 1 – tradução minha). Tal “revelação” só
veio a acontecer tempos depois.
De fato, algumas dessas histórias que corriam paralelamente aos da-
dos “densos” que eu anotava no meu caderno de campo, propriamente
dito, agora retornam para sugerir – na esteira desse convite para que
levemos seriamente em conta os regimes de objetos (cf. Hugh-Jones,
2009) vigentes entre os povos indígenas nas terras baixas – algumas arti-
culações entre a produção de artefatos nas aldeias e sua circulação por
mercados de arte ou artesanato que extravasam os contextos locais. Tema
decerto já muito estudado pela etnologia americanista (Ribeiro, 1983;
Barbosa, 1999; Price, 2000; Grünewald, 2001), o que pretendo aqui é
discutir o jogo complexo de sentidos que preside a fabricação e a dispo-
nibilização, em circuitos ampliados, de certos artefatos karitiana. Inte-
ressa-me, sobremaneira, entender por que os Karitiana não produzem
arcos e flechas “de verdade” para a venda a consumidores não-índios.
Sugiro que há uma potência perigosa em torno desses “artefatos subje-
tivados” (dotados de artifactual subjectivities, nas palavras de Barcelos
Neto, 2009, p. 128), que torna problemática sua saída das aldeias, além,
inclusive, de estar tornando mais difícil seu uso pelos próprios jovens

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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS

caçadores karitiana. Arcos e flechas karitiana – como as máscaras Waujá


(cf. Barcelos Neto, 2002; 2009) – são criaturas perigosas, que deman-
dam um cuidado e uma vigilância constante no tratamento a eles dis-
pensado. Mas se os Waujá fabricam máscaras sem olhos e bocas para o
grande público, anulando assim seu potencial predatório (Barcelos Neto
2009, p. 148), os Karitiana, cientes da atração que as armas indígenas
exercem sobre os consumidores não-índios (Métraux, 1987, p. 139),
fabricam versões reduzidas de seus arcos e flechas ou, mais propriamen-
te, versões feitas com materiais que imitam – atenuando, assim – aque-
las matérias-primas utilizadas na confecção de arcos e flechas, dessub-
jetivando (de-subjetictivizing) estes objetos realmente eficazes, potentes
e mortais.
Retorno, então, a uma das histórias anedóticas que registrei, na oca-
sião meio despretensiosamente, num dos meus diários de campo no de-
correr de maio e junho de 2003.

1. Como (não) conseguir um arco e flechas karitiana

No ano de 2003, durante minha primeira temporada de campo na al-


deia Kyõwã – aldeia central, a maior e mais antiga aldeia do grupo, lo-
calizada quase no centro da Terra Indígena Karitiana, distando aproxi-
madamente cem quilômetros de Porto Velho, por via terrestre –, pedi a
Francisco Delgado, uma das lideranças locais e dos homens mais idosos
e experientes do grupo, que confeccionasse um arco e algumas flechas
que eu pudesse trazer para casa, pelos quais pagaria um preço a ser com-
binado. Delgado mostrou-se entusiasmado e, logo nos primeiros dias
após minha demanda, já tinha recolhido as ripas de paxiúba e fabricado
o corpo do arco – processo técnico elaborado que acompanhei e foto-
grafei nos fundos de sua residência, em uma tarde quente de maio da-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

quele ano. Pouco depois de concluir esta etapa, Delgado anunciou sua
intenção de procurar na floresta pela envira, entrecasca de árvore em-
pregada na fabricação da corda do arco. Foi aí que nosso, digamos, “de-
sentendimento” teve início.
Uma semana após a preparação da ripa de paxiúba, procurei Delga-
do para saber do andamento do trabalho. Ele me disse que ainda não
conseguira a envira e avisou-me que, antes, sairia à procura de peninhas
de pássaros para colar ao longo do corpo do arco, produzindo um colo-
rido efeito visual que eu certamente apreciaria, além, claro, de aumen-
tar o valor da peça. Eu lhe disse, então, que não queria tal investimento
estético, mas gostaria de “um arco de caça, igual ao que se usava para ca-
çar ‘era tempo’1 [ou seja, no passado recente]”. Como ele parecia não
entender minha solicitação, perguntei-lhe se os arcos de caça (que, a
bem da verdade, eu jamais tinha visto, pois os Karitiana não mais os
empregam para caçar, preferindo espingardas, e os mais jovens hoje mal
sabem utilizá-los) tinham as tais peninhas decorativas, e a resposta foi,
obviamente, que não.
Satisfeito, pensei que Delgado havia compreendido o que eu queria.
Ledo engano, pois na manhã seguinte ele foi me procurar em casa para
avisar que sairia naquele dia para buscar as tais penas para a decoração
do arco. Fiz, então, a mesma advertência do dia anterior: queria um arco
“original, de caça mesmo”, e não uma peça decorativa – e frágil –, da-
quelas que havia para venda aos turistas na loja da sede da Associação do
Povo Indígena Karitiana (Akot Pytim Adnipa – APK) em Porto Velho,
anexa ao prédio da Funai local.
Obviamente, o arco e as flechas que eu queria tinham propósitos
puramente decorativos. Embora eu brincasse com os índios a respeito,
jamais empregaria as armas para caçar; elas seriam destinadas à parede
de minha casa, testemunhos heroicos da passagem por uma aldeia indí-
gena amazônica. No entanto, esta aura (Benjamin, 1996) dependia da

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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS

autenticidade da peça, uma vez que arcos e flechas decorados podiam


ser adquiridos por qualquer pessoa no comércio da Associação; esta au-
tenticidade dependia, daí, não apenas de sua funcionalidade, mas tam-
bém do fato de a peça ter sido obtida na aldeia, e não na cidade, como
podia fazer qualquer um.2
Implicitamente, pois, eu estava desafiando a autenticidade dos arte-
fatos vendidos em Porto Velho, que, embora feitos pelos Karitiana, pa-
reciam emular o artesanato feito por povos indígenas em muitas outras
partes do Brasil: empregando materiais heteróclitos e industrializados,
além de combinações técnicas e estéticas distintas dos objetos de uso
cotidiano (mesmo que não mais utilizados hoje em dia) e, sobretudo,
impróprios ou ineficazes para qualquer uso prático, a não ser a venda
(Fénelon-Costa & Monteiro, 1971; Ribeiro, 1983; Barbosa, 1999;
Gonçalves, 2010). Percebi, então, que a categoria realmente importan-
te ali era não a autenticidade, mas a eficácia (cf. Lagrou, 2010). Isso para
mim – que queria um artefato que de fato pudesse potencialmente fun-
cionar – e também para Delgado Karitiana – para quem era importan-
te, ao contrário, que este objeto não funcionasse de modo adequado.
Delgado nunca me entregou o arco, e sequer chegamos a falar das
flechas. As ripas de paxiúba cuidadosamente esculpidas com facão e
moldadas com habilidade no fogo permaneceram encostadas na parede
da casa do líder Karitiana por várias semanas. Recusei um arco com
peninhas decorativas – iguais àqueles comercializados na cidade –, e ele
recusou-se a produzir para mim um arco “original, tradicional”. Conco-
mitantemente, passei a reconhecer, por entre as tralhas de várias resi-
dências karitiana, algumas flechas aparentemente descartadas; curioso é
que todas elas estavam sem suas pontas perfurantes. Os poucos arcos e
flechas que vi em uso estavam empregados por alguns homens na pesca:
esses arcos têm dimensões reduzidas; em geral, as flechas não são em-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

plumadas e suas pontas são providas de uma fisga, sendo feitas de


paxiúba, osso ou metal; nunca são confeccionadas com taquara, exclusi-
vidade das flechas utilizadas para caça grossa e, antigamente, para a guer-
ra (cf. Vander Velden, no prelo).
Eventos posteriores vieram a elucidar algo da recusa de Delgado em
confeccionar e vender-me um arco e flechas “tradicionais”. Encontrar,
em algumas poucas casas, belíssimos arcos feitos de madeira de ipê (pau
d’arco) e flechas com pontas lanceoladas de taquara, algumas mesmo
ainda sujas de sangue ressecado, levou-me a histórias de caça e guerra,
que ajudaram a compreender que essas armas são criaturas perigosas,
que merecem um tratamento cuidadoso para que sua agentividade – sua
atração pelo sangue, que pode torná-las incontroláveis, indicando a exis-
tência de certa intencionalidade e capacidade de ação – e seus efeitos –
sua eficácia mortal – não se voltem para as vítimas erradas.

2. Flechas-serpentes: veneno, agressividade, sangue

Arcos (ot’ep ou bypan ot’ep) karitiana eram usualmente fabricados com a


madeira da palmeira paxiúba (Socratea exorrhiza, em Karitiana põno),
embora os mais velhos afirmem que as melhores armas eram feitas com
a madeira resistente e maleável do ipê ou pau d’arco (árvores do gênero
Tabebuia), conhecida por sua excelente resistência físico-mecânica e seus
múltiplos usos (Schulze-Hofer & Marchiori, 2008, pp. 38-9).3 Os ar-
cos medem4 cerca de dois metros de comprimento, têm um pequeno
entalhe no ombro destinado a prender a corda e apresentam forma rom-
bo-convexa baixa em corte transversal.5 Arcos são de manuseio difícil,
exigem força e habilidade, e, hoje, a maioria dos jovens karitiana não
sabe manejá-los adequadamente.

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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS

Arcos precisam ser leves (pawako), assim como os homens que os


manuseiam, o que sugere que as características físicas comunicam-se de
pessoa a objeto, e vice-versa: antigamente, contam os Karitiana, a carne
de caça devia ser comida junto com algodão, que é “bem maneirinho,
bem leve”, procedimento destinado a ir “afinando” o arco, tornando-o
leve, de fácil e ágil manuseio. Caçadores leves (isto é, ágeis), arcos leves.
Ademais, os arcos utilizados na caça e na guerra jamais tinham seu cor-
po enfeitado, ao contrário dos arcos feitos para venda, que, além de te-
rem dimensões reduzidas, recebem profusa decoração com penas colo-
ridas e trançados de palha.
Os Karitiana fabrica(va)m três tipos de flechas. As ndapisù, chama-
das “flechas-macho” (por causa da ponta em fisga, “que agarra”), são
aquelas providas de pontas de osso ou metal dispostas de modo a for-
mar uma farpa ou fisga, e por isso apropriadas para a pesca e a caça de
aves e pequenos mamíferos, ditos “coisas moles” (“para matar macaco”):
elas ainda são fabricadas e manuseadas por alguns poucos indivíduos,
sobretudo adolescentes, que se divertem flechando pequenos peixes nos
igarapés da área. As kendopa ou i5okypa6 (lit. “para matar passarinho”)
são feitas com a tala da palha do babaçu sem emplumação e, por serem
de rápida confecção, são apropriadas para caçar pequenas aves encon-
tradas por acaso na floresta. 7 Por fim, há as flechas com pontas
lanceoladas de taquara, as bokore, denominadas “flechas-fêmea” (pois são
lisas, sem fisga), apropriadas para a caça de grande porte – “caça dura” –
e para a guerra. As bokore com pontas de taquara raramente são confec-
cionadas hoje em dia; as flechas destinadas à comercialização costumam
apresentar pontas lanceoladas feitas de outras qualidades de madeira,
em geral moles e de fácil desbaste, que os Karitiana dizem que “não pres-
tam” – isto é, não servem para caçar ou guerrear. Essas flechas de taqua-
ra, que os Karitiana comparam, por sua letalidade, às armas de fogo –
“É como facada, como bala de índio” –, é que nos interessam de perto.8

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

As kendopa e as ndapisù empregadas na pesca não recebem emplu-


mação. As bokore e as ndapisù usadas na caça são emplumadas com tipos
específicos de penas: as prediletas são as de mutum, de arara e de diver-
sas variedades de aves de rapina (que os Karitiana chamam “gavião”: di-
zem que deixam as flechas “duras”. Penas de jacu e de galinha são “fra-
cas”, não prestam para emplumar flechas, que ficariam “moles”: estas,
como as penas de outras aves, “servem para fazer artesanato”, como di-
zem os Karitiana (voltaremos a isso). As mais valorizadas para a emplu-
mação de flechas são as penas do gavião-real (pytpyr)n); contudo, elas
são aplicadas exclusivamente nas bokore. O gavião-real é o maior caça-
dor alado da Amazônia e, para os Karitiana, o grande dono das aves e
dos macacos, animais que habitam o alto – o céu e as copas das árvores
(cf. Vander Velden, 2010, pp. 237-9). Diz-se que a flecha emplumada
com penas de gavião-real (que são longas) “vai reto e voa longe”.
Orgulho dos Karitiana, as flechas de taquara (bokore) não precisam
ser envenenadas: elas já têm veneno, e por isso são invariavelmente mor-
tais para humanos (na guerra) e animais (na caça).9 Não está aqui em
questão discutir as propriedades químicas da taquara.10 Outrossim, a
noção de “veneno” para os Karitiana recobre um conjunto de materiais
e substâncias cujos efeitos se associam à dor física, à eficácia cinegética e
guerreira, bem como à morte: o veneno é aquilo que causa dor (oti).
Estão aqui reunidos, na mesma chave simbólico-interpretativa, além do
veneno (cujas epítomes são o timbó – ting ou topyk – e o sojoty11), as
substâncias de sabor amargo (as plantas conhecidas genericamente como
gopatoma, e glosadas como “remédios”) e de sabor ardido, dito “quente”
(a pimenta, soj). Não tenho condições, aqui, de explorar o sistema em
suas múltiplas conexões e desdobramentos.12 Apenas devo dizer que os
corpos dos homens devem buscar o amargor (pelo consumo de certos
alimentos e “remédios”, e pela evitação de outros), pois assim serão ve-
nenosos e suas flechas se tornarão ainda mais mortais. Além disso, ritos

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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS

de passagem destinados a fazer bons caçadores – e ritos que, em tempos


pretéritos, aconteciam imediatamente antes dos ataques aos inimigos
(cf. Vander Velden, no prelo) – eram realizados para acrescentar amargor
a corpos e flechas. Este amargor (tapo) é a condição de tudo aquilo que
pode causar dor.
As substâncias reunidas sob a categoria do amargo-venenoso fazem
caçadores infalíveis e letais. A pimenta, por exemplo, tem veneno: pode-
se esfregar pimenta em uma espingarda para que ela adquira “chumbo
quente” e, assim, se torne mortal (ao contrário, uma espingarda de
“chumbo frio” não mata os animais atingidos). Antigamente, um ho-
mem que comia muita pimenta tornava suas flechas “quentes” e, por
isso, particularmente mortais. As flechas tornavam-se bypan oti – “fle-
cha (arma) quente, que dói muito” –, o que poderia ser traduzido como
“flecha venenosa”. Contrastavam com as bypan otiip – “flecha que não
dói, não mata”. De modo interessante, esta é a mesma qualificação em-
pregada para diferenciar as cobras: boroja oti (ou boroja hãra5) são as
serpentes (boroja, cobra) venenosas, ao passo que boroja otiip (ou boroja
sara) refere-se às cobras não venenosas. Esta aproximação não é fortuita,
pois o veneno conecta flechas e serpentes: diz-se que as bokore têm “o
sentido da cobra”, isto é, parecem cobras. Por isso é perigoso levar as
flechas de pontas de taquara para o mato: não por acaso, os seres que os
Karitiana mais temem quando excursionando pela floresta são as ser-
pentes, notadamente as picos-de-jaca (boro’pa), que descansam pendu-
radas em galhos, e as jararacas (so5bap), que se ocultam nas folhas mor-
tas pelo chão.
A conexão entre cobras e flechas se explica no mito que narra a ori-
gem das serpentes e de outros animais peçonhentos: embora os Karitiana
denominem esta narrativa de “história das cobras” ou “a origem das co-
bras”, penso que seria mais apropriado intitulá-la “história do veneno”.
Transcrevo a versão que me contou Epitácio Karitiana:13

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

A origem das cobras


Tempo antigamente tinha homem que nenhuma mulher gostava, ficava sem-
pre solitário, sozinho na rede, e mulher só por aí, com outros homens. Aí um
índio falou para ele: “Vamos fazer flecha!”. Aí homem solitário fez taquara
pequenina, igual cabeça de cobra [do tamanho de], bem amolada com den-
te partido de porco do mato. Aí ele falou para companheiro: “Você vai trazer
cheiro [sangue menstrual] de mulher para passar na taquara”. Aí o homem
foi, transou com mulher que estava menstruada e trouxe o cheiro da mulher
na pomba [pênis]. Aí homem e outros homens transaram com muita mulher
menstruada. E tudo que trazia na pomba passava na taquara. Aí homem foi
brincar com macaco [de estimação] da mulher e triscou [tocou, arranhou]
pouquinho macaco com taquara, e macaco morreu na hora. Mulher viu, cho-
rou, porque veneno arrancou cabeça, arrancou braço do macaco, e mulher fa-
lou: “Ah, bicho matou meu macaco!”. Mulher enterrou o macaco, chorando,
chorando. Aí companheiro do homem falou: “Vamos enfiar taquara no chão,
apontada para cima, onde o pessoal vai tomar banho”. Enterrou. Mulher esta-
va fazendo chicha, e vai no rio lavar peneira para peneirar chicha. Correu
para o rio, pisou na taquara, sangue saiu muito do pé dela. Mulher achou que
era bicho que mordeu. Ela ficou mancando, terminou chicha e deu para pesso-
al. Mulher levou chicha para marido, mas não quis chegar perto dele. Marido
pegou a chicha e derramou tudo no chão, com raiva porque ela não fez chicha
lá embaixo da rede dele. Aí mulher deitou na rede, doente. Aí irmã do homem
[a esposa é sobrinha do homem, no casamento avuncular praticado pelos
Karitiana] falou com ele: “Minha filha está doente”. O homem falou: “Vai
falar com outro homem, sua filha não gosta de mim”. A mulher já tem corpo
todo preto, com muita dor. Foram cuidar dela, mas quando levantou braço
dela saiu, arrancou, e arrancou cabeça, perna, tudo, como o macaco. Aí mu-
lher morreu queimando como fogo. O homem foi no mato, e esqueceu taqua-
ra no mato, e daí formou todas as cobras. Depois, homem lembrou: “Ah,
esqueci minha arma no mato”, e foi lá buscar, mas não tinha mais taquara,

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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS

virou muita cobra: jararaca, pico-de-jaca, cobra-cega... Antigamente não ti-


nha muita cobra, só jararaca, que já tem muito tempo; agora tem muito. Por
isso tudo mordida da cobra dói muito. (Epitácio Karitiana – grifos meus)

As serpentes venenosas surgem, então, de uma taquara amolada, es-


quecida na floresta: esta já é, de partida, uma cobra, pois seu tamanho e
formato, conforme frisa o narrador, já são aquele da cabeça de uma ser-
pente. Uma taquara intencionalmente envenenada: insatisfeito, o mari-
do esfrega na ponta de flecha sangue menstrual, que, como todo sangue
(ge) fora do corpo, é dito “venenoso”, e que não pode ser tocado e nem
cheirado (ge opira, “cheiro, fedor de sangue”), sobretudo pelos homens.
Aí também está a origem da dor: da picada das serpentes e dos ferimentos
causados pelas flechas; dor que é calor (a mulher morre “queimando”) e
também decomposição corporal (os corpos do macaco e da mulher são
desmembrados antes da morte), que pode ser associado, como se verá,
ao fato de que as bokore, como se diz, “comem a carne” de suas presas.
É interessante que as bokore sejam chamadas “flechas-fêmea”: embora
pela mediação dos homens – que trazem o “cheiro” do sangue das mu-
lheres em seu pênis –, é uma substância venenosa feminina que acaba
por conferir a letalidade à taquara e, por fim, às cobras.
A variante contada por Valter é diferente, mas conserva os motivos
principais do mito, acrescentando novos elementos significativos para
nossa análise:

A origem das cobras


Diz que Karitiana raptaram criança de outro índio inimigo, e ela cresceu
com Karitiana. Criança chamava Orowoj. Cresceu, um dia foi ajudar com-
panheiro que mulher não gostava [o marido insatisfeito]. Aí índio raptado
falou: “Mata ela”. “Como?” Aí ele pegou e fez taquara [ponta de flecha] bem
apontadinha [afiada], forma de cabeça de cobra, por isso cobra têm cabeça

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

compridinha, bem apontada. Aí ele transou com mulher menstruada e que


teve criança [que acabaram de ter filho], e limpava pinto [pênis] sujo de
sangue com taquara. Primeiro testou taquara com macaco, triscou de leve, e
macaco morreu. Ele botava sangue de mulher na taquara, deixa secar, tenta
de novo, se ficava com pouco veneno, ele botava mais e tentava de novo, até
ficar com muito veneno. Depois botou taquara suja de sangue no caminho de
mulher para buscar água. Mulher triscou na taquara e sentiu muita dor, e
morreu, se pegava [tocasse] no corpo dela, arrebentava. Karitiana usou muito
taquara para matar outro índio inimigo, para guerra. Um dia, Orowoj esque-
ceu taquara no caminho para aldeia do índio inimigo. Já estava longe ele lem-
brou e voltou. Daí ele viu, puxou taquara, já estava transformando em co-
bra, estava duro [?],deu para pegar, mas já tinha muita cobra, muita gente
já estava morrendo. Diz que era tempo todas as cobras do mundo eram vene-
nosas. Daí que índio raptado, Orowoj, diz para pegar mel de abelha, e sentou
sozinho no ~jomby [o banco cerimonial karitiana], mandou todo mundo fi-
car dentro de casa. Ele assoviou, veio um monte de cobra: cobra batia cabeça
no banco e abria a boca, e homem colocava mel na boca delas. Cobra que
recebeu muito mel não ficou mais venenosa. Mas mel foi acabando e cobra
mais venenosa só tomou uma gotinha de mel. Da raspa que caiu quando
Orowoj fez taquara apareceu aranha, caba [marimbondo],formiga, tocan-
deira, formigas de fogo, escorpião, lacraus, por isso tudo isso causa dor até ago-
ra. (Valter Karitiana – grifos meus)

Aqui, o veneno das cobras surge de uma taquara produzida por es-
trangeiros. É um jovem raptado pelos Karitiana que fabrica a ponta de
flecha mortal, como acrescentou Valter: “Antigamente não existia cobra.
Foi outro índio [opok pita, “outro índio”, termo com o qual os Karitiana
se referem aos povos vizinhos, todos inimigos] que fez cobra com taquara
de flecha de guerra, muito venenosa, não pode nem triscar”. Confirma-se,
por outro lado, a associação entre as origens da dor e do veneno, pois

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FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS

todos os seres peçonhentos que vêm causando dor e incômodo aos


Karitiana desde o início dos tempos – aranhas, escorpiões, vespas, la-
craias, formigas, todos “venenosos” – são transformações das raspas des-
prendidas da taquara no momento em que é amolada. Ademais, esta
versão adiciona uma conclusão fundamental, que esclarece a diferença
entre serpentes peçonhentas e não peçonhentas, e aponta para a oposi-
ção entre o amargo-veneno e o doce (mel). Conforme disse Valter, em
outra ocasião:

Cobra que não recebeu remédio [mel] são as mais venenosas: boroja papydna
[lit. “cobra com asas”, jequitiranabóia, uma serpente para os Karitiana] e
boroja’o [lit. “cobra-calango”]. O remédio era boko se e on’se misturados [boko
se e on’se são dois tipos de mel]. Cobra que tomou muito remédio não tem
veneno hoje. Cobra que tomou só gotinha tem pouco veneno. Cobra que não
tomou são mais venenosas.

O mel – a substância doce por excelência entre os Karitiana – anula


o veneno daquelas serpentes que o bebem em maior quantidade; aque-
las para as quais não sobra nada da mistura de méis permaneceram como
o maior perigo para os indivíduos no mato.14 O doce ataca o amargo-
veneno, e por esta razão os homens não devem, até hoje em dia, abusar
de alimentos adocicados – mel, açúcar, mamão, cana –, sob risco de que
suas armas (antes, flechas; atualmente, cartuchos) fiquem “doces” e,
assim, ineficazes, pois as presas feridas não morrerão (cf. Vander Velden,
2008).15
Serpentes – e outros seres venenosos e agressivos – são, na origem,
flechas. É digno de nota que ambos os narradores do mito destacam
que a taquara, na sua fabricação, já tinha “o sentido da cobra”, seu for-
mato emulando aquele dos ofídios, de corpo alongado e cabeça afilada.
Flechas são, portanto, cobras. Veneno e agressividade combinados, falta

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acrescentar o gosto pelo sangue (lembremos que a ponta de flecha foi


envenenada com sangue menstrual e puerperal que, além de femininos,
são sangues que estão fora do corpo), derradeiro atributo mortífero des-
ses artefatos cuja agência letal já se prefigurava quando Orowoj afiou,
“tempo antigamente”, a lâmina de uma taquara.

3. O gosto pelo sangue

Os Karitiana nunca me apontaram precisamente a conexão entre a ori-


gem do veneno da taquara no sangue que jorra das mulheres e o apreço
que as flechas têm pelo sangue. Há, contudo, de se notar que os ho-
mens que tomam contato com o sangue menstrual ou puerperal en-
tram no que os Karitiana chamam de pa’ydna, um estado que se caracte-
riza por absoluta fragilidade e vulnerabilidade da pessoa, tornada como
que predisposta a ferir-se e a morrer: diz-se, da pessoa pa’ydna, que
“branco mata, outro índio mata, pessoa topa com toco de pau, cai de cima
da árvore, cobra pica”, ou “dá doença, cobra pica, pessoa desmaia, se ma-
chuca, corta, toma pancada, formiga morde, aranha pica, branco mata”.
Penso que pa’ydna é a versão karitiana do bayja, que Pierre Clastres
(1995, pp. 21-7) detectou entre os Aché-Guayaki:16 o estado “[d]aquele
que atrai os seres”, no qual penetram os homens que acabam de se tor-
nar pais, colocando-os em “risco mortal” ao chamarem, para eles, a aten-
ção dos jaguares predadores na floresta.
Em certo sentido, então, a crer nos mitos, as flechas bokore estão em
permanente estado pa’ydna. Esfregadas com sangue poluente, elas são
movidas pela atração que exercem sobre os animais, condição, ao fim e
ao cabo, do sucesso dos caçadores: para se ter sucesso na caça, é preciso
que os animais sejam atraídos para a distância do tiro certeiro. Dupla
atração, contudo, pois se as flechas atraem a caça/alimento, os seres apa-

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rentemente mais propensos a se aproximar das flechas são os animais de


peçonha – e, sobretudo, as cobras –, com quem compartilham a origem
comum. Risco para os homens no mato, por isso é tão perigoso levar as
bokore para a floresta: em pa’ydna constante, as flechas matam as presas,
mas também podem matar o caçador – por si mesmas, ou por seus
avatares, as serpentes, formigas, aranhas e outros seres agressivos e vene-
nosos. Banhadas em sangue no início dos tempos, as bokore mantêm
com o fluido vermelho uma nefasta relação de contiguidade.
Dizem os Karitiana que as flechas lanceoladas “comem” o sangue de
suas vítimas: quando elas penetram o animal, “chupam” o sangue, que
por isso jorra “como água”. E que elas precisam ser alimentadas com
sangue, ao contrário das flechas ndapisù (de osso, paxiúba ou metal),
para as quais não se fornece o alimento sanguinolento: elas são associa-
das especialmente à pesca, atividade que não pressupõe derramamento
de sangue. As pontas de taquara têm fome, “fome de sangue”, e é preci-
so, quando elas não estão sendo utilizadas, que sangue seja esfregado
nelas, pois se ficarem famintas, elas apodrecerão (ou seja, morrerão) e
serão transformadas em “cobra, tocandeira, e aparece na casa de pessoa que
guarda flecha: pessoa pensa que está matando tocandeira, mas é flecha trans-
formada”, disse-me Valdomiro.
Sem o sangue que lhes deu veneno, as bokore produzem os seres
peçonhentos, tal qual a taquara esquecida no mato, que, no mito, deu
origem às serpentes e à horda de criaturas venenosas. Por isso, as flechas
“comem” a caça, contendo sua agentivização na forma de seus avatares,
sua morte e transformação em outros seres cujo objetivo é infernizar e
tornar dolorosa e perigosa a vida dos Karitiana. As flechas agem contra
seu perecimento, alimentando-se do sangue que buscam nas suas víti-
mas: quando o caçador acerta seu alvo, ele está certo de nutrir seus se-
dentos artefatos, assim evitando que mais cobras, formigas, vespas, es-
corpiões e aranhas se espalhem pelo mundo.

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Essa agentivização das flechas resta clara na utilização que os Karitiana


faziam delas nos confrontos com índios inimigos no passado. Com efei-
to, antigamente, antes dos ataques, os guerreiros karitiana realizavam
um ritual destinado a tornar os homens “bravos” (pa’ira), eles mesmos
sedentos de sangue – e isso em sentido literal, posto que o que se busca-
va nos opok pita era mesmo sangue. E o buscavam como “pagamento”
(vingança) pela morte de um Karitiana em mãos inimigas, ou como for-
ma de aumentar o estoque de sangue no corpo, que, sugiro, confere vida
e vitalidade à pessoa, retardando desta forma a morte, que é a transfor-
mação completa do sangue corporal em água (cf. Vander Velden, 2007).
Esse ritual era uma “pequena chicha”, uma versão reduzida das “festas
da chicha” (kytop myyj), ainda realizadas atualmente e que se destina-
vam, me parece, a tornar os homens não só “bravos”, mas também leves
e amargos, condições, como vimos, para o bom exercício da caça e tam-
bém da guerra, posto que os atributos exigidos são idênticos: rapidez,
agilidade, atratibilidade, ferocidade (Vander Velden, no prelo).
Mas não apenas os guerreiros precisavam se tornar “bravos” antes da
guerra: também suas flechas deveriam se tornar sedentas de sangue.
Como vimos, os Karitiana dizem até hoje que as flechas com grandes
pontas lanceoladas feitas de taquara “têm veneno”, propriedade intrín-
seca da matéria-prima de sua fabricação que é explicada pelo mito. Mas
seu “veneno” deveria ser aumentado. Contam que novos arcos e flechas
eram fabricados apenas para os ataques. As flechas eram diferentes da-
quelas ordinárias usadas na caça: diz-se que “enfeitava flecha de guerra
diferente, para ficar diferente de flecha de outro índio”. Não obstante, as
pontas de taquara eram as mesmas, bokore, até porque, no pensamento
karitiana, inimigos e animais de presa pareciam ser equacionados (cf.
Vander Velden, no prelo).
Epitácio disse-me que a emplumação não era aparada, e que as penas
eram pintadas de branco; penas de gavião-real eram as prediletas, mas

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empregavam também as de nambu-tuna (pom emo), pois esta ave é con-


siderada “esperta” e “rápida”, e assim suas qualidades são comunicadas
às armas.17 Casca de cipó-imbé (botepapy) era enrolado em volta da
taboca,18 e espinhos de cuandu (porco-espinho) eram utilizados para
enfeitar as flechas (e os cocares) de guerra, porque os espinhos “ferram”
os inimigos, outra magia simpática. Depois de confeccionados, arcos e
flechas eram banhados em chicha para “ficar bêbado”: os artefatos bebi-
am a mesma chicha dos homens para ficarem “bravas” para a guerra.
Não à toa, este ritual que antecedia as agressões era denominado bypan
se’yyp, literalmente “beber o arco/arma”, e destinava-se a “beber a flecha,
para dar chicha para a flecha”. Guerreiros e suas armas, bêbados e seden-
tos de sangue – “bravos”, pa’ira –, seguiam para a guerra.
Logo após a matança dos contrários, os arcos e as flechas que abate-
ram inimigos eram abandonados no local: as flechas “comiam o inimi-
go” atingido, por isso “não pode pegar à toa [para outro uso]”. Diz-se
que a taquara das pontas das flechas “provou sangue de gente”, por isso
era perigoso conservá-las, “dá doença, outro índio mata”. As flechas, que
beberam chicha no ritual anterior aos combates, agora consumiram san-
gue, e por isso elas “endoidaram”. É possível que o sangue inimigo, ab-
sorvido pelos artefatos, tornasse-os por demais “envenenados” e, daí,
muito perigosos mesmo para os Karitiana. Da mesma forma, abandona-
vam, no alto de árvores, os cocares de penas vermelhas envergados pelo
matador: opok pita oky byyk, itayt oko padni ‘om’et (“depois de matar outro
índio, não traz mais cocar de volta”), mas desconheço a razão deste proce-
dimento: talvez os cocares, eles também seriam encharcados demasiada-
mente de sangue inimigo, tornando-se perigosos ou mesmo inúteis.
Penso, contudo, que não é apenas uma prova de sangue que torna as
armas “doidas” e perigosas, mas o fato de terem de matar para, com isso,
experimentarem o repasto sangrento. As flechas, como vimos, alimen-
tam-se de sangue, precisam do líquido vermelho para viver. Por esta ra-

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zão, segundo Antonio Delgado, nos ritos realizados após o homicídio


guerreiro, as flechas eram esfregadas com sangue dos inimigos abatidos
– cujos corpos eram, sempre que possível, levados para as aldeias kari-
tiana, onde também os guerreiros se banhavam no seu sangue – para
“beberem sangue” e, assim, “salvar a gente” –, isto é, para funcionarem
com perfeição, abatendo as presas que alimentavam os Karitiana e os
inimigos que os ameaçavam. Ou seja, as armas deviam beber (“chupar”)
sangue, humano ou não humano, pois esta era a condição de sua sobre-
vivência e de sua eficácia letal. Quando matavam outros índios (opok
pita), contudo, pareciam adquirir um surplus de periculosidade, talvez
por absorverem (“comerem, chuparem”) certa quantidade de sangue
inimigo, outro sangue, e assim “tinham o sangue”. De modo análogo,
os guerreiros homicidas “tinham o sangue” de suas vítimas, necessitan-
do suportar um período liminar marcado por várias ações rituais desti-
nadas a “digerir”, digamos, este excesso de sangue obtido na guerra (so-
bre esses ritos pós-homicídio, ver Vander Velden, no prelo).
Arcos e flechas, portanto, potencializavam sua agentividade no con-
tato com sangue humano: se elas já eram entes algo instáveis antes da
guerra, após matarem para provar sangue humano tornam-se tão peri-
gosas que devem ser abandonadas na floresta, nunca levadas de volta
para as aldeias: cheias de sangue, elas estão “doidas” e, mais do que isso,
estão numa forma extrema de estado pa’ydna, atraindo para si e para seu
portador o infortúnio que caracteriza pessoas que experimentam a con-
junção deletéria com o sangue (“dá doença, outro índio mata”), como
vimos. O mesmo parecia ocorrer com as bordunas (jepyrù), conforme
contam os Karitiana. Essas peças de madeira muito dura e alisada, com
cerca de um metro de comprimento, com ponta afinada e extremidades
amoladas (teriam, também, o “sentido da cobra”?) para os combates, tam-
bém recebiam cobertura de cipó-imbé no cabo e tintura vermelha de
urucum nas lâminas, e, como as flechas, também eram abandonadas no

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local dos ataques bem-sucedidos, quando “matavam índio”. Caso per-


manecessem em poder do guerreiro homicida, elas, ao ficarem velhas e
gastas, provocariam simultaneamente o envelhecimento e a morte de
seu possuidor. Expressão do vínculo entre arma e guerreiro, cheias de
sangue as bordunas, também atraíam para os homens o mal vinculado
ao pa’ydna, a doença – afinamento do sangue e sua conversão em água –
e a morte.19
As flechas karitiana, portanto, não são, a rigor, pessoas. Elas têm,
penso, uma porção agentiva que está prefigurada no mito e que as rela-
ciona a seres peçonhentos, agressivos e perigosos. De certo modo, essa
agentividade permanece reprimida, ainda que sempre presente: as fle-
chas, como um organismo vivo, têm fome e precisam ser alimentadas
(com carne e sangue das presas caçadas pelos homens), senão apodre-
cem e morrem, e, refazendo o percurso contado no mito, transformam-
se nos seres que infestam o mundo e apavoram os Karitiana com suas
picadas mortíferas, seus ferrões deletérios, suas mordidas letais. Esta
porção agentiva é ativada – potencializada – no momento em que elas
tomam contato com sangue humano: enlouquecidas, elas devem ser
abandonadas no local dos ataques, pois arriscam a transferir o pay’dna
para o guerreiro, atraindo sobre ele a doença, a dor e a morte violenta.
O tema das flechas que enlouquecem com sangue humano não é
exclusivo dos Karitiana. Uirá Garcia (2010) encontrou entre os Awá-
Guajá, no oeste do Maranhão, relações semelhantes entre humanos e
suas armas. Segundo o autor, os Guajá “criam” – no mesmo sentido em
que criam xerimbabos – suas flechas, confeccionando-as, alimentando-
as e reparando-as. As flechas guajá, como as karitiana, também se nu-
trem do sangue dos animais que caçam: logo que abatem uma presa, os
Guajá esfregam as flechas na carne sangrenta para que elas comam
(ibidem, p. 8). Se não comerem – e, segundo os Guajá, elas solicitam
alimentos de forma insistente –, as flechas perdem sua eficácia letal, não

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matando mais animais: quebram-se ou não acertam o alvo. Ademais, as


flechas alimentadas com sangue, depois de secas e defumadas sobre
jiraus, são consideradas “envenenadas”. Não obstante, o contato com o
sangue humano é nocivo às flechas. Se provarem deste sangue, elas se
acostumam com ele, passam a apreciá-lo e se tornam extremamente pe-
rigosas para seus donos: quando disparadas, elas desprezam a vítima
animal e se voltam para o caçador guajá atrás de seu sangue. Por esta
razão, quando abatem humanos, as flechas são descartadas no mato
(ibidem, pp. 8-9).
Penso que talvez fosse mais justo dizer que o sangue humano é mais
nocivo aos homens do que às flechas, aqueles à mercê do gosto de san-
gue despertado nestas. Não obstante, a conclusão de Garcia (ibidem,
p. 9) para o caso guajá é inteiramente válida para os Karitiana: “Elas [as
flechas] seriam naturalmente predispostas a gostar do sangue dos hu-
manos, já que foram criadas para matar humanos (e outros animais de
grande porte)”.
Flechas voadoras, que caçam sozinhas, até são uma imagem sedutora
do paraíso para os Tupi-Guarani, a Terra Sem Mal, onde o trabalho é
abolido e a carne é fornecida pelas armas que operam sem a necessidade
do esforço humano: “as flechas alcançam espontaneamente a caça”
(Clastres, 1978, p. 67). Contudo, nos patamares terrenos, a volição des-
ses artefatos deve ser encarada com suspeição, dado seu pendor – defini-
do pela intenção que preside sua fabricação – para o sangue, a carne e a
morte.20 Philippe Descola (2006, p. 212) menciona que a arma de um
Achuar “se alimenta do sangue dos seres que mata”.21 Este seria, pois,
um “tema recorrente na Amazônia” (Garcia, 2010, pp. 8-9).
Não obstante a associação entre flechas e sangue, penso que reduzir
todo o fenômeno a esta relação obscurece, mais do que esclarece, o pro-
blema. De fato, as etnografias nas terras baixas sul-americanas registram
numerosos objetos e artefatos atraídos pelo sangue ou potencialmente

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perigosos aos humanos, e o percurso das associações parece mais tortu-


oso do que a simples paralelização entre sangue e armas, porque estas
são agentes do derramamento daquele. David Guss (1989), por exem-
plo, destaca a associação, para os Yekuana, entre as serpentes e a cestaria,
porque estas carregam os padrões daquelas, associadas à morte e ao ve-
neno. O perigo, aqui, não vem das flechas, mas dos cestos, vinculados
às serpentes, os seres mais temidos pelos Yekuana (ibidem, pp. 105-9).
Nosso foco, portanto, deve estar nas associações, feitas pelas ontologias
ameríndias, entre artefatos e a agressividade, a violência e o perigo, expres-
sos, por exemplo, no veneno, na atração pelo sangue, nos poderes
patogênicos, entre outros – dos quais a coletânea organizada por San-
tos-Granero (2009) traz vários exemplos.

4. Do perigo de se ter flechas na parede

Levar as bokore para a floresta é, então, perigoso: seu gosto por sangue
arrisca a fazê-las incontroláveis, na atração fatal que exercem sobre os ani-
mais de presa. Por esta razão, penso, crianças e jovens não devem mane-
jar arcos grandes e flechas para caça grossa: mais do que forma de treina-
mento, os pequenos utilizam armas reduzidas como uma forma de
precaução, evitando os riscos postos pelo sangue que só mais tarde apren-
derão a administrar. Também por isso, me parece, os arcos e as flechas
produzidos para a venda a turistas e antropólogos são versões reduzidas
das peças eficazes, confeccionadas com materiais impróprios e adornadas
com elementos plásticos inúteis do ponto de vista de um caçador.
Pouco antes de minha saída da aldeia Kyõwã no final de julho de
2003, quando arrumava minha tralha, Valdomiro esteve em casa e viu o
maço de flechas – entre elas, quatro bokore – que eu havia conseguido
com Antonio José e traria para minha casa. Na ocasião, ele observou:

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“Flecha tem que comer, tem que dar sangue. Mesmo se não usar para caçar,
para guerra, precisa dar sangue para taquara. Fura seu dedo, às vezes, e passa
sangue na ponta da flecha, assim, esfrega, senão taquara apodrece, some”.
Já vimos os perigos que envolvem guardar flechas em casa: famintas
de sangue, elas perecem, transformando-se em seres peçonhentos, co-
bras e vários outros. Pior se tiverem provado sangue humano, na guerra,
e não tiverem sido descartadas: neste caso, elas podem atrair perigos ain-
da mais mortais, expondo seu guardião aos riscos do mundo. Mais se-
guro seria, portanto, comprar um arco e algumas flechas na loja da APK
na cidade.
Em uma das minhas últimas visitas aos Karitiana que se hospedam
na Casa do Índio em Porto Velho, ganhei de Antonio Paulo um arco de
pequenas dimensões, decorado com peninhas e palha trançada, e uma
flecha com ponta confeccionada numa madeira mole. Esta teria sido
claramente improvisada, pensei, e os demais Karitiana ali zombaram da
peça: “Não presta”, diziam, examinando sua ponta. Contudo, hoje me
parece que era melhor assim, na perspectiva de Antonio Paulo, como
era melhor, do ponto de vista de Delgado, que eu não tivesse um arco
de caça “original” acompanhado de flechas bokore.
A questão não parece ser, então, que os Karitiana não entendessem
de que forma um instrumento, digamos, de trabalho poderia estar pen-
durado na minha parede como um objeto decorativo. Inicialmente, eu
pensara nisso: que Delgado queria enfeitar o arco porque era para deco-
rar uma casa, e é isso que a maioria dos visitantes e consumidores dos
artefatos karitiana quer, algo bonito, cheio de penas, porque penas,
afinal, são um índice seguro do artesanato indígena (Barbosa, 1999).
Mas eu queria autenticidade, e isso significava eficácia, valor de uso, se
assim posso me expressar: um arco de verdade era aquele destinado, efe-
tivamente, a utilizar na caça ou na guerra. De preferência, eu apreciaria
um que já tivesse sido usado, ou ainda estivesse em uso.

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O que está em jogo, portanto, não é autenticidade das peças – os


Karitiana não duvidam, em momento algum, que seu artesanato seja
autêntico, posto que feito por eles, e penso que esta dúvida tampouco
assola a maioria dos compradores que visita a lojinha da Associação,
exceto, talvez, os antropólogos – mas, como disse, sua eficácia. Para mim,
era importante ter um objeto cuja utilidade remetia ao passado caçador
– e, portanto, original, autêntico – dos Karitiana. Para os índios, por
seu turno, era fundamental garantir que eu não trouxesse para minha
casa armas como cuja agentividade potencial poderia ser perigosa e mes-
mo mortífera. Do ponto de vista dos Karitiana, portanto, o que contava
não era tanto a vontade de embelezar arcos e flechas para aumentar seu
efeito estético, mas tentar garantir minha proteção contra aqueles obje-
tos que seriam guardados por mim sem as devidas precauções.
Deste modo, as penas de galinha doméstica (ou plumas artificiais
adquiridas no comércio local) empregadas nas peças para a comerciali-
zação não atacam a autenticidade das peças, pois isso não está em ques-
tão, afinal, mas a eficácia dos artefatos: penas de galinha, por serem “fra-
cas”, não podem ser empregadas em adornos plumários rituais, nem para
a emplumação de flechas utilizadas para a caça. Todavia não há pro-
blemas em enfeitar cocares para turistas com penas de galinhas, ou em
guarnecer flechas comercializáveis com elas: em verdade, este é um pro-
cedimento consciente, que não tem só a ver com a disponibilidade da
avifauna, com a proibição federal do comércio de peças feitas com par-
tes de animais, ou com facilidades técnicas e estilísticas. Ao contrário, as
penas “fracas”, naturais ou artificiais, são recurso contra o poder e o pe-
rigo dos objetos. Elas adicionam algum exotismo – artefatos com penas
são coisas de índio –, sem colocar o comprador em risco. Isto vale para
outros materiais que mesmo eu, no primeiro momento, julgava inautên-
ticos: o artesanato karitiana é karitiana, feito com quaisquer matérias-

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primas, e mais ainda por serem peças desprovidas de elementos que po-
dem ser agressivos e potencialmente mortais.
Penas de galinha, pontas de madeira mole, trançados de palha para
arcos, todos parecem ser recursos a sinalizar que a transposição de arcos
e flechas de um regime de valor (Appadurai, 2008) para outro não im-
plica necessariamente, e de modo imediato, sua mudança para outro
regime de objetos (Hugh-Jones, 2009). No olhar karitiana, as bokore,
mesmo vendidas ou trocadas com os brancos, guardam sua potência
ameaçadora. Como no caso das máscaras wauja, das quais os olhos são
removidos para a venda (Barcelos Neto, 2009), a passagem dos arcos e
das flechas karitiana das mãos dos caçadores nativos para as paredes dos
consumidores de arte deve se fazer acompanhar por artifícios técnicos
destinados a destruir ou atenuar sua agentividade, suas afecções, seus pe-
rigos potenciais: dessubjetivá-los (de-subjetictivize). Os Karitiana até re-
conhecem que as flechas “originais, de caça mesmo”, são mais belas que
os símiles produzidos para o mercado; mas, se na Amazônia, “o belo é a
fera” (van Velthem, 2003), toda precaução é necessária.

Considerações finais

As pesquisas sobre a “agência” dos objetos materiais podem permitir


reavaliar a circulação de artefatos indígenas por redes comerciais mais
amplas com base numa perspectiva propriamente indígena. Os Karitiana
perguntam-me insistentemente sobre as possibilidades de comerciali-
zação de suas peças em outros centros urbanos, tendo em vista que as
vendas na loja da Associação Indígena em Porto Velho são incipientes.
E eu sempre insisti com eles na necessidade da fabricação de artefatos
cuja originalidade, a “karitianidade”, se posso assim me expressar, pode-

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ria vir a seduzir o público interessado de modo mais eficiente: coisas


que não se pareçam com artesanato de outros povos (Grünewald, 2001),
mas que comuniquem não apenas a sua origem (caso do om’et, peça an-
tigamente empregada pelos Karitiana para achatarem os ossos frontais
do crânio), mas também esmero técnico e perfeição estética que sugi-
ram sua “autenticidade” e “durabilidade” (caso da cerâmica, não mais
fabricada, mas que algumas mulheres mais velhas ainda sabem produ-
zir). Os Karitiana, afinal, nunca demonstraram interesse nessas minhas
fabulações, e desconfio mesmo que não queiram difundir, para contex-
tos externos, esses objetos distintivos.22
Paradoxalmente, nunca estive certo se essas minhas preocupações iam
mesmo ao encontro do gosto médio por artes e artesanatos indígenas;
talvez atendessem a uma expectativa só minha. De todo modo, eu estava
praticando preconceitos há muito superados pela discussão em torno da
arte/artesanato indígena (Barbosa, 1999; Lagrou, 2009). Hoje, contu-
do, estou certo de que determinados artefatos não estão aptos a circular
por outros regimes de objetos – outros contextos – do ponto de vista dos
índios. Ou, ao menos, não devem entrar nesses circuitos mercadoló-
gicos (ou museológicos – ver Gonçalves, 2010, pp. 101-2) com as mes-
mas formas nos quais funcionam nas aldeias indígenas. Este parece ser o
caso das máscaras Wauja, como parece ser, também, o caso de arcos e
flechas karitiana. Além de serem de confecção difícil e demorada, e uma
arte dominada apenas por alguns poucos homens mais velhos hoje em
dia, esses objetos têm uma agentividade – uma agência (agency) potencial
– que os tornam perigosos nas mãos erradas, sem a atenção e os cuida-
dos necessários. Para comercializá-los é preciso, pois, dessubjetivá-los.
A “arte turística” (Graburn, 1976), deste modo, pode ser mais do
que expressão da identidade, da reelaboração cultural e da mimese de
novos materiais, estilos e funções sociais da arte (Barbosa, 1999;
Grünewald 2001; Lagrou, 2009, entre muitos outros): ela pode funcio-

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nar, na perspectiva indígena, como estratégia consciente para conter


ameaças, poderes e perigos intrínsecos a certos objetos.
Em sua análise das formas das bordunas indígenas guianenses na his-
tória, Bray (2001) termina, já nos anos 70 do século XX, com a notícia
de que bordunas de tamanho menor e esculpidas com madeiras mais
leves estavam sendo feitas para a venda a turistas entre os Trio e povos
vizinhos no Suriname. Quando o autor observa que “clubs has been re-
duced a tourist artefact” (ibidem, p. 264), esta “redução”, sugiro, não se
refere apenas a um julgamento de valor estético, mas a uma óbvia redu-
ção dimensional, bem como no potencial agressivo e predatório das
bordunas (lembremos as “bordunas agressivas” dos Xavante), potencial
este que a análise das peças utilizadas em contextos indígenas, nos séculos
anteriores, o autor busca destacar. Reduzir o tamanho é reduzir o peri-
go: é uma forma de “desmembramento”, que visa evitar a irrupção das
“características originais, descontroladas e predatórias” dos artefatos (van
Velthem, 2009, pp. 229-31). O processo de “kitschização” (Fénelon-
Costa & Monteiro, 1971; Grünewald, 2001, pp. 162-6) na manufatura
karitiana tem uma função decisiva: ao distinguir os objetos utilitários
das peças destinadas essencialmente para a venda, anulam-se as perigo-
sas potencialidades agentivas guardadas por certos artefatos, como arcos
e flechas.
Penso, então, que precisa ser matizada a afirmação de Els Lagrou
(2009, p. 66), de que:

[O]s contextos de uso e circulação das peças mudam de forma significativa


quando os objetos e artefatos entram no circuito comercial inter-étnico:
tornam-se emblemas de identidade étnica, peças de museu ou “obras de
arte”. Neste caso, seu modo de agir sobre o mundo muda radicalmente
[...].

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Se esta afirmação vale integralmente para as questões ligadas à ex-


pressão da autoria, da individualidade e da criatividade, talvez um grão
de sal deva ser acrescentado em se tratando dos efeitos ou potências que
alguns desses artefatos podem carregar de um contexto ao outro. As fle-
chas bokore dos Karitiana são entes perigosos demais para deixarem as
aldeias deste povo justamente porque parecem conservar seu “modo de
agir” em qualquer cenário.
Objetos, na Amazônia, não são muitas vezes as coisas inertes ou ina-
nimadas que imaginamos. Apartados dos contextos em que as formas
para seu controle são conhecidas e exercidas, artefatos podem se revelar
perigosos. Assim, as flechas karitiana que decoram a minha parede es-
preitam, silenciosas, adormecidas. Elas não se alimentam há anos, mas
já mataram para provar o gosto do sangue, e sabem que é bom. Como
vimos, a fome pode levá-las à desintegração e à transformação em peri-
gosos seres peçonhentos. Se, contudo, as armas tiveram, em algum mo-
mento do passado, contato com sangue humano, corro um risco ainda
maior. Às vezes me pego imaginando surpreendê-las se movendo,
endoidecidas pela fome, buscando em mim aquilo que fará delas nova-
mente predadoras.

Notas
1
“Era tempo” é a forma com a qual os Karitiana iniciam, em português, narrativas
que se referem a um passado não muito distante, mas cuja memória ainda pertence
a alguns velhos que o vivenciaram ou ouviram contar de seus antecessores. Ele se
opõe ao tempo atual e ao tempo evocado pela expressão “tempo antigamente”, que
remete a um passado não acessível à experiência (vivida ou ouvida) dos vivos; tem-
po “mítico”, dirão alguns.
2
Passei por uma situação semelhante a do caminhoneiro descrito por Marco Anto-
nio Gonçalves (2010, p. 91), que se negava a comprar o arco feito de paxiúba (“bas-

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tante fraca para ser usada como arco”) oferecido por um caçador paresi. Para o
índio, a autenticidade da peça não estava em questão: este era o artesanato paresi
na década de 1980, segundo Gonçalves (pp. 89-90); entretanto, o caminhoneiro
queria um arco “de verdade, um original, aquele que o índio fazia para ele mesmo,
resistente”. A resposta do Paresi foi emblemática: “E pra que você quer um arco de
verdade se você não sabe caçar com ele?”. Este episódio coloca, ainda, a questão da
autenticidade/eficácia de artefatos cujas “versões” tecnicamente funcionais não são
mais fabricadas, e o que se tem são apenas as cópias “decorativas”.
3
Bypan é o nome genérico para armas, inclusive espingardas. Note-se que estou
empregando o verbo no passado porque me refiro aos artefatos feitos e apropriados
para o uso efetivo. Os Karitiana continuam confeccionando arcos e flechas, mas,
tirando aqueles utilizados para a pesca – arcos de menores dimensões –, a maioria
das peças vai para venda aos turistas e interessados e, por esta razão, são intencio-
nalmente diferenciados dos arcos de tempos antigos, como veremos no decorrer
do texto.
4
Aqui, no presente, me baseio em algumas poucas peças ainda existentes.
5
Os termos técnicos em uso aqui e em todo o texto foram extraídos da sistematiza-
ção proposta por Chiara (1987).
6
Na grafia das palavras em língua karitiana, uso a proposta ortográfica de Storto
(1996).
7
Essas flechas eram usualmente confeccionadas por caçadores na floresta, que podi-
am, do mesmo modo, improvisar arcos com forquilhas de madeira e encordoamento
de cipó-titica: estes são denominados tepy e são comparados à “espingarda de pres-
são para matar passarinho”; provavelmente, a eficácia desses arcos e flechas não vai
além de poder abater aves de pequeno porte. As kendopa não são mais confeccio-
nadas, exceto para uso de meninos que se divertem atirando em peixinhos e outros
pequenos animais (“para aprender a caçar e a guerrear”): são denominadas pojo.
8
Outros tipos de flechas são mencionados, como as bypan hyto, com pontas lisas e
compridas de paxiúba, desprovidas de fisga. Contudo, sempre que perguntados, os
Karitiana falam nos três tipos descritos. Provavelmente, estes definem não tanto a
forma das pontas de flecha, mas suas funções: para caça grande (bokore), caça pe-
quena (ndapisù) e passarinhos (kendopa). Desta forma, as bypan hypo seriam classi-
ficadas como ndapisù, já que servem para abater pequenas presas.

- 259 -
FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS

9
Mesmo assim, os Karitiana fazem referência a alguns tipos de veneno empregados
para aumentar a letalidade das flechas de taquara: bypan o’tidimo era um veneno
extraído de um pequeno arbusto encontrado na floresta, o qual tinha a casca raspa-
da e esfregada na ponta da flecha, que se tornava negra. Diz-se que era “veneno de
caça, veneno forte, se trisca [toca, fere] animal ele morre”. Epitácio diz, ainda, que
usavam esfregar o veneno de serpentes nas pontas das bokore, que “fica[vam] muito
venenosa[s]”. O veneno podia ser, ainda, esfregado nas mãos do caçador, deixando
as flechas “duras”.
10
Vilma Chiara (1987, p. 134) menciona autores que fizeram referência à fabrica-
ção de “pontas de flecha de bambu que, em vez de serem envenenadas, são feitas
de bambu venenoso”. Acrescenta, porém, que essas matérias-primas “não foram
identificadas de maneira absoluta”.
11
Sojoty (talvez Dieffembachia spp., conhecida popularmente como “comigo-nin-
guém-pode”) é uma planta utilizada, antigamente, no ritual denominado osiipo,
que se destinava a tornar os jovens bons caçadores: depois que os rapazes ataca-
vam um enorme vespeiro e sofriam múltiplas picadas dos insetos (que têm vene-
no), sumo de sojoty era esfregado na pele machucada, sobretudo nos braços. Di-
zem os Karitiana que a pele descamava, o que produzia um caçador não apenas
amargo (como o próprio sojoty), mas também livre da podridão, cujo cheiro repele
as presas e o faz panema (um dos termos para panema, naam, traduz-se literal-
mente como “podre”). Diz-se, ainda, que os animais “bêbados por causa do vene-
no do sojoty” chegavam bem perto dos caçadores, fazendo fácil seu abate (cf. Vander
Velden, 2004, p. 144-7).
12
Alguns aspectos deste sistema foram por mim abordados em outro trabalho (Van-
der Velden, 2008).
13
As narrativas míticas foram coletadas na língua indígena e traduzidas pelos pró-
prios Karitiana, com o auxílio do antropólogo. Todos os Karitiana são falantes do
português, que empregam no convívio comigo e com outros não-Karitiana; além
disso, a maioria de meus informantes sabe ler e escrever, tanto em português como
em língua karitiana.
14
Notemos que as serpentes podem, como as flechas, ter seu veneno potencializado
quando devoram o sapo-cururu (kyryryt), que os Karitiana afirmam ser uma das
criaturas mais venenosas: o sapo é dito “pimenta das cobras”, pois elas adquirem

- 260 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

seu veneno comendo sapos; logo, serpentes não peçonhentas não se alimentam de
sapos. Note que o veneno, aqui, é novamente associado à pimenta.
15
O mel (doce) se opõe, portanto, ao amargo-veneno, contrariando Lévi-Strauss
(2004, pp. 45-62), que sugere que, no pensamento indígena, passa-se diretamen-
te “do delicioso ao venenoso”. Não obstante, Lévi-Strauss (ibidem) afirma que o
mel e o veneno (de pesca) estão, juntamente com o tabaco, incluídos pelos ame-
ríndios na categoria dos “alimentos”. O consumo de mel é muito raro (eu mesmo
nunca vi mel em Kyõwã), e a aquisição do sabor amargo-venenoso (nos corpos) é
obtida menos pela alimentação que por procedimentos feitos sobre a pele. Assim,
mel e veneno talvez estejam associados de outras formas que não “alimentícias” (e
que não a simples oposição). Lembremos que, no mito narrado por Valter, a mis-
tura de méis que anula a peçonha das cobras é chamada, em português, de “remé-
dio”, termo em geral aplicado á substâncias amargas (gopatoma, as folhas empre-
gadas nos ritos para “amargar” o corpo e, assim, afugentar as doenças. Os Karitiana
não cultivam tabaco.
16
Os dois termos podem ser cognatos: lembremos que as línguas karitiana e o aché-
guayaki pertencem ao tronco Tupi, respectivamente Tupi-Arikém e Tupi-Guarani.
17
Para a guerra, os Karitiana – tanto nas flechas como nos cocares e em outros ador-
nos dos guerreiros, como braçadeiras – podiam usar penas de arara, mutum, pa-
pagaio e curica (periquito). Dizem que essas aves “têm pena boa, [porque] voa lá
no alto e não têm doença, têm tudo saúde”. Não empregavam penas de “bichos do-
entes”: de jacu, pois “jacu tem cabeça doida, e quem usa cocar de jacu fica doido”; de
urubu (não tem sorte na caça, pois come carcaças podres, e por isso o caçador/
guerreiro não teria sorte); de tawotapo (um tipo de gavião – se usar esta pena, o
caçador mata apenas uma caça e depois se torna panema); de pãrãmo (gavião-de-
anta, que se alimenta de carrapatos de anta) e de nambu.
18
Infelizmente, não consegui elucidar a razão desta prática/técnica.
19
Isso talvez explique o costume, difundido por todas as terras baixas da América do
Sul, de se deixar as armas nos locais de combate ou sobre o corpo dos inimigos
tombados. Sobre “bordunas agressivas” entre os Xavante, ver Maybury-Lewis
(1984, pp. 306-10).
20
Exemplo disso são as flechas wayana, que, nos tempos da gênese do mundo, pos-
suíam olhos, índices de seu caráter predatório, característico das “produções caóti-
cas” daqueles momentos de origem (van Velthem, 2000b, p. 77).

- 261 -
FELIPE FERREIRA V ANDER V ELDEN. AS FLECHAS PERIGOSAS

21
A propósito dos Achuar, ver também a discussão acerca das tsentsak, flechinhas
mágicas empregadas pelos xamãs, as quais, embora invisíveis, são “princípios
animados ou autômatos incorpóreos” que precisam “se acostumar” com o corpo
do xamã em que vivem e que podem passar a “apreciar carne humana” e, daí,
desenvolver “uma espécie de malignidade indistinta que as leva a escapar ao con-
trole daquele que a capturou a fim de caçar por conta própria” (Descola, 2006,
pp. 374-87).
22
Eu mesmo nunca vi um om’et. Carlos Frederico Lúcio (1996, p. 68) viu e fotogra-
fou um. Sobre a cerâmica, é possível que considerações sobre a agentividade tam-
bém estejam presentes, uma vez que os cacos cerâmicos quebrados encontrados
na floresta – peças de interesse arqueológico – são, segundo os Karitiana, a última
transformação dos psam’em pyyt, uma das almas-espírito que vagam pelo mato após
a morte da pessoa, da qual são imagem enfraquecida.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

ABSTRACT: Based on recent studies that show the agency and subjective
qualities of certain artifacts in native Amazonia, this article addresses some
issues related to the circulation of these personalized/agentivized objects in
non-Indian contexts, especially in the art’s and craft’s markets. The text ex-
plores the problem of bows and arrows among the Karitiana (Tupi-Arikém,
Rondônia). These artifacts are dangerous and unforeseeable, so their circu-
lation out of the Karitiana’s villages requires some precautions, such as the
reduction of their sizes and the use of different materials for their manufac-
ture. The paper, therefore, offers some notes on an indigenous’ (Karitiana’s)
perspective on the objects circulating through exchange and market net-
works in the non-Indian world.

KEY-WORDS: Bows and arrows, artifacts, agency, market, Amazonia,


Karitiana Indians.

Recebido em outubro de 2010. Aceito em junho de 2011.

- 267 -
Cronologia e conexões culturais na Amazônia:
as sociedades formativas
da região de Santarém – PA*

Denise Maria Cavalcante Gomes

Universidade Federal do Oeste do Pará

RESUMO: Este artigo discute as sociedades formativas da região de San-


tarém – PA por meio da análise de sua cultura material, apontando a exis-
tência de comunidades ceramistas culturalmente distintas, que se desenvol-
veram nesta área desde 3800 a.P. até a emergência das chefias complexas por
volta de 1000 a.D. Os dados sugerem a sucessão de diferentes grupos no
tempo e no espaço, os quais provavelmente contribuíram na constituição de
agrupamentos multiétnicos tardios ocorridos nesta e em outras áreas da Ama-
zônia, conforme tem sido sugerido por outros pesquisadores. Conexões cul-
turais com a área do Rio Trombetas, Amazônia Central e Alto Xingu tam-
bém foram evidenciadas.

PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia de Santarém, Pará, formativo, cronolo-


gias amazônicas, sociedades multiétnicas.

Introdução

A região de Santarém (PA) tem sido vista tradicionalmente como uma


área pontuada por hiatos cronológicos separando as ocupações cera-
mistas pré-coloniais do Arcaico das chefias complexas, que emergem por
volta de 1000 a.D. Neves e associados chamaram a atenção dos pesqui-
DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

sadores para estas lacunas que caracterizam as ocupações ceramistas do


Baixo Amazonas (Lima, Neves & Petersen, 2006, p. 47; Neves, 2006,
p. 48). Estes autores destacaram, por um lado, a distância existente en-
tre as datações de 7.000 anos disponíveis para os grupos produtores de
cerâmica que ocuparam o sambaqui de Taperinha e aquelas associadas
aos sítios com cerâmica Pocó, na área dos rios Trombetas e Nhamundá,
datados cerca de 2000 a.P. Por outro lado, identificaram a sequência da
foz do Amazonas e litoral de Salgado como uma cronologia contínua
desde o Holoceno médio, representada pelos sambaquis com cerâmica
Mina, até o período histórico da conquista, com as cerâmicas das fases
Marajoara, Aruã, Maracá e Mazagão.
Este artigo, ao mesmo tempo em que reconhece como válida a pro-
posição de Neves (2006) no que concerne à existência desses hiatos cro-
nológicos no Baixo Amazonas, apresenta novos dados relativos à ocupa-
ção formativa em Santarém – sociedades correlacionadas a um modo de
vida sedentário e à introdução da agricultura de floresta tropical –, que
possibilitam reduzir tais distâncias originalmente propostas. Além dis-
so, ao diferenciar culturalmente estes complexos, permite perceber a
existência de conexões entre a região de Santarém e outras áreas da Ba-
cia Amazônica, tais como o Rio Trombetas, a Amazônia Central e o Alto
Xingu, evidenciando diferentes dinâmicas populacionais e movimentos
de dispersão dos grupos indígenas pré-coloniais que lá habitaram.

- 270 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

1. As primeiras referências à ocupação formativa


em Santarém

De acordo com os resultados das pesquisas desenvolvidas por Roosevelt


no sambaqui fluvial de Taperinha, nas proximidades de Santarém, bem
como na Caverna da Pedra Pintada, em Monte Alegre, as cerâmicas ali
encontradas foram datadas por volta de 7.000 anos. Em Taperinha, gru-
pos de pescadores e coletores de moluscos fabricaram artefatos utilitários
com formas esféricas contendo antiplástico de conchas, o que implica o
reconhecimento de um modo de vida não agrícola com o emprego des-
sa tecnologia (Roosevelt, 1995, p. 128; 1999a; 2009, p. 161; Roosevelt
et al., p. 1991). Cerâmicas temperadas com areia ou conchas, com
datações na mesma faixa, também foram identificadas entre os caçado-
res coletores da Pedra Pintada, tendo sido denominada de cultura
Paituna (Roosevelt et al., 1996). Partidária da invenção independente
da cerâmica, que reconhece vários centros produtores na América do
Sul, Roosevelt (1995) considera esses dados como parte do mesmo fe-
nômeno ocorrido durante o Holoceno, que explicaria o aparecimento
da cerâmica nos sítios Alaka (5900 a.P. e 4115 a.P.), Mina (5570 a.P. e
4000 a.P.) e outras áreas da Colômbia (6000 a.P.).
Depois deste início, cerâmicas formativas com antiplástico de rocha
triturada foram reconhecidas nos níveis estratigráficos da Caverna da
Pedra Pintada, associadas à cultura Aroxi, datadas entre 3600 e 3200
a.P. (Roosevelt, 1999a; Roosevelt et al., 1996, p. 381). Além disso, nas
escavações realizadas por Roosevelt no sítio do Porto, em Santarém, são
reportadas datações relativas ao período formativo, entre 2900 a.P. e
2270 a.P. (Quinn, 2004, p. 147; Roosevelt, 2009). Entretanto, não existe
uma caracterização tecnológica dessas indústrias formativas menciona-
das, nem uma associação com complexos cerâmicos conhecidos na Ba-
cia Amazônica.

- 271 -
DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

2. As ocupações formativas de Parauá – Santarém

2.1 Paisagens humanizadas

Entre 2001 e 2003, foram realizadas pesquisas numa área de terra firme
localizada a cerca de cem quilômetros ao sul de Santarém, na margem
esquerda do Rio Tapajós, num local que hoje corresponde à comunida-
de de Parauá, situada na Resex Tapajós-Arapiuns (Gomes, 2008). Os
trabalhos arqueológicos tiveram como hipótese o teste dos limites e da
influência política do suposto cacicado Tapajó. Neste sentido, a expec-
tativa era encontrar comunidades satélites associadas à Santarém, que
evidenciassem relações de hierarquia e centralização política, conforme
sugerido por Roosevelt (1987; 1992; 1999b, p. 27).
A abordagem desenvolvida buscou reconstituir a comunidade pretérita
e, desse modo, optou-se pela realização de um levantamento sistemático-
geométrico (Plog, Plog & Wait, 1978; Redman, 1973 e 1975; Schiffer,
Sullivan & Klinger, 1978; Zeidler, 1995), que também aliou procedi-
mentos oportunísticos,1 numa área de dimensões reduzidas, de 36 km2,
embora densamente florestada. Este levantamento foi realizado por meio
da abertura de trinta quilômetros de transects, cujas linhas de seis quilô-
metros foram dispostas em distâncias iguais com cerca de um quilôme-
tro, seguindo uma orientação leste-oeste, partindo da margem do Rio
Tapajós em direção ao interior. Os transects são considerados por autores,
tais como Chartkoff (1978) e Zeidler (1995), como a melhor alternativa
par lidar com problemas de acessibilidade e visibilidade em áreas
florestadas, e ao longo destes foram realizadas sondagens a cada cinquenta
metros, o que fornece um parâmetro da intensidade do levantamento.
Esta alternativa consiste numa estratégia dispendiosa, sendo adequa-
da no contexto amazônico para trabalhos em áreas de dimensões redu-
zidas, não consistindo numa boa opção para extensas áreas florestadas.

- 272 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

As vantagens do levantamento sistemático com a abertura de transects


estão relacionadas a um controle maior das variáveis ambientais e sua
relação com os sítios. Em termos ecológicos, o Tapajós – um rio de águas
claras e sedimentação recente – tem um potencial de obtenção de recur-
sos mais reduzido do que o Amazonas, este último com seus sedimentos
de alta fertilidade de origem andina (Junk & Furch, 1985; Sioli, 1984,
pp. 143-4). Os solos originais aqui encontrados foram classificados como
latossolos amarelo-distróficos e estão relacionados a sedimentos terciários
não consolidados da formação Alter do Chão, sendo eles muito ácidos,
friáveis e de fertilidade reduzida (Projeto RadamBrasil, 1976).
Quanto à vegetação dessa área, é possível reconhecer, por meio do exa-
me de imagens de satélite, diferenças de coloração, cujas áreas mais escu-
ras correspondem à vegetação mais densa, com grandes árvores, e as mais
claras, à floresta secundária ou capoeira, que representa antigas roças e
matas intensamente manejadas com espécies destinadas à alimentação, a
materiais para confecção de implementos, além de medicamentos (Morán,
1990, p. 201). As principais variações de relevo registradas estão associa-
das à planície de inundação, com cotas plano-altiméticas entre vinte e
trinta metros, e as áreas de platô com cotas entre noventa e 120 metros.
Dos dez sítios detectados, nove foram associados à tradição Borda
Incisa da Amazônia (Meggers & Evans, 1961) e apresentaram conside-
rável diversidade, o que permitiu construir hipóteses sobre os padrões
de organização comunitária. Dois deles eram sítios-habitação localiza-
dos às margens do Tapajós. Outro era um acampamento de pesca próxi-
mo a um pequeno igarapé. Sítios associados a antigas áreas de plantio,
com terra de cor bruno-escuro e baixa densidade cerâmica, também fo-
ram identificados. Por fim, quatro sítios-habitação de grande importân-
cia foram localizados no platô, ao redor de um lago de terra firme – o
Lago do Jacaré –, indicando uma preferência das comunidades, no pas-
sado, por este tipo de implantação na paisagem.

- 273 -
DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Figura 1: Mapa da área de pesquisa na região de Santarém (PA).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Contrariamente à prática de levantamento tradicional, que privile-


gia as margens dos grandes rios, o levantamento sistemático possibilitou
uma maior interiorização, revelando a existência de vários sítios locali-
zados a mais de cinco quilômetros de distância do Rio Tapajós. Ao lado
dos sítios-habitação e das áreas de cultivo, com a presença de “terra
mulata”,2 foram claramente percebidas zonas de manejo transformadas
em capoeira, com a presença de indicadores antrópicos, tais como as
concentrações de palmeiras, indicando estratégias de superação das li-
mitações colocadas pelo meio ambiente.
A analogia com as formas de utilização dos espaços comunitários e as
concepções cosmológicas dos ribeirinhos atuais possibilitou vislumbrar
áreas, a exemplo das matas de igapó – ambientes com terrenos brejosos,
periodicamente inundáveis e cobertos por uma vegetação composta por
grandes raízes expostas –, como locais que em tempos pretéritos pode-
riam ter sido utilizados para capturar pequenos peixes durante a estação
das chuvas, além de abrigar seres mitológicos. A paisagem pôde então
ser vista não como simples pano de fundo onde são plotados os sítios
arqueológicos, mas como um espaço social mais amplo e integrado, que
não dissocia os elementos da natureza das antigas aldeias indígenas, nem
daqueles relacionados ao universo mítico-cosmológico dos humanos
(Gomes, 2006a).

2.2. O espaço interno das aldeias e as áreas de cultivo

Os sítios escavados na comunidade de Parauá tiveram seu espaço inter-


no delimitado por meio de sondagens sistematicamente distribuídas em
distâncias iguais. Este procedimento permitiu recuperar a forma das
antigas aldeias, bem como determinar diferentes densidades de material
arqueológico, gerando hipóteses sobre possíveis áreas de atividade.

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Um deles, o sítio Lago do Jacaré 1, situado numa área de platô, dis-


tante cerca de quinhentos metros do lago homônimo, consistiu numa
aldeia de 650 metros de diâmetro, de formato circular, com a uma pra-
ça central. Áreas de baixa densidade cerâmica (com até 291 fragmentos
por m2), sendo estas últimas bastante fragmentadas, foram interpreta-
das como zonas de descarte doméstico distanciadas das habitações.
Numa área de média densidade cerâmica (780 fragmentos por m2), foi
possível evidenciar um solo de habitação, por meio da existência de di-
versas marcas circulares que correspondiam a estacas de sustentação, in-
dicando a existência de uma casa de formato ovalado medindo 7 x 3,5
metros. Neste solo, foram encontrados carvões associados a fogueiras,
sementes de palmeiras, relativamente poucos vestígios cerâmicos, bem
como vestígios faunísticos carbonizados (uma pata de uma paca), pro-
vavelmente consumida pelos habitantes da casa. Já em áreas de grande
densidade cerâmica (2.353 fragmentos por m2), com significativa varia-
bilidade artefatual, estas estavam associadas a lixeiras. A camada de terra
preta argilosa (7.5 YR 2.5/1 black), correspondente às ocupações mais
tardias (datadas por volta de 1020 a.P.), tinha entre trinta e cinquenta
centímetros de espessura máxima. Já as camadas solo de cor bruno
(7.5YR 5/2 brown), abaixo da terra preta, estavam associadas às ocupa-
ções mais antigas (3800 a.P. e 2740 a.P.) cujos dados de densidade cerâ-
mica sugeriram a presença de comunidades semissedentárias.
Os mesmos procedimentos de delimitação foram empregados no
sítio Terra Preta, implantado num terraço fluvial às margens do Rio
Amorim. Este consiste numa aldeia de formato linear, cujos vestígios se
estendiam por cerca de 350 x 300 metros, embora concentrados nas
extremidades laterais do sítio. Áreas mais aplainadas, com as mais baixas
densidades cerâmicas (com até novecentos fragmentos por m2) foram
escavadas. Embora não tenham sido encontradas feições relativas a pi-
sos habitacionais, o resultado das escavações revelou a existência de ves-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

tígios associados ao desenvolvimento de diferentes atividades domésti-


cas no entorno das casas. A camada de terra preta com textura arenosa
variou entre preta (10 YR 2/1 black) e cinza escuro (10 YR 3/1 very dark
gray), com cerca de trinta centímetros de espessura, tendo sido datada
entre 1300 a.P. a 910 a.P. Já na camada intermediária, de cor bruno
acinzentado (10 YR 3/2 very dark grayish brown), foram obtidas datações
entre 2490 a.P. e 1840 a.P.
No que se refere à diferenciação de atividades no sítio Terra Preta, foi
possível distinguir claramente a existência de áreas de descarte situadas
nas proximidades das casas e lixeiras mais densas, nas extremidades do
sítio, com grande variabilidade artefatual (vestígios de confecção cerâ-
mica e restos faunísticos de mamíferos e répteis de grande porte), indi-
cando uma área de descarne de animais. Um contexto funerário bem
definido estava associado a um enterramento secundário, feito numa
vasilha cerâmica utilitária de formato elíptico, com sessenta centímetros
de diâmetro de boca e quarenta litros de capacidade volumétrica, conten-
do restos de um indivíduo cujos ossos estavam calcinados. Uma outra
vasilha cobria esses ossos e, no fundo daquela que fazia as vezes de urna
funerária, havia concreções, que depois de analisadas indicaram a exis-
tência de amido de mandioca, sugerindo uma cerimônia de endocani-
balismo com ingestão das cinzas misturadas à bebida de mandioca e o
enterramento dos ossos cremados remanescentes (Gomes, 2008).
A ocupação de áreas destinadas ao cultivo também pôde ser docu-
mentada por meio dos trabalhos realizados no sítio Zenóbio. Localizado
nas proximidades do Lago do Jacaré, este constitui um sítio de formato
circular, implantado no topo de um morro com vertentes ravinadas,
cujos vestígios de baixa densidade cerâmica (entre 104 e 150 fragmen-
tos por m2) estavam distribuídos numa área de 350 x 300 metros em
solos de terra mulata (10 YR 3/2 very dark grayish brown e 10 YR 3/3
dark brown). Resultantes de queimadas constantes e do manejo de sedi-

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

mentos contendo cinzas e carvões, trazidos de outras áreas, estes solos


são interpretados pelos estudiosos como processos intencionais de in-
crementos agrícolas (Woods & McCann, 1999; Woods, 2003), neste
caso, associados a essas populações formativas. O conjunto destas evi-
dências foi interpretado como produto de ocupações humanas esparsas
ou mesmo acampamentos realizados nessas áreas de cultivo.

2.3. A cerâmica Borda Incisa e sua cronologia

Com o levantamento e escavação dos sítios formativos na região de


Parauá, Santarém (PA), foi possível recuperar amostras cerâmicas asso-
ciadas a diferentes áreas de atividades neles realizadas. A análise de qua-
renta mil fragmentos, especialmente cerca de quatro mil fragmentos
diagnósticos (bases, bordas, apêndices e paredes decoradas), foi feita atra-
vés de uma abordagem que visou caracterizar os padrões de uso da cerâ-
mica por meio de suas propriedades tecnofuncionais, tendo como prin-
cipal objetivo o resgate de práticas sociais de baixa visibilidade
arqueológica. Trabalhou-se com a noção de artefato. Grande ênfase foi
dada às reconstituições de formas e cálculos de volume.
Esta cerâmica foi associada à tradição Borda Incisa da Amazônia, com
base em sua correlação com a cerâmica proveniente de Boim (também
localizada na margem esquerda do Tapajós), feita por Meggers & Evans
(1961). Suas principais características tecnológicas apontam para o pre-
domínio da técnica de confecção por acordelamento, o uso do cauixi
como antiplástico, embora outras associações de elementos tenham sido
identificadas (cauixi e quartzo; cauixi e caco moído; cauixi e cariapé),
estando estas correlacionadas a diferenças funcionais dos artefatos. Em-
bora tenham sido alisadas, poucas vasilhas receberam resinas vegetais
como tratamento de superfície.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

As formas são diversificadas, embora predominem as vasilhas de for-


mato esférico, contorno infletido, borda inclinada interna, lábio arre-
dondado ou plano e base plana. Outra forma frequente são aquelas no
formato de calota esférica, borda inclinada externa e lábio plano ou ar-
redondado. Os lábios planos e arredondados são os que mais ocorrem
na amostra analisada. Já os tipos de bordas mais significativos se refe-
rem às inclinadas internamente, diretas simples e extrovertidas. As bases
parecem constituir um elemento morfológico diagnóstico desta indús-
tria, sendo a plana a mais frequente, ainda que outros tipos de bases
tenham sido registrados, a exemplo daquelas em pedestal, das convexas
e dos pés cônicos. Quanto aos diâmetros de borda, estes, segundo
Sinopoli (1999), não constituem um atributo relevante para a atribui-
ção de funções, enquanto o contorno da forma e o volume representam
informações-chave neste sentido. As capacidades volumétricas mais fre-
quentes, nos sítios Lago do Jacaré 1 e Zenóbio, giraram em torno de
1,1 a 4 litros e 4,2 a 12 litros. No sítio Terra Preta, além de predomina-
rem artefatos relacionados ao primeiro intervalo mencionado, também
foram significativas as vasilhas de pequenas capacidades – entre meio
litro a um litro.
A decoração diagnóstica desse conjunto cerâmico é constituída por
incisões transversais e verticais, colocadas em bandas logo abaixo das
bordas. Mais raramente, o ponteado é empregado na parte interna das
bordas extrovertidas, aparecendo ainda numa única fileira de ponteado,
colocada sobre o lábio das vasilhas. Apêndices zoomorfos modelados são
raros. Quanto à pintura vermelha, esta também ocorre com menos
frequência e cuja tonalidade dominante foi classificada na escala Munsell
como 7.5 YR 5/8 (red).

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Figura 2: Cerâmica formativa de Parauá, Santarém (PA).


Fragmentos com decoração diagnóstica da fase tardia
(1320 a.P. a 910 a.P.).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

As análises realizadas tornaram possível reconstituir catorze formas


de diferentes capacidades volumétricas, associada à cerâmica formativa
de Parauá. A atribuição dos usos das vasilhas levou em conta as proposi-
ções de Rice (1987, pp. 237-42) e Sinopoli (1999), que identificam o
tipo de orifício, a presença de gargalo, colo e o volume – conforme cri-
térios baseados na analogia etnográfica – para sugerir prováveis funções.
Diferentes classes de vasilhas foram reconhecidas e seus usos sugeridos,
considerando as variações volumétricas identificadas. Estas incluem ar-
tefatos empregados em atividades cotidianas relativas à cocção de ali-
mentos, armazenamento, serviço, transporte, transferência de líquidos,
processamento de bebidas fermentadas, preparação de beijus e farinhas,
além de atividades rituais. Vasilhas de formato elipsoide, com cerca de
setecentos mililitros de capacidade volumétrica, decorada com apêndi-
ces mamiformes, foram interpretadas como artefatos associados a ceri-
mônias de iniciação feminina. Estas são frequentes nas aldeias, concen-
trando-se nas áreas de lixeiras.
A cronologia dos sítios aponta que as datas iniciais da ocupação for-
mativa – entre 3800 a.P. e 2740 a.P. – estão correlacionadas sobretudo a
artefatos de formato esférico, contorno simples e borda inclinada inter-
na, de reduzidas capacidades volumétricas, provavelmente empregados
para cocção de alimentos de grupos pouco numerosos. Esta tendência,
associada aos dados de baixa densidade cerâmica dos níveis de solo de
cor bruno, indica a presença de populações esparsas e semissedentárias.
Entre 1300 e 910 a.P., observa-se uma grande diversificação do conjun-
to cerâmico, que está correlacionada ao aparecimento da terra preta,
sugerindo, quanto ao desenvolvimento populacional, um crescimento
demográfico e uma intensificação das atividades no espaço das aldeias.
Poucos artefatos de estilo tapajônico foram coletados somente no sítio
Lago do Jacaré 1, o que implica uma reduzida interação com este grupo
no período terminal de ocupação. Quando comparada à sequência de

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Figura 3: Tabela de usos da cerâmica formativa de Parauá,


Santarém (PA).
Fase tardia (1320 a.P a 910 a.P.).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Marajó, que revela um hiato cronológico entre 2800 a.P. e 2000 a.P.,
atribuído a episódios de seca, segundo Meggers & Danon (1988, p. 250),
a cronologia de ocupação de Parauá/Santarém mostra-se contínua. Esta
representa uma característica importante da ocupação formativa de San-
tarém, em termos não só locais, como regionais.

Sítio Unidade Filiação Número do Idade Idade


Cultural Laboratório Convencional Calibrada 2
Sigma
Lago do Jacaré 1 U1 - 3 Borda Incisa Beta 186952 3800 + 70 A.P. 2460 a 2030 A.C.
Zenóbio U1 - 1 Borda Incisa Beta 186960 3680 + 50 A.P. 2200 a 1920 A.C.
Lago do Jacaré 1 U1 - 7 Borda Incisa Beta 186955 3660 + 70 A.P. 2210 a 1880 A.C.
Lago do Jacaré 1 U1 - 13 Borda Incisa Beta 186956 3660 + 40 A.P. 2140 a 1750 A.C.
Lago do Jacaré 1 U6 - 4 Borda Incisa Beta 186957 3600 + 70 A.P 2140 a 1750 A.C.
Lago do Jacaré 1 U1 - 15 Borda Incisa Beta 187492 3260 + 50 A.P. 1650 a 1420 A.C.
Aldeia U5 - 2 Pocó Beta 283902 3000 + 40 A.P. 1380 a 1120 A.C.
Lago do Jacaré 1 U8 - 3 Borda Incisa Beta 186958 2740 + 60 A.P. 1010 a 800 A.C.
Aldeia U3 - 4 Pocó Beta 248482 2370 + 60 A.P. 750 a 690 A.C.
Terra Preta U1 Borda Incisa Beta 180713 2490 + 80 A.P. 810 a 395 A.C.
Aldeia U3 - 4 Hachurada Beta 248485 2040 + 40 A.P. 170 A.C. a 50 A.D.
Zonada

Aldeia U5 Pocó Beta 283903 1800 + 40 A.P. 120 a 330 A.D.


Terra Preta U5 - 4 Borda Incisa Beta 186959 1840 + 50 A.P. 70 a 260 A.D.
Terra Preta U4 Borda Incisa Beta 178443 1320 + 60 A.P. 630 a 810 A.D.
Terra Preta U3 Borda Incisa Beta 178442 1220 + 60 A.P. 670 a 970 A.D.
Lago do Jacaré 1 U1 - 6 Borda Incisa Beta 186954 1020 + 50 A.P. 910 a 920 A.D.
Terra Preta U4 - 3 Borda Incisa Beta 178444 910 + 60 A.P. 1010 a 1260 A.D.

Tabela 1: Cronologia das Ocupações Formativas


da Região de Santarém (PA).

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Informações orais apontam a existência de outros sítios contendo ce-


râmica com as mesmas características estilísticas das indústrias formati-
vas de Parauá, na região da Flona do Tapajós, situada na margem direi-
ta, simetricamente oposta à comunidade de Parauá. Além disso, vistorias
realizadas por Gomes e técnicos do Iphan, em 2006, no sítio de terra
preta do Oitavo Batalhão do Exército, indicaram a presença de um com-
ponente formativo semelhante neste sítio localizado na região do Pla-
nalto, em Santarém. O conjunto destas informações permite concluir
que a ocupação formativa inicialmente reconhecida na comunidade de
Parauá, associada à tradição Borda Incisa, está presente em diversos ou-
tros locais da região de Santarém, tanto na margem direita quanto na
margem esquerda do Rio Tapajós.

3. A presença das tradições Pocó e Hachurada-Zonada


em Santarém

3.1. Escavações no sítio Aldeia

Através de um levantamento arqueológico realizado na área urbana da


cidade de Santarém (PA), o sítio Aldeia – reconhecido por Curt Ni-
muendaju (1948; 2004) como o principal sítio de terra preta associado
aos Tapajó – foi delimitado (Gomes 2006b; 2007). Este processo envol-
veu intervenções de subsuperfície na forma de tradagens, escavadas em
quintais de residências, estabelecimentos comerciais, jardins, terrenos
baldios e em outros espaços públicos e privados. Partindo das indica-
ções de Bettendorf (1910), que informa que no século XVII, na época
da instalação da missão jesuíta em Santarém, haviam transferido a al-
deia indígena para o pé da colina situada a leste da cidade (morro da
Fortaleza), iniciou-se o trabalho de levantamento nesta área.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Outras crônicas etno-históricas dos séculos XVIII e XIX relatam que


a aldeia indígena em Santarém estava situada a oeste da igreja matriz,
nas proximidades da atual Praça Rodrigues dos Santos (Daniel, 1976;
Florence, 1977; Spix & von Martius, 1976; Bates, 1944), o que, neste
caso, confirmava a correspondência de parte do sítio arqueológico com
o bairro de Aldeia. Desse modo, uma área de quatro quilômetros de
extensão, com início no antigo morro da Fortaleza (Centro) e término
no bairro do Mapiri, foi previamente selecionada para os trabalhos de
levantamento, aproveitando o traçado urbano.
Os resultados das tradagens revelaram um sítio de terra preta contí-
nua, medindo 2 por 0,7 quilômetros, implantado num terraço fluvial,
voltado para o Rio Tapajós, que ocupa, de leste para oeste, os atuais bair-
ros do Centro, Santa Clara, Aldeia e Fátima, em Santarém. Depois do
Bairro de Fátima, os vestígios arqueológicos se interrompem na região
do Bairro de Laguinho, que no passado correspondia a uma área alagada
coberta por lagos, detalhadamente descrita pelo naturalista inglês Henri
Bates (1944), que em meados do século XIX, quando esteve em San-
tarém, costumava frequentar o local para coletar borboletas e outros in-
setos. Esta área se encontra, hoje, completamente aterrada. Em seguida,
no Bairro de Liberdade, embora não tenham sido encontrados vestígios
arqueológicos durante os trabalhos anteriores de prospecção, vistorias
recentes e novas escavações indicam que ele também se estende por uma
área mais ampla, que parece ter associação com os vestígios que reapare-
cem no sítio do Porto, escavado por Roosevelt e associados (Quinn
2004; Roosevelt 1999b e 2009), bem como por Gomes na área do cam-
pus Tapajós-Ufopa (Gomes & Luiz, 2011). Assim sendo, o sítio Aldeia
junto com o sítio do Porto perfazem quatro quilômetros de extensão na
área urbana de Santarém, ao longo do Rio Tapajós, sendo ambos sepa-
rados pelo Laguinho.

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Figura 4: Mapa de delimitação do sítio Aldeia, Santarém (PA).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Essas intervenções iniciais demonstraram a predominância de um


componente pré-colonial contendo cerâmica Tapajônica (Gomes,
2006b). O conhecimento dos processos formativos do sítio Aldeia tor-
nava necessário o desenvolvimento de trabalhos sistemáticos em distin-
tas áreas. Entre 2008 e 2010, foram escavadas oito unidades neste sítio,
apontando a existência de um sítio multicomponencial, com ocupações
históricas dos séculos XVIII e XIX, bem como pré-coloniais, tanto
tapajônica quanto formativa.
Quatro das unidades escavadas no sítio Aldeia apresentaram cerâmi-
ca formativa associada à ocupação Pocó. Na unidade 3, um conjunto de
fragmentos cerâmicos de estilo Pocó foi identificado entre setenta e
cem centímetros de profundidade, num contexto bastante preservado,
que chamava a atenção pela baixa densidade (onze fragmentos por m2).
A camada arenosa de cor bruno foi classificada, de acordo com a escala
Munsell, em 10 YR 5/6 (strong brown). Datados em 2370 a.P., esses frag-
mentos exibem características estilísticas compatíveis com as indústrias
Pocó descritas por Hilbert & Hilbert (1980), além de Guapindaia
(2008) na região do Rio Trombetas, bem como por Lima (2008) e Lima,
Neves & Petersen (2006) em sítios da Amazônia Central.
A cerâmica Pocó da unidade 3 tem como principais características:
emprego do cauixi em quantidade abundante como antiplástico; alguns
fragmentos com uma argila alaranjada e textura bem friável; presença
de pintura nas cores preto e vinho; decoração composta por motivos
incisos alternados por áreas excisas (acanalado) cobrindo o corpo da va-
silha desde a borda; incisões e ponteado alternado colocado sobre o lá-
bio plano; flanges labiais, sendo algumas delas zoomorfas; escovado; e
outros motivos incisos curvilíneos dispostos em bandas. Fragmentos
com pintura policrômica, vinho e amarelo sobre branco, foram recupe-
rados na base da unidade 4 (nível 120-130 centímetros). Este tipo de
pintura também constitui um traço diagnóstico das indústrias Pocó.3

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Figura 5: Conjunto de fragmentos cerâmicos associados


à tradição Pocó do Baixo Amazonas.
Sítio Aldeia, Santarém (PA), unidade 3, 80-90 cm.
Datados em 2370 a.P.

Figura 6: Fragmento cerâmico associado à tradição Pocó do Baixo


Amazonas, com pintura policrômica laranja e vinho sobre branco.
Sítio Aldeia, Santarém (PA), unidade 4, 120-130 cm.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Na unidade 5, novamente um conjunto cerâmico semelhante foi as-


sociado à ocupação Pocó. Esta unidade também apresentou um contex-
to bem preservado e de baixa densidade (23 fragmentos por m2), tor-
nando possível isolar os artefatos cerâmicos existentes entre cinquenta e
oitenta centímetros de profundidade. A cor do solo da camada com ves-
tígios Pocó foi classificada como 7.5 YR 4/6 (strong brown). Dentre os
principais elementos estilísticos deste conjunto, destacam-se: escovado;
espatulado feito por meio de linhas curvas e transversais colocadas na
face interna do artefato; pintura preta; pintura vermelha; pintura vinho;
ponteado; incisões verticais em bandas; e flange labial com apêndice
zoomorfo (pássaro). Duas datações foram obtidas nesta unidade, sendo
a primeira 1800 a.P. (50-60 centímetros) e a segunda 3020 a.P. (70-80
centímetros). Esta última constitui uma data bastante antiga, tendo em
vista a cronologia existente para a ocupação Pocó na Bacia Amazônica.
Outra ocupação Pocó, com características comparáveis às anterior-
mente descritas, também foi identificada na unidade 7, entre sessenta e
oitenta centímetros de profundidade. Os mesmos padrões de cor do solo
(10 YR 5/6 strong brown ) e baixa densidade de artefatos foram observa-
dos. As decorações se assemelham àquelas identificadas nas unidades
anteriores, com o predomínio do escovado, espatulado e ponteado.
O conjunto dos dados obtidos permite concluir que o amplo espaço
do sítio Aldeia foi ocupado por grupos portadores de cerâmica Pocó entre
1800 a.P. e 3020 a.P., antes da presença dos Tapajó. Essas ocupações foram
bastante esparsas, a julgar pela baixa densidade das áreas escavadas. Além
disso, observa-se que as decorações plásticas rebuscadas – a exemplo dos
padrões geométricos compostos por incisões curvilíneas e volutas, apên-
dices zoomorfos e em forma de botões – estão ausentes na amostra cole-
tada. Isto indica que a cerâmica com afinidades saladoide-barrancoide,
tal qual encontrada na Amazônia Central e na área do Rio Trombetas,
não ocorre no sítio Aldeia, o que parece ter implicações cronológicas.

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Figura 7: Perfil da unidade 5 do sítio Aldeia, Santarém (PA),


com 150 cm de profundidade. A segunda camada, em solo de cor
bruno, está associada à ocupação Pocó.

Ao lado da presença Pocó no sítio Aldeia, a identificação de frag-


mentos cerâmicos com decoração hachurada-zonada (Meggers & Evans,
1961) na unidade 3, datados em 2040 a.P., sugere a existência de gru-
pos que provavelmente habitaram os sambaquis fluviais da região. A jul-
gar pela cerâmica do complexo Jauari (Hilbert, 1968), proveniente de
um sambaqui de água doce localizado no Amazonas, próximo à conflu-
ência com o Rio Tapajós, é possível que tais populações estivessem
interagindo com os grupos portadores de cerâmica Pocó do sítio Aldeia.
Por fim, esta evidência adicional permite vislumbrar uma diversidade
de grupos étnicos que ocuparam o espaço regional de Santarém durante
o período formativo.

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Figura 8: Fragmento cerâmico com decoração Hachurada-Zonada.


Sítio Aldeia, Santarém (PA), unidade 3, 90-100 cm.
Datado em 2040 a.P.

4. Conexões culturais: Santarém, Rio Trombetas,


Amazônia Central, Alto Xingu e Brasil Central

A primeira referência existente sobre a arqueologia da área do Rio Trom-


betas/Nhamundá é o levantamento arqueológico realizado por Curt
Nimuendajú na década de 1920, relativo à distribuição da cerâmica San-
tarém e seus limites. A Serra de Parintins (AM) foi considerada pelo
autor como o limite oeste desta cultura. Lá Nimuendajú encontrou sí-
tios contendo tanto cerâmica Santarém como Konduri, sendo a região
caracterizada por ele como o local de origem do estilo Konduri (Hilbert,
1955, p. 9). Informações oriundas de fontes etno-históricas sugerem
mais do que simples trocas: a existência de elementos comuns no que
tange à forma de organização social e sistemas cosmológicos relaciona-
dos às culturas Santarém e Konduri (Gomes 2002), que poderiam ex-
plicar as semelhanças observadas por diversos autores.
Na década de 1950, pesquisas arqueológicas foram realizadas por
Hilbert (1955). Posteriormente, Hilbert & Hilbert (1980) deram con-
tinuidade às investigações iniciais na região. Além disso, trabalhos re-

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

centes foram conduzidos por Guapindaia (2008) nessa mesma área.


Um exame destas publicações deixa entrever um quadro cada vez mais
consistente sobre a Arqueologia da região. É possível identificar alguns
parâmetros cronoestilísticos que permitirão entrever um panorama das
antigas ocupações pré-coloniais dessa região e suas conexões com a Ama-
zônia Central e a região de Santarém.
Pode-se creditar a Hilbert (1955) a definitiva separação dos estilos
Santarém e Konduri. Os trabalhos desenvolvidos por este autor na dé-
cada de 1950 – conduzidos no Rio Trombetas, no Baixo Cuminá-Ere-
pecuru, no Lago Salgado, no Lago Sapucuá, no Lago Piraruacá, na área
de Terra Santa e no Lago de Faro – permitiram a localização de 41 sítios
com a presença de três tipos de cerâmica. Esta representa a primeira clas-
sificação cerâmica feita para a região. O primeiro grupo identificado pelo
autor é composto por cerâmica contendo areia como antiplástico, de-
corada principalmente com um padrão descrito como “espinhas de
peixe”; o segundo é constituído pela cerâmica Konduri, cujo antiplásti-
co típico era o cauixi (espículas de esponjas de água doce), e sua decora-
ção característica seriam os apêndices zoomorfos cobertos por pontea-
do, o que daria a estes um aspecto de esponja, além das alças e asas;
e, finalmente, o terceiro grupo, denominado estilo globular, também
contendo cauixi como antiplástico e apêndices antropomorfos e zoo-
morfos compostos pela sobreposição de esferas, com pintura vermelha
sobre branco.
Quanto aos aspectos cronológicos, a caracterização da cerâmica da
área Trombetas/Nhamundá feita por Hilbert (1955) não é acompanha-
da de uma análise cronológica. O autor indica apenas a contemporanei-
dade da cerâmica Konduri e da Santarém, devido à associação de ambas
em certos sítios encontrados por Curt Nimuendajú. Esta correlação foi
aceita por outros autores, que colocaram os dois estilos numa faixa cro-
nológica situada entre 1000-1500 a.D., correspondendo à tradição

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Incisa e Ponteada (Meggers & Evans, 1983). No que se refere ao pri-


meiro grupo cerâmico descrito por Hilbert (cerâmica temperada com
areia), as pesquisas de Guapindaia (2008) permitiram situá-lo cronolo-
gicamente na mesma faixa do Konduri.
Na década de 1970, Hilbert & Hilbert (1980) dão continuidade à
pesquisa da área do Rio Trombetas, localizando onze sítios habitação.
Nesse momento, é visível uma sensível alteração dos parâmetros cientí-
ficos da pesquisa ao incluir, ao lado da cerâmica, descrições da estrati-
grafia, bem como datações radiocarbônicas. Os autores apontam a distri-
buição do complexo Konduri por toda a área, sendo restrito a depósitos
relativamente superficiais na parte superior da sequência estratigráfica.
Por sua vez, os níveis inferiores forneceram material pertencente a fases
diferentes, relacionadas à cerâmica Pocó.
Esta cerâmica, originária dos sítios Pocó e Boa Vista, é mais antiga
do que a Konduri e foi dividida pelos autores em três tipos simples, ba-
seado no tempero: (1) cauixi; (2) cariapé; (3) cauixi e cariapé. As formas
mais comuns são vasilhas carenadas, rasas e fundas, além das tigelas se-
miesféricas com bordas diretas ou extrovertidas, vasos com gargalos e
assadores. Foram descritos vários tipos de decoração, incluindo engobo
vermelho, pintura branca, pintura vermelha sobre branco, incisões geo-
métricas, escovado, acanalado, raspado-zonado, apêndices zoomorfos
inciso-modelados, motivos compostos por ponteado, marcado com cor-
da, serrungulado, ungulado e impresso em ziguezague.
A pintura bicrômica e, ainda, os padrões incisos, alguns deles com
motivos curvilíneos complexos, são vistos pelos autores como caracte-
rísticos da tradição Barrancoide4 do Rio Orinoco, cujas influências são
atribuídas pelos autores à cerâmica Pocó (Hilbert & Hilbert, 1980,
p. 8). Neste sentido, as datações apresentadas nesse artigo – entre 65
a.C. e 205 a.D. – foram definidas por eles como consistentes com esta
associação. Entretanto, datas não reportadas naquela ocasião, provenien-

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

tes da base do sítio Boa Vista, revelaram uma antiguidade bem maior da
fase Pocó – entre 2950 + 130 a.P. e 3280 + 45 a.P. –, tendo sido a prin-
cípio rejeitadas. Outras datas obtidas por Klaus Hilbert em nova cam-
panha na década de 1990, em seu retorno ao sítio Boa Vista, situaram a
ocupação Pocó em 1820 + 60 a.P.; e do sítio São José, em 2800 + 70 a.P.
e 1980 + 60 a.P. (Klaus Hilbert, 2000, informação pessoal; Gomes,
2002, p. 45).
Pesquisas recentes realizadas por Guapindaia (2008) na região de
Porto Trombetas – situada a cerca de cinquenta quilômetros a noroeste
da foz do Rio Trombetas, na Floresta Nacional de Saracá-Taquera – pos-
sibilitaram ampliar o conhecimento sobre a ocupação Pocó nesta área.
Além dos padrões incisos curvilíneos associados a elementos modela-
dos, de influência barrancoide, Guapindaia documenta a existência de
pintura policrômica, vermelho e alaranjado sobre branco, além de ou-
tras variações de vermelho e vinho, cuja pintura é organizada em pa-
drões geométricos bastante elaborados. As formas Pocó incluem pratos
com flanges labiais; vasilhas esféricas com pescoço para armazenamento
de líquidos, decoradas por pintura vermelha e alaranjada sobre engobo
branco; vasilhas rasas de formato elipsoide, de contorno simples ou com-
posto, destinadas ao serviço, podendo ser pintadas e incisas.
Um conjunto de datações dos sítios Aviso I e Boa Vista confirmou
a posição cronológica da ocupação Konduri entre os séculos XI e XV
d.C. o que permite uma correlação cronológica com a ocupação Tapa-
jônica, em Santarém. Quanto às datas obtidas por Guapindadia (2008,
p. 171) para a cerâmica Pocó, no sítio Boa Vista, estas ocupam uma
posição entre 2100 a.P. e 1700 a.P. e estão associadas a solos de cor bru-
no, sendo portanto anteriores ao fenômeno de formação das terras pre-
tas na Amazônia.
Além da área do Rio Trombetas, afinidades com as indústrias cerâ-
micas Pocó foram registradas na Amazônia Central. A Arqueologia da

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Amazônia Central tem como primeira referência científica o trabalho


de Hilbert (1968), que organiza a sequência cronológica da região, des-
crevendo as fases Manacapuru (425 d.C.), Paredão (880-870 d.C.),
Guarita (1150 d.C.) e Itacoatiara (não datada). Esta última foi inicial-
mente classificada como pertencente à tradição Incisa e Ponteada.
Posteriormente outros pesquisadores chamaram a atenção para as afi-
nidades desta com a tradição Barrancoide, o que de fato se confirma
(Lathrap, 1970).
A abordagem de Hilbert (1968) além de cronológica também parti-
lhava de um enfoque tipicamente tipológico, enfatizando as diferenças
nos tipos decorativos e formas cerâmicas. As fases documentadas por
Hibert (ibidem) foram relacionadas às tradições Borda Incisa, Policrô-
mica, e Incisa e Ponteada. Seu enfoque estava afinado com a interpreta-
ção de Meggers (Meggers & Evans, 1961), que considerava a Amazônia
receptora de culturas vindas dos Andes e um ambiente inóspito para o
desenvolvimento da complexidade social (Meggers, 1987 [1971]).
Lathrap (1970) introduziu uma hipótese contrastante com relação à
de Meggers, que colocava a Amazônia como um centro de inovações,
no que tange à invenção da cerâmica, ao desenvolvimento da agricul-
tura e emergência de complexidade social, com a presença de socieda-
des ceramistas que teriam se desenvolvido ali por volta de 4000 a.C.
Segundo o autor, a tradição Barrancoide, associada ao grupo Arawak,
cuja dispersão seria observada na Venezuela e no Caribe, teria se desen-
volvido inicialmente na Amazônia Central e se dispersado para o norte
da América do Sul. Com isto, a fase Manacapuru seria correlacionada
ao grupo Arawak.
As hipóteses de Lathrap (ibidem) foram anos mais tarde retomadas e
serviram de referência para os trabalhos desenvolvidos pelo Projeto Ama-
zônia Central, desde meados da década de 1990, sob a coordenação do
arqueólogo Eduardo Neves. Questões gerais de pesquisa, relativas ao

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

referido projeto, estão relacionadas ao estabelecimento do tamanho e


da forma dos assentamentos, à reconstrução da densidade e da diversi-
dade das ocupações, assim como ao refinamento da cronologia da área
de confluência dos rios Negro e Solimões (Neves, 2006).
Nesse contexto, os estudos dos complexos Manacapuru (barrancoide)
e Guarita (policrômica) pontuam questões ligadas ao início da produ-
ção cerâmica, à formação das Terras Pretas arqueológicas e à origem da
agricultura, bem como à mudança subsequente acompanhada por au-
mento da densidade populacional, intensificação do uso do solo, modi-
ficações na paisagem (construção de montículos) e emergência de for-
mações sociais complexas. Portanto, esta é uma das áreas de pesquisa na
Amazônia cuja problemática vem sendo definida segundo modelos es-
pecíficos colocados para a Amazônia Central e por questões atuais par-
tilhadas por outras regiões, sobretudo no que se refere às hipóteses sobre
a emergência da complexidade social.
De modo geral, a sequência cronológica de ocupação proposta por
Hilbert (1968) para a Amazônia Central tem sido confirmada e tam-
bém ampliada pelas pesquisas de Neves e associados. Novas proposições
foram feitas envolvendo o estudo da fase Manacapuru. O aprofunda-
mento dos trabalhos tem levado a conclusões sobre a natureza das ocu-
pações relativas a esta fase, sua duração cronológica e as relações desta
com outros centros produtores de cerâmica, tanto no norte da América
do Sul como no Baixo Amazonas. Tais resultados colocam em relevo a
importância da ocupação Pocó, como um complexo-chave para a com-
preensão dos processos que levaram à emergência da complexidade so-
cial na Amazônia Central.
À primeira vista, a identificação da fase Pocó parecia ser uma ocor-
rência restrita à região do Trombetas, sem maiores conexões com outras
áreas da Amazônia brasileira. Recentes estudos, realizados na Amazônia
Central sobre a fase Manacapuru, perceberam a existência de claras afi-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

nidades cronoestilísticas deste complexo de traços barrancoides com a


cerâmica Pocó, levando à proposição de uma nova fase, denominada de
Açutuba (Lima, Neves & Petersen, 2006). Lima (2008) reconheceu va-
riações internas na fase Manacapuru, de caráter tipológico, que corres-
pondiam a uma variação cronológica: uma cerâmica com decoração
incisa apresentando padrões curvilíneos rebuscados, geralmente coloca-
dos sobre flanges labiais, apêndices zoomorfos e, ainda, pintura poli-
crômica com o uso do laranja, vermelho, vinho e preto sobre branco. A
fase Manacapuru foi então subdividida na fase Açutuba, que correspon-
de às datas mais antigas. A cronologia da ocupação Açutuba, provenien-
te do sítio homônimo, é 1100 a.C. até 550 d.C. (ibidem, pp. 77-83).
Desse modo, o reconhecimento de características Pocó na Amazônia
Central não só permite estabelecer conexões entre o Baixo Amazonas
(Rio Trombetas e região de Santarém) e o Médio Amazonas, como tam-
bém insere estas áreas no contexto das discussões sobre os complexos
cerâmicos mais antigos do norte da América do Sul. Os dados apresen-
tados por Lima, Neves & Petersen (2006) e Lima (2008), que caracteri-
zam a fase Açutuba como a cerâmica mais antiga da Amazônia Central,
indicam uma ocupação mais recente do que aquela sugerida pelo mo-
delo de dispersão populacional de Lathrap, partindo da Amazônia Cen-
tral, refutando esta hipótese em termos cronológicos e no que tange ao
sentido de tais dispersões. Para Lima, Neves & Petersen (2006), a fase
Açutuba consiste numa representação na Amazônia Central das tradições
(ou séries) saladoide e barrancoides, identificadas no norte da América
do Sul e no Caribe, cujas cerâmicas são caracterizadas por uma ampla
variabilidade formal e são decoradas por meio de técnicas de modelagem,
incisões, excisões, engobo vermelho e pintura policrômica. Menos
especulativa lhes parece a correlação proposta entre a fase Açutuba e fase
Pocó, do Baixo Amazonas (ibidem, p. 47). Por fim, Lima (2008, p. 380)
afirmou ter considerado a fase Açutuba um complexo exógeno, que já

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

aparece formado, sendo este parte da expansão Arawak, conforme a hi-


pótese de Lathrap (1970), retomada por Heckenberger (2002).
Considerando as datações mais antigas da cerâmica Pocó reportadas
por Hilbert (entre 3200 a.P. e 3000 a.P.), relativas à base do sítio Boa
Vista no Rio Trombetas (Gomes, 2002, p. 45), as datas que assinalam o
início da ocupação Pocó no sítio Açutuba (1100 a.C.) e, finalmente, a
data mais antiga obtida no sítio Aldeia, em Santarém (3020 a.P.), é pos-
sível propor como hipótese uma dispersão simultânea pelo Médio e
Baixo Amazonas dessas populações portadoras de cerâmica saladoide-
barrancoide, originárias do norte da América do Sul e do Caribe por
volta de 3000 a.P. As datações mais frequentes (por volta de 2000 a.P.)
parecem assinalar um período de estabilidade desses grupos em toda a
área ocupada. Embora não tenham sido encontradas no sítio Aldeia, até
o presente momento, cerâmicas com decorações elaboradas, compostas
por linhas curvilíneas e volutas, típicas do estilo barrancoide, algumas
formas mais tardias de cerâmica tapajônica, com detalhes tais como apli-
ques ovalados em forma de botões, não deixam dúvida sobre a presença
dessas influências na área de Santarém.

Figura 9: Fragmento de vaso de cariátides – artefato típico


da cultura Tapajônica –, com elementos estilísticos Barrancoides
(apêndice modelado em forma de botão).
Sítio Aldeia, Santarém (PA), unidade 4, 100-110 cm.

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Em sua fase tardia (1320 a.P. a 910 a.P.), a cerâmica Borda Incisa de
Parauá-Santarém exibe diversas características formais – tais como jarros
com gargalo, vasilhas rasas de formato elipsoide com base plana e bordas
extrovertidas, vasilhas globulares de perfil infletido, tigelas em forma de
calota esférica e assadores –, além de características decorativas, a exem-
plo de incisões transversais nos lábios ou bordas, ponteado, engobo ver-
melho e, em alguns casos, apêndices mamiformes, em comum com a
tradição Uru do Brasil Central. Outro aspecto relevante na comparação
proposta são os padrões de assentamento e de organização intrassítio,
identificados na região de Santarém, que apontam para a existência de
aldeias circulares e lineares, conforme evidenciado pela pesquisa
conduzida nos sítios da comunidade de Parauá (Gomes, 2008, p. 220).
A gênese amazônica da tradição Uru já havia sido postulada por di-
versos pesquisadores (Oliveira & Viana, 2000; Prous, 1992; Robrahn-
González, 1996; Schmitz et al., 1982). Por sua vez, Wüst & Barreto
(1999), ao discutirem o surgimento das aldeias circulares do Brasil Cen-
tral por volta de 800 a.D., relacionado aos grupos Aratu e Uru, conside-
raram este como um processo local, associado a pressões demográficas,
interação com grupos vizinhos e necessidades de defesa. As mesmas au-
toras rejeitaram a ideia de que a emergência dessas aldeias circulares es-
tivesse relacionada a movimentos migratórios originários da Bacia Ama-
zônica, conforme sugerido por alguns estudiosos com base em
semelhanças artefatuais e modelos de competição e pressão populacional
(Robrahn-González, 1996; Schmitz & Barbosa, 1985), argumentando
com relação à ausência de evidência direta de indicadores dessas migra-
ções nos tributários do Amazonas.
As semelhanças desses conjuntos cerâmicos, dos padrões de organi-
zação intra-sítio, ao lado da cronologia existente e, finalmente, da posi-
ção geográfica estratégica que ocupa o Rio Tapajós como via natural de
ligação entre a Amazônia e o Brasil Central, sugerem que a hipótese mi-

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Figura 10: Vasilha rasa, com base plana e 40 litros de capacidade


volumétrica, sítio Terra Preta, Parauá, Santarém (PA).
Apresenta semelhanças estilísticas com artefatos da tradição
Uru do Brasil Central e fase Ipavu do Alto Xingu.

gratória merece ser reconsiderada. Outro elemento adicional que reforça


esta correlação da ocupação borda incisa da região de Santarém com as
populações portadoras de cerâmica Uru, do Brasil Central, é o reconhe-
cimento de semelhanças estilísticas (formais e decorativas) com os gru-
pos pré-coloniais tardios do Alto Xingu, portadores da cerâmica relacio-
nada à fase Ipavu. Esta corresponde às ocupações entre 800 e 900 a.D.,
que, segundo Heckenberger (1996), representam os ancestrais dos Xin-
guanos falantes de Arawak. Afinidades com a tradição Uru e com a tra-
dição Borda Incisa foram apontadas por Heckenberger (ibidem, p. 28).
Assim sendo, essas conexões culturais propostas indicam o estabeleci-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

mento de fronteiras culturais na área Tapajós/Xingu que parecem im-


portantes para a compreensão dos processos que envolvem a Amazônia
e o Brasil Central.
As datações tardias da sequência obtida em Parauá-Santarém (sécu-
los VII ao XI d.C.) são mais antigas que a maior parte das datações da
tradição Uru disponíveis para o Brasil Central – século IX d.C. em Mato
Grosso e século XIII d.C. em Goiás (Wüst & Barreto, 1999, p. 8) –, o
que favoreceria as hipóteses sobre o deslocamento desses grupos do Bai-
xo Tapajós para o Alto Xingu e o Brasil Central, tendo como via de aces-
so o Rio Tapajós. Embora pesquisas adicionais sejam necessárias a fim
de produzir uma cronologia desses outros sítios Borda Incisa identifica-
dos na região da Flona e na área do Planalto em Santarém, a interpreta-
ção proposta para explicar o desaparecimento dessas populações do
Baixo Tapajós a partir do século XI está relacionada ao processo de emer-
gência das chefias pré-coloniais tardias de Santarém. A constatação de
que tais populações formativas de Parauá, portadoras de cerâmica Bor-
da Incisa, não foram culturalmente influenciadas ou mesmo politica-
mente dominadas por essas chefias tardias, associadas à emergência dos
Tapajó, implica o reconhecimento de estratégias de autodeterminação.
Pressões políticas que possivelmente empurraram parte desses grupos
para outras áreas da Bacia Amazônica e Brasil Central constituem um
argumento adicional (Gomes, 2008).

5. A constituição das sociedades pré-coloniais multiétnicas

A ideia de constituição de sociedades multiétnicas organizadas num es-


paço regional como base dos cacicados amazônicos, descritos como sis-
temas hierárquicos e centralizados, está presente desde Roosevelt (1987;
1992; 1993; 1999b).

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Heckenberger (2005) e Heckenberger & Neves (2009) também se


referem a essas formações regionais como uma característica das socie-
dades complexas que emergem no passado pré-colonial tardio da Ama-
zônia. No caso de Santarém, embora os dados recentes das pesquisas
conduzidas por Gomes (2007; 2008; 2009) questionem a existência de
uma sociedade centralizada e hierarquizada, bem como de comunida-
des satélites dependentes de um centro hegemônico, uma morfologia
social mais precisa ainda está por ser definida.
Informações oriundas da etno-história da região de Santarém indi-
cam a presença de outros grupos convivendo com os Tapajó (Marautus,
Caguanas, Orurucus, Maraguá, Maués, Curiatos e Andirá, dentre ou-
tros) no mesmo espaço regional, ocupando especialmente a margem
esquerda do Rio Tapajós e a margem direita do Amazonas, até a Ilha de
Tupinambarana. Esses grupos estavam organizados em configurações
que se alternavam ao longo do tempo, tendo sido reconhecidos até pou-
co antes do início das missões religiosas (Menéndez, 1992; Bettendorf,
1910; Heriarte, 1874; Rojas, 1941). Esta constatação reforça as conclu-
sões das pesquisas arqueológicas realizadas em Parauá-Santarém, que
demonstraram a existência de comunidades formativas parcialmente
contemporâneas aos Tapajó, com uma existência independente do pon-
to de vista político.
O conjunto dos dados ora apresentados, no que se refere tanto a evi-
dências culturais quanto a cronológicas, sugere a existência de diversi-
dade étnica, com a presença de distintas populações formativas que ocu-
param esse espaço regional desde cerca de 4000 anos atrás até os séculos
XI a XIII d.C., período que corresponde à formação da sociedade ta-
pajônica. É possível que essas populações formativas tenham se orga-
nizado em conjuntos regionais, que sobreviveram à época pré-colonial
tardia, não necessariamente coordenados de maneira hierárquica por um
poder central.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Além disso, o exame da literatura antropológica deixa entrever ou-


tras alternativas de organização sociopolítica desses conjuntos regionais.
No clássico de E. Leach (1995 [1964]), Sistemas políticos da Alta Birmâ-
nia, o autor enfatiza a importância de se reconhecer outras formas de
organização de poder político, especialmente em contextos regionais
com evidência de diversidade cultural, destacando a tendência que os
antropólogos têm em cristalizar a estabilidade social, de modo a cons-
truir um todo coerente e uniforme, com nítidas fronteiras culturais, que
muitas vezes não passam de mera ficção acadêmica. Ainda que toda des-
crição envolva a construção de modelos, Leach (ibidem) alerta para as
inconsistências da realidade social, que podem ser brechas para vis-
lumbrar transformações políticas cuja gênese é a instabilidade social.
O exemplo dos Kachin e dos Chan da Alta Birmânia, examinado pelo
autor, demonstra uma formação social instável, baseada no conflito, que
conduz à mudança. Historicamente organizados em três subsistemas
políticos interdependentes, estes interagem e se alternam, colocando em
relevo ora uma estrutura feudal, ora igualitária.
A etnologia amazônia fornece um panorama que ajuda a reforçar a
ideia de diferentes níveis de integração étnica e sociopolítica dos grupos
indígenas ao longo do tempo. Estes parecem ter variado desde redes ho-
rizontais de integração interétnica, que promoviam trocas materiais e
simbólicas por amplas regiões, até sistemas regionais pluriétnicos hierar-
quizados. No noroeste amazônico, um dos mais importantes grupos de
integração interétnica é constituído pelos Arawak, Tukano, Maku e
Karib, existente desde épocas pré-coloniais. Tal sistema reúne socieda-
des ligadas por uma vasta rede de vínculos sociais, comerciais, políticos
e rituais, com destaque para as cerimônias de iniciação masculina en-
volvendo o uso de flautas sagradas, sendo ainda permeado por relações
hierárquicas que têm sua origem entre os Arawak (Wrigth, 1992).

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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

Outro exemplo é o chamado sistema regional de interdependência


do Orinoco, que se desenvolveu em épocas pré-coloniais desde o Ori-
noco até o Baixo Rio Negro, tendo sido reconhecido por Arvelo-Jiménez
& Biord (1994, pp. 56-7) com base em informações históricas e
etnográficas. Este, segundo os autores, consistia numa teia de relações
interétnicas complexas que integrava os diversos componentes de ma-
neira horizontal, sem implicar a perda da autonomia política, nem da
diversidade cultural ou linguística dos grupos integrantes. Diferentes
processos de integração foram reconhecidos, a exemplo de relações co-
merciais, prestação de serviços rituais, casamentos, pactos políticos e
guerras que articularam a sociabilidade, acarretando o reforço de laços
políticos entre sociedades autônomas. Desse modo, outras possibilida-
des surgem para se pensar arranjos políticos que podem ter ocorrido
entre os Tapajó e os demais grupos da área, envolvidos em situações de
conflito. Além da alternância de poder, possibilidades de integração
multiétnica das antigas populações formativas devem ser consideradas.

Considerações finais

As informações discutidas permitem apontar que os hiatos cronológi-


cos da sequência cultural de Santarém, tal qual indicado por Neves
(2006), foram reduzidos. A cronologia de ocupação formativa se apre-
senta de forma ininterrupta desde 3800 a.P. até 910 a.P. Entretanto, ain-
da é visível o grande hiato que separa as ocupações ceramistas do Arcai-
co – em especial, o complexo de Taperinha, datado por volta de 7000
anos – das sociedades formativas identificadas a partir de 3800 a.P.
Conforme discutido, o reconhecimento de diferentes complexos cul-
turais formativos associados à produção de cerâmica Borda Incisa, Pocó
e Hachurada Zonada, que compartilharam o mesmo espaço regional,

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sugere a hipótese de que essas populações tenham dado origem a for-


mações sociais multiétnicas pré-coloniais tardias. Outra constatação é a
existência de conexões culturais entre a região de Santarém, a área do
Rio Trombetas/Nhamundá, a Amazônia Central, o Alto Xingu e o Brasil
Central. Embora as descrições dos complexos cerâmicos sejam muitas
vezes baseadas em informações tipológicas, o que se buscou foi colocar
em relevo a cronologia e as dinâmicas populacionais envolvendo deslo-
camentos nas terras baixas da Amazônia, além de processos de integra-
ção social.

Notas
*
Este artigo dialoga com as hipóteses de Eduardo Neves sobre as cronologias ama-
zônicas. O argumento aqui construído se beneficiou de discussões com Eduardo
Viveiros de Castro sobre as diferentes possibilidades de integração sociopolítica das
sociedades indígenas. A ambos os pesquisadores registro meus agradecimentos. As
pesquisas que embasam esta análise foram financiadas pela Fapesp (Processos: 00/
04563-0; 02/04916-5 e 08/58701-6) e pelo CNPp (Processo: 473224/2006-2).
1
Os métodos de levantamento arqueológico na Amazônia têm se limitado a estraté-
gias oportunísticas, baseadas em informações orais, localização de vestígios de su-
perfície, além de contar com acessos proporcionados pela existência de caminhos e
estradas. Entretanto, não se observam tentativas de desenvolvimento de levanta-
mentos sistemáticos, com a abertura de transects em meio à densa vegetação, con-
forme realizado nesta área do Baixo Tapajós.
2
O reconhecimento desses sítios de “terra mulata”, que consistem em áreas de culti-
vo, foi possível por meio das discussões que vêm sendo realizadas por pesquisado-
res tais como Woods, McCann e Kern, que identificam essas áreas pela cor do solo
marrom acinzentado (7.5YR 3/2; 10YR 4/2), pelos altos teores de matéria orgâni-
ca, além da ocorrência de raros artefatos cerâmicos.
3
Embora a abordagem de análise cerâmica adotada nas pesquisas ora apresentadas
esteja voltada para a reconstrução dos padrões de uso dos artefatos, em razão da

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impossibilidade de realizar reconstituições de formas, uma vez que os fragmentos


recuperados são de tamanho reduzido, optamos por reportar as características esti-
lísticas das amostras de cerâmica Pocó provenientes do sítio Aldeia, Santarém (PA).
4
As séries barrancoides, cuja cerâmica típica caracteriza-se por uma decoração com-
posta por incisões curvilíneas amplas, colocadas nas bordas das vasilhas, e sigmoides
pronunciadas, além de apêndices zoomorfos e antropomorfos com esses mesmos
elementos curvilíneos, foram inicialmente definidas por Cruxent & Rouse (1959;
1961), primeiro do sítio tipo (Barrancas), na Venezuela, sendo mais tarde reconhe-
cidas no Caribe. Brochado & Lathrap (2000 [1982]) reconheceram elementos bar-
rancoides em vários complexos amazônicos da Amazônica Central, propondo a
existência da tradição Barrancoide Amazônica. Embora essas distinções estilísticas
consistam em referências crono-estilísticas aparentemente produtivas, elas não po-
dem ser generalizadas para todos os estilos que apresentam decoração incisa e mo-
delada, existindo, portanto, grande variabilidade das indústrias pré-coloniais.
Meggers refuta a existência de uma tradição Barrancoide Amazônica e prefere as-
sociar vários complexos com esses elementos diagnósticos à tradição Borda Incisa
(Meggers & Evans 1961). A discussão sobre a origem da tradição Barrancoide ain-
da hoje é polêmica e se confunde com os debates sobre o desenvolvimento da cerâ-
mica na América do Sul.

Bibliografia
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DENISE MARIA C. GOMES . CRONOLOGIA E CONEXÕES CULTURAIS NA A MAZÔNIA

ABSTRACT: This article discuss the formative societies of Santarém-PA


region by the analysis of its material culture, pointing to the existence of
different ceramist communities, which has developed in this area since 3800
a.P. until the emergence of complex chiefdoms by 1000 a.D. The data sug-
gests the succession of different groups in time and space that has probably
contributed to the constitution of late multiethnic groups, which occurred
in this and other areas of Amazonia, as it has been suggested by other re-
searchers. Cultural connections with the area of Trombetas River, Central
Amazonia and Upper Xingu have also been elicited.

KEY-WORDS: Archaeology of Santarém, Para, formative, Amazonian chro-


nologies, multiethnic societies.

Recebido em outubro de 2010. Aceito em junho de 2011.

- 314 -
O sentir dos sentidos dos pescadores artesanais

Cristiano Wellington Noberto Ramalho

Universidade Federal de Sergipe

RESUMO: Tomando como base as próprias representações, os sentimentos


e as práticas societárias dos pescadores artesanais da praia de Suape, em
Pernambuco, este artigo analisa os processos sociais que fundam e são ilu-
minados pelo sentir dos sentidos desses trabalhadores do mar, especialmen-
te no que diz respeito à articulação da condição sensível (estética pesqueira)
com o saber-fazer, a liberdade e a humanização na pesca artesanal.

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia da pesca, trabalho e pesca, sentir dos


sentidos.

Apresentação

“Não só no pensar, portanto, mas com todos


os sentidos o homem é afirmado no mundo
objetivo. (Karl Marx, Manuscritos econômi-
co-filosóficos – grifo do autor)

O trabalho pesqueiro inscreve-se e se constrói no uso do corpo, na edu-


cação do saber sensível humano, expressando-se, ao longo dos anos, no
apuro e refinamento de alguns sentidos para que os pescadores exerçam
sua atividade com qualidade nas águas dos rios, estuários e/ou mar.
CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

O sentir dos sentidos é a base da objetivação das capacidades cognitivas


daqueles que pescam, seu chão construtor e lapidador do saber-fazer
pesqueiro, e também do sentimento e prática de liberdade que os pesca-
dores afirmam ter.
Há uma complexa educação corporal no mundo do trabalho da pes-
ca artesanal, que explicita um particular modo de vida, momentos de
aprendizagem pesqueira e, portanto, de fazer-se pescador através da
ampliação e agudeza de um saber sensível, de uma estética pesqueira,
cujo contato direto com a natureza aquática exige isso enquanto condi-
ção insuprimível do viver nas (e das) águas.
Vale destacar que os resultados aqui discutidos são oriundos de um
estudo etnográfico realizado de dezembro de 2004 a dezembro de 2006,
como parte de minha pesquisa de doutoramento (Ramalho, 2007).1
Assim, pude acompanhar o cotidiano de treze pescadores artesanais que
trabalham em mar alto com o uso de botes (barcos artesanais motoriza-
dos) e que habitam a pequena praia de Suape, última do litoral sul da
Região Metropolitana do Grande Recife (PE).2 No decorrer do referido
período, entrevistei e observei a rotina desses trabalhadores no conti-
nente e no mar.
O presente texto buscar responder às seguintes indagações: Como se
constrói o sentir dos sentidos dos pescadores artesanais? Que valor exis-
tencial há nesse processo? Como o saber sensível se integra e desvela à
natureza marinha? Como ele se faz ao fazer-se no trabalho da pesca?

1. O saber sensível dos pescadores

O saber-fazer pescador artesanal liga-se à edificação de conhecimentos


náuticos e pesqueiros, bem como à educação dos sentidos humanos.
Fazer-se pescador é, gradativamente, adquirir consciência cada vez mais

- 316 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

sofisticada do próprio corpo, de suas possibilidades de aprimoramento,


de autocriação. O refinamento cognitivo conecta-se ao próprio refina-
mento sensitivo, e este àquele – saber sensível que é, ao mesmo tempo,
saber intelectual, imaginativo, embora singularidades entre eles sobre-
vivam sem se opor. Na realidade, tais saberes celebram aproximações e
são indissolúveis.
Isso tudo ganha mais força pelo fato de ser o pescador uma espécie
de artífice, um artesão do mundo aquático. O corpo é o território sobre
o qual ele se torna pescador, sendo inescapável aos homens que voltam
seu trabalho para o setor pesqueiro. Um dos pescadores mais antigos de
Suape nos oferta um fértil exemplo desse processo de lapidação do sen-
tir dos sentidos:

O corpo vai sendo formado no tempo. No início, o pescador mais novo tem que
ficar mais parado, olhando o cara que sabe fazer. De primeiro, ele aprende a se
equilibrar no barco e a ficar em pé, porque, se não equilibrar o corpo, ele não
faz nada. Também ele aprende a ver e a ouvir lá no mar. (Seu Gidinha, pes-
cador mestre, 70 anos)

Decerto, o corpo é o lócus de efetivação da pesca, seu esteio e concre-


tização do mundo cognitivo, “sendo formado pelo tempo” (seu Gidinha)
no ato de lidar com o mar e os pescados. Ademais, o corpo (natureza
orgânica do ser humano) é parte essencial da própria ontologia do ser
social, porque o pescador “aprende a ver e a ouvir lá no mar” para poder
existir, usar e ter consciência.
É pela consciência objetivada pelo trabalho que o ser humano faz-se
cada vez mais social, e também é pelo sentir dos sentidos que o ser pes-
cador concretiza-se em sua atividade produtiva, na relação com a natu-
reza e com outros homens. O corpo é a fonte de diálogo do ser social
com as naturezas orgânicas (plantas, animais) e inorgânicas (água, terra),

- 317 -
CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

podendo ser considerado uma categoria ontológica, em que particula-


res e universalidades do ser social também se anunciam.

Podemos aqui nos ocupar somente da ontologia do ser social. Contudo,


não seremos capazes de captar sua especificidade se não compreendermos
que um ser social só pode surgir e se desenvolver sobre a base de um ser
orgânico e que esse último pode fazer o mesmo apenas sobre a base do ser
inorgânico. (Lukács, 1978, p. 3)

De maneira geral, o corpo é o momento primeiro de aprendizagem e


ente fecundo da identidade social. Inúmeros estudos destacaram isso.
Segundo Hegel, “a consciência sensível é, no homem, a primeira, a que
precede todas as outras” (1996, p. 133); para Marx, “a sensibilidade tem
de ser a base de toda ciência” (2004, p. 112 – grifo do autor); na visão
de Mauss, “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do ho-
mem” (2003, p. 407); na compreensão de Haroche, é preciso “dar ou-
tro lugar à corporeidade, ao movimento, à mobilidade, à mudança nos
processos de pensamento” (2008, p. 226); e, para Foucault, “é pelo es-
tudo dos mecanismos que penetram nos corpos, nos gestos, nos com-
portamentos, que é preciso construir a arqueologia das ciências huma-
nas” (1979, p. 151). De fato, como ressaltou Florence Weber, torna-se
necessário “dar conta do lugar do corpo na experiência pessoal” (2009,
p. 267), apoiando-se numa etnografia das percepções sensoriais.
O mundo sensitivo enseja a descoberta de tipos de educação e posi-
ções sociais diferenciadas. Por isso, “o corpo do burguês não é o corpo
do artesão ou do operário (Le Goff & Truong, 2006, p. 30), e tampouco
do pescador. Dessa maneira, formas de sociabilidades produzem educa-
ções corporais e sensitivas distintas no transcurso do tempo e nas media-
ções sociais particulares, seja em seus aspectos materiais, seja nos ingre-
dientes simbólicos. Dessa maneira, para existir como pescador, o homem

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

tem que se afirmar na fruição dos seus sentidos concretamente, em seu


dia-a-dia, nos diálogos que realiza com o mar, através de sua atividade
produtiva. Expressa seu Neneu (pescador mestre, 67 anos): “O cabra tá
pescando, aí mudou, formou o tempo. A gente viu. Aí vem um vento e a
gente sente lá dentro, na água. A gente vê no mar. Mas tem que sentir, ou-
vir pra poder pescar”.
Não basta apenas ter um corpo humano para ser pescador, já que é
essencial desenvolver uma educação sensitiva singular em termos
socioculturais. Sem dúvida, aquele que volta sua vida para os recursos
aquáticos “tem que sentir, ouvir pra poder pescar”, e ver “no mar” (seu
Neneu) o que pode ser humanamente apreendido, por meio de um con-
junto de talentos adquiridos no fazer cotidiano para que seu trabalho
aconteça. Sem dúvida, “o corpo tem, portanto, uma história” (Le Goff
& Truong, 2006, p. 177), e o mesmo pode ser dito em relação ao saber
sensível dos pescadores artesanais.
Por conta das questões antes aludidas, é oportuno retomar a catego-
ria estética, no significado que lhe foi conferida originalmente. No sé-
culo XVIII, o filósofo alemão Alexander Baumgarten criou o conceito
de “estética”, buscando dar conta da capacidade de sentir das sensações
e percepções humanas imediatas. Tal categoria não brotou vinculada ao
campo de discussão acerca do belo nas artes, fato que emergiu posterior-
mente e que acabou ganhando supremacia ante as questões do corpo.
Segundo Eagleton, “a estética nasceu como um discurso sobre o corpo”
(1993, p. 17), é uma “ciência das sensações” (Hegel, 1996, p. 13). É isso
que será aqui valorizado, com o objetivo de melhor entender o modo
de vida dos pescadores artesanais, como uma estética existencial, uma
estética inerente ao modo de ver, estar e sentir o mundo, ou seja, uma
estética pesqueira.
Sobre a estética, compartilho a ideia do próprio Eagleton, pois:

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

O que eu tento fazer aqui é religar a idéia de corpo com temas políticos
mais tradicionais como o estado, a luta de classes e os modos de produção,
usando a categoria da estética como mediação; e desse modo distancio-me
igualmente dos estudos de política de classe, que pouco têm a dizer sobre o
significado do corpo, como dos de política pós-classista que se escondem
nas intensidades do corpo para fugir a questões exageradamente “globais”.
(1993, p. 11)

Embora não centre minha abordagem na esfera política, acredito que


a categoria estética seja uma mediação valiosa para se entender o traba-
lho da pesca artesanal, já que é sobre o (e no) mundo sensitivo que ele se
realiza, por meio da externalização das fruições da natureza humana, de
uma estética pesqueira. A estética pesqueira é necessária ao existir do
trabalho no mar, especialmente por causa das habilidades corpóreas do
fazer produtivo, e se distingue da estética instrumental, cuja origem está
na estruturação e no desenvolvimento de uma racionalidade especializa-
da na qual os seres humanos fragmentam e aprisionam seu saber-fazer.
Não só a natureza oceânica impõe necessidades de respostas físicas e
mentais complexas para o fazer-se pescador, mas a própria organização
social e técnica da pesca cobra procedimentos integradores, fundados
em compreensões totalizantes do processo de trabalho. Acima de tudo,
um saber especializado e, por isso, um fazer parcial não são compatíveis
com o trabalho da pesca artesanal, situação revelada por vários estudos
(Diegues, 1983; Maldonado, 1994; Ramalho, 2006).
Há, aqui, uma estética inerente ao modo de vida e à cultura do tra-
balho pesqueiro artesanal que resiste, embora de modo não político, a
uma estética instrumental típica da modernidade capitalista.
Essa questão da fruição dos sentidos não é simples, na medida em
que a vida instrumental e utilitária potencializou deformações educati-
vas das forças essenciais humanas: intelectuais e físicas. Pode-se dizer que

- 320 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

a estética da existência instrumental bloqueou realizações de “uma vida


cheia de sentidos” (Antunes, 2000, p. 143) e, com isso, esterilizou
possibilidades de humanização do próprio mundo sensitivo de homens
e mulheres.
Se, por um lado, o mundo contemporâneo produziu uma série de
riquezas materiais, culturais, científicas, tecnológicas, sociais e indivi-
duais como nunca na história humana, por outro, tudo isso se deu so-
bre custos humanos terríveis, com aumento da degradação ambiental,
fadiga, miséria, precarização do trabalho, desemprego, fome, individua-
lismo, descartabilidade, alienação, que atingiram em graus distintos as
classes sociais, de maneira negativa. Desse modo, “A existência sensorial
é despida, num nível as necessidades básicas, só para ser extravagante-
mente inflamada num outro nível. A antítese do escravo assalariado,
cegamente biologizado, é o ócio exótico, o parasita em busca de praze-
res (...)” (Eagleton, 1993, p. 149).
O interessante a observar é que as determinações do existir e as me-
diações parciais dos pescadores de Suape ligam-se às suas capacidades de
resistência, apoiadas na força da sociedade do trabalho e na sua cultura
produtiva insubmissa, que se inscrevem também no corpo.
Sendo assim, avalio que o modo de vida dos pescadores – em suas
práticas sociais (materiais e espirituais) – pode ser incluído no tipo de
resistência passiva descrita por Marx sobre o operariado, em sua luta pela
diminuição da jornada de trabalho, antes de se opor, através de mani-
festações políticas diretas, à burguesia – a saber, na época, “os trabalha-
dores tinham oferecido uma resistência até então passiva, embora infle-
xível e cotidianamente renovada” (Marx, 1982, p. 332) à hegemonia do
capital. Portanto, aqui a estética pesqueira é essa resistência passiva
ungida de uma sociabilidade “inflexível e cotidianamente renovada” ante
o mundo instrumental, a sociedade de consumo e o domínio direto do
capital sobre o trabalho.

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

Por essas razões, para os pescadores suapenses, pertencer (de corpo e


mente) ao capital, às empresas de pesca e aos atravessadores do setor é
tornar-se obrigado e submisso aos ditames externos. Ser artífice do mar,
então, é resistir a essas possibilidades e a suas instrumentalizações. Des-
sa maneira, diz Genildo (pescador mestre, 35 anos): “Não quero ficar
preso à empresa ou a comerciante nenhum. Sou livre”.
Em contrapartida, a representação da autonomia societária, para os
pescadores, privilegia a ambos, pois a arte da pesca artesanal é sinteti-
zadora dessas esferas, da compreensão intelectual e expressão corporal.
O ato de pensar não tem nenhuma valia se não for traduzido no manejo
do corpo capaz de lançar, com as mãos, uma rede no momento preciso
sobre o cardume, no puxar o covo, na ação de equilibrar-se a bordo na
hora em que se retira ou se coloca a rede no mar, etc. “Na pesca o cara
pensa e faz”, afirma José Edson (pescador mestre, 41 anos).
O bom uso corporal é forte ingrediente do que é chamado de arte
da pesca em diversas localidades brasileiras, graças à rica técnica que
compõe a execução do trabalho pesqueiro e da qual nenhum pescador
pode abster-se.

O equilíbrio que deve possuir o pescador na hora do “lanço” é uma “arte”


à parte, sobretudo quando há forte maresia. De pé no estreito batente que
fica à beira da canoa, “tem que balançar o corpo de acordo com as ondas e
o movimento da canoa para não cair n’água” – diz um pescador. Ao mes-
mo tempo em que faz um esforço considerável para jogar a rede ao mar, é
obrigado a equilibrar-se apenas sobre as duas pernas na beirada da canoa,
recebendo muitas vezes o forte impacto das ondas no casco desta. A rapi-
dez com que deve ser lançada a rede vai depender da velocidade do vento;
quanto mais veloz estiver maior agilidade vai exigir dos lançadores. (Mello,
1985, p. 116)

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Desde a entrada na pescaria, o corpo ocupa papel também de desta-


que. A vida no mar e seus balanços constantes exigem adaptações do
organismo humano à sua rotina de labuta para que os homens pesquem,
como se observa nas transcrições das vozes:

Já fiz algumas pescarias boas com o meu filho, mas só que ele começava a vo-
mitar e a sentir aquele enjoo, aquele negócio ruim. Aí eu tinha que dizer:
“Meu filho, vá pegar um facão e vá cortar cana, mas não penda pra pescaria.
Não vai dar resultado”. Ele ficava desanimado pra pesca, porque toda vez que
ele ia mais eu ele vomitava. Agora, se ele aguentasse, eu dizia vamos pescar pra
ganhar mais dinheiro. (Seu Luiz, pescador mestre, 66 anos)

A pessoa pra pescar, lá fora, tem que ter estrutura física, porque se não for
acostumado ele pode enjoar, perder a cor, vomitar. Aguentou o tranco, pode
embarcar. Agora, lá pra fora, tem que ter uns 18 anos acima pra aguentar, o
balanço lá é danado. Tem que ter força nas pernas pra aguentar o mar.
(Conrado, pescador mestre, 39 anos)

Comecei a pescar com 15 anos. Quando entrei na pesca, o meu corpo tava
numa fase boa pra poder pescar. Tá numa fase boa é o corpo tando em
forma, a mente também e a vontade de pescar. Também, aos poucos, fui
me acostumando, pois, quando meu pai ia, eu também ia.

[Entrevistador: Me fala mais sobre esse corpo em forma?]


Em forma é tando numa fase que uma pessoa de 10 anos não tem. Assim,
estrutura boa. Já depois dos 15 anos já tem aquele macete pra pesca. (Marco,
pescador mestre, 32 anos)

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

Para pescar em alto-mar, no entendimento de Conrado, “tem que ter


estrutura física”, pois “o balanço lá é danado”, podendo provocar enjoos.
Por isso, são necessários costumes e resistências orgânicas como elemen-
tos primordiais do fazer-se marítimo. A consciência não está deslocada,
como se vê, da natureza orgânica do ser social, necessitando dela para
sempre se efetivar em si mesmo e, com isso, no meio ambiente.
Essa não adaptação física é ricamente manifestada no discurso dos
pescadores. A impossibilidade de acesso ao mundo do trabalho pesquei-
ro, por causa do mal-estar, apresenta-se nas limitações das reações sen-
sitivas, que o metabolismo humano manifesta para lidar com o oceano.
A não adaptação orgânica obriga o deslocamento para outro trabalho,
realizando quase que uma “seleção natural” entre os próprios pescado-
res. Por isso o conselho do pescador, seu Luiz: “Meu filho, vá pegar um
facão e vá cortar cana, mas não penda pra pescaria. Não vai dar resultado”.
Sem a adaptação física ao meio ambiente marinho, as barreiras orgâni-
cas não poderão ser suplantadas. Assim, o sentir dos sentidos não pode
ser obscurecido na realização do trabalho pesqueiro.
Loureiro constatou, ao estudar pescadores paraenses, que o forte
empecilho capaz de bloquear o acesso de homens ao mar seria o enjoo,
a não adaptação física humana ao ambiente marinho e às suas comple-
xas exigências: “Há, entretanto, um fator físico-psíquico que dificulta e
freqüentemente impede o ingresso de novos pescadores e que constitui
a principal e única limitação definida claramente – sentirem enjôos e
vômitos durante as viagens” (Loureiro, 1985, p. 60).
Ademais, o pescador Conrado expressa que, na pesca, “tem que ter
força nas pernas” para realizar o metabolismo social com a ação rítmica
do mar, quando se encontra embarcado, porque essa comunhão é ne-
cessária à pescaria (puxar rede, colocar armadilhas na água, limpar o
convés, andar pela embarcação, dentre outras coisas).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Segundo o suapense Marco, há uma condição central à possibilidade


de pescar, compreendendo como “fase boa” a forma física e intelectual,
somada ao desejo de ser pescador. Isto é: “Tá numa fase boa é o corpo
tando em forma, a mente também e a vontade de pescar”. Corpo e mente
em forma são elos que compõem o homem que pesca. Corpo em for-
ma, além disso, vai representar a capacidade que a corporeidade já tem
para cumprir determinações cognitivas. Se antes não se conseguia reali-
zar certas tarefas, agora o mundo sensível está preparado para fazê-lo.
Decerto, não se estabelece uma disjunção entre espírito e matéria,
ou mente e corpo, mas se reforça e se valoriza a ambos: “Nesse caso, bra-
ços e mentes ainda andam juntos” (Romero, 2005, p. 86). Nesta socieda-
de do trabalho, não haveria possibilidade de ser pescador apenas com o
domínio de uma dessas esferas sem que a consciência se humanize no
mundo sensível ao humanizar-se também. É claro que o mestre torna-
se mais saber do que fazer, porém seu saber foi (e é) reconhecido pela
força e a qualidade de seu fazer ao longo da vida, não havendo, portan-
to, uma falsa dicotomia. Ademais, a “vontade de pescar” unge o movi-
mento da vida destinada a transformar o homem em pescador. De fato,
“o homem é um ser que dá respostas” (Lukács, 1969, p. 132), ao
problematizar as causalidades ambientais e sociais, buscando incorporá-
las em sua teleologia do trabalho pela organização e fruição corporal,
dos sentidos humanos, da manifestação da sua vida, em sua eterna co-
nexão com o meio ambiente.
Para os pescadores, a idade reflete tanto o amadurecimento dos sen-
tidos do corpo, quanto das capacidades cognitivas. Nas falas dos sua-
penses, entra-se na pesca de alto-mar em torno dos 15 aos 18 anos, pou-
co mais tarde que o trabalho agrícola, visto que “a pesca requer uma
certa compleição física para possibilitar o manejo dos aparelhos e resis-
tência orgânica para suportar o frio e as chuvas freqüentes” (Loureiro,
1985, pp. 57-8). No entanto, não é só isso. Decerto que uma maior

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

estrutura orgânica tem seu valor, porém o mar e os pescados colocam


componentes complexos a serem compreendidos, tanto para ter sucesso
na pescaria, quanto para obter segurança no mar. Desse jeito, tempo
mais demorado, mente mais trabalhada e, assim, preparada para as águas
marítimas. Técnica e força juntam-se na realização humana nas águas,
ou seja, o saber-fazer é projetado nas plenitudes sensitivas e cognitivas,
que educam os sentidos na tomada de consciência e, por isso, na huma-
nização do próprio corpo (no saber pesqueiro), na qualidade das faces
de uma mesma moeda.
A questão da educação corporal começa a se desenvolver cedo den-
tro da própria família, fundando-se no trabalho. Inicialmente, tarefas
menores são repassadas aos filhos, que ainda não têm a estrutura física
exigida para suportar tempos maiores nas águas, nem detêm força sufi-
ciente para puxar e retirar redes do mar.

A pesca nossa, aqui, era tainheiro, sauneiro. Na época, eu com 13 anos de


idade não podia puxar o arrasto todo aqui dentro. (Seu Luiz, pescador mes-
tre, 66 anos)

A pesca mais difícil é a de covo, pois depende de força pra colocar ela pra cima.
Já de linha é maneira, e eu podia fazer. (Conrado, pescador mestre, 39 anos)

Retirar a rede do mar ou o covo exige esforços físicos maiores, já que,


além de aumentar consideravelmente de peso quando está molhada, no
caso da rede, essas armadilhas trazem pescados, no êxito do trabalho,
exigindo assim um maior uso da força muscular dos proeiros, comum
àquelas pessoas de maior estrutura corporal.
Os primeiros passos no mundo embarcado são dados na companhia
do pai, em pescarias próximo à costa, antes da arrebentação, ou, quan-
do muito, em poucas horas em mar alto, realizando trabalhos não pesa-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

dos (pesca de linha e despescando) e sempre auxiliados de perto pela


figura paterna. Quando vão para o mar de fora, os mais jovens ficam no
meio do barco, porque na ponta fica o melhor proeiro – o bom pesca-
dor – e na popa vai o mestre, cabendo ao recém-marítimo observar e
fazer o que eles pedem. O barco também tem seus territórios do saber-
fazer e seus momentos de conquistas. Por exemplo, o antigo banco do
mestre (ou banco de governo) existente na jangada transformou-se, hoje,
com os botes, numa pequena cabine de comando (ou cabine do mes-
tre), onde se situa o leme e o motor, ficando na popa sob o governo do
mestre. Tudo isso ajuda a construir e a socializar o jovem em um saber
sensível direcionado ao trabalho pesqueiro, fato que prepara o sentir
humano para desafios mais agudos.

Eu ajudava a puxar a rede ou arrumar uma corda com pai. Era o mais ma-
neiro, porque, pela minha idade, eu não podia pegar ainda uma coisa mais
pesada, aí fazia isso no mar. (José Edson, pescador mestre, 41 anos)

Eu entrei na pescaria acho que com uns 14 anos. Eu estudava pela tarde e, de
manhã, eu ia pro mar. Saía às 4h30 da manhã, mais meu pai. Pescava até 8
ou 9 horas e descansava um pouquinho pra ir pro colégio. Na época, era pesca-
ria de linha. Não muito pesada. Depois ele começou a me ensinar pra gente
pescar de mergulho perto da barra, quando a água estava limpa. A gente pega-
va serra, xaréu, garajuba, essas qualidades de peixes. (Gildo, pescador proeiro,
35 anos)

Aos 10 anos, fazia pesca de arrasto, de sauneiro. Arrastava pra praia logo que
entrei pra pescaria. Pescava a tainha, que era pesca de cerco, redonda. Depois,
já maior, fui pescar lá fora e abandonei essas pescarias. (Seu Neneu, mestre,
67 anos)

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

Quem entra na pesca fica no meio do barco, pra desmalhar ou pesca de linha
mesmo. Ele não pode puxar rede, que ele não sabe. Não tem técnica e nem
manobra nas pernas, devido ao balanço do mar. (Seu Gidinha, pescador
mestre, 70 anos)

Esse contato inicial, com as linguagens do mar, possibilita logo cedo


a construção de entendimentos humanos naturais acerca da natureza
marinha e, especialmente, da própria fruição das forças essenciais do
homem para melhor lidarem com as águas, ora apresentadas na capaci-
dade de compreender os tipos de ventos e os movimentos das marés,
ora explicitadas na habilidade para descobrir pesqueiros, ora para ouvir
e sentir as mudanças náuticas e metereológicas. Além disso, permite
ao futuro pescador conhecer a si, a fim de desenvolver melhor sua frui-
ção sensível.
O aprendizado marítimo sempre foi feito em conjunto, por meio da
convivência prática, em que a cultura produtiva da pesca encarna suas
habilidades e se objetiva no existir corporal de homens, bem como na
sua insujeição. No fazer corporal, no seu (re)criar sensível, encontram-
se os aspectos das respostas às eternas necessidades humanas. Dessa ma-
neira, “(...) a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adqui-
ridos conduzem a novas necessidades” (Marx & Engels, 1996, p. 40)
espirituais e sensíveis, que precisam ser novamente respondidas.
Ao executar isso, o pescador funda e se alimenta nas práticas
socioculturais típicas de seu modo de vida. Segundo Lukács,

Tudo que a cultura humana criou até hoje nasceu não de misteriosas moti-
vações internas espirituais (ou coisa que o valha), mas do fato de que, des-
de o começo, os homens se esforçaram por resolver questões emergentes
da existência social. É à série de respostas formuladas para tais questões
que damos o nome de cultura humana. (1969, p. 170)

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O corpo do pescador é lapidado e construído no fazer da cultura


humana marítima, na busca do dever-ser, no fazer-se artista da pesca
artesanal e no fugir da sujeição. No mundo da pescaria, o verbo faz-se
carne, a abstração concretiza-se e, então, o mais jovem tenta tornar-se
pescador feito, um artista do mar, fazendo-se no ato de fazer.

Eu comecei na pesca de linha. Coisa maneira. Depois vai aumentando, né?


A gente vai ficando mais forte, né? Aprende a usar o corpo e saber o que vai
fazer. O corpo do pescador... o cabra fica já pronto mesmo pra pescar, pra vida
dele. Sabe usar o corpo em tudo. (Seu Neneu, pescador mestre, 67 anos)

Na fala de seu Neneu, o momento em que o pescador “aprende a


usar o corpo e saber o que vai fazer” clarifica que o corpo não se desvincula
da história, das determinações do existir dos pescadores, em que não há
uma mera adaptação biológica, e sim a constituição de um complexo
processo sociocultural transmitido nos sentidos, como condição para o
desenvolvimento de uma cultura humana específica.
A força do verbo fazer não é algo exclusivo ao âmbito da pesca
artesanal em Suape, encontrando-se presente no imaginário dos traba-
lhadores das usinas de açúcar de Pernambuco e no atributo de artistas
que eles conferem a poucos trabalhadores das oficinas, que executam
sua atividade produtiva com base na cooperação simples e, portanto, no
não parcelamento das tarefas, segundo Lopes (1976).

O fazer do artista ressalta o aspecto artesanal de seu trabalho, no sentido


de ver sua obra acabada após ter percorrido ele próprio as etapas necessá-
rias à sua realização. Nesse sentido, os diversos grupos de operários, traba-
lhando na mesma oficina mas fazendo trabalhos que não se complementam
no seu processo de produção, organizam-se sob a forma da cooperação sim-

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

ples. Os operários da oficina chegam a ter uma imagem da organização da


produção na oficina que corresponderia a um caso limite de cooperação
simples e que se exprime na ênfase à intercambilialidade de tarefas própri-
as a diversas artes e a conseqüente possibilidade de várias artes. (Ibidem,
pp. 36-7 – grifo do autor)

É esse fazer amplo e concreto que diferencia o trabalhador artista dos


outros na usina. Para Lopes, “o código da arte, interno aos operários,
não necessita de um ‘teste’ formal diante do chefe: o ‘artista mesmo’ é
reconhecido por sua prática cotidiana” (ibidem, p. 39).
Como se percebe, a prática – o fazer – é o piso sobre o qual se assenta
a legitimidade do saber, da prévia ideação. Contudo, mesmo assim, ape-
sar de se encontrarem nesse aspecto, para os pescadores artesanais, o ca-
ráter de subalternidade imposto pelo assalariamento na usina negaria o
atributo de artista em seu mundo do trabalho, por ferir de morte o prin-
cípio da condição liberta de sua atividade, do uso do seu corpo, do pôr
teleológico pesqueiro vivificado na busca da liberdade e de uma maior
autonomia como valor de vida presente em sua arte.
Duarte (1999) descreveu que, para os pescadores de Jurujuba, Rio
de Janeiro, trabalhar como assalariado em barcos industriais (as trainei-
ras) retira o atributo de arte de sua ação produtiva, tendo em vista que
se assalariar é o “lugar da subversão do código da arte” (ibidem, p. 95),
seu empobrecimento cognitivo e material.
Independentemente dessa questão, o fazer não se destitui de um sa-
ber, porque ele é um tipo de saber – o corporal – que confere legitimi-
dade ao código da arte, desde seu nascimento (ao sentir a matéria) até
sua finalização (na transformação do dado), ungido todo tempo pela
razão, sendo o lócus também da não sujeição, do não controle colocado
por vontades alheias. Pode-se concluir que: “O corpo como base do sa-
ber e do conhecimento. O corpo como instalação de nossa existência

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

no mundo é parâmetro último para as avaliações constantes de nossas


ações e atitudes” (Duarte Jr., 2004, p. 218).
No trabalho da pesca, os momentos inaugurais de sua pedagogia
apoiam-se na feitura de pequenos esforços físicos e cognitivos, tão ne-
cessários e intrínsecos à formação dos pescadores, fato que se repete a
cada geração na constituição do saber sensível pesqueiro, orientado de
perto pelo mestre, pela socialização produtiva no mar. Desta feita, os
corpos e o sentir dos sentidos dos pescadores são lapidados pelo toque
das vogas, do sol, da brisa, do som que brota do mar, da visão dos car-
dumes, na pesca e despesca, no manter-se em pé sobre o barco, no en-
frentar os balanços do mar e, principalmente, no conviver social cotidi-
ano. Escreve Lima: “Assim é que as crianças vão-se iniciando nas
atividades da pesca, fazendo pequenos serviços como ‘pontas-de-cabo’,
e logo que tenham ‘físico’ para remar, já podem passar a companheiros-
de-remo” (1997, p. 168).
A pesca se faz tecida também pelo lúdico, tanto que, para o pesca-
dor, seu Milton, “a pesca começou como divertimento, mergulhando e co-
meçando a saber das coisas”. O fascínio das águas (dos seus seres e dos
desafios) apresenta-se como universo estimulante a ser conquistado pe-
los mais jovens, que em suas brincadeiras estabelecem culturas corpo-
rais e se preparam intelectualmente ao prepararem seus sentidos para
conquistar a arte de ser pescador.
Apesar das diferenças ambientais, que chegam a permitir a entrada
ainda mais cedo nos rios do Amazonas – por conta da “maior facilida-
de” de lidar com a pesca interiorana em comparação à marítima –, Fur-
tado desnudou o processo de educação inicial daqueles que um dia se
tornarão pescadores feitos:

Desde cedo, por volta dos cinco anos de idade, os meninos já começam a
ir com seus pais ou parentes para a pescaria, para ajudar nas pequenas tare-

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

fas. Ajudar a transportar um remo para a canoa, ajudar a pilotar a monta-


ria, escoar a água acumulada no fundo da canoa, vigiar uma malhadeira
que ficou arriada num determinado lugar para capturar o peixe; ajudar na
gapuia ou na tapagem de um igarapé para pegar peixes, ou ainda, simples-
mente para ir com o pai para aprender a pescar, são algumas das tarefas
realizadas pelos meninos. (1993, p. 201 – grifos da autora)

Quem decide o momento de ir ao mar alto não é somente o jovem,


mas o mestre, que é seu pai, tio ou irmão mais velho – fato repleto de
cuidados, visto que perder um membro da tripulação no mar é forte
demérito para um bom mestre, além de envolver, na maioria das situa-
ções, sentimentos filiais. É claro que as necessidades materiais, de ter
mais gente da família pescando para prover a casa de alimentos e ter
renda monetária, isso conta, e muito, mas é o mestre quem avalia os
momentos de preparo para passar de função ou para que se possa em-
barcar. Santiago3 (pescador proeiro, 52 anos) conta: “‘Agora você pode ir,
viu!? Já tá no tempo, né?’ Meu pai me guiou para ajudá-lo no mar”.
Independentemente de tal situação, orientar e saber o momento cer-
to do corpo e do amadurecimento cognitivo necessário para a faina no
mar, projetada no jeito de trabalhar e de desenvolver a pescaria em téc-
nicas manuais, visuais, rítmicas, para pôr e retirar a rede, esse é um dos
papéis do mestre. Corpo e mente devem ser um só no que for possível
na pesca. O deslocamento para atividades mais sofisticadas “depende
fundamentalmente da avaliação do mestre” (Lima, 1997, p. 169), da
sua certeza de que determinado indivíduo pode realizar, de agora em
diante, tal tarefa, e não mais somente aquela. Esses são os percursos ini-
ciais para se alcançar o todo, a arte da pesca. Assim, “o mestre testa os
proeiros sem eles saberem: ‘Olha, faz isso!’”, argumenta seu Gidinha
(mestre), no intuito de observar aptidões presentes ou não.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

2. Fruição sensível e suas teorias pesqueiras

Há o que pode ser classificado de uma progressão na pesca artesanal, na


qual a ascensão de atividades é definida sem imposições individuais.
É evidente que cabe ao mestre avaliar cada um, porém, os critérios são
conhecidos pelo coletivo e ganham o aval também da tripulação, haja
vista que a qualidade do pescador deve ser demonstrada objetivamente
no seu criar sensível, dia após dia, que confirma o apuro de seu conheci-
mento. Assim, a passagem a uma outra função no barco torna-se natu-
ral. Esse processo não conduz mecanicamente o pescador ao posto de
mestre no decorrer de sua vida. Ele pode ser considerado um artista do
mar, mas sem jamais atingir sua graduação máxima, a mestrança, por
não ter adquirido os talentos sensitivos e abstratos em plenitude.
Os pescadores não negam que essa feitura é cheia de dureza, já que
sua faina no mar traduz esse componente na formação de seu corpo.
Marco certa vez me disse:

Muda tudo. Meus dedos engrossaram demais. É... engrossam. É muito traba-
lho de força, de puxar e consertar rede. É muito diferente de um cara de escri-
tório. Se um cara de escritório for uma vez com a gente, ele fica com o dedo
todo cortado, porque o couro dele é muito fino, e o da gente não. A gente, com
o costume, o couro vai engrossando, pescando e levando sol. Cada vez mais que
a gente vai trabalhando o couro vai engrossando. (Marco, pescador mestre,
32 anos)

No caso do talento marítimo, a agudização da habilidade encarna-se


nas funções assumidas no barco. Os mais jovens exercem atividades de
menor complexidade e ficam no centro da embarcação. Todavia, isso
não é o mesmo que afirmar que eles não sejam importantes, visto que,
ao cumprir atividades essenciais – como, por exemplo, desmalhar os

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

peixes e, às vezes, colocá-los no gelo –, o pescador mais novo deixa os


outros proeiros livres para assumirem tarefas mais exigentes. Quando
não há pescadores jovens, o trabalhador menos hábil também não deixa
de assumir um papel valioso, só que com exigências bem maiores que as
colocadas aos mais novos.
Decorrente disso, o melhor proeiro, por deter uma sofisticada capa-
cidade de externar seu saber e fazer, localiza-se na ponta do barco, lan-
çando e retirando as redes, pegando com o bicheiro (uma vara de mais
de dois metros, com um gancho na ponta) as boias dos covos e das re-
des, etc., quando o barco, muitas vezes, está em pleno movimento.
É auxiliado pelo proeiro do centro e, sobretudo, pelo que fica mais atrás.
Este último é mais capacitado que o do centro, por ser responsável em
puxar a rede e alinhá-la no momento de sua retirada do mar. Ele é cha-
mado, por alguns, de chumbeiro, por pegar essa parte da rede na hora
de puxá-la do oceano.
No que concerne ao proeiro da ponta, esta é a derradeira função an-
tes da mestrança, e a ascensão só ocorrerá se o trabalhador conseguir
realizar a marcação.4 A ação produtiva executada por ele é rica em des-
treza. A leitura e o manejo corporal ágeis revestem-lhe de papel essencial
no mundo produtivo, ganhando reconhecimento dos demais proeiros e
admiração advinda do próprio mestre, que, em várias oportunidades,
lê os gestos do proeiro da ponta para depois poder agir, e vice-versa.
A comunicação é plenamente corporal, por causa do som do motor e/
ou para não afastar peixes mais sensíveis, que poderiam fugir ao perce-
ber sonoridades estranhas.

Tem proeiro muito bom, que é o da frente, e ele é quase mestre. Falta somente
marcar. Agora todos do barco são importantes. (Genildo, pescador mestre,
35 anos)

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O proeiro que fica na ponta ele tem a maior prática. Ele é proeiro. Todo aque-
le que não é mestre é proeiro. Todos eles são proeiros. Agora tem um que sabe
mais, aí ele fica lá na frente, porque ele tem a prática de pegar a boia, puxar
âncora, largar a rede. Ele é quem faz o primeiro movimento. Ele sempre tra-
balha ao contrário na proa do barco. Ele não pode puxar uma rede pra frente
do barco. Ele tem que puxar e dar as costas pro mar, e tem que ter equilíbrio
ao mesmo instante. (José Edson, pescador mestre, 41 anos)

O proeiro da frente sabe fazer as coisas e se equilibrar de costa pra voga do


mar. Ele vira de costa pra puxar a rede. A proa do barco tá ali, e eu tô puxando
a rede de costa pra proa e olhando pro mestre. Pra o mestre entender o que a
gente quer, a gente com a mão e o mestre já entende: “Aumenta! Diminui!”.
Pra diminuir eu baixo a mão. Ninguém fala. É tudo no gesto. A gente se co-
munica com os gestos, com os braços, batendo com o pé no barco para dimi-
nuir ou parar a embarcação, essas coisas. (Gildo, pescador proeiro, 45 anos)

De fato, o da ponta “sabe mais” que os outros proeiros, porque “ele é


quem faz o primeiro movimento” e decisivo ato, com talento agudo por
estar de “costas pro mar, e tem que ter equilíbrio ao mesmo instante” (José
Edson), “olhando pro mestre” (Gildo) para saber se tudo se encontra em
bom termo, para que a equipe possa, de modo integrado e no ritmo cor-
reto, efetivar o processo de cooperação essencial à pesca. A feitura hábil e
sofisticada do proeiro da ponta o deixa na condição de “quase mestre”,
precisando apenas realizar seu desfecho decisivo e final para o controle
definitivo da arte de ser pescador: “falta somente marcar” (Genildo).
De maneira geral, toda a atividade feita a bordo é respeitada, porque
ela é central para o sucesso da pescaria. Sem dúvida, “todos do barco são
importantes” (Genildo) e necessários para que a sociedade do trabalho
aconteça. Não há, entre os pescadores, desrespeitos ou funções conside-

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

radas sem valor ou de valor menor. Tudo tem seu grau de significância
para o funcionamento do barco, por isso os ganhos são repartidos igual-
mente através do quinhão, cabendo apenas ao mestre sua parte e a que é
destinada à rede, especialmente por ela ficar sob sua responsabilidade
no que diz respeito aos reparos necessários da malha.
O corpo é o espaço do diálogo, dos sinais e signos produtivos utili-
zados pela tripulação para se entender no mar, formando uma semiótica
da pescaria. No barco, “ninguém fala” por palavras, pois “a gente se comu-
nica com os gestos” (Gildo) típicos do saber-fazer pesqueiro. Essa é uma
forte linguagem, a do uso corporal.
Câmara Cascudo escreveu que

(...) o pescador é profissional do silêncio”, pois, durante seu trabalho no


mar, “as ordens são dadas quase por sinais, gestos, acenos na sugestão da
manobra imediata, feita sem rumor pessoal. O ressôo da voz humana afu-
gentaria o peixe dos pesqueiros como explosão de mina submersa. (1957,
p. 31)

No trabalho artesanal marítimo, a prática da mestrança é o próprio


dever-ser individual da arte de ser pescador. Sua técnica expressa-se não
no uso da força – tendo em vista que os mestres, em boa parte dos casos
(não sempre), são os pescadores com mais idade –, mas no refino hu-
manizador dos sentidos corporais que um homem deseja atingir no mar,
no autocontrole psicológico e físico, na realização da sua autoatividade
embarcada. Saber usar os sentidos é fundamental para atingir a prática
da mestrança, o último e mais completo estágio da arte de ser pescador.
O mestre é portador das leituras sensitivas e mentais mais elabora-
das, cuja tradução apresenta-se no ato talentoso de encontrar pesquei-
ros, de marcá-los e saber guiar-se no mar, posto que “o mais difícil no
mar é marcar” (seu Neneu, pescador). É ter roteiros aquáticos, sabendo,

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

matematicamente,. o tempo necessário para alcançá-los: “Com vento


mais forte é um tempo para ir a um pesqueiro, sem ele é outro tempo. A
gente sabe tudo, como se fosse na matemática” (Marco, pescador mestre,
32 anos).
Marcar as áreas mais piscosas do mar – de acordo com mapas cog-
nitivos – é trazer a natureza marinha à humanização edificada pela his-
tória cotidiana desses homens das águas, por meio da capacidade dos
seus sentidos que a consciência trabalhou artesanalmente ao longo do
tempo. Por isso, sons na água, sinais de cor, formações de nuvens, tipos
de marés são decifrados como elos indissociáveis da relação humana
com a natureza, ao introduzi-los como componentes relevantes do modo
de vida do pescador e da sua reprodução ao longo dos anos. Todos os
embarcados detêm atributos de refinadas leituras sensitivas náuticas e
pesqueiras, mas ninguém igual ao mestre. Desmistificar o mundo aquá-
tico e as variáveis que o formam e o articulam é fator determinante da
mestrança:

O mestre sabe usar melhor a visão e o ouvido. Sabe mais os locais de pescar.
(Gildo, pescador proeiro, 45 anos)

Ele descobre o pesqueiro quando o peixe tá fazendo batida e tem brilho dife-
rente, ou o pescador sente mais peixe no anzol ou, desconfiado, pôs a rede e
veio mais peixe. O peixe tá passando por ali. Aí ele fica pra ele. (Seu Milton,
pescador mestre, 67 anos)

Marcar tem que ter muita alembração. O esquecimento é ruim. (Seu Gidinha,
pescador mestre, 70 anos)

A fala do pescador Gildo indica que marcar é saber usar bem o cor-
po, sua fruição. O mestre, como nenhum outro ser humano, “sabe usar

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

melhor a visão e o ouvido” para compreender o que o mar mostra e diz,


objetivando encontrar os pesqueiros “quando o peixe tá fazendo batida e
tem brilho diferente” (seu Milton) no mar; depois é marcar na consciên-
cia o que foi decodificado sobre a vida marinha para que se possa “saber
mais os locais de pescar” (Gildo), e “aí ele fica pra ele” (seu Milton), envol-
vendo o ponto de pesca descoberto em segredo.
O corpo humanizado desse pescador resulta de “muita alembração”
(seu Gidinha) acerca dos lugares marinhos, de uma aguda consciência,
para estabelecer uma comunhão insofismável com as águas, através de
seu saber-fazer e dos comandos precisos no mar. “Assim, o pescador fei-
to é o resultado de um fazer paulatino que vai ao mesmo tempo fazendo
quem faz. A ‘senioridade’ do mestre é também uma senioridade física e
mental” (Duarte, 1999, p. 95 – grifos do autor), pelo amadurecimento
das faculdades humanas e de seu autocontrole na condução do mundo
embarcado. Seu apuro – edificado no tempo da vivência – traduz-se em
um eterno dever-ser para que a pesca se atualize e se realize exitosamente,
como trabalho autônomo.
A sociedade pesqueira educa seus integrantes dentro de práticas (sim-
bólicas e materiais), que dialogam intimamente com a construção so-
cial do corpo. Mauss formulou que, concernente às técnicas de utilizar
o corpo, de modo geral, “os fatos de educação predominavam” (2003,
p. 405 – grifo do autor). Antes de qualquer coisa, a figura do corpo
humano incorpora determinações sociais, formas de ser.
Os sentidos humanos dos que pescam adquirem conformações mol-
dadas por seu modo de vida assentado no trabalho, desenvolvendo sin-
gularidades e revelando complexidades perante outros trabalhos que
parcelam e unilateralizam o corpo, a consciência sensível. Na pesca, não
só um, mas vários sentidos devem atuar precisamente sobre a totalidade
do ambiente, forjando uma compreensão totalizante do próprio mar,
tão essencial para transformá-lo em utilidades humanas, apoiando-se,

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

desse modo, no tato, na visão, na destreza manual e no manejo do equi-


líbrio das pernas, na audição e, às vezes, no olfato.
A aprendizagem e a efetivação sensitiva, assim como seu desenvolvi-
mento, voltam-se para dar conta de como e do que produzir na pesca
artesanal de modo mais autônomo, de acordo com as especificidades
que cercam seu trabalho e seu modo de vida. No trabalho pesqueiro,
construir os problemas e respondê-los é tentar apropriar-se das condi-
ções necessárias à reprodução social da vida enquanto manifestação
sociocultural, em que o irredentismo estético é fundamental.
As citações abaixo são bastante elucidativas desse aspecto:

[Entrevistador: Como o senhor sabe dos tipos de vento quando está no


mar?]
Se você estiver vendo a terra, você sabe. O vento empurra o barco para um
lado. Eu sinto na pele. (Seu Gidinha, pescador mestre, 70 anos)

A cor na água diz que tem peixe. Já o vento, as folhas dos coqueiros ajudam
pra entender que tipo é, além da gente sentir ele. (Joaquim5, pescador proeiro,
25 anos)

Olhando os coqueiros, de um lado, e os morros da serra, de outro, aí você


marca os locais de dar lanço. (Genildo, pescador mestre, 35 anos)

Puxar a rede no mar é difícil, ruim, porque vai puxar o peso e tem que saber
ficar no barco pra não cair. Se você for bom no equilíbrio de perna, não cai.
E não cai mesmo. Você vai pela onda do mar. Ele tem que tombar. Se ele não
tiver bom equilíbrio, oxente, o cabra se atola, cai na água. Por isso o cama-
rada tem que tá prestando atenção no mar. (Seu Milton, pescador mestre,
67 anos)

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Tem peixe que a gente sabe pela sua batida na água e a cor. Além disso, na
pesca de linha a gente usa também o cabo de vassoura. A borda do barco é
furada e aí pega ele e coloca, colocando o náilon em cima do cabo. A gente
mela em cima dele com óleo diesel. Aí, quando o peixe puxa faz zoada.
(Conrado, pescador mestre, 39 anos)

Tava pescando lagosta. Tava dando aquele vento terral, aquele vento que bota
a gente pra fora, aí eu fui dar outro mergulho e tinha certeza, quando voltei
de baixo, que senti... havia cheiro de lagosta, que eu trazia de lá, nas coisas
que peguei. Aí direcionei o barco mais pra frente. Desceu eu e mais um, e ti-
nha lagosta. (José Edson, pescador mestre, 41 anos)

Nos depoimentos dos pescadores suapenses, percebe-se a riqueza de


saberes que são externados pelas – e surgidos das – criações sensíveis,
atividades corporais. Por isso, no mar, identifica-se o tipo de vento visu-
almente, quando ele “empurra o barco”, ou quando “eu sinto na pele” seu
ir e vir, fato que permite, ao pescador Gidinha, planejar e executar rapi-
damente decisões.
Além disso, o saber-fazer pesqueiro “olhando” leva o pescador Genil-
do a marcar caminhos marítimos em busca dos pesqueiros, da seguran-
ça produtiva e de vida dos homens nas águas, tomando por referência o
balançar das folhas dos coqueiros, que “ajudam pra entender que tipo”
(Joaquim) de vento é melhor para navegar. Tudo isso se soma ao “saber
ficar” em pé e seguro “no barco pra não cair” no mar, no “equilíbrio de
perna”, tendo que “tombar” ritmado pelas ondas, “prestando atenção” (seu
Milton) nelas para que a pesca artesanal possa concretizar-se no fazer da
retirada, no colocar de covos e redes, no seu lançar em lugares corretos.
A pesca também é o identificar de espécies de acordo com a “batida
na água e a cor” que os peixes fazem e/ou têm. Sem dúvida, para Conrado
saber ouvir é fundamental, pois, quando o peixe puxa a linha “faz zoa-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

da” e, assim, é a hora de trabalhar para levá-lo ao barco. Ademais, em


algumas situações o olfato pode permitir, segundo Edson, direcionar “o
barco mais pra frente” em busca da captura de lagostas.
Um conjunto amplo e multifacetado de práticas sensitivas une-se
como ações manifestas da vida de pescador, da condição de trabalhador
das águas, onde o pôr teleológico6 transforma-se em alternativa ao se
externalizar pela atuação ampla dos sentidos, dos usos e da fruição das
energias físicas, graças à rica complexidade que compõe, e ao dar razão
de ser ao fazer artesanal da pesca em seu ato criativo e não aprisionado
de sua prévia ideação.
Cada vez mais na vida, o corpo do pescador torna-se menos preso ao
plano unicamente biológico, mas sem nunca deixar de aboli-lo, e passa
a ganhar conformidade sociocultural. Assim, o sentir, o olhar, a audição
assumem características oriundas de determinações societárias e passam
a significar categorias de manifestações de vida, de sociabilidades pes-
queiras e de suas particularidades. Portanto, o metabolismo social dei-
xa, ao longo da vida dos que pescam, de ser simplesmente um contato
físico com o ambiente para se tornar conceitos e objetivações do existir
humano. O corpo humaniza-se, saltando dos limites imediatos para
conexões mais complexas, forjadas pela consciência, sem nunca negar o
valor ontológico do trabalho (teleologia) no processo de socialização da
vida pesqueira, e sem que a consciência jamais negue que se encontra
vinculada ontologicamente aos sentidos humanos.

Para evitar equívocos, vale a pena realçar novamente que o fato de a cons-
ciência se elevar a “momento essencial ativo” no ser social, de deixar ser
mero epifenômeno, não significa que deixem de existir as determinações
advindas do fato de que essa consciência está sempre ontologicamente li-
gada a um corpo biológico e, ao fim e ao cabo, de estar a serviço da repro-
dução deste mesmo corpo. (Lessa, 2002, p. 182)

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Em tal processo, quando o vento toca na pele do pescador ou é per-


cebido pelos olhos no movimento das marés ou das nuvens, ele assume
categorias sociais de ventos bons ou maus para a pescaria; favoráveis a
esse ou aquele peixe; calmos ou agitados; legais ou ruins; perigosos ou
convidativos; companheiros ou inimigos; de esperança ou de agouro;
fracos ou fortes; fêmeas ou machos; são ventos terrais, sul, sudeste, nor-
te, noroeste. Não são mais ventos sem sentido social, apenas de nature-
za inorgânica e só. Muito pelo contrário, tais ventos são humanizados
no sentir dos sentidos humanos e fazem parte da existência societária
dos pescadores e de sua arte liberta.

O vento, ele... o pescador gosta de vento calmo. Vento forte, o mar fica agitado;
e o vento calmo, o mar fica brando, fica legal. E esse vento sul faz a água correr
pro norte, e o vento norte, faz a água correr pro sul. O terral, o de terra, faz a
água subir. Eu sinto esses ventos por eles tocarem em mim. Pode virar o rosto
assim e você sente ele topar de um lado, ele mais na frente. (Conrado, pesca-
dor mestre, 39 anos)

O mais difícil pro pescador é o mau tempo. O mar fica violento. Já chovendo
não. Mas quando tá ventando, oxente, só navio. O vento fica ruim porque o
mar fica vagueado, voga7 alta. Vento assim, o mar fica vagueado. O vento
brabo faz o mar embrabecer. Tem o vento leste, de fora, é bom pra pescar. Ele
vem de fora. O vento fica brandinho e é bom pra pescaria. Tem o vento gerar,
e ele é ruim. É sudoeste. Terral é um vento mais manso, ele é da terra pro mar.
(Seu Milton, pescador mestre, 67 anos)

O melhor é o vento do leste, sendo o do leste vento branco, porque limpa a


água. A água fica clarinha. Ele vem do sol pra terra. (Seu Luiz, pescador
mestre, 66 anos)

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Para encontrar pescados, a audição e, mais uma vez, a visão e o tato


são também centrais, na medida em que se tornam categorias sociais
acerca dos melhores momentos e locais para se pescar, ao apontar onde
tem, onde não tem ou pode existir pescados (os pontos de pesca). Pela
forma que os peixes batem no mar, pela mudança de coloração das águas
ou pela força colocada na mão que segura a linha de pesca, os peixes são
encontrados e distinguidos (aracioba, cavalas, garajuba, serra, tainha, sar-
dinhas, agulhas, bagres) para que, a partir daí, se saiba utilizar os meios
mais adequados para capturá-los (redes mais apropriadas de acordo com
a malha, profundidade, tipos e tamanhos da linha, isca especial e outros),
tendo em vista alcançar o fim pensado, para que a teleologia aconteça.

Quando a gente tá perto de uma área de pesca a gente escuta. A gente escuta a
lapada que o peixe dá com a calda n’água. Aí a gente diz: “Tá batendo aracioba
por ali”. A gente sabe pela lapada que ela dá, que é mais forte que a de outros
peixes. Quando a garajuba bate ela faz a superfície ficar diferente, pois ela é
amarela. O xixarro é um pouco esverdeado, e a cavala vem um pouco cinza.
(Gildo, pescador proeiro, 45 anos)

O peixe, quando bate na água, ela sai diferente, mesmo em maré branda. A
garajuba pula um pouquinho da água e bate com a calda em cima, pra pegar
a comidinha. A cavala é mais brilhosa. (Santiago, pescador proeiro, 52 anos)
Quando eu pesco o serra de linha... o serra dá uma carrerinha curta, mas é
curta, ele volta logo. Eu sinto sua carreira na mão. (Seu Gidinha, pescador
mestre, 70 anos)

Essa musicalidade marítima – sons na e da água – é filtrada subjeti-


vamente, de acordo com a educação estética recebida em vida, assim
como acontece com os demais sentidos. Para alguns, o som do mar é o
som da força da natureza incógnita, do momento de contemplação, es-

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paço inóspito ao ser humano, de medo ou de receio diante do desconhe-


cido, mundo completamente natural ou antissocial. Para o pescador, a
sonoridade aquática é parte da sua existência social, chão do trabalho,
de conhecimentos acumulados, de práticas simbólicas, de organização
societária, lugar de confirmação da sua vida. Portanto, a voz do mar está
cheia de sentidos para o pescador, por ele estar cheio de sentidos educa-
dos para experienciar humanamente a música das águas marítimas, como
fruição das suas forças essenciais, vitais, entendidas subjetivamente e afir-
madas objetivamente no seu trabalho.
A experiência estética do pescador revela a humanização do mar e,
mais do que isso, mostra como, ao longo da sua vida, “os sentidos hu-
manos deverão se transformar em elaboradores de teorias” (Lukács,
1978, p. 17), para que os marítimos atinjam a condição de artífices do
oceano também da liberdade.
Todos os sentidos humanos atuam de modo conectado numa tessi-
tura sólida e indispensável a fim de que os pescadores possam reprodu-
zir-se no tempo e no espaço, fato que assume uma conexão coletiva no
trabalho embarcado.
Assim, o barco – essa espécie de oficina marítima – torna-se a totali-
dade de um corpo só, a junção dos tripulantes da pesca, cuja expressão
singular do sentir e o movimento corporal de cada homem congregam-
se na conformação de um sentido só e de uma única corporeidade, or-
ganizada no mundo embarcado do trabalho pesqueiro e de suas funções
cooperadas no ato de pescar. Cada sentido individual faz-se sentido co-
letivo, e este se singulariza nas ações dos indivíduos dentro da oficina
marítima, da embarcação, para que os marítimos pesquem através da
parceria, que é a razão de ser das embarcações.

Essa totalidade dos sentidos e do corpo se realiza simultaneamente a nível


individual e grupal. A nível individual, enquanto o corpo como um todo é

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utilizado no processo de trabalho por cada pescador sem se parcelar. A ní-


vel grupal, enquanto as diferentes corporeidades se integram na parcei-
ragem do trabalho – condição sine qua non à sua realização. (Cunha, 1987,
p. 195)

Além disso, há outro corpo decisivo, e que não é o da natureza orgâ-


nica e inorgânica, para consolidar a arte da pesca: as ferramentas de pes-
car. Tais ferramentas (armadilhas e o barco) são extensões corporais dos
pescadores e de sua destreza sensível, cujas funções voltam-se para atin-
gir os objetivos do trabalho (os pescados) e seguir os roteiros marítimos.
A posse do talento cristaliza-se no saber como e de que modo utilizar
as redes e o barco, e também sentir, através desses instrumentos, a natu-
reza marinha. Isso ganha força em decorrência do espaço em que se dá o
trabalho da pesca, devido à mobilidade e variedade de requisitos ambien-
tais que caracterizam o oceano.
Na pesca artesanal, os meios de produção não empregam os homens
marítimos, mas, do contrário, são por eles empregados para que possam
sentir o mar e os pescados, objetivando a concretização de sua arte, sua
externação estética.

O barco é parte do pescador no mar, porque a gente conhece o vento, no geral,


pelo balanço do barco. (Seu Gidinha, pescador mestre, 70 anos)
A linha é banda da gente mesmo. Olha, a gente tá sentindo toda força que o
peixe... que ele tem. Ela é sua... como parte sua, banda do braço seu, porque
você tá puxando aqui e tá sentindo o peso dele. (Jorge, pescador proeiro,
23 anos)

A gente sente o tipo de peixe pela topada que ele dá no náilon, dá no anzol. Aí
a gente sabe qual o tipo de peixe que tá lá embaixo. Pelo tamanho, ele... ele
fica tirando o náilon que tá na mão da gente. Tudo a gente sente a qualidade

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do peixe pela força que ele vai fazer. A cavala, quando pega no náilon, ele
corre muito. A velocidade é maior do que o serra, o xixarro, do que esses peixes.
Acho que é por isso que tem esse nome de cavala. O xixarro, quando você larga
a linha e ele pega, ele pega de mansinho, fazendo força pra baixo. (Marco,
pescador mestre, 32 anos)

A forma que tem o vento é identificada e, portanto, sentida “pelo


balanço do barco”, ocasionado pelas marés e/ou ondas, pois “o barco é
parte do pescador no mar” (seu Gidinha, pescador), ao ser extensão da
corporeidade do homem marítimo. O balanço do bote informa ao mun-
do corpóreo acerca da conformação assumida pelo oceano e quais as
melhores decisões a serem tomadas de acordo com esse contexto.
No que diz respeito à linha, para o pescador ela é “banda da gente
mesmo”, isto é, “banda do braço” por onde se está “sentindo toda a força
que o peixe... que ele tem”, permitindo detectar “o peso dele” (Jorge, pes-
cador) e a perícia necessária que deve ser usada para submetê-lo ao sa-
ber-fazer da arte marítima. É como relata Marco (mestre): “A gente sente
o tipo de peixe pela topada que ele dá no náilon, dá no anzol. Aí a gente
sabe qual o tipo de peixe que tá lá embaixo” no fundo do mar.
Mesmo não sendo identificado pelo campo visual, o tato explicita
qual o tipo de peixe que se encontra fisgado no fundo do mar e que
talento usar para o levar ao barco. Em suma, “Tudo a gente sente a quali-
dade do peixe pela força que ele vai fazer” (Marco, mestre) sobre a banda
do braço do pescador artesanal, que é a linha.
O sentir dos sentidos estabelece fina mediação com as armadilhas e o
barco, para que o pescador possa ser um artista do mar; e a utilização pre-
cisa de tais instrumentos depende, acima de tudo, da técnica do pescador.
A construção da consciência, do subjetivo e dos conhecimentos na
pesca são validados, melhorados, procurados e experimentados através do
sensível, mostrando um caráter cumulativo dos saberes e de suas respostas.

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Pelo sentir dos sentidos, o mundo em volta é também desvelado, para


saber quais as melhores decisões a serem tomadas e os meios fundamen-
tais para seus êxitos. Por isso, seu Gidinha (pescador) “larga a linha e
fica experimentando que peixe tá dentro da água”, para reproduzir cogni-
tivamente o real e depois responder a ele com seu pôr teleológico, na
captura do peixe.
Mesmo neste ato singular, não deixa de acontecer, aqui, algo comum
e universal a qualquer forma de conhecimento, inclusive o científico: a
elaboração de uma ação metodológica. O método pesqueiro legitima-se
no fazer da fruição sensível e retorna à consciência por meio de aproxi-
mações perante o real, tornando-se um porto seguro para descobrir no-
vos pesqueiros, apropriar-se da realidade em pleno movimento, buscar
responder às transformações socioambientais, incorporar, quando pos-
sível, novas tecnologias e alcançar os fins idealizados. Sem a formulação
e o acúmulo metodológicos, o trabalho pesqueiro não existiria, não con-
seguiria renovar-se, nem humanizaria as águas e os pescados.
O método pesqueiro depende, sobremaneira, da educação sensível
plena do pescador para estabelecer um metabolismo não estranhado com
o oceano e com os pescados. De fato, o corpo e suas capacidades sensí-
veis são construídos no mesmo instante em que os pescados são trans-
formados em objetos humanos, de acordo com as necessidades humanas.

Conclusão

A condição sensível dos pescadores artesanais promove a indissolúvel


aliança entre saber e fazer, objetivando preparar aqueles que dedicam
suas vidas para o trabalho no mar. Ter o controle do seu corpo é fazê-lo
capturar as emanações que emergem da natureza e da própria constru-

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ção cultural oriundas das relações sociais específicas da pesca, em suas


situações de classe e percepções culturais.
O fazer-se pescador é um fazer-se dos sentidos, um ato que lapida e
confecciona o corpo, nunca apartado da esfera cognitiva, um valor exis-
tencial. Por ser um turno, sendo parte ineliminável disso, o mar se huma-
niza no mesmo instante em que se humaniza o sentir dos sentidos hu-
manos daqueles que pescam, recebendo deles suas potencialidades, suas
determinações, suas formas de ser e manifestações do existir.
As práticas dos pescadores, suas relações socioambientais com as águas
marinhas e os pescados anunciam e revelam a presença de uma estética
societária, a qual irradia sociabilidades não instrumentalizadas pelas von-
tades meramente capitalistas, que, por isso, recheiam de significados
outros a vinculação desse grupo social com a natureza, de maneira mais
humanizada, apesar de receber as tensões do capital.
Nessa esfera, dominar, o máximo possível, o tempo de uso do corpo
e do fazer de seus sentidos são estratégias e componentes centrais para
que a estética pesqueira se realize, se mostre e se reproduza, no intuito
de não permitir a sujeição. Se assim não fosse, a estética pesqueira cede-
ria lugar à estética instrumental do mundo da mercadoria, de seu fazer
absoluto, que se impõe fragmentando sentidos; dicotomizando corpo e
mente; afastando trabalho e arte; obstaculizando humanizações da na-
tureza; bloqueando resistências (por menor que sejam estas); e, acima
de qualquer coisa, negando aos homens e mulheres a possibilidade de
verem no trabalho um campo rico de realização de suas vidas, de suas
existências, de educação humana do sentir dos seus sentidos e de cons-
trução artística, criativa.

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Notas
1
Pesquisa que foi financiada pelo CNPq.
2
Os impactos ambientais existentes em Suape não serão aqui abordados, porque
isso já foi feito em estudo anterior. Ver Ramalho (2006).
3
Este é um nome fictício, por solicitação do próprio pescador.
4
Forma de mapear o mar e suas áreas piscosas, ver Maldonado (1994) e Ramalho
(2009).
5
Este também é um nome fictício, por solicitação do pescador.
6
O pôr teleológico (pensar e fazer) é o trabalho concretizado (Lukács, 1981).
7
Onda do mar.

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2009 “A arte pesqueira: território da mestrança e do saber-fazer marítimo”, in
MOURA, Alexandrina (org.), Políticas públicas e meio ambiente: da economia
política às ações setoriais, Recife, Massangana, pp. 263-90.

ROMERO, Daniel
2005 Marx e a técnica, São Paulo, Expressão Popular.

WEBER, Florence.
2009 Trabalho fora do trabalho, Rio de Janeiro, Garamond.

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CRISTIANO W. N. RAMALHO. O SENTIR DOS SENTIDOS DOS PESCADORES ARTESANAIS

ABSTRACT: Based on the representations, feelings and societal practices


of artisanal fishermen in Suape Beach in Pernambuco, this article examines
the social processes that underlie and are illuminated by these workers’ feel-
ing of the senses, especially regarding the articulation of the sensitive condi-
tion (fishing aesthetics) with the savoir-faire, the freedom and the humani-
zation in artisanal fisheries.

KEY-WORDS: Anthropology of fishing, labor and fishing, feeling of the


senses.

Recebido em fevereiro de 2011. Aceito em junho de 2011.

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Luz baixa sob neblina:
por uma antropologia das oscilações
em Claude Lévi-Strauss

Gabriel Banaggia1

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: Este ensaio procura reunir as diversas considerações feitas por


Claude Lévi-Strauss a respeito do mito em História de lince, livro que pode
ser visto simultaneamente como uma recapitulação e um arremate revisado
aos seis volumes sobre mitologias que lhe precederam na obra do autor. Além
disto, nossa empreitada conduz também a cristalizações de perspectivas, vis-
lumbradas difusamente na obra deste autor, procurando extrair de coloca-
ções mais explícitas sobre o estruturalismo consequências à primeira vista
fugidias. Trata-se de nos imiscuir nas alternativas aparentes postas em ação
pelo pensamento de Lévi-Strauss, reconhecendo uma tensão produtiva en-
tre deslizamentos e sedimentações possíveis. Se é clara em História de lince a
diligência em tratar menos do espírito humano que dos corpos ameríndios,
esta opção não elimina uma certa ‘nostalgia’ (ainda que encoberta, umbrosa)
para a qual seria desejável o estabelecimento de uma síntese de ordem supe-
rior. Da oscilação entre ambos os ímpetos, surgem os fundamentos de uma
antropologia pós-estruturalista.

PALAVRAS-CHAVE: Mito, transformação, pós-estruturalismo, etnologia.


GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

“Do I contradict myself?


Very well then I contradict myself,
(I am large, I contain multitudes.).”
(Walt Whitman, 1855)

Este ensaio procura reunir as diversas considerações feitas por Claude


Lévi-Strauss a respeito do mito em História de lince (1993[1991]), livro
que é também uma recapitulação e um arremate revisado aos seis volu-
mes sobre mitologias que lhe precederam na obra do autor. Conjunta-
mente, estes escritos podem ser considerados como formadores da fase
pós-estruturalista de Lévi-Strauss, destacando-se, no interior deste
“meta-objeto multidimensional que são as Mitológicas”, este tomo final
como sua empreitada mais profunda (Viveiros de Castro, 2008, pp. 6,
14 e 19). Muitas das considerações aqui tecidas pressupõem a leitura da
tetralogia inicial, a cujo respeito tentativas de síntese seriam por demais
empobrecedoras, posto que estas obras “precisam ser executadas (...) para
que seu sentido se revele” (Perrone-Moisés, 2008, p. 25).2
História de lince (HL)3 é um livro estruturado de maneira ligeiramente
diferente da tetralogia inicial das Mitológicas, não apresentando, por
exemplo, uma indexação de mitos arrolados de acordo com uma nume-
ração (M1, M2, etc.). Nele, todas as narrativas míticas desfilam de ma-
neira integrada ao restante do texto, produzindo um registro, de acordo
com o próprio autor, não tão difícil de ser seguido quanto o dos pri-
meiros quatro livros, mas sim da mesma forma como A oleira ciumenta
e A via das máscaras. E compõe uma obra que se situa “a meio caminho
entre o conto de fadas e o romance policial, gêneros aos quais não se
atribui nenhuma dificuldade específica” (HL, p. 12). Que a sobriedade
do autor, contudo, não deixe transparecer que História de lince estaria

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

fora de continuidade com a empreitada da tetralogia: aqui também se


encontra uma acumulação de materiais míticos feita como que “a gra-
nel” (HL, p. 44), que poderia parecer fastidiosa ao leitor desacostuma-
do a este estilo. Entretanto, a nosso ver, ambas estas operações explicitam
um procedimento consolidado ao longo das Mitológicas, por meio do
qual aquilo que se oferece como resposta ao encadeamento das diferen-
tes questões levantadas pela disposição do material mítico é da mesma
ordem que o próprio material: indagações suscitadas por determinados
mitos são ‘respondidas’ por outros mitos (cf. HL, p. 183).

Mito, método

De certo modo, então, seria possível considerar em um primeiro mo-


mento que o mito figura tanto como objeto quanto como sujeito da
análise estrutural (Viveiros de Castro, 2008, pp. 13 e 17-18). Além dis-
to, nesta dupla compreensão do mito, ele é apreendido antes espacial-
mente do que temporalmente, consequência da maneira escolhida para
lidar com sua interminabilidade característica. Esta interminabilidade
não é só empírica – ou seja, não tem a ver apenas com o fato de que
mitos distintos são continuamente contados ao longo do tempo –, mas
também analítica, oferecendo resistência à construção de uma sintaxe
ou gramática única que daria conta do pensamento mítico. Explora-se,
assim, menos a interminabilidade que sustenta que os mitos não têm
começo nem fim – ou seja, não podem se limitar nem a seu término,
nem a seus termos – do que uma que trabalhe no sentido de uma carto-
grafia, do mapeamento de distintos códigos míticos diferencialmente
acionados. Trata-se então de observar diferentes aspectos do mito, suas
angulosidades, o que permitiria também aproximar mito e rito em suas

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

simultaneidades e desencaixes específicos. Repetindo as palavras do au-


tor, diríamos que “a ciência dos mitos é uma anaclástica” (cf. Lévi-Strauss,
2004[1964], p. 24 – grifo no original).
Daí não se segue, contudo, que os mitos não tenham uma orienta-
ção, um sentido próprio a cada intriga específica: “Todo mito possui
uma estrutura que dirige a atenção e ecoa na memória do ouvinte” (HL,
p. 49). Todavia, considerando o pensamento mítico enquanto tal, é pró-
prio dos mitos explorarem eles mesmos conexões que mantêm com ou-
tros mitos, trabalhando de modo metódico “uma combinatória aparen-
temente referente a detalhes mas que ilustra bem o modus operandi do
pensamento mítico” (HL, p. 36 – grifo no original). Assim, o método
estabelecido para o estudo dos mitos guarda semelhança com o modo
de operação entrevisto nos próprios mitos. Também o conjunto de es-
critos de Lévi-Strauss pode ser encarado com base na chave que o autor
oferece para a caracterização da operação mítica de encurtamento de
distâncias e resolução de contradições, figurando O cru e o cozido (2004
[1964) ou “A gesta de Asdiwal” (1976) como contraponto à História de
lince – no qual este ensaio majoritariamente se ancora.
O objetivo do método estrutural, contudo, não é a enunciação de
elaborações metamíticas amplas, ou ao menos não apenas e tampouco
de modo prioritário, como veremos mais adiante. Se Lévi-Strauss fala,
de um lado, a respeito da estrutura do pensamento mítico no singular, é
somente como ponto de partida para encontrar, de outro lado, estrutu-
ras nos mitos no plural, estruturas estas que se superpõem de modos
complexos. Mesmo um conjunto qualquer de mitos reunidos pelo ana-
lista “só parece homogêneo se olhado de cima” (HL, p. 44), ficando suas
clivagens ou difrações (cf. HL, pp. 56-7) cada vez mais aparentes con-
forme o olhar se aproxima dos detalhes. A possibilidade de formulação
de um metagrupo transformacional, que reúna e preveja todas as trans-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

formações possíveis, traz consigo o mais alto grau de trivialidade – ou


mesmo desinteresse – para a análise mítica, que insiste em ideias como
interminabilidade, multiplicidade ou variação contínua (Viveiros de
Castro, 2008, p. 8).
Disto não decorre que não se possa dispor os mitos propondo enca-
deamentos específicos entre eles, nos quais uma história “vai progressi-
vamente se situar numa intriga mais vasta” (HL, p. 44), cujas interrup-
ções podem ser reconhecidas ou cujos desdobramentos podem ser
seguidos. O conjunto mítico toma assim “o aspecto de uma rede, da
qual a imaginação mítica explora todos os traçados” (HL, p. 103 – grifo
meu). Alguns dos traçados inicialmente se perdem, não passam de pon-
tilhados, podendo entretanto ser perseguidos estendendo-se a investi-
gação. E a imaginação mítica se dedica a preencher os vazios de uma
tela incompleta, sendo mais importante este ímpeto do que a suposição
de que, ao fazê-lo, obteria qualquer forma de completude: ao perseguir
certos tracejados, fios outrora sólidos consequentemente se esgarçam ou
mudam de lugar, modificando o desenho inicial que orientava a mão
tecelã. Esta “estrutura em rede” (HL, p. 102) não almeja formar precisa-
mente um quadro, mas um diagrama no qual seja possível falar em fa-
mílias de mitos com base em determinadas rubricas que se englobam
mutuamente (HL, p. 49). E os critérios utilizados para seu agrupamen-
to vêm dos próprios mitos, dos quais se pode retirar passagens menores
que forneçam meios de interpretar todo um outro grupo de mitos (HL,
p. 128). Exemplifica-o uma das metáforas de Lévi-Strauss: “A imagem
das bonecas russas que se embutem umas nas outras ilustra bem essa
disposição” (HL, p. 38).

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

O cânone da transformação

Os reencaixes contínuos de diferentes versões de mitos permitem a


formação de conjuntos paradigmáticos que se intercruzam (HL, p. 140),
evidenciando a importância para a análise estrutural do conceito ini-
cialmente matemático de grupos de transformações. Não há como pos-
tular de saída, então, determinadas unidades de análise (os ‘mitos’), pos-
to que o olhar se volta para esquemas condutores abstraídos de sequên-
cias míticas, decalcando a partir daí a recorrência de transformações
diversas. O estruturalismo mostra-se, assim, não formalista, ignorando
qualquer distinção ontológica entre forma e conteúdo, ainda que os di-
ferencie metodologicamente. A mitologia não estuda de modo privile-
giado, então, propriamente “mitos”, mas transformações entre os mi-
tos, e é a própria ideia de transformação que permite entender aquilo
que conta como um mito (cf. Viveiros de Castro, 2008, pp. 19 e 29,
Nota 6).
Existem, de todo modo, procedimentos hipotético-dedutivos que
permitem perceber que mitos determinados são transformações de ou-
tros, aventando a possibilidade de estabelecer prioridades lógicas ou
mesmo históricas entre versões tanto de mitos como de ritos (HL, pp.
59, 70 e 113). As transformações que os mitos registram podem tam-
bém se referir a alterações nos detalhes ou no ordenamento das respecti-
vas intrigas – tais como acréscimos, supressões ou inversões pelos quais
passam ao se atravessar uma fronteira linguística (HL, pp. 60 e 163) –, e
podem ser entrevistas como consequência da assunção de determinados
pontos de vista, posto que os motivos míticos, “dependendo da perspec-
tiva adotada, desempenham alternadamente, um em relação ao outro,
os papéis de continente e conteúdo” (HL, p. 188; cf. tmb. p. 183).
Na estrutura em rede a que se aludiu antes, desenham-se assim múl-
tiplos quiasmas (HL, p. 144), que obrigam pensá-la para além das duas

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dimensões às quais a representação gráfica precisa confiná-la, sendo o


recurso à fórmula canônica um meio de romper esses limites (HL,
p. 103).4 Em História de lince, nota-se novamente que, no fraseado de
Lévi-Strauss, a fórmula canônica pode ser entendida menos como
algorítmica do que como sinótica, introduzindo necessariamente uma
espécie de torção adicional que não pode ser prevista pela conjugação
inicial dos pares de termos: como o autor notara, sua noção de trans-
formação não é digital, mas analógica (2004[1967], p. 82, Nota 12).
Do mesmo modo, em nosso entendimento, o cânone que adjetiva a fór-
mula não se refere tanto a um sentido teológico-dogmático (como no
direito ‘canônico’), mas sim a seu sentido musical, como leva a crer, en-
tre outros motivos, a opção do autor pela estruturação dos primeiros
volumes das Mitológicas com base em metáforas advindas da música de
câmara, suas árias, cantatas e réquiens.
A fórmula canônica serviria, assim, como um indicativo de uma cer-
ta “contradança dos motivos” (HL, p. 188), do mesmo modo como,
num cânone, é a própria repetição do que seria aparentemente um mes-
mo tema melódico que termina por gerar uma música em que o tema é
ao mesmo tempo reconhecível e transformável. Da história da música
podem ser retirados, igualmente, exemplos de cânones diretos, inverti-
dos, espelhados, retrógrados (também conhecidos como “cânones ca-
ranguejo”, imagem que o autor por certo estimaria)...

Têmpera

Um outro modo de enunciarmos o objetivo do presente ensaio é pensá-


lo como um modo de fazer com Lévi-Strauss o mesmo que ele fez com
Montaigne no penúltimo capítulo de História de lince, ao qualificar neste
autor um apelo à razão (ou ao discurso) relativizada (HL, p. 192 e nota).

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

Montaigne faz assim, prossegue Lévi-Strauss, recurso a uma “arma de


duplo gatilho”:

Toda sociedade parece selvagem ou bárbara quando se julgam seus costu-


mes pelo critério da razão; mas, julgada por esse mesmo critério, nenhuma
sociedade deveria parecer selvagem ou bárbara, pois que para todo costu-
me recolocado em seu contexto um discurso bem conduzido poderá achar
um fundamento. Uma perspectiva abre para a filosofia das Luzes, ou seja,
para a utopia de uma sociedade que teria, enfim, um embasamento racio-
nal. A outra perspectiva desemboca no relativismo cultural e na rejeição de
qualquer critério absoluto de que uma cultura pudesse autorizar-se para
julgar uma outra. (HL, p. 192)

A empreitada de Montaigne se faria navegando entre as alternativas


das Luzes da razão absoluta, por um lado, e de um relativismo atomista,
por outro, guiado nesta jornada pelos “conselhos da razão prática, se
não especulativa” (HL, p. 193). Ao recolocar a questão, Lévi-Strauss
mostra como entende uma proposta baseado em Montaigne, não como
se apresentasse uma escolha entre o ceticismo e a profissão de fé, “ques-
tão de temperamento”, diz o autor, mas como um meio de colocar em
comunicação e de vivenciar ambos: “Os dois se neutralizam; sabê-los
inevitáveis, embora mutuamente incompatíveis, evita que nos deixemos
sujeitar por qualquer um deles, o que não é muito difícil; porém, e mais
difícil, nos obriga a nos pautarmos por ambos, dia após dia” (HL,
p. 197). Aqui se assentariam as bases para um outro relativismo, “[p]ro-
fundamente subversivo” (loc. cit.).
Pois se convivem em Montaigne o apelo tanto à razão como à reli-
gião, seus cruzamentos inevitáveis levam à transformação de ambas,
como se vê na citação feita por Lévi-Strauss: “Para derrotar aqueles que

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

pretendem provar a religião por razões especulativas, Montaigne resolve


desferir (...) esse ‘golpe desesperado no qual é preciso abandonar as pró-
prias armas para fazer com que o adversário perca as suas’; isto é, negar à
razão qualquer poder” (HL, p. 193). O poder negado à razão neste gol-
pe autocida, segundo o próprio Montaigne, é precisamente o poder de
julgamento: “Ou podemos julgar de fato, ou não podemos julgar” (apud
HL, p. 193). O passo suplementar dado pelo autor, conclui Lévi-Strauss,
é o de colocar em cena em condições equipolentes o que se costumava
supor ser o juiz em si: “[Montaigne] não intima a comparecer diante do
tribunal da razão costumes ou crenças diversos, para legitimá-los a to-
dos ou não lhes reconhecer senão um valor relativo: serve-se deles para
instruir o processo da própria razão.” (loc. cit. – grifos meus).
Seria possível, deste modo, encontrar na empreitada de História de
lince um movimento nos mesmos moldes do reconhecido por Lévi-
Strauss na obra de Montaigne, desta vez empenhado na construção de
uma antropologia simétrica, na qual estaria envolvido um abandono em
algum grau da “trajetória retilínea da razão” (cf. Latour, 1994[1991],
pp. 91-2). Encontraríamos aí um rio de mão dupla, assim como turbi-
lhões nos pontos de contato que borram os limites de cada sentido: a
existência de um sistema em desequilíbrio dinâmico, uma dialética das
aberturas e dos fechamentos, e ainda da alternação (por vezes altercação)
entre estes dois movimentos. Tratar-se-ia de ver, assim, no próprio mé-
todo de exposição e organização do livro, a mesma tensão encontrada
por Lévi-Strauss em seus demais estudos sobre mitologia ameríndia,
entre a exposição de um sistema estruturado, objetivo, fechado, de um
lado, e o reconhecimento e configuração de uma “mitologia das fluxões
(...) que se propõe a interpretar as diminutas oscilações periódicas” (Lévi-
Strauss, 2006[1968], p. 423), de outro.

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

Antropologia das oscilações

Já no início de História de lince, o autor faz uso da imagem de um jogo


de xadrez para caracterizar a análise mítica. É possível dizer que o analis-
ta joga de saída contra os mitos, seus adversários, tratando “de saber qual
das duas estratégias – a deles ou a dele – vai vencer” (HL, p. 9). Ao mes-
mo tempo, entretanto, afirma que a vitória de nenhum dos dois está
garantida e que supor que o analista possui qualquer vantagem de ante-
mão seria enganoso, já que “[o]s mitos não constituem partidas jogadas
e acabadas. São incansáveis, entabulam uma nova partida a cada vez que
são contados ou lidos” (HL, p. 10). O foco deve se voltar para as passa-
gens e transformações pelas quais os mitos passam e que efetuam em
seus itinerários (cf. HL, pp. 12-3). No recurso ao universo semântico
do xadrez, percebemos que, mais que conceder privilégio à arrumação
das peças nas casas pretas e brancas, à criação de uma estrutura de posi-
ções, é o caso de entender as jogadas que são continuamente encetadas,
os lances. Estruturas míticas propriamente matriciais não se concreti-
zam sabendo apenas como é possível demarcar os espaços do tabuleiro
segundo eixos de abscissas e ordenadas e localizar as peças nas casas, mas
no escrutínio dos movimentos das peças entre as casas, das capturas e
fugas que assim realizam.5
É com base nesta ênfase na movimentação das peças que entende-
mos o recurso contínuo que o autor faz ao longo do livro a uma série de
“motivos” (HL, pp. 22, 49 e 61 passim) míticos, entendidos não como a
razão de ser ou a origem das transformações, mas primeiro como temas
de investigação (no sentido de motif) e, ainda mais, como aquilo que
coloca a análise em movimento. Os motivos míticos não seriam assim
causas, mas ensejos – que a etimologia da palavra permitiria caracterizar
precisamente como forças motrizes a possibilitar o estabelecimento de
conexões entre mitos. Os mitos colocariam problemas que impediriam

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

uma análise autocontida, fazendo que os próprios sistemas que os anali-


sam necessitem de pontos de apoio externos.6
De toda forma, reside em um lado da obra do autor um ímpeto em
aproximar a estruturação dos mitos com o polo do fechamento, da cir-
cunscrição, que costuma dar margem ao entendimento do estruturalis-
mo como uma máquina de criação de dualismos binários deterministas
e apagamento da história: “Basta um mesmo germe cá e lá para que sur-
jam conteúdos míticos muito diferentes quando olhados superficial-
mente, mas entre cujas estruturas a análise revela relações invariantes.”
(HL, p. 82; cf. tmb. p. 84). De um modo geral, para o procedimento da
análise mítica, é possível dizer que “a existência da oposição conta muito
mais do que a forma particular que assume aqui ou ali” ou, ainda, que
“é sempre da mesma oposição que se trata” (HL, p. 172). Contudo,
fincar aqui o olhar deixaria de lado a sutileza do pensamento de Lévi-
Strauss, pois o próprio autor afirma ter consciência “das acepções bas-
tante vagas dadas a termos como simetria, inversão, equivalência, homo-
logia, isomorfismo” (loc. cit. – grifos no original), ainda que este reco-
nhecimento fique em geral em segundo plano em dados momentos de
sua obra.
Assim, esclarece-se em História de lince que a noção de oposição bi-
nária aparece sob modalidades muito diversas e “intervém na análise
apenas como o menor denominador comum dos valores variáveis assu-
midos pela comparação e pela analogia” (HL, p. 171), protagonistas no
estruturalismo deste livro. Os diferentes modos de oposição pertencem
a categorias heterogêneas e “jamais se apresentam sob forma abstrata e
de modo algum em estado puro” (loc. cit.). Uma oposição não significa,
então, a descoberta de uma contrariedade de extremos, mas uma ope-
ração de opor, de colocar frente a frente (ou lado a lado): uma disposi-
ção que permite trabalhar diferenças observáveis em função deste pró-
prio posicionamento, deste ato posicional.7 Ou, para dizer de outro

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

modo, não são as oposições que são constitutivas do estruturalismo, mas


deliberadamente constituídas por ele, num primeiro momento, ante
a elaboração e o manejo de um conjunto de códigos heterogêneos e
teoricamente infinitos, “ferramentas forjadas a bem da análise” (HL,
p. 172; cf. tmb. p. 174). Uma palavra-chave para este método talvez
fosse ‘oponibilidade’.
Igualmente, o interesse que advém das operações de oposição se as-
senta em sua diferenciação, como afirma Lorrain: “[S]e os termos que
eu colocava em oposição (céu e terra, terra e água, terra e mundo sub-
terrâneo etc.) fossem considerados apenas abstratamente, logo acabaría-
mos por identificá-los uns aos outros, num sistema que não ofereceria
mais nenhum interesse” (apud HL, p. 174). Ademais, trata-se de admi-
tir somente como ponto de partida que “a escolha e a definição dos eixos
nos quais se situam as oposições, a escolha e a definição dos códigos aos
quais se aplicam, devem muito à subjetividade do analista e apresen-
tam, por isso, um caráter impressionista” (HL, pp. 171-2).
Se é esse o ponto de partida, não é este o caráter que guia os objeti-
vos do estruturalismo de Lévi-Strauss, cada vez mais cioso de se diferen-
ciar da proposição da análise da mitologia geral. Assim, é preciso distan-
ciar-se do “observatório” dos filósofos que abstraem os mitos de seus
suportes, reduzindo-os a formas ocas que passam a receber “os conteú-
dos que o filósofo se considera autorizado ou obrigado a neles introdu-
zir. Ao fazê-lo, ele apenas substitui conteúdos que lhe escapam por suas
fantasias ou desejos” (HL, pp. 174-5). Num registro menos austero, o
autor indica que a generalização da análise mítica envolve um movi-
mento que “reduz progressivamente o pensamento mítico à sua forma”,
interessando-se deste modo a saber não o que os mitos dizem, mas com-
preender como eles dizem, “mesmo que, apreendidos nesse nível, di-
gam cada vez menos” (HL, p. 175). Ao fazê-lo, a análise estrutural es-
clarece o funcionamento de um espírito que emite um discurso vazio

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“que os homens se empenharam em produzir durante dezenas de milê-


nios, (...) que não leva a parte alguma e só consegue se fechar sobre si
mesmo”, cuja único sentido consiste no desvendamento de seus própri-
os mecanismos de operação (HL, pp. 173 e 175).8
A saída encontrada para que os exercícios não sejam feitos no vazio
significacional é a insistência na empiria, a delimitação dos campos
míticos conectados às realidades etnográficas nas quais transitam (HL,
p. 173). É esta circunscrição, a seu modo também uma forma de fecha-
mento, que possibilita a análise de um campo transbordante de signifi-
cações, contornando a armadilha de uma análise mitológica que, divor-
ciando-se dos fatos, “giraria em falso, privada de meios concretos de
controle” (HL, p. 174).

Intercâmbios

Do fato de não almejar realizar um estudo mitológico de pretensão uni-


versal, não decorre que o recorte escolhido pelo analista não possa ser
bastante abrangente, ainda que temporal e espacialmente delimitado.
Em História de lince, Lévi-Strauss recorre, de um lado, a tradições míticas
ou folclóricas de locais bastante afastados geograficamente, apresentan-
do como elementos de comparação, por exemplo, mitos japoneses,
coreanos, chineses ou ainda siberianos (cf. HL, pp. 91, 108n, 112n, 148,
171, 204-205...). Ao lado deste recurso figura a apreciação do encaixe
de tradições míticas indígenas e europeias concretamente acontecendo
no encontro de colonizadores e nativos, pois nessas ocasiões ambos tro-
cavam não só objetos, mas histórias e experiências de vida, ainda que
com repercussões bastante distintas para ambos (HL, pp. 164-6).
Se, em alguns exemplos, a constatação da difusão é pouco problemá-
tica, por vezes função mesmo da própria semelhança entre determina-

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

dos relatos europeus e indígenas, a hipótese do empréstimo puro e sim-


ples é matizada pelo autor, sendo limitado ora ao formato da intriga,
ora a detalhes da narrativa, ou ainda deixado de lado como coincidência
(HL, pp. 167 e 169-70). Mesmo considerando prováveis os fatos de di-
fusão, uma outra questão se apresenta: “[E]sses encontros entre tradi-
ções orais muito afastadas no tempo e no espaço (...) não seriam inevi-
táveis e até, num certo sentido, necessári[o]s?” (HL, p. 171). Desta
forma, trata-se de tematizar os modos pelos quais os empréstimos do
folclore europeu não configuram “um fenômeno de tipo novo”. Segun-
do Lévi-Strauss, “Situam-se numa longa história de intercâmbios entre
as tribos, ao longo da qual as transformações que o pensamento mítico
realiza espontaneamente já tinham produzido muitos de seus efeitos”
(HL, p. 181).
O autor indica, assim, a necessidade de qualificar precisamente os
modos pelos quais o empréstimo acontece, assim como qual é a matéria
específica a ser trocada, já que é possível que ele supra “a falta de algo
cuja necessidade se fazia sentir obscuramente”, permitindo por exem-
plo “explicitar dados latentes, perfazer esquemas incompletos” (HL,
p. 177). Conclui também que, além de não serem fortuitos, os emprés-
timos se concentram em determinados domínios míticos, que apare-
cem como bastante permeáveis, enquanto outros, por sua vez, são pro-
tegidos com maior afinco (HL, p. 181). Não seria ir muito longe,
sugeriríamos, utilizar o mesmo raciocínio para os fenômenos denomi-
nados na contemporaneidade de “invenção da tradição” ou “retradicio-
nalização”: enquanto alguns domínios do saber permanecem relativa-
mente maleáveis, há outros que invariavelmente se busca recuperar ou
retrabalhar com tenacidade quando a oportunidade se oferece.
Sendo assim, resta agora adentrar naquele que é possivelmente um
desses domínios e tema de História de lince. Pois se, como vimos, é pre-
ciso nos ancorar em realidades míticas e etnográficas específicas para não

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

corrermos o risco de pisar em falso com a proposição abstrata de formu-


lações mitológicas, neste ensaio não poderíamos nos furtar de ao menos
apresentar brevemente aquele que é o principal objeto empírico sobre o
qual o livro se debruça, a saber, a concepção ameríndia da gemelarida-
de impossível.

Dualismos ameríndios

Já no prefácio de História de lince, em passagem tornada célebre, Lévi-


Strauss aponta para a possibilidade de “remontar às fontes filosófica e
ética do dualismo ameríndio”, inspirado “numa abertura para o outro”
bem distinta da motivação com a qual os colonizadores brancos enfren-
taram os nativos ameríndios no processo de “invasão” do continente e
da concomitante “destruição desses povos e de seus valores” (HL, p. 14).
O autor também enfatiza como digno de nota o fato de “apenas meio
século após a chegada dos primeiros brancos ao Brasil a mitologia indí-
gena já os tivesse integrado no lugar apropriado”, apresentando uma
cosmogonia segundo a qual um demiurgo é responsável pela criação
tanto dos índios como dos brancos (HL, pp. 66 e 58), numa espécie de
gemelaridade prototípica.
Donos de poderes especiais sobre fenômenos climáticos, com capa-
cidade de reger a chuva, o vento e o nevoeiro, os gêmeos no pensamen-
to ameríndio estão associados de saída à imprevisibilidade de modo ge-
ral, e não somente a meteorológica (HL, pp. 115 e 114). Além disso,
são alvo de diferentes predisposições, sejam estas positivas, negativas ou
mesmo indiferentes, sendo perfeitamente possível que atitudes antité-
ticas em relação aos gêmeos (considerados benéficos ou maléficos) coe-
xistam (HL, pp. 115-6 e 118). De modo esquemático, é possível apre-
sentar duas fórmulas gerais para a gemelaridade, de gêmeos de sexo

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

oposto ou do mesmo sexo; a partir daí, entre as alternativas extremas de


diferenciação, os mitos concebem toda uma série de intermediários, sen-
do favorecidas nas Américas as versões em que “a oposição entre os gê-
meos perde seu caráter absoluto em benefício de uma desigualdade rela-
tiva” (HL, pp. 204-5).
A gemelaridade desigual9 concebida na mitologia ameríndia tem
como mola mestra tanto a cosmologia como a sociologia indígenas (HL,
p. 206). Encontra-se, assim, “num vasto conjunto de povos sul-ameri-
canos, uma organização social” correspondente a determinada metafí-
sica, parecendo ser “ela também concebida nos moldes de um desequi-
líbrio dinâmico entre termos” (HL, p. 214). O autor adverte que, de
partida, poderia ser “tentador” ordenar, dois a dois, “seres, elementos,
grupos sociais” em pares “equivalentes, iguais, às vezes até mesmo idên-
ticos” (loc. cit.). Entretanto, figura em História de lince não somente a
caracterização do dualismo ameríndio, mas a história do embate de dis-
tintas concepções quanto à diferença e à identidade. Logo, esta tendên-
cia adviria, em graus bastante distintos, não só do encontro colonial em
si, como do europeísmo contra o qual o próprio autor luta ao se defron-
tar com o material mítico em questão.
Pois se a temática da gemelaridade, como diz Lévi-Strauss, recebe
papel de destaque em mitos “do mundo inteiro” (HL, p. 204), é igual-
mente importante a constatação de que este mote foi alvo de considera-
ções específicas em diferentes solos: “Em resposta ao problema da
gemelaridade, o Velho Mundo favoreceu soluções extremas: seus gême-
os ou são antitéticos ou são idênticos. O Novo Mundo prefere formas
intermediárias (...)” (HL, p. 206). De um lado, então, haveria pouco
interesse “na teologia diferencial; tudo se passa[ndo] em seguida como
se uma tendência constante tivesse levado o pensamento indo-europeu
a apagar a diferença entre os gêmeos” (HL, p. 207). De outro, o pensa-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

mento ameríndio “recusa essa noção de gêmeos entre os quais reinaria


uma perfeita identidade”, sendo esta um “um estado revogável ou pro-
visório; não pode durar” (HL, pp. 207-8). De um mesmo ponto de par-
tida, esforços distintos teriam levado a conclusões bastante diferentes:

Por conseguinte, ainda que os indo-europeus tenham tido uma concepção


arcaica da gemelaridade próxima da dos ameríndios, afastaram-na progres-
sivamente. À diferença dos índios e, como diria Dumézil, dela “não tira-
ram uma explicação do mundo”. Para os indo-europeus, o ideal de uma
gemelaridade perfeita podia realizar-se, a despeito de condições iniciais
desfavoráveis. No pensamento dos ameríndios, parece indispensável uma
espécie de clinâmen filosófico para que em todo e qualquer setor do cos-
mos ou da sociedade as coisas não permaneçam em seu estado inicial e
que, de um dualismo instável em qualquer nível que se o apreenda, sempre
resulte um outro dualismo instável. (HL, pp. 208-9)

Essa instabilidade encontra-se no interior dos próprios emparelha-


mentos, motor de sua própria multiplicação (cf. HL, p. 208). O dua-
lismo que a partir daí se configura é um no qual os lados em oposição
não permanecem estáticos por muito tempo, como acontece mesmo
na organização de sociedades de metades dualistas, com a presença de
“um movimento pendular entre a reciprocidade e a hierarquia” (HL,
pp. 212-3 e 214n). À “interminável arbitragem entre o semelhante e o
diferente, em que um é sempre o preço a pagar pelo outro” (HL, p. 83),
corresponde de certo modo também o dualismo que apreendemos em
História de lince: livro organizado em três partes, a intermediária passí-
vel de ser encarada como dobradiça para as extremidades, entre o lado
do nevoeiro e o lado do vento. É a esses dois motivos que agora nos
direcionamos, a título de conclusão.

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

Luz baixa sob neblina

História de lince se estrutura em torno de dois temas míticos principais:


a origem do nevoeiro e a captura ou domesticação do vento (HL,
p. 181). Na primeira parte do livro são expostas diversas acepções pelas
quais o nevoeiro pode ser pensado na mitologia ameríndia, invariavel-
mente como um mediador entre polos: alto e baixo, céu e terra, mundo
natural e mundo sobrenatural (HL, p. 22). O papel que o nevoeiro exer-
ce, contudo, varia entre os diferentes mitos ou mesmo no decorrer da
intriga de um mito específico: ora conjuntivo, aproximando os diferen-
tes polos, permitindo a comunicação entre eles ou mesmo os tornando
indiscerníveis; ora disjuntivo, separando-os, distanciando-os ou mesmo
fazendo que sejam incomunicáveis (HL, pp. 22-3). Simultaneamente,
o nevoeiro surge como transformação dos elementos intermediários de
outras oposições, com correspondências, por exemplo, com o lodo (fu-
são da terra com a água, ainda no registro meteorológico) ou com os
gases intestinais e a pele doente, no registro fisiológico, que também
exalam maus odores (HL, pp. 73-4, 91, 97, 99-101).
O vento surge como motivo contrário ao nevoeiro, de certo modo
seu gêmeo e seu antagonista (HL, p. 126). A passagem para a centra-
lidade dos ventos acompanha o movimento feito pelo autor na análise
dos mitos das populações costeiras da América do Norte, “as mais ex-
postas às mudanças bruscas de tempo” (HL, p. 127). Se, por um lado, o
papel dos ventos é atuar sobre o nevoeiro, de modo a dissipá-lo e exer-
cer função contrária à sua (conjuntivo, se colocando em comunicação,
por exemplo, dois estratos que o nevoeiro não permitia terem contato;
disjuntivo, num outro exemplo, se possibilitando que dia e noite se al-
ternem), por outro lado é ele mesmo alvo de ação disciplinadora para
que passe a soprar de modo moderado, proporcionando temperaturas
amenas a fim de que os homens vivam (HL, pp. 23, 34, 130 e 153).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Ao autor interessa sobretudo marcar as diferenças entre os usos dos dois


fenômenos pelo pensamento mítico ameríndio:

Por conseguinte, séries míticas, uma relativa ao nevoeiro e a outra ao ven-


to, entre as quais ter-se-ia suposto o aparecimento de um paralelismo, já
que ambas se referem a fenômenos meteorológicos, revelam, quando ana-
lisadas, construções opostas. [...] Nessas construções, que divergem a pon-
to de se tornarem perpendiculares uma à outra, em vez de paralelas, como
seria de esperar, pode-se ver o reflexo, no plano formal, de uma disparidade
inerente às entidades concretas de que falam os mitos. O vento e o nevoei-
ro, gêmeos impossíveis, como todos os outros candidatos à união que o
pensamento ameríndio renuncia a emparelhar. (HL, pp. 183-4).

As especificidades de vento e nevoeiro não são entendidas, assim,


somente com referência a uma base natural última que garantiria que a
diferença “real” entre dois fenômenos meteorológicos seria refletida na
organização social ou no pensamento mítico dos ameríndios: elas são
igualmente função do esforço diferenciante deste pensamento, consti-
tuindo mesmo, entendemos, a forma de existência das “entidades con-
cretas” de que fala o autor. O mesmo se passa quando História de lince
se dirige aos maiores pontos de convergência com a tetralogia inicial das
Mitológicas, na análise das relações homólogas estabelecidas entre, por
um lado, vento e nevoeiro no código meteorológico, e, por outro, fogo
e água na escala cósmica:

Como o fogo, ora celeste, ora doméstico, o nevoeiro ora une o céu e a
terra, ora os separa, interpondo-se entre os dois. E, se a água celeste extin-
gue o fogo, impossibilitando a culinária, ao passo que a água terrestre lhe é
propícia (devido aos peixes que fornece), o vento desenfreado destrói toda
vida na terra [...]; mas, disciplinado, atiça o fogo doméstico. (HL, p. 189)

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

Da mesma forma, o nevoeiro e o vento remetem por caminhos dis-


tintos à tematização das periodicidades, seja em função das in/visibili-
zações dos astros, encobertos ou revelados pelos fenômenos climáticos,
seja pela alternância das estações e estabilização das temperaturas cor-
respondentes (HL, pp. 24, 34, 88 e 154). Os mitos em questão tra-
tam, assim, menos da origem do sol e da lua que de sua ordenação, tanto
na instauração da regularidade em seu revezamento, como na definição
da distância adequada para que seu calor seja benfazejo aos homens: sol
(ou lua) devem assim permanecer nem tão próximos que os queimem,
nem tão distantes que os ventos frios os congelem (HL, pp. 34, 39, 53,
56, 64, 129 e 153). De um lado, constata-se um “movimento pendular”
no protagonismo dos astros, que além disso figuram como benevolen-
tes ou malevolentes; de outro, observa-se que eles remetem a uma mes-
ma indagação: “Quer ponham em primeiro plano a lua ou o sol, os mi-
tos que acabamos de passar em revista têm a mesma função etiológica
ou funções muito próximas: trata-se sempre de resolver um problema
de periodicidade” (HL, p. 140).
De algum modo, é um esforço similar que encontramos em História
de lince como um todo, seu autor aproximando-se e afastando-se de pro-
posições sintéticas, ora mais circunscritas, ora bastante abrangentes.
Destacamos duas passagens do último capítulo do livro para ilustrá-lo.
Na primeira, logo depois de tornar a afirmar que não vê “na organiza-
ção dualista um fenômeno universal resultante da natureza binária do
pensamento humano”, e sim um modelo de explicação do mundo en-
contrado na mitologia e na organização social de povos numa área geo-
gráfica bastante grande ainda que delimitada (HL, p. 215), Lévi-Strauss
aventa de passagem uma consideração de outra ordem:

Nesse domínio ininterrupto que constitui idealmente a mitologia geral,


formando uma rede conexa demais para que significações dela se despren-

- 372 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

dam, às vezes acontece de um cruzamento brilhar com uma fosforescência


fugidia. Ela surpreende, paramos, lançamos um olhar curioso, tudo se ex-
tingue e passamos. A mitologia dos gêmeos oferece um terreno propício a
esse tipo de ilusão. (HL, p. 215)

Essa tensão é ela mesma enfrentada com uma nota de prudência e


comedimento em comentário a um ponto subsequente, pois há de se
encontrar a boa medida que permita o equilíbrio, ainda que momentâ-
neo: “Certamente isso não passa de uma ilusão de ótica. Mas as ilusões
têm seu charme e é provável que não se permaneça insensível a elas,
contanto que se saiba onde parar” (HL, p. 217 – grifos meus). Essas múl-
tiplas tentativas e incursões, floreios continuamente arriscados na análi-
se mitológica, nos lembram a imagem da rosácea utilizada pelo autor,
segundo a qual é justamente com base nas diferenças entre as interse-
ções e coberturas parciais que nascem as significações, que se desenha
um centro cada vez mais definido (HL, p. 174).
Partindo do mesmo universo semântico da luminescência, ao qual
Lévi-Strauss se refere continuamente ao longo do livro, sugeriríamos
aqui ainda uma outra imagem ao lado da rosácea: a das estrelas conheci-
das como pulsares. Para nós, seu interesse reside não só na natureza
eminentemente ondulatória deste fenômeno estelar, com seus feixes de
radiação superpostos e desde os quais o próprio núcleo de nêutrons é
observado. Para além dela, há também o que se convencionou chamar
de “efeito farol”, segundo o qual é somente de tempos em tempos que
as pulsações são captáveis da Terra, nosso ponto de vista possível.
Esta metáfora nos reenvia uma última vez ao título deste ensaio. Ele
se inspira na indicação de trânsito geralmente encontrada pelo viajante
que dirige em regiões serranas, justo na passagem do baixo para o alto,
quando a mudança de altitude favorece o surgimento de uma espessa
camada de neblina a obstruir a visão da estrada. Prevendo a tentativa de

- 373 -
GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

obter iluminação que permitiria penetrar o nevoeiro e seguir caminho,


a sinalização aconselha contraintuitivamente a utilizar o farol baixo para
obter maior visibilidade. A luz mais forte e direcionada acabaria sendo
rebatida pela própria neblina, ofuscando – em vez de clarear – a trajetó-
ria a ser seguida; a luz baixa, por sua vez, encontraria na própria estrada
um suporte sobre o qual poderia luzir, permitindo ao viajante rumar na
direção pretendida, desde que a ilumine indiretamente. A segunda pas-
sagem aqui escolhida para exemplificar esta oscilação produtiva entre
proximidade e afastamento mais circunspecto das ambições da mitolo-
gia geral é aquela com a qual Lévi-Strauss conclui História de lince:

Já não se sabe o que se busca. Uma comunidade de origem, indemonstrável


já que tão tênues são os vestígios que poderiam atestá-la? Ou uma estrutu-
ra, reduzida por generalizações sucessivas a contornos tão evanescentes que
perdemos as esperanças de apreendê-la? A menos que a mudança de escala
permita entrever um aspecto do mundo moral no qual, como dizem os
físicos acerca do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, o espa-
ço, o tempo e a estrutura se confundem: mundo do qual deveríamos nos
limitar a conceber a existência de muito longe, abandonando a ambição
de penetrá-lo. (HL, p. 217)

Notas
1
Doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (MN/UFRJ).
2
Para mais considerações acerca do lugar que ocupam no pensamento de Lévi-Strauss
os tomos que compõem as chamadas grandes e pequenas Mitológicas, ver, por exem-
plo, Perrone-Moisés (2008, pp. 20-35).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

3
A partir deste ponto e até o final do presente ensaio, qualquer indicação à obra
História de lince de Lévi-Strauss (1993[1991]) será feita com a abreviação HL.
4
Sobre a fórmula canônica do mito, considerada simultaneamente “um dos tópicos
mais intratáveis na obra de Lévi-Strauss” e “uma das idéias mais fascinantes e per-
sistentes do grande antropólogo”, ver sobretudo Almeida (2008, pp. 147-51, 169-
74), bem como Viveiros de Castro (2008, p. 20).
5
Isto permanece válido, ainda que a notação mítica possa vir a ser abreviada de modo
similar ao que é feito no xadrez, no qual escrever somente Bb5+ Cd7 pode signifi-
car o duplo movimento de um xeque do bispo do rei branco frustrado pelo cavalo
da rainha preta. Enquanto o leigo se esforça, em passos lentos e concatenados, para
ler as coordenadas de cada uma das casas e os códigos relativos a cada peça, o enxa-
drista já vislumbra aí os fluxos que possibilitam remontar às casas de saída das
maiúsculas, aos possíveis novos destinos das peças que chegam às minúsculas nu-
meradas, além dos paralelos a serem traçados entre esses movimentos e outros aná-
logos em partidas de configurações bastante distintas. A nosso ver, são procedi-
mentos similares que passeiam pela mente do analista dos mitos, Lévi-Strauss
estando sem dúvida mais para Kasparov do que para Deep Blue.
6
Há aqui um paralelo possível com o raciocínio lógico-matemático dos teoremas da
incompletude de Gödel, segundo a qual, mesmo em sistemas autoconsistentes, exis-
tem proposições verdadeiras que não podem ser comprovadas com base nos axio-
mas que o sustentam.
7
É deste modo que entendemos a aproximação feita por Wagner (1981[1975],
p. 52) entre o que este autor chama de “contradição” e aquilo que Lévi-Strauss
chama de “oposição”, e talvez vice-versa: “Se me permitem uma imagem arriscada,
eu diria que, tomando impulso, a transformação salta por cima do contrário e vai
cair em cheio sobre o contraditório, mais além” (HL, p. 125). Em um registro si-
milar, num livro publicado no mesmo ano de História de lince, Strathern indica
como organiza sua monografia baseada não na constatação de oposições, mas numa
construção na chave da aposição, na qual justaposições são realizadas segundo pen-
samentos remanescentes de posições anteriores (1991, pp. xxiv-xxv; cf. tmb. p. 53).
8
Aqui o autor atenta para o risco de se constituir a mitologia como uma língua sem
redundância, na qual o emissor (ou mesmo o analista) possuiria liberdade plena
para estabelecer quaisquer conexões possíveis, aventando teorias “acerca de qual-
quer encaminhamento atestado ou simplesmente possível” (HL, p. 173). Numa

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GABRIEL BANAGGIA. LUZ BAIXA SOB NEBLINA

paráfrase, poderíamos dizer que a ausência de constrangimentos estruturais estaria


para a mitologia assim como o moto-contínuo está para a mecânica (cf. Serra, 1995,
p. 80) – o que não quer dizer que ele seja falso.
9
Para mais desenvolvimentos a respeito da temática da gemelaridade impossível, ver
Viveiros de Castro (2008, pp. 6-7, 10-11).

Bibliografia
ALMEIDA, Mauro William Barbosa de
2008 “A fórmula canônica do mito”, in QUEIROZ, R. de C. & NOBRE, R. F.
(orgs.). Lévi-Strauss: leituras brasileiras, Belo Horizonte, Editora UFMG, pp.
147-82.

LATOUR, Bruno
1994[1991] Jamais fomos modernos, Rio de Janeiro, Editora 34.

LÉVI-STRAUSS, Claude
1976 “A gesta de Asdiwal”, in LÉVI-STRAUSS, C, Antropologia Estrutural Dois, Rio
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1993[1991] História de lince, São Paulo, Companhia das Letras.
2004[1964] O cru e o cozido, São Paulo, Cosac & Naify. (As Mitológicas, 1)
2004[1967] Do mel às cinzas, São Paulo, Cosac & Naify. (As Mitológicas, 2)
2006[1968] A origem dos modos à mesa, São Paulo, Cosac & Naify. (As Mitológicas, 3)
2010[1971] O homem nu, São Paulo, Cosac & Naify. (As Mitológicas, 4)

PERRONE-MOISÉS, Beatriz
2008 “Lévi-Strauss: aberturas”, in QUEIROZ, Ruben de C. & NOBRE, Renarde F.
(org.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras, Belo Horizonte, Edit. UFMG, pp. 17-40.

SERRA, Ordep
1995 “Jeje, nagô e cia”, in SERRA, O., Águas do rei, Petrópolis/RJ, Vozes.

STRATHERN, Marilyn
1991 Partial connections, Savage, Rowman & Littlefield.

- 376 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo


2008 “Claude Lévi-Strauss, fundador do pós-estruturalismo”, Tempo Brasileiro, Rio
de Janeiro, vol. 175: 5-31.

WAGNER, Roy
1981[1975] The invention of culture, Chicago/London, The University of Chicago Press.

WHITMAN, Walt
1855 “Song of myself ”, in Leaves of grass, Livro III. Disponível em: <http://www.
gutenberg.org/cache/epub/1322/pg1322.txt>. Acesso em dez. 2011.

ABSTRACT: This essay aims to assemble the different considerations made


by Claude Lévi-Strauss about the myth in The story of lynx, book that can be
seen as both a recapitulation and a revised coda to the six volumes on my-
thology that preceded it. Furthermore, our undertaking also leads us to the
crystallization of some perspectives diffusely glimpsed at throughout the
author’s works, trying to extract some unforeseen consequences from struc-
turalism’s more explicit proposals. We try to make sets of seeming alterna-
tives put in action by Lévi-Strauss’s thought collide, recognizing a produc-
tive tension among possible glides and sedimentations. Even though it’s true
that The story of lynx concerns itself less with the human spirit and more
with amerindian bodies, this choice does not dispose entirely of a certain
‘nostalgia’ (however concealed or umbrose) according to which the institu-
tion of a higher synthesis would be desirable. From the oscillation between
both drives arise the basis for a post-structuralist anthropology.

KEY-WORDS: Myth, transformation, Post-Structuralism, Ethnology.

Recebido em agosto de 2010. Aceito em março de 2011.

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O candomblé (barroco) de Roger Bastide*

Fernanda Arêas Peixoto1

Universidade de São Paulo

RESUMO: Este artigo propõe uma releitura de Imagens do Nordeste místico


em branco e preto (1945), de Roger Bastide, à luz de outros textos que ele
publicou na imprensa paulistana, na mesma década de 1940. Trata-se de
artigos que examinam a arte popular e a arte moderna, as cidades e a arqui-
tetura, nos quais ele esboça uma reflexão sobre o barroco brasileiro, distinta
das análises sociológicas do barroco que empreendera em seus ensaios de
feitio mais acadêmico. O exame desse conjunto evidencia que, desde o mo-
mento de sua chegada ao Brasil em 1938, Bastide realiza pesquisas simultâ-
neas sobre o barroco e sobre o candomblé. Esses dois grandes temas de inte-
resse do autor, explorados lado a lado, longe de revelarem interesses
divergentes, se entrecruzam, um esclarecendo o outro. E mais: o barroco
não apenas constitui uma das matérias de análise de Bastide, como fornece
elementos decisivos para que ele ajuste sua visada crítica.

PALAVRAS-CHAVE: Roger Bastide, barroco, imagens do Nordeste místi-


co em branco e preto, artes e arquitetura, candomblé.

O volume Imagens do Nordeste místico em branco e preto, relato da pri-


meira viagem de Roger Bastide (1898-1974) ao Nordeste brasileiro,
permite acompanharmos as pesquisas iniciais realizadas pelo sociólogo
francês no Brasil, que têm como foco o barroco e as religiões de matriz
africana. Equilibrada entre a “ciência pura e o canto lírico”, a narrativa
apresenta plasticamente, desde o título, as cidades de Salvador e de Re-
cife, que ele descreve por meio de um “feixe de imagens”.
FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

O tom do livro oscila de modo deliberado entre a narrativa de via-


gem – colorida por impressões subjetivas e estados de espírito – e a in-
terpretação sociológica. Seu estilo híbrido e entrecortado (em que se
mesclam experiência pessoal, descrição etnográfica e vocação literária),
por si só mereceria tratamento à parte. Mas não é essa a dimensão cen-
tral da análise, embora ela se faça de algum modo presente ao longo
desse exercício de leitura.2 Trata-se, isto sim, de localizar no texto certas
pistas e sugestões pouco consideradas pelos comentadores, tendo em
vista a elucidação de novas faces da perspectiva analítica de Bastide, exer-
citada em função de objetos muito diferentes.
De modo a seguir essa trilha interpretativa, a leitura da obra será re-
alizada à luz de outros textos de Bastide publicados na imprensa
paulistana, na mesma década de 1940, que fornecem assim um contex-
to para a sua compreensão. Trata-se de artigos que examinam a arte po-
pular e a arte moderna, as cidades e a arquitetura, e nos quais ele esboça
uma reflexão sobre o barroco brasileiro distinta das análises sociológicas
do barroco que empreendera, seja em seus ensaios de feitio mais acadê-
mico,3 seja nos cursos oferecidos na Universidade de São Paulo.4 Nesses
escritos, Bastide lança uma reflexão ampliada sobre as potencialidades
do barroco e suas projeções em domínios variados: na arte popular, na
arquitetura e na religião.
O exercício aqui proposto perturba algumas certezas da crítica. Se os
leitores de Bastide (e eu própria) têm razão em apresentá-lo como res-
ponsável por uma inflexão sociológica nos debates brasileiros sobre o
barroco,5 nas produções aqui referidas as reflexões que empreende sobre
a matéria conhecem formato distinto. Nesses textos, o autor toma a
noção de barroco em sentido alargado – como explosão criativa capaz
de interpelar criticamente a modernidade –, alinhando-se a uma pers-
pectiva que conhecerá desdobramentos de toda a espécie nas discussões

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

sobre o “barroco moderno” e “pós-moderno”, na Europa e na América


Latina, a partir dos anos 1950 (Moser & Goyer, 2001).
O exame desse conjunto de textos deixa ver que, desde o momento
de sua chegada ao Brasil em 1938, Bastide realiza pesquisas simultâneas
sobre o barroco e sobre o candomblé. Esses dois grandes temas de inte-
resse do autor, explorados lado a lado, longe de revelarem interesses di-
vergentes, se entrecruzam, um esclarecendo o outro. E mais: o barroco
não apenas constitui uma das matérias de análise de Bastide, como for-
nece elementos decisivos para que ele ajuste sua visada crítica. Em ou-
tras palavras, o acompanhamento das projeções barrocas em diversos
domínios da cultura, que esses escritos evidenciam, permite flagrar o
ponto de vista barroco do autor a informar suas análises das artes, das
cidades e também do candomblé.
As motivações desta interpretação são de diversas ordens. Em pri-
meiro lugar, a escolha revê (e redefine) as interpretações de Bastide so-
bre o barroco brasileiro, fornecendo ainda um novo acesso aos debates
sobre o barroco latino-americano que florescem nas décadas de 1950 e
1960 em solo latino-americano. Em segundo, permite expandirmos sua
compreensão das “religiões africanas”, inseparável das interpretações que
empreende sobre as artes. Finalmente, esses escritos lançam novas luzes
sobre o seu pensamento, sublinhando a heterogeneidade (na forma e
no conteúdo) de sua produção, a polissemia de conceitos com os quais
trabalha e as finas imbricações entre arte e ciência no desenho de sua
perspectiva crítica.
Quando Bastide chega ao Brasil em 1938, os debates sobre o barro-
co ocupam o primeiro plano na cena intelectual brasileira.6 A descober-
ta do barroco e da arquitetura colonial mineira pelo grupo modernista
nos anos 1920 – que encontra tradução na famosa caravana que percor-
reu as cidades de Minas Gerais em 1924 e nos textos de Mário de

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

Andrade sobre o tema7 – vai adquirir ancoragem institucional e política


quando da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional, em 1937. A política cultural do órgão dirigido por Rodrigo Melo
Franco de Andrade, como sabemos, faz do acervo arquitetônico e artís-
tico mineiro do século XVIII o representante máximo da tradição nacio-
nal (Rubino, 1991).
A escolha imediata do barroco brasileiro como motivo de exame re-
laciona-se ao interesse de Bastide pelo tema dos contatos culturais, pre-
cocemente anunciado no livro de 1935, Éléments de sociologie religieuse;
trata-se de reavê-lo por meio do material artístico, domínio no qual o
intérprete se movimenta com desenvoltura desde os anos 1920. O bar-
roco possibilita também o conhecimento de nossa “genuína tradição
cultural”, com o auxílio de grandes intelectuais nacionais que se debru-
çaram sobre o tema (Mário de Andrade, por exemplo). Traz ainda a pro-
blemática do sincretismo, que se oferece plasticamente ao analista em
fachadas, igrejas e elementos decorativos; sincretismo ou “interpenetra-
ção de civilizações”, que se tornará o grande eixo de sua reflexão do pe-
ríodo brasileiro em diante.
A discussão sobre o barroco tem lugar destacado na crítica regular
assinada por Bastide na imprensa brasileira. Em “Igrejas barrocas e ca-
valinhos de pau” (O Estado de S. Paulo, 25 de maio de 1944), ele divide
com o público, pela primeira vez, as impressões da viagem feita ao Nor-
deste do país, em 1944, durante a qual, diz ele, “foi-me dada a oportu-
nidade de continuar as pesquisas que começara sobre o barroco brasilei-
ro”. O artigo revela de imediato a inclinação de Bastide pelos elementos
da decoração e da ornamentação, retomado em textos posteriores sobre
o tema (“Variações sobre a porta barroca”, 1951) e sobre arte e arquite-
tura (“O leão do Brasil atravessa o Atlântico”, 1972a).
Na crônica sintética – relato do passeio pelo Nordeste intercalado
por recordações de infância e de seu país de origem –, chama a atenção

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

o deslocamento do olhar do analista, que deixa os interiores e frontões


das igrejas, dirigindo-se para a arte popular, domínio no qual ele locali-
za expressões do barroco. Os cavalinhos de madeira, confeccionados por
artistas anônimos para compor os carrosséis infantis – aqueles que ele
conhecera menino e os que pode ver agora em Recife –, constituem “as
últimas relíquias da arte barroca ou do rococó”.8 A tradução do estilo
em universo não erudito recriaria, segundo ele, um espírito de encanta-
mento análogo ao que cerca o barroco e que se nota facilmente nas igre-
jas, que arrancam o pensamento da vida cotidiana, lançando-lhe em um
universo onírico e simbolicamente superior, encenado por linhas ascen-
dentes, jogos de luzes e ilusionismos visuais.

O carrossel pretende ser um encantamento, um momento de graça na vida


da criança, levada sobre o turbilhão de seu cavalo de pau num redemoinho
de ouro, de mulheres estranhas, de anjos que lhe sorriem por entre as nu-
vens pintadas. (Bastide, 2011[1944], pp. 67-71)

A atenção dedicada à decoração e à arquitetura circular dos carrosséis


mostra, de forma eloquente, o fascínio do autor “pelo cataclismo irraci-
onal do barroco”, nos termos de Gilda de Mello e Souza (1980), que irá
informar (eu acrescento) a visão do autor sobre as cidades, as artes e
também as religiões.
Outros textos publicados na mesma década de 1940 percorrem mo-
vimentos de expansão do barroco sobre outros domínios: arte e arquite-
tura modernas. São eles: “Post-scriptum aos artigos de Lourival Gomes
Machado. O surrealismo ultrapassado” (O Estado de S. Paulo, 17 de ja-
neiro de 1944a); “Post-scriptum aos artigos de Lourival Gomes Macha-
do II. Surrealismo e barroquismo” (O Estado de S. Paulo, 22 de janeiro
de 1944b) e “A volta ao barroco ou a lição de Brasil (Diário de Notícias,
17 de janeiro de 1947).

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

Nos dois primeiros artigos, Bastide estabelece um diálogo com


Lourival Gomes Machado, discordando das ressalvas feitas ao surrealis-
mo pelo seu colega na Universidade de São Paulo e crítico de artes plás-
ticas, tanto a certos procedimentos (a escrita automática e as metamor-
foses excessivas da linguagem), quanto ao espírito geral do movimento
(seu “narcisismo profundo”). Bastide se pergunta pelo legado surrealista,
recuperando positivamente a utopia desse segmento de vanguarda, com-
prometido com a “criação de um mundo melhor”. Na contramão do
juízo crítico de Lourival (receoso da importação de modas adventícias
pelos artistas nacionais), defende as condições de possibilidade de um
“surrealismo brasileiro”, criação original antecipada, segundo ele, pelas
expressões barrocas nacionais. O surrealismo, perigoso se convertido em
“cópia mais ou menos adaptada de escola estética atualmente ultrapas-
sada” (1944b), deve ser recuperado como inspiração para criações futu-
ras; surrealismo nacional, antecipado pelo barroco.
Acrescenta:

Eu gostaria de tentar demonstrar que o barroco constitui uma antecipação


do surrealismo; por conseguinte, poderia haver aqui um surrealismo brasi-
leiro o qual, mau grado o cubismo do urbanismo moderno das cidades em
cimento armado, reencontraria a tradição colonial e se aproximaria de uma
arte verdadeiramente nacional. Não seria pequeno paradoxo se esta forma
estética ultramoderna permitisse ao Brasil retomar raízes em seu antigo
tropicalismo, e o ajudasse a superar uma arte internacional, eternamente
igual em todas as latitudes. (Ibidem)

Ao apelar para os domínios do inconsciente e da imaginação onírica,


o surrealismo forneceria uma alternativa ao racionalismo construtivo,
matriz adotada por parte dos movimentos artísticos do início do século
XX. Nesse sentido, pode ser lido, indica Bastide (ibidem), como reno-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

vação da tradição barroca, marcada pelo “triunfo do sonho, do delírio e


da fantasia dionisíaca na arquitetura”. O autor argumenta, assim, a fa-
vor de uma apropriação moderna do barroco como força crítica e/ou
sensibilidade alternativa, corroborando, neste sentido, as leituras
reabilitadoras do barroco que chamam a atenção, entre outras coisas,
para o modo como os experimentos das vanguardas do começo do sé-
culo XX recorrem a inspirações barrocas.9 Ao argumento, acrescenta os
rendimentos que a retomada barroca poderia adquirir no Brasil, em fun-
ção da maneira como abre as vias para a combinação de invenção artís-
tica e tradição nacional. Uma poética barroca, surrealista e brasileira, eis
em síntese o prognóstico de Bastide para a arte moderna nacional.
Parece difícil não localizar, nessa deriva crítica de Bastide, elementos
que reaparecerão, um pouco depois, nas propostas latino-americanas de
releituras do barroco como fonte para a constituição de um projeto ar-
tístico moderno, alternativo e crítico aos modelos europeus e norte-
americanos. O barroco como fator de identidade cultural, capaz de pro-
duzir novas linguagens na América Latina, como sabemos, encontra
formulações diversas nas obras de Alejo Carpentier, Lezama Lima e Se-
vero Sarduy, os principais artífices do neobarroco latino-americano a
partir dos anos 1950 (Chiampi, 1998).
Essas reflexões de Bastide sobre as possibilidades de um barroco mo-
derno brasileiro, esboçadas nos anos 1940, não possuem caráter sistemá-
tico, nem tomam proporções americanas, como nos escritores mencio-
nados. Além disso, a literatura, terreno privilegiado para os experimentos
barrocos latino-americanos, não é mencionada pelo intérprete francês
nesse momento, que se concentra nas expressões plásticas, visuais e
arquitetônicas. Guardadas as diferenças, observa-se nele o mesmo esfor-
ço de reinscrever o passado – mediterrâneo, ibérico e colonial – no pre-
sente, em prol da invenção de uma arte nacional e moderna, diferencial
e dissonante em relação aos modelos de modernidade disponíveis, de

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

modo a “superar uma arte internacional, eternamente igual em todas as


latitudes” (cf. Bastide, 1944b).
Se as pesquisas de Bastide sobre o barroco têm início no Brasil, não
parece difícil supor ter ele tomado contato com as discussões sobre o tema
no momento em que elas aportam em território francês, em torno de
1928 (Hatzfeld, 2002, p. 20). Além disso, sua análise da obra dos escrito-
res místicos, entre os quais San Juan de la Cruz, mostra seu conhecimento
minucioso da poesia espanhola de timbre barroco (Bastide, 1931).10
O interesse pelo universo onírico e pelo surrealismo é também ante-
rior ao período brasileiro. Os tempos de formação na França, entre 1920
e 1930, encontram-se marcados pela voga surrealista, que repercute, de
modos muito diferentes, em toda uma geração de antropólogos: Michel
Leiris, Alfred Métraux e Lévi-Strauss, entre outros. O trânsito entre etno-
logia e vanguardas artísticas na França do período é perceptível nas ex-
periências da revista Documents (1929-1930) e do Collège de Sociologie
(1937), e em instituições como o Musée de l’Homme (1937), no qual se
cruzam pesquisadores e artistas de distintas procedências.
Bastide não integrou esses círculos específicos, mas poderia tê-los
integrado, indica Jean Duvignaud (1995): flertou com as artes e com a
literatura em sua produção primeira, estabelecendo nexos permanentes
entre arte e sagrado (entendido em sentido amplo). Os repertórios em
circulação naquele momento tocaram-no de algum modo. Não é à toa
que, em 1928, ao responder a uma pesquisa sobre a idéia de revolução,
afirme:

É por isso que pertenço ao partido que vocês diriam, com desgosto, abur-
guesa a revolução: o protestantismo, o socialismo SFIO e, em literatura,
ah em literatura, digamos que é preciso comprar o surrealismo, mas nego-
ciando-o em parcelas. (Bastide, 1994[1928], p. 98)

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Quase vinte anos depois, Bastide parece seguir o que ele próprio ha-
via indicado: compra o surrealismo (ou parcelas dele), pensando-o como
uma projeção barroca. E mais que isso: como possibilidade de criação
de uma arte moderna original em solo brasileiro. Lança, então, nos três
artigos antes mencionados, de 1944, um convite aos potenciais “surrea-
listas brasileiros”: “encontrar a déraison brasileira pelo recurso às fontes
propriamente nacionais e, principalmente, ao imaginário que se revela
na cultura popular e no folclore, que deveria servir de matéria ao
‘surrealismo barroco brasileiro’” (1944b).
O ponto é retomado de forma contundente no texto de 1947,
“A volta do barroco ou a lição do Brasil”, no qual ele se dirige direta-
mente à arte e à arquitetura moderna, reeditando ressalvas indicadas,
em outros momentos, ao “cubismo do urbanismo moderno das cida-
des”. O texto pode ser lido como um manifesto: uma defesa da “volta
ao barroco” como matriz e fonte de criações originais. Tal plataforma
encontra-se amparada em exemplos retirados da produção artística da
época, na qual é possível localizar, defende ele, ecos barrocos que sub-
vertem a simplicidade e o despojamento do modernismo arquitetural:

Vemos esboçar-se uma volta ao barroco e isso no próprio interior da arqui-


tetura de cimento armado. Sabe-se que o barroco tem sido, por vezes, defi-
nido como a predominância da linha curva sobre a reta. Ora, inúmeras
fachadas modernas já se curvam, tornam-se sinuosas, no alinhamento das
ruas formam como vagas imóveis, como ondas quebrando-se num rio as-
faltado, sobre as calçadas escuras. (Bastide, 1947)

Toda vez que se trata de sublinhar as derivas perversas da arte con-


temporânea, Bastide lança mão do modernismo arquitetônico como
exemplo. E a paisagem urbana observada, desde São Paulo, é sistemati-

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

camente avaliada do ponto de vista da “exuberância barroca”. O fun-


cionalismo de corte moderno é um dos elementos de sua apreciação.
À “simplicidade clássica”, diz ele, a nova arquitetura agrega a funcionali-
dade, adaptando “a construção ao fim a que se destina (...). O impor-
tante não é, pois, a beleza, mas a perfeita adaptação ao fim almejado.
Mais precisamente ainda: a beleza nasce dessa adaptação” (ibidem).
Bastide não esconde o seu desgosto diante do utilitarismo artístico,
que deixa “um vazio na imaginação, uma espécie de lacuna na sensibili-
dade”. E a saída para essa arte subsumida a finalidades práticas ele loca-
liza nas projeções modernas do barroco. O surrealismo reaparece aí, lido
como expressão barroca, ao lado da arte abstrata,11 que redescobre tam-
bém soluções barrocas; afinal, o “barroco tendia para a decoração abs-
trata”, diz ele (ibidem).
As linhas desse artigo trazem um forte elogio à beleza, antítese da
função, recuperável nas trilhas da imaginação desinteressada, nas elabo-
rações simbólicas e oníricas, de grande proximidade com o léxico barro-
co. E ele se dirige expressamente aos artistas e arquitetos que deveriam
voltar-se aos ensinamentos do passado colonial para projetar e decorar
as cidades brasileiras, de modo a harmonizar estilos que convivem con-
traditoriamente no espaço da cidade de São Paulo.

O cubo de cimento esmaga com sua sombra retangular a igreja barroca,


impede o sol de desenhar nelas seus jogos de luz em função dos quais a
fachada toda foi construída. Uma antiga rua colonial, com seus muxarabis,
seus balcões arredondados, termina com imóveis padronizados, em arra-
nha-céus estranhamente lisos. Não se trata de iniciar uma guerra contra
esses imóveis modernos, eles correspondem a necessidades, às novas neces-
sidades criadas entre os homens pela civilização moderna e ao nascimento
de uma multidão de novas ocupações que não existiam na época dos so-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

brados e mucambos. Mas, as transformações a que me referi acima, que


vão do modernismo clássico ao modernismo barroco permitiriam às cida-
des do Brasil tomar um aspecto mais harmonioso. Não mais arranha-céus
espremidos entre os quais se percebem ilhas do passado, mas conjuntos
orgânicos em clima estético unificado. (Ibidem)

O diálogo crítico estabelecido com urbanistas e arquitetos é retoma-


do em “Estética de São Paulo II: A cidade vertical” (O Estado de S. Pau-
lo, 27 de junho de 1951), agora em função de uma reflexão sobre a casa,
construção que deve estar adaptada, segundo ele, a um novo meio e a
uma nova cultura, e não projetada como “máquina de morar” concebi-
da para o homem genérico, nos termos de Le Corbusier.
Le Corbusier e os preceitos do novo urbanismo defendidos pelos
Congressos Internacionais de Arquitetura Modernas (CIAM), a partir de
1928, são as referências de Bastide para falar de modernismo arquitetô-
nico e de habitação, neste e em outros textos. A despeito das críticas ao
modernismo internacional, que tem no arquiteto franco-suíço sua mai-
or expressão, Bastide vê em seus projetos tentativas de quebrar a assepsia
realista dos espaços modernos:

Le Corbusier sente-o tão bem [a falta de fantasia] que coloca no comparti-


mento nu, em alguns lugares estratégicos, seixos rolados pelo mar, raízes
barrocas, conchas, para que a imaginação do homem possa prender-se a
esses objetos e sonhar com eles” (Bastide, 2011[1951], p. 130)

Neste texto, como em outros, anteriores e posteriores,12 o sociólogo


trava um debate com os especialistas para pensar e propor caminhos à
cidade que se verticaliza. Não se trata de recusar a “cidade vertical” –
nem do ponto de vista prático, nem do estético –, mas de tentar equili-

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

brar modernização e tradições culturais. A arquitetura “deve transpor,


em outro ritmo, vertical, a estrutura da sociedade brasileira”, como tam-
bém “respeitar as necessidades profundas das almas forjadas por essa es-
trutura e tirar dela nova forma de beleza” (ibidem, p. 131).
As soluções barrocas são mais uma vez acionadas para resolver tal
impasse; e os arquitetos brasileiros as reencontram, indica Bastide, seja
nos jogos de luz e sombra mobilizados, seja na escolha dos materiais
empregados, seja em detalhes decorativos – arquitetos brasileiros só mais
tarde mencionados em Brasil, terra de contrastes (1957), entre eles Lucio
Costa, responsável por uma arquitetura moderna de timbre nacional
e regionalista.13
A volta ao barroco permite, simultaneamente, a recuperação da tra-
dição nacional (o passado colonial) e a projeção de modelos para o futu-
ro, articulando temporalidades, modelos e visões de mundo. Assim, a
discussão das formas e intervenções urbanas que esses textos lançam é
inseparável da consideração da cultura, das mentalidades e da projeção
de utopias. Por isso mesmo não parece estranho que, ao propor “solu-
ções barrocas” para as produções artísticas, Bastide esteja se referindo à
reabilitação do sonho, do imaginário e da fantasia. Afinal, o barroco para
ele não é somente estilo arquitetônico, capaz de oferecer soluções for-
mais e/ou ornamentais, mas é também estilo de vida e sensibilidade que
se dirige aos domínios do inconsciente, mobilizando a imaginação
onírica e os percursos dionisíacos da liberdade criadora. Ele se afasta as-
sim das discussões formais e estilísticas da matéria, reencontrando as
diversas linhagens que se valem da noção em sentido expandido (tam-
bém vago e impreciso) para exprimir certa concepção do homem e do
mundo (Hansen, 2008).

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A dupla face (mística) do Nordeste

A perspectiva ampla de tratamento do barroco esboçada nesses textos


que vêm à luz na imprensa dos anos 1940 ganha novos contornos em
Imagens do Nordeste místico em branco e preto (Bastide, 1945a). A via-
gem de 1944 permite o contato direto com o barroco – entrevisto antes
em cursos, imagens e leituras –, bem como a descoberta do mundo dos
candomblés. A descrição retira sua força expressiva do mergulho na ex-
periência: “(...) divaguei, sonhei nas velhas igrejas, imiscui-me aos can-
domblés, perdi-me no carnaval” (ibidem, p. 9).
O “Nordeste místico” a que faz referência o título da obra contém
dupla face, barroca e africana, encontrando traduções distintas no espa-
ço e na vida cotidiana das cidades de Salvador e Recife, então visitadas
pela primeira vez. Os universos são apanhados fundamentalmente pelas
festas e pelos rituais, que se oferecem, lado a lado, ao olhar encantado
do observador, e se aproximam na perspectiva (barroca) do intérprete,
que tende a privilegiar os espetáculos que agradam aos olhos.14
Os trajetos de Bastide pelas cidades do Nordeste desenham cartogra-
fia dúplice, diferentes rotas, temporal e espacialmente traçadas. A pri-
meira dirige-o ao passado, ao Brasil Colônia, berço originário das igre-
jas barrocas, de modo a compreender a formação de um barroco original
entre nós (bem ao gosto da agenda modernista). Tal viagem no tempo
encontra inscrição particular no espaço, conduzindo-o ao centro da ci-
dade e às ruas que de lá saem “como raios descendentes dessa circunfe-
rência religiosa” (ibidem, p. 27).
Embora atento à arquitetura das fachadas e às decorações de interio-
res, Bastide não se contenta com elas, lançando-se ao movimento das
calçadas e de suas gentes, entrando e saindo de casas e igrejas; peram-
bulando pelas cidades no momento de preparação de festas e cortejos.
E não podia ser de outro modo. Afinal, o barroco brasileiro, sobretudo

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

o da Bahia, indica Bastide, é um “barroco das ruas”, que organiza o ca-


lendário festivo e o ritmo da vida cotidiana. Barrocas são as igrejas, fa-
chadas, ornamentos e interiores, que ele interpreta pelas alterações que
o estilo conhece no Brasil, em função das condições econômicas, da es-
trutura social e da mestiçagem, em sua sociologia do barroco brasileiro,
produzida na mesma época e amparada em pesquisa minuciosa das fon-
tes.15 Mas barroca é também uma estética do “maravilhoso”16 e da “sen-
sualidade”, que se descola das edificações, tomando a vida ao redor.
A procura pelo mundo dos candomblés, por sua vez, afasta-o do cen-
tro da cidade, levando-o por uma segunda rota, em direção aos subúrbi-
os e às paisagens mais “africanas”. Ao contrário das igrejas barrocas que
ocupam o primeiro plano da paisagem citadina e que mobilizam forte-
mente o olhar, os santuários africanos “se escondem na verdura, cobrem-
se e se adornam com folhas de palmeiras, de bananeiras, são verdadeiros
jardins místicos onde se entra por veredas de grama, atravessando rega-
tos murmurantes, plantações de milho ou matagais floridos” (ibidem,
p. 64). Estamos aí não apenas em cenário urbano diverso – bem mais
próximo à natureza –, mas diante de outro estilo de vida mística, igual-
mente festiva, tingida por cores e sons, de forte impacto no corpo e nos
sentidos dos que dele participam.
Ambas as rotas se impõem ao viajante, ainda que de modos diversos.
O circuito barroco é incontornável para qualquer passante: as igrejas se
enfileiram nas partes litorâneas e elevadas da cidade, mobilizando a vi-
são, fortemente atraída pela “civilização do ouro” e dos azulejos. O ro-
teiro africano, por sua vez, menos evidente (já que localizado “lá embai-
xo”), “penetra pelos ouvidos, pelo nariz e pela boca, bate no estômago,
impõe seu ritmo ao corpo e ao espírito”.
Os sentidos são mobilizados ao longo dos dois caminhos, ainda que
no candomblé o privilégio da visão (da pintura dos azulejos e das rou-
pas nas festas barrocas) ceda lugar aos demais sentidos, os apelos visuais

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concorrendo com os sons (dos tambores, gritos e risos na preparação


das festas) e os cheiros (de “essências e fumos”) dos terreiros. Nas palavras
do autor: “À vossa paisagem [dos santuários africanos], as árvores deixam
cair sobre vós a polpa sucosa e perfumada de seus frutos bem maduros,
que se esmagam com um ruído doce e açucarado” (ibidem, p. 64).
Ou:

As horas passam, marcadas por tambores, agitadas pelas danças. Freqüen-


temente a festa termina por uma refeição em comum onde os petiscos de-
liciosos da Bahia [...], com aquele cheiro apetitoso do azeite de dendê, são
servidos respeitosamente aos presentes em pedaços de folha de bananeira.
(Ibidem, p. 95)17

A despeito das diferenças existentes entre as duas formas de vida mís-


tica, Bastide evita construir uma oposição entre elas; ao contrário, o li-
vro aproxima expressamente os universos das igrejas barrocas e os “san-
tuários” do candomblé:

Quando se visita igrejas e candomblés, mesmo contra a vontade, uma ana-


logia se impõe ao nosso espírito, entre as duas metodologias do êxtase. Lá
em baixo, entre palmeiras, bananeiras e matagais espessos, que têm o nome
de santos ou de “orixá”, espadas de Ogum ou pau de santo, tapete de Oxa-
lá ou chagas de São Sebastião, o tã tã dos negros penetra pelos ouvidos,
pelo nariz e pela boca, bate no estômago, impõe seu ritmo ao corpo e ao
espírito. Aqui é o tã tã do ouro e dos adornos que nos penetra, não pelos
ouvidos, mas pela vista, mas que, no entanto, também não nos abandona
[...]. (Ibidem, pp. 27-8)

A entrada nos templos barroco e africano conduz o viajante por duas


modalidades de aventura mística, ambas vigorosas do ponto de vista das

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

expressões plásticas. O barroco não é apenas uma “forma de arte”,


apreensível pelo olhar, reitera, mas “um estilo de vida”, que “toma posse
do corpo humano” e atinge “as almas”, o domínio das subjetividades e
dos sentimentos (ibidem, p. 33). Aos efeitos de vertigem produzidos
pelos templos barrocos soma-se “o esplendor” das procissões, que reú-
nem multidões. No “espetáculo maravilhoso” dos candomblés, que tem
lugar nos terreiros, por sua vez, tudo é festa: da preparação das cerimô-
nias à sua realização. Nos rituais, as músicas contagiam músculos e
vísceras, o corpo transforma-se no transe, o aspecto teatral domina a
possessão, ensinam as análises de Michel Leiris (1989[1938]).18
Ao descrever a “mística das pedras e da madeira esculpida”, ou a mís-
tica cristã, Bastide vê plasticamente a pátria lusa transportada para o
Brasil e as alterações pelas quais passou o barroco europeu no Brasil,
perceptíveis nos elementos decorativos. No relato, a arquitetura barroca
se apresenta ainda intimamente relacionada à paisagem local e ao feitio
das cidades, frequentemente aproximadas do corpo feminino, o que o
leva a reeditar o conhecido tópico da “cidade-mulher”:

Um rosário de igrejas cerca a cidade. Monteserrate, Boa Viagem, Nosso


Senhor do Bonfim, Mares, São Francisco de Paula, Corpo Santo, Santo
Antonio da Barra, Santana do Rio Vermelho, Nossa Senhora da Luz, Con-
ceição da Praia formam, por assim, dizer, o broche majestoso que fecha
este conjunto de pérolas místicas ao redor do pescoço da Bahia, enquanto
o oceano prolonga a cidade com um vestido de esmeraldas, que se ergue e
se abaixa como um coração oprimido por excesso de amor. (Ibidem, p. 19)

A sensualidade, atributo primeiro do mundo africano, não está ausen-


te nem das descrições que Bastide faz do mundo cristão, nem da arquite-
tura. É possível entrever – diz ele alguns anos depois retomando quase
literalmente trechos do livro de 1945 – certa sensualidade nas igrejas

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católicas quando “a barbárie do ouro” entra em contrato com a “simplici-


dade dos azulejos” e quando “as colunas transformam-se em mulheres,
cariátides de seios opulentos, a oferecer ventres arredondados, umbigos
rosados, às vistas dos fiéis” (Bastide, [1957]1979, p. 60). Isto é: quando
as linhas barrocas, curvas e retorcidas perturbam a retidão dos edifícios.
No interior do mundo do candomblé, a possessão ocupa o centro de
atenção do observador, como não poderia deixar de ser. Trata-se de en-
saiar nova interpretação do fenômeno como fato social total (contra as
interpretações que o associavam à histeria) e, sobretudo, de recuperar os
seus aspectos teatrais (de novo, Leiris): os diversos personagens que se
sucedem na cena; as mudanças das atitudes físicas e alterações de perso-
nalidade, que se manifestam no corpo, no rosto, nos gestos; as meta-
morfoses que marcam a performance do começo ao fim. De fato, nesse
primeiro contato com o candomblé é a sua dimensão estética e seu as-
pecto festivo que irão tocar o observador. “O candomblé não é um lu-
gar de estadia”, diz ele, “mas um lugar de festas” (1945a, p. 69); festejos
que marcam todos os momentos do ritual, antes e depois:

Não conheço espetáculo mais encantador que o do candomblé preparando-


se para a festa [...]. Poderia acreditar que me encontrava em plena África.
Não passam de colméias zunindo, cheias de gritos, risos, canções, movimen-
to, vida. As filhas de santo dirigem-se, atarefadas, de uma casa para outra;
algumas de pernas nuas, lavavam no rio os tecidos sacramentais, com um
ruído de água, salpicos de sabão e conversas infinitas [...]. (Ibidem, p. 80)

A face estética do candomblé, descrita com riqueza de detalhes, é in-


separável de sua mitologia “rica e complexa” (ibidem, p. 134). Se o bar-
roco define-se como forma arquitetônica, estilo de vida e certa psicolo-
gia, o candomblé é uma religião, mas também uma estética e uma
filosofia, afirma (p. 238).19

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

É justamente o interesse pela face estética do candomblé que permi-


te ao intérprete o estabelecimento de analogias explícitas com os tem-
plos e festas barrocas, o que se evidencia na conclusão do livro destinada
a pensar o que ele chama da “civilização de ritmos” do Nordeste brasi-
leiro: civilização de ritmos composta pelos ritmos estéticos africanos –
pelas músicas, danças e também por sua “plástica” – e pelos ritmos tra-
çados pelo barroco português aclimatado no Brasil, por curvas, formas
arredondadas e “cadências de anjos” (ibidem, pp. 222-5).
Experimentados lado a lado, os universos da mística barroca católica
e o mundo africano se aproximam do ponto de vista da interpretação,
que opera uma espécie de espelhamento: a estética barroca fornece um
parâmetro de observação e de análise do candomblé, ele mesmo barro-
co em suas manifestações teatrais e labirínticas, noturnas e catárticas,
repletas de mascaramentos e metamorfoses.
Se Bastide olha (e avalia) os planos geométricos e funcionais da ar-
quitetura e do urbanismo moderno de um ponto de vista barroco –
aquele recusa a funcionalidade, a retidão das linhas e a transparência do
vidro pela valorização dos interiores, das formas retorcidas, dos orna-
mentos e da profusão imagética –, ele também olha (e avalia) a maior
simplicidade e pobreza rituais do catimbó e xangôs visitados no Recife,
tendo como parâmetro a exuberância (barroca) do candomblé da Bahia.
O barroco buscado como solução para abrandar a geometrização da for-
ma arquitetônica moderna, visto também como matriz de novas solu-
ções artísticas (surrealistas) e que se espraia, ainda, pelos domínios da
criação popular, encontra expressão maior no candomblé, talvez a mais
acabada das projeções barrocas localizadas pelo autor.
Não se trata de estabelecer analogias entre o modelo teórico-socioló-
gico de Bastide e os preceitos oriundos da arte e arquitetura barrocas
(ainda que ele as tenha buscado todo o tempo), mas de sublinhar como
sua preferência pelos traços materiais e pela força extática barrocos ter-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

mina por infletir em sua visada analítica e em sua tentativa de estender


seus limites para além de um período histórico particular e para fora de
um domínio específico. Ao falar em ponto de vista barroco e, portanto,
em certa atividade – do olhar e da reflexão – de inspiração barroca, não
há como evitar a menção à análise de Deleuze (1988) sobre a filosofia
de Leibniz, lida em função da “operatória barroca” que mobiliza: quer
dizer, o barroco, para além de um conjunto de traços estilísticos, infor-
ma certa operação do olhar e do pensamento, ancorada em movimen-
tos permanentes de diferenciação.20
Não parece exagerado entrever uma sensibilidade barroca a informar
a visão de mundo projetada por Bastide com base na consideração de
objetos precisos: arte, arquitetura e religião – sensibilidade ou imagina-
ção forjada com o auxílio da observação e da descrição de detalhes con-
cretos, nos quais ele localiza a complexidade das coisas e do mundo.21
Gilda de Mello e Souza (1978 e 1980) define a estética de Bastide
como uma “estética pobre”, isto é, uma estética “de antropólogo”, vol-
tada para o misticismo religioso e para os fenômenos do cotidiano, desin-
teressado pelos grandes períodos e pelas obras-primas; pobre ainda no
sentido da “arte povera”, que nos anos 1960 elimina as fronteiras entre
arte e vida, aproveitando-se de materiais não convencionais. Ensaiando
trilha diversa, eu diria que é por uma visada estético-antropológica fun-
damentalmente barroca que Bastide vai pensar as artes, as cidades e as
religiões. E, no plano das vanguardas, menos que a precariedade dos
materiais e das soluções da “arte pobre”, é o surrealismo, recuperado em
função de uma suposta matriz barroca, que irá inspirar, no sentido forte
do termo, as reflexões do autor.
A estética barroca, que se alimenta de jogos permanentes de corres-
pondências, anamorfoses e disfarces, tem em Bastide não apenas um in-
térprete atilado, mas um adepto fervoroso, que se vale dessa matriz para
a definição de sua forma de ver-pensar o mundo.

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

Notas
*
‘Esta reflexão articula-se diretamente a outra, dedicada às análises de Bastide sobre
as cidades brasileiras, “Roger Bastide e as cidades: dois ângulos e uma perspectiva”,
in Lanna et alii (2011); os dois textos, na origem um só, foram separados por razões
de coerência argumentativa e narrativa. Este artigo liga-se ainda ao Projeto “Ilicia
– Inscripciones literarias de la ciencia. Ámbitos interdiscursivos, transferencias
conceptuales y procesos semióticos” (Universidad de Salamanca y Dirección Ge-
neral de Universidades e Investigación de la Junta de Castilla y León), que integro.
1
Fernanda Arêas Peixoto é professora do Departamento de Antropologia da USP,
pesquisadora do CNPq e autora, entre outros, de Diálogos brasileiros: uma análise
da obra de Roger Bastide (2000).
2
Uma dificuldade (mas não um impedimento, é claro) que se coloca para um exame
estilístico da obra diz respeito à sua deriva particular. Publicado pela primeira vez
em português com base em um original francês extraviado (sem informações sobre
o tradutor), o texto foi vertido ao francês por Charles Beylier, em 1995, baseando-
se na tradução brasileira.
3
Cf. “A arte e as influências raciais”, “Sociologia do barroco no Brasil” e o “Mito do
Aleijadinho” in BASTIDE, R., Psicanálise do cafuné: estudos de sociologia estética
brasileira (1941).
4
Em 1939 e 1940, Bastide ministra um curso sobre arte e sociedade (cf. Arte e socie-
dade, 1945b) e outro, em que se volta para a análise de casos empíricos, entre os
quais o barroco (o mineiro e o nordestino) e o Aleijadinho. Sobre estes últimos,
além dos textos de Bastide reunidos em Psicanálise do cafuné (1941), cf. os comen-
tários de sua ex-aluna, Gilda de Mello e Souza (1978 e 1980).
5
Guilherme S. Gomes Jr. fala na “lição inovadora” de Bastide em relação aos deba-
tes brasileiros sobre a noção (Gomes Jr., 1998, p. 17). Eu mesma, em livro anterior,
corroboro essa visão: o ponto de vista sociológico de Bastide sobre o barroco auxi-
lia a afastar as ambiguidades e imprecisões que rondam as discussões travadas no
Brasil até esse momento (Peixoto, 2000).
6
O livro de Guilherme Simões Gomes Jr., já mencionado, é indispensável para a
compreensão dos debates sobre o barroco no país. Indica o autor como a retomada
da arte colonial pelos modernistas, sobretudo por Mário de Andrade, não elimina
as grandes ambiguidades que cercam as considerações sobre o estilo nesse momento:

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

na produção de Mário, a associação entre arte colonial brasileira e o barroco não é


imediata, mostra o comentador; ao contrário, nota-se nele um incômodo recor-
rente com o barroco. É no final dos anos 1930 que se observa uma alteração no
debate, com a incorporação mais efetiva dos termos “barroco” e “barroco colonial
brasileiro”. Nesse contexto é que Gomes Jr. indica ser decisiva a entrada em cena
dos especialistas, sobretudo dos estrangeiros, Hanna Levy e Roger Bastide (1998,
pp. 56-70).
7
Sobre a caravana modernista que reuniu Mário de Andrade, Oswald de Andrade
(e seu filho Nonê), Blaise Cendrars, Tarsila do Amaral, René Thiollier, Olívia
Guedes Penteado e Gofredo da Silva Teles, cf. Aracy Amaral (1997[1970]). As pri-
meiras reflexões de Mário de Andrade sobre o barroco foram publicadas, em 1920,
na Revista do Brasil (n. 51 ao 54), em uma série de quatro artigos intitulada “Arte
religiosa no Brasil”.
8
Bastide indica nesse momento a lei do “desnivelamento estético” – isto é, o modo
como a arte popular reelabora elementos da criação culta –, matéria de polêmica
posterior travada com Mário de Andrade e Câmara Cascudo. Sobre o ponto, cf.
Peixoto (2000).
9
Lembremos as sugestões de W. Benjamin (1985) sobre como o expressionismo do
século XX admite e incorpora o barroco.
10
Sobre a forma barroca da lírica espiritual de San Juan de la Cruz, cf. ainda Hatzfeld
(2002, p. 308).
11
Bastide localiza, na falta de vínculos diretos e funcionais da arte abstrata com a
realidade, mais um índice de sua potência. Tal recusa do funcionalismo artístico
guarda proximidades com o seu desconforto em relação à arte engajada, voltada
para as massas, e que por isso se quer didática e/ou acessível. A arte, diz ele, é
sempre reconstrução de “outro mundo que não o mundo real”, e, nesse sentido, o
artista está sempre à parte, não “procura agradar nem convencer mas dizer os rit-
mos segundo as regras, atingir e realizar a beleza”. O ponto é discutido no “Post-
Scriptum III aos artigos de Lourival Gomes Machado”, O Estado de S. Paulo, 27
jan. 1944.
12
Por exemplo, “Sobre a estética da paisagem” (1945c) e Brasil, terra de contrastes
([1957]1979).
13
Oscar Niemeyer, que finaliza o Conjunto Arquitetônico da Pampulha nos anos
1940, é sem dúvida uma referência fundamental para Bastide quando se refere às

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FERNANDA ARÊAS P EIXOTO . O CANDOMBLÉ (BARROCO ) DE ROGER BASTIDE

curvas que tomam as fachadas modernas, ainda que ele não cite o arquiteto nos
artigos em questão.
14
Affonso Ávila chama a atenção para a predileção barroca pelos “espetáculos para
os olhos” (1980, p. 216).
15
Cf. Bastide, Psicanálise do cafuné (1941), além dos artigos de Gilda de Mello e
Souza (1978 e 1980).
16
O ponto é destacado em Imagens do Nordeste místico em branco e preto (1945a) e
retomado, quase literalmente, em Brasil, terra de contrastes ([1957]1979), quando
Bastide descreve as igrejas de fachadas austeras, mas que escondem interiores que
nos levam a penetrar “no mundo maravilhoso das Mil e uma Noites. Ouro a cin-
tilar, orgia de riquezas, torrentes de cores suntuosas, imensa sinfonia de sombras e
luzes a brincar, a se perseguir, a se separar, a se enlaçar, forçando o espírito do
devoto, ao mesmo tempo ferido pelas fulgurações do ouro e acalmado pela carícia
das sombras, a se refugiar no êxtase, a se abismar na oração” (p. 60).
17
Difícil evitar aqui a referência ao Guia do Recife, de autoria de Gilberto Freyre
(1934). No volume, Freyre estabelece um contraponto entre o centro e os subúr-
bios da cidade, construído com o auxílio de uma série de oposições encadeadas,
que se organizam em torno do par “subúrbios mais orientais” (da pequena bur-
guesia, do comércio barato e de sociabilidade intensa) e o centro, “grave, masculi-
no e europeu do Recife”. Ricardo Benzaquen de Araújo mostra como, ao longo da
narrativa, quanto mais nos afastamos do centro, mais os sentidos são despertados:
cheiros de fruta madura, repique de sinos, cores de gentes e festa (1994, p. 167).
Bastide, leitor cuidadoso do escritor pernambucano, seguramente conhece o guia
escrito pelo colega, embora tenha comentado o guia posterior, dedicado à cidade
de Olinda (1939). Nesse texto, “Evocações de Olinda”, não por acaso publicado
no mesmo ano de 1945d (Diário de S. Paulo, 12 de janeiro), Bastide destaca o
“estilo sensual” de Freyre – “seus livros são uma festa para todos os sentidos” –,
que encontra reverberações na narrativa do seu Nordeste místico (1945a). Para uma
leitura dos guias de cidades de Gilberto Freyre, cf. Peixoto (2005).
18
A menção a Leiris refere-se a seu artigo publicado no Journal de Psichologie de
1938, “La croyance aux génies ‘zar’ em Éthiopie du nord”, que é retomado, poste-
riormente, no livro La possession et eses aspects théâtraux chez les Éthiopiens de Gondar
(1958).

- 400 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

19
Mesmo sem desenvolver o ponto nesse momento, ele chama a atenção aí para a
existência de uma filosofia sutil no candomblé (1945a, p. 134), aspecto sobre o
qual só irá se deter em O candomblé da Bahia (1958) com o auxílio das formula-
ções de Marcel Griaule. Lembremos que as eideias de Griaule chegam até Bastide
por intermédio do volume Dieu d’eau (1948), que consiste numa série de entre-
vistas feitas pelo africanista francês com Ogotemmêli, o caçador Dogon, o que
permite ao intérprete enveredar pelos enredos da complexa cosmologia africana.
20
Operatória definida pela potência da dobra, entendida ao infinito: “pli selon pli”
(Deleuze, 1988, p. 47). Em entrevista sobre Leibniz do mesmo ano, Deleuze volta
a esclarecer o conceito de dobra, “sempre um singular, e só pode ganhar terreno se
bifurcando, se metamorfoseando” (1998, pp. 194-5).
21
John Law (2004) realiza uma proposta interessante de pensar o barroco como uma
visão alternativa da complexidade – “looking down” –, que ele contrapõe a uma
“visão romântica” (“looking up”). É curioso perceber como o autor inverte, assim,
o sentido das discussões artísticas propriamente ditas, nas quais o barroco é con-
traposto ao “clássico”. Agradeço a Márcio Goldman a indicação desse texto.

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ABSTRACT: This paper offers a reinterpretation of Roger Bastide’s Images


du Nordeste mystique en noir et blanc (1945), in light of other texts the author
published in São Paulo in the same decade of 1940. In these articles he
analyzes folk and modern art, the cities and the architecture, outlining a
reflection about the Brazilian Baroque that differs from the sociological
analysis of the Baroque presented in essays he had written in a more academic
approach. The exam of this group of texts highlights that, since his arrival
to Brazil in 1938, Bastide simultaneously researched the Baroque and the
candomblé. These two major themes that interested the author, been explored
side by side, far from revealing divergent concerns, are articulated, clarifying
one another. And else: the Baroque not only is a matter of analysis for
Bastide, but it provides decisive elements for him to settle his critical target.

KEY-WORDS: Roger Bastide, Baroque, Images du Nordeste mystique en noir


et blanc, arts and architecture, candomblé.

Recebido em setembro de 2011. Aceito em novembro de 2011.

- 405 -
Cavalo dos Deuses:
Roger Bastide e as transformações
das religiões de matriz africana no Brasil*

Marcio Goldman1

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: Depois de ter sido considerada uma das principais contribui-


ções ao estudo das chamadas religiões afro-brasileiras, a obra de Roger
Bastide vem sendo, há mais de trinta anos, objeto de uma série de críticas.
Este trabalho parte da hipótese de que a maioria dessas críticas não leva em
consideração um dos postulados centrais do trabalho de Bastide, a saber,
que a compreensão das religiões africanas no Brasil dependeria da combina-
ção entre uma perspectiva etnográfica e uma sociológica. Ou seja, depende-
ria da possibilidade de conciliar o imperativo de levar a sério o que dizem os
nativos com a tentativa de construção de um quadro mais amplo dessas reli-
giões. O fato de ter separado essas perspectivas em dois livros distintos suge-
re que a dificuldade não foi resolvida. O objetivo deste trabalho é tentar
demonstrar que o aprofundamento da perspectiva etnográfica é o único meio
para atingir a generalização sociológica.

PALAVRAS-CHAVE: Roger Bastide, religiões afro-brasileiras, candomblé,


antropologia simétrica.
MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES

“A África não é apenas uma expressão geo-


gráfica, é também uma paisagem metafísica
– na verdade, uma visão do mundo e de
todo o cosmo percebidos de uma posição
particular [...]. A questão de quem é um
romancista africano é em parte um pro-
blema de passaportes, de vontade indivi-
dual e em especial de ver o mundo dessa
perspectiva [...]. Ser africano, como ser ju-
deu, envolve certos inconvenientes, além
de algumas vantagens, é claro. Mas talvez
mais inconvenientes do que vantagens.
Ben-Gurion disse certa vez que ‘se alguém
quer ser judeu isso basta para mim’. Pode-
ríamos dizer o mesmo de ser africano.”
(Chinua Achebe)

Em um artigo publicado originalmente em 1946, dedicado ao “estudo


do sincretismo católico-fetichista”, Roger Bastide tocou de passagem em
um tema que, muitos anos mais tarde, passaria a ocupar um lugar cen-
tral nos trabalhos acerca das religiões de matriz africana no Brasil.2 Após
um comentário que, hoje, tende a soar algo estranho acerca de centros
de culto que “imitam” outros, mais tradicionais, “de maneira inábil e
errônea” (Bastide, 1973, p. 165), Bastide levanta a hipótese da existên-
cia de uma outra modalidade de “imitação”, que ele denomina “indire-
ta”, aquela

feita por intermédio dos livros dos afrologistas. Pois seria um erro acreditar
que os “zeladores de santo” (nome pelo qual se designam hoje em dia os
pais-de-santo) são pessoas ignorantes. Eles lêem os livros que se escrevem

- 408 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

sobre eles e pode haver uma influência dos mesmos sobre suas crenças ou
religiões, principalmente na medida em que esses livros cotejam os fatos
brasileiros com os fatos africanos, pois na impossibilidade de ir à África,
como se fazia outrora, o zelador de hoje estuda a África através dos livros
para reformar sua própria religião. (Ibidem, p. 168)

Nesse ponto, Bastide insere uma nota que peço licença para citar na
íntegra:

Achamos curioso assinalar as reações dos crentes afro-brasileiros diante dos


livros que a eles se referem. Em geral todos concordam em reconhecer a
exatidão dos livros de Nina Rodrigues e Manoel Querino. Quanto a
A. Ramos as opiniões se dividem: há os que o julgam igualmente bom e os
que afirmam que ele “romanceia” um pouco. Édison Carneiro é criticado
por se apoiar em Joãozinho da Gávea [sic], que o teria induzido a erros
sobre vários pontos. Em Donald Pierson distinguem o que foi informado
por D. Aninha que é exato e o que foi colhido através de outros informan-
tes e se ressente de erros. Aliás, houve pela imprensa uma reação pública
de um ogã contra o livro de Pierson sobre o candomblé da Bahia [...].
Em Recife, Gonçalves Fernandes foi igualmente atacado por algumas de
suas informações. Por minha parte, também não duvido que o seja... Na
realidade tanto os livros desses autores como as críticas a eles formuladas
são legítimas. Pois, como irei afirmar mais adiante, não existe uma religião
afro-brasileira, mas várias e o que é exato para uma nação deixa de o ser
para outra. E ainda existem os terreiros “espontâneos”. Daí a diversidade
dos pontos de vista. (Ibidem, p. 168, nota 11 – grifo meu).

Discutirei adiante com mais detalhes essas observações, que me pa-


recem profundas e importantes. Por ora, basta assinalar dois pontos. Em
primeiro lugar, como parece curioso que aquilo que, em 1946, Bastide

- 409 -
MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES

considerava prova da inteligência e da sabedoria dos adeptos das reli-


giões de matriz africana no Brasil viria a ser encarado, anos mais tarde,
como evidência da influência de intelectuais extrínsecos a essas religiões
sobre elas. Em segundo, e mais importante, indagar se seríamos capazes
de aprender alguma coisa com esse modo de ler os intelectuais (ou seja,
nós mesmos) adotado por aqueles que costumamos dizer que “estuda-
mos”. Ou se estamos condenados a seguir atribuindo a eles os modos da
academia, encarando os terreiros como se fossem os departamentos uni-
versitários por onde transitamos e onde a “autoridade” dos autores cos-
tuma derivar de seus títulos, de sua senioridade, carreira, nacionalidade,
enfim, de sua posição no “campo intelectual”. E onde a “autoridade”
dos leitores costuma provir de sua capacidade de brandir textos tidos
como importantes, lidos ou não, diante daqueles que supostamente não
os conhecem.
De toda forma, é fato que esse modo academicista de tratar intelec-
tuais, adeptos e suas relações vem produzindo diversos efeitos no cam-
po de investigação que nos ocupa. Um desses efeitos é, sem dúvida, que,
a partir da década de 1970, vem se tornando um esporte cada vez mais
popular entre os intelectuais que estudam as religiões de matriz africana
no Brasil denunciar aqueles que as estudaram antes deles – intelectuais
(os antigos) cujo pecado seria na verdade duplo, um mais ou menos in-
tencional e o outro mais ou menos involuntário.
O pecado intencional consistiria em um esforço algo desesperado
para conectar as realidades com que se deparavam no Brasil entre 1890
e 1970 com fenômenos tidos por africanos. Os intelectuais se transfor-
mariam, assim, em juízes capazes de decidir acerca da maior ou menor
fidelidade dos diferentes centros religiosos – ou mesmo de diferentes
regiões do país ou localidades – a um modelo “africano” tido, a priori,
como originário, homogêneo, consistente e puro.

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Quer tenham ou não sido bem sucedidos esses esforços (e quase sem-
pre se imagina que não foram), o fato é que os intelectuais teriam influ-
enciado os próprios adeptos, de tal forma que estes, aparentemente, te-
riam começado a perceber algumas vantagens na proclamação dessa
fidelidade a uma África ancestral cantada pelos livros, que teriam passa-
do, assim, a ser consumidos por aqueles que deveriam ser apenas seus
objetos ou personagens.
Nessa história, iniciada grosso modo por Nina Rodrigues, Roger
Bastide teria ocupado uma posição ao mesmo tempo soberana e termi-
nal. Porque, depois dele, nós teríamos nos tornado muito mais inteli-
gentes, deixando de perseguir a sombra de uma África imaginária e nos
contentando, sabiamente, com a muito real “sociedade brasileira”.
Não pretendo aqui, é claro, apreciar em detalhes essa versão dos es-
tudos afro-brasileiros que considera a si mesma revolucionária.3 Eu gos-
taria de observar apenas que me parece algo estranha a tentativa de fazer
justamente de Roger Bastide o principal ator, ou dramaturgo, desse tea-
tro de sombras. Afinal, e como bem se sabe, um dos objetivos mais ex-
plícitos da obra de Bastide – talvez o que ele considerasse como mais
relevante do ponto de vista científico – consistia exatamente na tentati-
va de elaboração de uma perspectiva propriamente sociológica a respei-
to das religiões de matriz africana no Brasil. Perspectiva que devia ex-
plorar, justamente, as relações entre níveis da realidade social que Bastide
ora denominava infra e superestruturas (ao empregar um vocabulário
marxista), sociedade e cultura (quando se aproximava da antropologia)
ou morfologia social e representações coletivas (quando adotava seu
modelo preferido, o sociologismo durkheimiano, ainda quando tempe-
rado por Lévy-Bruhl, Griaule ou Gurvitch).
De toda forma, e qualquer que fosse o vocabulário empregado, o
problema mais geral de Bastide é muito claro: como correlacionar reli-

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MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES

gião e sociedade – o que não parece tão distante do que se fará mais
tarde e, muitas vezes, contra o próprio autor. Mas em dois pontos ao me-
nos o modelo bastidiano difere daquele elaborado a partir dos anos 1970.
Em primeiro lugar, a perspectiva que Bastide elabora pretende ser
histórica ou dinâmica. É nesse sentido que o caso das “religiões africa-
nas no Brasil” aparece a seus olhos como uma espécie de caso privile-
giado, um laboratório, onde seria possível investigar empiricamente uma
grande questão do pensamento sociológico. Pois se marxismo, antropo-
logia social ou durkheimianismo concordam, grosso modo, em atribuir à
“base” uma precedência e um poder de determinação sobre as “repre-
sentações”, o que fazer de um conjunto religioso que, ao ser arrancado,
literalmente à força, de sua base, em lugar de desaparecer parece, ao con-
trário, insistir em se manter? Seria preciso, neste caso, inverter todo o
esquema e, apelando para Lévy-Bruhl e sobretudo para Griaule, optar
por atribuir às representações o poder de determinar a morfologia?
Sabe-se que, por vezes, é nessa direção que Bastide caminha. Assim,
em O candomblé da Bahia, ele chega a afirmar que “não é a morfologia
social que domina e explica a religião, como queria Durkheim, mas ao
contrário é o aspecto místico que domina o social” (2001, p. 45), ou
que “o social é fruto do místico, como indica Griaule, a organização
material reflete a organização espiritual” (ibidem, p. 111). Mas sabe-se,
também, que não é exatamente esta sua posição mais geral.
De fato, na obra que escreveu diretamente acerca dessa questão,
Bastide apresenta uma posição muito mais matizada, que se modifica
várias vezes ao longo do livro. Assim, se em alguns momentos o autor
parece optar por uma precedência do “místico” (1971, pp. 96, 113, 426,
por exemplo), sua hipótese fundamental é muito mais interessante do
que uma simples inversão de determinismos. Ao analisar as conexões
entre organização social e pensamento por meio das “religiões africanas
no Brasil”, Bastide privilegia uma perspectiva mais diacrônica do que

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sincrônica (e sem entrar no mérito de suas reconstruções históricas4), o


que o distingue, antecipadamente, dos que o seguirão e criticarão.
Com efeito, a perspectiva diacrônica o coloca diante de um desdobra-
mento crucial: as representações religiosas africanas não apenas “sobre-
vivem” à brutal ruptura com as infra-estruturas de que dependiam, ou a
que estavam articuladas, como se mostram capazes de produzir novas
formas de organização, distintas das dominantes:

A religião africana [...] secretou, de algum modo, como um animal vivo,


sua própria concha; suscitou grupos originais, ao mesmo tempo semelhan-
tes e todavia diversos dos agrupamentos africanos. O espírito não pode
viver fora da matéria e, se essa lhe falta, ele faz uma nova. (Bastide, 1971,
p. 32)

Creio que essa hipótese explica melhor, ou ao menos de modo me-


nos antipático e ressentido, o encantamento de Bastide com o “candom-
blé da Bahia” (e com tudo aquilo que a ele se assemelha: o vodum
maranhense, o xangô pernambucano ou, em menor escala, o batuque
gaúcho), do que as tradicionais denúncias, que dizem que ele seria víti-
ma de uma espécie de nostalgia por uma África perdida e imaginária.
Em outros termos, a resistência demonstrada, em maior ou menor
grau, por essas religiões desperta a admiração do autor pela disposição
em manter, recriar e expandir a vida em situações absolutamente adver-
sas, resistência esta que se manifesta, concretamente, na capacidade de
organizar formas sociais onde a vida, em princípio, transborda suas di-
mensões estritamente religiosas: os terreiros. Destes, Bastide não se can-
sa de ressaltar a autonomia: “cada casa ou terreiro é autônomo, sob a
dependência de um pai ou mãe-de-santo que não reconhece nenhuma
autoridade superior à sua. Constituem mundos à parte, espécies de ilhas
africanas no meio de um oceano de civilização ocidental” (2001, p. 69).5

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Paralelamente, no nível das formações mais abrangentes – a famosa


“sociedade brasileira” –, uma sociedade que se “moderniza” e uma reli-
gião dominante também jogam relações entre infra e superestrutura.
Afinal, é bom lembrar, capitalismo e catolicismo também têm origens
exógenas, e a adequação entre os dois não parece ser automática. Em
outros termos, e simplificando demais, uma superestrutura religiosa, que
foi capaz de gerar uma nova base morfológica, mas que tem dificuldades
para mantê-la, está em relação com uma base econômica e social dotada
de representações religiosas mais ou menos inadequadas. Se isso for ver-
dade, não estariam as duas destinadas a um encontro que provocaria
um notável evento histórico – nada menos que o “nascimento de uma
religião” (título do sexto capítulo de As religiões africanas no Brasil)?
“Nada mais emocionante, para um sociólogo”, escreveu Bastide (1971,
p. 466), “do que ver, sob seus próprios olhos, nascer uma religião”.
É desse modo, parece-me, que Bastide acaba desembocando em uma
espécie de concepção triangular das religiões de matriz africana no Bra-
sil. No vértice superior do triângulo, teríamos, sem dúvida, o candomblé
(baiano); na base, à direita, a umbanda (carioca ou fluminense) e, à es-
querda, a macumba (paulista). A umbanda, claro, seria essa nova reli-
gião cujo nascimento o sociólogo tinha o privilégio de acompanhar: a
resultante de um reencontro entre infra e superestrutura, mas desta feita
com os pés e a cabeça nos lugares “certos”, não com o interessante, mas
necessariamente provisório, fenômeno de uma superestrutura determi-
nando uma base morfológica.
Para Bastide, a macumba, por sua vez, assinala, tudo indica, uma es-
pécie de risco sempre presente nesse processo histórico de realinhamento
estrutural. Basta que as coisas não se encaixem como deveriam, que as
representações religiosas não se articulem com os grupos sociais efeti-
vos, que estes não sejam capazes de exercer suas funções de controle, e
tudo pode degenerar em magia, por um lado, e individualismo anômi-

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co, por outro. Termos, aliás, praticamente sinônimos, já que aqui, como
em tantas outras partes, Bastide segue quase fielmente os ensinamentos
de Durkheim e Mauss.6
Nesse engenhoso modelo permanece, contudo, algo de inexplicado
e mesmo de misterioso. Na verdade, o mesmo tipo de mistério que pa-
rece obcecar os intelectuais de Nina Rodrigues até hoje: afinal, por que
– e, às vezes, como – “sobrevive” o candomblé? Ou seja, por que o can-
domblé não se transforma de uma vez por todas em cristianismo,
umbanda, espiritismo ou secularismo, de acordo com o gosto do fre-
guês? Ou, ao menos, por que não se dissipa na forma corrompida, sim-
plificada ou libertária da macumba? “Por que, pois, há sempre candom-
blés?” (Bastide, 1971, p. 231).7
A resposta de Bastide a essa bela questão não é de todo clara. Por
vezes, os terreiros são tidos por “nichos” que sobrevivem por pura inércia
quando as condições “exteriores” são favoráveis (ibidem, pp. 225, 389,
entre outras); mas, outras vezes, Bastide não pode deixar de sublinhar o
caráter ativo da produção desses nichos, verdadeiras linhas de fugas ca-
pazes de escapar de toda “determinação infraestrutural”: “esse primeiro
momento de adaptação é seguido por um segundo, o de criação”
(ibidem, p. 226). Tudo se passa como se o autor não fosse capaz de re-
sistir à sua própria descoberta de que “nichos” de resistência podem ser
criados em e contra uma infraestrutura dominante. E, em certo senti-
do, é isso o que cabe fazer com o próprio Bastide: liberar suas ideias da
“infraestrutura” de que dependem a fim de que também possam ser uti-
lizadas como “nichos de resistência” ou linhas de fuga.
É claro que os autores “modernos” não formularão o problema nes-
ses termos, que eles, ao contrário, o empregam como instrumento de
acusação contra os autores “antigos”. No entanto, escrevendo justamen-
te num momento em que as religiões de matriz africana no Brasil pare-
ciam estar sofrendo um processo de crescimento e expansão, os autores

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MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES

que começaram a pesquisar na década de 1970 se viram tentados, por


assim dizer, a fazer da necessidade virtude. Se o “mistério” consistia em
compreender a convivência dessas religiões com os processos de moder-
nização, e se já não era possível aplicar conceitos como “sobrevivência”,
nada melhor do que fazer da própria modernização a causa da perma-
nência e até mesmo do desenvolvimento dessas religiões. Foi desse modo
que se passou a uma ênfase quase exclusiva nas relações externas dos gru-
pos religiosos, explicando suas características como efeito de estruturas
mais abrangentes (ver Goldman, 1984, pp. 107-109; 1985, pp. 25-31;
2009, p. 108).
Lembremos que no início de As religiões africanas no Brasil (1971, p.
42) Bastide procura sustentar a idéia de que existiria uma complemen-
taridade entre os “métodos” da “pesquisa etnográfica” e da “interpreta-
ção sociológica”, ou seja, da necessidade de levar a sério o que os nativos
dizem e, ao mesmo tempo, empreender a tentativa de construir um
quadro mais amplo dessas religiões. E é por isso que, mesmo no início
de “uma tese de Sociologia”, o autor insiste em observar que ela “se fun-
damenta numa longa observação etnográfica de vários anos” e que “a
experiência que daremos será uma experiência vivida” (ibidem, p. 42).
Sabemos, entretanto, que essa “experiência vivida” de Roger Bastide
se deu fundamentalmente com o candomblé baiano. Os dados a respei-
to de outras atualizações das religiões de matriz africana no Brasil que
ele utiliza foram obtidos ao longo de curtas visitas ao campo, em regis-
tros bibliográficos ou por meio de comunicações pessoais. Mais do que
isso, contudo, esse “candomblé da Bahia” vivenciado por Bastide é o do
“rito nagô” (subtítulo de seu livro etnográfico, lembremos), em particu-
lar aquele praticado em alguns terreiros de Salvador que proclamam
descender de um ou dois centros de culto fundados no início ou em
meados do século XIX por sacerdotisas de origem iorubá. Essa “limita-
ção” não é, evidentemente, um problema em si – já que ninguém pode

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vivenciar mais do que uns poucos terreiros –, mas tem implicações e


consequências na obra de Bastide.
Em primeiro lugar, a proclamada complementaridade entre o méto-
do etnográfico e o sociológico tende a se hierarquizar e mesmo a se con-
verter em uma oposição. Por um lado, a etnografia acaba reduzida a um
empreendimento de coleta de dados a serem interpretados pelo sociólo-
go; por outro, por exemplo, se, do ponto de vista etnográfico, a intui-
ção de Bastide tende a fazê-lo privilegiar a capacidade de resistência das
religiões de matriz africana no Brasil, a perspectiva sociológica tende a
afastá-lo dessa hipótese, conduzindo-o na direção de um modelo
historicista no qual o candomblé quase inevitavelmente se converte em
umbanda ou se desagrega em macumba.
Tudo se passa, então, como se Bastide se tornasse presa do mesmo
dilema apontado por Lévi-Strauss (1946, p. 527-529) na obra de
Durkheim: a incapacidade de escapar da antinomia entre a cegueira da
história e o finalismo da consciência. Se a resistência fica em primeiro
plano quando adota o segundo ponto de vista, no primeiro ela tende a
ser dissolvida por uma história que não depende da vontade dos ho-
mens. Conhece-se a “solução” levistraussiana para o dilema: a finalidade
inconsciente do espírito. Mas sabemos, também, que Bastide recusava
essa alternativa. Na própria “Introdução” de As religiões africanas no Bra-
sil, ele sustenta que “a atitude de Lévi-Strauss parece-nos ser a única ver-
dadeiramente positiva em etnologia” apenas para perguntar, logo em
seguida, se “podemos nos contentar com isso” e concluir que de modo
algum, uma vez que “as crenças religiosas excedem as leis da troca e da
solidariedade, as regras fundamentais da complementaridade, a lógica
das relações (1971, p. 19).
Observemos, contudo, que, publicado originalmente em 1960, As
religiões africanas no Brasil antecede em alguns anos a obra de Lévi-
Strauss que poderia ter ajudado Bastide a se livrar de seu dilema. Com

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MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES

efeito, nas Mitológicas Lévi-Strauss está menos interessado em revelar


estruturas inconscientes do que em conectar fatos etnográficos aparen-
temente heterogêneos e díspares. Ou, em outros termos, está menos in-
teressado em explicar esses fatos etnográficos por meio de teorias de or-
dem superior do que em demonstrar que é possível encontrar uma
inelegibilidade no próprio plano etnográfico, por meio demediante um
método transformacional em que cada atualização mítica é tratada como
uma transformação de outras e vice-versa. Percebe-se logo a rentabilida-
de potencial desse método – que não é nem etnográfico, nem etnológico,
mas antropológico –, se aplicado a um conjunto religioso cujas caracte-
rísticas mais aparentes são justamente o fato de não parecerem obedecer
a um modelo único e, não obstante, o ar de família que qualquer um,
nativo ou pesquisador, sente quando as encara em bloco. Porque o úni-
co modo de articular a generalização “sociológica” com a perspectiva
“etnográfica” não é aumentar o fosso entre ambas, mas, bem ao contrá-
rio, aprofundar a segunda e estendê-la por meio de transformações.
Este não é evidentemente o lugar para desenvolver essa hipótese.
Observemos, ao contrário, que outra consequência da dificuldade bas-
tidiana em cumprir a promessa de conciliar o etnográfico e o sociológi-
co – atestada pelo fato dele ter dividido o problema em dois livros dife-
rentes – foi abrir o flanco para uma série de críticas que se sucederam a
partir de meados da década de 1970.8
A admiração “etnográfica” pelos terreiros onde ele concentrou suas
investigações foi esquecida em benefício do distanciamento “sociológi-
co” em face das demais atualizações das religiões de matriz africana no
Brasil, transformada em “nagocentrismo”, tradicionalismo e vontade de
africanização, por um lado, e em simples etnocentrismo e preconceito,
por outro. Essas críticas estão longe de serem falsas. O problema é que
tais críticas fizeram que, cada vez mais, aquilo que pode haver de mais

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interessante e produtivo na obra de Bastide fosse sendo deixado de lado


– ou que simplesmente se defendesse e se reiterasse o que estava sendo
atacado. Seremos um dia capazes, como indagou Isabelle Stengers (2002,
p. 180), “de ler Marx ou Freud como os biólogos podem hoje ler
Darwin. Com ternura”? Pois é claro que as críticas endereçadas a Basti-
de derivam de um certo modo de ler que, por vezes, tende a ser domi-
nante nas universidades, onde é cuidadosamente ensinado aos jovens
estudantes. Trata-se de um tipo de leitura que privilegia as intenções sub-
jacentes ao texto etnográfico ou antropológico, assim como os efeitos,
desejados ou não, que o texto supostamente produz, em detrimento do
papel que esse tipo de texto pode desempenhar como meio de experi-
mentação e via de acesso a verdades e pensamentos outros. Assim, não
deixa de ser curioso que a quase totalidade das críticas dirigidas a Bastide
(entre outros) quase nunca se dirija aos aspectos etnográficos ou pro-
priamente teóricos de sua obra, limitando-se, via de regra, a apontar – e
às vezes denunciar – seu caráter ideológico, romântico, tradicionalista,
etnocêntrico, etc.
Como não pretendo aqui entrar em polêmicas, nem muito menos
tentar “defender” um autor como Bastide, que evidentemente não pre-
cisa de defesa, gostaria de deslocar o foco da discussão para um plano
um pouco mais etnográfico, a fim de que, mais adiante, possamos con-
cluir com um “retorno” a Bastide. Para isso, gostaria de começar toman-
do como exemplo um artigo muito citado de Véronique Boyer, publi-
cado em 1996: “Le don et l’initiation: de l’limpact de la littérature sur les
cultes de possession au Brésil”.
Ainda que Bastide não seja aí mencionado, os argumentos desenvol-
vidos poderiam perfeitamente ser a ele endereçados.9 O título do arti-
go, composto de duas partes, é em si mesmo significativo. De fato, as
informações etnográficas mais relevantes acerca da relação entre “o dom

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e a iniciação” estão concentradas em suas primeiras páginas, para que o


restante do texto possa ser dedicado ao “impacto da literatura sobre os
cultos de possessão no Brasil”.
O argumento etnográfico é relativamente simples, ainda que com
certeza importante: todas as religiões de matriz africana no Brasil estão
mais ou menos dilaceradas “entre o dom e a iniciação” (ibidem, p. 9).
Ou seja, entre aquilo que derivaria “das capacidades pessoais que o mé-
dium manifesta em sua aprendizagem” e o que dependeria, antes, “da
competência de um especialista religioso (…), de seu talento para ex-
plorar um conjunto de conhecimentos, formando um corpus ritual e
doutrinário ao qual seus pares também se referem” (ibidem, p. 8).
O fato de Boyer admitir a existência de uma “complementaridade
entre a iniciação e o dom” não a impede de sugerir que, para os fiéis, se
trata de uma complementaridade que pode ser quebrada: “alguns estão
seguros de sua ligação com o que é da ordem da aptidão pessoal e inata,
enquanto outros se pronunciam a favor de uma boa e correta iniciação”
(ibidem, p. 8 – grifo meu). Logo em seguida a autora explica de onde
provém a oposição na qual ela converteu a complementaridade inicial:

O contraste entra essas noções se alimenta da divergência entre os interes-


ses dos chefes de culto, preocupados em consolidar sua ascendência sobre
os médiuns que devem formar, e as aspirações desses últimos, desejosos de
fundar um centro que lhes pertença. Desse ponto de vista, a recorrência
do tema na expressão dos conflitos incita a nos debruçarmos sobre as rela-
ções de poder que ele permite construir no interior do universo religioso
levando em conta um ambiente sociológico mais amplo: o conjunto da
sociedade brasileira. As posições dos chefes de culto se definem, com efei-
to, em relação às fontes escritas evocadas acima investidas de uma autori-
dade e de um prestígio do qual os mestres dos terreiros tentam se apropriar.
O dom e a iniciação aparecerão, então, menos ligados por uma oposição

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real, que funcionaria em diferentes níveis e contextos diversos, do que por


um efeito de polarização que permite organizar um vasto campo semânti-
co onde outros elementos serão inseridos. (Ibidem, pp. 8-9 – grifos meus)

Essa passagem reconduz a oposição entre o dom e a iniciação para o


campo das relações complementares, fazendo, contudo, que essa
complementaridade não seja aquela que os fiéis imaginam. Isso permite
à autora dedicar a maior parte do artigo à análise da “obra dos intelectu-
ais” que, a partir dos anos 30, teriam se dedicado a revelar “a perfeita
coesão e a riqueza do sistema simbólico e ritual” (ibidem, p. 14) das
religiões de matriz africana no Brasil.
Boyer observa, com razão, que a literatura antropológica e sociológi-
ca não foi e não é a única a se dedicar a essas religiões, e que um outro
tipo de literatura – que ela denomina “esotérica” – também as tomou
por objeto por um esforço que visava sua codificação. Trata-se aqui, prin-
cipalmente, da literatura “umbandista”, que, a partir da década de 1940,
vinha tentando empreender a “uniformização” dessas religiões. Essa ten-
tativa, no entanto, estaria comprometida desde o início, uma vez que,
ao reconhecer a “onipotência dos espíritos” (ibidem, p. 15), os autores
nela engajados perdem todas as condições de afirmar sua própria auto-
ridade, pelo fato bem estabelecido de que, em uma religião de posses-
são, qualquer mediação mais ou menos institucionalizada (seja a de uma
igreja, seja a de uma literatura) corre sempre o risco de ser posta em
xeque pelo contato direto mantido pelos fiéis com as potências espiritu-
ais envolvidas no culto.
Feita essa constatação, Boyer desemboca em uma curiosa conclusão:
“o trabalho daqueles que pretendem lançar um olhar imparcial sobre os
cultos de possessão terá, paradoxalmente, repercussões mais visíveis so-
bre os terreiros do que a literatura esotérica” (ibidem, p. 17). Por quê?
Ora, porque “o poder do livro é reconhecido” pelos pais-de-santo;

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porque o “estatuto social dos eruditos é, sem sombra de dúvida, um fa-


tor que explica o ‘valor’ diferente atribuído a seus livros e àqueles dos
escritores afro-brasileiros” (ibidem, p. 19); e porque

[...] só se pode compreender o pouco efeito desse esforço de escrita daque-


les próximos aos terreiros sobre os cultos de possessão se levarmos em con-
ta a lógica especifica acionada no tratamento do pensamento. Na produ-
ção científica, a análise permite organizar os dados, cada etapa do raciocínio
é formalmente argumentada, as outras interpretações são discutidas e afas-
tadas quando parecem inadequadas. A numeração caracteriza, ao contrá-
rio, a literatura esotérica; o grau de rigor necessário na articulação dos ele-
mentos do discurso é fraco, e o texto, que é mais um catálogo de fórmulas,
encontra sua coerência em outro lugar que ele mesmo. (Ibidem, p. 20).

Não creio ser excessivo imaginar que, embora Bastide não seja aqui
mencionado, ele poderia ser incluído na lista dos intelectuais suspeitos
de terem involuntariamente contribuído para a codificação das religiões
de matriz africana no Brasil pelo fato de terem voluntariamente se dedi-
cado à busca das tradições africanas que teriam sobrevivido à diáspora.
A própria Boyer (1993b) o sugere em outro texto, e são muitos os que
situam Bastide entre aqueles cuja obra é constantemente lida pelos
adeptos e que teriam contribuído para a “invenção do candomblé” (cf.
Despland, 2009).
Tudo isso é provavelmente verdadeiro, mas, não obstante, deixa de
lado uma série de pontos que eu gostaria aqui ao menos de levantar. Em
primeiro lugar, a ausência de uma investigação etnográfica sistemática a
respeito do modo como os trabalhos dos intelectuais são de fato lidos e,
se for o caso, utilizados por diferentes fiéis das religiões de matriz africa-
na no Brasil. Ou seja: quem lê essa literatura, o que dessa literatura é

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lido, que valor é atribuído ao que é lido. Quando esse importante traba-
lho for enfim realizado, ele certamente mostrará que não é nem neces-
sário, nem correto projetar os padrões acadêmicos com os quais está acos-
tumado o intelectual sobre aqueles cujas singularidades ele está, em tese,
investigando. Como se esses padrões fossem universais quando, na ver-
dade, não são sequer muito comuns…
Assim, em sua magnífica tese de doutorado sobre o candomblé em
Recife (à qual retornarei adiante), Arnaud Halloy (2005, pp. 97, 125,
187, 191-194, 645) observa como os membros dos terreiros que estu-
dou consideram o saber que se aprende diretamente muito superior,
confiável e estável do que aquele que pode ler nos livros – saber livresco
do qual eles desconfiam muito e que consideram volátil demais, sempre
escapando da memória e exigindo a prática constante da leitura. E, no
meu próprio trabalho de campo, essa oposição hierárquica é sempre acio-
nada, opondo os que “nasceram em um terreiro” àqueles que “aprende-
ram nos livros”. Mais do que isso, como observou Serra (1995, p. 124),
“basta conversar” com o povo-de-santo “para perceber que não recebem
sem crítica tudo quanto se diz ou escreve a respeito do candomblé”.
Em lugar de projetar nossas teorias e, sobretudo, nossa vivência do
campo intelectual sobre o mundo das religiões de matriz africana no
Brasil, eu preferiria, bem ao contrário, tentar aprender o que for possí-
vel acerca dessas outras formas de relação com a prática da leitura e do
tratamento dos intelectuais. Como argumentei em outro lugar,

aquele que deseja aprender alguma coisa no candomblé sabe muito bem
[...] que deve tratar de ir reunindo pacientemente, ao longo dos anos, os
detalhes que recolhe aqui e ali, com a esperança de que, em algum mo-
mento, esse conjunto de saberes adquira uma densidade suficiente para
que com ele se possa fazer alguma coisa. (Goldman, 2005)

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A isso se denomina catar folhas, e eu acredito que, desse ponto de


vista, os livros dos intelectuais não são nada mais do que algumas folhas
entre tantas outras.
Teríamos algo a aprender com essa concepção? Seríamos capazes de
praticar uma espécie de deutero-aprendizado etnográfico? Como se sabe,
o conceito de “deutero-aprendizado” (“deutero-learning”) foi introduzi-
do por Bateson em 1942 para, grosso modo, ressaltar o fato de que, quan-
do aprendemos alguma coisa, também aprendemos (ou podemos apren-
der) a aprender (ver Bateson, 1972, em especial, pp. 167-183). Creio
que a antropologia ainda não extraiu as consequências contidas no ato
de aplicar essa noção aos próprios procedimentos etnográficos. A saber,
em lugar de imaginar que aplicamos formas de conhecimento estáveis
aos conteúdos que aprendemos no campo, trata-se de imaginar a possi-
bilidade de transformar os próprios procedimentos de conhecimentos
por meio dos que podem nos ser ensinados por aqueles com quem con-
vivemos no campo.
Vimos acima como Bastide já apontava nessa direção ao constatar
algo mais ou menos óbvio: que “os crentes afro-brasileiros” não pare-
ciam ler Nina Rodrigues, Donald Pierson ou o próprio Roger Bastide
por suas credenciais acadêmicas, seu capital social e cultural, ou por sua
posição no campo intelectual, mas sim em virtude de todos eles terem,
em algum momento, entrado em contato direto com grandes sacerdo-
tes e sábios das religiões de matriz africana no Brasil.
Nesse sentido, poderíamos talvez dizer que textos como os de Nina
Rodrigues (ou os próprios autores, quem sabe) apareceriam, aos olhos
daqueles acostumados com a possessão divina e com a transmissão do
saber dos antigos, como espécies de meios por onde fluiria uma palavra
e um conhecimento que não são os deles, “médiuns” ou “cavalos”, que
receberiam e transportariam algo que os ultrapassa muito, a palavra de

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Mãe Pulquéria, Martiniano do Bonfim ou Mãe Senhora – palavra que,


como se sabe, é em si mesma força e ação.
É nesse sentido que poderíamos aprender a ler alguém como Roger
Bastide de outra forma, ou de uma forma aparentemente outra. Desse
ponto de vista, Bastide é apenas um “cavalo de santo”, ao menos no
sentido de que carrega e transporta a palavra e a existência de sábios
ancestrais. Por mais estranho que isso possa parecer, não creio que, no
final das contas, seja tão diferente do que devemos esperar dos escritos
etnográficos. Afinal, o maior valor de um texto como o de Malinowski
não seria o de ser meio de transporte da palavra, do saber e da vida dos
trobriandeses?
Claro que contra essa interpretação poderiam ser evocadas, por um
lado, esse tipo de leitura crítica que supõe que as particularidades e os
interesses de cada autor não apenas interfeririam em sua escrita, mas,
no limite, determinariam o que ele escreve. Tal objeção não levaria mui-
to longe, uma vez que, como se sabe, cada cavalo de santo modula, de
acordo com características próprias, as forças que passam por ele. Se qui-
séssemos usar um vocabulário latouriano, diríamos que cavalos de santo
e etnógrafos nunca são simples “intermediários”, ou seja, veículos indi-
ferentes ao que transportam ou que os atravessa. Eles são mediadores em
sentido estrito, isto é, eles tanto modulam aquilo que transportam quan-
to se modificam no ato de transporte (ver Latour, 1991, pp. 78-80, e
2005, pp. 38-40, 59). E já deve estar claro a essa altura que o argumen-
to de que a “realidade” de coisas como interesses, aspirações, prestígio,
classe social e posição no campo intelectual não podem ser confundidos
com atributos e com seres imaginários não será aqui sequer considerado.
Por outro lado, uma postura mais “pós-moderna” poderia, sem dúvi-
da, insistir no fato de que o etnógrafo ou antropólogo apenas pretende
“representar” a palavra e a vida nativas em seu texto, enquanto o transe

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MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES

e a possessão pretendem mais apresentar uma potência do que represen-


tar uma substância. Nesse caso, creio que a resposta poderia ser imagi-
nar que essa aproximação seria mais um meio de nos livrarmos do im-
pério da representação, que os próprios pós-modernos apontaram, com
razão, como limite da antropologia. Mas, entre afirmar a impossibilida-
de da antropologia por ela ser representativa e imaginar uma antropolo-
gia que escape da representação, fico, evidentemente, com a segunda
opção. Ademais, o ar de plausibilidade presente nessa objeção desapare-
ce quando imaginamos, por exemplo, um texto em que Mãe Senhora
está presente sendo lido por um adepto do candomblé, e não por um
antropólogo. Neste caso, não creio ser absurdo imaginar que o que con-
ta é muito mais a presença da força da grande sacerdotisa do que a mera
apresentação de suas palavras. Afinal – e foi o próprio Bastide quem nos
ensinou –, mesmo a mais tênue “participação” é incomensuravelmente
mais potente do que a mais elaborada “representação”.

Notas
*
Este texto faz parte de um trabalho em andamento, que retoma, após longa inter-
rupção e em novas bases, pesquisas sobre as “religiões africana no Brasil” iniciadas
há muito tempo. Nesse trabalho, ao mesmo tempo muito antigo e muito recente,
o pensamento de Roger Bastide sempre ocupou uma posição central em virtude,
creio, de uma potência de desterritorialização que lhe é própria. Assim, ao escrever,
em uma bela e mal compreendida frase, “africanus sum”, Bastide apontava para o
fato de que, independentemente de suas “origens”, nosso pensamento é sempre
capaz de se tornar outra coisa – devir-negro que faz que sua obra domine ainda o
campo dos estudos afro-brasileiros (para uma visão de conjunto de sua obra, ver
Peixoto, 2000). Versões deste texto foram apresentadas ano painel “Rethinking the
Foundations of Afro-Atlantic Anthropology” (no XXVIII Congresso Internacio-
nal da Associação de Estudos Latino-Americanos, Rio de Janeiro, 2009) e no Co-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

lóquio Internacional “Miradas francesas sobre a Umbanda e o Candomblé, Arte,


Ciência e Religião” (no IFCS, UFRJ, 2009). Agradeço a Stephan Palmié e a Olívia
Gomes da Cunha pelo convite para participar do primeiro evento (bem como a
John Collins pelos comentários por ocasião da apresentação); a Fernanda Peixoto e
Marion Aubrée pelo convite para participar do segundo evento; e a Paula Siqueira
e Gabriel Banaggia pelos comentários que me ajudaram a aprimorar o texto.
1
O autor é professor associado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro; pesquisador do
CNPq e bolsista da Faperj. É autor de Razão e diferença: afetividade, racionalidade
e relativismo no pensamento de Lévy-Bruhl (Rio de Janeiro, Ufrj/Grypho, 1994),
Alguma Antropologia (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999) e Como funciona a
democracia: uma teoria etnográfica da política (Rio de Janeiro, 7 Letras, 2006), além
de organizador, em colaboração com Moacir Palmeira, de Antropologia, voto e re-
presentação política (Rio de Janeiro, Contra Capa, 1996).
2
“Religiões de matriz africana no Brasil” me parece uma fórmula sintética preferível
às tradicionais expressões “religiões africanas no Brasil”, “religiões afro-brasileiras”
ou, pior, “cultos afro-brasileiros”. Isso porque o termo “matriz” tem a vantagem de
poder ser entendido, simultaneamente, em seu sentido de algo que “dá origem a
alguma coisa” – o que respeita, além de utilizar, o uso nativo, sempre preocupado
em relacionar essas religiões com uma África que não acredito ser nem real, nem
imaginária, nem simbólica, mas dotada de um sentido existencial – e, ainda, em
seu sentido matemático ou topológico (“matriz de transformações”), que aponta
para o tipo de relação que acredito existir entre as diferentes atualizações dessas
religiões e, ao mesmo tempo, para o método transformacional que penso necessá-
rio para seu tratamento analítico.
3
Tal trabalho, na verdade, já foi efetuado, principalmente por Ordep Serra, que de-
monstrou à exaustão o caráter científico e politicamente incorreto desse tipo de
interpretação (ver sobretudo Serra, 1995, pp. 8-9; 44-75; 112-24; 130-47; 166;
175-80; 188-9). Ver, também, para uma detalhada consideração de alguns dos prin-
cipais trabalhos dessa linha, Banaggia, 2008, e Bondi, 2007.
4
Como escreveu Chinua Achebe (2000, p. 33), “embora toda ficção seja indubita-
velmente fictícia, ela também pode ser verdadeira ou falsa; não com a verdade ou a
falsidade de um noticiário, mas em função de seu desprendimento, de suas inten-
ções, de sua integridade”.

- 427 -
MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES

5
Deleuze (2002, pp. 11-2) distingue dois tipos de ilhas: “ilhas continentais são ilhas
acidentais, ilhas derivadas: elas se separaram de um continente, nasceram de uma
desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, elas sobreviveram ao engolimento
daquilo que as continha. As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora cons-
tituídas por corais, elas nos apresentam um verdadeiro organismo – ora elas sur-
gem de erupções submarinas, trazem ao ar livre um movimento subterrâneo; algu-
mas emergem lentamente, algumas, também, desaparecem e retornam, não se tem
tempo de anexá-las. Esses dois tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão teste-
munho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lem-
brar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estru-
turas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e
congrega suas forças para romper a superfície”. É tentador imaginar que os terrei-
ros-ilhas de Bastide começaram “continentais”, na medida em que nasceram de
uma separação de sua terra de origem, mas que, muito rapidamente, se tornaram
“oceânicos”, na medida em que adquiriram o poder de emergir de todas as partes e
em várias direções.
6
De fato, não é fácil permanecer impassível a formulações como “a macumba resul-
ta no parasitismo social, na exploração desavergonhada da credulidade das classes
baixas ou no afrouxamento das tendências imorais, desde o estupro, até, freqüen-
temente, o assassinato” (Bastide, 1971:, p. 414). Essas observações reaparecem por
diversas vezes, mas eu arriscaria dizer que, apesar de seu caráter claramente
etnocêntrico e racista, elas têm, do ponto de vista de seu autor, a função de ajudar
a defender ao menos algumas das religiões de matriz africana das perseguições e
dos preconceitos de que sempre foram alvo.
7
A questão decorre, evidentemente, do pressuposto historicista que orienta não ape-
nas Bastide, como praticamente todos os estudiosos das religiões de matriz africa-
na. Pois é difícil imaginar alguma razão para que candomblé, umbanda, macumba
e todas as inumeráveis formas dessas religiões que conhecemos não possam sim-
plesmente coexistir em lugar de uma dever necessariamente suceder a outra. Como
observei em outro lugar (Goldman, 2009, pp. 109 e 133), a “história” deve ser
compreendida apenas como a sucessão de devires entendidos como blocos de coe-
xistências virtuais-reais (ver Deleuze e Guattari 1980, pp. 536-7).
8
A lista seria longa demais. Mencionemos apenas Maggie, 2001; Dantas, 1989;
Capone, 2004; e, em especial, Fry, 1986.

- 428 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

9
Hipótese menos gratuita na medida em que outros trabalhos de Boyer (1993a e,
principalmente, 1993b) são muito mais explícitos em relação a Bastide.

Bibliografia
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MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES

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2002 [1993] A invenção das ciências modernas, Rio de Janeiro, Editora 34.

- 431 -
MARCIO GOLDMAN. CAVALO DOS DEUSES

ABSTRACT: After being considered one of the major contributions to the


study of the Afro-Brazilian religions, Roger Bastide’s work has been targeted
with hard critiques over the last thirty years. This paper builds on the hy-
pothesis that most of these critiques do not consider one of the main state-
ments of Bastide’s work: the need to combine ethnographic and sociological
perspectives in order to understand “African religions in Brazil”. In other
words, the need to take seriously the native’s point of view and, at the same
time, the need to draw a broader picture. The fact that Bastide split these
perspectives in two different books may suggest that the problem has not
been solved. The aim of this article is to try to show that the only way to get
to the sociological generalization is by extending the ethnographic perspec-
tive – and that this possibility is already inscribed in Bastide’s work.

KEY-WORDS: Roger Bastide, Afro-Brazilian religions, candomblé, sym-


metrical anthropology.

Recebido em janeiro de 2011. Aceito em junho de 2011.

- 432 -
Resenhas
TOLA, Florencia Carmen. Les conceptions du corps et de la personne dans
un contexte amérindien: indiens Toba du Gran Chaco sud-américain, Pa-
ris, L’Harmattan, 2009, pp. 274.

Danilo Paiva Ramos


Universidade de São Paulo

Em viagens de ônibus rumo ao bairro indígena Namqom, próximo à


cidade de Formosa, mulheres e crianças Qom (Toba) retornam de suas
incursões à “compra de alimentos”. O mariscar, caçar de outros tempos,
é termo hoje utilizado também com referência às incursões a essa dife-
rente forma de floresta. Nas florestas, pássaros e outros animais enviam
sinais aos xamãs, assim como as partes do corpo enviam mensagens que
devem ser bem compreendidas pelos líderes Qom em suas interações
com os “brancos”. Os cultos evangélicos tornam-se espaços privilegia-
dos para a expressão da moral cristã, das práticas xamânicas, e para os
ataques de feitiçaria.
Tendo sua inserção de campo marcada pela amizade com mulheres,
xamãs e lideranças políticas, Florencia Tola nos apresenta em Les con-
ceptions du corps et de la personne dans un contexte amérindien uma pro-
funda interpretação sobre a experiência dos Qom, centrada na reflexão
sobre as concepções de corpo e pessoa. Seu livro, resultado de pesquisas
em comunidades Toba realizadas entre 1997 e 2003, revela-nos toda a
complexidade das relações cosmológicas estabelecidas pelos Qom entre
o corpo, a cognição e a produção coletiva das emoções; entre a procria-
ção, o corpo, os laços afetivos e as relações familiares, assim como entre
a liderança política e a prática evangélica.
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO P AULO, USP, 2009, V. 52 Nº 2.

Os moradores do bairro indígena Namqom são provenientes de di-


versas partes da região do Chaco argentino e descendem de diversas tri-
bos Toba (p. 28). O território do Gran Chaco abriga uma grande mul-
tiplicidade de povos indígenas, que somam uma população total de 26
mil indivíduos falantes de dezoito línguas pertencentes a seis troncos
linguísticos diferentes. Os Qom ou Toba pertencem à família Guaycuru.
Constituem comunidades próprias permanentes ou coabitam comuni-
dades junto a membros de outras tribos (p. 33). Antes, as comunidades
indígenas da região variavam entre cinquenta e duzentas pessoas habi-
tando um mesmo território de caça e pesca, que representava os limites
do grupo de parentesco (loc. cit.).1
A região do Chaco foi palco de diversos conflitos entre as popula-
ções indígenas e o Exército, os conquistadores europeus, os creoles de
províncias vizinhas e os paraguaios, que buscavam fundar vilas, recrutar
escravos e fundar missões religiosas (p. 34). Situando-se cada vez mais
próximas às missões, as populações indígenas começaram a aderir às
iniciativas agrícolas e à sedentarização, estimuladas pelos missionários.
Paralelamente às missões católicas, ocorre a proliferação de missionários
evangélicos. Nos anos 80, as populações indígenas da região obtiveram
a posse da terra e a participação na gestão dos recursos naturais após
acordos entre o Paraguai, a Bolívia e a Argentina, mediados pela Orga-
nização Mundial do Trabalho (Convenção 169 da OIT). Assim, novos
direitos foram obtidos quanto à coletivização da terra, educação bilín-
gue e busca pela preservação da identidade cultural (p. 37).
Na Parte I do trabalho, partindo da análise de mitos e mundos não-
humanos, a autora procura superar as oposições entre natureza e socie-
dade com uma abordagem que enfatiza o continuum entre esses dois ter-
mos. A observação de semelhanças existentes entre seres míticos do
ponto de vista de suas interioridades e aspectos físicos, bem como do
processo que vai criando a especificidade corporal de homens, mulheres

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

e animais, lhe permite perceber que a distância que separa seres huma-
nos e não-humanos é contextual e não ontológica (p. 246).
A participação das mulheres na procriação, por exemplo, mudou ra-
dicalmente a constituição prévia dos homens-animais, transformando-
os nos homens dos quais descenderiam os Qom. Além disso, sua parti-
cipação foi também responsável pela finitude, pela morte, no momento
em que elas possibilitaram a corporização (p. 61). Segundo a interpreta-
ção da autora, o mito de origem da corporificação dos Qom representa
a legitimação de comportamentos, a prescrição de ações e a origem da
construção arbitrária do corpo sexuado (p. 62).
O aspecto da constituição corporal progressiva dos personagens
míticos é percebido por ela como representativo de uma noção de pes-
soa em devir, resultado da agência das extensões de outros corpos-pes-
soa em um dado corpo-pessoa (p. 64). Em suas palavras, “L’homme a
adopté le regard de l’animal humanisé ainsi que sa perception du monde,
ses émotions et ses pensées. Quant aux animaux nés de ces entités, ils ont
perdu – tout au moins – la faculté du langage articulé” (p.54).
A vida social dos personagens míticos é também explorada pelo traba-
lho que aborda o modo como os mitos tematizam os hábitos ancestrais
de moradia, caça, pesca, hábitos alimentares, parentesco, ciclo vital, hi-
erarquias sociais, bem como a possibilidade ou não de comunicação
entre humanos e não-humanos (p. 65). Nesse sentido, os Qom não são
produto de uma única criação, mas resultam de uma transformação que
gera pessoas diferenciadas dos outros seres existentes pelo corpo (p. 72).
Após a interpretação das narrativas míticas, seguem reflexões sobre a
perspectiva Toba do cosmos, ressaltando a continuidade existente entre
as entidades que o habitam. Para tanto, tornam-se aspectos importantes
a geografia dos mundos habitados, a qualidade metamórfica dos corpos
e a sociedade dos não-humanos.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO P AULO, USP, 2009, V. 52 Nº 2.

Entende-se que os não-humanos são semelhantes aos humanos, mas


são sua expressão extrema em diversos aspectos e por traços morfológicos
específicos, sendo possível perceber um continuum entre ambos. Nesse
continuum, os atributos de corporalidade geram diferenças importantes
na medida em que incorporam poderes ou que tais poderes se expri-
mem por meio de capacidades corporais específicas (p. 74).
Estabelece-se que a vida social humana dá-se nos interstícios entre
distintos mundos onde habitam diversos outros seres. Os aspectos so-
ciais desses outros mundos são conhecidos pelos humanos através de
narrativas míticas, viagens xamânicas, sonhos e encontros com tais seres
na floresta (p. 75). Seus habitantes, percebidos como pessoas, podem
ser definidos segundo seus pontos de vista, seus atributos e suas capaci-
dades (p. 76). Dependendo do tipo de encontro, o corpo destes seres se
manifesta de tal ou qual maneira, o que mostra seu aspecto metamórfico
e a capacidade das pessoas não-humanas de existirem em diferentes re-
gimes corporais (p. 77).
Esse momento da reflexão faz-se importante, já que a interpretação
dos dados indica que os humanos e os não-humanos são capazes de
transformar o invólucro corporal2 e manifestar-se por diferentes regi-
mes de corporalidade ao longo de sua existência, de acordo com as cir-
cunstâncias, o grau de poder e a vontade (p. 83). Assim, a capacidade de
metamorfosear-se não é exclusiva dos não-humanos (p. 84). A aquisi-
ção e posse de poder correspondem a um fator essencial às relações en-
tre humanos e não-humanos. Segundo a autora,

La perception visuelle, non conditionnée, la communication avec des entités


semblables et différentes, la capacité non médiatisée de connaissance, le
déplacement optionnel à travers l’univers, la faculté d’être perçu selon son propre
désir, la possibilité de métamorphose corporelle intentionnelle, le povoir d’agir

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

sur les humais, d’exercer une influence sur leur volonté et déterminer des actions
sont les signes centraux de la différence entre humains et non-humais. (p. 90)

Através de sua interpretação dos dois mitos de origem Qom, F. Tola


dirá que o corpo humano torna-se o lugar onde se produz a conjunção
entre o humano e o não-humano, e onde pode se infiltrar a doença, a
metamorfose e a morte (p. 94). Os componentes vitais são essenciais
aos não-humanos, tendo eles também um corpo que se torna o lugar
das faculdades cognitivas e das emoções, que lhes possibilita sentir, mo-
vimentar-se, deslocamentar-se e pensar. As manifestações desses corpos
metamórficos, os regimes de corporalidade, de humanos e não-huma-
nos, dependem de outros corpos-pessoa (loc. cit.).
De modo interessante, inicia-se, depois dessa profunda interpreta-
ção sobre a cosmologia Qom, uma reflexão sobre o modo como esse
povo opera uma leitura bíblica do passado Qom, das origens e da cria-
ção dos homens. Os dados mostram que eles consideram sua situação
atual como um dos momentos possíveis num devir já presente nos mi-
tos (p. 101). Algumas interpretações da Bíblia fazem coincidir a origem
Qom e a dos brancos, sendo os brancos uma metamorfose possível
dos Qom e vice-versa.
Os comportamentos dos brancos marcam uma alteridade extrema,
sendo considerados como a concentração de características presentes
potencialmente nos Qom. A reatualização dos mitos e de representa-
ções variadas sobre as origens da humanidade surge com esse processo
de reconstruções discursivas que conjuga a história bíblica e o passado
mítico. O canibalismo (presente nos mitos de origem), a insaciabilidade
e a falta de autocontrole são atributos dos brancos e das mulheres cani-
bais que se situam nas fronteiras da pessoa humana. Estes traduzem atri-
butos morais negativos, contrários aos que constituem a pessoa-corpo-

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO P AULO, USP, 2009, V. 52 Nº 2.

rificada. Nesse caso, a compaixão, a submissão e a reafirmação da con-


dição de pobreza constituem os principais dispositivos de interação en-
tre as pessoas (p. 118). Conclui-se que a compaixão domina as relações
entre os Qom e desses para com os brancos, assim como o dom, a parti-
lha e a submissão.
A autora inicia, então, a análise das interdições e regras de comporta-
mento que permitem entender a ética do autocontrole, da autonomia e
da disciplina corporal, fundamentais para entender as agressões dos não-
humanos quando o modelo de submissão/compaixão/dom não é res-
peitado (p. 119). Esse percurso analítico permite esclarecer as noções de
responsabilidade e agência dos Qom (loc. cit.).
Refletindo sobre as práticas xamânicas,3 aponta-se que a capacidade
de percepção mutável pode ser considerada um princípio fundamental
à ontologia Toba, não sendo exclusiva aos xamãs, como o são as capaci-
dades de metamorfose, de deslocamento e de comunicação com não-
humanos (p. 121). O mundo e suas singularidades apresentam atribu-
tos metamórficos, e isso leva o princípio de transformação da realidade
e da percepção das pessoas a ser tomado como princípio de uma filoso-
fia não essencialista. Mesmo que sejam capazes de testemunhar a trans-
formação de não-humanos em humanos nos sonhos ou na floresta, es-
tes seres se apresentam com uma aparência não totalmente humana aos
humanos. Assim, o poder de metamorfosear-se é uma característica sin-
gular deste seres. Sem poderes, os humanos podem perceber tais trans-
formações em contextos específicos (loc. cit.).
A relação que os Toba têm com os não-humanos e, especificamente,
com os donos das espécies pode ser caracterizada como de deferência,
cuidado e respeito, que expressam uma atitude de submissão (p. 124).
As relações com os donos estão fundadas mais sobre a submissão, a com-
paixão e o dom que sobre a predação (p. 125), enquanto as estabelecidas
entre humanos são marcadas por sentimentos e atitudes como a com-

- 440 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

paixão, a submissão, o dom, o cuidado e a reciprocidade (p. 132). Quan-


do tais princípios não são respeitados, desencadeiam-se reações, como
os ataques não-humanos e as agreções xamânicas. Ressalta-se que o
xamanismo mesmo pode ser considerado como um prolongamento da
ideologia guerreira num plano menos visível que aquele dos ataques
concretos (p. 132).
Após a juventude, momento de grande liberdade, a autodisciplina
e o autocontrole ganham grande influência sobre a imagem da pessoa.
A autora descreve também toda a série de interditos que há nas relações
entre homens e mulheres. Em suas palavras,

Les stratégies et les démarches mises em oœvre pour résoudre les situations de
tension révèlent la manière dont le conflit fait partie de la vie des Qom et se
concrétise dans des situations où l’endocannibalisme symbolique, la differénce
sexuelle, les réclusions féminines et les rapports de tension avec les Blancs tra-
duisent moins une harmonie généralisée qu’un rapport de tension constante.
(p. 139)

A reflexão sobre o respeito às interdições permite a visualização do


sistema de valores como um todo integrado que guia o olhar sobre si
mesmo e norteia as relações com os outros (p. 143). As pulsões orgâni-
cas devem ser submetidas à ordem social regida pela força, pela recipro-
cidade e pelo equilíbrio (comensurabilidade). Esses parâmetros regem e
servem de modelo para as atitudes entre os Qom e os brancos (p. 143).
Na segunda parte do livro, a autora foca sua análise nos momentos
que implicam a incorporação de componentes de outros corpos-pessoas
quando se passa pelos processos de gestação, nascimento, desenvolvi-
mento infantil, puberdade, criação de uma família e morte (p. 147).
Inicia-se uma interessante reflexão sobre o modo como os que são dife-
rentes de alguém se tornam constitutivas desta pessoa através de diver-

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sos processos de constituição, que transformam o corpo, as agências e as


próprias pessoas (loc. cit.).
A forma como os Qom experienciam o corpo desde o momento em
que ele surge é descrita e interpretada no sentido de melhor compreen-
der a noção de pessoa e o lugar do corpo nos processos coletivos que a
constituem. Como é mostrado, as transformações que ocorrem ao lon-
go da vida não são vistas nem como naturais, nem como independentes
da ação e da intencionalidade humana e não-humana (p. 166). Durante
a gestação, a pessoa estabelece relações corporais com seus pais pela ab-
sorção de substâncias e fluidos, assim como de faculdades cognitivas e
emocionais por estes veiculadas. A consanguinidade é produzida através
da troca de fluidos corporais entre homem e mulher. O esperma acu-
mula-se na mulher, cujas secreções penetram no homem, constituindo,
com o tempo, o sangue do feto.
Nos primeiros anos, a criança troca fluidos com os pais, pois dorme
com eles e é por eles alimentada, havendo assim uma circulação de emo-
ções e pensamentos veiculados pelas substâncias do corpo poroso (loc.
cit.). Ao mesmo tempo, há uma série de interdições que devem ser res-
peitadas pelo pai, pela mãe e pela criança, representando uma forte
interconexão entre eles. Tais interdições colocam em relação as respon-
sabilidades paternas e os laços afetivos. É também através do leite ma-
terno, do sangue e do esperma que doenças e deformidades são trans-
mitidas às crianças, uma vez que o pai tem contados arriscados com os
animais. Ambos, o processo de gestação e as primeiras menstruações,
contribuem, de forma gradual e por uma série de metamorfoses, para a
fabricação da nova condição social de uma pessoa. Este processo se dá
de modo muito semelhante àquele pelo qual os mitos de origem con-
tam o processo que tornou os Qom diferentes dos animais (p. 167).
Segundo F. Tola,

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Pendant la gestation, par des rapports sexuels répétés, les parents confèrent à
leurs enfants une partie de leurs pensées et de leur apparence physique; préa-
lablement aux premières règles, la jeune fille assimile les valeurs qui feront d’elle
une femme et, au cours du rituel, elle absorbe les attributs des autres personnes.
(p. 167).

Por meio da observação dos processos que se expressam nas transfor-


mações do corpo feminino, em seus fluidos e no ritual de puberdade,
assim como daqueles que envolvem a gestação e os desenvolvimentos
iniciais da criança, a autora aponta que, para os Qom, um corpo é so-
mente um corpo humano e sexuado mediante intervenção de humanos
e não-humanos, e por um trabalho coletivo de transformações. O estu-
do do conceito de corpo Toba leva-a à análise dos princípios vitais que
constituem os seres humanos e, ainda, dos processos sociais que inter-
vêm na transformação do corpo e da pessoa múltipla (p. 169). As no-
ções de agência e responsabilidade são fundamentais para a compreen-
são desses processos e da constituição da concepção de pessoa. Assim, o
estudo começa a abordar o papel do corpo nas interações e sua impor-
tância para a criação de laços afetivos. O não respeito a um tabu implica
a responsabilidade individual e o surgimento de emoções. Neste senti-
do, os órgãos e o agenciamento de substâncias e de capacidades a eles
relacionadas permitem pensar no corpo como condição de possibilida-
de da pessoa e como uma manifestação desta. As funções dos órgãos e a
regulação dos fluidos estão diretamente relacionadas aos pensamentos,
às emoções e à continuidade entre os corpos. Para a autora, é o funcio-
namento dos órgãos e dos fluidos que permite a integralidade da pes-
soa, entendida como resultado da agência corporal das capacidades das
substâncias, dos órgãos e dos fluidos (p. 190).
A seguir, o trabalho enfoca a morte, entendida como um processo de
transformação fundamental para a compreensão das concepções Toba

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de corpo e pessoa. Interdições alimentares, ações com parentes do mor-


to e práticas funerárias marcam o processo de transformação que ocorre
com a morte. O nqui’i (princípio vital) do morto começa uma vida ati-
va e independente, mas conserva a capacidade de ter emoções. Torna-se
uma entidade não-humana, com poderes superiores aos dos humanos.
Conforme a descrição, nesse momento o medo e a dor são os sentimen-
tos manifestados com relação ao defunto, estando estes sentimentos na
base dos ritos funerários (p. 195).
O seputalmento dos cadáveres é uma prática que veio substituir a
cremação, provavelmente por causa das pressões dos brancos e dos mis-
sionários. Mas, segundo F. Tola, ainda que tais práticas tenham se trans-
formado, continuam a ser estes sentimentos e o receio do retorno do
morto as motivações determinantes das práticas rituais. A morte gera
também o sentimento de raiva contra os agressores, quando é atribuída
à ação de um terceiro, mesmo que não se saiba quem a causou. Há,
nesse caso, um desejo de matar o agressor, um ódio contra os inimigos
ancestrais, além da exaltação do afeto pelo morto (p. 202). Um mo-
mento muito interessante na análise da autora vem a ser a comparação
entre o xamanismo, exercido pelos homens, e a feitiçaria, exercida por
mulheres, no que diz respeito às práticas de ambos com relação às ex-
tensões corporais e a repercussão destas ações sobre os corpos-pessoas
(p. 214).
A morte representa uma última metamorfose corporal. Com a dege-
neração do corpo, a pessoa se limita aos ossos e ao nqui’i (princípio vital),
que nele permanece e assume regimes corporais não humanos. O espí-
rito do bebê e o nqui’i do morto fazem o mesmo percurso, mas em sen-
tidos contrários, já que o nqui’i retorna de onde veio e começa a existir
como imagem. Entretanto, pode também ficar vagando na terra, em
vez de ir para o céu, tornando-se, neste caso, um espírito solitário e pron-
to a agredir os vivos por causa de sua solidão. Transforma-se numa espé-

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cie de predador de sua família, um não-humano que, apartado de seu


corpo, de seu corpo de parentesco, transforma-se num outro. Para a
autora, “Si la personne humaine existe parce qu’elle est constituée à travers
un travail collectif sur son corpos, une fois qu’elle ne se manifeste plus
corporellement, elle existe seulement em tant qu’image sans contenu (p. 219).
O trabalho mostra também o impacto dos cultos evangélicos sobre
essas concepções e práticas, concluindo que, ainda que o culto seja um
espaço de união, contrário aos feitiços e às vinganças que permeiam o
dia-a-dia Qom, acaba se tornando uma continuação dessas relações.
A convivência de diversos discursos sobre a morte, muitos deles conver-
gindo ideias cristãs de separação entre o corpo e a alma, são entendidos
como reveladores da capacidade desse povo de absorver novos elemen-
tos em seus discursos e de atualizar elementos antigos (p. 207).
No último capítulo do livro, a autora analisa a paixão amorosa e a
função do xamã para o estabelecimento de relações amorosas oficiais e
extraoficiais. As trajetórias sentimentais de alguns xamãs são interpreta-
das, revelando a capacidade do xamanismo como instituição essencial
para a consolidação dos laços afetivos. A sexualidade do xamã constitui-
se, neste sentido, como um meio de influenciar as relações intersubje-
tivas. A observação da sua sexualidade e das técnicas utilizadas por eles
para a conquista amorosa permite uma melhor compreensão acerca das
relações afetivas e dos sentimentos amorosos (p. 221). Como mostra o
trabalho, para os Qom o amor resulta da captura de um componente
vital de outra pessoa, sendo tal processo capaz de gerar a interpenetração
entre dois indivíduos. Uma interpenetração complexa entre duas pesso-
as dá-se com a fragmentação da pessoa, que é dissolvida no contexto
corporal do outro. Amar implica não dominar os próprios pensamentos
e ações, estar fora de si, pela capacidade do nqui’i de situar-se no corpo
do objeto amado ou do que deseja ser amado. A atuação do xamã dá-se
tanto no sentido de capturar o pensamento-espírito do objeto amado,

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através da introdução de uma extensão de seu corpo na pessoa que será


conquistada, quanto de interromper o amor, fazendo que uma pessoa
esqueça a outra. Para tanto, ele retira de seu corpo o pensamento da
pessoa que sofre e o restitui a seu dono (p. 232). Como é ressaltado,
tomando o corpo como aberto e poroso, capaz de fragmentar-se e cujas
extensões circulam entre os humanos, os não-humanos e no mundo, a
reflexão sobre as práticas xamânicas ligadas ao sentimento amoroso per-
mite entender a constituição da pessoa por meio de uma conexão
intersubjetiva profunda (p. 232).
A coexistência entre o xamanismo e o culto evangélico é também
tematizada e mostra a presença de elementos xamânicos nesses cultos –
que representam contextos privilegiados através dos quais a moral cristã
é reelaborada com base nas práticas xamânicas e nas relações entre ho-
mens e mulheres. Conforme é mencionado pela antropóloga, os cultos
vêm a ser o lugar em que mais ocorrem ataques de feitiçaria (p. 235).
Entende-se o evangelismo como um todo ideológico de práticas e signi-
ficados, que leva a repensar a subjetividade, o corpo e as relações
interpessoais (p. 237).
Por fim, F. Tola enfoca a atuação das novas lideranças políticas Qom
e reflete sobre as mudanças no sistema de atitudes que regem suas
interações com os brancos. As jovens lideranças adotam um regime de
corporalidade diferente diante dos brancos e, para tanto, baseiam-se
numa série de estratégias antigas que visam determinar a intenciona-
lidade do outro e entender os índices corporais (p. 238). Para a autora,
há nisso uma forma diferente de pensar-se diante dos brancos, não mais
se baseando na submissão, mas sim num plano de igualdade (p. 239).
A boa compreensão das mensagens enviadas pelo corpo traduzidas por
suas diferentes partes torna-se essencial às lideranças políticas, assim
como as mensagens que os animais enviam aos xamãs (p. 240).

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Desta forma, o trabalho de F. Tola apresenta uma grande contribui-


ção tanto para a compreensão dos atributos que definem a pessoa e o
corpo entre os Qom, como para os estudos de antropologia ameríndia
voltados a essas temáticas. Dentre seus méritos, encontra-se o fato de
constituir-se com base numa sólido trabalho de campo e de sempre
embasar as reflexões sobre a cosmologia e as práticas Qom em dados
concretos que evidenciam a qualidade da etnografia realizada. Os con-
ceitos de “pessoa corporificada”, “regimes de corporalidade”, “multiplici-
dades” e “extensões corporais” permitem o acesso ao modo complexo
como os Qom estabelecem uma noção de pessoa que não é restrita aos
limites do corpo, nem é essa noção um dado irredutível da natureza ou
uma fronteira entre os seres (p. 243).
“As pessoas não estão somente em seus corpos” talvez seja a expressão
analisada pela autora que melhor traduza esse conceito de multiplicida-
de. As extensões corporais que conectam os homens, as mulheres e os
não-humanos geram os distintos regimes de corporalidade que a pessoa
adota quando combina os componentes do outro (p. 245). Essa conti-
nuidade implica que o indivíduo existe como uma faceta possível de
um todo relacional, como uma multiplicidade que, de acordo com as
intensidades relacionais e os contextos comunicativos, se exprime atra-
vés da adoção de regimes comunicativos diferentes, de condensações
circunstanciais de fluidos, de substâncias, de emoções-pensamentos, de
atributos e de capacidades (p. 249). Neste sentido, o xamanismo e os
cultos evangélicos tornam-se os contextos mais significativos através dos
quais as noções de corpo e pessoa são constantemente transformadas
por meio de elementos do passado e do presente (p. 251). Nesse movi-
mento, os Qom apropriam-se de discursos, perspectivas, capacidades e
atributos dos outros e tornam-se agentes ativos no mundo (loc. cit.).

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Notas
1
O sistema de parentesco pode ser caracterizado pela diferenciação entre as termi-
nologias de parentesco de afins e cognatos, pela oposição entre cruzados e parale-
los, e ainda por uma terminologia de tipo havaiana para G0 e de tipo esquimó para
G1 (p. 34).
2
A pele, humana ou não-humana, é compreendida como um invólucro que não
corresponde a um limite da pessoa (p. 89).
3
Os xamãs têm acesso visual e cognitivo ao princípio vital (nqui’i) dos não-huma-
nos, já que seu nqui’i viaja por diversos mundos e conhece a natureza dos não-
humanos. Guardando sua posição de guerreiro, ele obtém dos não-humanos can-
tos terapêuticos, conselhos sobre plantas medicinais e sobre as causas da doença de
um paciente (p. 120).

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CABALZAR, Aloisio. Filhos da Cobra de Pedra: organização social e tra-
jetórias tuyuka no Rio Tiquié (Noroeste Amazônico). Prefácio de Stephen
Hugh-Jones. São Paulo, Edunesp/ISA; Rio de Janeiro, Nuti, 2009,
pp. 362 il.

Fabiane Vinente dos Santos


Universidade de São Paulo

Velhas questões, novas respostas:


explorando a organização social no Noroeste Amazônico

Preocupado com o desconhecimento sobre uma das áreas com maior


diversidade cultural das Américas, no final da década de 1960 Gerardo
Reichel-Dolmatoff chamou a atenção da comunidade acadêmica para
a necessidade de pesquisas sobre o Noroeste Amazônico (Reichel-
Dolmatoff, 1967). Até então pouco se sabia sobre os povos que habi-
tam a vasta região banhada pelos rios Negro, Uaupés e Pirá-Paraná,
abrangendo territórios no Brasil, na Colômbia e na Venezuela, embora
alguns estudiosos já tivessem produzido a respeito. Em 1927, percor-
rendo a região pelo lado brasileiro como representante do Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), Curt Nimuendaju elaborou um relatório
abrangente, publicado quase trinta anos depois no Journal de la Société
des Américanistes (1955), estabelecendo alguns conceitos e abordagens
que ajudaram a caracterizar a região e que continuaram a ser refinados
pelas pesquisas realizadas nas décadas seguintes, como o de exogamia
linguística, o culto das flautas Jurupari e o casamento preferencial com
primos cruzados. Irving Goldman também já havia realizado seu traba-
lho de campo entre 1939 e 1940 com os Cubeo do Rio Cassiquiare,
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO P AULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

tendo publicado um capítulo sobre a área no Handbook of South


Americans Indians (1948), mas sua monografia, o primeiro trabalho de
etnografia sistemática na região do Uaupés e que até hoje permanece
como fundamental, só foi publicada no início da década de 1960
(Goldman, 1963). Os anos 70 e 80 representaram a definitiva inclusão
do Noroeste Amazônico como área de pesquisa, com a realização de
várias etnografias que aprofundaram os dados existentes e abriram no-
vas perspectivas para a compreensão da organização social daqueles po-
vos cujas especificidades pareciam desafiar os modelos estabelecidos da
etnologia, na maioria das vezes desenhados para os povos africanos.
O conhecimento acumulado por essas décadas de pesquisa apresenta
hoje o Noroeste Amazônico de maneira bem diversa da que ocorria na
década de 1960: ampliaram-se consideravelmente as informações sobre
os povos locais e suas dinâmicas; foram esvaziadas as categorias impor-
tadas de outros contextos etnográficos, como a de “tribo”, para dar lu-
gar a outras que, articuladas, mostraram-se mais adequadas à complexi-
dade do campo, tais como a de fratria e sib, a especificidade do seu
sistema dravidiano e a combinação entre língua, hierarquia e exogamia
como termos básicos da constituição uaupesiana que contribuíram para
o desvendamento da área. Ante tantas descobertas, que outros desafios
o Noroeste Amazônico reservaria para a pesquisa etnológica?
Aloisio Cabalzar enfrenta essa questão no livro Filhos da Cobra de
Pedra: organização social e trajetórias tuyuka no Rio Tiquié (Noroeste Ama-
zônico), abordando os determinantes da escolha matrimonial, a enge-
nharia dos cálculos classificatórios de parentesco e os impactos da mo-
bilidade territorial advindos das transformações sofridas nos últimos dois
séculos por um dos dezoito grupos que habitam a região, os Tuyuka.
Esta primeira etnografia deste grupo de língua tukano – que se concen-
tra no Brasil sobretudo no Alto Rio Tiquié e interflúvio dos rios Tiquié
e Papuri, afluentes do Rio Uaupés, que conta com uma população de

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

mais de 1.200 pessoas (do lado brasileiro) – foi baseada numa convi-
vência de quase vinte anos do autor na região do Rio Tiquié. Em 1995,
ele defendeu uma dissertação na Universidade de São Paulo, da qual o
livro é uma versão revisada.
Na Introdução, Cabalzar faz uma breve apresentação dos Tuyuka e
dos demais grupos linguísticos falantes do tronco Tukano Ocidental.
Também apresenta aportes de sua história de contato no Brasil desde os
primeiros registros no século XVIII, enfatizando o projeto colonial, o
ciclo extrativista de látex que assolou a região, a implantação das mis-
sões salesianas no início do século XX, a descoberta de ouro no Rio Tra-
íra na década de 1980 e o surgimento do movimento político indígena,
fundamentado na luta pela demarcação das terras indígenas, constante-
mente ameaçadas pelos projetos desenvolvimentistas e por empresas
mineradoras. A homologação das terras em 1995 criou condições para
um projeto indígena de desenvolvimento local que contou com inicia-
tivas como a criação da Escola Tuyuka Utapinopona em 1998, experiên-
cia de auto-gestão escolar indígena da qual o autor participou como as-
sessor. É apresentado também um levantamento sociodemográfico
sucinto dos Tuyuka no Brasil, com informações detalhadas sobre cada
um dos territórios ocupados.
O primeiro capítulo, “Estrutura social do Uaupés: modelos e ques-
tões”, objetiva fazer uma necessária revisão bibliográfica dos principais
trabalhos realizados entre os Tukano Orientais que abordaram o tópico
da organização social: Irving Goldman (Cubeo), Artur Sorensen, Jean
Jackson (Bará) e Christine Hugh-Jones (Barasana), Kaj Arhem (Maku-
na) e Janet Chernela (Wanano). Cabalzar destaca as principais categorias
utilizadas por cada autor e, em seguida, dedica-se a uma leitura apro-
fundada de dois estudiosos que elaboraram comparações entre o Uaupés
e outras áreas etnográficas: Joanna Overing e Eduardo Viveiros de Cas-
tro. O debate empreendido com esses autores leva Cabalzar a defender

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a especificidade do modelo uaupesiano: os pressupostos conceituais uti-


lizados para interpretar os sistemas sociais amazônicos não seriam com-
pletamente adequados, em especial os pares consanguíneo/afim, próxi-
mo/distante, cognato/não cognato, corresidente/não corresidente.
O segundo capítulo, chamado “Grupos de descendência tuyuka”,
aborda as especificidades do modelo de parentesco tukano no caso
tuyuka, no qual a categoria “filhos de mãe” apresenta-se como funda-
mental. Proposta pela primeira vez por Christine Hugh-Jones (1979)
para os Barasana, embora não altere o padrão dravidiano – já que não
descarta a diferença fundamental entre casáveis e não casáveis –, impri-
me uma categorização triádica ao modelo: parentes agnáticos (não casá-
veis), afins (casáveis) e os siblings uterinos ou “filhos de mãe”. Chamados
pakomaku entre os Tuyuka, os filhos de mãe consistiria numa categoria
formada pelos membros dos demais grupos pertencentes à mesma fratria
dos Tuyuka, com os quais estes compartilhariam os seus afins, os Miriti-
Tapuia e os Karapanã, também de fala tukano e com quem os casamen-
tos estariam interditados. Nestas categorizações desempenham papel
importante a língua e o contingente proximidade/distância espacial dos
grupos, que matizam os contornos dos limites entre as categorias.
Outro aspecto que chama atenção na configuração da organização
social tuyuka é a existência de duas formas de grupos locais: a primeira
de corresidentes ligados agnaticamente, que constituem um mesmo seg-
mento de sib localizado, e uma segunda, formada por segmentos de di-
ferentes sibs e apoiada numa noção de descendência mais ampla. Tem
como bases o compartilhamento da língua, da origem, e a exogamia,
dimensionando a importância da genealogia, que, entretanto, não é su-
ficiente para, sozinha, promover a unidade. Quando ausente, seria subs-
tituída por outros fatores derivados da descendência, embora tais con-
figurações exijam um investimento muito maior para a negociação e a
amenização dos conflitos, que tendem a ser mais frequentes entre os

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não consanguíneos. Tais ajustes se refletem no uso da terminologia de


parentesco, que passa a ser gerenciado, visando otimizar a coesão, nesses
casos, precária. As modalidades de parentesco “novas”, advindas da ne-
cessidade de categorizar sujeitos antes não pertencentes às relações dos
grupos, como o compadrio, desempenham um papel importante para
este processo.
Depois de explorar as trajetórias dos sibs Tuyuka, privilegiando a
mobilidade territorial e os fundamentos cosmológicos que a orientam,
no terceiro capítulo, “Origem dos Tuyuka e recentes trajetórias no
Tiquié”, o autor leva o debate para o campo empírico. O quarto capítu-
lo, “Grupos locais”, detém-se na composição dos grupos, nos padrões
de ocupação residencial, na sociabilidade e eee e nos usos da termino-
logia de parentesco. O processo que originou o fim das malocas entre os
Tuyuka do lado brasileiro, por influência das missões católicas, tem des-
taque, pelo fato de ter contribuído na decomposição das representações
espaciais e dos papéis das famílias corresidentes, alterando de forma
irreversível a dinâmica da organização social do grupo. Proibidas pelos
padres, tais construções, que ocupavam até os primeiros anos do século
XX o papel de espaço ritual e moradia, foram social e simbolicamente
esvaziadas com a adoção do padrão de casas nucleares, que separou em
unidades domésticas grupos que outrora se organizavam com base na
corresidência, modificando as alianças entre grupos exogâmicos e a re-
lação de parentesco.
Essas transformações ficam claras com os dados levantados sobre a
composição dos sibs tuyuka por grupo de descendência e e a relação
entre os grupos domésticos e seus afins em cada um dos seis povoados
tuyuka no Brasil. As conclusões apontam para alguns dados interessan-
tes: apenas um quarto dos vinte grupos Tuyuka restringe a a presença de
afins. Na maior parte dos casos, identifica-se uma abertura para a per-
manência destes com base em relações de aliança, subvertendo em parte

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o ideal virilocal: corresidência, lembra o autor, é sinônimo de proximi-


dade social. A distinção próximo/distante não é tão radical quanto se
pensa. O parentesco agnático, assim como a afinidade, abarca, na esfera
genealógica e espacial, diferentes valências para os componentes e dife-
rentes gradações entre os dois.
Outra ordem de dados mostra que, ao contrário do modelo estabele-
cido por Viveiros de Castro, entre os Tuyuka não ocorre afinização dos
consanguíneos distantes nem consanguinização dos afins próximos, mas
a coafinização dos consanguíneos mais distantes – os já citados filhos de
mãe, gerenciada de acordo com a ocasião, consistindo na manutenção
terminológica dos afins e na “reconsanguinização” dos consanguíneos,
possibilitando a ampliação do substrato que sustenta os grupos de des-
cendência com a atualização de suas relações agnáticas: termos de coa-
finidade são sobrepostos aos do parentesco agnático. A utilização dos
termos de coafinidade é mais frequente em lugares de composição de
múltiplos sibs, nos quais são mais sensíveis os aspectos mais espinhosos
das relações, como a hierarquia. Os termos de coafinidade contribui-
riam para a atenuação dos conflitos inerentes a situações de assimetria
presentes nesses povoados.
Após revelar os princípios que orientam o parentesco tuyuka, resta
saber como ele é efetivado no cotidiano. No quinto capítulo, “Descri-
ção da terminologia de parentesco”, o autor dedica-se justamente a esta
tarefa, que é realizada com uma notável minuciosidade, possibilitando
a visualização da dinâmica do emprego dos termos diferentes para afins,
coafins e consanguíneos. “Casamento e reclassificação terminológica”
é o sexto capítulo, que tem como alvo mostrar o funcionamento das
relações de aliança e do casamento entre os Tuyuka, revelando no plano
microssociológico a interferência do casamento e da residência no cál-
culo agnático, e no plano macro o papel da coafinidade entre os grupos
exogâmicos.

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Além de sintetizar uma “tipologia” dos casamentos entre os Tuyuka,


o autor demonstra que as chamadas “classes de gerações” – um termo
cunhado por Janet Chernela e utilizado por ele para abordar o ideal de
casamento entre membros de grupos exogâmicos de sibs corresponden-
tes dentro da hierarquia de cada um – funcionariam como um norteador
das escolhas matrimoniais mediante busca pela equivalência de posição
entre os sibs dos cônjuges ou mesmo pela perseguição de “projetos”
hipergâmicos, pautados pela procura de parceiros entre membros de sibs
mais elevados que o seu nos grupos correspondentes. Outros elemen-
tos, entretanto, também tem peso na seleção de cônjuges, como a ques-
tão geográfica (com o privilegiamento de parceiros que habitam mais a
jusante do Rio Tiquié) e a busca pela composição de redes de aliança.
Os Tuyuka tenderiam a construir ambientes mais cognáticos à medida
que se afastavam de seu território tradicional, onde prevaleceriam rela-
ções de cunho agnático. Notadamente o que Cabalzar determina como
nexo regional, noção que abordará com mais profundidade nos capítu-
los seguintes, abrigaria as redes de relações agnáticas mais consolidadas.
Os cálculos terminológicos revelariam, assim, aspectos importantes
das duas lógicas vigentes na organização social tuyuka – a do grupo de
descendência e a das redes de aliança –, pois seu uso privilegia o grupo
de descendência, que prevalece até mesmo em casos de consanguíneos
que habitam lugares geograficamente distantes e que, como já dito, não
seriam afinizados. As conclusões apontam para uma tendência conser-
vadora da terminologia, em que casos excepcionais representados por
casamentos em novas redes de aliança não representam reclassificações
significativas, o que é explicado pela tendência a conservar o universo
de casáveis e a estrutura hierárquica dos níveis geracionais.
Merece nota a demonstração que o autor faz da engenharia do cálcu-
lo terminológico para homens e mulheres. Sempre valorizando demasia-
damente o viés político, em geral as etnografias do Noroeste Amazôni-

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co falam muito sobre o fato de que as mulheres são “estrangeiras” – per-


sonificando a alteridade dentro dos grupos agnáticos por conta dos prin-
cípios da virilocalidade e da exogamia – e que o segmento feminino das
esposas constituiria, dentro dos grupos locais, circuitos de mulheres es-
tigmatizadas por sua origem externa. Mas pouco se sabe sobre como
estas mulheres orientam o uso de termos de parentesco no cotidiano
das aldeias dos maridos. Cabalzar presta atenção nisso e observa que a
relação das mulheres umas com as outras seria marcada pela utilização
ampla de termos de coafinidade, refletindo o pouco peso que, para elas,
teria o grupo agnático, mais valorizado pelos homens.
A elaboração de um modelo de organização social tuyuka é o objeti-
vo proposto para o último capítulo: “Nexo regional tuyuka do alto
Tiquié”. Reafirmando a tese da especificidade dos arranjos entre os prin-
cípios da exogamia/endogamia, consanguinidade/afinidade e descendên-
cia/aliança entre os Tuyuka, Cabalzar defende a definição de um siste-
ma regional no qual seriam distinguíveis grupos centrais e periféricos,
cada qual regido por um princípio: os primeiros pela descendência e os
segundos pela aliança. Este sistema, chamado de “nexo regional”, pode
abarcar diversas variações, de acordo com a posição relacional do grupo
local em questão. Lembra o autor que, apesar do peso da agnação, ne-
xos regionais podem ser de predomínio de outros grupos de descendên-
cia ou mesmo de formação cognática; e enfatiza o peso que relações de
aliança mais localizadas podem ter no relacionamento entre grupos de
descendência distintos.
O trabalho, de modo geral, ajuda a enriquecer a etnografia das terras
baixas amazônicas ao apresentar novas possibilidades de rearranjo so-
cial, além das consagradas, demonstrando que ainda há muito a ser com-
preendido quando se trata de organização social. Cabalzar sustenta que
o princípio que rege as relações tuyuka pauta-se pela busca de manu-
tenção da identidade; e revela os mecanismos da sua manutenção, aju-

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dando a entender como, num contexto marcado por relações dinâmi-


cas entre grupos étnicos distintos, estes conseguem manter sua integri-
dade identitária.
Um ponto fundamental a ser enfatizado em relação à pesquisa que
dá origem à publicação é o peso do investimento numa etnografia de
“longo prazo” num trabalho como o de Cabalzar. Numa época em que
rareiam os investimentos financeiros e os estímulos a trabalhos de cam-
po extensos nos programas de pós-graduação em Antropologia, a pes-
quisa, que abrange ao todo cerca de vinte anos, mostra que um trabalho
de campo de longa duração pode ajudar na reflexão sobre a aplicabilidade
dos conceituais “estabelecidos”, revelando neles matizes que vão além
das respostas simples.
O Prefácio é do etnólogo Stephen Hugh-Jones. E o livro traz ainda
reproduções de fotos antigas e recentes dos Tuyuka – estas últimas tiradas
pelo próprio autor –, além de um anexo com onze mapas genealógicos
dos sibs do Tiquié. Ao longo dos capítulos, o leitor conta ainda com
mapas georreferenciados das áreas geográficas descritas e mapas genea-
lógicos destinados a ilustrar didaticamente os casos mais particulares.

Bibliografia
GOLDMAN, Irving
1948 “Tribes of the Uaupés-Caquetá region”, in STEWARD, J. H. (org.), Handbook
of South American Indians, New York, Cooper Square, v. III, pp. 763-98.
1963 The Cubeo: indians of the Nortwest Amazon, Urbana, University of Illinois Press.

HUGH-JONES, Christine
1979 From the Milk River: Spatial and temporal processes in Northwest Amazonia,
Cambridge/New York, Cambridge Press.

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NIMUENDAJU, Curt Unkel


1955 “Reconhecimentos dos rios Içana, Ayari e Uaulpés”, Journal de la Société des
Américanistes, Paris, vol. 44 (1): 149-78.

REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo
1967 “A brief report on urgent ethnological research in the Valpés area, Colombia”,
Bulletin of the International Committee on Urgent Anthropological and
Ethnological Research, Vienna, , International Union of Anthropological and
Etnhnological Sciences, n. 9:53-62

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ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas
e cultura contemporânea, Rio de Janeiro, Garamond, 2008, pp. 256.

Gabriel de Freitas Gimenes


Universidade Estadual de Londrina

As incertezas do corpo

“Nosso corpo é o exemplo mais destacado


do ambíguo.” (William James)

Ao utilizar essa citação como tema central de seu livro, Francisco Ortega
tenta apresentar um ponto em comum que interligue os quatro ensaios
que o compõem. A contemporaneidade, afirma o autor, é marcada por
um excessivo culto ao corpo (o que caracteriza o que ele chama de cul-
tura somática), como se pode notar nas diversas práticas, discursos e tec-
nologias que investem no corpo humano, seja para controlá-lo, seja para
modificá-lo, seja para visualizá-lo de uma forma mais completa. Entre-
tanto, apesar dessa intensa valorização e da tentativa de compreensão
total do corpo, este escapa de uma delimitação conceitual precisa, visto
ser uma experiência incerta, ambígua e de difícil apreensão.
Essa ambiguidade se realça com o paradoxo contemporâneo de ha-
ver tanto uma incitação quanto uma negação do corpo. Essas mesmas
práticas e discursos que investem no corpo humano tendem a um certo
“pavor à carne”, uma vez que as principais representações do corpo e
modelos de estética corporal remetem a um corpo ideal, modificado por
meio de tecnologias, que caracteriza o que Ortega denomina de “rejei-
ção corporal da corporeidade”.
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO P AULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Os três primeiros ensaios que compõem O corpo incerto partem da


análise de situações específicas de nossa cultura contemporânea que re-
metem a esse paradoxo do investimento e negação concomitantes na
corporeidade. Feito isso, o autor procura realizar reflexões teóricas sobre
o estatuto filosófico do corpo (principalmente no quarto e último en-
saio) e sobre as influências dessa cultura somática na subjetividade.
O primeiro ensaio, “Do corpo submetido à submissão do corpo”, é
um estudo sobre os processos de subjetivação contemporâneos que pas-
sam por certo controle do corpo próprio. Ortega parte do princípio de
que existe um imperativo ascético que opera universalmente em todas
as culturas, mas que assume formas específicas em cada momento histó-
rico. Na sociedade ocidental contemporânea, esse imperativo ascético
assume a forma de uma bioascese, que remete às diversas práticas de
auto-controle incitadas pelo atual discurso do risco e de saúde perfeita.
Assim, ante a hegemonia de uma concepção de saúde que se vincula
a um ideal de corpo perfeito, em equilíbrio com os nutrientes necessá-
rios e protegido dos riscos que constantemente o afligem, as pessoas
são levadas a se preocupar cada vez mais com o controle de seus corpos.
A disciplina na alimentação (por meio de dietas bem equilibradas, fre-
quentemente associadas a alimentos industrializados ou a supostos re-
médios ou vitaminas nutritivas), a prática excessiva de exercícios físicos
(fitness) e o controle dos efeitos do envelhecimento sobre o corpo – tudo
estritamente vinculado ao consumo de biotecnologias ou demais produ-
tos da saúde -– são algumas das características do que passa a ser conside-
rado um estilo de vida saudável segundo a hegemonia moral da bioascese.
Nesse ponto, Ortega dialoga com os conceitos de biopolítica
(Foucault, 2008) e biossociabilidade (Rabinow, 1999). A noção de bio-
política é útil para compreender a importância estratégica que a saúde
adquiriu na sociedade ocidental moderna e que resultou em desenvol-
vimento e fortalecimento de um discurso medicalizado sobre o corpo,

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fortemente vinculado à noção de risco. Por sua vez, a biossociabilidade


remete ao fato de que, nos dias de hoje, as pessoas formam grupos, or-
ganizam movimentos, enfim, elas se sociabilizam e se subjetivam com
base em práticas atravessadas e orientadas por essas concepções medica-
lizadas do corpo.
O problema relacionado a essa noção de bioascese é, por um lado, a
definição de um corpo perfeito ideal e, por outro, a consequente atri-
buição de uma autonomia e uma responsabilidade individual por obtê-
lo. Uma vez que o corpo perfeito é inalcançável, os diversos corpos
individuais passam a ser considerados foras da norma, o que leva ao de-
senvolvimento de um constante sentimento de insatisfação com o cor-
po próprio e um eterno desejo de auto-aperfeiçoamento. As pessoas
subjetivam-se com base em um modelo ideal do corpo, que nunca será
o delas, que sempre estará na dimensão do outro, do fora, levando ao
que Ortega chama de externalização da subjetividade.
Em “Modificações corporais na cultura contemporânea”, Ortega
apresenta duas abordagens para a análise das modificações corporais: por
um lado, elas podem ser vistas como práticas que se submetem ao con-
sumismo e ao modismo de nossa “sociedade do espetáculo”, já que per-
deram seu caráter de contestação do instituído e se tornaram parte deste;
por outro, elas podem ser encaradas como práticas patológicas, uma vez
que se caracterizam pela exposição intencional à dor (dor essa que, pelo
discurso hegemônico, devemos evitar), pela auto-mutilação e pela apre-
sentação de uma estética corporal distinta da anatomia convencional.
O autor considera essas duas abordagens inadequadas, por serem de-
masiado moralistas e reduzirem a complexidade das modificações cor-
porais, negando-as enquanto experiências subjetivas. Com base nessa
crítica, Ortega resgata a distinção fenomenológica entre corpo objetivo
(o corpo que tenho, o corpo vivo) e corpo subjetivo (o corpo que sou, o
corpo vivido) (Merleau-Ponty, 1999). Assim, as modificações corporais

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não podem ser compreendidas como simples modismos, porque envol-


vem uma intensa experiência subjetiva na qual são vivenciadas diversas
sensações dolorosas, e também porque são permanentes ou quase per-
manentes. Elas tampouco podem ser compreendidas como patologias,
visto que o discurso medicalizado geralmente se refere apenas ao corpo
objetivo, ao corpo que possuímos e que é alvo das práticas biomédicas
de intervenção, de cuidado e de prevenção de riscos.
Ao levar em consideração a experiência subjetiva do corpo, ou seja, o
corpo vivido, as modificações corporais podem ser compreendidas como
práticas contra-hegemônicas que contestam a excessiva desvalorização
do sentir decorrente da valorização do corpo objetivo. Assim, diante da
excessiva busca pelo controle dos riscos que nosso corpo vivo pode so-
frer – controle esse que acaba por neutralizar experiências sensíveis que
escapem da nossa segurança –, as modificações corporais aparecem como
uma tentativa de resgatar o corpo vivido e suas possibilidades de sensa-
ções, mediante exposição voluntária a riscos e dor.
Com “O corpo transparente: para uma história cultural da visua-
lização médica do corpo”, Ortega apresenta a história das diversas
técnicas e tecnologias de visualização do corpo que a medicina ociden-
tal desenvolveu na modernidade, e baseado nisso ele analisa o significa-
do dessa obsessão pela visão como elemento constitutivo da verdade
sobre o corpo.
O autor afirma que o conhecimento biomédico sobre o corpo se de-
senvolveu segundo uma racionalidade objetiva, com a anatomia cientí-
fica como principal referência, visto que o surgimento desta com Vesálio
operou uma ruptura epistemológica: se na medicina clássica a especula-
ção teórica e os textos de Galeno eram favorecidos em detrimento das
evidências empíricas, a medicina moderna surge justamente com a va-
lorização dessas evidências, fornecidas pela dissecação. Desta maneira,
com a generalização da prática da anatomia científica, a medicina oci-

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dental passou a construir seu conhecimento com base na visualização


do interior do corpo morto.
Ortega argumenta que esse corpo visualizado é um corpo objetivado,
já que se refere ao corpo de outro e, ainda por cima, de um outro mor-
to, estático: “surge, como consequência, o modelo de um único corpo
reproduzível ad infinitum, apresentado como norma de todos os cor-
pos” (p. 100). Esse corpo objetivo passou a ser o modelo pelo qual as
pessoas começaram a identificar seus corpos próprios, o que proporcio-
nou o desenvolvimento de uma visão medicalizada destes.
Com o desenvolvimento de novas tecnologias de visualização duran-
te o século XX (raios X, ultrassom, PET-scanners, tomografia compu-
tadorizada) se inicia um novo movimento: não é mais o corpo morto
do outro que é visualizado, mas, também, o interior dos corpos vivos.
O processo de tornar visível o corpo vivo das pessoas se dá, entretanto,
numa outra forma. Se o corpo morto do outro é apresentado de manei-
ra realista (no sentido de algo que cada um pode olhar, sentir e compre-
ender), o interior do corpo vivo visualizado pelas novas tecnologias se
apresenta numa imagem abstrata, que somente o técnico pode decifrar.
As imagens de um exame de ultrassom ou de um exame de tomogra-
fia computadorizada nada ou pouco dizem à pessoa até o momento em
que o técnico as explique. Ortega argumenta que, apesar disso, a
visualização propicia uma experiência subjetivante para a pessoa, como
se, ao visualizar seu interior, ela passasse a saber um pouco mais de si.
Esse modo de subjetivação, vinculado a uma visualização técnica e
abstrata do corpo próprio, é um exemplo de um movimento mais am-
plo denominado de “virtualização do corpo”: não importa sua viscerali-
dade ou suas possibilidades sensitivas, mas apenas sua imagem, sua re-
produção visual técnica.
Assim, a visualização biomédica do corpo passou por um processo
crescente tanto em extensão quanto em intensidade, pelo qual o interior

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do corpo foi se tornando cada vez mais visível, e, paradoxalmente, cada


vez mais descarnado, abstrato e virtual.
Essa construção da verdade sobre o corpo mediante sua visualização
se generalizou na sociedade ocidental e se transformou em modelo de
corporeidade. Como exemplo disso, Ortega cita dois projetos, que ele
denomina de “anatomias pós-modernas” (a exposição KörperWelten, de
Gunther von Hagens, e o projeto Visible Man, que digitalizou integral-
mente um corpo humano), e a recente utilização de imagens de PET-
scanners em julgamentos, como se essas imagens pudessem fornecer tam-
bém a verdade da inocência ou da culpa de uma pessoa.
A discussão dos três ensaios precedentes é atravessada por uma preo-
cupação filosófica sobre o estatuto do corpo. Em seu último ensaio, “O
Corpo entre construtivismo e fenomenologia”, o autor procura apre-
sentar uma discussão entre essas duas concepções sobre o corpo e defen-
der seu posicionamento crítico em relação ao construtivismo.
Ortega afirma que “a fragmentação do corpo (...) é para o constru-
tivismo o que a totalidade corporal é para a fenomenologia do corpo”
(p. 190). Para o autor, os discursos construtivistas, ao construírem uma
concepção de corporeidade que procura desarticular-se de qualquer
essencialismo (visto que tanto a noção de corpo quanto sua própria cons-
tituição como experiência subjetiva são contingentes a um processo his-
tórico), possibilitam uma visão fragmentada do corpo. Isso porque
Ortega compreende a tese construtivista como uma forma de nomina-
lismo (não importa o que o corpo é, mas o que se fala dele), pela qual se
perde qualquer unidade na experiência humana da corporeidade.
Ortega afirma que o construtivismo, ao negar a existência de uma
experiência corporal universal ou comum a todos os seres humanos, le-
gitima as atuais práticas da biomedicina ocidental no sentido da consti-
tuição de um modelo de corporeidade virtual e descarnada, ou seja, de
um corpo aberto à intervenção biotecnológica: “para ambos [constru-

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tivismo e biomedicina], o corpo é uma construção e ambos insistem


na sua total maleabilidade e acessibilidade, negando a materialidade”
(p. 217).
Diante disso, Ortega se alinha à posição fenomenológica como críti-
ca a essa instrumentalização e fragmentação do corpo, visto que a feno-
menologia defende um modelo de corporeidade baseado nas noções de
totalidade e de experiência, ou seja, do corpo vivido. A existência de
uma experiência subjetiva, vivenciada com as capacidades sensitivas do
corpo, é que possibilita a sensação de uma totalidade corporal que não
pode ser desarticulada pelos discursos sobre o corpo, muito menos pelas
intervenções biotecnológicas que pretendem torná-lo maleável.
A análise que Ortega realiza sobre a cultura somática contemporâ-
nea, partindo dos três exemplos da bioascese, das modificações corpo-
rais e das tecnologias médicas de visualização do corpo, está de acordo
com sua proposta de demonstrar os paradoxos decorrentes das incerte-
zas do corpo enquanto categoria: o corpo que é ao mesmo tempo inves-
tido e negado. Entretanto, é problemático no primeiro ensaio o autor
justificar, com base na obra foucaultiana, a existência do ascetismo en-
quanto categoria e imperativo universal, uma vez que o próprio Foucault
sempre argumentou sobre a maneira como os discursos e os conceitos
são contingentes a momentos históricos específicos e práticas sociais es-
pecíficas. Defender a universalidade da experiência ascética aparenta ser
um desgaste da categoria ascetismo.
Além disso, ao fazer sua crítica ao construtivismo, Ortega associa emi-
nentemente essa visão à obra de Foucault. Neste sentido, o autor afirma
que o pensamento foucaultiano é nominalista, focado demasiadamente
na disciplina e na sujeição dos corpos, com isso ficando perdida a capa-
cidade de ação (ou de agência) das pessoas em oposição às relações de
poder. Esse posicionamento de Ortega também é problemático, uma
vez que enquadrar o pensamento de Foucault unicamente dentro do

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construtivismo é uma limitação e um enrijecimento da complexidade


da sua obra. Ademais, mesmo sendo possível ler Foucault como um
construtivista, ele não é o único, visto que o próprio construtivismo as-
sume diversas facetas, além do que, mais próximo do final de sua vida,
ele operou um deslocamento no seu pensamento. Foi quando deixou a
preocupação pela disciplina em segundo plano, a fim de se focar mais
especificamente nas estéticas da existência, Nesse momento, Foucault
ficou muito mais preocupado com a capacidade de ação ou de agência
das pessoas ao constituir suas próprias estéticas.
Ainda com as questões anteriores, o livro de Ortega é uma excelente
apresentação do complexo tema da corporeidade, já que ele oferece uma
vasta bibliografia de estudiosos do tema, associada a diversos exemplos
contemporâneos que ilustram os conceitos e discussões que são apre-
sentados.

Bibliografia
FOUCAULT, Michel
2008 Nascimento da biopolítica, São Paulo, Martins Fontes.

MERLEAU-PONTY, Maurice
1999 Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes.

RABINOW, Paul
1999 Antropologia da razão, Rio de Janeiro, Relume Dumará.

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CZARNY, Gabriela. Pasar por la escuela: indígenas y procesos de
escolaridad en la ciudad de México, México, Editorial de la UPN, 2008,
pp. 284.

Mariana Paladino1
Universidade Federal Fluminense

No livro Pasar por la escuela: indígenas y procesos de escolaridad en la


ciudad de México, Gabriela Czarny nos confronta com a seguinte ques-
tão: O que representa a escolaridade para indígenas migrantes que vi-
vem na cidade? Como se vivencia a interação com os “outros” e com o
conhecimento legitimado pelo sistema escolar?
Czarny, antropóloga e professora da Universidade Pedagógica Nacio-
nal, aborda uma temática original, que se apresenta como uma lacuna
nos estudos sobre educação escolar indígena, apesar de retratar uma re-
alidade significativa: a experiência de formação dos indígenas fora do
espaço da aldeia, isto é, sua presença nas escolas urbanas da rede públi-
ca, no sistema não diferenciado de educação. Por sua vez, os estudos
focados na migração e na forma de vida dos índios na cidade ainda são
escassos e geralmente se centram nas motivações econômicas que orien-
tam os deslocamentos e não tanto em outras expectativas, como a do
acesso a uma escolaridade – questão amplamente discutida pela autora.
Seu foco são as famílias do povo indígena Triqui, provenientes de
diferentes comunidades da região de San Juan Copala, Oaxaca, que
migraram para a Cidade do México há pelo menos quinze anos e que,
com o apoio de uma organização indígena, passaram a habitar uma
mesma casa, onde também produziam e vendiam artesanato. Tratava-se
de 93 famílias, que somavam aproximadamente quinhentas pessoas.
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO P AULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Elas se percebem no novo contexto urbano como parte de uma mesma


comunidade – o que a autora caracteriza como comunidade extrater-
ritorial ou “comunidade na diáspora”, seguindo autores como Stefano
Varese, Garcia Canclini, Gruzinski e Miguel Bartolomé.
A autora realiza pesquisa em duas escolas do Distrito Federal nas quais
estuda a maioria das crianças e dos jovens dessas famílias Triqui. Seu
objetivo principal é o de analisar as expectativas de pais e adultos da
“comunidade Triqui” da Cidade do México em relação à escolarização
dos filhos. Ao mesmo tempo, busca desconstruir as narrativas generali-
zadas em torno da relação escola–povos indígenas, que se expressam em
frases como: “a passagem pela escola destrói as identidades indígenas e
adscrições de pertença às comunidades”, “a escola traz progresso”, “a es-
cola permite um futuro melhor”, “a escola dá prestigio e autoridade às
pessoas que passam por ela”. Para Czarny, essa forma dicotômica de per-
ceber a escolarização e seus impactos na vida dos índios – como ferra-
menta de aculturação ou como espaço privilegiado para assegurar sua
reprodução cultural e seu empoderamento – simplifica processos diver-
sificados e multifacetados. Por intermédio de sua pesquisa de campo,
ela reconhece diferentes sentidos e significados que seus interlocutores
Triqui atribuem à experiência escolar e que convivem em confrontação,
dando conta do caráter polissêmico e complexo de tal experiência.
A autora chama a atenção para o fato de que a presença significativa
de membros de diversas comunidades indígenas na Cidade do México
(segundo dados de 2001, ali havia trezentos mil indígenas, e, desse to-
tal, uma percentagem significativa assistindo ao sistema escolar público
da cidade) não se visibilizou, nem representou um tema importante para
as políticas educativas até finais dos anos 1990. Para entender essa omis-
são, Czarny reconstrói os modos como foi pensada a diversidade socio-
cultural, linguística e étnica no país ao longo do século XX (no Capítu-
lo 2 do livro). Como analisa a autora, o reconhecimento dos povos

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

indígenas como membros legítimos da nação mexicana tem oscilado


entre certa legitimidade, de um lado, perspectiva pela qual são vistos
como parte de uma história petrificada nos museus – a que remete à
gloria das grandes civilizações que já não mais existem – e, de outro, o
abandono dessa existência a um mundo rural e isolado, entendido pela
sociedade hegemônica como “atrasado”, “inculto”, “pouco civilizado”.
Assim, os índios que vivem nas cidades não são percebidos como tais,
desde que não tenham os atributos das identidades essencializadas, tais
como falar língua indígena, vestir-se com roupas tradicionais ou morar
em comunidades rurais.
Nas tentativas de se construir uma nação com uma única identidade,
a escola pública mexicana, laica e gratuita do século XX teve um impor-
tante lugar. Através desta instituição, procurou-se, por trás do princípio
da igualdade, homogeneizar a diversidade da população. A autora des-
creve (no Capítulo 2) como a escola “para indígenas” no México locali-
zou-se principalmente nas zonas rurais, onde se reconhecia a presença
dessa população, enquanto a escola da cidade ligava-se a imagens em que
os índios não tinham lugar. As propostas educativas das escolas para os
“diferentes” – os indígenas – ao longo da história do país conduziram,
em muitos casos, à acentuação da discriminação, além de não terem re-
solvido as desigualdades no que se refere a acesso e permanência no siste-
ma educativo. A noção de igualdade na escola operou como elemento
indiscutível para a contínua consolidação de uma única identidade nacio-
nal. Ainda assim, essa imaginada igualdade de condições e direitos de
todos os cidadãos mexicanos em relação à escola, traduzida como signo
da homogeneização da população, não evitou o racismo existente em re-
lação aos membros das comunidades indígenas. Só a partir da reforma
das políticas educativas, implementada no período 2001-2006, teve iní-
cio um trabalho que pretendeu favorecer a identificação e o reco-
nhecimento dos povos indígenas em todos os níveis do sistema educativo.

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A autora contrasta esta formação histórica com as vivências particu-


lares que os adultos Triqui tiveram de sua escolarização, o modo como
se lembram e percebem a passagem de uma situação dominante durante
toda a história da República – de ocultamento e negação da identidade
étnica – para outra, de valoração da diversidade e de crescente reconhe-
cimento identitário, que marca uma situação distinta na escolarização
de seus filhos. Czarny privilegia o diálogo e as histórias de vida de três
interlocutores adultos que ocupam distintas posições no interior da co-
munidade Triqui extraterritorial.
No terceiro capítulo, a autora mostra o cenário da comunidade Triqui
migrante na Cidade do México, a história de sua conformação e o modo
como se organiza atualmente. Também analisa o que significa ser mem-
bro de uma comunidade extraterritorial para os sujeitos pesquisados.
A autora dá conta desta construção através de processos complexos que
envolvem relações primordiais, parentesco, imperativos morais, afetivi-
dade, solidariedade, organização política e identidade. Ao mesmo tem-
po, também mostra as tensões que atravessam esta comunidade, ao con-
siderar posições como gênero, idade e hierarquias sociais, rompendo com
a ideia substancialista de entender a comunidade como uma entidade
harmônica e homogênea.
No Capítulo 4, Czarny centra-se no sentido e no valor que os inter-
locutores Triqui outorgam à escola pelo fato de a perceberem como es-
paço privilegiado para adquirir o espanhol. Para isso, explora as noções
de língua, cultura e identidade que surgem das representações de seus
interlocutores, mostrando a diversidade de posições e experiências e,
ainda, uma complexidade que vai além das visões dicotômicas apresen-
tadas pelas abordagens primordialistas ou construtivistas da identidade.
No Capítulo 5, a autora analisa os saberes que se colocam em con-
frontação na escola: os do contexto família-comunidade e aqueles do
espaço escolar. Contrasta as percepções do que representa aprender na

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comunidade para seus interlocutores Triqui, através da “experiência”, e


o que representa a aprendizagem resultante da “passagem pela escola”.
Para tanto, analisa a noção de pessoa e de experiência dos Triqui. A es-
cola erige-se para alguns como o lugar da “não experiência”, por não
estar vinculada com os saberes que se aprendem com base na participa-
ção comunitária. Contudo, a autora situa esta oposição presente nos
discursos de seus interlocutores, não tanto por perceberem os conheci-
mentos comunitários e os escolares como incompatíveis ou incomuni-
cáveis, e sim como uma forma de resistirem e se oporem ao modelo
monocultural, imposto pela escola pública mexicana.
No Capítulo 6, Czarny dialoga com outra narrativa presente no sen-
so comum sobre a escola, aquela que diz respeito à possibilidade de se
adquirir prestígio, autoridade e mobilidade social. Mostra que a passa-
gem por esta instituição e a obtenção de diplomas não resulta no prestí-
gio de uma pessoa Triqui se esse conhecimento não for, de alguma for-
ma, partilhado e voltado para a comunidade. Para os Triqui, passar pela
escola não é garantia de ter adquirido saberes socialmente valorizados
para sua comunidade, tampouco representa uma fonte segura de prestí-
gio. O fato de que os títulos escolares não estejam necessariamente for-
necendo reconhecimento na comunidade Triqui sustenta-se na existên-
cia de outras formas de autoridade, descritas e contrastadas pela autora.
Ter autoridade relaciona-se a certos tipos de habilidades e de conheci-
mentos que não se ligam diretamente ao saber escolar.
Por fim, no Capítulo 7, à guisa de síntese, Czarny analisa a relação
entre etnicidade e cidadania e, ainda, discute a possibilidade de que a
escola reconheça e atenda as formas desta última reivindicadas pelos
povos indígenas de acordo com a complexidade de cenários e experiên-
cias que atravessam.
Deste modo, a exploração da vivência escolar de membros da comu-
nidade Triqui na Cidade do México permitiu à autora conhecer senti-

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dos e apropriações diversos sobre a escolaridade, os conhecimentos e os


valores que essa instituição veicula, o que lhe permite fugir da polarização
construída acerca dos impactos da escolarização sobre os povos indíge-
nas. De alguma forma, é essa polarização que tem contribuído para que
as propostas educativas para índios tenham se orientado ora à sua inte-
gração, ora à sua separação em escolas fechadas no universo das aldeias.
Este livro contribui para a reflexão sobre a construção de propostas
de educação intercultural mais articuladas aos desejos e às demandas dos
povos indígenas contemporâneos, que possibilitem afrontar a tensão,
ainda não resolvida, entre as considerações da escola como ferramenta
de aculturação ou como via exclusiva do empoderamento dos índios.
Sendo assim, abre portas e oferece pistas metodológicas importantes para
a elaboração de novas etnografias sobre educação escolar indígena, que
reúnam a pertinência social e o uso rigoroso da teoria antropológica.
Portanto, o livro de Gabriela Czarny torna-se uma importante referên-
cia para quem pesquisa hoje sobre povos indígenas e educação escolar.

Notas

1
Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro; pesquisadora associada do La-
boratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento, do Museu Na-
cional, UFRJ; professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Fe-
deral Fluminense.

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NEVES, Walter Alves & PILÓ, Luís Beethoven. O povo de Luzia: em
busca dos primeiros americanos, São Paulo, Globo, 2008, pp. 336.

José Francisco Carminatti Wenceslau


Universidade de São Paulo

Há séculos, a história da ocupação humana da América vem sendo de-


batida, e, sem dúvida alguma, ainda estamos muito longe de colocar
um ponto final à questão. Partindo das especulações sobre a origem dos
povos indígenas, pelos europeus que primeiro pisaram no continente, e
chegando às pesquisas arqueológicas e antropológicas que definem os
estudos sobre o tema no início do século XXI, passamos por uma exten-
sa gama de trabalhos que tentaram responder algumas perguntas sobre
os primeiros habitantes das Américas: como e quando chegaram aqui,
sua ascendência, seus costumes, suas crenças e relações com o ambiente
que os circundava.
É com isso em mente que Walter Neves e Luís Piló escreveram O
povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos (2008), proporcionan-
do uma viagem intrigante pela breve e recente história da paleoantro-
pologia brasileira. Esta jornada começou nas primeiras pesquisas de Peter
Wilhelm Lund em Lagoa Santa (MG), nas décadas de 1830/1840, até
as atuais descobertas feitas pelos próprios autores e por outros arqueólo-
gos da América Latina, desafiando a hegemonia norte-americana na área.
Durante os anos 80, estudos liderados por Christy Turner (1984), da
Universidade do Arizona, mostraram que os padrões dentários dos ín-
dios americanos são semelhantes aos dos mongoloides do nordeste asiá-
tico (sinodontes). Com o auxílio de pesquisas em genética e linguística,
ele propôs três levas migratórias: uma mais antiga, que teria dado ori-
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gem a quase todos os índios da América, e outras duas, posteriores, que


teriam dado origem aos Na-Dene e aos Aleuta-Esquimós. Da primeira
leva teria surgido a cultura Clovis, tida pelos norte-americanos como
mãe de todas as culturas ameríndias posteriores e cujos vestígios mais
antigos não ultrapassam 11,2 mil anos (não calibrados). Contudo, os
registros da América do Sul não corroboram tal proposta, pois as indús-
trias líticas e os hábitos de caça e coleta locais eram muito diferentes
daqueles da América do Norte. Ademais, pesquisas recentes mostraram
que nem todas as populações americanas são sinodontes, como os Maias
e algumas populações pré-históricas do Chile. É por essa ótica que os
pré-clovistas, dentre eles os autores do livro, defendem que a ocupação
da América se deu antes de 11,2 mil anos. Uma das evidências incontes-
táveis disso são as descobertas de Tom Dillehay (1988) no sul do Chile,
situando a ocupação daquela região em pelo menos 12,3 mil anos.
É aí que entra Luzia. Seus ossos foram encontrados pela missão fran-
co-brasileira, coordenada pela arqueóloga francesa Annette Laming-Em-
peraire, em meados da década de 1970, na Lapa Vermelha IV, em Lagoa
Santa. A análise das camadas estratigráficas onde seus remanescentes
foram encontrados possibilitou estimar sua idade entre 11,5 e 11 mil
anos, fato esse que lhe deu o título de esqueleto humano mais antigo
das Américas. Apesar dessas evidências, Luzia teve que esperar mais de
vinte anos até que sua inclusão nos trabalhos de Walter Neves e colabo-
radores viesse apoiar a tese defendida pelos pré-clovistas, dando-lhes for-
ça na luta contra a conservadora arqueologia norte-americana.
As ideias expostas na obra apresentam-se como revolucionárias: além
do povo de Luzia ter chegado à América antes do estabelecimento da
cultura Clovis, ele provavelmente tinha uma maior similaridade morfo-
lógica craniana com populações africanas e australianas do que com
mongoloides, como propôs Turner, com base nos dentes. Somado a isso,
é provável que os primeiros habitantes da região tenham convivido com

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a megafauna ainda presente ali no final da última era glacial, sem, con-
tudo, ter dependido dela como fonte de recursos, como aconteceu na
América do Norte.
Com essas e outras proposições é que o livro pretende divulgar para
o público não especializado conceitos sobre evolução humana, ocupa-
ção da América, e, acima de tudo, explicar como o estudo do povo anti-
go de Lagoa Santa vem influenciando os rumos da arqueologia nas
Américas. Com linguagem fácil e tentando sempre se aproximar ao
máximo do público leigo, os autores passam pelos bastidores de todo o
processo científico que teve como ápice a divulgação de Luzia pela mídia
nacional e internacional a partir de 1999. Assim, trazem à tona todos os
percalços pelos quais passa uma descoberta antes que ela chegue ao gran-
de público, mostrando, definitivamente, que no Brasil também pode se
fazer pesquisa de ponta. É assim que Neves e Piló iniciam seu livro.
No primeiro capítulo, fornecem aos leitores o conhecimento cientí-
fico necessário para se compreender o trabalho na área, mas sem tornar
a leitura maçante aos mais experientes. Abordam de maneira resumida,
mas suficiente, conceitos sobre genética e evolução, derrubando alguns
mitos criados a esse respeito, atendo-se posteriormente à evolução da
nossa própria linhagem, os hominíneos. Este cenário abrange desde a
nossa diferenciação dos chimpanzés, partindo de um ancestral comum,
até as adaptações anatômicas e comportamentais que proporcionaram o
surgimento do Homo sapiens e sua expansão pelo mundo, culminando
na chegada às Américas.
É sobre a colonização do Novo Mundo que o capítulo 2 mantém seu
foco. Nele, os autores resumem os trabalhos mais importantes com re-
lação à chegada do homem ao nosso continente, trabalhos esses pratica-
mente monopolizados pelos cientistas norte-americanos. Sobre isso, é
interessante salientar o parêntesis que fazem com relação à “receita per-
feita para a falta de êxito” da arqueologia latino-americana, nas páginas

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72 e 73, elencando fatores que de alguma forma acabam emperrando o


desenvolvimento da área em nosso país e nos países vizinhos, tais como
a falta de recursos, o arcaísmo burocrático, a formação teórico-metodo-
lógica defasada da maioria dos profissionais envolvidos e a publicação
dos resultados das pesquisas em periódicos locais de baixo ou nenhum
impacto. Como exemplo disso, citam vários sítios arqueológicos brasi-
leiros que poderiam derrubar o modelo Clovis, mas que, por um moti-
vo ou outro, não chegaram a emplacar. O próprio sítio onde Luzia foi
descoberta é um deles. O problema de Lapa Vermelha IV é que, por ser
praticamente uma fenda, suas características topográficas fazem que os
horizontes sedimentares mais antigos do que 7 mil anos ocupem uma
área muito pequena, além de coexistirem, no mesmo nível, sedimentos
com idades diferentes, dificultando uma identificação precisa das ida-
des dos vestígios ali encontrados. Para dificultar ainda mais, Annette
Emperaire, responsável pelas escavações, morreu durante as pesquisas, o
que deixou os trabalhos no limbo.
No terceiro capítulo a ênfase é voltada para os estudos do dinamar-
quês Peter Wilhelm Lund, pai da paleontologia brasileira, e aos arqueó-
logos que, sob o seu legado, mantiveram as pesquisas na área durante o
final do século XIX e todo o século XX. Lund chegou ao Brasil pela
primeira vez em 1825, vindo a regressar no ano de 1833, a princípio
planejando conhecer a flora brasileira. Somente em 1835 é que deu iní-
cio à exploração das cavernas na região de Lagoa Santa, fazendo a desco-
berta de seus primeiros fósseis. A empolgação que teve pelas escavações
fez que ele se dedicasse a esse trabalho intensamente durante cerca de
dez anos. É de sua pesquisa pioneira que partiram as inspirações para a
continuidade dos trabalhos na região, culminado, na década de 1970,
com a descoberta do esqueleto de Luzia.
Apesar de Lund, em sua época, já ter notado a semelhança entre os
crânios de Lagoa Santa e os da Australo-Melanésia, Neves e Piló encon-

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traram dificuldades para legitimar a similaridade dos primeiros ameri-


canos com essas populações, bem como para formular a hipótese da
ocorrência de uma leva migratória para o Novo Mundo anterior àquela
que deu origem à cultura Clovis. É sobre isso que eles contam no capí-
tulo quatro. Tal proposta, mesmo sendo comprovada por outros grupos
de pesquisas, inclusive dos Estados Unidos, mostrou-se de difícil aceita-
ção. Porém, em 1998, esse cenário mudou. Nesse ano, Walter Neves
apresentou os resultados de suas pesquisas no congresso da Associação
Norte-Americana de Antropologia Física e, em 1999, publicou-os na
revista “Homo” (Neves, Powell & Ozolins, 1999), fazendo o mundo
conhecer Luzia. Uma guerra foi então declarada aos arqueólogos norte-
americanos para que suas ideias fossem ao menos consideradas por eles.
Para isso seria necessária uma nova missão científica em Lagoa Santa, a
fim de coletar mais material, além de melhor aproveitar as informações
já existentes. Com esta intenção, foi criado o projeto “Origens e micro-
evolução do homem na América: uma abordagem paleoantropológica”.
É sobre ele que Neves e Piló se debruçam nos capítulos seguintes.
Além de detalharem as características físicas do carste de Lagoa San-
ta, tais como seu relevo, sua hidrografia, vegetação e fauna, chamam a
atenção para a natureza das cavernas da região, cuja composição calcária
facilita a conservação dos fósseis. No sexto capítulo, os autores detalham
as inúmeras atividades do projeto acima referido, bem como os resulta-
dos conseguidos até o momento da preparação do livro. As metas eram:
procurar por evidências pré-clovis (anteriores há 11,2 mil anos) na re-
gião; demonstrar a antiguidade dos remanescentes ósseos humanos de
Lagoa Santa, bem como melhorar ainda mais a amostra; tentar recons-
tituir como viviam, concretamente, os grupos humanos que ali habita-
ram na transição do Pleistoceno para o Holoceno; entender os processos
que atuaram antes, durante e depois da deposição dos restos inorgânicos
e orgânicos nos sítios; gerar interpretações paleoambientais para a re-

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gião nos últimos 12 mil anos; e, por fim, confirmar ou não a tese da
convivência entre o homem e a megafauna extinta em Lagoa Santa.
Dessas metas, a última foi a que talvez trouxe os resultados mais
reveladores. Foi confirmada, através da datação por C14, a contempora-
neidade entre a megafauna extinta e a população humana lagoassantense.
Mas, por enquanto, não foi encontrado nenhum registro de que tenham
interagido de alguma forma. Ao contrário do que se observa na cultura
Clóvis na América do Norte, Luzia e seus contemporâneos davam pre-
ferência à coleta, sendo a caça limitada aos pequenos animais que ainda
hoje existem na região. Aliás, esta acabou se tornando uma importante
evidência de que a matança em massa não foi responsável pela extinção
da megafauna na América do Sul.
Em 2005, o projeto atingiu seu ápice, ao reunir 81 crânios de Lagoa
Santa medíveis e bem datados. Suas idades ficaram entre 9 e 7,5 mil
anos (com exceção de Luzia) e todos mostraram semelhanças morfoló-
gicas com populações australo-melanésicas. Já não havia mais como ne-
gar a hipótese de Neves e associados: a América foi realmente coloniza-
da minimamente por uma leva migratória anterior àquela que deu
origem à cultura Clovis; mais ainda, a população siberiana responsável
por essa migração ainda não tinha traços mongoloides. Uma batalha foi
vencida. Superando todos os obstáculos e as dificuldades para conseguir
emplacar uma descoberta científica, logrou-se publicar tais conclusões
no PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences), validando
definitivamente todo o trabalho feito durante os anos anteriores (Neves
& Hubbe, 2005).
No penúltimo capítulo passamos a entender não só a biologia do
povo de Luzia, mas também seus costumes e seu modo de vida. Os au-
tores tentam reconstruir o cotidiano desse povo, tendo em vista o deba-
te entre as duas linhas teóricas da antropologia cultural: a escola simbo-
lista, pregando que “o comportamento humano depende única e

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exclusivamente dos valores simbólicos de uma sociedade, [e que] a cul-


tura teria completa independência de fatores ambientais ou adaptativos”
(p. 287), e a escola materialista, que, sem negar a importância dos valo-
res simbólicos, crê que o ambiente tem papel fundamental na constru-
ção de elementos culturais, dizendo que “pelo menos algumas caracte-
rísticas de uma sociedade específica podem ser respostas adaptativas a
circunstâncias ambientais específicas” (p. 288).
Na arqueologia é mais fácil manter o foco nas interpretações materia-
listas, pois é apenas com isso que os registros fósseis nos possibilitam tra-
balhar. Mas, na medida do possível, Neves e Piló se permitem arriscar
algumas interpretações sobre os valores simbólicos do povo de Lagoa San-
ta, tendo em mente, porém, que nenhuma dessas conclusões são defini-
tivas, havendo sempre um longo caminho pela frente para que os hábi-
tos dos primeiros lagoassantenses sejam definitivamente compreendidos.
É com essas perspectivas futuras que os autores finalizam seu livro.
Ao revisar as descobertas feitas ao longo desses anos, talvez o mais im-
portante que fique sejam as novas perguntas que delas surgiram: Que
fim tiveram as populações não-mongoloides? Se o povo de Luzia convi-
veu durante 2 mil anos com a megafauna pleistocênica, por que, então,
não fez uso dela? Quais as alterações climáticas que levaram à extinção
da megafauna sul-americana no início do Holoceno? Como eram as con-
dições ambientais que regeram a ocupação humana na região central do
Brasil durante os últimos 12 mil anos? São com essas e outras questões
que os autores incitam a curiosidade dos leitores, esperando que não só
os já familiarizados com a paleontologia, a arqueologia e a bioantropolo-
gia, mas também os marinheiros de primeira viagem tenham seu inte-
resse despertado.
Mais uma vez, é importante ressaltar que mesmo os leitores menos
experientes passarão pelo livro sem problemas. Os autores, na sua in-
tenção de agradar a todos os públicos, não abrem mão de notas durante

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o texto, permitindo aos não familiarizados com o assunto tirar dúvidas


que porventura surjam durante a leitura, mantendo, ao mesmo tempo,
um bom ritmo para aqueles que já tenham um maior conhecimento.
É importante salientar que esse não é apenas um livro de divulgação
científica, pois seus autores fazem questão de expor, de forma clara, ques-
tões precedentes a isso, que até então só eram do conhecimento dos pro-
fissionais da área. Para aqueles que só conheceram Luzia após sua recons-
tituição facial ser publicada na capa da revista Veja (edição 1612, de 25
de agosto de 1999), o livro mostrará grande parte do que acabou ficando
nos bastidores. Os leitores terão então a oportunidade de descobrir todo
o histórico de derrotas e pequenas porém significativas vitórias, pelo que
passou a arqueologia latino-americana antes que essa estrela fosse reve-
lada, reformulando a história do ser humano em nosso continente.
Quanto a isso, Neves e Piló são muito felizes ao fazerem suas digres-
sões a respeito das nuances que envolvem o processo de legitimação do
conhecimento científico, mostrando aos leitores que ciência, principal-
mente em nações com pouca tradição acadêmica como o Brasil, está
longe de ser um mar de rosas. Uma notável consequência é que, ao fazê-
lo, eles a tiram de seu pedestal e a trazem para perto do grande público,
um feito importante num contexto em que a ciência esteve sempre con-
finada às elites.
Espera-se que O povo de Luzia ajude a compreender não só a história
dos primeiros humanos no continente americano, mas também os de-
talhes por trás da construção do que hoje sabemos sobre eles. E “que a
terra lhes seja leve! Sobretudo para aqueles que ainda não foram desen-
terrados” (p. 306).

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Bibliografia
TURNER II, C. G.
1984 “Advances in the dental search for native American origins”, Acta Anthropoge-
netica, vol. 8:23-78.

DILLEHAY, T. D. & COLLINS, M. B.


1988 “Early cultural evidence from Monte Verde in Chile”, Nature, vol. 332:150-2.

NEVES, W. A; POWELL, J. F; OZOLINS, E. G..


1999 “Extra-continental morphological affinities of Lapa Vermelha IV, Hominid I:
A multivariate analysis with progressive numbers of variables”, Homo, vol.
50:263-82.

NEVES, W. A; HUBBE, M.
2005 “Cranial morphology of early Americans from Lagoa Santa, Brazil: Implica-
tions for the settlement of the New World”, Proceedings of the National Academy
of Sciences of the United States of America, vol. 102:18309-18314.

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KLEIN, Richard G. The Human Career: Human Biological and Cultu-
ral Origins, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2009,
pp. 989.

Walter Neves
Universidade de São Paulo

Desde sua primeira edição em 1989, The Human Career tornou-se um


clássico no ensino da evolução dos hominínios por duas razões muito
simples, mas dificilmente colocadas em prática em livros congêneres:
apresentar tanto os aspectos biológicos implicados na evolução de nossa
linhagem, quanto a evolução da tecnologia e da cultura material que
acompanhou tal processo – aspectos estes que, juntos, nos permitem
reconstituir várias facetas do comportamento social de nossos anteces-
sores e antepassados, entre elas, a origem de nossa capacidade de signifi-
cação, tema especialmente caro para os antropólogos socioculturais.
Vários livros didáticos sobre o assunto propuseram-se, e ainda se pro-
põem, a fazer o mesmo, mas na esmagadora maioria das vezes a promes-
sa fica longe de ser cumprida. O sucesso da empreitada encarada por
Richard Klein assenta-se sobre dois pilares: sua enorme erudição a res-
peito do campo em que atua – o estudo da evolução cultural humana
–, associada à sua formação eminentemente arqueológica. Pode-se dizer
que Klein trabalha naquilo que nos países anglofônicos é chamado de
“Arqueologia das Origens”. Daí sua facilidade de trânsito entre o bioló-
gico e o cultural. Sua visibilidade internacional se consolidou desde que
ajudou a propor, nos anos 1990, o modelo Out of África para explicar a
origem dos humanos modernos.
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Tendo em vista que sua tarefa não é nem um pouco fácil, Klein ado-
tou uma estratégia bastante inteligente para dar conta dela: novas edi-
ções de seu livro são colocadas no mercado a cada dez anos, sempre com
um aumento expressivo no número de páginas, diga-se de passagem.
A primeira edição (1989) contava com 524 páginas; a segunda (1999),
com 810; e a presentemente resenhada (2009), com 989 páginas. Nun-
ca antes um livro texto na área da paleoantropologia conseguiu reunir
em seu bojo tamanha densidade de informações. Milford H. Wolpoff
tentou fazer o mesmo em seu Paleoanthropology (1980/1999), mas deu
com os burros n’água.
Aqui tomo a liberdade de fazer um alerta: aqueles interessados em
utilizar The Human Career em sala de aula devem se assegurar de que
dispõem de fato de uma erudição mínima em Biologia Evolutiva, Prima-
tologia, Antropologia Biológica, Paleoantropologia, Arqueologia e Pré-
História Geral, para dar conta do recado… Posso falar com autoridade
porque, no segundo semestre de 2009, utilizei-o como leitura principal
no curso de pós-graduação sobre evolução humana avançada que ofere-
ço, de forma irregular, no Instituto de Biociências da Universidade de
São Paulo. Quase joguei a toalha... E olha que tenho trinta anos de ja-
nela perambulando pela maior parte das áreas acima!
Os Capítulos 1 e 2 são, de longe, os mais difíceis de serem atravessa-
dos, tendo em vista a enormidade de tecnicalidades envolvidas. Para um
público de Ciências Sociais, são tão chatos quanto absolutamente ne-
cessários. No primeiro, Klein, ainda que de forma modesta, apresenta
alguns conceitos básicos sobre evolução biológica, classificação taxonô-
mica e nomenclatura.
Entre outras efemérides planetárias, o autor apresenta com bastante
elegância os dois modos/tempos de evolução biológica até o momento
conhecidos: gradualismo filético (leia-se demorado) e saltatório (leia-se
rápido), este último também encontrado na literatura sob a etiqueta

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“equilíbrio intermitente”, erroneamente traduzido desde sempre pelos


tapuias por “equilíbrio pontuado”, da expressão punctuated equilibrium,
sacralizada por S. J. Gould e acólitos no final da década de 1970.
No que tange à classificação, nenhuma novidade: cladística pura!
De manhã, de tarde, de noite. Sem cladística não há salvação, nem para
as amebas, nem para as plantinhas, nem para os bichinhos. É a única
ferramenta que ao mesmo tempo nomina as criaturas deste mundo de
meu Deus – vivas, se arrastando e extintas –, produzindo ao mesmo
tempo uma história evolutiva (filogenia) digna do nome.
Mas é no Capítulo 2 que a jiripoca berra. Já tinha piado no capítulo
anterior. O capítulo tem por objetivo apresentar as eras e os períodos
geológicos, os métodos de datação, relativos e absolutos (radiométricos
ou não), e as várias mudanças climáticas catastróficas (leia-se glaciações)
que ocorreram no passado da história do planeta, bem como suas con-
sequências para as coisas vivas, suas mudanças y compris. De especial in-
teresse para aqueles que trabalham nos trópicos (euzinho de Jesus inclu-
ído) são as elegantes sínteses efetuadas por Klein sobre datações
(relativas) bioestratigráficas, já muito bem consolidadas na Europa, na
África e parte da Ásia.
O raciocínio aqui é fácil (fora dos trópicos úmidos, é claro. Tristes
trópicos...): sabendo que na região onde você escava o veadinho de chi-
fre reto extinguiu-se por volta de 2 milhões de anos, e um veadinho de
chifre torto surgiu por volta de 1,5 milhão de anos, datações essas obti-
das alhures, se uma mandíbula de um hominínio for encontrada numa
camada em que nem retos nem tortos (os veadinhos) estão presentes,
bingo! Você acabou de descobrir que seu hominínio certamente viveu
entre 2 milhões e 1,5 milhão de anos. Da mesma forma, se você acabou
de encontrar na mesma região um dente hominínio associado a chifres
retos do tal veadinho, le voilà: seu hominínio tem no mínimo 2 mi-
lhões de anos. Parece fácil, mas dá um trabalho danado construir colu-

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nas bioestratigráficas de fato confiáveis. Até porque elas, no geral, são


aplicadas em escalas continentais e ninguém pode jurar sobre a Bíblia
(meu lado criacionista outra vez...) que a substituição de um determi-
nado grupo por outro se deu ao mesmo tempo em todo um continente.
Mas, com uma certa dose de fé (olha eu escorregando novamente...),
funciona. Klein prescreve o uso com moderação. Homem sensato.
Apaixonante para aqueles fora do meio (dos viadinhos?) é a seção
dedicada aos estágios climáticos denunciados pelos isótopos do Oxigê-
nio-18, com base em colunas de sedimentos extraídas do fundo do mar
por tradagens high-tech. A variação desses isótopos permite identificar
com grande precisão (até que alguém venha provar o contrário) os mo-
mentos em que o planeta estava quente e aqueles em que estava frio.
Aprende-se, por exemplo, que, nos últimos 900 mil anos, 95% do tem-
po os humanos viveram sob condições gélidas (Papai Noel que o diga...).
O Capítulo 3 sintetiza a evolução dos primatas (ordem zoológica à
qual pertencemos, viu, senhores antropólogos?) desde a origem do gru-
po há cerca de 60 milhões de anos, no Paleoceno, até cerca de 7 milhões
de anos atrás, quando os primeiros hominínios surgem no registro fós-
sil. Como ultimamente tem havido mais macacos do que galhos dispo-
níveis, o autor tomou outra decisão sensata: discutir a evolução da or-
dem por grandes grupos.
Dentro dessa perspectiva, os primeiros primatas com aspecto moder-
no (leia-se lêmures, lórises e társios) surgiram há cerca de 55 milhões de
anos, formando rapidamente dois subgrupos: os adapiformes e os omo-
miiformes (não está errado não, é com dois “is” mesmo). De qual desses
grupos surgiram os antropoides ninguém sabe, ninguém viu. O assunto
tem sido discutido há pelo menos três longas décadas (eu sei, porque as
vivi, e muito!), sem solução aparente. O fato é que os primeiros primatas
completos (nomenclatura minha, já que é evolutiva e politicamente in-

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correto chamá-los de primatas superiores) devem ter surgido aí por vol-


ta de uns 50 milhões de anos, no início do Eoceno.
Por volta de 35 milhões de anos, a região do Fayum, próximo ao
Cairo, Egito, verdadeiro paraíso tropical oligocênico, estava coalhada
de dezenas de espécies de antropoides. Qual delas deu origem ao nosso
grupo inclusivo mais próximo, os hominoides (leia-se grandes símios,
ou monos), isso também ninguém sabe, ninguém viu. Klein parece se
inclinar em direção aos propliopitecoides como ancestrais dos grandes
símios, mas isso mais por força de ofício do que por evidências realmen-
te palpáveis.
Alguns acreditam que criaturas semelhantes aos chimpanzés, gori-
las e orangotangos já estavam presentes no planeta ainda durante o
Oligoceno, mas evidências de fato convincentes não passam de 23 mi-
lhões de anos, já dentro do Mioceno. Na verdade, foi no Mioceno (23 a
6 milhões de anos) que se deu o grande splash hominoide. Restritos hoje
a não mais do que meia dúzia de espécies, contavam-se às dezenas, se
não centenas, naquele período. Isso torna muito difícil ligar os monos
de hoje (chimpanzé, gorila, orangotango) a alguma linhagem evoluti-
va miocênica.
O quadrupedalismo clássico, por exemplo, está ausente entre os ho-
minoides de hoje, apesar de ter sido muito popular entre 23 e 17 mi-
lhões de anos atrás. O deslocamento com o tronco inclinado (ortogra-
dia), que caracteriza os monos atuais, parece ter surgido entre 13 e 16
milhões de anos. É desse caldeirão de hominoides ortógrados que co-
meçou a esquentar por volta de 15 milhões de anos que viriam a surgir
os hominínios. De qual linhagem miocênica específica, nem Deus sabe!
Klein simplesmente foge do assunto. Amarela... Mas não é pra menos.
Tem opções demais. Bons tempos aqueles quando acreditávamos que
mais fósseis resolveriam as principais pendengas...

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O Capítulo 4 é o mais abrangente em termos de faixa temporal. Tra-


ta desde os primeiros hominínios até o surgimento dos primeiros repre-
sentantes do gênero Homo. Chega a ser uma preciosidade para quem
conhece pouco a história das descobertas no sul e no leste da África da-
quilo que poderíamos englobar, com uma certa licenciosidade poética,
de “australopitecíneos”. A geologia e a geocronologia de ambas as re-
giões são magistralmente resumidas. Isto facilita muito a vida de quem
precisa de informações precisas sobre a estratigrafia e a cronologia das
principais jazidas paleoantropológicas entre 7 e 2 milhões de anos atrás,
notadamente daquelas do leste africano, onde tem sido possível gerar
um quadro cronológico de primeira para nossos ancestrais e antecessores
mais antigos, graças aos tufos vulcânicos (leia-se cinzas vulcânicas) que
ali abundam. Como o vulcanismo não foi tão generoso no sul da Áfri-
ca, de geologia eminentemente calcária, o estabelecimento das idades
dos distintos estratos (membros) nos quais os primeiros australopitecí-
neos foram encontrados no início do século XX (Taung, Sterkfontein,
Swartkrans, Makapansgat e Kromdraai), e que ainda continuam sendo,
sobretudo em Drimolen, não é tarefa fácil. Basicamente, ele é feito atra-
vés de correlações bioestratigráficas (com o leste africano), com todas as
incertezas aí embutidas. De qualquer maneira, nada ali parece ultrapas-
sar o limite de 3 milhões de anos. Uma nesga comparada aos 7 milhões
do leste africano.
Ali os milhares de hominínios fósseis já encontrados, desde as céle-
bres escavações em Olduvai, por Leakey pai e Leakey mãe, estão didati-
camente engavetados em estratos entremeados por tufos vulcânicos, ou
por camadas com diferentes polarizações paleomagnéticas. Pois é, o
paleomagnetismo como instrumento geocronológico é fácil de enten-
der: o polo magnético da terra variou durante a existência do planeta, às
vezes coincidindo com o Polo Norte, como hoje, às vezes com o Polo
Sul. E os minerais que fazem parte das rochas alinham-se de acordo com

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essa polaridade quando de sua formação. No primeiro caso, o período é


denominado de cron normal; no segundo, de cron revertido. Dentro
desses crons pode haver subcrons de normalidade ou reversão. Por exem-
plo, dentro do cron revertido, denominado Matuyama, entre 2,6 mi-
lhões de anos e 800 mil anos ocorrem dois subcrons normais, denomi-
nados Olduvai (entre 1,95 e 1,79 milhão de anos) e Jaramillo (entre 1,07
e 0,99 milhão de anos).
É claro que os períodos paleomagnéticos só permitem inserir fósseis
em intervalos cronológicos amplos. É aí que entram as datações absolu-
tas por isótopos de argônio, por exemplo, efetuadas sobre zircões en-
contrados nos tufos. Por exemplo, na Garganta de Olduvai sete tufos
vulcânicos foram datados no subcron Olduvai. Isto permitiu, entre ou-
tras coisas, determinar que o famoso Zynjanthropus boisei (hoje Paran-
thropus boisei), ali encontrado no final dos anos 1950, está datado em
cerca de 1,75 milhão de anos, ao passo que o Homo habilis, ali também
encontrado no início dos anos 1960, está datado em 1,76 milhão de
anos, sendo, portanto, levemente mais antigo que o primeiro.
Esse nível de acurácia cronológica repete-se à exaustão nos sítios do
leste africano: Uhara no Malaui, Laetoli e Peninj na Tanazânia, Colinas
Tuggens, Lago Baringo, Lothagan, Kanapoi, Lago Turkana (leste e oes-
te) no Quênia, Rio Omo (médio e baixo), Fejej, Konso, Hadar, Dikika,
Kada Gona e Woranso-Mille na Etiópia, só para ficar nos mais impor-
tantes. Seis páginas são dedicadas exclusivamente à discussão de quem
seria o primeiro bípede (portanto, o primeiro hominínio): Sahelanthro-
pus tchadensis (7 milhões de anos), Orrorin tugenensis (6 milhões de
anos), Ardipithecus kadabba (5,5 milhões de anos), ou Ardipithecus rami-
dus (4,5 milhões de anos). Klein pende, claramente, para o Orrorin, ten-
do em vista vários marcadores de bipedia presentes no fêmur encontra-
do (vou poupar o leitor dos detalhes).

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Pessoalmente, acho que ele subestimou as possibilidades do Sahelan-


thropus, sobretudo após a reconstituição virtual não destorcida de seu crâ-
nio (o original mais parecia uma panqueca), efetuada pelo estranho, po-
rém competente, casal Macia Ponce de León (boliviana) e Christoph
Zollikofer (suíço), ambos militando na Universidade de Zurique. Para
ambos não há dúvida: o forame magno do fóssil está claramente posicio-
nado na base do crânio (e não atrás), atestando sua qualidade de bípede.
Mas a edição 2009 do livro de Klein ocorreu antes da avassaladora
publicação de Tim White (Universidade de Berkeley) e associados na
revista Science, em outubro/2009,1 revelando aspectos minuciosos da
anatomia e do comportamento locomocional do Ardipithecus ramidus,
coisa que tomou a bagatela de quinze anos de estudos por parte do gru-
po capitaneado por meu ex-professor e, há muito, querido colega de
Berkeley. O Ardi, como ficou conhecido na imprensa, complicou de-
masiadamente o cenário, a meu ver.
Não há dúvidas quanto à sua bipedia. Mas sempre assumimos que
nosso andar bípede-vertical evoluiu de um ortógrado nodopedálico,2
tipo chimpanzé ou gorila (um orangotango também serve). Nada mais
conveniente (assumindo-se uma evolução gradativa) assumir que um
deslocamento bípede-vertical teria se originado de um ortógrado nodo-
pedálico, que por sua vez teria se originado de um quadrúpede clássico.
Au revoir les enfants! Tim White matou dois coelhos com uma caixa-
d’água só. O Ardi não apresenta nenhum traço em seu esqueleto que
indique que sua bipedia tenha se originado de um mono nodopedálico
(para White, a bipedia do Ardi teria surgido de um palmigrado, com
grande gracilidade e flexibilidade no punho). Portanto, o chimpanzé é
um péssimo modelo para representar o tão propagado elo perdido (aqui
me junto a um dos cartunistas da Folha, que em novembro de 2009
afirmou: o elo era tão perdido, mas tão perdido, que escovava os dentes
na pia da cozinha).

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Claro que todo mundo com mais de dois neurônios comunicantes


já sabia que nós e os chimpanzés repartimos um ancestral comum há
cerca de 7 milhões de anos, e que, assim como nós, os chimpanzés tam-
bém evoluíram 7 milhões de anos a partir desse ancestral. Mas rezava a
lenda que, muito provavelmente, em termos locomocionais, o tal an-
cestral comum devia ser muito mais parecido com o chimpanzé do que
conosco. Alguns especialistas até chegaram a identificar traços residuais
de nodopedalia no Australopithecus afarensis, considerado até meados dos
anos 1990 o hominínio mais antigo conhecido.
Levando-se em consideração que do Sahelanthropus só conhecemos
o crânio e que do Orrorin só conhecemos bem o fêmur, fica difícil
antever se a bipedia de ambos (se é que eram mesmo bípedes) é ou não
redutível evolutivamente a uma ancestralidade nodopedálica. Mas se isso
for verdade, a coisa fica mais preta ainda: teríamos que admitir que os
primeiros bípedes teriam surgido de um nodopedálico, que desses bí-
pedes alguma linhagem tivesse adotado, a posteriori, a quadrupedalia
palmigrada, que por sua vez teria dado origem a uma outra linhagem
bípede, a do Ardi. Toda essa discussão tem levado alguns especialistas a
cogitar o impensável: que talvez tenha havido linhagens símias tão
bípedes quanto a nossa, a dos hominínios, mas que esses monos bípedes
se extinguiram.
Para Deus nada é impossível! (Olha só o criacionista dentro de mim
botando as manguinhas de fora novamente...). Mas penso que isso é
trocar seis por meia dúzia, já que, se de fato existiram monos bípedes,
qual seria então o traço evolutivo exclusivo que caracterizaria nossa li-
nhagem, e apenas nossa linhagem? Até onde li e entendi, Tim White e
acólitos não resolveram este meu drama existencial com seu lindo estu-
do sobre o Ardi. Além disso, se estiverem corretos, a nodopedalia teria
aparecido no gorila e no chimpanzé duas vezes, de maneira indepen-
dente, já que o ancestral comum entre chimpanzés e nós seria quadrú-

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pede palmigrado. Richard Klein teve muita sorte da nova edição de seu
livro ter saído antes desse pandemônio...
Voltando ao texto resenhado (se não redesenhado) e deixando de lado
os saelântropos e os orrorins da vida (pelo menos da minha), nove espé-
cies de hominínios Plio-pleistocênicos são definidas e apresentadas de
forma detalhada pelo autor: Ardipithecus ramidus (4,51 a 4,32 Ma3);
Australopithecus anamensis (4,2 a 3,9 Ma), Australopithecus afarensis
(3,7 a 2,8 Ma), Kenyanthropus platyops (3,5 a 3,2 Ma), Australopithecus
africanus (3,0 a 2,5 Ma), Australopithecus garhi (2,5 Ma), Paranthropus
aethiopicus (2,7 a 2,3 Ma), Paranthropus boisei (2,3 a 1,2 Ma), Paranthro-
pus robustus (1,8 a 1,0 Ma) – e, ainda sob suspeita, Ardipithecus kadabba
(5,8 a 5,2 Ma) e Australopithecus bahrelghazali (3,6 a 3,3 Ma), este últi-
mo, para muitos, apenas uma variedade centro-norte de A. afarensis.
Basicamente, há ainda problemas sem solução com todas essas espé-
cies, sendo a mais notória a relação de ancestralidade–descendência en-
tre elas. Outro ponto nevrálgico levantado por Klein – corretamente, a
meu ver – é que, em vários pontos do nosso percurso evolutivo, tudo
parece indicar que houve mais de uma linhagem hominínea no planeta
ao mesmo tempo. Algumas até vivendo muito próximas, geograficamen-
te. Neste ponto, sempre me lembro daquela maldita figurinha mundi-
almente conhecida de um macaquinho atrás do outro, ficando cada vez
mais bípede, como se a evolução fosse necessariamente gradual e linear.
A figura só fica pior, se é que isso é possível, quando algum engraçadi-
nho coloca no final da fila um executivo, uma mulher, um travesti, ou
alguém curvado sobre um computador... Tem pai que é cego! Portanto,
nossa evolução foi muito mais uma sucessão de moitas, do que uma ár-
vore com apenas alguns galhos.
Essa pletora de possibilidades tomou proporções alarmantes entre 3
e 2 milhões de anos atrás, quando também surgem no registro fossilífero
os primeiros representantes do gênero Homo: habilis e rudolfensis. Este

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último tem sido defenestrado por alguns para o gênero Kenyanthropus,


assunto sobre o qual Klein prefere manter uma posição conservadora.
Eu faria o mesmo. São muito similares do ponto de vista da face, mas,
enquanto o platyops (3,5 Ma) tem um cérebro pouco maior que uma
bergamota (350 cm3), o rudolfensis (seja Homo, seja Kenyanthropus) já
exibia portentosos 750 cm3. Além disso, a similaridade facial entre am-
bos, que lhes dá assim um aspecto meio deprimidinho, pode ser por
conta do único fóssil platyops ter sofrido uma boa dose de deformação
pelo peso das camadas geológicas.
Duas outras grandes tensões no período são, por um lado, de qual de
tantas linhagens australopitecíneas teria surgido o gênero Homo e, por
outro, quem seria o autor das primeiras ferramentas de pedra que pas-
sam a ocorrer no registro fóssil também por volta de 2,5 milhões de
anos. Na árvore filogenética corajosamente4 apresentada à página 244,
o autor parece ter uma quedinha pelo Australopithecus garhi (2,5 Ma),
encontrado também por Tim White, na Etiópia, no final dos anos 1990,
associado, ainda que indiretamente, a ferramentas de pedra e ossos de
animais com marcas de descarnamento. É aí que se inicia no livro a car-
reira da evolução cultural (digo, tecnológica), brilhantemente apresenta-
da por Klein da página 249 em diante. Concordo que a fabricação de
ferramentas de pedra e a exploração de carniça de animais de grande
porte como fonte alimentar tipificam o gênero Homo, desde o seu surgi-
mento. Nesse sentido, o fato do garhi estar associado a ambos os com-
portamentos não é nada trivial. Mas, morfologicamente, o garhi se carac-
teriza, entre outros elementos, por apresentar uma dentição (anterior e
posterior) muito grande, coisa que combina pouco com nossa linhagem.
Ainda sou do tempo que Homo digno do nome tinha que ter denti-
ção pequena, principalmente pré-molares e molares, e cérebro grande.
E morro de preguiça de refazer minha opinião, mesmo sabendo, há qua-
se três décadas, que o Homo habilis tem cérebro pequeno e dentição

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pequena e o Homo rudolfensis tem cérebro grande e dentição grande.


Diga-se de passagem, Klein inclina-se fortemente a reduzir ambos a
Homo habilis. Protesto! Não consigo imaginar fósseis mais diferentes...
Voltando a ferramentas e carniças, a primeira coisa a dizer é que ambas
estão inextricavelmente associadas. Klein deixa isso claro. Que bom!
Mas o que eram as primeiras ferramentas? Lascas, apenas lascas bru-
tas retiradas de uma pedra (núcleo) por percussão direta com uma outra
pedra (mais dura e pesada), denominada percutor ou martelo. Nome da
indústria: Olduvaiense, já que foi descrita pela primeira vez pela Leakey
mãe na garganta de mesmo nome. E os famosos choppers e chopping-
tools? Não descem mais na goela (ops, desculpem o trocadilho) de nin-
guém minimamente informado, como ferramentas em si. Muito prova-
velmente, eram apenas núcleos não esgotados por completo, de onde
foram retiradas três ou quatro lascas. Klein titubeia. De fato, esses nú-
cleos rejeitados podiam eventualmente ser utilizados como qualquer
outra pedra para esmagar um osso, por exemplo, ou mesmo para dilace-
rar um tendão mais renitente, mas não eram pensados para isso.
Ou seja, a velha lorota da Leakey mãe – de que, desde a primeira
indústria de pedra lascada (a Olduvaiense), os primeiros representantes
do gênero Homo já impunham sobre a pedra bruta uma forma precon-
cebida mentalmente – já era. Os primeiros lascadores só tinham uma
coisa na cabeça, além de piolho: produzir lascas cortantes por percussão
direta controlada. E assim se mantiveram por um milhão de anos. Usan-
do essas lasquinhas mixurebas, lograram (ou logramos) um grande fei-
to: explorar o que havia de melhor na savana como fonte alimentícia:
restos de carne, tendão e tutano de carniças primárias (abatidas e consu-
midas por grandes felinos, mas ainda não saboreadas por hienas, chacais
e urubus). Caçavam? Certamente não com as lascas que produziam.
Muito menos com as mãos. E menos ainda com os dentes, porque, a
essa altura, os caninos já tinham sido reduzidos ao tamanho que têm

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hoje. Além disso, ninguém nunca reportou na literatura um chimpanzé


pulando na goela de uma zebra, ou de um antílope matando-os a denta-
das. Mas chimpanzés caçam pequenas presas, como pequenos macacos
e roedores, com as mãos e os dentes. Não há porque os primeiros Homo
não terem feito o mesmo, mas de maneira oportunista apenas. O filé
mignon era mesmo as carniças de grandes ungulados.
O Capítulo 5 também é uma coisa assim enorme. Cento e cinquenta
e cinco páginas. Trata da evolução do gênero Homo, ficando de fora ape-
nas neandertais e modernos, que ocupam capítulos próprios. Merecida-
mente, diga-se de passagem. Como não poderia deixar de ser, o capítulo
inicia-se com um resumo sobre a história das pesquisas em Java e China
no final do século XIX e início do XX, que revelaram os primeiros fósseis
daquilo que, a partir dos anos 1950, passou a se chamar Homo erectus.
A primeira cólica do capítulo é discutir se não seria mais adequado
considerar que o gênero Homo foi na realidade inaugurado com o erectus,
defenestrando habilis e rudolfensis para o gênero Australopithecus e, no
caso do segundo, eventualmente, para o gênero Kenyanthropus, como já
discutido antes. Uma digressão importante: no final dos anos 1990 e no
começo deste século, Bernard Wood, um dos mais renomados paleoan-
tropólogos ainda na ativa, fez uma proposta bastante atrativa: reunir sob
o gênero Homo apenas aquelas espécies que exibissem tamanho e pro-
porções corporais similares às nossas, ou seja, estatura por volta de 1,70
metro, braços curtos e pernas longas. Para ele, o traço inequívoco de
nosso gênero seria a bipedia estritamente terrestre, sem nenhuma sobra
de traços arborícolas no esqueleto.
De fato, tanto os australopitecíneos quanto o habilis e o rudolfensis
apresentam ainda pequena estatura, menor que 1,50 metro, braços
muito longos, pernas curtas e falanges das mãos e dos pés ainda arquea-
das,5 características essas que ainda os tornavam excelentes trepadores
de árvores. Sempre apoiei a proposta de Wood, porque sempre me pare-

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ceu muito elegante. Entretanto, estudos efetuados nos últimos anos,


com base no crânio, têm mostrado grande afinidade filogenética entre
habilis e rudolfensis e os demais representantes do gênero Homo (ergaster,
erectus, heidelbergensis, neanderthalensis e sapiens), formando com eles
um grupo monofilético, para usar uma nomenclatura cladística correta.
Até mesmo este humilde servo de... (me recuso a ter outra recaída
criacionista), que está tentando resenhar o irresenhável, publicou em
2008 na Nature, com colegas argentinos, que na verdade lideraram o
trabalho, resultados reforçando essa ideia: a inclusão de habilis e rudol-
fensis no gênero Homo não o torna parafilético. Klein novamente toma
uma decisão conservadora: para ele, o Homo erectus já se trata de um
segundo momento da evolução do gênero, reservando ao habilis (ao qual
ele incorpora o rudolfensis) a primazia da inauguração de Homo.
Outra pinimba fartamente discutida no capítulo refere-se à dicoto-
mia Homo ergaster/ Homo erectus, e de como as descobertas em Dmanisi,
na República da Geórgia (um verdadeiro Paraguai comunista6), afeta-
ram essa discussão. First things first! Também atendendo a uma proposta
de Bernard Wood do início dos anos 1990, os fósseis até então tratados
como Homo erectus (que alguns eminentes antropólogos sociais brasilei-
ros ainda chamam de pitecantropo, apesar dessa nomenclatura ter sido
enterrada nos anos 1950) foram divididos em duas espécies: ergaster e
erectus. Numa simplificação quase pueril, os espécimes africanos, mais
antigos, foram agrupados na primeira espécie, ao passo que as asiáticas,
na segunda. Para tornar uma longa conversa a mais curta possível, a pro-
posta era mais ou menos a seguinte: as formas africanas (ergaster), mais
antigas, arredondadas e menos robustas, teriam dado origem ao resto da
evolução humana, ao passo que as asiáticas (erectus), mais tardias, muito
angulosas no frontal e no occipital, e muito robustas, repletas de caracte-
res secundários, seriam um fim de linha, que não teria dado contribui-
ção alguma ao resto de nossa evolução. Mas, na verdade, isso foi sempre

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uma abstração, e muita coisa teve que ser varrida para baixo do tapete (e
um bem grande) pra ideia emplacar. De fato, os erectus javaneses apresen-
tam uma enorme robustez e um grau de angulação do neurocrânio que
salta aos olhos de qualquer pessoa, em especial o espécime Sangiran-17.
Mas os igualmente clássicos espécimes chineses, apesar de asiáticos, apre-
sentam formas muito menos dotadas, com toros supraorbitais e occipitais
mais delicados. Na África a coisa também não é simples: apesar de a mai-
oria dos espécimes apresentar formas mais gráceis e menos angulosas, o
OH-09, datado por volta de 1,2 milhão de anos, é extremamente robus-
to, com toros superproeminentes e uma calota angulozérrima.
Dmanisi agregou confusão ao caos. Também, o que esperar de um
Paraguai comunista? Datados de 1,75 milhão de anos, em pleno Cáu-
caso, representam os primeiros hominínios que deixaram a África em
direção ao Oriente e quiçá, ao Ocidente Europeu. Ao todo, já foram
encontrados cinco crânios numa área de escavação que pouco supera o
tamanho de uma cozinha (de pobre). Dos quatro já relatados na litera-
tura, um é muito grácil e parece lembrar o Homo habilis; outros, o fina-
do Homo ergaster, e dois, extremamente robustos, o Homo erectus. Para
desespero total das estrelas que vêm dominando o mundo da paleoantro-
pologia há décadas (leia-se norte-americanos e ingleses) e que, portan-
to, pontificaram sobre tudo de importante que foi encontrado na Áfri-
ca nas últimas quatro décadas, a distribuição espacial (horizontal e
vertical) dos espécimes encontrados em Dmanisi não deixa margem a
dúvidas quanto a pertencerem a uma mesma população local, portanto,
a uma mesma espécie. Saia mais justa é impossível! Vão ter que revisar o
maxima cagacio que fizeram na África. Mas vai demorar... As estrelas
demoram muito pra morrer! Klein é econômico sobre o assunto e, como
todo mundo mais, incluindo os georgianos, opta por alocar os fósseis
do Cáucaso na espécie Homo erectus (senso lato), reforçando a ideia da
extinção por decreto do Homo ergaster.

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Aprendi muita coisa sobre o Acheulense7 lendo esse capítulo de Klein.


O termo refere-se à indústria lítica que sucede a Olduvaiense (as
lasquinhas). Surge pela primeira vez no registro arqueológico por volta
de 1,7-1,6 Ma, logo após o surgimento do Homo erectus (1,8 Ma), am-
bos na África. A grande inovação do Acheulense: agora sim, os homi-
nínios impõem sobre a pedra um formato específico de ferramenta pre-
viamente concebida no plano mental. Tudo bem que não ultrapassam
três ou quatro tipos de ferramentas. O Acheulense vai se estender até
cerca de 280 mil anos. Entre as ferramentas, a mais célebre é de longe o
“machado de mão” (do inglês hand-axe), produzido compulsivamente
aos milhares. O porquê, ninguém sabe. Tampouco sabemos exatamente
qual era sua função. Alguns creem que era o canivete suíço da época.
Servia para tudo. De fato, análises microscópicas das bordas desses arte-
fatos sugerem que foram empregados em madeira, osso, gramíneas, cou-
ro e carne.
Uma outra grande discussão apresentada no capítulo, com generosi-
dade, porque merece, refere-se aos grandes cabeçudos (cerca de 1.250
cm3 de cérebro) que começam a pipocar no registro fóssil da África, da
Ásia e da Europa por volta de 600 mil anos atrás. Já foram chamados de
tudo, como, por exemplo “formas de transição” e Homo sapiens arcaico.
Quando entrei pra pajelança nos anos 1970, predominava o primeiro;
na década de 1980, sobreveio o segundo. Felizmente, a partir dos anos
1990, propuseram uma nomenclatura formal pra coisa: Homo heidelber-
gensis. Nomenclatura com a qual concordamos Klein e eu. Com esta
espécie surgiram, além dos cérebros avantajados, grandes novidades evo-
lutivas, tanto tecnológicas quanto comportamentais. Entre outras pé-
rolas, o cosmopolitismo (ainda se discute se o Homo erectus chegou à
Europa), o uso do fogo, a matança de grandes animais com lanças de
madeira (pasmem os senhores), o estabelecimento de cabanas em cam-
po aberto e a adaptação de algumas cavernas para maior conforto.

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Não é pouco para apenas uma espécie. No tocante à indústria lítica, os


heidelbergensis continuaram a fabricar e a utilizar as ferramentas acheu-
lenses, mas agora finamente retocadas (coisa de madame). No final de
sua vida evolutiva útil, desenvolveram a técnica Levallois, dando início a
uma nova indústria, denominada Musteriense.
Nesse contexto, Klein salienta a importância e ao mesmo tempo o
desconforto causado pelos fósseis que começaram a ser encontrados no
norte da Espanha a partir do final da década de 1980, sobretudo aque-
les encontrados em Gran Dolina e Sima del Elefante (deixo de lado pro-
visoriamente Sima de Los Huesos, porque prefiro discutir o sítio no ca-
pítulo sobre os neandertais, embora Klein o faça neste capítulo), datados
entre 1,2 milhão e 800 mil anos atrás. Assim que as primeiras evidên-
cias desses hominínios antigos surgiram em Atapuerca, os espanhóis logo
se apressaram a dar-lhes um nome: Homo antecessor. Recomendo o uso
com moderação. O autor do livro também. Que bom! Na verdade, nos
bastidores, todo mundo concorda que a criação de uma nova espécie
para acomodar o material espanhol do início do Pleistoceno Médio é
desnecessária. Poderiam perfeitamente ser incluídos no hipodígma8 de
erectus, uns, e de heidelbergensis, outros. Ceprano, na Itália, também cau-
sa furor nesse contexto: datado por volta de 900 mil anos, o fóssil não
poderia ser mais erectus, na minha tola opinião. Mas, como tem 1.150
cm3 de cérebro (esqueci de dizer que os erectus não passam de 850) e
pequena constrição pós-orbital, tem gente que empurra pra heildelber-
gensis. Klein sugere que talvez pudesse representar uma transição erectus/
heidelbergensis in situ, ou seja, na velha e boa Europa. Il semble que
l’Europe va réussir, mais elle tremble! Ele só esquece uma coisa: transições
também têm que ter nome, RG e CPF.
Se você achar o Capítulo 5 grande, extenuante, sugiro glicose na veia
para dar conta do Capítulo 6 (179 páginas, nem mais, nem menos), to-
talmente dedicado aos neandertais e a alguns de seus contemporâneos

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no planeta. Como os demais capítulos, este começa com uma breve his-
tória das descobertas dos neandertais, sobretudo os da Europa, sem ne-
gligenciar, contudo, os do Oriente Médio, ou seria Oriente Próximo?
Whatever... Aquela faixa estreita de areia no extremo oriental do Medi-
terrâneo, onde as pessoas cismam de não se entender desde 120 mil anos
atrás. No capítulo se aprende, logo na entrada, que até hoje já foram
encontrados restos de aproximadamente 350 espécimes neandertais,
oriundos de cerca de setenta sítios no Velho Mundo.
Até recentemente, dizia-se que a distribuição dos neandertais era cir-
cunscrita à Europa e ao Levante (agora achei a palavra certa), com ape-
nas uma exceção: Teshik-Tash, no Uzbequistão. Há alguns anos, entre-
tanto, foram encontrados restos neandertais em Okladnikov na Rússia,
ao sul da Sibéria, mostrando que a distribuição desses hominínios pode
ter sido bem mais extensa do que imaginávamos até há pouco. Mas sem-
pre seguindo o frio. Por isso, sempre achei que sobre as geladeiras deve-
ríamos ter um neandertalzinho de louça e não um pinguim. Nada con-
tra os pinguins, mas pelo menos estaríamos homenageando algo mais
próximo de nós. Apesar de os sítios neandertais se concentrarem entre
70 e 30 mil anos atrás, Ehringsdorf, na Alemanha, e Biache-Saint-Vaast,
na França, apontam para antiguidades que beiram 190 mil anos.
Cerca de dez páginas são gastas com a apresentação das peculiarida-
des morfológicas (cranianas e pós-cranianas) dos neandertais e a inter-
pretação desse conjunto de traços que apontam, todos, para a mesma
direção: adaptação ao frio. Klein titubeia quanto a esta interpretação no
que diz respeito ao crânio. Aqui uma nova digressão se faz necessária:
nos últimos cinco anos, alguns autores bem dotados de domínio mate-
mático, e que se dedicam ao que chamamos de Genética de Populações
(esconjura!), vêm mostrando que a esmagadora maioria da variabilidade
craniana atual do homem moderno deve-se não à seleção natural im-
posta pelos distintos climas a que nos submetemos nos últimos milha-

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res de anos, mas sim à deriva genética, neutra. Nesse sentido, pode-se
dizer que a evolução da morfologia craniana entre os modernos tem se
dado de forma randômica e não por razões adaptativas, como críamos
desde sempre, sobretudo com base nos estudos clássicos de L. L. Cavalli-
Sforza e associados no final dos anos 1970 e início dos anos 1980.
A única exceção nesse quadro seria a morfologia mongoloide, esta, sim,
produto da exposição do Homo sapiens a frio intenso.
Tal abordagem, quando aplicada à evolução hominínea como um
todo, revelou surpresas, entre elas a de que a morfologia craniana
neandertal surgiu não pela exposição desses hominínios ao frio intenso
da Europa glacial, mas sim por simples e bocejante deriva genética. No
máximo dois ou três paleoantropólogos (e suas respectivas progenitoras)
acreditam nessa lenga-lenga. Mas, obviamente, ninguém ousa questio-
nar os gênios da matemática por trás dela. Acuado, tadinho, Klein cai
como um patinho nessa conversa e se transforma num Frankenstein: a
morfologia craniana neandertal teria sido fixada por deriva (apesar de
atender magnificamente bem as necessidades do frio...), ao passo que a
morfologia pós-craniana (atarracadézima9), essa sim, teria sido fixada por
seleção ao frio.
Quanto à origem dos neandertais, ninguém mais tem dúvidas hoje
em dia: os fósseis encontrados em Sima de los Huesos, Atapuerca,
Espanha, inicialmente datados em 300 mil anos e recentemente reda-
tados para 600 mil anos, para o desespero geral da nação, mostram uma
clara transição entre heidelbergensis e neanderthalensis no norte da Euro-
pa Ocidental. Vivaldinos, os espanhóis logo sugeriram que o último an-
cestral comum entre neandertais e nós não seria o heidelbergensis, como
desejam todos, menos eles, mas sim o tal do antecessor discutido no ca-
pitulo anterior. De fato, os hominínios encontrados em Sima de los
Huesos mostram vários dos traços que mais tarde serão encontrados de
forma totalmente fixada entre os neandertais. Entre eles, a migração da

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face para frente, a maior característica craniana dos neandertais, com o


concomitante desaparecimento da fossa canina.
De certa forma, o desaparecimento da fossa canina é quase uma una-
nimidade entre os heidelbergensis europeus, coisa que não acontece en-
tre os da África e os da Ásia. E de fato o maxilar juvenil sobre o qual o
antecessor foi descrito apresenta face recuada, como a nossa, com a pre-
sença indiscutível da tal fossa. Quando os fósseis de Sima de los Huesos
estavam datados em 300 mil anos, tudo isso fazia sentido. Entretanto,
a redatação desses fósseis para 600 mil embaralhou o meio de campo.
Se metade das características neandertais já estava presente na Europa
há cerca de 600 mil anos, porque os neandertais clássicos mais antigos
conhecidos não ultrapassam 190 mil anos? Ninguém, Klein incluído,
tem uma resposta para isso.
Sob a égide de “Os contemporâneos dos neandertais” berra nova-
mente a jiripoca. Como disse antes, o autor (do livro) se notabilizou
por sua participação intensa na proposição do modelo “Entre dois amo-
res”, estrelado por Meryl Streep e Robert Redford... Ops! Digo, o mode-
lo Out of África para explicar o surgimento do homem moderno. Para
Klein, lá por volta de 200 mil anos, o homem anatomicamente moder-
no teria aparecido na África (daí o termo rastafari “Mama África”), mas
teria se expandido para fora dela apenas por volta de 50 mil anos, quan-
do teria surgido, enfim, o homem comportamentalmente moderno,
resultado daquilo que o mesmo (Klein e não o homem moderno) cha-
mou de Revolução Criativa do Paleolítico Superior. Retornarei ao tema
ao tratar do próximo capítulo. Pois é, para meu desespero total (haja
Lexotan), Klein chama agora o homem apenas anatomicamente mo-
derno de “homem quase-moderno”.
O agora “homem quase-moderno” (entre 200 e 50 mil anos atrás) é
que recheia seu subcapítulo a respeito dos contemporâneos dos neander-
tais. É África de cabo a rabo de novo, com uma pincelada de Oriente

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Médio, que à época era quase uma África, ecologicamente falando. Se


subiu bicho muito mais burro, como leão, tigre, zebra, girafa, e o reino
dos suricatos (muito importantes aqui nesta resenha, já que também fi-
cam bípedes quando querem. Deriva genética?), por que não haveria de
ter subido também o quase homem, digo, o “homem quase-moderno”?
Aqui estamos falando de fósseis notáveis, como Jebel Irhoud e Dar es
Soltan, no Marrocos; Taramsa Hill, no Egito; Singa, no Sudão; Herto e
Omo-Kibish na Etiópia; Eliye Springs, no Quênia; Ngaloba, na Tanzânia;
Florisbad, Border Cave, Die Kelders, Blombos e Klasies River Main, na
África do Sul, bem como Qafzeh e Skhul, em Israel.
Mas, voltando aos neandertais – que deveriam ser, a meu ver, o úni-
co recheio do capítulo –, o que sabemos sobre sua tecnologia, compor-
tamento, subsistência, organização social? Um montão de coisas! E tudo
que falarei sobre eles aplica-se também aos “quase modernos”, sensus
Klein (2009). É nesse período que floresce a indústria Musteriense10,
inventada pelos últimos heildelbergensis. Os núcleos dos quais as lascas
são retiradas são agora preparados à perfeição, sobretudo através de uma
técnica denominada Levallois. Se o desejado é uma ponta, o núcleo é
preparado para que as lascas dele retiradas já antecipem a forma de uma
ponta. Se o desejado é um raspador, idem. Além do mais, os núcleos
agora podem gerar várias lascas úteis, ou seja, lascas que serão, por reto-
que, transformadas em artefatos específicos.
Se no Acheulense o kit de ferramenta não ultrapassava três tipos de
ferramentas formais, agora ele pula para cerca de trinta ferramentas es-
pecializadas, normalmente enquadradas em duas grandes categorias:
pontas e raspadores. Pois é, surgem as primeiras pontas, ou seja, ferra-
mentas que presas a uma haste de madeira podiam certamente desferir
golpes mortais mesmo em um grande mamífero. Mas por certo não eram
ainda armas de arremesso de longo alcance. As pontas ainda eram mui-
to grandes e pesadas. As inúmeras fraturas e traumas encontrados nos

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esqueletos dos neandertais e de seus contemporâneos não deixam dúvi-


das de que ainda tinham que se aproximar muito da presa desejada para
matá-la. Não apenas as pontas eram encabadas. Vários raspadores tam-
bém o eram e representam os primeiros instrumentos compostos na
evolução tecnológica hominínea.
Klein apresenta as variações da indústria Musteriense entre todas as
grandes regiões onde ela é encontrada: Europa, Levante, nordeste e no-
roeste da África e África subsaariana, com especial ênfase, neste último
caso, no sul da África (Zâmbia, Angola, Malauí, Zimbábue, Botsuana,
Namíbia, Lesoto, Suazilândia e África do Sul, onde vem trabalhando
nas últimas duas décadas). No caso da África, a indústria Musteriense
foi produzida pelo que ele chama de “quase modernos”. No caso da
Europa, exclusivamente pelos neandertais, ao passo que no Levante, por
ambas as espécies.
Até onde se sabe, os neandertais nunca utilizaram osso como maté-
ria-prima para a fabricação de utensílios e/ou ferramentas. Os poucos
exemplos, de acordo com o autor, podem ser explicados como intrusões
de níveis estratigráficos sobrejacentes ou como produtos de fatores na-
turais, como polimento por abrasão com pedras e/ou água. Klein tam-
bém não gosta da ideia de que os neandertais, assim como seus contem-
porâneos (leia-se “quase-modernos”), fabricavam e usavam adornos
pessoais feitos de osso, chifre ou conchas. Para ele, exemplos clássicos,
como os pingentes de La Quina, França, podem também ser explicados
por intrusões vindas de níveis arqueológicos mais recentes, sobretudo
pelo fato de o sítio ter sido escavado numa época em que as técnicas de
escavação e o controle estratigráfico eram ainda pouco precisos.
No que se refere a moradia, Klein é pessimista quanto aos vestígios
apontados em geral como resultado da construção de cabanas ou do es-
tabelecimento de fogueiras permanentes, muitíssimo estruturadas, por

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parte dos neandertais e de seus contemporâneos. Para ele, dificilmente


as simples estruturas habitacionais (cabanas) construídas por esses
hominínios deixariam “ruínas” arqueologicamente visíveis. Nesse senti-
do, que me perdoe o autor, a enorme acumulação de cinzas de fogueiras
na caverna de Kebara, Israel, questiona fortemente sua posição. Para ele,
esta grande acumulação de cinzas resultou da reocupação da caverna
durante milhares de anos, por grupos distintos, que ali acenderam fo-
gueiras pouco espessas e horizontalmente acanhadas. Mesmo os famo-
sos círculos de ossos de mamute contendo grande concentração de arte-
fatos e restos de fogueira encontrados em Molodova I, na Ucrânia, são
por ele questionados como exemplos indiscutíveis de restos de cabanas
feitas com grandes ossos e cobertas por couro e pele. Seu raciocínio me
parece um pouco circular neste ponto: como esses círculos de ossos de
mamute apresentam grandes dimensões (8 x 5 m), Klein acredita que
era impossível que os homens do Paleolítico Médio tivessem capacida-
des arquitetônicas tão avançadas.
O pessimismo do autor estende-se também ao sepultamento dos
mortos. Entre a Europa e o Levante, cerca de 35 sepultamentos neander-
tais já foram escavados, descritos e aceitos como tais pela comunidade
científica. Para ele, as ditas oferendas mortuárias depositadas junto aos
mortos nesse período (incluindo em La Ferrassie, La Chapelle-aux-
Saints, Kebara, Teshik-tash, Dederiyeh e Shanidar) tratam-se na verda-
de de coincidências. Na maioria das vezes, sempre segundo Klein, os
artefatos e os ossos de animais encontrados nas covas são absolutamente
similares aos encontrados no sítio como um todo. Para ele, a presença
desses objetos nas covas resultaria simplesmente do processo de preen-
chimento destas com sedimentos ricos em restos orgânicos e líticos.
Já o canibalismo (alimentar) por certo grassava entre os neandertais
e, possivelmente, entre os “quase-modernos”, como bem o demonstrou

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Tim White em sua elegante análise dos remanescentes ósseos neandertais


encontrados em Moula-Guercy, na França. Ali os ossos “humanos” não
só estavam cortados e fraturados, como os dos demais animais con-
sumidos no sítio, mas também associados a eles em “fossas culinárias”.
Na verdade, indícios de canibalismo proteico também foram encontra-
dos em Grand Dolina, na Espanha, datados de cerca de 800 mil anos.
Com referência à história de vida dos neandertais, apesar de o autor
reconhecer a existência de algumas evidências dentárias e ósseas suge-
rindo que eles amadureciam biologicamente numa velocidade mais rá-
pida que a nossa, prefere assumir uma postura conservadora: ambas as
espécies devem ter um ritmo de maturação biológica, sexual e de enve-
lhecimento muito similares. Portanto, não se pode procurar na biologia
reprodutiva algum tipo de explicação para a nossa sobrevivência em de-
trimento dos neandertais.
Antes de terminar a resenha deste capítulo quero fazer uma observa-
ção absolutamente necessária, a meu ver. Como já comentei duas vezes,
Klein tornou-se célebre ao propor a versão cultural/comportamental do
modelo Out of África, modelo esse ancorado inicialmente no estudo da
variabilidade do DNA das populações autóctones ainda hoje existentes
no planeta, bem como nas evidências esqueletais (morfológicas) dos úl-
timos 200 mil anos. De acordo com o autor, coisa também já comenta-
da por mim, o surgimento da modernidade evolutiva (Homo sapiens)
em nossa linhagem estaria dividida em duas etapas complementares.
Primeiro teria surgido a modernidade anatômica (cerca de 200 mil anos
atrás), para somente então ter surgido a modernidade comportamental
(por volta de 50 mil anos atrás).
Para Klein, o grande limiar entre essas duas fases seria o que denomi-
nou no passado de (salvo engano de minha parte, ele não usa o termo
nesta edição de seu livro) a Revolução Criativa do Paleolítico Superior.11
O conteúdo detalhado dessa Revolução ou Explosão Criativa será apre-

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sentado por mim no próximo capítulo. Aqui me restrinjo a dizer que tal
explosão de criatividade coincidiu com as primeiras manifestações de
elaboração simbólica por parte de nossa espécie.
Em outros termos, só nos tornamos o que somos hoje depois que
entrou em nossa mente um módulo de significação (atribuição de valo-
res simbólicos às coisas). Nesse sentido, desde o Capítulo 5, Klein
desqualifica com especial crueldade qualquer evidência de manifestação
simbólica antes de 50 mil anos atrás. Não interessa a seu modelo que
essas evidências antigas de atribuição de significado abstrato às coisas se
mantenham de pé. Exemplos: a grande simetria e “beleza” dos macha-
dos de mão acheulenses a partir de 600 mil anos atrás, os possíveis se-
pultamentos ritualizados dos neandertais, o uso de osso como matéria-
prima antes do Paleolítico Superior, bem como a existência de
manifestações estéticas e artísticas antes de 50 mil anos. É atendendo
esta agenda que os últimos quatro capítulos do livro foram urdidos.
Vamos ao penúltimo.
O Capítulo 7 trata do surgimento de nossa espécie, o Homo sapiens,
no planeta. Bem menos portentoso que os anteriores, tem um certo sa-
bor de déjà vu, tendo em vista que no capítulo anterior Klein adiantou
muitas das discussões aqui tratadas. Como os demais capítulos, o pre-
sentemente resenhado apresenta uma pequena história das descobertas
daquilo que Klein denomina homem completamente moderno (fully
modern man). Grande parte desse histórico é dedicado aos Cro-Magnon
da Europa, mas Klein adicionou também uma tabela muitíssimo útil
com os fósseis modernos de outros continentes até o momento conheci-
dos. Após uma breve caracterização da morfologia craniana e pós-crania-
na dos primeiros modernos completos, o autor apresenta as duas hipóte-
ses ainda disponíveis no mercado para a origem de nossa espécie: a mo-
nogênese africana (o modelo Out of África) e o modelo multirregional.

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Como não poderia deixar de ser, ele apresenta farto material sobre o
primeiro (incluindo as evidências derivadas da diversidade do DNA atual
e fóssil da humanidade), reduzindo o segundo a migalhas. Sou absolu-
tamente favorável ao modelo da monogênese africana. Minhas próprias
descobertas sobre os primeiros americanos indicam que também os pi-
oneiros do Novo Mundo exibiam uma morfologia tipicamente africa-
na. Na verdade, quanto mais conhecemos os primeiros modernos com-
pletos de toda parte do mundo, mais nos convencemos de que entre 50
e 10 mil anos atrás todo o planeta estava ocupado por uma cepa huma-
na pan-africana, em termos morfológicos, craniano e pós-craniano.12
Os Cro-Magnon, por exemplo, apesar de terem vivido sob frio in-
tenso na Europa, apresentavam tamanho e proporções corporais (fenó-
tipo) similares aos de seus ancestrais africanos. O processo de raciação
em nossa espécie parece bastante recente. Os mongoloides, por exem-
plo, não ultrapassam muito a barreira do Holoceno. Talvez por isso os
geneticistas e os biólogos moleculares debatam há décadas a existência
ou não de raças humanas. Mas, voltando à discussão principal, e Klein
o reconhece, o Sudeste Asiático continua sendo um espinho na goela
do modelo que defende. O inferno de Java! E não estou falando do
Cracatoa...
Sob o título “Arqueologia e origens dos humanos modernos”, ele dis-
cute novamente a questão da explosão da criatividade no Paleolítico
Superior. É aqui que o texto se torna mais repetitivo. Vou poupar o lei-
tor desta resenha o máximo que puder (pelo menos bem mais do que
Klein poupou a mim e a meus alunos) da redundância. Vamos ao Paleo-
lítico Superior, de A a Z. A indústria Musteriense foi substituída em
todo o planeta (exceto no Extremo Oriente, onde nenhum esquema clas-
sificatório funciona), por volta de 45 mil anos atrás, por uma indústria
lítica muito mais avançada em termos tecnológicos. Esta indústria é de-
nominada, numa enorme falta de criatividade por parte dos pré-historia-

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dores, de indústria do Paleolítico Superior. As lascas, que no passado


davam origem, por retoque marginal, a cerca de trinta tipos de ferra-
mentas, são agora substituídas por lâminas, que, por sua vez, dão ori-
gem, também por retoque marginal, a cerca de oitenta ferramentas alta-
mente especializadas (dizem as más línguas que algumas eram usadas
especificamente para remover escargot da concha).
A obtenção de lâminas, por seu turno, demandou uma grande ino-
vação tecnológica: a preparação de núcleos sofisticados, os laminares,
também conhecidos como prismáticos. Se um núcleo musteriense gera-
va, no máximo, meia dúzia de lascas aproveitáveis, um núcleo prismático
passa a gerar dezenas de lâminas aproveitáveis, promovendo grande eco-
nomia de matéria-prima. Se até o Musteriense as ferramentas mostra-
vam-se extremamente estereotipadas, variando apenas em função da
matéria-prima, a indústria lítica do Paleolítico Superior mostra, pela
primeira vez, a imposição de estilos regionais e até mesmo pessoais so-
bre as ferramentas fabricadas, veiculando, pela primeira vez, através de-
las, identidade étnica.
Foi também no período que surgiram, abruptamente, as primeiras
ferramentas feitas de osso e de chifre. Os sepultamentos passaram a ser
requintadamente adornados com os objetos de uso cotidiano do morto
e com oferendas mortuárias com denso valor estético e simbólico. Sur-
giram os primeiros adornos corporais, na maioria das vezes feitos sobre
osso, chifre, dente ou concha. As primeiras esculturas e manifestações
de arte parietal também só começam a surgir no registro arqueológico a
partir do Paleolítico Superior.
Em síntese, foi apenas a partir de 45 mil anos que sociedades caçado-
ras-coletoras, tais quais as conhecemos hoje, passaram a existir no pla-
neta. É a isso que Klein atribui o nome de “homens completamente
modernos”. Ou seja, seres humanos que repartem conosco todas as nos-
sas características atuais, sobretudo e principalmente, nossa capacidade

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de significação e de elaboração simbólica. E essas duas características,


relacionadas de modo inextricável, parecem ter surgido abruptamente,
out of the blue, já em todo seu esplendor. E é muito provável que foram
elas que supriram as bases mentais necessárias para a explosão criativa
ocorrida há cerca de 45 mil anos. Por isso todo o esforço do autor para
desqualificar qualquer tipo de manifestações similares nos períodos re-
latados nos capítulos 4, 5 e 6. Uma mísera ponta de osso, um mísero
adorno ou um simples sepultamento tratado ritualmente com mais de
45 mil anos pode por tudo a perder.
Mas o registro arqueológico de fato se comporta como pintado por
Klein? Na Europa, no Oriente Médio e no pedaço da Ásia Ocidental
que conhecemos bem a resposta é simples: sim, um sonoro e uníssono
sim! Mas, no sul da África, nossa velha amiga jiripoca paleoantropológica
berra outra vez. Que ironia: bem na região onde Klein vem militando
nas últimas duas décadas... Triste fim de Policarpo Quaresma! Ali, al-
guns sítios datados entre 100 e 80 mil anos atrás, sobretudo Katanda,
Blombos e Diepkloof, parecem mostrar sinais precoces daquilo que de-
veria ocorrer apenas a partir de 45 mil anos. No primeiro caso, foi en-
contrada meia dúzia de pontas de arpão feitas de osso, mas que Klein
tenta desqualificar, sugerindo-as como intrusivas vindas de níveis mais
recentes do sítio. Mas, mesmo para ele, Blombos e Diepkloof, sobretu-
do o primeiro, são difíceis de serem desqualificados. Em Blombos, fo-
ram encontrados bastões de ocre decorados geometricamente, contas
feitas de conchas perfuradas, bem como instrumentos feitos de osso,
em níveis claramente musterienses (ou, para usar a nomenclatura afri-
cana, claramente da Idade da Pedra Média). No segundo, encontraram
fragmentos de contas de ovo de avestruz em níveis arqueológicos que
sem dúvida precedem o Paleolítico Superior.
A indústria lítica em alguns sítios do sul da África também pode re-
presentar um espinho na garganta da Explosão Criativa do Paleolítico

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Superior. Não é incomum encontrar na região sítios com duas tradições


líticas locais, denominadas Still Bay e Howiesons’s Poort, com instru-
mentos, sobretudo pontas e semilunares, feitos sobre lâminas, apesar de
datadas da Idade da Pedra Média (Musteriense). Em alguns desses sí-
tios, entretanto, esses horizontes culturais se mostram truncados por ní-
veis claramente musterienses a eles sobrepostos, níveis musterienses es-
ses seguidos por níveis sem dúvida da Idade da Pedra Tardia (Paleolítico
Superior). Klein vê nesse truncamento evidências de que, qualquer
que seja a interpretação dada às ferramentas Still Bay e Howiesons’s Poort,
tudo parece indicar que essas tradições locais foram descontinuadas e
que não podem, portanto, ser vistas como ancestrais diretas do Paleo-
lítico Superior.
Um fenômeno muito importante, que impede uma visão mais clara
sobre uma possível evolução do Musteriense para o Paleolítico Superior
na África, em datas mais recuadas do que as encontradas na Europa e no
Oriente Médio, é a grande seca que se abateu naquele continente entre
70 e 10 mil anos atrás, com especial crueza entre 50 e 20 mil anos atrás.
Essa faixa temporal está claramente ausente nos sítios do norte e do sul
da África, mas não necessariamente no leste, onde, entretanto, nada se
conhece sobre esse período crítico. Muitos autores acreditam que o pró-
prio êxodo do Homo sapiens da África, por volta de 50 mil anos, pode
ter sido impulsionado exatamente pelas condições climáticas desfavorá-
veis que ali prevaleciam.
Em suma, a ideia de que houve no Paleolítico Superior uma explo-
são de criatividade alavancada por uma nova condição mental, intima-
mente relacionada à capacidade de atribuir significado abstrato às coisas
(nunca podemos nos esquecer da máxima interpretativista de que so-
mos verdadeiras esponjas de significado), parece funcionar bem até que
os vestígios arqueológicos sul-africanos entre 100 e 10 mil anos atrás
são escrutinizados. E é bem possível que essa discussão não seja resolvi-

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da a contento tão cedo, uma vez que ela passa necessariamente por uma
melhor compreensão do que aconteceu no período no leste da África.
Após uma longa discussão sobre o surgimento do Homo sapiens, Klein
termina o capítulo dando uma palhinha sobre a ocupação das partes
mais remotas do globo: Sibéria, Austrália e América. No que se refere a
essa última, é digno de nota (e eu mereço) a menção que faz a meu tra-
balho (junto com diversos associados) sobre a morfologia craniana dos
primeiros sul-americanos, em especial os de Lagoa Santa, e de como es-
ses estudos têm apontado para novas possibilidades a respeito do povo-
amento do Novo Mundo. Klein, muito diferentemente de seus colegas
norte-americanos, capta um detalhe fundamental no “Modelo dos Dois
Componentes Biológicos Principais”, por mim proposto no final dos
anos 1980 junto com Hector Pucciarelli, da Universidad Nacional de
La Plata: o fato de os primeiros americanos apresentarem uma morfo-
logia craniana muito similar à hoje encontrada entre africanos e austra-
lianos não significa, de forma alguma, que o modelo supõe migrações
transoceânicas para explicar tal similaridade. Como ele muito bem sa-
lienta, populações com morfologia similar à dos primeiros americanos,
assim como dos africanos e australianos atuais, estavam também pre-
sentes no nordeste da Ásia, de onde muito provavelmente se expandi-
ram em direção ao Novo Mundo.
No capítulo final (Capítulo 8), o autor apresenta uma sinopse das
principais discussões apresentadas nos anteriores. Sabiamente opta por
problematizá-las de maneira sistemática, em vez de concluí-las. Quan-
do o faz, ele se refugia no conservadorismo. Pelo menos assim concluí-
ram meus alunos. Dessa sinopse eu icei alguns gargalos que me parecem
mais limitantes. Vamos a eles:
1. No que se relaciona aos primeiros hominínios, identifiquei dois
gargalos, sem cuja solução ficaremos andando em círculos por um bom
tempo: o primeiro se refere à existência ou não de linhagens símias bí-

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pedes; a segunda, se A. garhi pode de fato ser colocado como ancestral


do gênero Homo.
2. No que se relaciona ao período inicial do gênero Homo, são os
seguintes os principais nós a serem desatados: quem seria o primeiro
representante do gênero, habilis ou rudolfensis? É necessário de fato
manter os fósseis desses hominínios em espécies separadas? O que deve
definir o gênero Homo, tamanho cerebral ou tamanho e proporções cor-
porais? O que fazer com os heidelbergensis chineses? E, last but not least,
houve uma ocupação temporária da Europa por volta de 1,2 milhão de
anos que deu em nada?
3. No Pleistoceno Médio, identifiquei pelo menos três grandes con-
trovérsias a serem resolvidas nos próximos anos: a primeira delas se re-
fere ao emprego ou não de Homo heidelbergensis para englobar África,
Ásia e Europa (em outras palavras, como distinguiríamos os heidelber-
gensis europeus, já claramente derivados em direção aos neandertais?); a
segunda se refere à gênese da morfologia craniana neandertal (seleção
natural ou deriva genética?); e a terceira, a como o Acheulense chegou
na Europa.
4. Para os períodos mais recentes, as questões mais candentes podem
ser sintetizadas da seguinte forma: a explosão criativa ocorrida no Pa-
leolítico Superior representou o último grande passo evolutivo ocorrido
até o momento em nossa linhagem? Se sim, o resto representa apenas
“meras” mudanças histórico-sociais? Por que o Olduvaiense (ou algo si-
milar) se manteve até tão tardiamente no Sudeste Asiático e na China? Se
de fato em Arcy-sur-cure, na França, os neandertais absorveram alguns
elementos da tecnologia lítica e óssea dos modernos, por que exemplos
de “aculturação” neandertal não são encontrados com mais frequência?
Klein termina seu livro propondo um critério universal de bom sen-
so no estudo da evolução humana: na paleoantropologia, quando se
encontra apenas uma ocorrência de um dado fenômeno, esta deve ser

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vista como acidental. Obviamente ele está se referindo a Blombos, mas


de qualquer forma é uma boa política.
Seguem-se 180 páginas de bibliografia!

Notas
1
Ver WHITE, T.D. et al. (2009), Ardipithecus ramidus and the paleobiology of early
hominids, Science, vol. 326:75-86.
2
Leia-se: caminhar com o tronco inclinado sobre quatro membros, com os mem-
bros anteriores apoiando-se no solo sobre os nós dos dedos das mãos.
3
Ma: milhões de anos.
4
Digo corajosamente tendo em vista que é mais fácil, hoje em dia, encontrar um
urso panda na Avenida Paulista, do que uma árvore hominínia completa na litera-
tura especializada.
5
O Ardi tinha até o dedão do pé divergente, como gorilas, chimpanzés e organtotangos.
6
Falo com propriedade, porque lá estive em 2002 e, entre outras coisas, pude teste-
munhar mais um crânio de 1,75 milhão de anos sendo removido do sedimento.
Foi um dos momentos mais emocionantes de minha carreira.
7
O Olduvaiense e o Acheulense são também conhecidos, na África, como Idade da
Pedra Antiga (Early Stone Age).
8
Lista ou relação de fósseis de uma espécie.
9
Pense numa tartaruga ninja.
10
Na África, o Musteriense é denominado Idade da Pedra Média, do inglês Middle
Stone Age.
11
Na África, o Paleolítico Superior é denominado Idade da Pedra Tardia (Late Stone
Age).
12
Sobre o assunto, ver o recente e excelente artigo de HARVATI, K. (2009), “Into
Eurásia: A geometric morphometric re-assessment of the Upper Cave (Zhoukoudian)
specimens”, Journal of Human Evolution, vol. 56:751-63. Disponível em: <http://
www.sciencedirect.com/science/journal/00472484/57>. Acesso em nov. 2011.

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Entrevista
A aculturação é um objeto legítimo
da Antropologia
Entrevista com Peter Gow

Marta Amoroso & Leandro Mahalem de Lima


Universidade de São Paulo

Esta entrevista foi realizada em São Paulo, em dezembro de 2009, por


Marta Amoroso e Leandro Mahalem de Lima, na ocasião em que o an-
tropólogo ministrava palestras na USP, a convite do PPGAS. Peter Gow
é professor do Departamento de Antropologia Social da Universidade
de St Andrews, Escócia, onde desenvolve pesquisas sobre mito, história,
parentesco e estética na Amazônia.
Em seu doutorado sobre os Piro do baixo rio Urubamba, orientado
por Joanna Overing, que resultou na tese publicada em 1991 sob o títu-
lo Of Mixed Blood: kinship and history in Peruvian Amazonian, Peter Gow
praticava pela primeira vez a fórmula que o consagrou no campo do
americanismo tropical: ali “subordinava história à cultura e a historio-
grafia à etnografia” (Viveiros de Castro, 1993).
Nesta entrevista, retoma o tema da aculturação, central nos seus pri-
meiros trabalhos, e a trajetória que o conceito delineia na teoria antropo-
lógica. Critica a apropriação culturalista norte-americana e da antro-
pologia brasileira do tema da aculturação – usado nestes contextos para
sinalizar processos de mudança e descaracterização cultural. Aludindo à
tradição da etnologia alemã, traz de volta o conceito formulado exata-
mente para servir às descrições das sociedades e culturas ameríndias e de
suas redes de troca. Sobre a metodologia para tratar das sociedades
A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

amazônicas em suas diferentes circunstâncias de contato, a ênfase recai na


adoção de um padrão etnográfico clássico, que dispõe a experiência social
e cultural dos povos da Amazônia em um diálogo pautado pela etnologia.
Nas palestras na USP, Peter Gow mostrou-se particularmente inte-
ressado em compreender a lógica dos nexos regionais que ligam povos
de língua piro do Ucayali-Urubamba, Manu, Piedras, Purus e Juruá, que
por sua vez estão conectados a um complexo sistema de troca de longa
distância e de grande profundidade temporal, que se liga à vasta área do
sudoeste da Amazônia e dos Andes peruanos do norte e do sul. Volta-se,
assim, para as condições de construção das fronteiras culturais e linguís-
ticas, o que chamou de “soleiras”. Lembra, por fim, as lições de sua
orientadora e, antes dela, as do “finado mestre, o eterno” Claude Lévi-
Strauss, ao se propor a analisar o que as pessoas dizem – como tão bem
faz a antropologia cultural, sem, entretanto, deixar de lado as relações
entre aqueles que estão falando e os que estão ouvindo, como faz o an-
tropólogo social.

RA: Nas suas primeiras palestras da década de 1980 na USP você já domi-
nava perfeitamente a língua. Como aprendeu português?

Na rua, em Londres, quando fazia doutorado na London School [of


Economics] e andava com a minha amiga e comadre Cecilia McCallum.
Cecilia tinha muitos amigos brasileiros e eles falavam português. Ficava
assistindo até que, pouco a pouco, aprendi o português deles. Havia
muitos brasileiros em Londres nos anos 1980, o português brasileiro
estava virando uma língua mundial. Os brasileiros nunca tinham vergo-
nha de falar um inglês horroroso de brasileiro, que muda muito rápido
para o português, então não era problema eu também falar um portu-
guês horroroso. É como os índios dizem: se você está perto das pessoas
que falam a língua, você vai aprender.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

Há pouco tempo, numa noite de insônia, estava escutando, meio


dormindo, meio acordado, na Rádio B.B.C. World, a notícia de que o
Congresso brasileiro tinha votado, contra os brancos, o processo da Ra-
posa Serra do Sol, e pensei: “Estou muito feliz”. Então ouço: “Vamos pas-
sar a palavra à advogada Ana Paula Souto-Maior”, e ela começou falando
aquele inglês dela: “I am very happy. We are very happy to be...” (imitan-
do, rindo). Porque Ana Paula foi grande amiga minha em Londres.
Quando a conheci, ela trabalhava em um bar, e fizemos amizade. Era
uma jovem brasileira viajando no mundo, conhecendo, limpando pra-
tos. Os brasileiros de classe média têm que ir lá pra Londres para apren-
der a lavar louça, arrumar cama e tudo isso. E pensei: “Bom, a vida é
boa, eu estou aqui na Escócia e a Ana Paula lá falando no inglês dela de
uma coisa bem-sucedida”. Tive imenso prazer com a vitória da demarca-
ção da TI Raposa Serra do Sol. Sei que foi uma luta barra pesada, mas,
ao final, foi bom o governo brasileiro tomar a decisão a favor dos índios.

RA: E a Amazônia peruana, como entrou na sua vida?

Quando adolescente, gostava muito de ler os livros sobre a América do


Sul; pegava qualquer livro que falava da América do Sul na biblioteca
pública de Edimburgo, que é incrível, e ficava lendo, lendo. Muitos anos
depois, cheguei à conclusão de que foram meus vizinhos que faziam
parte de uma família mais rica que a minha – eles sempre tinham brin-
quedos melhores que os nossos –, o dinheiro deles veio do negócio da
baleia cachalote no Peru, foi um grande negócio nos anos 1950. Deve
ser assim que nasceu meu interesse pela América do Sul.
Eu lia muito e tinha interesse pela Antropologia desde cedo. Com
15 anos, li em uma tradução de Tristes trópicos de Lévi- Strauss (1962a)
– o finado mestre, o eterno – que se levava muito tempo para aprender
Antropologia. Então pensei: “Bom, eu vou ser antropólogo”. Meus pais

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A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

não queriam de jeito nenhum, mas daí eu entrei para a Universidade de


Cambridge, o que para um escocês é muito estranho. Meu irmão já es-
tava lá. O meu colégio sempre falava: “Ah, você não vai entrar lá porque
você não é suficientemente inteligente. Os outros é que vão entrar”. Mas
eu entrei e, como isso era muito chique, meus pais não puderam mais
resistir. Eles acharam uma coisa boa. Eles eram muito boa gente, mas
achavam que antropólogo não. Eu era caçula, eles estavam cansados de
brigar com meus irmãos e minha irmã.

RA: Fale um pouco de Cambridge na época da sua graduação e de como


chegou à Joanna Overing.

Eu fiz graduação em Cambridge. Tinha lido aquele livro da Joanna, The


Piaroa (1975), que achei totalmente genial. Pensei então em fazer o
doutorado em Cambridge, mas eles me negaram a bolsa. Na época em
que me graduei, foi justo quando a Margaret Thatcher entrou no gover-
no, um momento muito difícil para a Antropologia, já que o Ministro
da Educação, Sir Keith Joseph1, tinha se indisposto com o professor Jack
Goody. Parece que o governo de Margareth Thatcher queria acabar com
a Antropologia. Jack Goody chegou a me falar: “Você quer ser antropólo-
go? Então tem que fazer seus estudos aqui na Grã-Bretanha”. E eu respon-
di “Não, eu não quero isso não. Eu quero estudar índio na Amazônia, que-
ro ir para longe, no mato”. E ele concluiu: “Olha, esse negócio acabou, só
quem vai fazer Antropologia na Grã-Bretanha pode entrar”. Naquele tem-
po de graduação, meu herói era o Stephen Hugh-Jones, uma pessoa in-
crível, que fez trabalho de campo na Amazônia. Era exatamente o que
eu queria fazer, já havia estado na Amazônia e pretendia voltar para lá.

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RA: Como se deu a aproximação do grupo de alunos de Edmund Leach com


as pesquisas de campo no Alto Rio Negro (AM)?

Eles não estavam todos em Cambridge: tinha o Peter L. Silverwood-


Cope2, tinha o Paul Henley3, tinha também Bernard Arcand4, que esta-
va no Canadá. Um fato muito importante quando eu estava na gradua-
ção foi Leach convidar os antropólogos ligados ao Harvard Central
Brazil Project, como David Maybury-Lewis, Terence Turner, Roberto
Da Matta, para passar uma longa temporada em Cambridge. E então
Leach formou essa turma de estudantes – como Stephen Hugh-Jones,
Christine Hugh-Jones5, Bernard Arcand, Peter L. Silverwood-Cope – e
os mandou para o Alto Rio Negro fazer trabalho de campo para ver se o
pensamento de Lévi-Strauss de fato dava certo.
Sobre Leach, tem o lado bom e tem o lado ruim. Ou, como fala o
Márcio Goldman, tem o lado ruim e tem o lado muito pior. O lado
bom foi o que me marcou, como uma tatuagem, o interesse de Leach
pelo trabalho do finado mestre. Leach achava que, teoricamente, o tra-
balho de Lévi-Strauss era muito interessante, mas, por outro lado, des-
confiava. Sendo ele um estudante de Bronislaw Malinowski, identifica-
va um problema na antropologia de Lévi-Strauss, que não tinha um
trabalho de campo no sentido malinowskiano.

RA: Quem foram seus professores em Cambridge?

A minha professora em Cambridge foi Caroline Humphrey6, que fez


seus estudos na Sibéria. Hoje tem esse oba-oba com a Sibéria, mas ela
foi uma das primeiras pessoas a fazer um trabalho na União Soviética, e
o fez durante a Guerra Fria, depois de ter estudado a graduação com
Stephen Hugh-Jones. Assim, ele foi para o trabalho de campo na Ama-
zônia e Caroline Humphrey foi trabalhar com os mongóis nômades

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A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

Buryat, habitantes das ilhotas. Eles dois não tinham vergonha do exo-
tismo na Antropologia, porque de fato tinham visto coisas incríveis.
Aquele filme do Stephen Hugh-Jones sobre os Barasana, com aqueles
missionários do Summer Institute of Linguistics ensinando coisas ridí-
culas, do tipo “cristianismo para os coitados dos Barasana”.
Também Caroline Humphrey fez um trabalho com os Buryat em
uma fazenda coletiva soviética, no meio dos negócios do “uncle Josef
Stalin”. Ela esteve com esses Buryat geniais que faziam parte da União
Soviética. Isto tudo para um jovem escocês foi um mundo. Porque, do
lado de cá os Estados Unidos, e do lado de lá a União Soviética. Eu não
tinha essa ideia: “Ah! Os antropólogos têm que ser mais sérios”. Porque
a situação política foi muito séria, e para mim a Antropologia foi
uma possibilidade de não ser muito sério, com os Barasana e os Buryat.
E o pensamento de Lévi-Strauss tem a ver com isso; em O pensamento
selvagem (1962b), é muito preciso o que ele fala sobre uma seriedade
como essas.

RA: Sobre a sua estadia no Baixo Urubamba, você aludia a um sentimento


de se sentir como um animal de estimação. O antropólogo Anthony Seeger
relata algo semelhante, se sentia inteiramente criança em seus primeiros
contatos com os Kisêdjê. Nos dois casos, trata-se, enfim, do pequeno animal
doméstico ou da criança em processo de humanização por certa cultura.

É um mistério o fato de eles terem me recebido. Dá muita vergonha


fazer trabalho de campo! Vocês jovens não sabem, graças. Só de velho
que se tem noção da vergonha que a gente passou, e chega-se também a
entender a vergonha que o povo que nos recebe tinha que aguentar.
O povo Piro e os outros povos indígenas de lá têm muito medo dos
brancos como eu, eles têm muito medo, porque eles dizem que os bran-
cos não sabem pensar bem, são raivosos, sovinas. Então, quando eu esta-

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va lá, eles tinham muito medo de mim. E tinham sua razão, porque não
se sabia de nada. Mas eles me consideraram – suponho, já que eles nun-
ca me falaram disso – um pouco interessante, porque fui muito novo,
tinha perdido o pai, estava viajando perdido no mundo, e eles pensa-
ram que eu poderia ensinar algumas coisas para eles do meu mundo.
Eu morava na casa desse casal, Don Maurício Fasabi e a que chamo
de Yeyê Clotilde Gordón, ou seja, a minha irmã mais velha. Eles me
receberam de um jeito muito bom, o que obviamente não entendi. Mas,
quando hoje penso, acho que tinham me visto quando eles tomavam
ayahuasca, eles eram xamãs. Isso é uma coisa muito mística, ou, na lin-
guagem da gente, eles haviam previsto a possibilidade de neste mundo
existir brancos bons que poderiam de fato ensinar e explicar as coisas
para eles. E, então, os velhos me receberam muito bem.

RA: E isso abriu a porta de entrada...

Mais ou menos. Os filhos mais novos do casal mais velho que me rece-
beu tinham muito medo de mim, e eu deles. Mas, na época, não tinha
consciência desse medo, só anos depois reconheci. E, então, foi muito
difícil, mas, pouco a pouco – isso é uma coisa muito Piro –, eles ficaram
olhando pra mim, olhando. A velha finada Yeyê Clotilde Gordón – que
passei anos achando que não falava espanhol, já que só falava piro comi-
go e eu não entendia nada no começo – falava e repetia em piro quando
eu não entendia. Muito tempo depois, descobri que ela falava perfeita-
mente o espanhol.

RA: Ela estava ensinando a língua.

Mais que isso: a língua e o que eles chamam de “nshinikanchi”, que tra-
duzo como uma informação, o dever de prestar atenção quando uma

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A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

pessoa está falando. Bem, pode ser que você não entenda, mas tem que
prestar atenção quando a pessoa está falando. E, então, você vai prestan-
do atenção, você vai aprendendo. Eu tinha um modelo de que, para
aprender a língua, tem que ir para o colégio. Não, eles me ensinaram
que o que você precisa fazer é prestar atenção quando as pessoas estão
falando, e assim você vai aprender. Como o português, que eu aprendi
na rua, prestando atenção quando os brasileiros estavam falando. As
primeiras palavras que eu aprendi em português com uma amiga minei-
ra eram: “Vamos fofocar”. Eu perguntei: “Fofocar? O que é fofocar?”.
Ela falou: “Falar mal dos outros. Vamos?”. É assim que a gente apren-
de, foi como aprendi piro, ainda que ache que não falo piro. Os Piro
acham muito esquisito quando eu falo a língua deles, acham muito es-
quisito um homem de fora falando sua língua. Mulher é outra coisa,
mulher pode.
No trabalho de campo, também aprendi o espanhol de lá, que é
muito diferente do espanhol que tinha estudado no colégio. Aprendi
piro, ashaninka, quéchua, amawaka, yaminawa e também português,
porque tudo estava lá. Tenho estudantes que fazem trabalho de campo
com os povos de língua pano e ficam totalmente surpresos porque en-
tendo muito da língua dos Kaxinawa e Yaminawa. Estive no Chaco re-
centemente com meu ex-aluno Rodrigo Villagra Carron7, que me levou
para conhecer o povo Sanapana e Angaité. Eles falam guarani, angaité e
enxet, e não dá pra entender nada. Mas, no Urubamba, quando as pes-
soas estão falando ashaninka, entendo um pouco, se prestar muita aten-
ção: “Ah, tá falando disso...”. Só ficando assim “calado e escutando”.
Aprendi isso em casa. Na Universidade de Cambridge. conheci aquela
mania dos ingleses de não ficar calado. Tem que ficar falando, falando,
em vez de escutar... (Será preconceito?)

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RA: Em Of Mixed Blood. há a proposta de abordagem da noção de mistura


que se desenvolve a partir da crítica à certa Antropologia da Aculturação.
Logo depois seu trabalho abandona o tema da mistura e você passa a se
apresentar como etnólogo dos Piro. Mais recentemente, nas suas palestras
deste ano, volta o interesse pela reflexão sobre conjuntos e fronteiras regionais.
Há ruptura nessas variações?

Eu agradeço à Universidade de Cambridge por ter me negado fazer dou-


torado lá. Porque naquela época eles eram “os donos do negócio”, como
falam os índios. Por outro lado, fazer trabalho de campo na Amazônia
não era muito popular na London School. No fim dos anos 1970, com
poucas exceções, como Stephen Hugh-Jones e Caroline Humphrey, to-
dos os antropólogos britânicos fizeram trabalho de campo nas ex-colô-
nias britânicas. Eles não precisavam aprender a língua, porque. como
britânicos, já falavam a língua local, a língua da colônia, que era o in-
glês. Maurice Bloch foi uma exceção a esse padrão, fez trabalho de cam-
po em Madagascar. A princípio achei genial, mas não tinha me dado
conta, obviamente, de que Madagascar foi uma ex-colônia francesa, e a
língua paterna do Maurice é o francês.
Interessante pensar que Stephen Hugh-Jones, Caroline Humphrey,
eu e minha turma, a gente começou a sair daquela história. Stephen,
por exemplo, tinha que aprender espanhol, como língua nacional da
Colômbia. A Caroline Humphrey tinha que estudar russo para entrar,
ou seja, você tinha que aprender uma língua para entrar em outra.
Então, eu fiz trabalho de campo no Urubamba, e a minha orientadora,
Joanna, inicialmente não gostava muito do meu trabalho, porque ela
achava, na época, que eu era marxista. Eu sou marxista hoje! Mas o que
queria dizer marxista naquela época era outra coisa, e ela não gostava
disso. Ela perguntava: “Por que você não escreve sobre xamanismo e tudo

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A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

isso?”. Eu respondia: “Não, isso é um modo de tornar os índios exóticos.


Eu vou falar de classe, quero falar de classe”. E então o Maurice Bloch
achou incrível, ele gostava disso. E uma coisa que o Maurice tinha, na
época, é que tem que se ser muito honesto no trabalho de campo, des-
crever o que tinha de fato experimentado.
O começo de Of Mixed Blood é um pouco como o de Placing the
Dead (1971), um livro incrível do Maurice e também muito honesto.
Maurice fez trabalho de campo nos anos 60, descreve a sua passagem lá
nas terras altas de Madagascar pelas aldeias Merina. Você acha aquilo
tudo moderno, mas, de fato, o que você vê é só o que é dado para se ver,
porque lá atrás existem as aldeias dos mortos. Enquanto o europeu con-
segue apenas enxergar a modernidade, atrás daquilo que se vê existem as
aldeias dos mortos. E os Merina não estão pensando na vida de hoje,
estão pensando na vida dos mortos. A casa dele é lá. Quando eles tiram
os corpos dos mortos e ficam dançando, é muito forte essa imagem das
mulheres brincando com o corpo do morto.
Então, o Of Mixed Blood parece muito sofisticado, mas não é, não.
Eu descrevi o que tinha visto, o que o povo tinha falado pra mim. E,
aquele negócio do “nosotros somos de sangre mesclado”, eles que me fala-
ram, eu não entendi o que eles diziam. Eu tinha aquele negócio de ra-
paz: “Ah! vou chamar esse povo pelo nome que eles usam”. E eles falam que
são nativos, gente nativa [em espanhol], povo nativo. O Of Mixed Blood
me dá um certo estranhamento. Fui muito politically correct ao dizer
que se chamavam por gente nativa, native people, e dez anos depois eles
deixaram de se chamar por native people (risos). Agora eles dizem pueblos
indígenas. Eu havia previsto que os nomes iam mudar. Isso toca na ques-
tão do nomear o que você está estudando.
Nunca mexi muito com teoria. Of Mixed Blood foi um pouco o modo
como um órfão de pai, como eu, encontrou um mundo que não estava
procurando. Todo mundo acha que é um livro sobre mestiçagem, cabo-

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clos, tudo isso. É, sim, mas de fato é muito naïf. Tem uma ingenuidade
que acho muito boa: repeti o que eles tinham me falado. Mas, quando
eu comecei a escrever o livro sobre mito (An Amazonian Myth and its
History, 2001), tinha esse problema, porque tinha que falar sobre os Piro.
Parece que são dois povos totalmente diferentes, mas são somente dois
lados da mesma coisa. Quando você fala da vida cotidiana, eles são de
sangue misturado, mas quando você fala do mito, eles são Piro. Porque
o mito foi o Piro que contou.
Agora estou terminando outro livro que é exatamente sobre acultu-
ração. Estou querendo resgatar a noção de aculturação para nós. Por-
que, se você verifica a história daquela palavra, os alemães a usavam para
explicar o porquê de todas as culturas amazônicas serem muito parecidas.
Todas têm macaxeira, mandioca, rede, canoa, tudo isso... Eles chamaram
isso de aculturação. Só depois, nos Estados Unidos, é que o conceito de
aculturação virou um apelido para “índio fodido”, e desde então essa
palavra ficou com uma conotação ruim, o nome de um objeto ilegítimo
da Antropologia. Mas eu quero resgatar essa palavra para dizer: “Não
é ilegítimo, não”. É uma coisa que é muito antiga e muito interessante.
O problema da aculturação não é o conceito em si, é o uso do conceito.

RA: O uso desse conceito por alguma escola?

Sim, gosto muito do trabalho de Margaret Mead, mas ela escreveu aquele
livro sobre os Omaha que, de fato, é totalmente nojento. É impressio-
nante que Margaret Mead, tão consciente sobre raça e gênero, possa ter
escrito um livro super-racista sobre uma comunidade indígena dos Es-
tados Unidos. Dá vergonha ler esse livro, The Changing Culture of an
Indian Tribe (1932). Se não me engano, tem pseudônimo e tudo o mais,
uma coisa horrível. Eu li, não entendi e achei totalmente horrível, mas
se você ler esse livro agora, no contexto do trabalho dela, a problemática

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A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

da Margaret Mead naquele livro é por que esse povo Omaha não está
virando americano.
Sempre achei muito esquisito que um país racista como os Estados
Unidos tenha a ideia de que índio tem que virar branco. Índio pode
fingir ser branco, mas índio parece índio. Índio que parece mais como
branco é mexicano. É impossível, num país racista como os Estados
Unidos, uma antropóloga se esforçar para fazer os Omaha virarem bran-
cos. Os Omaha podem até pensar como brancos, mas têm pele de ín-
dio; e nunca vão ser aceitos como brancos, sempre vão ser índios. Pode-
se imaginar os Estados Unidos cheio de índios? Lindo, não é? Eu gosto.
São os mexicanos que estão pouco a pouco retomando aquele país.
Vou falar uma coisa um pouco estranha: vou falar bem do George
W. Bush. Com todos os problemas que ele tinha, conseguia lidar muito
bem com o México: falava espanhol, usava aquele chapéu. A gente de
fora achava muito ofensivo aquele modo “texan” dele. Mas, se você pen-
sar de onde vem toda aquela relação com as terras, não é da Europa,
vem do norte do México, da cultura de Chihuahua. Quando George
W. Bush está fazendo toda aquela performance que os europeus acharam
muito ofensiva, ele estava na verdade fazendo show para os mexicanos.
Agora temos Barack Obama, que é muito melhor. Mas Bush tinha
aquele jeito que não era da elite de Harvard, Yale, esse tipo de pessoa.
Os europeus achavam que ele fingia não ser de elite para agradar os bran-
cos pobres, mas, na verdade, ele estava fazendo isso para agradar os me-
xicanos, que são poderosos, já que são muitos. E para um presidente
americano mostrar que fala espanhol! Francês, superchique; espanhol,
língua proibida.

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RA: No Brasil, os estudos de aculturação estão bastante ligados às noções de


subjugação e opressão, a um processo de mudanças imposto de fora. No artigo
sobre os (ex)-Cocama, você fala de uma “guerra onomástica endêmica” vivi-
da pelos povos amazônicos. Um caso interessante descrito ali, aliás, recorren-
te entre “grupos misturados”, é justamente o de uma família emergida do
grupo que adota um nome elevado, nega o parentesco compartilhado com os
demais e se coloca como patrão opressivo diante dos parentes. Como pensar
casos como esse? Como pensar a problemática da hierarquia emergindo do
seio da troca?

Bom, isso de fato eu acho muito difícil. Tem aquele artigo lindo do fi-
nado mestre chamado “Reciprocidade e hierarquia” (Lévi-Strauss, 1944),
sobre os Bororo, que gostaria de levar muito a sério. Não sei como lidar
com isso. Muitas pessoas criticaram o meu trabalho, dizendo que ig-
noro a questão do poder. Alguém disse que meu livro Of Mixed Blood
tem uma visão poliana de lá. Voltei para o texto – geralmente não leio
meus próprios textos –, mas voltei e lá tem a descrição de um velho,
Virgílio Gabino, onde ele falava: “Os patrões tratavam a gente muito mal,
eles pegavam com pau”. Ele falava que ser “índio” era muito forte, eles
não usavam essa palavra não: “No Peru, a palavra ‘índio’ é muito forte”.
Reli essas passagens e me perguntei: como as pessoas podem ler esse li-
vro cheio de coisas para chorar e achar que ele tem uma visão poliana,
que não haja preocupação com o poder? O livro está cheio de coisas
horríveis, só que minha experiência com eles não tinha que ver com
isso, eles tinham otimismo. E, para mim, isso é muito lindo e muito
estranho; eles não estavam lá como coitadinhos.

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RA: Mas queríamos que falasse um pouco mais sobre as hierarquias internas
entre “povos misturados”. A questão de famílias que emergem do grupo, mas
que se distanciam e adotam uma posição de patrão frente ao próprio grupo.

Ok! Eu conheci o Uirá [Felipe Garcia] no Rio de Janeiro quando ele


estava fazendo mestrado. Encontrou comigo na casa do Márcio [Gold-
man] e Tânia [Stolze Lima] e me falou que tinha lido o Of Mixed Blood.
Eu falei: “Ah, obrigado. Dá muito trabalho, coitado dos estudantes”. E ele
me disse que queria saber mais sobre o Pancho Vargas, o grande patrão
deles. Eu pensei: “Esse Uirá é um rapaz inteligente, vai direto ao assunto”.
Porque, de fato, os Piro também acham aquele cara muito interessante;
até agora eles não entendem bem quem foi ele. Mas agora eu tenho uma
teoria: o que esse branco estava fazendo com eles no fim do mundo?
Tenho um ótimo aluno chamado Lukasz [Krokoszynski], que é po-
lonês, e ele está traduzindo um livro de um autor polonês que se encon-
trou com Pancho Vargas, onde tem uma descrição dele. Só que não tem
foto, Pancho Vargas se recusava a ser fotografado. Lucas me disse que
pode haver um filme na França, feito para os poloneses. Mas parece que
este filme sumiu. Estamos à procura desse filme. Eu pagaria muito di-
nheiro para ver uma foto de Pancho Vargas, porque não existe e eu me
pergunto por quê.
O arquivo diz que ele era espanhol, Francisco Vargas. Ele foi esperto,
roubou toda a herança dos filhos de Carlos Fermín Fitzcarrald. Tem uma
história lindíssima dos filhos de Carlos voltando de Paris para pegar o
dinheiro, mas Vargas tinha roubado tudo. O arquivo fala que ele era
espanhol, mas os Piro me disseram que não, que era Cocama. E acho
que é por isso que nunca quis ser fotografado.
O arquivo fala dele como um “hombre misterioso”. Por que é que se
negou a ser fotografado? Porque ele sabia que não era branco e que não
ia parecer com branco. Ele era muito astuto, sabia que ia perder no jogo

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racial. No jogo dos Piro ele não era branco, era muito branco, porque,
quando ele ficava com raiva, batia nas pessoas, sovinava coisas só pra
ele. Ele entendia muito bem o negócio dos Piro.
Eu me pergunto por que é que ele entendia tão bem as coisas dos
Piro. Porque ele pensava como eles! Um branco, eu estou há quase trin-
ta anos pensando as coisas dos Piro e entendo muito pouco, mas o
Pancho Vargas parece que entendeu muito, justamente porque ele era
índio mesmo. Então aquela relação patrão/peão, “patron/peon”, pode
surgir dentro da sociedade indígena. Está lá, imanente, não precisa de
uma Roma. Roma é muito importante, mas os índios também têm
Roma dentro de si.

RA: O contraste com Roma tem rendido muito para você pensar, falar,
escrever nesse momento. E o chamado Império do continente sul-americano,
Cuzco?

Anos atrás, eu estava viajando pela Escócia com minha amiga canaden-
se Patty Peach e a gente chegou na Inglaterra. Passamos pelo Muro de
Adriano, que eu nunca tinha visto. Era um dia de chuva e vento. Subi
aquele muro de quase dois mil anos com o seguinte pensamento: “Eu
vou olhar pro norte! Vou olhar pra minha terra, dos meus antepassados! Vou
ficar orgulhoso olhando para lá!”. Subi, olhei para lá, mas o lado norte e o
lado sul do muro são iguais. Fiquei com raiva: “Os romanos achavam que
os meus antepassados eram selvagens”. Eu estava com uma consciência tipo
“Braveheart”; e a consciência dos escoceses tem muito mais a ver com
Trainspotting, filme que é um retrato incrível da Escócia, é uma inspira-
ção. Como um escocês pode fazer um retrato tão lindo de como é ser
escocês. Pois, naquele dia, diante do Muro de Adriano, em vez de pen-
sar os meus antepassados como valentes, eu pensei o pensamento que os
romanos tinham da gente, pensei a partir do lado de lá, isto é, de Roma.

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A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

O finado mestre nos ensinou que temos de ter muito cuidado com as
ferramentas que vamos usar. É muito melhor usar as ferramentas que
ficam lá, do lado de fora, do que usar as ferramentas de Roma. Rapida-
mente você se perde usando esse tipo de ferramenta.
A gente sempre pensou Cuzco, o Império Inca, como uma versão de
Roma. No Império Romano, o grande negócio eram as fronteiras. O
que quer dizer o Muro de Adriano? Todos dizem que era para proteger
o Império dos selvagens de fora, que queriam entrar, roubar, estuprar
mulheres. Aqueles selvagens lá de fora do muro são os meus antepassa-
dos, os escoceses, e sou muito orgulhoso deles. Mas os muros que os
romanos fizeram eram cheios de portas. O Muro de Adriano não era
como a grande Muralha da China, que não tinha portas e servia para
fechar o lado de dentro contra os de fora.
Os muros romanos eram cheios de portas para controlar o mercado
e o comércio: o lado de fora pagava imposto para o lado de dentro. Já o
Estado Inca não tinha fronteiras, era um mundo inteiro. O que eles não
tinham era controle efetivo, e onde não havia esse controle não se
construíam muros. Simplesmente ignoravam. Ou os oficiais do Impé-
rio Inca mentiam para o Inca e diziam que já tinham conquistado a
Amazônia: “A Amazônia a gente já conquistou, estão mandando pena de
arara”. Só que eles tinham que comprar dos antepassados dos Piro.
Obviamente, é muito importante a ideia do igualitarismo presente
do trabalho de Joanna Overing sobre os Piaroa, e os Piaroa e os Piro são
superigualitários. Mas lá perto tem outro tipo de projeto, tem um Cuzco.
Entretanto, Cuzco não pode ser pensado como se fosse Roma. Roma é
outra coisa. Cuzco não coloca os problemas que Roma coloca.

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RA: Cuzco, o Império Inca, não tinha fronteiras, mas tinha caminhos muito
extensos. Talvez seja interessante destacar não as fronteiras, mas os caminhos
que ligam.

Sim. Este ano fui para Oaxaca, no México, com Sylvia Caiuby e Regina
Müller. Visitamos o Monte Albán, um sítio muito velho, cidade antiga.
Em Oaxaca, dizem que foi a primeira cidade das Américas, o que deve
ser coisa de “oaxaquenho”. Eles dizem: “A gente não é muito grande, mas
é muito antigo”. E perguntei para a Sylvia: “O que é isso? Como se vai dos
Bororo para isso?”.
Uma aldeia bororo é cheia de coisas super interessantes, mas feitas de
materiais muito vagabundos. Materialmente vão sumir em alguns me-
ses. E como ir dessas aldeias para o Monte Albán que dura até agora?
Eu acho tem a ver com a pedra, não pedra à disposição, mas mexer com
pedra. Quem mexe com pedra já está mexendo com o futuro.
Certa vez eu estava em uma aldeia piro chamada Miaría. É uma al-
deia interessante, porque é a única aldeia que eu conheço que costuma
receber turistas. Um cara genial estava me dando um tour. E tinha ali
um muro vagabundo, que estava se desfazendo na chuva, e perguntei:
“O que é esse muro?”. Ele respondeu: “Esse muro é um muro de argila, é da
escola antiga. Hoje a gente faz as escolas de cimento, mas essa foi feita com
barro”. E ele continuou: “Quando os turistas chegam aqui, a gente fala
que isso são ruínas incaicas e eles acreditam”. É mentira de Piro, mas eu
acho que ele tinha um pouco de razão, porque os Piro acham muito
esquisito as casas de pedra dos Incas.
Temos que repensar Cuzo a partir disso: o que é a casa de pedra?
Meu amigo me ensinou sobre a sociedade andina, que o teto da casa é
afinidade. É o genro que faz o teto. Então, se você pensa isso, a casa
andina é cheia de relações sociais.

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A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

RA: Sobre os rios da Amazônia, quais as imagens que o Purus, o Madre de


Dios apresentam? Eles têm personalidade?

Sim, eles têm. A primeira noite em que eu estava no Urubamba, tinha


um cara que era motosserrista que me falou: “Esse rio aqui é manso, o
Urubamba. Aquele Tambo lá é muito ’diablo’”. Então, quando eles falam,
parece que os rios têm personalidade. E de fato o têm. É o que no regis-
tro erudito chamamos de regime do rio. O Tambo cresce muito rápido
quando está chovendo nos Andes, na cabeceira do Tambo. Bem na esta-
ção seca, que eles chamam de verão, de noite, quando tudo está tran-
quilo, você escuta um som muito estranho, que é o som do cascalho,
aquelas pedras de dentro do rio que estão descendo de lá de cima dos
Andes. Aquele cascalho mexe e faz um som que só de noite você escuta.
Mas bem na seca. No inverno, o rio já cheio, tem esse outro som, que é
do rio comendo a terra, as árvores enormes caindo no rio. Então, você
sabe que o rio é muita coisa.
Quando os Piro levantam de manhã, os homens dizem: “Vou ver o
rio”. Esse rio parece persona. Só que eles não falam. Parece que rio, para
o povo Piro, é tão importante que não é assunto. Eles falam muito do
rio, mas não é espírito, nada disso – têm espírito lá dentro. Mas o rio
em si é persona. Nunca tinha lido o livro O rio comanda a vida (1961
[1952], de Leandro Tocantins. É um título lindo. É assim na Amazô-
nia. E tem aquele coronel inglês, [Percy] Fawcett, que escreveu que
todos os rios são iguais... É mentira! Todos são totalmente diferentes!
O Madre de Dios eu conheço pouco, quero ir lá para o Manu. O Madre
de Dios é totalmente diferente do Urubamba, e as pessoas ficam co-
mentando: “Lá no Urubamba não tem castanha, não tem aquele macaco,
aqui tem”. Para morar na Amazônia tem que prestar muita atenção em
coisas que a gente não presta muita atenção: a gente vê floresta, eles não

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veem floresta; eles veem árvores, eles veem que tipo de peixe que tem
naquele rio. Gosto muito daquilo: “Como é o nome desse rio?”. E eles:
“Esse rio não tem nome, não!”.
É algo que estou querendo fazer agora com a ideia de conjunto do
finado mestre, estou superconsciente que tenho que escrever sobre lu-
gares. O Purus é assim, o Urubamba é assim. Porque vira para outra
pessoa, Urubamba vira A, Purus vira B, em contraste. O Purus é muito
particular, é um inferno de carapanã, pium, mutuca. O Urubamba não
é, eles sabem disso. “Ah, você foi pro Purus? É um inferno de pium!”. Eles
dizem que o Napo é o pior de todos. Quando visitei os Kaxinawa e os
Yaminawa. que moram lá no Alto Purus, eles não poderiam morar lá
sem roupa. No passado, eles tinham um pouco de roupa. Andar nu na
beira do Purus ia ser impossível.

RA: Sobre as diferentes concepções de “homem”, você mostra que as


populações do Baixo Urubamba dizem viver entre os selvagens brutos e os
brancos desumanizados, estes que vivem entre as máquinas.

Um dia eu gostaria de escrever um livro de viagem, de uma que fiz e que


começou como uma viagem de um antropólogo escocês branco, e rapi-
damente virou uma viagem piro. O meu finado compadre Pablo me
levou de aldeia para aldeia, e dizia para as mulheres que eu estava lá para
gravar as canções delas. Então elas cantavam canções de amor, que são
fortes, mas não cantavam para mim, cantavam para o gravador. Não
entendi porque o gravador, gravador é máquina... Anos depois, quando
voltei, elas me perguntaram: “Você tem as canções? Você tocou as canções
da gente para sua família?”. Disse: “Toquei”, mas era mentira, porque
nunca tinha tocado as canções para minha mãe, nem para minha irmã,
nem para meus irmãos. Então cheguei a entender que, de fato, as mu-

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A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

lheres Piro estavam cantando para o gravador. O que é o gravador para


elas? O gravador eram os meus parentes. Estava lá sozinho, mas tinha
aquela máquina e lá, dentro dessa máquina, tinha os meus parentes de
muito longe. Para eles, um homem só é um homem muito perigoso,
mas um homem que tem um gravador é um homem que tem parentes.
Elas estavam cantando para minha terra.

RA: Você comentava sobre o modo como se vê a história da Antropologia a


partir das experiências diferenciadas de cidades com São Paulo e Chicago.

Isto se você pensa na trajetória das pessoas. Recentemente, eu preparava


um curso para a graduação sobre a história da antropologia britânica.
Como fazer? Resolvi dar o curso do ponto de vista da juventude dos
autores. O que é que James Frazer e Émile Durkheim têm em comum
com aquela rapaziada de 18 anos? O fato de que eles foram jovens. E o
jovem James Frazer veio para São Paulo e depois foi para Chicago.
Também Radcliffe-Brown. E depois Lévi-Strauss. E eu (só que não fui
para Chicago). O que eram essas cidades, comparadas com Londres,
Paris, Berlim, Los Angeles, Nova Iorque? Elas eram muito periféricas na
história da Antropologia. Mas dá pra entender que as duas cidades são
quase iguais, são de uma burguesia cheia de dinheiro, mas consideradas
muito provincianas. Chicago tinha Nova Iorque rindo deles; os paulis-
tas têm os cariocas rindo deles. Mas eles tinham dinheiro e pagaram
para trazer as pessoas. Outra coisa acontece com Berkeley. Gostei mui-
to de lá. O lugar é muito lindo, e o que eles pensam é que alguém tem
que escrever um livro sobre a antropologia de Berkeley: Robert Lowie,
Carlos Castañeda...

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RA: E Wade Davis ...

Aquele Carlos Castañeda é figura muito interessante. Nasceu em Caja-


marca, no Peru, família da mãe de Castañeda era aparentada com Julio
Araña, do Putumayo, eram da mesma cidadezinha. A antropologia de
Berkeley não aconteceu porque Chicago aconteceu, aquela antropolo-
gia de Chicago em escala industrial. Se você pensa nisso, tem aquele
espírito protestante em Chicago. Quem é famoso em Chicago? Marshall
Sahlins. É razoavelmente famoso. Mas você pensa o outro lado, em
Berkeley. Quem é famoso em Berkeley? Carlos Castañeda. E os fãs de
Castañeda são muito mais numerosos do que os do genial Sahlins. En-
tão Berkeley ganha, Berkeley está no mundo.

Notas
1
Ministro de Estado da Educação e Ciência por três mandatos de Primeiros-Minis-
tros, orientou a reforma conservadora do ensino universitário durante a gestão de
Margareth Thatcher e é considerado o pai do “thatcherismo”.
2
Peter Lachlan Silverwood-Cope (1945-1989), aluno de E. Leach, que teve publi-
cado em 1990 seu livro Os Makú: povo caçador do noroeste da Amazônia, pela Edi-
tora da Universidade de Brasília.
3
Paul Henley é professor de Antropologia Visual em Manchester.
4
Bernard Arcand (1945-2009), antropólogo franco-canadense que foi professor do
Departamento de Antropologia da Université Laval, em Quebec, Canadá, e fez
seu doutorado em Manchester, em 1972.
5
O casal Stephen e Christine Hugh-Jones fizeram trabalho de campo, nos anos 1970,
entre os Barasana do Alto Rio Negro (AM), sob supervisão de E. Leach.
6
Caroline Humphrey é professora aposentada do King´s College, Cambridge, espe-
cialista em Antropologia Social da Ásia.

- 537 -
A ACULTURAÇÃO É UM OBJETO LEGÍTIMO DA ANTROPOLOGIA

7
Rodrigo Villagra Carron, autor da tese de doutorado orientada por P. Gow intitu-
lada: The Two Shamans And The Owner Of The Cattle: Alterity, Storytelling And
Shamanism Amongst The Angaité Of The Paraguayan Chaco, University of St.
Andrews, 2010.

Bibliografia
BLOCH, Maurice
1971 Placing the Dead: tombs, ancestral villages and kinship organization in
Madagascar, London, Berkeley Square House; New York, Seminar Press.

CARRON, Rodrigo Villagra


2010 The Two Shamans And The Owner Of The Cattle: Alterity, Storytelling And
Shamanism Amongst The Angaité Of The Paraguayan Chaco, tese, University of
St. Andrews.

GOW, Peter
1991 Of Mixed Blood: kinship and history in Peruvian Amazonian, Oxford [England],
Clarendon Press; New York, Oxford University Press
2001 An Amazonian Myth and its History, Oxford, Oxford University Press.

LÉVI- STRAUSS, Claude


1962a Tristes tropiques, Paris, Union Générale d’Éditions. (Edição brasileira: Tristes
trópicos, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.)
1962b La pensée sauvage, Paris, Plon. (Edição brasileira: O pensamento selvagem, São
Paulo, Nacional/Edusp, 1970.)
1944 “Reciprocity and hierarchy”, American Anthropologist, vol. 46: 266-8.

MEAD, Margaret
1932 The Changing Culture of an Indian Tribe, New York, Columbia University Press.

OVERING, Joanna
1975 The Piaroa: a People of the Orinoco Basin: A Study in Kinship and Marriage,
Oxford, Clarendon Press, 236 pp.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, S ÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.

SILVERWOOD-COPE, Peter L.
1990 Os Maku: povo caçador do noroeste da Amazônia, Brasília, Edit. da Universidade
de Brasília.

TOCANTINS, Leandro
1961[1952] O rio comanda a vida, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2.ed.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo


1993 Resenha de “Of mixed blood: kinship and history in Peruvian Amazonia”, Man,
vol. 28 (1): 182-3.

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DA MATTA, Roberto
1976 Um mundo dividido: a estrutura social dos índios apinayé. Petrópolis, Vozes.

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cação, título do texto entre aspas, in sobrenome (em caixa alta), nome do organizador
(org.), título do livro em itálico, local, editora, página inicial-página final. Ex.:
VIDAL, Lux
1992 Pintura corporal e arte gráfica entre os Kaiapó-Xicrin do Cateté». In VIDAL,
L. (org.), Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo, Studio
Nobel/Fapesp/Edusp, pp. 143-89.

c) no caso de artigo: sobrenome (em caixa alta), nome do autor; ano de publicação,
título do artigo entre aspas, título do periódico em itálico, local, número do periódico:
página inicial-página final. Ex.:
MARCUS, George
1991 «Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobre
a modernidade, no final do século XX a nível mundial». Revista de Antropo-
logia, São Paulo, vol. 34: 197-221.

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2001 Muitas mais coisas: telenovela, consumo e gênero. Campinas, tese, UNICAMP,
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