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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMCS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanza a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. EstevSo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO

70
O U T U B R O

19 6 3
ÍNDICE

i. filosofía e religiáo
pág.
1) "Dizem que os orientáis milito cultivam os proverbios,
formulando-os com notável sabedoria e graca.
Quisera saber algo mais a respeito" 351

II. DOGMÁTICA

2) "Há quem diga : 'Nada peco a Deus na oracdo ; seria


inútil. Deus já sabe aquüo de que preciso'.
Outros replicam: 'Puco a Deus, mas nao peco bens materiais.
Assim a minha oragáo é muito pura'.
Que pensar a propósito dessas atitudes ?" 360

S) "Atuahnente muitos se baseiam no direito, até no dever,


de praticar a 'correcáo fraterna' para criticar as autoridades da
Igreja.
Em que consiste essa 'correcáo fraterna' ?"' SC7

U) "Como e até que ponto se podem justificar críticas dos


católicos aos atos das autoridades eclesiásticas ?
As leis e normas prátieas ditadas pela hierarquia seráo sem-
pre isentas de erro ou inf olivéis i" ■./... 875

UL MORAL

5) "As pessoas que nao querem adotar métodos anticon-


cepcionistas para limitar a prole, dizem que nao é lícito agir
únicamente por causa do gozo.
Entao o prazer nao será motivo digno de justificar urna acao
humana ?" ■ S85

IV. DIBEITO CANÓNICO

C) "Como julgar o caso do ex-Presidente da República Ar


gentina Juan Perón, o qual, tendo terminado o seu govérno com
perseguigño a Igreja, foi absolvido da excomunháo no inicio de
1963 ?" S89

COM APROVAgAO ECLESIÁSTICA


I «PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano VI — N? 70 — Outubro de 1963

I. FILOSOFÍA E RELIGIAO

OUVINTE (Rio de Janeiro) :

1) «Dizem que os orientáis muito cultivam os proverbios,


formulando-os com notável sabedoria e grasa.
Quisera saber algo mais a respeito».

Está profundamente arraigado na psicología humana o


atrativo pelas coisas sensiveis ou pelas imagens ; sao elas que,
em primeiro lugar na aquisigáo da verdade, impressionam a
mente, comunicando-lhe um conhecimento inicial da realidade.
Refletindo sobre essas imagens, a inteligencia chega paulati
namente a nogóes abstraías, como, por exemplo, á do Belo em
si, á da Justiga, á da Ordém, etc. A inteligencia, porém, vé-se
constantemente obrigada a seguir o roteiro que passa das coi
sas visiveis as invisíveis.
É neste fato que se acha baseado o uso de proverbios na
linguagem cotidiana. — Estes vém a ser sentengas breves, &s
vézes ritmadas, que, geralmente envolvendo urna comparagáo
ou urna imagem, ilustram e transmitem verdades de índole es
peculativa ou moral. É táo espontáneo éste recurso que o pa
trimonio de cultura de cada povo tem suas sentengas prover
biáis, sugeridas pelo ambiente geográfico e histórico em que o
respectivo povo se originou e viveu seus primeiros tempos. A
própria Biblia Sagrada, em mais de um de seus escritos, apre-
senta colegóes de proverbios, que fornecem ensinamentos claros
e graciosos.
Os proverbios orientáis apresentam particular interésse,
pois oferecem notável riqueza de imagens. Embora suponham
ambientes de vida bem diversos dos nossos, sao portadores de
urna sabedoria muito nossa, porque é simplesmento a sabe
doria do homem como tal, desde que ele use de bom senso.
Tal sabedoria faz eco vivo as proposigóes do Cristianismo, pois
éste em última análise supóe a natureza humana e a aper-
feigoa.
Nos parágrafos abaixo, voltaremos nossa atengáo para um
ou outro dos proverbios da China e da Arabia, procurando por
em evidencia a mensagem que cada qual comunica.

— 351 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 1

1. Proverbios chineses

1) «O sabio pode percorrer o mundo mteiro, mas nao


muda de mansao».

A frase, vasada em estilo de contraste («percorrer o


mundo» x «nao mudar de mansáo»), é típicamente proverbial.
Estimula a reflexáo justamente pelo que tem de aparentemente
paradoxal, ou seja, pelo emprégo simultáneo do «Sim» e do
«Nao».
O sabio focalizado no adagio nao é necessáriamente o
homem erudito, mas o varáo reto, de conduta equilibrada, que
em tudo procura dar predominio á razáo sobre os sentidos, á
vontade consciente e deliberada sobre os instintos e as paixóes.
Tal homem — supóe o adagio — vive mais dentro de si
do que fora; é no seu íntimo que ele encontra a fonte de seu
revigoramento. A riqueza de sua vida, ele a traz no seu inte
rior, independentemente do ambiente em que se ache. Por isto,
diz o proverbio, pode mudar de casa, de regiáo ou de conti
nente sem que perca os seus «penates» ou a mansáo na qual
em verdade ele se abastece e restaura para as tarefas externas.

Tal proverbio chinés lembra um episodio da historia da filosofía


grega. No limiar da era crista, espalhou-se pela Grecia um tipo de pre-
gadores de sabedoria popular, que desprezavam as leis e convenceres
sociais, e apregoavam a vida conforme a natureza: eram os cínicos.
Já que as suas atitudes nao podiam deixar de irritar muitos dos seus
ouvintes (haja vista Diógenes no seu tonel), eram freqüentemente
enxotados para íora de urna cidade. Entáo, ao emigrar desnudos ou
despojados de tudo, exclamavam (nao sem ironía) : «Tudo que é meu,
eu o carrego comigo! — Omnia mea mecum porto!». Queriam com
isto dizer que, o seu verdadeiro tesouro, os seus conceitos filosóficos,
éles os levavam apesar da sua aparente miseria. Avaliavam a sua
riqueza nao pelo que tinham fora de si, mas por aquilo que lhes estava
dentro. ~

Esla mesma atitude tambem c crista, desde que enqua-


drada dentro dos principios da Revelagáo. É mesmo, por exce-
lCncia, própria do cristáo. Sim ; éste, mais do que qualquer dos
seus semelhantes, possui algo de paradoxal: é, no tempo, um
peregrino da eternidade; dentro do involucro da sua carne
mortal traz um germen de imortalidade, que é a grasa santi
ficante, sementé da gloria eterna. Com pleno direito, portante,
pode dizer que o seu tesouro e a sua mansáo estao em seu
íntimo ; na sua alma, a vida eterna já comegou. Por isto pode
mudar de ambientes e levar vida aparentemente muito agi
tada ; na verdade, nao deixa de ser estável e uno, porque a

— 352 —
PROVERBIOS ORIENTÁIS

variedade das coisas de fora nao afeta a sua realidade interior


(que é a uniáo com Deus, o antegózo da visáo beatífica).

2) «A lama oculta o rubí, mas nao o pode sujar».

A pedra preciosa (rubi) aqui mencionada é figura do sa


bio, do sabio de que tratavam as consideracóes precedentes. O
proverbio diz mais urna vez que pode haver (e geralmente há)
um contraste entre o exterior e o interior do sabio : por fora
pode ser cercado de miseria moral ou material; o seu corpo
pode mesmo ser afetado por achaques diversos ; julgaráo en-.
táo muitos que tal homem é mísero e desprezivel. Na reali
dade, porém, o seu interior permanece rico e inabalável, por
que adere sempre aos verdadeiros bens, que sao os do espirito,
bens que as vicissitudes da vida jamáis lhe poderáo arrebatar,
desde que ele seja cioso de os conservar.
Tais observagóes, como se compreende, aplicam-se, por
excelencia, ao cristáo. É o que a vida do Apostólo Sao Paulo
muito bem ilustra.
S. Paulo foi, sim, um dos discípulos de Cristo que mais
intensamente viveram o contraste entre as tribulacóes extrín
secas (sob as quais parecía sempre prestes a desfalecer) e a
realidade do seu íntimo (a qual permanecía fixa em Deus).
Ele mesmo o declarava nos seguintes termos:

«Trazemos um tesouro em vasos de argila...


De todas as partes somos atribulados, mas nao chegamos a ser
esmagados; vemo-nos em extrema diíiculdade, mas nao somos vencidos
pelo desespero; somos perseguidos, mas nao abandonados; somos pros-
trados, mas nao chegamos a ser aniquilados. Trazemos sempre conosco,
em nosso corpo, a morte de Jesús, para que também a vida de Jesús
se manifesté em nosso corpo» (2 Cor 4, 7-10).

Note-se neste texto o binomio continuamente repetido : «Sim» e


«Nao». O cristáo nüo é a criatura miserável que ele parece ser.

O segrédo do otimismo de Paulo era o amor a Cristo, que


ele nutria incessantemente em seu íntimo e que nenhuma cria
tura lhe podia fazer perder : ■

«Se Deus é Dor nos, quem será contra nos?... .


Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulacao? A angustia?
A perseguigao? A fome? A nudez? O perigo? A espada?...
Tenho certeza de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, ñera
es principados,^em as coisas presentes, nem as futuras, nem os pode
res nem as alturas, nem as profundidades, nem qualquer outra cria-
tura n<£ poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesús
nosso Senhor» (Rom 8, 31-39).

— 353 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 1

3) «A porta mais bem fechada é aquela que se pode dei-


xar sempre aberta».

Éste proverbio quer dizer que o mais eficaz fator de tran-


qüilidade e paz nao sao as armas nem os recursos violentos, mas
a retidáo e a lealdade. Quem é honesto e virtuoso, pode viver
as claras, sem ter que recear vingangas ou represalias.
Em outros termos, o adagio ainda significa que o melhor
meio de nos impormos no ambiente em que vivemos, obtendo
respeito e simpatía por parte do próximo, nao é o emprégo de
violencia tiranizante nem urna qualquer atividade mesquinha
contra os nossos semelhantes, mas a conduta de vida discipli
nada, fiel aos respectivos deveres, embora silenciosa e modesta.
Quem assim vive, nao pode deixar de ir granjeando aos poucos
acato e estima, ainda que a principio seja mal entendido ou
mesmo desprezado. A linguagem da virtude é, de todas, a mais
eloqüente.
Em particular, estas normas se aplicam as pessoas que
exercem cargos de autoridade: procuraráo antes ser amadas
do que temidas.

4) «Permanecer manso ou equánime é tornar-se inven-


cível».

Éste proverbio ainda faz ressoar a ligáo do anterior. A


mansidáo e a equanimidade sao aspectos da virtude, que nao
pode deixar cedo ou tarde de se impor aos olhos dos homens.
Proceder sempre com isengáo de paixóes ou de maneira
equánime é o melhor penhor de éxito na vida.
No plano cristáo, Sao Paulo lembra esta mesma verdade,
ao dizer:
«Nao te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o
bem» (Rom 12,21).
Quem paga o mal com o mal, acomodando-se ao procedi-
mento do adversario («pagando na mesma moeda»), conta-
mina-se, rebaixa-se e certamente nao remedia á situagáo em
que se acha ; parece obter Vitoria, mas essa vitória na verdade
será urna derrota. Ao contrario, quem coloca o bem onde há
o mal, permanece em nivel elevado e nao pode deixar de atrair
o reconhecimento dos homens sinceros. O varáo equánime abre
o caminho para a solugáo do conflito em que esteja envolvido.
Tais normas nao implicam absolutamente em moleza de
ánimo nem sao incompatíveis com a aplicagáo de castigos ou
sangóes. Deve-se reconhecer que o recurso á justiga e á puni-
gáo é por vézes o único meio de preservar valores sem os

— 354 —
PROVERBIOS ORIENTÁIS

quais o bem comum sofreria grave daño. Em tais casos tam-


bém o homem equánime apela para as sangóes.

5) «Urna gera$áo constrói as estradas pelas quais outra


geracao há de passar».

Dupla mensagem decorre desta sentenga:

aj De um lado, é recordada a solidariedade que une os


homens entre si, através tanto do tenipo como do espago. Ñosso
modo de viver e nossas atividades tém significado nao sómente
para cada um de nos em particular, mas para os que nos Káo
de suceder na sodedade; constituem um patrimonio, positivo
ou negativo, que há de beneficiar ou prejudicar os homens vin-
douros. Cada urna de nossas agóes, por mais oculta que paregá,
é carregada de responsabilidade e alcance que nem senipre
avaliamos devidamente.
Reciprocamente, os bens e males que hoje nos afetam sSo,
em grau maior ou menor, heranga do que fizeram geragóes an
teriores. É particularmente importante considerar isto, quando
se trata de reconhecer os valores de que dispomos ; muitas
vézes nao sao frutos de nossas conquistas, mas, sim, do trabalho
dos antepassados, a quem por conseguinte os havemos de atri
buir com sinceridade e gratidáo.

b) De outro lado, o mesmo proverbio parece fázer eco


a urna verificagáo nao rara nos ensinamentos dos aritigós sa
bios : o homem é muitas vézes fadado a nao ver nesta vida o
resultado de seus esforgos. Aceite esta condigáo, e nao deixe
de trabalhar com ánimo. Tal condicáo lhe deve mesmo servir
de estímulo para procurar vida melhor ou a plenitude da vida,
a vida eterna, em que tudo será devidamente compensado.

Passemos agora aos

2. Proverbios árabes

1) «Por causa da rosa, também o espinho é regado».

Evidentemente, a agua que atinge um roseiral, atinge tudo


quanto néle se encohtra: os elementos mais estimados assim
como os menos apreciados. É certo, porém, que só atinge a
estes por causa daqueles.
Tal fato sugere algo de análogo que se dá entre os homcns:
rosas e espinhos, bons e maus vivem promiscuamente na socie-
dade. Acontece, porém, que os bons vém a ser causa de bene
ficios para os maus e para o próximo em geral.

— 355 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 1

Como ?
Pela palavra e pelas obras, nao há dúvida. Mas nao so-
mente;... também, e já, pela mera presenga, presenga.silen
ciosa, que multas vézes os homéns só percebem quando lhés
é sübtraída. Seja lícito frisar: o fiel cuniprimento do dever,
sem alarde, por parte de um membro obscuro da sociedade, é
altamente benéfico para o próximo, aínda que ninguém tome
consciéncia disto; essa fidelidade cria atmosfera ou ambiente,
que sugere e envolve ou assimila. Todo homem pode estar certo
de que ele muito fala pelo teor mesmo da sua vida; nao há
quem nao se delxe impressionar (ao menos no seu íntimo)
pela perseveranga modesta de um companheiro dedicado.
De modo especial sao válidas estas verdades para o cris-
táo. O Apostólo Sao Paulo, como que fazendo eco ao proverbio
da rosa, afirma que «somos o bom odor de Cristo», bom odor
que a muitos dos nossos semelhantes deve comunicar a vida
(cf. 2 Cor 2,15s).
Sim; o cristáo, qual membro de Cristo Místico, continua
a vida do Senhor no seu ambiente. Por conseguinte, a influen
cia da sua presenga vem a ser, de certo-modo, a influencia
(müito mais rica) do pfóprio Cristo. Há intercambio de vida
sobrenatural, comunháo de méritos, entre os membrbs do Córpo
de Cristo, que é a Igreja.
Destarte o adagio citado recorda que podemos- beneficiar
a muitos sem empreender faganhas extraordinarias, mas sim-
plesmente pela nossa presenga fiel e constante no lugar que a
Providencia Divina, nos assinalou neste mundo. Recorda-nos
outrossim que talvez estejarnos sendo beneficiados por almas
que nao conhecemos, almas que, mediante a sua uniáo com
Deus, váo atraindo o orvalho da graga sobre nos. Diz-se com
razáo que «podemos as vézes estar convivendo com os santos
sem o saber».

2) «Se a estagao nao te convém, adapta-te k esta$ao»..

No invernó, nao há proveito em protestar contra o frió,


nssim como no veráo é inútil lamentar-se do calor. O frió e o
calor continuam sendo tais e castigam sempre...
Assim na vida social é muitas vézes (embora nem sempre)
inútil chamar a atengáo para os males que nos afligem ou pare
as falhas dos homens. Isto freqüentemente só tem por efeito
ocasionar um clima de azedume e mal-estar ; gera o desánimo
ou também a desconfianga de irmáo para com irmáo, dificul
tando ou impossibilitando as solugóes.

— 356 —
PROVERBIOS ORIENTÁIS

Muito melhor é tomarmos consciéncia de que nao há mal


ao qual nao esteja associado algum bem, assim como nao há
erro sem um núcleo de verdade. Olhemos entáo para o que
possa haver de bomem cada situacáo difícil, e procuremos de-
sembaracá-lo dos males que o acompanham; juntemos todas
as parcelas de bem que possamos encontrar em torno de nos
(em vez de dividir e separar), e certamente conseguiremos
acelerar ou mesmo acarretar a solucáo.
Esta norma, sem dúvida, nao quer dizer sejamos relativis
tas, desconhecendo que o mal é mal e deixando de impugnar
os defeitos. Feita, ao contrario, clara distingáo entre o bem e
o mal, procuremos deter nossa atengáo e atividade sobre o
bem que nos esteja ao alcance, e esforcemo-nos por fazé-lo
crescer; o mal será diminuido ou vencido pelo incremento que
conseguirmos dar ao'bem.
Sejamos, pois, otimistas a irradiar otimismo, porque ere
mos na Providencia Divina, e nao pessimistas que pelas suas
palavras destroem os poucos valores restantes.

3) «O asno poderá ir á Meca; nem por isto voltará de


lá peregrino».

Éste proverbio constituí como que um eco do adagio cris-


táo : «O hábito nao faz o monge». Quer dizer que nao. sao oá
quadros exteriores nem os títulos humanos que perfazem a
verdadeira riqueza do homem. Esta, como vimos, se acha no
intimo de cada individuo, independentemente das categorías
sociais em que ele seja fichado. Freqüentemente deveremos
verificar que as solugóes de nossos problemas, pessoais ou co-
letivos, nao se obtém pela mudanga de ambiente, ou de estru-
turas ; podemos modificar as circunstancias da nossa vida coti
diana, podemos também peregrinar...; se, porém, levamos a
raiz de nossos males, ou seja, a deficiencia moral, dentro dé
nos mesmos, nada teremos adquirido com tais mudangas exte*
riores. Ao contrarió, se dermos atenffáo primaria á reforma
das consciéncifts, reestruturando o intimo de cada individuo
(comecando cada um por si mesmo), conseguiremos a melhor
das transformacóes dentro do mesmo ambiente.
Sao Joáo, Ido seu modo, desperta a coragem dos cristáos
para tal empreendimento, asseverando: «Aquéle (o Senhor
Deus) que está em vos, é maior do que aquéle que está no
mundo» (1 Jo 4,4).

4) «Trabalha para éste mundo como se néle devesses


sempre viver, e trabalha para o outro mundo como se tivesses
qué morrer amanhá».
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu; 1

Esta máxima poderia ser integralmente transcrita para


urna cartilha de normas cristas, onde receberia ainda nova
énfase.
O cristáo sabe muito bem que lhe competem obrigagóes de
ordem temporal; ele vive, sim, no tempo e no espago, solidario
com.seus concidadáos. Cristo mesmo deixou-lhe a norma, de
procurar atender as deficiencias humanas, criando dignas con-
digóes materiais para o desenvolvimento da vida individual e
social neste mundo (cf. Mt 25, 31-46, texto em que Jesús se
identifica com o pobre, o faminto, o doente, etc.). Contado o
cristáo nao esquece que, ácima de qualquer missáo temporal,
está o chamado divino para a vida eterna; esta tem que ser
conquistada a qualquer pre;o, ainda que nao se possa dar
remedio a todos os males sociais. É o que faz que o cristáo,
embora exerca com todo o zélo os seus misteres temporais,
nao se deixe absorver pelos mesmos, mas guarde sempre urna
atitude de certa reserva ou virgindade perante o que é material.
Sao Paulo mesmo o lembra no famoso capítulo em que
pondera os bens do matrimonio e da virgindade:

«Digo-vos, irmáos: o tempo se faz curto. Resta, pols, que aqueles


que tém esposa sejam como se nao tivessem; os que choram, como se
nao chorassem; os que se alegram, como se nao se alegrassem; os que
compram, como se nao possuíssem; os que usam déste mundo, como
se nao usassem, porque é transitoria a figura déste mundo» (1 Cor 1,
29-31).

5) «Se Deus nao perdoasse, o seu paraíso ficaria vazio».

Eis outra observagáo que também pode, sem mais, ser


aceita e corroborada pelo Cristianismo. O cristáo, mais do que
qualquer outro filho de Adáo, tem consciéncia de que foi gra
tuitamente remido do pecado e de que a sua salvagáo é puro
dom de Deus. «Ele primeiro nos amou» (1 Jo 4,10), e, para
nos atrair a Si, requer, antes de qualquer obra boa nossa, um
coragáo contrito e humilde*
Por si mesma a criatura nada pode fazer para se libertar
do pecado; apenas lhe compete confessar a sua miseria perante
o Senhor Deus. Caso o faga, pode ter certeza de que a Mise
ricordia Divina a contemplará propicia e lhe dará a graga para
fazer grandes coisas.
I

A guisa de condusao déste rápido percurso de proverbios


orientáis, verifica-se o seguinte: urna das proposigóes mais
insistentemente incutidas pelos sabios recorda ao leitor que os
verdadeiros bens se acham dentro, e nao fora, do homem. Ter

— 358 —
PROVERBIOS ORIENTÁIS

consciénda disto é ter a chave da verdadeira alegría. O cristáo


reconhecerá nesta afirrnacáo dos povos náo-cristáos urna das
grandes aspiragóes da nátureza humana, aspiracáo que o Evan-
gelho veio satisfazer cabalmente, pois Cristo é a auténtica res-
posta de Deus á sede que toda criatura, consciente ou incons
cientemente, tem de, Deus. Em conseqüéncia, o discípulo de
Cristo estimará mais aínda o patrimonio da Revelagáo evan
gélica, que veio tocar as mais íntimas fibras do ser humano,
a fim de dizer o «Sim» mais adequado ao apelo que todo
homem¿ as vézes sem o saber, dirige a Deus Pai e Redentor.

Apenas a titulo de curiosidade, acrescentamos o quadro abaixo,


que contém cinco proverbios árabes, todos construidos segundo o mes*
mo ritmo de frase. A leitura se íará tomando-se como esquema de base
as palavras da linha inferior :

«Nao... tildo quanto... porque aquéle que... tudo quanto...


militas vézes... o que...n

As lactinas seráo preenchidas pelas palavras de cada urna das


linhas horizontais sobrepostas. Assim, tomando-se a segunda linha,
ler-se-á: .

«Nao julguels tudo quanto vedes, porque aquéle que julga tndo
quanto vé multas vézes julgará o que nao viu».

NAO
DIGAS SABÉIS DIZ SABE DIRÁ
1
SABE

NAO
FAOAIS PODÉIS FAZ PODE FARA
DEVE

ACRE ACRE ACRE NAO


OUVIS OUVE
DITÉIS DITA DITARA OUVE

GAS NAO
GASTÉIS TENDES GASTA TEM
TARA TEM

JUL- JULGARA
VEDES JULGA VÉ NAO.VIU
GUEIS

PORQUE MUITAS
TUDO TUDO
NAO AQUÉLE 0 QUE
QUANTO QUE QUANTO VÉZES

— 359 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 70/1963, qu. 2

H. DOGMÁTICA

DESILUDIDO (Sorocaba) :
2) «Há quem diga: 'Nada peco a Deus na oracáo; sería
inútil. Deas já sabe aquilo de que preciso'.
Outros replicam: 'Peco a Deus, mas nao pego bens mate-
riais. Assim a minha oracáo é muito pura*.
Que pensar a propósito dessas atitudes ?»

Em primeiro lugar, proporemos a resposta as questóes.


A seguir, tecerémos algumas observagóes complementares so
bre a oracáo de súplica.

1. «Nada peco na oracáo !»

Sao Tomaz, na Suma Teológica II/II 83, indaga se é con


veniente ou nao pedir ao Senhor Deus algo de determinado
(art. 5) ou mesmo algo de material (art. 6).
Ao procurar resolver as questñes, cita em primeiro lugar
razóes que sugerem solugáo negativa tanto para a primeira
como para a segunda indagacáo.
Com efeito, tornaram-se clássicos, tanto na antigüidade
como nos dias atuais, os seguintes argumentos:

1) «Nao sabemos o que havemos de pedir!»

É famosa a atitude do filósofo Sócrates, referida pelo es


critor antigo Valerio Máximo (Fact. et dict. Memor., 1. 7, c. 2):

«Sócrates julgava que é preciso limitar-se a pedir aos deuses imortais


que nos sejam benfazejos. Considerava que os deuses sabem o que é
útil a cada ura, ao passo que nos, na maioria dos casos, desejamos
coisas que seria melhor nao recebermos».

O próprio Sao Paulo parece fazer eco a tal proposicáo,


asseverando : «Nao sabemos o que havemos de pedir, de modo
a pedir convenientemente» (Rom 8,26).
Em conseqüéncia, dir-se-á, é melhor fazer simplesmente o
¡que sugere o Salmista : «Entrega tuas preocupacóes ao Se
nhor, e confia n'Éle» (SI 54, 23).
O cristáo, portante, abster-se-á de pedir ao Pai do céu
b que quer que seja; dará assim proyas de urna espiritualidade
ímais profunda e pura. .
; Que respóndem S. Tórház e os teólogos a esta dificuldáde?

— 360 —
«NADA PECO A DEUS NA ORACAO!»

— Verdade é que muitas vézes nos engañamos a respeito


do nosso genuino bem, e por isto nos arriscamos a pedir a
Deus coisas que nos parecem oportunas, até mesmo santas,
mas que em realidade nao seriam tais, tornando-se mesmo
prejudiciais aos nossos auténticos interésses, se as recebésse-
mos ; nesses casos, é claro que a oragáo nao obtém o que pede.
Por isto, em toda e qualquer petigáo que dirijamos a Deus,
devemos desejar, em última análise, a gloria do Senhor e a
nossa santificagáo própria (a vida eterna), o que vem a ser
facetas da mesma realidade, pois Deus é glorificado pela nossa
santificagáo. Podemos ter certeza de que o Pai do céu nos quer
sempre dar tais bens ; por isto, ao pedi-los, nunca perderemos
tempo, nunca seremos frustrados; podemos, pois, rogar incon-
dicionalmente, e com todo o nosso ánimo, a graga de sermos
santos e de assim manifestar a santidade de Deus em nos,
dando-lhe toda a gloría aos olhos dos homens.
Diz S. Tomaz:

«Em casos de dúvida, devemos entregar todas as nossas preocupa-


Cues a Deus, abandonando-nos á sua vontade, se ídr mais conveniente
nao obtermos o que pedimos. Nosso Senhor deu-nos o éxemplo disso :
'Nao como eu quero, mas como tu queres, Pai'. Todavía, ñas coisas que
Deus quer que nos queiramos, abandonar-nos á sua vontade equivale
precisamente a pedir-Lhe o que nos esperamos do seu auxilio» (Com.
in Sent. D. 15, q.4, a;4, q.l, sol. 2).

Como já de algum modo insinúa éste texto de S. Tomaz,


as consideragóes ácima nao impedem qué concretizemos a as-
piragáo geral á gloria de Deus e á nossa santificagáo própria,
enunciando filialmente na presenga do Senhor um ou outro
bem que nos parega, de perto ou de longe, oportuno á gloria
do Senhor e á nossa uniáo com Ele ; nesta perspectiva, até
mesmo os bens materiais e transitónos podem ser visados e,
na oracáo, sugeridos ao Pai do Céu, pois o ser humano se
santifica usando do seu corpo e dos bens corporais necessários
ao digno desenrolar da vida neste mundo; também os recreios
e .consolos desta térra podem ter influencia valiosa na santifi
cagáo do cristáo, pois o reto, equilibrio das fórgas do organis
mo proporciona á alma mais fácil e frutuoso uso de seu «com-
panheiro» que é o corpo (cf. pág. 387 déste fascículo).
1 Eis urna genuína expressáo (formulada por um Santo:
S. Fulgencio de Ruspe, bispó fálecido em 532) da atitude que
o cristáo deve assumir ao especificar, perante o Pai do Céu,
os bens que lhe parecem. necessários :

«Sabes, ,ó Senhor, o' que cofiVém á salvagáo de nossas' almas. Por


cdriseguimé," quando pedimos aquilo qué a necessidade do momento

— 361 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 2

nos sugere, conceda-o a tua misericordia, contanto que assim nao sofra
detrimento o nosso proveito espiritual. Seja a nossa humilde oracáo
atendida por Ti, se convier, de modo tal que ácima de tudo se faca a
tua vontade» (Vida de S. Fulgencio de Ruspe escrita pelo diácono Fer
rando, de Cartago).
«Seis, Domine, quid animarum nostrarum saluti conveniat. Poseen-
tibus ergo nobis quod monet necessitas, hoc misericordia tua concedat,
unde spiritalis non impediatur utilitas. Oratio igitur nostrae humilitatis,
si expedit, tune ita a te exaudiatur ut voluntas tua principaliter com-
pleatur».

Merecem atengáo outrossim as palavras com que S. Tomaz,


retomando a doutrina de S. Agostinho, assevera a legitimidade
de pedir certos bens temporais:

«S. Agostinho escreve a Proba (epist.'13O) que podemos, na oracSo,


pedir tudo que temos o direito de desejar. Ora é lícito desejar bens
temporais. Isto só nao seria legitimo, está claro, se os desejássemos
ácima de tudo, a ponto de fazer déles a finalidade de nossa vida. É pre-
cisoí'antes, que os consideremos como subsidios que nos ajudam a ten
der á bem-aventuranca celeste: nossa vida corporal encontra néles o
seu sustento, e nossas virtudes os utilizam, a titulo de instrumentos,
como já cnsinava Aristóteles. É, portante, licito orar a fim de os obter.
Afirma S. Agostinho (loe. cit.) : 'É muito normal, desejemos os meios
necessários para viver, desde que desejemos isso e nada mais. Entáo
nao procuramos tais bens por causa déles mesmos, mas por causa da
saúde do corpo, a fim de que nos comportemos como convém, de acardo
com a nossa categoría (na sociedade), e nao sejamos molestos para as
pessoas com quem temos que viver. Quando possuimos os bens do
corpo, devemos orar para que os conservemos; e pediremos que nos
sejam restaurados, caso venhamos a perdé-lo'» (S. Teol. II/II 83, a. 6c).

Os Santos Doutores chegam mesmo a enunciar algumas


vantagens que, para o orante, decorrem do fato de concretizar
o objeto das suas súplicas :

a) a oragáo se torna mais fervorosa. É S. Tomaz quem


o lembra:

«Pedir bens determinados concorre para fixar a atengáo do orante,


o que é soberanamente-necessário; tomamos assim cpnsciéncia exata
dos desejos que nutrimos e dos seus progressos. Désse modo também
se aumenta o fervor da nossa súplica, pois, quanto mais consideramos
pormenorizadamente os bens que nos atraem, tanto mais se inflama
o nosso desejo» (Com. In Sent. D.15, q.4, a.4, q.l).

Nao há dúvida, quem tem em vista um objetivo concreto


na sua prece, se torna mais ardoroso. Verdade é que éste meio
de afervorar a oracáo nao é de todos o mais perfeito; há mo-
tivagóes de fervor mais dignas do que o desejo de obter algum

— 362 —
«NADA PECO A DEUS NA ORAC&O!»

bem mediante a oracáo. Todavía éste desejo poderá ser útil,


principalmente nos inicios da vida espiritual e ñas fases de
aridez, contanto que o orante sempre subordine sua vontade
a vontade de Deus, aspirando incondicionalmente a satisfazer
aos designios do Pai Celeste.
S. Agostinho- Iembra também que, pedindo algo de con
creto,

b) o orante se torna mais humilde. Com efeito, se enun


ciamos perante Deus os bens de que precisamos (ou julgamos
precisar), nao o fazemos por causa do Senhor, como se Éste
ignorasse as noss'as indigencias, mas por causa de nos mes-
mos: tomamos assim consciéncia mais viva de que nada temos
por nos ou de que somos os felizes mendigos de Deus. Sao
palavras de S. Agostinho :

«Quando na Escritura o anjo diz aos homens : 'Ofereci vossas ora-


cSes' (Tob 12,12), isto se dá nao porque Deus ignore o que desejamos
ou aquilo de que precisamos, pois, como diz o Senhor, 'vosso Pai sabe
o que vos é necessário antes que Lho pecáis* (Mt 6,8); faz-se mister,
porém que a criatura racional submetida a Deus recorra á Verdade
eterna, mesmo ñas coisas temporais. seja para pedir a Deüs aquilo
de que ela precisa, seja para O consultar a respeito do que ela deve
íazer. Tais oracoes sao o resultado de piedoso afeto da alma, que se di
rige a Deus nao para Lhe comunicar o que Ele já sabe, mas para se
fortalecer a si mesma. A criatura racional désse modo atesta que nSo é
ela mesma o bem que pode tornar feliz, e que ela só pode chegar á
íelicidade possuindo o Bem imutável (Deus), íonte de toda luz e de
toda sabedoria» (epist. 140, XDC 69; cf. epist. 130, 17-20).

Em outra passagem acrescenta o santo Doutor :


«Como, Senhor, Vos, a quem pertence a eternidade, ignorarieis
aquilo que eu vos digo ou só verieis no tempo aquilo que se desenrola
no tempo ? Por que entáo fazemos a exposicáo minuciosa de tantas
coisas em vossa presenca ? Por certo nao é para Vos tornar cíente das
mesmas, mas para abrasar no vosso amor tanto o meu coracáo como
o coragáo daqueles que lerem éste escrito... Pedimos; nao obstante, a
Verdade nos admoesta : 'Vosso Pai sabe aquilo de que necessitais antes
mesmo que Lho pecáis' (Mt 6,8). Manifestamos, portanto, o nosso amor
para convosco confessando-Vos nossas miserias e celebrando vossas
misericordias para conosco; nosso desejo é que terminéis a obra da
nossa libertacao já iniciada, e que, deixando de ser infelizes em nos,
encontremos em Vos a nossa felicidáde. Pois Vos nos ensinastes a nos
tornar pobres em espiritó, mansos, penitentes, sequiosos e famintos
de justica, misericordiosos, puros e sem mancha, amigos da paz...»
(Conf. XI I 1).

As observagóes de S. Tomaz e S. Agostinho assim concebi


das bem mostram a utilidade que há (para nos, nao para Deus)
de especificarmos filialmente o conteúdo de nossos desejos na
presenca do Pai do Céu.

— 363 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 2

Contudo S. Tomaz (nos citados artigo» daS. Teol.) conhece


ainda outra- objecáo grave feita á oracáo de súplica :
■"■■ '
2) - Pretenderíamos dobrar a vontade de Deus a nossa
própria vontade ?

Esta questáo já foi minuciosamente abordada em «P.R.»


17/1959, qu. 2. Por isto limitamo-nos aqui a resumir a solucáo.

É claro que a oracáo nao pode ter por efeito acomodar


os designios de Deus aos planos do homem ; o que o Senhor
quer dar á criatura, Ele determinou dá-lo imutávelmente desde
toda a eternidade. Acontece, porém, que, aó decretar derramar
tal ou tal beneficio sobre as suas criaturas, o Senhor nao raro
determinou que o derramaría em vista das preces de tal ou
tal alma orante, ou seja, envolvendo a oragáo das criaturas
nos seus designios. Daí o convite que o Senhor no Evangelho
nos dirige para orar, e orar sempre (cf. Le 18,1); daí, conse-
qüentemente, a nossa obrigacáo de rezar filialmente em todas
as necessidades que sobrevenham a nos mesmos ou ao nosso
próximo.
Mais urna vez, portante, se vé: a oracáo de súplica nao
derroga á dignidade do Senhor; longe disto, ela redunda mesmo
em dignificagáo das criaturas, elevando-as á categoría de cola
boradoras do próprio Deus nos seus designios de distribuir
grasas aos homens. Deus quer fazer depender seus dons de
urna demanda da nossa parte, demanda que nos dá lugar no
plano providencial estabelecido pelo próprio Deus.
É S. Tomaz quem escreve :

«É preciso considerar que a Providencia Divina nao se limita a


estabelecer que tal ou tal efeito será produzido; Ela determina também
por que causas e de que modo isso se dará. Ora a atividade humana tem
sua eficacia própria, de modo que a podemos colocar na categoría das
causas. Daí se vé que, se o homem deve agir, isto nao quer dizer que
seus atos possam mudar o que quer que seja dentro da ordem estabe-
lecida por Deus; ésses seus atos sao simplesmente exigidos para a rea-
lizacao de certos efeitos que Deus guis fazer depender déles. É, alias, o
que se dá na linha da causalidade natural; é também o que se dá na
oragáo. Ao orar, nao intencionamos mudar coisa alguma na ordem esta-
belecida por Deus; oramos para obter o que Deus resolveu efetuar me
diante as oracOes das almas santas^.. Nossa oracáo nao tem por fina-
lidade retocar o plano firmado por Deus, mas alcancar o que file deci-
diu dar a nos mediante a oracáo» (S. Teol. II/II 83, a.2 ad 2).

Ulteriores consideracóes se encontram no citado artigo de


«P.R.».
Passemos agora ás

— 364 —
«NADA PECO AiHEiEUS NA ORACAO !»

.-. . 2. Observagoes fináis

1. A oporturiidade da oragáo de súplica deve ser reco-


nhecida de modo tal que sé evitem duas falsas atitudes na
piedade :

a) o mercantilismo com Deus, mercantilismo que consis


tiría em reduzir a Religiáo a um sistema de provisóes e ga
rantías para o individuo; a oracáo seria o grande meio para
que o homem obtivesse felicidade temporal ueste mundo. Sem
dificuldade se percebe quáo falsa é esta posicáo, pois a autén
tica Religiáo há de ser, antes do mais, culto a Deus e elevagáo
do homem ácima de si mesmo ; ela tem que gravitar em torno
de Deus, e nao em torno do homem (teocentrismo, em lugar de
antropocentrismo). Justamente a grandeza do homem está em
sair de seu «eu» mesquinho, e viver de Deus, do pensamento
e da vontade de Deus, que nao podem deixar de enobrecer a
criatura.
Em particular, vé-se quáo pouco recomendável é a espiri-
tualidade das promessas, espiritualidade que leva o homem a
estipular .um contrato com Deus e a «pagar» gracas recebidas.
Émbora se possam justificar as promessas (caso sejam tidas
como mais generosas expressóes de amor a Deus), na yerdade
elas tendem a suscitar no orante o espirito de comercio gros-
seiro e a superstigáo; o amor generoso nao precisa de se exter
nar de maneira «táo pouco generosa» e táo interesseira. Que
o orante pega com confianga filial, e nao queira condicionar,
seu fervor ao fato de ser atendido como ele deseja! .
De outro lado, será preciso evitar

b) a indolencia (preguiga de rezar) e o indiferentismo


orgulhoso. Certas pessoas dizem que nada pedem na oracáo
justamente por quererem cultivar urna espiritualidade mais
livre do egoísmo; Muitas vézes, porém, esta alegacáo é mero
pretexto para que a pessoa deixe de rezar ou para que encubra,
sob capa elegante, a sua indolencia religiosa e a sua falta de
piedade. Assim como rezar e pedir em conformidade com a
vontade de Deus sáp sinais de humildade, assim também a
atitude de nao querer pedir coisa alguma a Deus (sob pre
texto de que Ele sabe de antemáo o que nos convém) pode
ser requintado sinal de orgulho).
Conta-se que certa vez um livre pensador asseverou garbosamente
a Alexandre Dumas, também ele livre pensador: «Eu nao oro!...».
Ao que respondeu Dümas: «Também meu cao nSo ora...».

2. Ao mesmo tempo que, guiados pelo S. Evangélho e


pelos mestres da vida espiritual, afirmamos a legitimidade da

— 365 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963. qu. 2

oracáo de súplica, nao podemos deixar de recordar as signifi


cativas palavras do escritor Juliáo Green :.
«A finalidade da orac&o é talvez menos a de obter o que pedimos
do que a de nos transformar. Vamos mesmo mais longe e digamos que
pedir algo a Deus nos transforma aos poucos em pessoas' capázes de
dispensar algumas vézes o que elas pedem» (Journal III).

Éste texto incute grande verdade: quanto mais um orante


progride na vida espiritual, tanto mais aspira a .um só grande
Bem, isto é, á posse de Deus cada vez mais plena e desemba-
racada dos entraves das coisas materiais. Comegamos a nos
elevar a Deus e orar, premidos pela carencia déste ou daquele
subsidio corpóreo; aos poucos, porém, o contato com o Senhor
nos vai desapegando das criaturas; transforma-nos, mostran
do-nos que só conseguimos a plena saciedade de nossas aspi-
racóes, vivendo de Deus e para Deus.

3. Aplicando os principios até agora enunciados, per>-


gunta-se: como julgar o caso de urna turma de estudantes
que venham pedir a um sacerdote, celebre a S. Missa para que
passem devidamente nos exames fináis do currículo e consi-
gam seu diploma ?
Em resposta, dir-se-á: trata-se de um pedido de bens
temporais ou passageiros. Tal pedido poderá ser legítimo
(portante, digno de toda atengáo por parte do sacerdote) ou
ilegítimo, segundo a intengáo dos jovans que o formulan*
a) Será, sim, legítimo, dado que os estudantes, com a
consciéncia sincera, tenham em vista obter um diploma que
definirá sua posigáo na sociedade e na vida, permitindo-lhes
o genuino desenvolvimento de sua personalidade; poderáo
assim realizar sua vocagáo, cumprir o designio de Deus e ser
vir mais seguramente ao Reino de Cristo na térra. Pedir nessa
atitude a promogáo nos exames equivale a pedir «o pao nosso
de cada dia» em vista da gloria de Deus, como ensinou Jesús
no «Pai Nosso». Tal súplica será muito legítima, contanto que
fique subordinada ¡a santíssima vontade de Deus, que nos quer
dar, ácima de tudo, a vida eterna.
O sacerdote que depreender tal mantalidade nos mencio
nados estudantes, poderá, com vantagem, procurar avivar néles
a consciéncia de que os bens temporais tém que ser sempre
considerados á luz da eternidade. O diploma legítimamente dé
sejado e obtido deverá ser utilizado ém vista da gloria de
Deus e da santificagáo (próxima ou remota) dos homens.
b) O mesmo pedido dos estudantes seria ilegitimo e me
recería reservas da parte do sacerdote, caso se tratasse de

— 366 —
CORRECAO FRATERNA E CRITICA

jovens pouco sinceros que, tendo vadiado durante o período


letivo, quisessem encobrir ou quase legitimar suas omissóes
obtendo de Deus a aprovagáo final. Sem dúvida, o Senhor é
misericordioso e está sempre disposto a perdoar as faltas das
criaturas. Contudo, Ele nao o faz se o homem nao se acha
realmente arrependido de seus males e quer apenas livrar-se
de urna situagáo embarazosa. Mais ainda: nao se pode plei
tear que Deus atenda ao pedido de perdáo fazendo algum por
tento ou pequeño milagre (ora, sem dúvida, um bom exame
ápós maus estudos nao deixa de ser um pequeño prodigio),
Nao é licito tentar a Deus exigindo que faga milagres.
Caso reconheca nos referidos estudantes urna mentalidade
menos reta (como a que acaba de ser descrita-), o sacerdote
interpelado poderá responder que celebrará a S. Missa e rezará
muito por éles, para que néles se cumpra a santíssima vontade
de Deus, a qual é sempre santa e nos destina o que mais nos
convém (embora nem sempre corresponda ao nosso limitado
modo de ver). Assim o sacerdote nao deixará de praticar a
caridade e evitará fazer que a Religiáo sofra deturpacáo ou
seja utilizada como cobertura para o mal.

FOGOSO (Sao Paulo) :

3) «Atualmente muitos se baseiam no direito, até no de-


ver, de praticar a 'corree!© fraterna' para criticar as autori
dades da Igreja.
Em que consiste essa 'correcáo fraterna' ?»

Em nossa resposta, distinguiremos quatro partes, a fim


de atender aos diversos aspectos das questóes formuladas:
trataremos, sim, do conceito de correcáo fraterna, do seu his
tórico, da sua obrigatoriedade e das suas modalidades.

1. Correcáo fraterna: o conceito

A expressáo «correcáo fraterna» é sugerida pelas palavras de Sao


Paulo em 2 Tes 3,14s : «Se alguéra nao obedecer as instrucOes desta
carta, notai-o e nao tenhais relacoes com ele, a íün de que se enver-
gonhe. Nao o consideréis, porém, como inimigo, mas corrlgi-o como
limaos.

Por «corregáo fraterna» entende-se urna advertencia ca-


ridosamente feita ao próximo a fim de o desviar do mal ou
corroborar no caminho do bem. Tem em vista o pecado ou a
falha do irmáo na medida em que essa falha é um mal do
próprio irmáo, e sempre procura levar remedio ou beneficio
áquele que falha. Por isto Sao Tomaz a considera como «es-

— 367 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 3

mola espiritual» ou como um auténtico ato de caridade, pois


afasta do próximo o mal que é o pecado (cf. S. Teol.
n/II33a.l).

«Corrigir o irmáo» vem a ser urna das'sete obras de misericordia


espiritual, das quais as outras seriam : instruir os ignorantes? guiar os"
indecisos, consolar os afütos, perdoar aos que nos ofendem, suportar
os irmaos molestos, orar pelos vivos e os mortos.

A correcao fraterna distingue-se da correcao jurídica ou


penal, a qual visa primeiramente o bem comum e procura res
taurar a ordem violada.
Note-se que a corregió fraterna assim entendida pode
provir nao só de um irmáo em favor do irmáo, mas também
de um superior em favor do súdito ou de um súdito em favor
do superior (seja, porém, neste caso praticada «com mansidáo
e reverencia», recomenda S. Tomaz, 1. c, a. 4).

2. Histórico» da correcáo fraterna

A corregáo fraterna, antes de ser encarecida pelos cris-


táos, já era estimada e praticada por pagaos e judeus.

a) Entre os pagaos

Já que os pagaos aspiravam, do seu modo, á perfeigáo dos


costumes ou á prática da virtude, compreende-se que ao menos
os filósofos exercessem e recomendassem a córregáo fraterna.
Assim, por exemplo, escrevia o estoico Séneca (f 65)':

«O homem bom alegra-se por ser admoestado; o mau, porém, só


com irritacáo tolera a quem o queira dirigir. — Admoneri bonus gau-
det; pessimus quisque rectorem asperrime patitur» (De ira 1. 3, c. 36).

O mesmo Séneca exortava-se a si próprio a fazer, no fim


de cada dia, um exame de consciéncia sobre a corregáo fra
terna :

«Aquele irmáo dirigiste urna advertencia mais forte do que devias;


por isto, em vez de o emendar, tu o ofendeste. De resto, deves exami
nar nao sómente se dizes a verdade em tuas advertencias, mas também
se aquéle a quem a dizes é capaz de a tolerar. — Illum liberius admo-
nuisti quam debebas. Itaque non emendasti, sed ofíendisti. pe cetero,
vide non tantum an verum sit quod dicis, sed an ille cui dicitur veri
patiens sit» (ib.).

Contudo julga-se que a prática da corregáo fraterna devia


ser relativamente rara entre os pagaos. Antistenes (f 370
a.C), filósofo da escola cínica (estoica decadente), observava:

— 368 —
CORRECAO FRATERNA 'E CRÍTICA

«Quem se quer salvar, precisa de amigos comprovadós ou de inimi-


gos furiosos. Aqueles, por suas advertencias...; estes, por seus ata-'
ques,... o conservaráo no caminho reto». ■ -•'.•■

.... - Plutarco (t 120)', tehdoem vista essa frase, ácrescentava:

«A amizade, porém, só possui um filete de voz, quando se tratáx


de fazer advertencias; é tagarela, quando se trata de adular, e lácó-'
nica quando é preciso exortar. Por isto vemo-nos obrigados a esperar
de nossos inímigos a apresen taca o da verdade» (Da utilidadc dos
inimigos). ••;

Em conseqiiéncia, Plutarco escreveu um opúsculo intitu


lado «Gomo distinguir do amigo o adulador», genuino tratado
de corregáo fraterna.

b) Entre os judens

Os rabinos muito recomendavam a correcto fraterna,


aconselhando ora paciencia, ora energía, até mesmo o recurso
aos golpes. É ao zélo excessivo que alude Jesús no S. Evangelho:

«Por que vés o argueiro no ólho de teu irmáo, e nao percebes a


trave que está em teu ólho ? Como podes dizer a teu irmáo: 'Irmáo,
deixa-me tirar o argueiro de teu ólho1, se nao vés tu mesmo a trave que
está em teu ólho ? Hipócrita ! Tira primeiro a trave de teu ólhc, e entao
enxergarás melhor para tirar o argueiro do ólho de tou irmáo» (Le 6,
41s; cf. Lev 19,17).

Contudo os mestres de Israel muito se lamentavam ao


verificar como era difícil praticar devidamente a corregáo
fraterna.

Assim, por exemplo, exclamava o rabino Taríon : «Pelo culto!


Quem nesta gera^áo seria capaz de aceitar urna repreensao ?». Ao que
respondía o rabino Aqiba: «Pelo culto! Haverá nesta geracáo quem
saiba fazer urna repreensao ?» (cf. J. Bonsirven, Le Judaísme pales-
tinien au temps de Jésus-Christ II. Paris 1935, 231).

c) Entre os cristáos

Os discípulos de Cristo tiveram em mente aplicar a norma


do Salvador :

«Se teu irmáo pecar, vai e repreende-o entre ti e ele sómente. Se to


ouvir, terás ganho teu irmáo» (Mt 18,15). ,

Ao que fazia eco o Apostólo :

— 369 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 70/1963, qu. 3

«Rogamo-vos, irmáos, que repreendais os preguicosos, consoléis os


pusilánimes, suportéis os fráeos e tenhais paciencia com todos» (1 Tes
5,14).

Na base de tais palavras, foi desde cedo praticada no Cris


tianismo a corregió fraterna. Ficou, porém, sempre viva entre
os antigos a exortagáo de S. Paulo á mansidáo no modo de
repreender:

«Irmáos, se alguém se deixar arrastar pelo pecado, vos, que sois


espirituais, deveis corrigi-lo com espirito de brandura. E tu acautela-te,
para que nao sejas também tentado» (Gal 6,1).

A preocupacáo de evitar qualquer excesso ou interésse


egoísta levava os ascetas dos primeiros séculos a recursos de
requintada caridade quando deviam chamar a atengáo de seus
irmáos. Eis um dentre varios casos semelhantes :

Entre os monges do deserto no séc. V havia o abade Arsénio, que


se íizera eremita após haver vivido varios anos no mundo, gozando de
certo bem-estar; désses tempos de juventude mundana, Arsénio conser-
vava alguns pequeños deíeitos, em meio á austeridade de sua vida no
deserto, entre os quais o de cruzar as pernas quando se sentava. Os
monges, ao observá-lo, nao podiam concordar com tal procedimento,
mas viam-se embarazados no tocante ao modo de chamar a atencao de
táo venerável personagem; finalmente, o abade Pastor resolveu valer-se
do seguinte expediente: Pastor mesmo numa próxima reuniao, diante
de Arsénio e dos irmáos, tomaría a posigáo habitual de Arsénio ao
sentar-se; os irmáos entáo lhe fariam ver que tal atitude era demasiado
mundana para um eremita...; Arsénio haveria de compreender...
Dito e feito: no dia previsto, o abade Pastor sujeitou-se á humilhacáo
diante de Arsénio; enquanto o repreendiam como se tivesse levado para
o deserto costumes do século, Arsénio do seu lado deduzia a conclusáo
que lhe tocava: de mansinho, retiíicou sua atitude...

Dentre os monges do deserto, o mais famoso por sua bran


dura ou condescendencia foi o abade Poimén, de quem se re
fere o seguinte episodio:

Perguntaram-lhe alguns anciáos: «Ao vermos os irmáos cair na


soñolencia durante as vigilias sagradas, nao achas oportuno que os
despertemos e os mantenhamos vigilantes ?» Respondeu entáo Poimén :
«Quando vejo um irmáo adormecido, coloco-lhe a cabeca sobre os meus
joelhos, a fim de o ajudar a descansar» (Apoftegmas dos Pais 92, ed.
Migne gr. 65, 344).

Até nossos dias a corregáo fraterna continua em voga nát


S. Igreja Nao sómente sacerdotes e Religiosos a realizam de
maneira sistemática e sob forma comunitaria, mas também
militantes de Agáo Católica em equipe e muitos casáis lhe dáo
lugar no seu programa, chamando-a «balanco de vida, exame
de consciéncia coletivo». Há mesmo Congregagóes de sacer-

— 370 —
CORRECAO FRATERNA E CRITICA

dotes dedicados ao ministerio que fazem da corregáo fraterna


em comunidade um dos grandes esteios do seu progresso espi-'
ritual e pastoral. Tenha-se em vista, por exemplo, o que refere
o Pe. Michonneau quando descreve as estupendas experiencias
feitas por pequeña comunidade de sacerdotes devotados a urna
paróquia dos suburbios de París :
«Formar equipe, para nos, significa ainda: fazer conjuntamente
a critica da nossa acáo comum.
Mas nao vá éste termo 'critica' fazer pensar em obra negativa.
Nao. Juntos registramos as Vitorias, de que haurimos um motivo de
encorajamento. Mas juntos também pomos o dedo ñas fraquezas e nos
erros. Isto se torna muito mais fácil do que quando alguém está só!
Na solidáo, bem que experimentamos as vézes certo mal-estar, certa
sentimento de .que a coisa n&o vai; mas nao sabemos muito bem por
que, e achamo-nos incapazes de remediar. Em comunidade, pelo con
trario, quando existem a franqueza e a cordialidade, tomamos imediata
consciéncia dos pontos fráeos. Somos varios a ver e ouvir, e conseqüen-
temente há mais possibilidades para que alguém do grupo perceba, seja.
por si, seja por ouvir certas reflexñes, coisas que nSo vio bem. Aquí,
nos. serve a imperfeicao de nossa pobre natureza, gragas á qual mais-
fácilmente vemos a palha no 61ho do vizinho do que a viga no nosso:
por torga, ó que escapa a um confrade entusiasmado por sua acto, a.
outro nao escapa; tal orientac&o ou, inversamente, tal deficiencia, de
que n3o se apercebeu o pároco, ocupado com muitas coisas ao mesmo-
tempo, impressiona um coadjutor. Tudo é entao benéfico : pode-se tuda
passar no crivo do julgamento da equipe : sermOes, coros falados, orga-
nizacáo das testas, modo de dirigir a Missa, trabalho num bairro, etc.
Cada domingo, após o almdco, reunimo-nos na sala de comuni
dade. .. Fazemos a crítica dos serm6es... : fundo, forma, oportunidade.
Chega depois a vez de subirem ao pelourinho os que dirigiram a orac.ao.

É fácil imaginar a vantagem que lsso representa para cada unt.


dos membros da equipe t em vez de nos obstinarmos num impasse oír
de nos incrustarmos numa rotina, a exigencia permanente do meic*
estimula-nos e corrige-nos: tornamo-nos por fórca muito exigentes;
conosco, pois os outros a tanto nos ajudam. E depois... quando as
críticas sao assim feitas em público, nao há mais razao para que se
facam por detrás : nao acredita que haja todo beneficio para a cari-
dade e a confianca mutua ?...

Ao ouvir a crítica de um só, tem-se fácilmente a téntacáo de crer


que ele se engaña oü enxerga mal, de p6r em dúvida um juízo que sur-
preende e íere! Quando ao invés a equipe inteira faz coro para dizer:
'É verdade, vocé nao nota, mas tódos achamos .assim', é forcoso ren-
der-se á evidencia ante essa unanimidade. E se, por acaso, a unanimi-
dade nao lór completa, se um ou outro se calar, e puser atenuantes
ao juizo por demais severo, ainda será isto enorme beneficio.
...Em comum,... a critica se torna muito simples: dirige-se a.
todos, pois somos todos solidarios do mesmo trabalho.
Nao sdmente é joeirado o ministerio de cada um, também sua ati-
tude de vida, seu caráter... Durante o retiro anual,... reunimo-nos;
certa noite, e cada um por sua vez, enquanto se retira o interessado,

— 371 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu, 3

sugere um traco que Ihe convém, urna 'charge' por asslm dizer, me
diante a qual poderá ele reconhecer... o que néle é repreensivel ou
louvável... Faz-se em conjunto para cada um o processo do ano decor
rido. Que fórca nao se senté entáo para tornar a urna nova etapa, assim
amparado nos companheiros de viagem, pois bem se sabe que nao é o
menos útil a equipe aquéle que recebeu mals censuras» (P. Michonneau,
Paróquia comunidade missionária. Rio 1960, 273s).

Assim se foram esforgando tais beneméritos pastores de


almas por exprimir cada vez melhor aos olhos do mundo a
imagem do ministro de Deus.

3. Obrigatoriedade da correcao fraterna

Ensinam os moralistas que a corregáo fraterna só é estri-


tamente obrigatória caso se verifiquem tres condigóes:

1) Esteja o próximo em situagáo de grave perigo espi


ritual.
Para que repreendamos o irmáo, portante, nao basta sim-
plesmente que haja cometido alguma falta, pois Deus nao nos
chamou a ser juízes do próximo, e, sim, seu sustentáculo. Dou-
tro lado, nao é íiecessário que o irmáo haja caído em falta e
se ache em perigo de recair, mas basta que esteja sob a in
fluencia de urna ocasiáo em virtude da qual poderia cometer
falta grave.

2) Haja esperanca de éxito por efeito da corregáo


fraterna.
O éxito poderá ser nao sómente o alivio do irmáo amea-
gado, mas também a extingáo de um escándalo ou a salvagáo
de urna pessoa.

Quem, por experiencia, sabe que nada obterá se tentar repreender


(seja porque, fazendo a repreensáo, costuma irritar-se, seja porque nao
é pessoa benquista ou popular), abstenha-se de fazer por si mesmo
a repreensáo, e procure outra pessoa, mais habilitada, que a efetue.
— Os escrupulosos, em geral, nao estáo obrigados á correcao fraterna,
pois seu modo de julgar e proceder costuma ser pouco comedido e
oportuno.

3) Nao possa o próximo livrar-se do perigo senáo me


diante a correcao fraterna.
Dado que o próximo já se tenha libertado do mal e nao
haja motivo para recear novas ameagas do mesmo mal, seria
pouco caridoso revolver o fato passado. Acontece, porém, que
os pais, educadores e pastores de almas possam ou devam re
cordar ao jovem o mal cometido, a fim de tirar daí alguma
boa ligáo.

— 372 —
CORRECAO FRATERNA E CRÍTICA

Será muito útil considerar agora

4. Como proceder á corregao fraterna.

O Senhor, no Evangelho, incute a seguinte norma geral:

«Se ten iririao pecar, vai c repreende-o entre ti e ele sómente. Se


te ouvir, terás ganho teu irmáo. Se nao te atender, toma contigo mais
urna ou duas pessoas, para que pela boca de duas ou tres testemunhas
se decida tdda a questáo. Se nao os atender, dize-o á Igreja. E, se nem
á Igreja quiser atender, considera-o como gentío e publicano» (Mt
18,15-17).

É sobre a primeira etapa (a que mais freqüentemente


ocorre, isto é, a da corree.áo a sos) que convém deter a nossa
atencáo.
A éste propósito, já Plutarco, o moralista pagáo, dava
oportunas normas, que o Cristianismo nao pode senáo aceitar
e corroborar, colocando-as sobre as bases da fé sobrenatural.
Vejamo-las de perto.

Comeca Plutarco por notar que «poucos sao os que ousam


com liberdade falar aos seus amigos e que, dentre ésses poucos,
ainda menor é o número dos que o sabem fazer» (Como distin
guir do adulador o amigo, c. 25).
Em vista dessa situagáo, propóe o filósofo grego os se-
guintes principios:

a) naja reta e pura intengáo na pessoa que está para


fazer a repreensáo. Isto requer saiba ser desprendida de si mes-
ma e dos interésses próprios ; procure realmente o bem do pró
ximo, seja discreta, sabendo guardar qualquer segrédo eventual-
mente relacionado com o caso.

Assim evitar-se-á chamar á ordem o mestre diante dos discípulos,


os genitores diante dos filhos e, por vézes,... um cónjuge diante do
outro cónjuge.

b) A pureza de intengáo deverá traduzir-se primeiramente


em mansidáo (cf. Gal 6,1), que, alias, nao coincide com be-
nignidade meramente humana, mas vem a ser um dos frutos
do Espirito Santo (cf. Gal 5,23). Palavras irritadas pouco éxito
obtém. Sómente no trato com pessoas insensíveis ou levianas
é que poderiam estar a propósito vocabulario e tom de voz mais
secos e enérgicos.
Sáb Paulo exorta com muita sabedoria :

«Nao repreendas com aspereza a um velho, mas exorta-o como a


um pai. Aos jovens, como a irmáos. Ás mulheres idosas, como maes;
as jovens, como irmás, com toda a pureza» (1 Tim 5,ls).

— 373 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 3

Para que as palavras sejam efícazes, nada é mais oportuno


do que associar-lhes unía conduta de vida digna. Quem quer
corrigir os outros, trate de corrigir a si mesmo, a fim de que
nao se Ihe deva dizer: «Médico, cura-te a ti mesmo».
Contudo ninguém pretenderá tornar-se primeiramente irre-
preénsível, para depois chamar a atencáo dos outros. Nisso-
haveria certo farisaísmo; desde que sejamos sinceros e tena-
zes na luta contra nossos próprios defeitos, teremos o direito
e, por vézes, também o dever de despertar a consciéncia do-
próximo que erra.

c) É preciso aguardar o momento oportuno para censu


rar. Mais vale contemporizar (dado que o bem comum nao seja.
prejudicado) do que precipitar com o risco de privar de éxito
a correcáo.

Plutarco observa que a pior ocasiáo para repreender é o momento


em que os homens comem e bebem, principalmente... em que bebem-
Quanto as ocasióes mais necessitadas de admoestacáo fraterna, sao as
fases de prosperidade e bem-estar temporais; nesses momentos os ho
mens deixam-se empolgar ou também embotar com facilidade e perdem
o senso da realidade.

d) No tocante ao modo de repreender, aínda se pode


notar o seguinte:
Convém saber temperar a censura mediante algum louvor
intercalado ou acrescentado; o louvor (desde que seja sincero
e justificado) suscitará atitude de maior receptividade em quem.
o ouve. A pessoa recriminada a quem se dirige um breve elo
gio, é assim estimulada a tomar modelo ou exemplo em si
mesma ; isto geralmente dá bom resultado, ao passo que desa-
conselhável ou contraproducente é comparar o delinqüente
com outras pessoas como se estas fóssem normas de perfeigáo-

Há certas maneiras de falar que de modo particular exprimem be-


nignidade. Assim, em vez de se dizer de chófre : «Procedeste malí
Fóste injusto!», pódese ahrandar a rudez da repreensáo aventando
logo urna hipótese que atenué a malicia da situacáo e a culpa subjetiva
do irmáo : «Talvez nao soubesses!... Talvez nao estivesses a par dessas-
novas determinares!... Devias estar cansado, distraído! Se estivesses.
ciente, nao terias feito! Certamente nao has de recair!».

Muito se recomenda outrossim que, urna vez feita a re


preensáo, a pessoa que repreendeu nao abandone o irmáo cen
surado, mas proceda como o bom médico. Éste, depois de pro
ceder a urna intervengáo cirúrgica, acompanha o paciente com.
os devidos lenitivos para a sua don Assim ninguém se afaste
do seu irmáo, deixando-o por muito tempo sob a impressáo de

— 374 —
CRÍTICA AS AUTORIDADES DA IGREJA

palavras severas a ele dirigidas; ao contrario, acompanhe as


suas reagóes e procure ampará-lo.
Deve-se evitar urna certa intransigencia ao repreender,
ou sejá, a tendencia a censurar constantemente, por toda e
qualquer pequeña falta. Quem vé que os outros sabem suportar
falhas miúdas, mais fácilmente aceita urna repreensáo de im
portancia e se corrige também dos defeitos menos vultuosos.

Tais sao as grandes linhas que devem reger a prática da


■correcáo fraterna num sentido construtivo e cristáo, evitan-
do-se as amarguras e paixóes que dai se poderiam originar.
Pique bem marcada, na pessoa ou ñas pessoas que empreen-
dem a correcáo fraterna, a necessidade de desprendimento de
si mcsmas e de auténtica procura do bem do próximo.

LIBERAL (Curitiba) :

■ 4) «Como e até que ponto se podem justificar críticas


dos católicos aos atos das autoridades eclesiásticas ?
As leis e normas práticas ditadas pela hierarquia seráo
sempre isentas de erro ou infaliveis ?»

A Igreja nao é sociedade meramente humana, mas, por


definigáo ou quase definiclo, é o CorpO Místico de Cristo ou o
Cristo prolongando a sua vida na térra através de criaturas
"humanas e instituigóes visíveis. O misterio da Encamagáo
assim se continua na Igreja. Cf. «P.R.» 39/1961, qu. 2;
34/1960, qu. 5.
Em conseqüéncia, será preciso distinguir em nossa res-
T?osta os dois aspectos característicos da Igreja: o humano e
o divino. Fazendo isto, perceberemos até que ponto as suas
normas sao isentas de erro.

1. A Santa Igreja: sua face humana

Na medida em que consta de seres humanos, a Santa Igreja


•estará sempre sujeita a apresentar ao mundo urna face ora
mais, ora menos depauperada e humilde, face que poderá ser
•continuamente purificada e embelezada. Nenhum dos filhos da
Igreja, nem os. mais graduados, representa adequadamente a
realidade interior ou divina da Esposa de Cristo, a qual, como
afirma Sao Paulo (Ef 5, 27), nao tem. mancha nem ruga. Em
toda alma crista pode-se dizer que há um setor «já evangeli
zado» e outro «ainda nao evangelizado», o qual se exprime por
tendencias desordenadas, conseqüéncias do pecado de Adáo.
Compreende-se entáo que os filhos da Igreja possam incor-
rer em perigos de falhar e de fato venham a falhar. Em tais

— 375 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963,: qu. 4

casos, ser-lhes-á aplicável e útil a correcto fraterna dentro dos


termos explanados na questáo 3 déste fascículo. Até mesmo
as autoridades da Igreja poderáo ser beneficiadas por ésse
recurso, desde que os súditos apresentem suas observagóes com
humildade e reverenda.
O S. Padre Pió XII, alias, afirmava que dentro da Igreja
deve haver, no tocante a assuntos nao essenciais, a liberdade
de opiniáo pública e a possibilidade de se proporem pareceres
diversos sobre a mesma questáo (desde que nao seja afetada
a estrutura do Credo e da Moral). Com efeito, em discurso aos
participantes do Congresso Internacional da Imprensa Católica
em Roma (1950) asseverava S. Santidade :

«A opiniáo pública constitui, sem dúvida, o apanágio de toda socie-


dade normal, composta de homens que, conscientes de sua conduta
pessoal e social, estio intimamente inseridos na comunidade de que
sao membros».
E concluía:
«... Gustaríamos de acrescentar ainda urna palavra acerca da opi
niáo publica no seio da própria Igreja (naturalmente em assuntos dei-
xados á livre discussáo). Isto nao pode causar espanto senáo aos. que
desconhecem á Igreja, ou a conhecem mal. Pois, em lim de contas, Ela
é um corpo vivo, e faltaría algo á sua vida, se lhe faltasse a opiniSo
pública, em prejuízo dos Pastores e dos fiéis» (cf; «Revista Eclesiástica
Brasileira» 1950, pág. 499).

Contudo, ao consignar estas afirmagóes do S. Padre


Pió XII, nao poderíamos deixar de lembrar o seguinte : quem
faz observaeóes aos homens da Igreja, desejando realmente
promover o bem da Cristandade, tem que empregar cautela e
ponderagáo ainda maiores do que ao censurar os homens de
outras entidades ou corporagóes. Sim; a crítica feita as auto
ridades eclesiásticas é fácilmente estendida, por quem a ouve,
á Igreja inteira ; redunda nao raro em prejuízo para a Esposa
de Cristo como tal, desprestigiando-a; a própria fé em Cristo
e em Deus pode ser assim prejudicada ou abalada. Certamente
as nossas palavras, quer sejam construtivas, quer destrutivas,
tém alcance enorme, nem sempre avaliado por quem as profere.
Por conseguinte, quem deseje exercer sadiamente a corre-
gáo fraterna ou filial dentro da Igreja deverá sempre levar ,em
conta especial o fator «oportunidades ; indagará consigo
mesmo: «Produzirei realmente maior bem do que mal ao
apontar as fainas e criticar ? Nao seria melhor valorizar o
que de bom se eheontra nos irmáos e nos superiores, e procurar
incentivá-lo a fim de que assim se extingam as falhas?».

Principalmente em nossos dias no Brasil nota-se que a tendencia a


criticar nao está sempre isenta de paixao; dissemina íreqüentemente

— 376 —
CRITICA AS AUTORIDADES DA IGREJA

azedume, mal-estar e espiritq.de revolta ou desánimo, em vez de sus


citar íruto positivo. Há certos pronunciamientos que, desejando denun
ciar males, usam de linguagem pouco feliz, e assim desconcertam mais '
do qué concertam. Ademáis, é preciso considerar qué a confusao da
opiniáo pública ja.é.tilo grande que as criticas feitas as autoridades
multas vézes só servem para dividir os bons, criando partidos e corren-
tes justamente entre aqueles que mais do que nunca deveriam estar
unidos entre si. O ambiente de nossos dias, agitado e equivocado
como é, requerer mais cautela por parte de quem fala em público do'
que o ambiente de há dez anos atrás; o íato de se poder íazer com van-
tagem tal ou tal critica há anos atrás, nao quer dizer que hoje em dia
se possa repetir a mesma critica com o mesmo proveito; embora o que
se queira dizer seja verdade ou seja a indicagáo de,urna falha real,
será preciso ponderar se a acentuacáo de tal íalha em público nos nos-
sos días logrará eíeifos positivos para a causa do bem e da reconstru-
cáo ou, antes, servirá á causa do mal e da destruicao. A mentalidade
pública será tal nos dias presentes que aproveitará sadiamente as pala-
vras de critica feita a esta ou aquela autoridade ? Ou, antes, estará in
clinada a tirar dai conclusdes pouco animadoras e ventajosas ?

Eis algumas consideraeóes que parecem exigir de todo


filho da Igreja ou simplesmente de todo homem de bem urna
atitude de reserva ou sobriedade no uso da corregáo fraternal
ou filial.
Voltemo-nos agora para o outro aspecto, aspecto interior,
da Igreja.

2. A Santa Igreja: Cristo vivo na térra

Dizíamos que na Igreja se prolonga o misterio da Encarna-


gáo. Isto significa, entre outras coisas, que a Igreja como tal
nao peca. Mais aínda: significa que o Salvador assiste á sua
Igreja, para que, nao sómente ao propor a doutrina do Evange-
Iho, Ela seja fiel ao Senhor, mas também para que, ao indicar
a seus filhos leis práticas ou normas de conduta, Ela as proponha
de modo a nao induzir em erro moral ou pecado.
Esta afirmagáo, cujo teor aínda é muito geral, deve deter
agora mais atentamente a nossa considerado, a fim de se per-
ceber melhor que lugar possa caber é. crítica diante das diretivas
eclesiásticas.
Pergunta-se, pois : as leis e normas práticas ditadas pelos
pastores da Igreja serio sempre isentas de erro ou infaliveis?
A fim de responder com clareza, comec.arem.os por lembrar
os diversos tipos de preceitos ou normas que a Igreja formula
por meio de seus pastores ou doutores.
Distingamos logo : A) normas que interessam de modo geral
a Cristandade e, por conseguinte, sao extensivas a todos os fiéis;
B) normas de interésse particular concernentes a tal caso ou tal
grupo de pessoas apenas.

— 377 —
.«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 4

A) Normas de interésse geral

1) Entre os preceitos de interésse geral, existem alguns


dos quais a Igreja é mero porta-voz ou mero órgáo transmissor :
já se acham como tais, explícitos, ou na lei natural ou no depó
sito da Revelagáo divina. Sao os preceitos básicos da vida crista'
dirétamente comunicados aos homens pelo próprio Deus.

A título de exemplos, podem-se citar:

Os mandamentos do Decálogo, que se compendiam no seguirte:


-«Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coracao, com toda a tua
alma, e todas as tuas foreas... E amarás ao teu próximo como a ti
mesmo» (Le 10, 27s);
a lei: «todo inocente tem direito á vida» (donde a proibigáo do
aborto, a qualquer titulo que seja);
os bens alheios consignados em depósito tém que ser restituidos
ao legitimo proprietário;
as funedes e finalidades da natureza háo de ser respeitadas (donde
o veto á poligamia, ao divorcio, á limitacao da natalidade por meios
anticoncepcionistas artificiáis);
o dever de receber os sacramentos, em particular... a S. Eucaris
tía («Em verdade, em verdade vos digo: se nao comerdes a carne do
Filho do homem e nao beberdes o seu sángue, nao tereis a vida em
vos», Jo 6, 54);
o conselho: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o
aos pobres» (Mt 19,21).

Em relagáo a essas normas a Igreja faz as vézes de mera


mensageira; é Deus mesmo quem as promulga. Por isto sao sem-
pre santas e em todos os tempos válidas, independentemente do
ritmo da cultura ou das condigóes sociais da humanidade.

2) Existem preceitos de alcance universal (para todos os


fiéis) que nao se acham como tais explícitamente no depósito
da Revelacáo, mas que se encontram coñudos implícitamente
nos mandamentos que acabamos de assinalar. A Igreja tem a
missáo de os promulgar; ao promulgá-los, porém, nada acres-
centa de novo ao deposito revelado, apenas traz á tona ou mani-
festa aos homens o que nesse depósito se acha incluido. Tais
preceitos também sao irreformáveis, independentemente das
contingencias da historia humana.

Como exemplos, podem-se apontar :

a condenacáo do duelo, decorrente da condenacao do homicidio


(5« preceito do decálogo). OS. Padre Bento XTV, em 1752, rejeitou como
falsas, escandalosas e perniciosas as seguintes proposigSes:

— 378 —
CRITICA AS AUTORIDADES' DA IGREJA

«O militar que, se nao oferecesse ou aceitasse um duelo, fósse tido


como medroso, tímido, covarde e inábil para as funcóes militares e,
por conseguinte, fósse destituido dos servigos mediante os quais sus
tenta a si mesmo e aos seus familiares ou tivesse que perder para sem-
pre a esperanca de ser promovido..., nao teria culpa nem sofreria
pena, se oferecesse ou aceitasse o duelo.
Podem ser desculpados aqueles que aceitam ou provocam duelo,
até mesmo para defender a sua honra ou evitar o desprézo dos homens,
desde que tenham certeza de que tal duelo nao se realizará porque
outras pessoas o impedirao.
Nao incorre ñas penas estabelecidas pela Igreja para os que com-
batem em duelo, o general ou oficial de exército que aceite um duelo
pelo motivo de temer seriamente a perda da sua fama e do seu cargo.
No estado natural do género humano, serla licito aceitar e oferecer
duelo para conservar com honra os haveres próprios, desde que nao
íósse possivel por outros meios evitar a perda dessas posses.
A concessáo assim feita para o estado natural do género humano
pode ser estendida ao estado de coisas de urna nacáo presentemente
mal governada, nacáo em que a negligencia ou a maldade dos magistra
dos deixam abertamente de fazer a justiga devida» (Denzinger, Enchi-
ridion 1491-95).

Outro exemplo de lei implícitamente contida em mandamentos ex


plícitos do Senhor é a obrigacáo da confissáo auricular. Se Cristo
comunicou aos Apostólos e seus sucessores o poder de julgár os peca
dos, perdoando-os ou nao os perdoando segundo as disposicoes dos pe
cadores (cf. Jo 20,22), o mesmo Senhor assim intimou aos homens que
há obrigacáo de confessarem as culpas, pois, de outro modo, nao seria
possivel aos ministros de Deus exercer a íaculdade que o Salvador
lhes comunicou. Por conseguinte, a Igreja, ao mandar que se faca a
confissáo auricular, apenas formula explícitamente aquilo que no S.
Evangelho já se acha implícitamente; cf. Denzinger 899 e 917.

Seja licito acentuar que os preceitos até aquí recenseados


(n« 1 e 2) sao de autoridade divina e, por isto, intangíveis aos
homens. A Igreja cabe únicamente a funcáo de os transmitir
e de explicar o seu sentido; para que Ela o faga auténticamente,
o Espirito Santo lhe dispensa assisténcia infaiivel.

A Igreja, ao ensinar a moral ou os bons costumes ao povo de Deus,


nao pode ser destituida da mesma assisténcia infaiivel de que Ela goza
quando ensina a doutrina ou o dogma, pois, se Ela pudesse engañar em
materia de moral, Ela também se poderla engañar em materia de fé.
Em vérdade, a fé ensina que toda ylrtude é.boa e todo vicio é mau;
por isto, a Igreja, como instituto de salvacao, so pode ensinar a virtude-
e jamáis incutir o vicio.

É preciso, porém, enumerar ainda certas diretivas que a


Igreja formula visando aplicar os preceitos divinos a sitnacóes
concretas e contingentes ñas quais se possam encontrar os seus
filhos. Sao normas do direito eclesiástico, decorrentes própria-
mente do poder legislativo da Igreja. Tais seriam

— 379 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 4

3) certas normas deduzidas das leis dé Deus,

a) .'.. ou deduzidas á guisa de conclusoes nao absoluta


mente necessárias, mas convenientes e sabiamente avalladas
pela autoridade da Igreja.
Assim, por exemplo, a Lei de Deus no Évangelho manda que os
fiéis .recorram ao sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor (S. Eu
caristía). Já, porém, que os homens caiam em omissáo habitual nesse
setor, a prudencia da Igreja no Concilio do Latrao IV (1215) houve por
bem preceituar ao menos urna comunháo por ano (no tempo de Pás-
coa); cf. Denzinger 437;
Cristo instituiu a coníissao dos pecados. Para que nao íicasse váo
tal sacramento, o mesmo Concilio do Latrao também julgou oportuno
fixar o minimo de urna confissáo por ano.

Promulgando tais disposigóes, o Direito Eclesiástico nao fez


senáo concretizar o espirito das leis divinas, para que estas me-
lhor consigam o seu objetivo.

b) ... ou deduzidas á guisa nao de conclusoes convenien-,


tes, mas de deferminacoes mais predsas do depósito revelado.

Note-se, por exemplo, que a S. Escritura manda ao homem, renun


cie a si mesmo (cf. Mt 16, 24-26; 18,8s). Diante disto, a Igreja determi-
nou formas precisas de renuncia como a abstinencia de carne e o jejum
(observancias da Quaresma, das Quatro-Témporas, etc.).

Eis outros exemplos de tais determinagóes precisas :


Existe o preceito divino de comer a carne e beber o sangue do Filho
do homem. Sabe-se, porém, que a carne e o sangue do Senhor se encon-
tram presentes tanto no pao como no vinho consagrados; por conse-
guinte, os fiéis cumprem o preceito divino, quer tomem as duas espe
cies consagradas na S. Comunháo, quer urna só das duas.' Consciente
disto, a Igreja determinou, ém fins da Idade Media, que se dé a S. Co-
muhhao apenas sob a forma do pao eucaristico, omitindo-se a distri-
buicáo do cálice a fim de evitar profanacOes e sacrilegios.
O fato da real presenga do Senhar no sacramento da Eucaristía
exige, seja Ele ai devidamente adorado pelos fiéis. Em conseqüéncla, a
Tgreja determinou genuflexáo, incensacáo, procissfies, Horas San
tas, etc., que exprimem concretamente a adoracáo a ser tributada ao
Senhor no SS. Sacramento.

As normas referidas sob éste n« 3 pertencem, como nota


mos, ao Direito Eclesiástico; derivam-se do-poder legislativo da
Igreja. Para as formular adequadamentey-ensinam os teólogos
que a S. Igreja goza de assisténcia divina relativa, assisténcia
que faz sejam tais normas prudentes e benfazejas, embora nao
irreformáveis ou ¡rrevogáveis. Assim a lei do jejum e da abatir,
néncia pode ser, e tem sido, reformada segundo a oportuñidade
e as exigencias dos tempos; a distribuicáo do cálice eucaristico
aos fiéis já foi praticada e poderá voltar a ser praticada...■

_ 380. .4-
CRITICA AS AUTORIDADES DA IGREJA

É claro que a S. Igreja nada pode mandar de imoral ou no


civo, ... nada que entre em confuto com a lei natural ou com a
moral do Evangelho. Mas nao basta dizer isto. É preciso outros-
sim reconhecer que, ao dar determinagóes de interésse geral
para todos os fiéis, á Igreja as dá de maneira sabia, em termos
adequados á situacáo do momento, embora tais termos possam
vir a ser obsoletos ou pouco oportunos em situacóes posteriores.

O assunto, porém, se torna mais delicado e difícil quando se


trata de analisar normas baixadas pelas autoridades eclesiásti
cas em vista de casos particulares, casos que nao afetam nem
póem em perigo o bem da Cristandade como tal. É o que vamos
considerar abaixo. •

B) Normas de interésse particular

Focalizaremos apenas os casos que dizem respeito as rela-


góes da Igreja com os governos civis, os movimentos políticos e
as correntes culturáis déste mundo.
De modo geral, deve-se dizer que as medidas e atitudes prá-
ticas tomadas pela Igreja nesta linha sao como que os vasos
capilares do seu poder legislativo. Ésses vasos capilares atingem
terreno extremamente uicérto, movedigo e cheio de surprésas,
Faz-se mister, porém, precisar alguns pontos.

Tando Cristo instituido a Igreja para a salvagáo dos no-


mens, é de crer que também os pronunciamentos eclesiásticos
nos setores políticos e culturáis nao caregam, de certo modo,
da assisténcia do Espirito Santo, desde que sejam oficialmente
proferidos por legítimas autoridades eclesiásticas. Contudo me
rece atengáo a índole própria de tal assisténcia : ela nao poupa
aos homens da Igreja nem provagóes, nem hesitagóés, nem mes-
mo certas falhas; as vézes, parece abandoná-los as suas próprias
luzes e aos recursos da sua pericia, permitindo que váo apren-
dendo a custa de dolorosas experiencias.
O Espirito Santo permite freqüentemente, na ordem das
coisas temporais, que a prudencia dos homens se exerga, com a
perspicacia e o tino ora mais agugados, ora menos agugados,-
que cada individuo possa ter. Já que a prudencia tem por tarefa
aplicar principios doutrinários perenes a realidades práticas con
tingentes, o juizo da prudencia pode variar de pessoa a pessoa,
pois cada urna possui seu bom senso e seu temperamento indivi
duáis; além disto, as situagóes concretas em que os cristáos
vivem¡ apresentam'múltiplas facetas. A,um portante será licito
adotar tal alvitre,. pois corresponde, bem a tal faceta dá reali-

— 381 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 4

dade; ao mesmo tempo, será lícito a outro seguir outro alvitre¿


pois corresponde igualmente a outra faceta da realidade... E
nao se poderá dizer que apenas um ou apenas o outro tenha en-
táo razáo; a realidade é, por vézes, complexa e instável demais
para permitir que se fixe um julgamento definitivo e urna ati-
tude padráo, irreformáveis para todos os interessados.

Tenham-se em vista as observac5es muito reais de Ch. Journet:

«No setor das coisas temporais, a prudencia, a sabedoria, a oportu-


nidade dos pronunciamentos eclesiásticos nao sao sempre evidentes aos
olhos de todos os cidadáos. Por vézes mesmo, pareceráo carecer de
homogeneidade, pois... haverá opinióes contrarias 'aquém e além dos
Pirineus' ou até no interior das mesmas fronteiras. Nao obstante, os
arautos dessas opinides contrarias estaráo persuadidos de que interpre-
tam íielmente os desejos da Igreja e da autoridade suprema. Entáo a
Igreja, una no que diz respeito ás coisas divinas, parecerá dividir-se de
algum modo por suas próprias máos no que diz respeito ás coisas déste
mundo, ou seja, no tocante á aprovacao de tendencias políticas conser
vadoras ou progressistas, a propósito da legitimidade de certa forma
de govérno..., a propósito da justica ou da injustica de urna guerra e
de urna conquista, a respeito da denuncia de tal ou tal artigo de um
tratado internacional. A consciéncia dos fiéis será submetida a duras
provas» (L'Église du Verbe Incarné I. Paris 1941, 451s).

Contudo faz-se mister dizer que a assisténcia do Espirito


Santo em questóes temporais, por mais pálida ou remota que
parega, será sempre suficiente para assegurar o desenvolvimento
homogéneo da historia da Igreja ou para garantir o mínimo de
condigóes temporais necessárias á missáo da Esposa de Cristo
no mundo... O Espirito Santo estará sempre, por altos e babeos,
guiando a Igreja para a vitória definitiva da causa de que Ela é
porta-voz, ou seja, do Reino de Deus. Neste sentido é que se pode
afirmar que, também no tocante ás relagóes da Igreja com os
poderes da térra, o Espirito Santo lhe presta assisténcia.
Em vista disto, torna-se oportuno concluir que é sempre
temerario e pouco recomendável aos fiéis católicos afastar-se
de certas grandes diretrizes das autoridades eclesiásticas, desde
que estas julguem conveniente pronundar-se de maneira colé-
tiva ou solene em questóes temporais ou sociais. Por certo, os
bispos nao efetuam tais pronunciamentos sem motivo serio, isto
é, sem que valores de consciéncia e religiáo estejam direta ou
indiretamente em causa; também nao os efetuam sem pesquisas
e deliberacóes previas, orientadas por especialistas e peritos hu
manos e, mais aínda, acompanhadas pelo Espirito de Deus que
vive na verdadeira Igreja.
Dé-se, pois, o devido acato a tais declaracóes, etnbora nao
sejam infaliveis. A causa da unidade e da coesáo dos filhos da

— 382 —
CRÍTICA AS AUTORIDADES DA IGREJA

Igreja entre si e, conseqüentemente, o testemunho de Cristo a


ser dado ao mundo exigem tal respeito. Evangelizar o mundo é
obra da Igreja e de Igreja (=de comunidade), nao de franco-
-atiradores.

Apéndice

A título de ilustragáo, seguem-se alguns textos onde o


S. Padre o Papa Leáo Xm analisa motivos que podem causar
hesitagóes e angustias nos homens da Igreja (e nos homens de
bem em geral) diante das complexas e ambiguas situacóes que
as rápidas mudancas políticas de nossos días tém suscitado.

No fim do sáculo passado, por exemplo, tratava-se, entre


católicos, de aceitar ou nao o novo estado de coisas instaurado
na Franca pela proclamacáo da república em substituicáo da
monarquía : enquanto a prudencia de uns os levava a dizer sim
(pois julgavam que se poderia estabelecer um regime republi
cano cristáo), a prudencia de outros, levando mais em conta as
amea?as e os riscos que pesavam sobre a nova situagáo, os in-
duzia á negativa.
Nessa contingencia, escrevia S. Santidade aos católicos da
Franca:

«No plano especulativo, os católicos, como todos os cidadáos, tém


plena liberdade para optar por qualquer das duas formas de govérno
(monarquía ou república), pois nenhuma délas se opSe, por sua natu-
reza mesma, ás exigencias da sá razáo ou ás máximas da doutrina
crista*» (ene. ao clero francés, de 16 de feverelro de 1892).

A evolucáo dos tempos pode, sim, transformar a vida de


urna nagáo, exigindo a instauracáo de urna forma de govérno
mais condizente com o novo panorama nacional. Acontece,
porém, nao raro que a mudanca de regime se faz mediante vio
lencia e derramamento de sangue, o que certamente nao é dese-
jável; contudo as novas situagóes, por mais ilegítimas que sejam
em sua origem, impóem aos cidadáos urna opgáo; disto resulta
naturalmente embaraco para os homens de bem. Tendo em vista
a mencionada situagáo francesa, escrevia entáo S. Santidade:

«Tais mudancas (de govérno) estao longe de ser sempre legitimas


em sua origem; é mesmo difícil dizer que o sejam. Nao obstante, o bem
comum e a tranqüilidade publica, que sao os criterios supremos, im-
p5em por vézes que se aceite o novo govérno, o qual de fato se acha
estabelecido em lugar do anterior já desaparecido. O novo estado de
coisas suspende as regras ordinarias de transmissao dos poderes; pode
mesmo dar-se que com o tempo essas regras sejam abolidas? (ene. aos
cardeais franceses, de 3 de maio de 1892).

— 383 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 4

O S. Padre fazia notar também que os novos govérnos se


constituem de tal modo que representam o poder do qual ne-
nhum cidadáo consegue fazer abstracto. Em tais casos, dizia :

«Aceitar ésses xegimes é nao sómente permitido, mas até recomen


dado e mesmo imposto pelas exigencias do bem social, exigencias que
os suscitaram e que os conservam... O grande dever de respeito e
submissáo durará enquanto as exigencias do bem comum o pedirem,
pois o bem comum é, abaixo de Deus, na sociedade, a lei primelra e
última» (ene. ao clero francés, de 16 de fevereiro de 1892).

O Papa chamava outrossim a atencáo para o seguinte :

«A situacáo do pais (da Franca) se modificou de tal modo que, ñas


condicSes atuais, nao parece possivel voltar á antiga forma de poder
sem passar por graves perturbares» (carta ao Cardeal Lecot, de 13
de agosto de 1893).
Conseqüentemente, Leáo XIII pedia aos católicos franceses, acei-
tassem o govérno republicano. Ao fazé-lo, frisava bem que tinha em
vista «únicamente salvaguardar os interésses religiosos que lhe esta-
vam confiados» (ib.) e usar «do direito e do dever de escolher os meios
mais adaptados ás circunstancias do tempo e do pais a fim de promover
o bem da Rellgiao em meio aos povos» (carta ao Cardeal Perraud, de
20 de dezembro de 1893).

Todavía, junto a tais afirmagóes, o S. Padre nao se esquecia


de focalizar outras facetas da realidade, facetas que nem sempre
sao levadas em conta nos momentos de agitagáo nacional. Cha
mava, sim, a atengáo para as situagóes em que nao raro é pre
ciso fazer distingáo entre o govérno constituido e as Ieis emitidas
por ésse govérno :

«A aceitacáo do govérno de modo nenhum implica em aceitagáo


das Ieis nos pontos em que o legislador, esquecendo a sua missao, se
p6e em confuto com as normas de Deus e da Igreja. É necessário frisar
bem: quem exerce sua atividade pessoal e usa da sua influencia para
levar os govérnos a sanear Ieis iniquas ou destituidas de sabedoria, dá
provas de dedicagáo á patria t&o inteligente quanto corajosa; ao fazer
isso, nao merecerá ser acusado de mínima sombra de hostilidade aos
poderes encarregados de governar a causa pública» (3 de maio de 1892).
«A Iegislacao é obra dos homens que se acham no poder e que de
fato governam a nacáo. Donde se segué que, na prática, a qualidade das
Ieis depende mais das qualidades désses homens do que da forma de
govérno» (16 de fevereiro de 1892).

Estas distingues sao muito oportunas ainda em nossos días.


Citamo-las únicamente para por em evidencia como pode haver
divergencias de orientagáo prática política ou social entre os pró-
prios filhos da Igreja, sem que por isto a unidade da fé e da
Igreja seja afetada.

— 384 —
AGIR POR CAUSA DE UM PRAZER

Note-se também que no texto ácima Leáo XIII nao entendía


propor a violencia como meio normal de subida ao poder ou de
transformar os regimes. Apenas tinha em vista situagóes já cria
das por um ilegitimo emprégo da violencia; procurava indicar
qual possa entáo ser a atitude de urna consciéncia crista...
Leáo Xm, considerando o caso francés, nao se via situado diante
de um regime totalitario materialista, mas diahte de um regime
democrático instalado em sucessáo á monarquía.
O S. Padre Joáo XXm, citando alias Pió XII, reprova ex
plícitamente o uso da violencia como tática para remediar aos
males sociais : «nao revolucao, mas evolucao», incutia S. Santi-
dade (cf. ene. «Pacem in terris» ns. 161 e 162).

DI. MORAL

EXISTENCIALISTA (Fetrópolis) :

5) «As pessoas que nao querem adotar métodos anticon-


cepcionistas para limitar a prole, dizem que nao' é licito agir
únicamente por causa do gozo.
Entáo o prazer nao será motivo digno de justificar urna
acáo humanp.?»

1. Nao há dúvida, todo homem, ao agir, tem em vista um bem,...


um bem real ou, ao menos, aparente (bem aparente, isto é, algo que
ao sujeito parece ser bom, embora na verdáde nao o seja). Ninguém
age visando o mal em si e por si, mas únicamente na medida em que
ao mal se prende um bem qualquer (que vem a ser o verdadeiro motivo
da acáo); assim o próprio suicida, desejando a morte, deseja algo que
no momento Ihe parece ser um bem (deseja, sim, a morte como repouso
ou cessacjüo da luta, isto é, como mal menor do que o «mal de viver»...).

Ora os moralistas distinguen! tres modalidades de bens: o


bem honesto, o bem deleitoso e o bem útil.
O bem honesto é o bem conforme as normas da moralidade,
ou seja, conforme a Leí de Deus, a qual se manifesta no íntimo
de cada homem pelos ditames da consciéncia.
O bem deleitoso é o objeto que satisfaz as tendencias sen-
suais. ou intelectuais do individuo e, de certo modo, se destina a
saciá-las.
O bem útil é o objeto que serve de meio ou instrumento para
se alcangar determinado fim. Muitas vézes, o fim intencionado
é meramente temporal ou material, visado independentemente
do Fim último do homem, que é Deus. Pode acontecer, porém,

— 385 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 5

■que o bem útil seja dirigido á obtencáo do supremo Fim ou da


vida eterna.

2. Feita a distingáo entre bem honesto, deleitoso e útil, nao resta


dúvida de que o homem, agindo por causa de um bem honesto, reco-
nhecido como tal, sempre age bem ou pratica urna aguo moralménte
boa. Nao há objecáo importante a íazer neste setor.
No tocante aos bens útels, está claro que por sua natureza ihesma
sao orientados para outro objeto ou para um fim ulterior. Essa órien-
tagáo dá a moralidade ao uso de tais bens, fazendo que seja um uso
(ou ato) moralménte mau (se o objetivo ulterior fdr mau) ou moral-
mente bom (se o objetivo visado e o próprio meio utilizado fdrem
bons). Também neste setor nao há própriamente dúvidas; cf. «P.R.>
■68/1963, qu. 3 (o fim bom nao justifica meios maus).

Questáo mais seria, porém, se póe quando se consideram os


bens deleitosos. Estes podem ser encaminhados para um fim
ulterior, como também podem nao o ser; neste último caso, sao
visados em si mesmos e por si mesmos; a pessoa quer entáo o
prazer por causa do prazer apenas.
Em tais circunstancias, indaga-se : será lícito agir tendo em
-vista únicamente o gozo ou o prazer?
— Está claro que nao será permitido agir por causa de um
prazer desonesto ou pecaminoso. A dúvida se póe apenas quando
■se trata de um prazer honesto. Poderá tal prazer, considerado
«m si mesmo apenas, motivar legítimamente urna acáo do
'.homem?
A esta questáo a Moral sadia responde negativamente: o
«deleite, visado em si apenas, nao basta para justificar a atividade
•<da pessoa.
A razáo desta negativa é evidente : o prazer é algo que o
.Autor da natureza, Deus, anexou a certas atividades do homem
■a fim de as estimular e facilitar; por conseguinte, o prazer nao
<é algo de absoluto, nao pode constituir o fim ou o termo das as
pirares do homem, mas só pode ser legítimamente desejado
«dentro da perspectiva de urna finalidade ulterior. Quem quisesse
-■agir únicamente por motivo de gozo, faria do meio um fim, do
secundario o principal; por conseguinte, inverteria a ordem dos
-valores instituida pelo Criador, e assim pecaría.

O prazer sexual foi associado por Deus á fúñelo generativa a íim


.■de que o homem seja incentivado a propagar a sua especie; tal prazer
portanto s.ó poderá ser aceito pelas pessoas que tenham era vista a "ge-
Tacao da prole dentro do quadro normal da geragáo, que é o matri
monio. •
O mesmo se diga com referencia ao deleite anexo á fungao Je
«comer: é estímulo para facilitar ao individuo a conservacao de sua

— 386 —
AGIR POR CAUSA DE UM PRAZER

vida. Fora desta perspectiva, tal prazer já nao tem sentido e nao é
apto a justificar a atividade (ou a acáo de comer) do individuo.

Tais principios explicam que o Papa Inocencio XI aos 2 de


margo de 1679 tenha condenado as seguintes proposigóes :

«É licito comer e beber até a saciedade, sem necessidade, por cansa


apenas do deleite dai decorrente, desde que com isto nao se prejudique
a saúde; com efeito, o apetite natural pode licitamente usufruir dos
seus atos próprios» (Denzinger, Enchiridion 1158).
«NSo há culpa alguma nem defeito venial, quando se pratica o ato
conjugal por causa apenas do prazer» (cf. ib. 1159).

A rejeigáo destas duas sentengas bem confirma que o g6zo


por si só nao pode ser motivo suficiente para que o homem
exerga alguma atividade.

O prazer tem sido comparado ao sal ou ao tempero que se costuma


colocar na comida a fim de que esta se torne mais apetitosa e digerivel.
Ora, assim como nao é normal comer únicamente por motivo do sal ou
do tempero, assim também nao será normal (por conseguinte, será
desregrado e ilícito) praticar urna acáo únicamente por causa do gozo.

3. Urna advertencia agora se impóe : as normas até aquí


expostas nao significam que alguém, ao agir, deva excluir todo
desejo de prazer. Pode urna pessoa licitamente aspirar ao deleite
que está anexo a determinada fungáo da natureza, desde que
considere e deseje ésse deleite como fim intermediario, subor
dinado a um fim ulterior honesto. O mal só comega quando tal
pessoa faz do deleite o fim ou o objetivo em última análise vi
sado pelo seu ato.

Disto se segué que alguém pode licitamente desejar um divertí-


mentó (jógo esportivo, espetáculo cinematográfico honesto, concertó
musical, etc.), e déle usufruir, desde que subordine o prazer daí deri
vado ao fim respectivo, que é «recrear as f&rcas da natureza, restaurar
o ánimo, conservar a saúde, etc.». Em outros termos : a consciéncia
crista nao se opSe a que se fagam programas recreativos, contanto que
se tenha em vista a razáo de ser dos recreios e dos dlvertimentos, razáo
de ser que é a conservacáo do equilibrio psíquico-somático das pessoas
interessadás.

4. Fergunta-se ulteriormente : e que quer dizer ésse «ter


em vista...»? Ou com que tipo de intengáo se deve desejar um
bem honesto ou urna finalidade ulterior quando se deseja um
recreio, um divertimento?
Respondem os moralistas que nao é necessário ter intengáo
explícita de referir o divertimento, por exemplo, á conservagáo
da saúde (nao é preciso que a pessoa tome consciéncia explícita
de que o seu divertimento é mero meio para atingir objetivo

_ 387 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 5

ulterior). Exigir urna tal advertencia ou reflexáo antes que a


pessoa realize qualquer de seus atos seria exigir esforgo muito
arduo, quase impraticável ñas condigóes habituáis da vida hu
mana, e, além do mais, esfórco desnecessário. — Basta que o
individuo tenha implícitamente a intengáo de conseguir o obje
tivo ulterior (ou, no exemplo dado, de conservar, a saúde).

E como se sabe que existe essa intengáo implícita?


Pode-se dizer que essa intengáo implícita já existe
quando a pessoa modera os seus atos de acordó com a reta razáo
iluminada pela fé ou de acordó com as leis da natureza, come-
gando, freando e terminando os seus recreios de modo a guardar
em tudo o dominio da razáo sobre os sentidos e as tendencias
da carne. Por conseguinte, a moderagáo no prazer pode ser in
terpretada como indicio de que a pessoa nao procura únicamente
o gozo, mas procura também a finalidade suprema do gozo que
é o aperfeigoamento da personalidade e a uniáo com Deus.

É S. Alonso de Ligório (t 1787) quem escreve:

«Quando alguém se senta á mesa sem pensar na conservacáo de


sua vida, mas únicamente no deleite da comida, nao peca por proceder
assim, pois essa pessoa deseja tal prazer ao menos virtualmente por
causa da conservacáo da sua vida; é o que faz que o seu desejo de pra
zer nao seja desordenado» (Theol. mor. 1. 5, tract. praeamb. n» 44).

O desejo virtual (ou intencáo virtual) de que fala S. Aíonso, é a


intencáo que a pessoa concebeu outrora explícitamente e em virtude
da qual (ou por influencia da qual) a pessoa está realmente agindo,
sem que disto tenha consciéncia, isto é, sem ligar o ato presente com a
intencáo outrora explicitada e jamáis retratada.
Há bons moralistas modernos que interpretam os dizeres de
S. Aíonso num sentido ainda mais largo: entendem a intencáo virtual
ácima enunciada, no sentido de intencáo meramente implícita, isto é,
intencáo que está incluida no simples íato de que a pessoa se comporte
razoávelmente ou moderadamente no ato de gozar (independentemente
de qualquer intencáo anteriormente concebida).

Para garantir a pureza da intengáo, seja virtual (no sentido


estrito), seja meramente implícita (conforme os modernos), re-
comenda-se que periódicamente o cristáo faga o oferecimento de
seus atos a Deus e proponha tudo realizar para a gloria do Cria
dor. Muito se deve desejar que tal propósito seja renovado todos
os dias de manhá; contudo isto nao é de preceito; nao comete
pecado quem nao o faga com tal assiduidade.

5. A Sagrada Escritura mesma fornece fundamento para


as doutrinas ácima... Com efeito, afirma o Senhor Jesús : «Em
verdade vos digo : no dia do juízo, os homens prestaráo contas
de toda palavra ociosa que tiverem proferido» (Mt 12, 36).

— 388 .—
PRESIDENTE PERÓN EXCOMUNGADO E ABSOLVIDO

Ao que observa S. Jerónimo (t 421) : «Se as palavras ociosas sao


objeto de prestacáo de contas, quanto mais os atos ociosos nao o serao!»
(Brev. in Ps., Ps. 15, ed. Migne lat. t. 26, 910).
Note-se bem que «ocioso» nao quer dizer «mau, intrínsecamente
mau», mas apenas «destituido de finalidade» ou «desviado da genuina
finalidade». Ora o genuino Fim do homem é Deus ou a uniáo com Deus;
por conseguinte, todo ato humano tem que ser, direta ou indiretamente,
encaminhado para éste Objetivo, a íim de ser genuino ou bom; caso
nao o seja, carece da finalidade devida, é ocioso e tornar-se-á motivo de
recriminacáo no juteo de Deus. Nesta categoría entra o ato de gozar,
desde que o gdzo seja desejado por si mesmo, sem ser subordinado a
outra finalidade ou ao Fim Supremo da atividade e da vida humana :
Deus.

6. Por último, compreende-se que, embora seja licito agir com


desejo de deleite (subordinado, sim, a urna íinalidade ulterior), mais
perfeito é nao levar em conta (na medida do possível) o gozo ou prazer,
e só voltar a atencáo para os bens que se relacionam com a reta razáo
e a fé (em tal caso, nao se considera diretamente a repercussao, agrá-
dável ou desagradável, que a agáo empreendida possa ter na sensibili-
dade da pessoa).
Éste conselho de perfeigáo tem sido abracado pelas almas sequio-
sas... A experiencia só o tem comprovado...

IV. DIKEITO CANÓNICO

ARGÉNTEO (Sao Paulo) :

6) «Como julgar o caso do ex-Presidente da República


Argentina Juan Perón, o qual, tendo terminado o seu govérno
com perseguísáo a Igreja, foi absolvido da excomunhao no inicio
de 1963?»

Exporemos primeiramente um breve histórico da questáo.


A seguir, procuraremos avaliar o significado dos aconteci-
mentos.

1. Os fatos oconidos

Aínda estio na memoria do público as ocurrencias regis


tradas na Argentina em maio/junho de 1955. O govérno nacio
nal chefiado pelo Presidente Juan Perón desencadeou violenta
perseguicáo á Igreja Católica, chegando a expulsar dois bispos
argentinos, dos quais um era Auxiliar e Vigário Geral de Buenos
Aires, D. Tato. Conseqüentemente, a Santa Sé lembrou, por de-
claragáo oficial, que, segundo o Direito Canónico, haviam incor-
rido em excomunhao todos os que tinham «usado de violencia»
contra os dois prelados argentinos. Ora, entre as pessoas assim
excomungadas, acreditava-se geralmente nos círculos eclesiásti-

— 389 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, qu. 6

eos que devia figurar o Presidente Juan Perón, o qual teria


muito provávelmente tomado parte no ato de expulsar os dois
bispos mencionados. Da parte, porém, dos amigos de Perón
fazia-se ouvir enérgica contestagáo, pois asseveravam que, con
forme a praxe da Igreja, um Chefe de Estado só é excomun-
gado mediante declaragáo nominal e explícita da Santa Sé; ora
tal nao se dera em relacáo a Perón, diziam tais amigos.

Como já foi dito em «P. R.» 54/1962, qu. 5, a excomunhao é urna


censura ou penalidade de fdro externo; recai sómente sobre os católicos
(é claro que nao atinge os nao-católicos, ou seja, aqueles que nao estao
em comunháo com a Igreja visivel), privando-os da participacáo dos
atos da Igreja, em particular... dos sacramentos — o que naturalmente
redunda em grave prejuízo espiritual. A excomunhao supOe delito e
culpa na consciéncia do excomungado, mas nao pode ser tomada como
um juizo sobre o estado de alma da pessoa; muito menos pode ser
entendida como condenacáo ao inferno; ela nada significa no tocante ao
fdro interno ou á consciéncia do individuo. A rigor, pode haver casos
em que a excomunhao pese sobre um fiel que em consciéncia nao tenha
culpa moral ou pecado : a excomunhao em tais casos se deverá ao íato
de que a pessoa estéve implicada em urna situacáo hedionda, situagáo
que supóe delito grave e que o Direito Canónico visa coibir mediante
tal sancáo extraordinaria.
Ulteriores esclarecimentos a propósito se encontram no citado
artigo de «P. R.»

A situacáo religiosa do ex-Presidente argentino, exilado


desde 1955, nao ocupou muito a opiniáo pública até meados de
marco de 1963. Nessa data, diversas agencias da imprensa noti-
ciaram que Perón, na Espanha, havia récebido do bispo de
Madrid a absolvigáo, o que equivalía a dizer que fóra levantada
pela Santa Sé a pena de excomunhao na qual (como se pansava)
o ex-governante argentino havia incorrido em 1955.
Nao há dúvida, Perón foi absolvido em sua residencia par
ticular, perto de Madrid, pelo bispo desta cidade, D. Eijo Garay,
e, a seguir, recebeu a santa Comunháo das máos do prelado. A
Santa Sé confirmou a noticia.
Tal fato vinha rematar urna serie de precedentes assim concate
nados :
Durante a primeira fase do Concilio Ecuménico em Roma (outubro-
■dezembro de 1962) o bispo de La Plata (Argentina), D. Plaza, parece
ter dado alguns passos oportunos para obter a reconciliagáo de Perón
com a S. Igreja. Da sua parte, o ex-Presidente, em fins de dezembro
de 1962, escreveu a S. Santidade o Papa Joao XXIII reafirmando a sua
fé católica e negando ter alguma vez usado de violencia contra repre
sentantes da Igreja; concluia pedindo que «ad cautelan» (por precau-
cao, ou seja, a fim de evitar possíveis dúvidas no futuro) lhe fósse con
cedida a absolvigáo da excomunhao, absolvicáo que seria válida no caso
de ter sido ele realmente atetado por excomunhao.
Por fim, aos 18 de Janeiro de 1963, o Cardeal Cicognani, Secretario
de Estado, dirigía, por meio do Sr. Nuncio Apostólico na Espanha,

— 390 —
PRESIDENTE PERÓN EXCOMUNGADO E ABSOLVIDO

D. Riberi, urna carta oficial ao bispo de Madrid, em que pedia a éste


prelado d'esse a absolvicáo a Juan Perón.
A ordem íoi devidamente executada. Contudo, poucos días após o
fato, a imprensa pós-se a divulgar noticias contraditórias a respeito das
func5és do bispo de Madrid no caso. Os jomáis nao espanhóis asseve-
ravam que Perón estivera primeiramente em conversagSes com D. Eijo
Garay e, a seguir, déle recebera a absolvigáo e a S. Comunháo em seu
domicilio aos 13 de fevereiro.
Na Espanha, porém, a «Prensa Asociada» e outros jomáis publica-
vam urna declaragáo atribuida ao Secretariado do bispo de Madrid,
conforme a qual D. Eijo Garay de modo nenhum tivera as pretensas
conversagoes com o ex-Presidente argentino; além disto, o comunicado
desmentía os rumores segundo os quais o Vaticano teria enviado urna
«.missáo especial» para apurar a situacáo religiosa de Perón frente k
Igreja Católica. Contudo, logo no dia seguinte os mesmos jomáis divul-
gavam outra declaragáo que éles haviam (dessa vez, sim) recebido
diretamente do Secretariado de D. Eijo Garay: tal documento afir-
mava que o bispo de Madrid «tivera encontros com o general Perón,
mas que o Secretariado ignorava a finalidade de tais contatos»; termi
nando, essa nota observava que o «estatuto religioso» do ex-Presidente
argentino nao era assunto «a ser divulgado pela imprensa».

Como se vé, parece que os círculos eclesiásticos da Espanha


lamentaram, tenha sido a absolvicáo de Perón táo rápidamente
difundida pelo noticiario dos jornais.
E por que?
É o que vamos ver no parágrafo abaixo.

2. O significado dos acontecimentos

1. Assim como a S. Igreja tem o direito de infligir sangóes


a seus filhos, visando a repressáo dos males ou abusos notorios
no foro externo, assim também Ela tem o direito de suspender
tais sangóes desde que as pessoas visadas déem sinais de repu
diar as situagóes em que estavam implicadas. Por conseguirte,
quando um cristáo excomungado mostra o desejo de se recon
ciliar com a S. Igreja, e rejeita os males em virtude dos quais
foi punido, as autoridades eclesiásticas costumam dar crédito a
tais afiímasoes, admitindo-as como sinceras, a menos que haja
evidentes indicios do contrario; a atitude pastoral da Igreja ou
o interésse de salvar as almas tem que prevalecer, em todas as
decisóes das autoridades eclesiásticas, ácima de quaisquer outros
interésses ou pontos de vista.

Um caso famoso na historia ilustra bom éste principio: quando


Gregorio VII absolveu o Imperador Henrique IV em Canossa (1077),
fé-lo únicamente por zélo pastoral, já que o monarca parecía dar provas
de arrependimento sincero pelos' atos de violencia que cometerá contra
a Igreja. Do ponto de vista meramente humano ou político, teria sido
mais vantajoso para Gregorio VII e a S. Igreja manter a excomunháo
de Henrique, pois, atingido por tal sangáo, íicava o monarca despresti-

— 391 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 70/1963, :qu. 6

glado aos olhos de seus súdltos e, por conseguinte, inabllítado para re


tomar siia política arrogante, desrespeitosa da Santa Sé., i-.-'-r
O desenrolar, dos acontecimentos após a absolvlcáó de Henrique IV
deu a ver qué ésse gesto benigno xedundava em graves desvantagens
temporais para a-S. Igreja, pois o monarca, sentlndo-se de novo, forte;
nao hesitou em vóltar as suas invectivas contra osdireitos da-Santa Sé.'
Contudo Gregorio qujs proceder como pastor-de almas ou;sacerdote,
levando em conta únicamente a salvacáo da alma do Imperador^'sém
■ se preocupar cornos dlssabpres ,que dai Ihe prcv}riam,-E íéz bem.,' só
lhe era licito proceder asslm..." . . •■"••. .;,;i-V:'/;.•■.•'
' Eis os fatores que expllcam como Juan Perón pdde ser ábsólvldo
da excomunháo que posslvelmeiite tenha pesado sdbre éle'por¡efeito
dos acontecimentos de junho de 1955 (dlzemos «posslyelmente», pois
nao interessa aquí apurar se Perón foi realmente ou náó éxcomungado;
basta o fato de que, para toda e qualquer eventualidade, recebeu a
. absolvicáo). Nao nos seria licito asseverar, sem indicios seguros, que
Perón haja sido hipócrita na proíissao de íé e futura fidelldade ou
aínda em outras declaragdes que fez k Santa Sé; para poder julgar o
caso com certa objetivldade, o público deverla conhecer com mais pre- .
cisáo o que se deu recentemente entre Perón e as autoridades eclesiás
ticas; ja que sómente a S. Sé está denté déssas ocorréncias, sómente
a ela compete avallar o «estatuto religioso» de Perón; aos observado
res dé fora cabe crer que os prelados tenham'ponderado coín/zélo e
espirita sobrenatural todos os elementos da situacáo e hajam proíerido
com justiga a senteríga de absolvigao; para se sustentar a,hipótese con-'
trária (má íé, intervengao de interésses mesquinhos, política^ etc.),
seria preciso citar provas.adequadas... ;- ; " .

2. Acontece, porém, que no caso de Perón as autoridades ecle


siásticas espanholas fizeram questáo de manter certa reserva sobre o
fato da absolvicáo, por causa das exploracoes políticas a,que se podía/
prestar o acontecimento; ñas proximidades dé eleicSes na Argentina'
(de íevereiro a julho de 1963) a reabilitacáo de Perón podaría.ser.mal.
entendida é mal utilizada por interésses partidarios. O Catolicismo, por
certo, nada tinha á esperar de alvissareiro, caso o peronismo yoltásse a
governar a Argentina. Do ponto de vista político, talvéz.-mais vanta-
josp íosse, para a Igreja, nao absolver Perón ou ao menos diferir a.
absolvicáo para outra época, mals tranquila no. setor da'política. Con
tudo aos pastores de almas náó teria sido legitimo delxar-se guiar por .
tais pohderacdes ou conjeturas demasiado humanas. Era preciso; antes
do mais, considerar que a salvacáo de urna alma estava em causa,
exigindp, na falta de xazOes contrarias, a receptividade benigna da
S. Madre Igreja. ■ ' .
D, Bstév3o Bettencoiíft O.S.B.

«PBRGÜNTE B RESPONDEREMOS» ::
í * '',■'.:.''•
Assinatura anual (porte comum) CfS.. 700,00
Assihatura anual (porte aéreo)" ;...:::.. .,...; ,Cr$ 980JOO
Número avulso de qualquer mes e ano ■ ^Cr$ ••■..- 70,00
Colegáo. encadernada de 1957 ..:...; ; l"CrS 1.000,00*,
, Colecao encadernada de qualquer dos anos seguintes .,.. Cr$, .1.200,00

: REDACAO . .\ ADMINISTEÁgAp 1 -' *


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Rio de Janeiro . TeL 26-1822 — EIo de-Janeiro

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