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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Río de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico • filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confisca


depositada em nosso trabal ho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
BfiSLÍOTBÜA ANO Vil
CKNTHAi

Ptt.
79
J U L H O

19 6 4
■■•-11
ÍNDICE

I. CIENCIA E RELIGIAO
P6B.
1) "Que diz a ciencia moderna sobre as causas do envelhe-
• cimento do homem ? ;
E que pensa o eristdo -a propósito ?'' - • • • • S87

H. DOGMÁTICA

2) "Como se explica, em tantos cristáos, um exagerado médo


da morte ?
Que fazer para evitá-lo ?" 290

III. SAGRADA ESCRITURA

S) "Como se justifica que a,Biblia, em linguagem aparen


temente grosseira, fale do dedo, da mdo e do braco de Deus ?
Deus é Espirito puro. Que sentido entSo podem.ter tais ex-
pressóes ?" • - 29S

TV. MORAL

í) "Em abril de 1964, o Papa Paulo VI afirmou o direito


de todo individuo humano á liberdade religiosa.
Esta declarando parece tño distante do espirito da Inquisi-
cáo ! Nao equivale a dizer que. t6da3 as religióes sao boas ?" ... 308

V. ESPIRITUAUCDADE

5) "Que sao os chamados 'dores do Espirito Santo' ?


Qual o seu significado na vida crista ?" sl9

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


xPERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano Vil — N' 79 — Julho de 19Ó4

I. CIENCIA E RELIGIAO

JUVENTUDE (Sao Paulo) :

1) «Que diz a ciencia moderna sobre as causas do envelhe-


cimento do homem?
E que pensa o cristao a propósito?»

1. Um Congresso de Medicina realizado em 1963 na cidade


de Sao Francisco (U. S. A.) chegou á conclusáo de que urna das
causas mais relevantes de envelhecimerito do ser humano é o
sofrimento ou a dor¡... sofrimento ou dor em qualquer de suas
modalidades : física (doengas, infecgóes, desastres...), ou moral
(aborrecimentos, choques, excitagóes apaixonadas...).
Verifica-se que o sofrimento é responsável pelo desgaste do
"organismo na proporgáo de 40%. Intensa dor faz rápidamente
embranquecer os cábelos.
Concluiram os médicos que um homem que tenha chegado
aos cinqüenta anos de idade sem dores nem preocupagóes de
grande vulto, possui a vitalidade de um individuo de trinta e
sete anos apenas.

(Notas colhldas na revista «Science et Vie», novembro de 1963).

2. Urna reflexáo crista sobre estes dados sugere certas


verdades importantes :

a) Urna das causas do envelhecimento, dizem-nos, é a dor


física. Ora em relagáo ao sofrimento físico p cristáo fiel está, de
um lado, mais imunizado do que o homem que nao tem fé;. vi-
vendo realmente segundo a sua consciéncia, o discípulo de Cristo
evita abusos que acarretam doengas, desastres e outros desgas
tes do organismo.

Assim se explica que, principalmente na vida religiosa, desde os


tempos dos primeiros eremitas no Egito e na Siria (séc. III/TV) até
riossos días (em conventos e comunidades religiosas), as pessoas consa
gradas a Déus cheguem multas vézes a veneranda velhice, morrendo
após longa peregrinacáo terrestre; a sobriedade e a austeridade do
regime conventual, a disciplina e o ritmo metódico de vida só concor-

— 287 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 1

rem para beneficiar a saúde; nlo.a depauperam, como se poderia talvcz


crer. v '
Nao há dúvida, em grau maior ou menor usufruem déste mesmo
beneficio todas as pessoas que vivem metódicamente, mesmo sem ter
a fé crista.
t

De outro lado, o cristáo sabe que a Providencia Divina per


mite oportunamente dores e molestias do organismo nos fiéis,
até mesmo ñas pessoas mais virtuosas, pois o sofrimento físico
contribuí para purificar as almas, desapegando-as de afetos des-
regrados para com as criaturas. Na medida em que está cons
ciente disto, o cristáo nao perde paz nem alegría em meio á
doenca; assim o seu sofrimento físico pode ser mitigado em re-
lacáo ao de quem nao tem fé. — É importante, porém, recomen
dar que nao se faca da Religiáo um sistema de medicina para o
organismo.

b) Outra causa de envelhecimento rápido que nos apon-


tam, é a dor moral. Ora frente ao sofrimento moral, o cristáo
fiel está também mais isento do que o incrédulo, pois por princi
pio ele nao deve alimentar preocüpacóes supérfluas, nem se abor
recer com facilidade, nem ceder ao desánimo. Antes, tende a
guardar em todas as vicissitudes da vida urna serena igualdade
de ánimo.
Contudo, á semelhanca do que anteriormente notamos, a
Providencia sabe dispensar as purificagóes ou noites do espirito
(provagóes da mente), que tém fim salutar. O cristáo entáo sofre
moralmente, más procura abracar com fé e dominio de si os
santos designios de Deus.

Em relacáo a preocupacSes supérfluas, que só fazem prejudicar o


organismo, eis algumas oportunas considerares de Jean Finot na obra
«Philosophie de la longévité» :'

«As íórgas bem utilizadas de nossa alma podem-nos prestar rele


vantes servicos do ponto de vista do prolongamento de nossa vida. É a
sugestáo mal aplicada que a encurta incontestávelmente. Chegando a
certa idade, intoxicamo-nós com a idéia de um fim próximo; perdemos
a fé ñas nossas fórcas e essas nos abandonam. Com o pretexto da idade
pesando sobre nossos ombros, adquirimos hábitos sedentarios: deixa-
mos de nos entregar ativamente ás nossas ocupacóes; pouco a pouco,
o sangue, viciado pela ociosidade, e os tecidos, mal renovados, abrem
a porta ás doengas.
A velhice precoce assalta-nos e sucumbimos mais cedo do que devia-
mos, em conseqüéncia de urna auto-sugestáo prejudicial. Ora tratemos
de viver da auto-sugestáo, em vez de por ela morrer. Tenhamos diante
dos olhos os numerosos exemplos que existem, de longevidade sadia e
robusta. Tacamos entrar e triunfar no nosso subconsciente a possibili-
dade de viver cem anos.

— 288 -^
CAUSAS DO ENVELHECIMENTO

Nao nos detenhamos ñas doencas de nossos órgáos, na carencia de


nossos tecidos, na decrepitude fatal. Habituémonos a ter confianca em
nossas fórcas físicas e intelectuais, em nossa,memoria, em nossas
aptidóes para a conversa e o trabalho. Barremos o' camlnho aos inimigos
de nossa felicidade, por meio de boas sugestOes» (texto citado por Va-
renne, Fique sempre jovem e viva mais tempo. Sao Paulo 1960, 14s).

Ainda merecen» atendió as seguintes referencias:

«Os grandes anclaos que deixaram nome na historia, eram seres


otimistas, pessoas que sabiam tirar da vida o que ela tem de melhor...
Bovier de Fontenelle, que viveu de 1657 a 1757, isto é, cem anos,
escreveu, referindo-se a si mesmo 'que era isento de grandes paixoes e
dono das pequeñas', Ticiano, que morreu aos 99 anos, e um ano antes
de morrer pintou a célebre 'Batalha de Lepanto', confessa que durante
toda a vida riu mals do que chorou.
Benjamín Franklin, que chegou a Paris com 78 anos e a todos
assombrou pelo seu verdor, escreveu, na sua 'Autobiografía', que sem
pre evitou as complicac5es sentimentais e se. defendeu contra qualquer
preocupagao sem objetivo.
John Rockfeller viveu 98 anos e teve urna velhice assombrosa-.
mente moca. Foi um otimista na accepgáo da palavra. Como ele, o seu
companheiro Henry Ford, que, aos 80 anos, ainda dirigía magistral-
mente seu vasto dominio industrial.
' Miguel Angelo, que morreu aos SO anos, Buffon, que aos 85 anos
escreveu' o últimQ volume de sua 'Historia Natural', Goethe, que ter- .
minou seu 'Fausto' aos 82 anos, Newton, que publicou o resultado de
suas pesquisas sobre a gravidade aos 85 anos, foram nao sómente no-
mens sobrios, mas homens de temperamento entusiasta.
Na verdade, ésses homens nao levaram vida calma e sossegada :
foram dirigentes, combatentes, tiveram atividades criadoras, mas pre-
servaram-se de todo excesso, soubéram disciplinar sua vida, interessar-
-se pelas grandes causas. Nao foram uns despeitados, malogrados ou
melancólicos. E, porque foram comedidos, táo prudentes quanto otimis
tas, tiveram vida longa e feliz. Imitemo-los» (Varenne, Fique sempre
jovem e viva mais tempo 87s).

Estas observagóes procedem de um ponto de vista natural, medici


nal ou psicológico. Sao sabias e verídicas, mas nao definem toda a posi-
Cáo do cristáo. Éste ainda possui outra fonte de esclarecimento sobre
a velhice...

c) Em qualquer caso, a perspectiva de envelhecer nao


causa espanto nem tristeza no cristáo. Como diría Sao Paulo,
ao mesmo tempo que o nosso homem velho, exterior, vai defi-
nhando, o homem novo, interior, se renova, de dia a dia (cf. 2
Cor 4,16). O envelhecimento f'sico do discípulo de Cristo é nor
malmente acompanhado de rejuvenescimento espiritual; quanto
mais está perto do fim de sua vida temporal, tanto mais o cristáo
toca a etemidade ou está prenhe do vigor da vida eterna.

Sobre os valores religiosos da velhice, cf. «P. R.» 73/1964, qu. 7.

_ 289 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 2

II. DOGMÁTICA

MENSAGEERO (Recife) :

2) «Como se explica, em tantos cristáos, um. exagerado


médo da morte?
Que fazer para evitá-lo?»
É espontaneo ao homem experimentar o horror á morte, pois, diz
a Escritura Sagrada, «Deus náoféz a morte nem se deleita com a perda
dos viventes» (Sab 1,13). A morte, embora seja um fenómeno natural,
entrou na historia déste mundo como conseqüéncia do pecado ou da
desordem que o primeiro homem causou na harmonia inicial da criacáo.
Compreende-se entao que, consciente disto, o cristáo de modo espe
cial repudie a morte. Isto, porém, nao justifica o pessimismo e o aba- '
timento (para nao dizer: certo desespero) com que muitas pessoas
encaram a morte ; na melhor das hipóteses, aceitam-na com resignacáo
tristonha.

Tais atitudes nao sao genuinamente cristas. Provém de um


modo naturalista e sentimental de considerar a.passagem do ho
mem sobre a térra e o seu termo final. Ésse modo de ver tem
varias causas, das quais aqui interessa salientar a seguinte : a
morte é, nos livros de espiritualidade, muitas vézes apresentada
de maneira a suscitar o pavor. Supóe-se um leitor mergulhado
no pecado, que deva ser excitado á conversáo. Para obter éste
fim, o autor lhe propóe a morte como espectro que deve ame-
drontar e abalar o individuo, provocando-o á preparagáo das
contas ao Juiz Supremo mediante uma conduta de vida menos
indigna ou mais virtuosa.
Em outras palavras : o aspecto moral da morte é especial
mente desenvolvido em tais escritos, ficando mais ou menos en-
coberto o sentido teológico muito profundo e positivo que a
morte deve ter aos olhos do cristáo. Esta há de ser vista á luz
da vitória sobre a morte que Cristo obteve, ou na perspectiva da
ressurreicáo final. A genuína meditagáo sobre o desenlace final
deve avivar a confianca e o ánimo forte do orante, em vez de
produzir mero pavor.

Remova-se, pois, a maneira deficiente de considerar a morte, ma


neira que em grande parte, os cristaos contemporáneos herdaram da
bibliografia do século passado.— A fim de facilitar a_renovacáo neste.
setor, indicaremos abaixo algumas das falhas que mais comumente
ocorrem nos livros que em tempos idos tratavam da morte.

1. Uso inadequado de certos textos bíblicos

a) Os autores fréqüentemente explanam os dizeres de


S. Paulo aos Romanos : «O salario do pecado é a morte» (6,23).

— 290 —
MÉDO DA MORTE?

Lembram assim que o pecado leva á morte, e á morte eterna no


inferno. Isto é certo; contudo nao se poderia deixar de incutir o
otimismo que domina toda essa passagem do Apostólo :

«Agora libertados' do pecado e feitos servos de Deus, frutiíicais


para a santidade e o vosso fim é a vida eterna. Pois o salario do pecado
é a morte; mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesús
Nosso Senhor> (Rom 6,22s).

Éste texto lembra que o cristáo é chamado por Deus á ver-


dadeira vida. Tal chamado atesta benevolencia gratuita da parte
do Senhor. Confianga, pois! Embora a conseqüéncia do pecado
seja realmente a morte, saiba o cristáo que o Senhor está pronto
a dar-lhe todas as gracas para que se liberte do mal e se entre
gue ao bem, conseguindo assim a verdadeira vida.

, b) Outro texto muito utiúzado é o de Hebr 10, 37 : «Aínda


um pouco, muito pouco tempo, e vira e nao tardará».
Quem cita esta passagem, supóe naturalmente que o sujeito
da frase seja a morte. Contudo um exame mais atento do con
texto mostra que tal trecho nao se refere á morte e, sim, ao Re
dentor, ... Redentor que, conforme o Profeta Habacuque (2, 2s),
o justo,' cheio de fé, deve aguardar com toda a confianza. Cf.
Hebr 10, 35-38:

«Nao abandonéis a vossa firme confianca, que é penhor de grande


recompensa. Precisáis de ter perseveranca, para que, depols dé cumprir
a vontade de Deus, obtenhais o que vos íoi prometido:

'Ainda um pouco, muito pouco tempo,


E chegará aquéle que vem, . ■ ■
E nao tardará.
Ora o meu justo vivera pela fé'». ' '

Os dizeres do Apostólo nao deixarn de ser serios e solenes,


aptos a sacudir negligentes e tibios. Contudo sua mensagem é,
antes, de otimismo e encorajamento do que de terror.

c) A mesma epístola aos Hebreus aprese nta urna passa


gem em que a morte é diretamente focalizada, sim, e focalizada
da maneira mais auténtica e característicamente crista :

«Já que 'os íilhos' tinham em comum o sangue e a carne, também


Ele (o Messias) quis participar do sangue e da carne, a íim de destruir,
por sua morte, aquéle que tinha o imperio da morte, isto é, o demonio,
e a iim de libertar aqueles que, por médo da morte, licavam a vida
lnteira sujeitos á servidáo» (2,14s).

— 291 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 2

Nestas frases, o hagiógrafo propóe o conceito típicamente


cristáo de morte. De fato, esta é castigo do pecado; todavía
tomou sentido novo depois que o Filho de Deus a quis provar;
Ele se identificou com os homens mortais, a fim de «furar» a
morte pela sua ressurreigáo; em conseqüéncia, o cristáo morre,
sim, a fim de prestar o seu tributo a Justiga, mas sabe que so-
breviverá á própria morte, caso procure identificar-se com Cristo
padecente e crucificado. — As palavras do Apostólo contém
urna mensagem de conversáo, sem dúvida, mas dentro de um
quadro de confianga. Quem as lé, se estimula, sem se apavorar.

d) Nos SS. Evangelhos, os episodios de ressurreicao de


mortos efetuada por Jesús tomaram-se, por vézes, ocasiio de
chamar a atengáo dos fiéis para os horrores da morte. É o que
fazia (com muita devoqáo, alias, e de acordó com a mentalidade
da sua época) o S. Cura d'Ars (t 1859). Nd 15" domingo após
Pentecostés, comentando o caso do jovem de Naím, que Jesús
chamou de novo a vida (cf. Le 7, 11-16), observava :

«A visáo de um cadáver que vai sendo levado ao túmulo, é.o que há


de mais oportuno para nos desapegar da vida e dos prazeres do mundo
e para nos Incentivar a nos ocuparmos com ésse momento terrivel que
deve decidir de tuda por toda a eternidade. Por isto é que a Igreja, a
qual está sempre atenta e solicita em nos fornecer os elementos que
nos estimulem a trabalhar pela nossa salvacáo. nos propSe, tres vézes
por ano, a recordacáo dos mortos que Jesús Cristo ressuscitou. Destarte
a Igreja intenciona obrigar-nos de certo modo a refletir. sobre ésses
casos a fim de que nos preparemos para semelhante via'gem».

Os dois outros episodios evangélicos assim mencionados se-


riam o da ressurreigáo de Lázaro (Jo 11, 1-46) e o da filha de
Jairo (Me 5, 35-43). Pergunta-se, porém : será que tais trechos
visam realmente prender a atengáo do leitor ñas dolorosas cenas
do desenlace e do sepultamento? — Parece, antes, que a sua
mensagem consiste em lembrar que Cristo é a ressurreicao e a
vida. Os tragos de luto que as cenas de morte propóem ao leitor,
sao englobados dentro da grande ligáo de que Cristo venceu a
morte e oferece a sua Vitoria a todos quantos n'Éle créem. É esta
a mensagem que se lé dentro do quadro mesmo da ressurreigáo
de Lázaro:

«Eu sou a ressurreicao e a vida; aquéle que eré em Mim, ainda que
tenha morrido. vivera. E todo aquéle que vive e eré em Mim, jamáis
morreras (Jo ll,25s).
i

e) Há no S. Evangelho ainda urna passagem de grande


valor para ilustrar qual deva ser a atitude do cristáo perante a

— 292 —
MÉDO DA MORTE?

morte, passagem, porém, que nao parece suficientemente utili


zada pelos autores de espiritualidade : é o episodio do bom la
dráo, que Jesús agraciou no último instante de vida, levando era
canta o coragáo contrito e humilde désse pecador (cf. Le 23,
39-43). Como tal narrativa é oportuna para restaurar a coragem
e a. confianga dos moribundos, que freqüentemente sao ator
mentados pela recordagáo de suas faltas antigás!

Tal epjsódio se presta igualmente a temperar as impressóes


sombrías ou mesmo o desespero que poderiam ser incutidos pelo
adagio «Tal vida, tal morte; se vives no pecado, morreras no pe
cado». Justamente éste adagio parece ter sido um dos mais fre
qüentemente repetidos pelos catequistas e pregadores do século
passado. Visa, sim, provocar a conversáo do pecador enquanto
é tempo (objetivo muito louvável, sem dúvida!). Contudo, se fór
exclusivamente inculcado, poderá dar a entender que existem
limites para a Misericordia divina e que realmente nao há per-
dáo Jia hora da morte para quem tenha vivido no pecado. Ora o
episodio do bom ladráo mostra que, embora devamos fazer tudo
para viver na grasa de Deus, nem nos casos mais angustiantes,
nos é lícito perder a confianga na inesgotável Misericordia de
Deus.

Além da inadequada utilizacáo de textos bíblicos, da qual alguns


espécimes acabam de ser apontados," áinda se pode mencionar otrtro
tópico pouco feliz dos livros de espiritualidade concernentes á morte.
É o

2. Realismo exagerado

A fim de estimular a conversáo dos maus, alguns pregado-


res e escritores do século XIX se esmeraram na descrigáo dos
traeos sinistros e dos sustos que muitas vézes caracterizan! a
hora da morte. Tal estilo, oportuno em tempos passados, já nao
se recomenda em nossos días, quando se nota que os homens se
deixam levar mais por valores positivos do que pelo temor (Re-
ligiáo nao deve ser tida como espantalho ou mero sistema coibi-
tivo).
Eis alguns espécimes de tal realismo.

O seguinte trecho deye-se ao Pe. Félix S. J., íanrfoso pregador de


Notre-Dame de Paris em meados do século passado :

«Vedes sobre os trilhos da estrada de ferro ésses carros que viajairi


aureolados por urna nuvem de vapor? Quem se acha nesses veiculos
táo acelerados e táo rápidos? Tal é o trem da alegría, que leva ao local
marcado todos ésses viajantes íolgazoes. De que fala, com que se ocupa

— 293 —
j «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 2 ;

essa gente apressada e baruljienta? Alegrías do tempo, negocios do mo


mento, prazeres do dia, revistas do dia, crónicas do dia... Tém pressa,
agitam-se, olham para a frente, para a direita, para a esquerda. Eis
finalmente o termo da viagem: «Vamos chegar,... chegamosb. Mas
que choque é ésse que faz empalidecer a multidáo espantada? Urna
pedra se achava sobre o leito da estrada; os carros sairam dos trilhos,
precipitaram-se. cairam no abismo! Ouvistes ésses gritos, ésses clamo
res, essas lamentacdes?... Agora féz-se silencio. E, nesse silencio, jul-
gamos ouvir urna voz que ressoa em meio á catástrofe : Ublnam sunt?
Onde estáo? No rio, na lagoa, no abismo, no fundo do vale. E sobre
ésses destrogos sangrentes de homens e mulheres, de anciáos e criancas
feridos e triturados, a morte, olhando para as suas vitimas, exclama:
'Encontram-se na estagáo suprema; estáo na eternidade!'» (Le Chati-
ment, 4e. retraite [1855?] de N.-D. de París).

O mesmo pregador fixava outra cena apta a mover a sensibilidade


dos ouvintes:
«Estáis vendo o jovem órfáo, revestido de préto, a chorar junto ao
túmulo recémfechado, dentro do qual acaba de ser depositada a sua
máe? Infeliz crianca! Como chora! Como clama, regando com as suas
lágrimas o túmulo no qual jaz, para sempro encerrado, o objeto de todo
o seu amor j 'Meu Deus! Essa máe amada, nunca mais a verel? Ah! ■
Essa máe táo boa, táo terna, táo cara, que fiz eu para que a tenhais
levado táo cedo? Ela mesma, 6 meu Deus, que crlme cometeu para ser
assim punida pela morte?'»

A propósito déste texto, nao se pode deixar de observar que


o desejo de comover e abalar (com a melhor das intenc.5es, nao
se quer negar) levou o orador a algumas impredsóes de lingua-
gem, que sugerem mesmo falsos conceitos teológicos. Assim:

«... para sempre encerrados é expressáo pouco compativél com a


doutrina da ressurreicáo dos corpos. Por certo o autor nao quis negar
tal dogma; contudo, em vez de o explicitar, só concorreu para o sufocar,
usando de palavras demasiado sentimentais ou populares. Sobre a ma-
neira como se dará a. ressurreicSo dos mortos, cf. «P. R.» 26/1959,
qu. 2; 52/1962, qu. 3;

«nunca mais a verel?» é modo de íalar que faz esquecer o encontró


dos justos com os seus semelhantes na patria eterna. Sim; na bem-
•aventuranca final as criaturas se reuniráo de ndvo numa grande fami
lia, e continuaráo a, gozar do amor que as tiver unido aqui na térra
(amor todo puro e englobado no amor a Deus); cf. «P. R.» 52/1962, qu.v4;

«que' mal cometí para perder a mlnha mfie? Que crlme praticou
ela para morrer assim?». Palavras assaz iníelizes, porque dáo a im-■
pressáo de que aquilo que os homens consideram como desgrasa, é
sempre realmente um infortunio,... é castigo que Deus inflige aos pe
cadores, ao passo que as pessoas virtuosas Deus proporciona tudo que,
humanamente íalando, é agradável e prazenteiro. Nesta perspectiva, o
sofrimento nao teria valor positivo algum, Religiáo poderia ser enten
dida como comercio interesseiro : quem serve a Deus, recebe de Deus
bons servigos; ao contrario, quem serve mal, é ferido por Deus? Como
seria errónea tal concepgao!

— 294 —
MÉDO DA MORTE?

O mesmo autor, pouco adiante, recorría a nova cena ima


ginaria :

«Vedes também a viúva desolada, que parece ser a estatua viva da


dor? A viúva, um dos tipos mais comovedores da tristeza e da desoía-
gao, a viúva, a quem a morte acaba de arrancar, com um esposo táo
profundamente amado, a metade da sua vida? Escutai como ela chora
e se queixa por essa separacáo, castigo que a justlca inflige ao seu amor:
'ó Deus bom, ó Deus justo! Ah, sem dúvida estou culpada diante de vos,
e sofro o castigo de minha prevaricacSo, pois, se eu nao vos tivesse
ofendido, como me feriéis retirado tao cedo ésse ente tilo caro, ésse
dileto companheiro da minha vida?» (ib.)

Também esta passagem se ressente de imperfeieóes de ex-


pressáo que procuramos realcar ácima. Insinúa, sem que o pró-
prio autor o tenha intencionado, nao sómente a idéia da
«morte = misterio de tristeza e luto», mas também a concepgáo
de que Deus só permite reveses e aflicóes na vida dos pecadores;
a virtude seria, ao contrario, garantía ou imunizacáo contra as
desgranas. Ora tal modo de pensar nao é cristáo. Os sofrimentos
e lutos da vida, assim como a própria morte, tém valor alta
mente positivo; aceitos em uniáo com Cristo, sao instrumentos
de purificacjio das almas e uniáo com Deus; poi> isto o Senhor
nao preserva de tais aparentes males criatura alguma; antes,
dispensa-os com mais freqüéncia justamente as almas que Ele
chama a maior santidade. Cf. «P. R.» 15/1959, qu. 6.

Em algumas regióes, os ^regadores de missóes populares,


desejosos de afastar do pecado as almas mediante o salutar
temor da morte, associavam á palavra da pregacáo a apresenta-
Cáo de quadros vivos. É o que se lé, por exemplo, na vida de
S. Luís-Maria Grignion de Montfort (1673-1716), que em suas
missóes costumava dedicar urna semana a preparacáo para a
morte : no domingo, propunha o tema «A morte é certa»; na.
2a. feira, «A morte está próxima»; na 3a. feira, «A morte é sor-
rateira»; na 4a. freirá, «A morte é temível»; na 5a. feira, «A
morte dos pecadores é terrível e abominável»; na 6a. feira,
«A morte dos justos é suave e invejável»; no sábado, «A morte
corresponde ao género de vida de cada um».

«No último dia, refere um cronista (o Pe. Picot de Cloriviére), o


servo de Déus fazia pessoalmente o papel de um homem que se achasse
nos estertores da morte. Sentava-se em urna poltrona; de cada lado déle,
colocava-se um clérigo, que fazia as vézes ou do anjo da guarda (o da
direita) ou do espirito tentador (o da esquerda). O moribundo tinha
o crucifixo ñas maos, e freqüentemente o leyava aos labios ou o dei-
tava sobre o coragáo; lancava olhares cheios de coníianga para o céu,
implorando misericordia; escutava atentamente todas as inspirag5es do

— 295 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 2

anjo bom, e com indignagño rejeitava as sugestSes do Maligno, opondo-


-lhes atos de fé, esperanca e caridade.
Isso tudo era executado de maneira táo natural e tocante que cau-
sava as mais vivas impressóes no espirito dos a.ssistentes. Cada um
déstes se retirava em silencio, batendo no peito, decidido a levar vida
santa, a fim de obter urna santa morte».

A piedade da época precisava de tais subsidios. Ésses qua-


dros, com seus tragos sensíveis, levavam a praticar a virtude.
Ora é éste o objetivo de todo o trabalho catequético e pastoral.
Hoje em dia tal objetivo continua em vigor, sem restrigáo algu-
ma; contudo verifica-se que o homem moderno pouco se impres-
siona com tais representagóes; está demasiado imbuido de racio
nalismo. É preciso entáo deixar de apresentar a morte como puro
espantalho; a mentalidade crista, alias, conhece um aspecto do
mesmo tema muito mais profundo e auténtico: «a morte =
passagem para a vida» (como já atrás notamos). Éste há de ser
realcado em primeiro lugar na catequese.

Seja mencionado aínda um tipo de dramatizacáo da morte, que


eram as procissóes aos cemitérios praticadas outrossim por ocasiáo das
miss5es populares. Considere-se, por exemplo, o seguinte relato :

«Ao despontar do dia, todo o povo se preparou para ir procéssional-


mente ao cemitério... Ao caminhar para lá, cantamos os salmos 'Mi
serere' e 'De profundis', intercalando entre os versículos a invocagáo
serere' e 'De profundis'. Chegando ao cemitério, o povo se dirigiu a urna
íossa aberta especialmente para tal cerimónia, e um sacerdote deu a
absolvicao junto á mesma. Depois da absolvigáo, o Superior (dos sacer
dotes missionários) disse algumas palavras de acordó com as circuns
tancias e o local. Terminou mostrando a todos urna caveira, que a
seguir, ele atirou ha fossa. A fossa íicará aberta até que alguma. das
pessoas presentes ao ato a ocupe (após a respectiva morte). Era preciso
que ésse breve discurso nao durasse mais de dezoito minutos, pois era
hora de ir para o trabalho. Contudo as poucas palavras assim proferidas
deviam ser animadas e suculentas de íórca e de verdade. As lágrimas
que escorriam dos olhos de todos, testemunhavam o efeito bom que
sobre éles produzia cerimónia táo comovedora. Ninguém se retirou sem
ter osculado a térra do cemitério, a qual por si mesma já equivale a
eloqüente discurso» (cf. E. Sevrin, Les missions religieuses en France
sous la Restauration. Saint-Mandé, t. 1948 I 233).

Em conclusáo, diremos : embora tais práticas já nao este-


jam em uso nos nossos dias, deixaram marcas profundas na ma
neira como os fiéis consideram a morte : esta continua sendo
grande motivo de afligáo e pavor, pois se focaliza quase exclusi
vamente o seu aspecto sombrío.
Seja agora proposta urna breve síntese do pensamento cris-
táo referente á morte.

— 296 —
MÉDO DA MORTE?

3. ' A gennina concepgáo

Para o cristáo, a morte nao é algo de meramente negativo


ou destruidor, mas é o remate positivo de um processo que se
vai desenvolvendo desde o batismo do individuo. Com efeito;
éste sacramento deposita na alma do cristáo um germen de vida
nova, vida de filho adotivo de Deus; faz que a pessoa, tendo nas-
cido do primeiro Adáo através de seus pais, renasga do segundo
Adáo ou de Cristo através da agua e do Espirito Santo. Em con-
seqüéncia, duas naturezas (ou, como diz S. Paulo, Ef 4, 22-24,
«o hómem velho» e «o homem novo») passam a existir no cris
táo. O programa déste individuo vem a ser entáo dar morte
(mortificar) todos os dias o homem velho com seus vicios e
concupiscencias, a fim de possibilitar a expansáo crescente do
homem novo ou do germen de vida sobrenatural representado
ém sua alma pela grasa santificante (cf. .Gal 5, 24). Assim o
cristáo morre e ressuscita parcialmente todos os dias. A morte
ou o desenlace final nao é senáo a etapa de consumagáo désse
processo cotidiano; é a renuncia suprema que o cristáo faz gene
rosamente aos últimos remanescentes do homem.velho (o .corpo
nascido de Adáo), para poder receber a plenitude da vida nova
ou do Cristo na futura ressurreigáo do corpo (quando o Senhor
Deus se dignar por fim á historia déste mundo).

Conscientes do valor da morte, os antigos cristSos chamavam-na o


seu «natalicio» própriamente dito.
Donde se vé que nao há morte (em sentido trágico) para o discí
pulo de Cristo, mas, sim, passagem para a gloria eterna. Quanto mais
o corpo do cristáo se coníigura ao de Cristo pela mortificacáo cotidiana,
tanto mais se lhe assemelhará na gloria futura; todo padecer e definhar
vem a ser um rejuvenesdmento e urna ressurreicao parcial para o
cristáo.
Deve-se mesmo dizer que, em seu sentido mais profundo, a morte
abracada em uniáo com Cristo é verdadeiro ato de culto ao Pai, á seme-
Ihanca do que foi a de Cristo. O cristáo glorifica a Deus por sua morte;
esta toma o aspecto de resposta positiva e generosa que ele dá ao con
vite do Pai, quando Éste o chama a voltar á casa paterna, em oposicáo
á recusa que o primeiro homem deu ao mesmo convite (incorrendo
por isto na pena de morte). Faca o cristao, da sua morte, a máxima
prova de amor ao Pai!

Sereno, pois, e alegre, caminha o cristáo na térra de en


contró ao seu nascimento para a vida eterna. Na realidade, so há
um tipo de angustias que o afeta : o pecado, pois éste significa
justamente separagáo de Deus e da vida eterna. — Diante do
pecado, sim, o cristáo ressente todo o horror, a repugnancia que
a perspectiva da morte física suscita no homem nao batizado.
Caso, porém, esteja isento de pecado, o discípulo de Cristo olha

— 297 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 3

com indifereriga superior para todas as vicissitudes desta pere-


grinagáo; sabe que nada lhe pode tirar o verdadeiro tesouro, a
vida eterna, que ele traz em sua alma. Enquanto é portador de
tal vida, o cristáo está sempre seguro. É o que S. Paulo quer
insinuar, ao escrever : «Tudo é vosso... tanto o mundo1 como a
vida e a morte, o presente e o futuro. Tudo é vosso; vos, porém,
sois de Cristo, e Cristo é de Deus (Pai)» (1 Cor 3,21-23).

m. SAGRADA ESCRITURA

FILÓSOFO (Curitiba) :

3) «Como se justifica que a Biblia, em linguagem aparen


temente táo grosseira, fale do dedo, da máole do braco de Deus?
Deus é espirito puro. Que sentido entáo' podem ter tais ex-
pressoes?»

As citadas expressóes constituem o que se chama «antropo


morfismos», isto é, maneiras de apresentar Deus á semelhanga
de um homem. Existem em grande número na Escritura Sagra
da; e isto, por dois motivos :

1) o pensamento semita, compartilhado pelos autores bíblicos, era


pouco afeito a conceitos abstratos; ficava muito preso a sinais con
cretos e sensiveis. Compreende-se entáo que os escritores bíblicos, de
vendo falar de Deus, tenham proposto os atributos divinos como se pro-
poriam os de um homem dotado de corpo e de afetos semelhantes aos
nossos. O leitor avisado nao toma tais expréss5es ao pó da letra, mas
nelas vé figuras de linguagem ou símbolos de predicados divinos imate-
riais, tais como convém a um puro espirito.

2) Além disto, um designio divino mesmo parece ter sugerido certos


antropomorfismos. — Sim; pode-se crer que, mediante estes artificios,
o próprio Deus tenha intencionado elucidar, desde remotas épocas e de
maneira muito viva, o misterio central da historia do mundo e da Re-
velacáo crista, ou seja, o misterio da Encarnaclio. Na plenitude dos
tempos, Deus quis tomar a carne humana e manifestar-se com sem
blante humano, bracos, máos e pés. Entende-se, em conseqüéncia, que
Ele haja proferido como que acordes antecipados da Encarnacáo me
diante os antropomorfismos do Antigo Testamento. Déstes, um dos mais
freqüentes é o-da «máo (de Deus)», ao qual est&o associadas as Ima-
gens do «dedo» e do «braco (de Deus)».

A figura da máo, portante, seráo dedicadas as páginas que se se-


guem, a fim de se poder apreender o seu significado genuino. Percorre-
remos tres etapas sucessivas, analisando primeiramente o simbolismo
que compete k máo fmmana como tal (um antropomorfismo n&o pode
ser entendido sem um mínimo de antropología). A seguir, considerare
mos a utilizacáo e a evolucáo désse simbolismo nos livros do Antigo e
do Novo Testamento.

— 298 —
A MAO DE DEUS

1. A mao do homem: símbolo nat

Que significa concretamente para nos a nossa


turas humanas?

A. A mao, órgao. de relacoes com o mundo

a) órgao do contato com as criaturas. Sem dúvida, é pela


máo que mais fréqüentemente se exerce o sentido do tato. Éste
sentido na máo nao é meramente passivo (como muitas vézes
acontece em outras partes do corpo, onde há, por exemplo, o
contato passivo do corpo com as respectivas vestes), mas é
ativo e soberano : de fato, a máo toca, apalpa, e, tocando, apal
pando, costuma averiguar com exatidáo a realidade das coisas
que a cercam.

A máo pode assim em certo grau suprir o sentido da vista nos


cegos: o cegó «vé» (le, por exemplo) com as máos. Diz-se, pois, com
acertó que a máo é a expressáo e o instrumento da inteligencia do ho
mem. Cf. «P. R.» 35/1960, qu. 4.

b) Órgao do trabalho, da luta com os elementos que ro-


deiam o homem. É a máo que faz que as nossas relaeóes com o
-mundo nao se reduzam a conhecer, mas também transformen! o
mundo. É pela máo que o homem domina as criaturas inferiores,
submetendo-as ao seu uso.
Mas o trabalho das máos nao é apenas exercicio de dominio;
é também aperfeigoamento dos elementos do universo; estes sao
assim chamados a participar das atividades inteligentes do ho
mem. Na verdade, as máos e o corpo se prolongam nos utensi
lios que fabricam (nisto o homem difere dos macacos ditos
«antropoides»). v

c) órgao da arte. As tarefas do homem nao sao única


mente as de artesanato, tarefas que visam utilidade concreta e
próxima, mas sao também atividades que, através de sinais sen-
siveis, exprimem um ideal estético, moral e religioso. É o que
dá fundamento ao sabio adagio: «Dize-me (mostra-me) o que
é a tua máo, e eu te direi quem tu és». Cf. «P. R.» 21/1959,
qu. 6 (a quiromancia).

Em resumo, concluir-se-á que a máo é o.órgáo da inteligencia e do


poder do homem, poder tanto moral quanto iisico. Pelos gestos de suas
máos, o ser humano exprime a sua vontade de agir, lutar e vencer: o
orador, em um discurso, dá a entender pela gesticulacáo os seus desig
nios de transformar os elementos ou os homens; um chele ou coman
dante, também pela gesticulacáo, transmite as ordens aos súditos...

— 299 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 3 f
Assim somos levados a considerar outro aspecto das maos humanas: v

B. A máo, órgao de relacoes com o próximo :

a) A máo é o órgao de contato físico, que simboliza nao


raro transmissáo de poder ou de autoridade. Haja vista o rito J
da imposicáo das máos, com o qual um chefe comunica determi- -.'
nado encargo ou missáo. ■

b) A máo é também o órgao da jurisdicáo. «Colocar a


máo» sobre alguma coisa significa «tomar posse...», muitas
vézes com direito de destruir o objeto possuído.

c) A máo é outrossim o instrumento da doacao; abre-se


para dar, fecha-se para recusar. Diz-se que toda máo humana
é necéssáriamente ou generosa ou mesquinha. . ■

d) A máo vem a ser igualmente o órgáa do acolhimento


feito ao próximo. Os corpos humanos sao simétricos entre si;
isto quer dizer que a máo de um individuo e a máo de outro
individuo sao «recíprocas» ou, em certo sentido, configuradas
urna para a outra.

É pela máo que fazemos sinal a alguém,... que o convidamos e o


recebemos em nosso consorcio. Um apérto de maos significa intercam
bio de amizade :• o rito do matrimonio utiliza éste gesto em sua pleni-
tude de significado, pois os nubentes, colocando urna máo dentro da
outra, exprimem doacáo e acolhimento mutuos; doravante cada qual se
consagrará a promover o bem do outro, tanto no setor espiritual como
no corporal. — O apérto de maos também é sinal de alianca ou pacto,
assim como é símbolo de confianca outorgada a alguém.

e) A máo estendida tanto pode expressar doacáo como


prece e súplica; o indigente estende a máo para implorar e men
digar. «Máo estendida» pode significar brado de desespero de
quem está necessitado (por exemplo, de quem está submergindo
ñas aguas), como também pode designar a salvacáo (a máo de
quem tira o náufrago das aguas). \

Em urna palavra : pode-se dizer que a mao é o próprio homem.


A sua importancia se evidencia em grau máximo quando alguém vé .
sua máo doente, imobilizada ou amputada...

Observando os fatos ácima apontados (aos quais aínda outros pode-


riam ser acrescentados), os homens em todos os tempos recorreram ao
simbolismo das maos na sua linguagem cotidiana. ._
Para ilustrar esta afirmacáo, considere-se em um dictonário de
qualquer lingua o emprégo muito variado da palavra «mao» tanto em
sentido próprio como em sentido figurado.

— 300 —
A MAO DE DEUS

Aqui transcrevemos as expressOes mais usuais em Portugal e no


Brasil, como as apresenta a «Grande Enciclopedia Portuguesa e Brasi-
leira» XVI pág. 181-185 :

«Dar urna máo» : auxiliar;


«Darem-se as máos» : unirem-se, aliarem-se;
«Dar a, máq á palmatoria» : reconhecer o próprio erro ou a veraci-
■ dade dé oütrem;
«Bater as máos» : mostrar contentamento, aprovagáo;
«Beijar a máo» : render preito, homenagem;
«Estar á máo» : estar pertinho;
«Abrir máo de...» : abandonar, desinteressar-se de...
«Carregar a máo» : insistir, censurar ásperamente;
«Trazer alguém na palma das máos» : amimar, acariciar;
«Pdr máos á obra : comegar;
«Meter os pés pelas máos» : atrapalhar-se, contradizer-se;
«Nao ter máos a medir» : estar muito atarefado, ter dificuldade
para atender a tudo;
«Lavar as máos» : nao tomar a responsabilidade de...
«Langar máo de...» : recorrer a; segurar, apreender;
«Ter a máo na massa» : estar trabalhando em...;
«De máo beijada» : gratuitamente, por favor;
«Em primeira máo» : em uso inédito;
«Em segunda máo» : em uso repetido;
«De máos a abanar» : sem recurso, sem dinheiro;
«Fora de máo» : longe, distante;
«Com ambas as máos» : com toda a boa vontade;
«Com a máo do gato» : sorrateiramente;
«Dé máos postas» : em oragáo ou súplica;
«Com máo firme» : com energía e destemor;
«Máo por baixo, máo por cima»: cautelosamente;
«Máo de anéis» : máo delicada;
«Máos de prata» : máos muito habilidosas;
«Urna máo de mimosas» : pequeño feixe de flores;
«Urna máo de cenouras, de hortaliga»; unidade de medida popular;
«Urna máo de tinta» : urna carnada de tinta;
«Maos ao alto!» : render-se, capitular.

Táo vasto uso da palavra «máo» constitui eloqüente indicio


da elevada carga de simbolismo e significado que toca a ésse
vocábulo. Em conseqüéncia, o próprio Deus quis descer a essa
imagem, táo espontánea e táo viva, do falar humano, para fazer
passar por ela urna mensagem divina, nao menos viva e rica
de sentido.

É o que se verá no parágrafo seguinte.

2. A Mao de Deus

Focalizaremos sumariamente alguns textos seletos do Antigo e do


Novo Testamento.

— 301 —
'«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 3

A. Antigo Testamento

Utilizando os diversos aspectos do simbolismo das máos hu


manas, os autores sagrados descreveram diversas facetas das
relacóes de Deus com os homens. Assim

a) A Mao de Deus (= o poder de Deus benévolo e cari-


nhoso) é criadora ou produtora dos seres.

É éste um dos aspectos em que a imagem aparece com mais énfase


e pujanca, pois a criacáo é obra da Onipoténcia Divina, obra primeira
e absoluta. Javé mesmo o proclama :

«Foi minha máo que f undou a térra


E minha destra que estendeu os céus».
(Is 48, 13)

«O céu é meu trono,


E a térra meu supedáneo.
Fui eu que íiz o universo,
E tudo a Mim pertence, declara o Senhor».
(Is 66, ls)

Até as criaturas inferiores ao homem o aíirmam:

«Interroga os animáis de gado, e éles te ensinaráo,


As aves do céu, e elas te instruiráo;
Fala aos reptéis da térra, e éles te responderáo,
Aos peixes do mar, e éles te darSo licfles.
Entre 'todos ésses seres, quem nao sabe
Que a máo do Senhor fez isso tudo?>
(Jó 12, 7-9)

Conseqüentemente, torna-se váo pedir contas a Deus a respeito de


suas obras :

«Compete a vos interrogar-me no tocante a meus íilhos


E dar-me ordens sobre o trabalho de minhas máos?
Fui Eu que íiz a térra,
E a povoéi de homens.
Foram as minhas máos que estenderam os céus».
(Is 45, lis)

Contudo ésse mesmo poder das máos de Deus (que pode


assustar, pois ultrapassa a compreensáo humana) é também mo
tivo de confianga para a criatura, a qual sabe que o Altíssimo
nao abandonará a obra de suas máos :
«Se eu caminhar em meio ás angustias,
Estenderás a máo contra a cólera dos meus inimigos,
Salvar-me-á a tua destra.
O Senhor completará o que em meu auxilio comecou...
Nao abandones a obra de tuas máos».
(SI 137, 7s)

— 302 --
A MAO DE DEUS

b) Tendo criado os viventes, a Máo de Deus (= sabio


poder) intervém continuamente para lhes dar o alimento sem o
qual recairiam no nada : . . -

«Todos esperam de Ti •
— Que" lhes des o alimento em tempo oportuno.
Tu lhes das, e éles o recolhem,
Abres a máo, e saciam-se de bens».
(SI 103, 27s)

c) Lógicamente daí se segué que a Máo de Deüs está pre


sente e assiste ao homem em toda parte :

«Tu me cercas por tras e pela frente,


Colocas sobre mim a tua máo...
Caso eu vá habitar nos coníins do mar,
Será ainda a tua máo que para lá me levará
E a tua destra que me sustentará».
(SI 138, 5.9)

d) Essa mesma máo de Deus é, ao mesmo tempo, sinál da


Justina Divina e do castigo; por isto, ela intimida os maus :

«Eis o que diz o Senhor Deus :


Levanto a máo, juro: as nagñes que vos cercam,
Teráo também elas de sofrer ignominia».
(Ez36, 7)

«Eis a decisáo tomada contra toda a térra;


É assim que estendo a máo contra todas as nagóes.
Desde que o Senhor dos exércitos tenha tomado urna decisáo,
Quem ousará mudar a sua sentenca?
Desde que haja estendido a máo,
Quem a íará retirar?»
(Is 14,26s)

«Tua mHo encontrará todos os teus adversarios,


Tua destra atingirá todos os que te odeiam.
(SI 20, 9)

Também o pecador penitente íala dessa Máo de Deus, que se exerce


sobre ele a fim de o purificar :

«Calei-me, e meus ossos se mirraram


Entre continuos gemidos.
Dia e noite tua máo pesava sobre mim».
(SI 31, 3s)

e) A Máo de Deus, que pode espantar, é também a Mao


que atrai. É o seu poder de auxiliar e salvar misericordiosamente
que desperta a confianga e a súplica do justo aflito :

■ — 303 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 3

«Disse: 'Eis o que me acabrunha : '


A destra do Altisslmo j& nao é a mesma!
Recordo-me das maravllhas que Ele outrora realizou...
Minha voz entáo se eleva a Deus e clamo.
Minha voz se eleva a Deus, Ele me ouve.
No día da angustia procuro o Senhor,
De noite as minhas maos se levantam para Ele sem descanso».
(SI 76, lis. 2s)

No texto ácima, as máos do homem que pede e á Máo de Deus que


responde, ocorrem sucessivamente ao leitor.

Abaixo, a Máo de Deus, que salva realmente, opSe^se á máo ,do


homem, que engaña e decepciona :

«Estende do alto a tua máa,


Tira-me da caudal e livra-me
Das maos do estrangeiro,
Cuja boca só proíere mentiras
E cuja destra é destra de perjurio».
(SI 143, 7s)

Há ainda uma serie de textos que se comprazem em afirmar que a


Máo de Deus jamáis é curta para salvar, ou seja, para atingir o homem
no mais profundo dos abismos em que ele se possa encontrar:

«O Senhor respondeu a Moisés : 'Acaso seria curta a mao do


Senhor? Verás sem demora se se cumprirá ou nao a palavra que Eu te
disse'» (Núm 11, 23).

Pelo Profeta Isaías, o Senhor interpela seu povo :

«Por que ninguém respondeu ao meu apelo?


Seria minha mao demasiado curta para libertar
Ou nao teria Eu suficiente fdrca para salvar?»
(Is 50, 2)

O próprio Profeta íornece a resposta :

«Nao! Nao é a máo do Senhor que é demasiado curta para salvar,


Nem seu ouvido surdo para ouvir.
Sao vossos pecados que colocaram uma barreira
Entre vos e vosso Deus».
(Is 59, ls) v

f) Convém ainda lembrar que a Máo do Senhor é a Máo


(= Providencia, expressáo da Sabedoria benévola) que rege as
sortes do povo através da historia.

Canta Israel em sua liturgia sagrada, recordando a época principal


do seu passado:

«Ó Deus, ouvimos cbm os nossos próprios ouvidos,


Nossos país nos contaram
A obra que íizeste em seus dias,

— 304 —
A MAO DE DEUS •£■
?'

Nos tempos de outrora.


Para implantá-los, expulsaste com as tuas máos nac5es pagas...
' Nao foi com a sua espada que conquistaran! esta térra,
Nem foi seu braco que os salvou,
Mas íoi tua destra, foi teu bra^o,
Foi o resplendor da tua face, porque os amavas».
(SI 43, 2-4)

g) Por fim, a Máo de Deus é a máo que utiliza a máo do


homem; dignifica a agáo das criaturas e Ihe dá pleno éxito:

«O Senhor disse a Moisés: '... Levanta o teu bastáo, estende a


máo sobre o mar e divideo, para que os filhos de Israel possam passar
a pé enxuto...'
' Entáo Moisés estendeu a máo sobre o mar. E o Senhor fez que éste
recuasse mediante um vento impetuoso do Oriente... E pos o mar a
seco» (Éx 14,15s. 21).

Contudo no canto de Vitoria Moisés atribulu o feito portentoso á


Máo do Senhor:

«Ao sdpro do teu hálito,


O mar tragou-os (os egipcios)...
Estendeste a tua destra,
E a térra os devorou».
(Éx 15, 10.12).

É «pela máo de Moisés, de Aaráo, dos Juizes, dos Profetas, de


Judite» (cf. Jdt 9, 10; 15, 10) que Deus realiza sua obra salvifica em
Israel, ó admirável condescendencia divina, expressa por imagem táo
simples e eloqüente!

Compendiando as grandes idéias até aqui enunciadas, pode


rse dizer: t6da a historia de Israel se deixa muito bem represen
tan pelo jógo de duas máos, a Divina e a humana, que* se'pro-
curam mutuamente, se encontram e se entrelagam na execugáo
de um só plano,... mas também se separam urna da outra, para
mais tarde se encontrar e unir de novo. Nesse embate, a Máo
salvifica de Deus tem sempre a iniciativa benévola; Ela se ante
cipa ao homem, oferecé-lhe a vida verdadeira e permanece fiel.
A máo do homem, ao invés, falha, recusa e abandona a salvagáo
mesma que ela outrora implorou.
Faz-se mister agora considerar o

B. Novo Testamento

1. . A historia do Antigo Testamento póe em evidencia as


tristes conseqüéncias do pecado instaladas no íntimo do homem ;
debilitagáo da vontade, sofrimento, morte, e incapacidade de
sair désse estado de coisas. Para dar remedio cabal e definitivo
a ésses achaques, era necessário . \

— 305 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 3

— que Deus interviesse de novo na historia dos homens, estén-


dendo sua Máo libertadora á máo do homem perdido; dessa vez, porém,
que o íizesse de maneira mais pujante e profunda do que outrora;
que a Máo de Deus, em sua nova manifestagáo, se aproximasse
tanto da miseria dos homens que pudesse ser apreendida por todos os
íilhos de Adáo mediante o mínimo de esfórco possivel, e independente-
mente de raga, cultura ou posicáo social;
que essa Máo forte trouxesse a criatura os meios necessários
para que o homem, tendo-á urna vez agarrado, pudesse nao mais a
largar. , ••■•"".

Pois bem. Foi o que se deu realmente. O relato désse alto


feito foi consignado pelos autores do Novo Testamento. Estes
empregam linguagem muito mais depurada, muito mais livre de
antropomorfismos do que os do Antigo Testamento. Falam me
nos de dedo, máo ou braco de Deus; contudo apresentam a ple-
nitude darealidade insinuada pelos antropomorfismos dos anti-
gos israelitas: mostram, sim, como Deus se fez realmente ho
mem e se dignou utilizar um brago e urna máo semelhantes aos
nossos, a fim de comunicar á humanidade a salvagáo que o An
tigo Testamento anunciava em tipos e figuras.
Por conseguinte, o antropomorfismo da máo se tornou
ainda mais concreto, mas também tomou dimensóes transcen
dentes, que até entáo ele nao possuia.

2. Assim, no limiar do Novo Testamento, a Virgem SS.


fez ressoar acordes muito característicos do estilo do Antigo
Testamento, para cantar a realizacáo do misterio da Encarna-
gáo. Retomou entáo a imagem do braco do Senhor, mas dessa
vez era plena consonancia com a realidade das coisas, pois Deus,
de fato, ja assumira corpo humano :

. «Maniíestou' o poder do seu braco...


Velo em auxilio de Israel seu servo,
Recordado da sua misericordia».
(Le 1, 51.54)

O auxilio ou a salvagáo concedidos pelo Senhor ultrapassaram as


mais otimistas expectativas da humanidade: em Jesús Cristo, Deus e
o homem (Deus Salvador e o homem perdido) se uniram a ponto de
formar urna so personalidade: por sua existencia mesma, Cristo na
térra era a reconciliacáo entre Deus e a humanidade. O próprio nome
de «Jesús» significa em hebraico «Javé salva»; a salvacáo é Jesús Cristo.

Em linguagem figurada, dir-se-ia: a Máo de Deus e a máo do


homem se uniram para sempre em Cristo, travándo a nova e definitiva
Alianga. ■
Seria lícito também afirmar: a «Máo de Deus» de que.falava-o
Antigo Testamento, féz-se carne; a Mao salvadora de Javé identificou-se
com a mao de carne de Jesús Cristo.. E, Já que cada máo humana_ é
recíproca ou correspondente a todas as demais máos humanas, a máo

— 306 —
A MAO DE DEUS

de Cristo vem a ser a Máo de Deus (= o auxilio, o carinho de Deus)


estendida em resposta a toda e qualquer máo humana que se abra em
meio a indigencia e á penuria; é a Máo única de urna salvacáo universal.

3. Dentro desta perspectiva, deveráo ser lidos os textos do


S. Evangelho em que o autor sagrado realga explícitamente a
"acáo salvificá da máo de Jesús Cristo.

Assim máo e máo se tocam no caso seguinte, anunciando de certo


modo a vinda do Messias ao mundo :
. «Tendo entrado em casa de Pedro, Jesús ai encontrou a sogra de
Pedro prostrada pela lebre. Tocou-lhe a máo; a íebre deixou-a, ela se
levantou e pós-se a servir» (Mt 8, 14s).

Leve-se em conta outrossim :

«Em um sábado, estava Jesús ensinando em urna das sinagogas.


Apareceu ali urna mulher, que havia dezoito anos estava possessa de
um espirito que a tornava enferma. Andava encurvada, e nao podia
absolutamente olhar para cima Jesús impds-lhe os maos e ela no
mesmo instante se ergueu e comecou a glorificar a Deus» (Le 13,
lOs.13).

«Levaram a Jesús uní homem surdo-mudo, e pediam-lhe que lhe


impusesse a máo. Jesús levou-a á parte, longe da multidáo, pds-Ihe os
dedos nos ouvidosl, e, tomando um pouco de saliva, com ela tocou-lhe »
lingua. Levantando os olhos ao céu, suspirou e disse-lhe : 'Efatá1, o que
quer dizer 'Abre-te*. Imediatamente seus ouvidos se abriram. Desfez-se
o empecilho de sua lingua e comecou a falar distintamente»
(Me 7, 32-35).

«Jesús cuspiu no chao, e fez lodo com a saliva e untou com o dedo
os olhos do cegó. E disse-lhe: 'Vai, e lava-te na piscina de Siloé...'.
Ele foi, lavou-se.e voltou enxergando» (Jo 9, 6s).

Essa máo de Cristo salva nao sdmente da doenca, mas da própria


morte,. pois o Senhor velo restaurar a vida, e a vida em sentido pleno
— a vida eterna :

«Quando Jesús chegou á casa do principe da sinagoga e viu os toca


dores de flauta e a multidáo em alvor&co, disse : 'Retirai-vos, porque a
menina nao está morta, mas dorme'. Síes, porém, riram-se déle.

Depois que a multidáo foi afastada, Jesús entrou, segurou a mao


da menina e ela se levantara» (Mt 9, 23-25).

«Quando o Senhor viu a viúva de Naím, sentiu-se movido de com-


paixáo para com ela e disse-lhe: 'Nao chores1. Aproximou-se e tocón
no caixao. Pararam logo os que o levavam. Disse entáo : 'Jovem, eu te
digo, levanta-te'. O que tinha estado morto, levantou-se e comecou a
falar. E Jesús o entregou á sua máe» (Le 7, 13-15). -

' Destarte conclui-se que no S. Evangelho o antropomorfismo da máo


de Javé foi abolido como figura de estilo, porque se tornou realidade
viva; Deus, de fato, quis ter máo humana a fim de preencher mais efi-

— 307 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 3 ,

cazmente o papel simbolizado pela máo (papel de auxiliar e salvar


benévolamente). Os textos do Antigo Testamento foram, désse modo,
ultrapassados, mas simultáneamente levados á plenitude da sua signi-
ficagáo.

4. Depois da Ascensáo de Jesús aos céus, o misterio da Máo


de Deus se prolonga na Igreja e pela Igreja, pois esta, por sua
vez, prolonga a Encamagáo de Cristo. É dessa forma que a máo
(ou a misericordia salvífica) do Senhor continua a agir na his- •
tória através dos sáculos, como o atesta a oragáo dos Apostólos
perseguidos:

«Considerai, Senhor, as ameacas que fazem, e concedei a vossos


servos que anunciem vossa palavra com toda a seguranca, estendendo
a vossa máo pora que se realizem curas, milagros e prodigios pelo nome
de vosso santo servo Jesús» (At 4, 29s).

5. Em particular, no Ritual dos Sacramentos a Igreja faz questáo


de repetir os gestos das máos de Cristo : naja vista, por exemplo, a im-
posigáo dos dedos do sacerdote nos ouvidos do catecúmeno, a repetir o
que Cristo fez quando curou o surdo-mudo (cf. Me 7, 32-35). S. Agos-
tinho justificaría esta praxe nos termos seguintes : «Batize Pedro, é
Cristo quem baliza; batize Paulo, é Cristo quem batiza; batize Judas,
é Cristo quem batiza (In lo 6). Em suma: é sempre Cristo quem age
através dos sacramentos devidamente administrados.

6. Vé-se, pois, que a metáfora da Máo de Deus, grosseira


e primitiva como parece, é portadora de profunda riqueza dou-
trinária; basta lé-la na sua perspectiva auténtica, isto é, dentro
das grandes linhas que constituem o conjunto da mensagem
bíblica.

Através do exemplo que acaba de ser apresentado, poderá o leitor


moderno aínda imperito familiarizarse com o estilo bíblico e com a
genuina maneira de o entender.
(Na redacáo do estudo ácima, muito nos servimos do fascículo «La
Main de Dieu» de E. Barbotin, publicado em «Vérité et Vie» LXII,
1963/64 n' 466B2).

IV. MORAL

EVANGÉLICO (Rio de Janeiro) :

4) «Em abril de 1964, o Papa Paulo VI afirmou o direito


de todo individuo humano k Bberdade religiosa.
Esta declaracao parece tao distante do espirito da Inquisi-
cáo! Nao equivale a dizer que todas as religioes sao boas?»

Ao fazer o pronunciamento ácima, o S. Padre Paulo VI anunciava


urna possivel declaracao do Concilio Ecuménico sobre o assunto, decla-
racáo de grande alcance, pois provocarla, por parte das autoridades

— 308 —
LIBERDADE RELIGIOSA

nos países predominantemente católicos, urna atitude de grande tole


rancia para com os ddadáos náo-católicos.
>A mencionada declaracáo conciliar ainda está em estudo. Foi, sim,
apresentado aos Padres Conciliares um projeto da me&ma que deverá
ser discutido e votado provávelmente na terceira sessao conciliar (fins
de 1964). Embora o texto de tal documento ainda nao tenha sido dado
_ao.público, pode:se_iTiuito bem tomar conhecimento do seu conteúdo
através do discurso com que S. Excia. D'; De Smedt, bispo de Bruges
(Bélgica) e membro da Comissáo elaboradora do texto, o apresentou
aos Padres Conciliares em 19 de novembro de 1963 na basílica de
S. Pedro.
Apoiando-nos nesse discurso, assim como numa conferencia feita
pelo Cardeal Agostinfio Bea sobre «Liberdade Religiosa e transforma-
c6es sociais» a 13/XII/1963 perante o XIV Congresso Nacional da Uniao
dos Juristas Católicos Italianos, podemos sem dificuldade avaliar o
sentido exato das palavras de Pauio VI e dos PP. Conciliares a res-
peito de liberdade e tolerancia religiosas.
Vamos, pois, abaixo analisar o discurso de S. Excia. D. De Smedt,
completando-o com os dizeres do Cardeal Bea. Teremos assim a Ínter-
pretacjio auténtica do pensamento da Igreja sobre a «liberdade reli
giosa».

1. Os motivos da declaragao

Quatro sao os motivos principáis que levam a S. Igreja reu


nida em concilio ecuménico a se pronunciar hoje em dia sobre
«liberdade religiosa» :

1) Motivo de veracidade: o direito á liberdade de religiáo é algo


que toca o patrimonio da verdade, patrimonio cuja tutela loi por Cristo
confiada á Igreja;

2) Motivo de defesa: a Igreja nao se pode calar sobre o assunto,


quando em nossos dias cérea de metade do género humano está despo
jada da sua liberdade religiosa por imposicáo de regimes aoveraamen-
tais materialistas e ateus;

3) Motivo de coabitacao pacifica: atualmente, em todos os paises,


homens que professam crengas religiosas diversas e mesmo que nao
professam crenga alguma, sao chamados a conviver em paz numa única
sociedade humana. Esta situagao cria, para a Igreja, a necessidade de
indicar a via de coabitacao pacifica, a luz da verdade;

4) Motivo ecuménico: muitos homens nao-católicos sentem aver-


sáo para com a Igreja, atribuindo-lhc maquiavelismo e mesquinhés de
atitudes, porque lhes parece que a Igreja reivindica liberdade para si
nos paises em que é minoritaria, mas nao quer reconhecer igual direito
para os cidadáos náo-católicos ñas nacoes em que Ela é majoritária.

Estas sao, sem dúvida, razóes imperiosas que tornam plena


mente oportuno um pronunciamento oficial das autoridades ecle
siásticas sobre o assunto «liberdade religiosa».

. Vejamos entáo qual o significado exato do

— 309 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 4

2. Conceito de liberdade religiosa

1. A fim de evitar confusóes, faz-se mister remover quatro


nogóes de liberdade religiosa que absolutamente nao correspon-
dem ao que a S. Igreja deseja defender :

1) Indiferentismo religioso: enganar-se-ia quem julgasse que a


Igreja pretende reivindicar para o individuo o direito de considerar ou
nao considerar o problema religioso ou de o considerar como bem lhe
agrade, decidindo finalmente, de acordó com o seu juízo subjetivo, se
deve ou nao deve abragar a Religiáo. Religiao neste caso seria questáo
de conveniencia pessoal, de gósto, de educacüo, de tradigáo de. fa
milia ...;

2) Laicismo: também se engañaría quem julgasse que se trata


de afirmar que a consciencia humana está livre de qualquer obrigacáo
para com Deus; nesta hipótese, seria lícito aos individuos e á sociedade
regrar a sua vida sem levar em conta o santo nome de Deus (Religiáo
viria a ser mais urna vez assunto de foro particular, nao pertencente
á estrutura do ser humano e da sociedade);

3) Relativismo religioso: também nao intenciona a Igreja asseve-


rar que se devem reconhecer a verdade e ao erro os mesmos direitos,
ou que nao há própriamente «verdade» e «erro» em materia religiosa;
neste caso, dever-se-ia deixar de falar de «crenea errónea»; todas as
Religioes seriam equivalentes entre si ou igualmente boas;

4) Pessünismo diletante: o homem teria o direito de se deixar


ficar tranquilamente na incerteza em materia religiosa; nao haveria
obrigacao de formar um juízo consciente (fósse favorável, f&sse desfa-
vorável) em materia religiosa, sob pretexto de que em tal setor nao se
pode chegar a ter seguranca.

Numa palavra: a S. Igreja nao pensa em atribuir legitimidade a


qualquer dessas quatro atitudes; elas sempre íoram e seráo considera
das desvios do comportamento humano.

2. Mas entáo que entende o Concilio por «liberdade reli


giosa»?
Entende o direito que tem a pessoa humana, de exercer
livremente a Religiáo (isto é, de servir a Deus) conformé os
ditames da própria consciencia. É o que já Leáo XIII, claro
arauto da liberdade humana, afirmava na sua encíclica «Liber
tas praestantissima» de 20 de junho de 1888.
Em outros termos : a S. Igreja ensina que a pessoa humana,
feita por Deus e para Deus, tem que entrar em relagóes diretas
com Deus, de modo tal que é ilícito a qualquer autoridade que
seja, impor-lhe algum constrangimento nesta linha. Liberdade
religiosa, portante, implica em autonomía da consciencia-de
cada individuo em relacáo aos demais homens (o que nao signi
fica autonomía frente a toda norma objetiva, pois ninguém tem

— 310 —
LIBERDADE RELIGIOSA

o direito de criar a sua religiáó ou de estabélecer suas leis reli


giosas) .

Urna vez firme éste principio, pergunta-se:

1) Entao todo individuo tem o direito de reivindicar para bí a


liberdade religiosa^comó algo de sagrado que Deus lhe deu?
2) E a sociedade terá o dever de reconhecer essa liberdade?
3) Caso o tenha, até que ponto se estende tal obrigagao?

É o que os incisos abaixo procuraráo explanar.

3. Comportamiento dos católicos frente aos náo-católicos

1. A conduta dos cidadáos católicos numa sociedade mista


nortear-se-á pelas seguintes normas :

1) Todos os fiéis católicos tém a obrigagao de se empenhar


por trazer seus irmáos náo-católicos para a luz do Evangelho e
para a vida da S. Igreja. É Cristo mesmo quem o ensina quando
diz a seus discípulos :

«Ide, e ensinai a todas as nagóes, batizan<üo-as em nome do Pai e


do Filho e do Espirito Santo e ensinando-as a observar todos os man-
damentos que vos dei> (Mt 28, 19s).

O zélo missionário ou apostólico é inerente fr. mentalidade do cató


lico, pois éste sabe que, também em Religiáó, há distincáo entre verdade
e erro, luz e trevas, e é normal que todos os homens vivam na verdade
e na luz.
Para conseguir tal' objetivo, o discípulo dé Cristo deve dar o teste-
munho da palavra e da conduta de vida; deve outrossim orar assldua-
mente e mortiíicar-se.
Nao será necessário irisar que ele mesmo (católico) está obrigádo
a observar sempre e em toda parte os direitos sagrados e absolutos de
Deus, manifestados tanto pelo Evangelho como pela lei natural.

2) Contudo é mister que, em seu zélo, os católicos se abs-


tenham de exercer sobre o próximo qualquer constrangimento
religioso, direto ou indireto. Nao é licito, portante, ao discípulo
de Cristo violar a liberdade religiosa do seu semelhante. Ao con
trario, é preciso que respeite o direito e o dever que cada um tem
.de obedecer á sua consciéncia, mesmo quando essa consciéncia,
após exame sincero e suficiente, permanece de boa fé no erro.

O motivo último desta atitude é a certeza que o católico tem, de que


o ato de fé verdadeira é dom sobrenatural, dom que o Espirito Santo1
concede gratuitamente a quem Ele quer e quando Ele quer. Éste dom,
para produzir seus frutos, há de ser aceito com toda a liberdade por
parte do respectivo destinatario.

— 311 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 4

Por conseguinte, só nao pode ser reconhecido como legítimo


o caso do cidadáo que erra de má fé, isto é, que fecha volunta
riamente os olhos ante a verdade ou que, movido por preguiga
ou descaso, nao se interessa por Lnformar-se e instruir-se quando
o pode.
Tal individuo peca nao sómente contra Deus, mas também contra
si mesmo; derroga á lei natural, pois recusa fazer uso da sua inteligen
cia, característica da natureza humana.

Caso se reconhecesse o direito de errar de má fé, reconhé-


cer-se-ia direta e positivamente ao mal moral o direito de existir
e difundir-se — o que é absurdo.

3) Todos os fiéis católicos devem-se sentir obligados, pelo


mandamento de Cristo, a amar seus irmáos náo-católicos com
amor sincero e efetivo. Isto, por certo, nao implica que digam
«Sim» aos erros e desvios do próximo; será sempre preciso dis
tinguir entre o erro e a pessoa que erra, a fim de odiar aquéle e
querer bem a esta.
2. Entre as normas ácima propostas, talvez cause estranheza a
que manda reconhecer a liberdade religiosa mesmo dos cidadaos que
erram (contanto, sim, que errem de boa íé).

Como se explica isto?

— A pessoa humana tem, por lei natural, a obrigagáo de


prestar cuitó a Deus de maneira consciente e livre, isto é, de
acordó com as facuidades que caracterizan! a sua dignidade hu
mana. Ora, ésse culto só será consciente e livre se a pessoa fór
isenta de constrangimento, podendo assim formular em seu ín
timo um juízo prudente sobre a vontade de Deus e as exigencias
que esta lhe impóe. Está claro que, no trabalho de indagar a lei
de Deus, a pessoa humana pode e deve valer-se do auxilio de
outras pessoas; estas, do seu lado, tém a obrigagáo de a auxiliar
a encontrar a face do verdadeiro Deus; mas nenhuma tem o di
reito de se substituir a consciéncia do próximo, forgando-o a
aceitar determinado alvitre. O homem que obedece fielmente e
com toda a sinceridade á sua consciéncia, em última análise dá
provas de obedecer a Deus mesmo; deve, por isto, ser julgado
digno de estima, embora se ache involuntariamente envolvido
em erro ou confusáo (erro ou confusáo que, nao obstante dili
gente pesquisa, nao lhe tenha sido possível debelar).
Caso se viole a liberdade religiosa, viola-se a liberdade da pessoa
em assunto de importancia capital, ou seja, ñas relacóes do ser hu
mano com o seu Fim Supremo: Deus. Impedir, pois, um cfdadáo de
obedecer e prestar culto a Deus segundo os ditames da sua consciéncia
constituí injuria máxima.

— 312 —
LIBERDADK' RELIGIOSA
- ■ f^\
4. Limites impostes pelo bem comum >||

A liberdade religiosa assegura a todo individuo o direito de ex- '-


primir a sua fé tanto por atos de sua vida particular como por
manifestagóes públicas e sociais; permite-lhe outrossim consti- ,
tuir agrupamentos de caráter religioso destinados ao culto de
Deus e á práticá da vírtude. A razáo disto é que o ser humano
nao consta apenas de espírito.mas tem um corpo, que se exprime
por sinais sensiveis; nem é mero individuo, mas ser sociável,
feito para se desenvolver e realizar plenamente no consorcio com
os demais homens; daí o direito da Religiáo a ter o seu culto ex
terno e comunitario.
Contudo pode acontecer que ñas manifestacóes de fé-se
cometam desvios, os quais se tornam causa de conflitos entre os
homens e prejudicam o bem comum. A vista disto, a própria
lei natural impóe certos limites a. liberdade religiosa. Ao Estado
ou as autoridades governamentais compete regulamentar as ex-
pressóes religiosas da sociedade de modo a evitar que o exercício
da liberdade de uns lese os direitos de outros cidadáos. Escreve,
sim, o Papa Joáo XXIII:
«É dever fundamental dos poderes públicos regrar as relagSes jurí- _
dicas dos cidadáos entre si, de modo que o exercicio dos direitos de uns
nao impeca ñera comprometa o exercicio dos mesmos direitos por parte
de outros; leja, ao contrario, o uso dos direitos sempre acompanhado
do cumprimento dos deveres correspondentes. Trata-se de manter a
integridade dos direitos de todo e qualquer cidadao e de restabelecer
tais direitos, caso venham a ser violados» (ene. «Pacem in terris»,
A.A.S. LV [1963] 274).

A medida em que ao Estado compete intervir em questóes


religiosas, é ditada pelas' exigencias do bem comum, ou seja,
pelas exigencias da ordemi estabelecida por Deus, ou seja ainda,
pela Lei de Deus. É como ministro do Senhor que o governante
pode licitamente intervir em assuntos religiosos (nos casos em
que isto se torne necessário); terá em vista servir a Deus garan-
tindo, e nao coibindo, a liberdade religiosa que por direito natu
ral toca a cada cidadáo.

S. Tomaz o ensina nos seguintes termos :

«A lei humana só tem valor de lei na medida em que é coníorme


a reta razáo; assim concebida, é evidente que a lei humana decorre da
lei eterna. Na medida, porém. em que ela possa contrariar a lei divina,
a lei dos homens deve ser tida como iniqua; em conseqüéncia, já nao
tem valor de lei, mas de violencia» (S. Teol. l/It qü. 93, a. 3, ad 2).

Nos últimos decenios, os Sumos Pontífices tém repetida


mente lamentado a violacáo da liberdade religiosa por parte de

— 313 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 4

varios governos civis. Ainda aos 29 de setembro de 1963, o


S. Padre o -Papa Paulo VI se referia a tais desmandos :

«Que tristeza nao experimentamos diante de tantos sofrimentos!


Que afligao, por ver que em certos países a liberdade religiosa, assim
como outros direitos fundamentáis do homem, sao sufocados em vir-
tude de principios e métodos de intolerancia política, racial oü anti-
-religiosa! Causa-nos dó profunda verificar quantos atentados a llvre e
honesta profissáo de fé religiosa pessoal se cometem ainda hoje no
mundo!» (cf. «Documentation Catholique» n» 1410 de 20/X/1963,
col. 1358).

Eis as últimas declaragóes da Igreja a respeito de liberdade


religiosa. Vé-se que sao táo ampias quanto possivel, so nao pac-
tuando com o erro professado de má fé, pois isto seria pactuar
com o próprio mal, reconhecendo-lhe direitos de legitimidade.
Fora isto, a S. Igreja déseja que se reconheca mesmo aos cida-
dáos que erram de boa fé, o direito a liberdade religiosa; nao se
lhes imponha constrangimento de consciéncia.

Eis. porém, que mais de um leitor poderia conceber profunda sur-


presa ao confrontar tais normas eclesiásticas de nossos dias com as
que no século passado foram enunciadas: parece haver contradicho,
pois outrora os prelados se mostravam muito rígidos em torno dos
mesmos pontos que éles hoje encaram com largueza. Como se poderia
explicar isto?
É o que vamos ver no parágrafo seguinte.

5. Continuidade ou contradicao da doutrina da Igreja?

Quem lé alguma declaracao eclesiástica, deve sempre>tomar o cui


dado de a recolocar no quadro histórico em que foi proferida, a fim
de a entender de acordó com as intencoes da autoridade que assim se
pronunciou. Em caso contrario, o leitor se arriscaría a atribuir aos do
cumentos da Igreja doutrinas que absolutamente nao correspondem ao
seu teor.

1) O primeiro texto que importa considerar no tocante ao


nosso assunto, é a seguinte passagem da encíclica «Quanta cura»
de Pió IX («Acta Sanctae Sedis» m [1867] 162): \

«Em conseqüéncia dessa idéia absolutamente falsa (o naturalis


mo)..., n&o hesitam em favorecer a opiniao errónea, extremamente
nociva para a Igreja Católica e a salvacáo das almas, opiniao segundo a
qual a liberdade de consciéncia e de cultos é direito próprio de todo
homem, direito que deve ser proclamado e assegurado em todo Estado
bem constituido. Já nosso predecessor de feliz memoria, Gregorio XVI,
tinha essa proposlcao na conta de loucura (deliramentum)».

Analisando cuidadosamente éste texto, verifica-se que tem


em vista o racionalismo do séc. XIX, o qual, proclamando a

— 314 —
LIBERDADE RELIGIOSA

liberdade de consciéncia, intencionava incutir tres proposigóes


inaceitáveis a um cristáo : "- ' , _

a) a consciéncia do individuo humano nao está sn]eita a Ici


alguina, nem mesmo a Lei de Deus. ,

--~ Pió IX, aliás,-no seu «Silabo» em 1864, condenóu explícitamente a


seguinte tese, que serve de fundo á tal proclamacáo da liberdade de
consciéncia: - .

«A razáo humana, emancipada de qualquer consideracáo para com


Deus, é o único arbitro da verdade é do erro, da bem e do mal. Ela
constituí a sua própria lei e, por sua capacidade natural, é suficiente
para promover o bem dos homens e dos povos> (Denzinger, Enchiridion
Symbolorum 1703).

b) Haja liberdade de cultos, porque nño existe propriamente ver


dade em materia de Rellgiao; a verdade religiosa é estipulada exclusi
vamente pelo arbitrio da razáo natural de cada individuo.

Eis a proposigáo «de fundo» rejeitada por Pió IX no mesmo «Si


labo» :

«Todo individuo é livre para abracar e professar a religiáo que, a


luz de sua razáo natural, lhe parecer verdadeira» (Denzinger, Enchi
ridion 15).

Era a mentalidade do indiferentismo ou do relativismo religioso


que inspirava a «liberdade de consciéncia» dos racionalistas e que
Pió IX, seguindo Gregorio XVI, intencionava condenar como «Ioucura».

c) Haja absoluta separagáo entre a Igreja e o Estado, porque


éste é plenamente competente para estabelecer oui cancelar os direitos
"da personalidade humana; a própria Igreja deve ser incorporada ao
organismo do Estado e submetida a suprema autoridade do poder
civil.
A este respeito, também se poderia citar a proposigáo de fundo,
igualmente rejeitada no «Silabo» :
«O Estado é fonte e origent de todos os direitos; por isto goza de
jurisdigáo ilimitada»' (Denzinger, Enchiridion 1739).

Era esta tese laicista e positivista que Pió IX visava ao condenar


a «liberdade de consciéncia» propugnada pelos livres pensadores do
' século passado.

Positivamente, mediante tal condenagáo, Pió IX (e, com ele,


a Igreja) visava defender a verdadeira dignidade e liberdade do
ser humano. Com efeito, o fundamento de toda a nobreza do
homem consiste em ser dotado de inteligencia e vontade e, por
isto, ser portador da imagem e semelhanca de Deus. Esta carac
terística faz que o homem se ache em direta relacáo com Deus
e em absoluta dependencia do Criador. É em tal dependencia
que se baseia a necessidade de Religiáo ou a necessidade de que

— 315 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 4

o homem, em consciéncia, tome urna atitude definida diante de


Deus. Tal atitude, conscientemente abracada, vem a ser urna
das grandes expressóes da dignidade humana.

É claro que esta necessidade ou éste dever acarreta para todo


homem o direito de reivindicar para si a liberdade de religi&o ou a
liberdade de relacoes com o Senhor Deus, sem que neste setor se possa
admitir interferencia de alguma autoridade humana.
Combatendo, pois, o laicismo e o indiferentismo religioso do século;
passado (arvorados sob o titulo de «liberdade de consciéncia»), a Igreja
tinha em vista nao própriamente perseguidores e opressores da Religiáo
(tal nao era 0 caso), mas os filósofos que queriam negar as relacSes
que o homem necessáriamente deve ter, em consciéncia, com o seu
Criador. «Liberdade», nos labios dos racionalistas, quería dizer nao
própriamente «paz para todos os cidadáos na sociedades (a respeito
disto nao se discutía), mas isengáo de qualquer ditame religioso ou de
qualquer relagáo do homem com Deus — isengáo esta que equivaleria,
sem dúvida, a degradacáo da personalidade humana, como lembrou a
Igreja pela palavra dos Papas Gregorio XVI e Pió IX. Estes quiseram
frisar que o Estado deve deixar liberdade aos súdltos em materia reli
giosa, nao, porém, para que os cidadños se abstenliam de religiáo, mas
para que possam com a própria inteligencia e a Hvre vontade tomar
conscientemente o caminho que leva para Deus.

2) O pensamento da Igreja pode exprimir-se com mais


amplidáo, ou seja, menos solicitado pela necessidade de repelir
o laicismo e o racionalismo agudos, nos tempos do Papa
Leao Xin (1878-1903). Éste Pontífice deixou-nos, por exemplo,
os seguintes pronunciamentos :

«Ninguém tem motivo para acusar a Igreja de rejeitar concessSes


e acomodacoes .razoáveis ou de ser inimvgo de sadia e legitima liber-
dade. Com efeito; se a Igreja julga que nao é lícito colocar os diver
sos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira Religiáo, Ela nem por
isto condena os chefes de govérno que, visando alcancar determinado
bem ou impedir certo mal, toleram na prática que ésses diversos cultos
tenham cada qual seu lugar no Estado. — É, alias, costume da Igreja
cuidar com todo o zélo. para que ninguém seja constrangido a abracar
a fé católica contra a sua vontade, pois, como observa S. Agostinho, a
fé só pode existir onde haja espontaneidades (ene. «Immortale Dei*,
de 1' de novembro de 1885; Denzinger, Enchiridion 1873-1875). v

Em outra encíclica, prosseguia o S. Padre :

«Em sua consideragáo materna, a Igreja leva em conta o peso


acabrunhador da iraqueza humana; Ela nao ignora a onda (libertina)
que, em nossa época, arrasta os espiritos e as coisas. Por isto. embora
só reconheca direitos ao que é verídico e honesto, Ela nao se opóe á
tolerancia de que os poderes públicos dáo provas frente a certas insti-
tuigóes contrarias á verdade e á justiga, tendo em vista evitar maiores
males ou obter e conservar maiores bens.
Deus mesmo, em sua Providencia, embora infinitamente bom e
todo-poderoso, permite, nao obstante, a existencia de certos males no

— 316 —.
LIBERDADE RELIGIOSA *'&(■
mundo, ora para nao impedir bens maiores, ora para evitar mais vul
tuosos males. No regime das nagóes, convém que os governantes imi-
tem Aquéle que governa o mundo. Mais ainda: nao podendo impedir
todos os males particulares, a autoridade dos homens está obrigada a
permitir e deixar impunes muitas coisas que a justo titulo cairao sob
o juizo da Providencia Divina. Observe-se, porém, o seguinte: se, em
vista do bem comum,... as leis dos homens podem e mesmo devem
"tolerar o mal, nunca o podem ou devem aprovar edesejar em si mesmo.
Com efeito, o mal é a privacao do bem; por conseguinte, ele se op5e ao
bem comum que o legislador está obrigado a desejar e defender do
melhor modo possivel. Neste ponto também as leis humanas devem
procurar imitar a Deus...» (ene. «Libertas», de 20 de junho de 1888).

3) Nos anos do Papa Pió XI (1922-1939), já nao havia


tanto motivo para temer que urna falsa concepgáo da liberdade
prejudicasse a dignidade humana. Muito mais funesta era a in
fluencia do totalitarismo do Estado, que ameacava extinguir'os
direitos á liberdade civil e religiosa dos respectivos súditos.
Assim as declaracóes da Igreja se foram mais e mais voltando
para a delicada questáo das relagóes do Estado com as confissóes
religiosas existentes em cada nagáo.

Eis o" que se pode colhér dos documentos de Pió XI:

Éste Pontífice continuou a rejeitar o laicismo, que equivale a de-


pauperamento ou mesmo sufocacáo do senso religioso :
«O que Pió X condenou, Nos o condenamos igualmente: todas as
vézes que por 'laicismo' se entendem sentimentos ou intenc8es contra
rios ou éstranhos a Deus e á Religiáo, reprovamos formalmente ésse
laicismo e declaramos abertamente que deve ser reprovado» («Maxi-
mam gravissimamque», A.A.S. XVI [1924] pág. 10).

Pió XI, porém, foi mais adiante : ainda explicitou o pensamiento


da Igreja fazendo distincáo entre «liberdade de consciéncia» e «liberdade
dos consciéncias». Recusou o uso da primeira destas expressoes, pois
lhe parecia equivoca, já que podia ser entendida no sentido do laicismo,
como «absoluta independencia da consciéncia, coisa absurda no homem
criado e resgatado por Deus». Contudo mostrou-se favorável á expres-
sáo «liberdade das consciéncias», dizendo estar «feliz e nobremente cioso
por combater o bom combate em prol da liberdade das consciéncias»
(Carta Apostólica «Non abbiamo bisogno», de 21/VI/1931, A.A.S. XXIII
[1931] 310s). E, essa «liberdade das consciéncias», o Pontífice a enten
día no sentido de «direito, inerente a todo homem, de honrar a Deus
de acordó com as normas da sua reta consciéncia».

Poucos anos mais tarde, na encíclica «Mit brennender Sorge» a


respeito do nacional-socialismo, o S. Padre dizla formalmente:
«O fiel tem um direito inalienável de professar a sua fé e de a pra-
ticar como ela deve ser praticada. Leis que suprimam ou dificultem a
profissáo e a prática dessa fe, contradizem á leí natural» (A.A.S.
XXIX [1937] 160).

Assim ficava claramente reivindicada a liberdade das consciéncias.

— 317 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 4

4) Pió XII (1939-1958), tendo ante os olhos novas é novas


expressSes do totalitarismo de Estado, enunciou certa vez «os
direitos fundamentáis da pessoa humana», iricluindo entre éles
«o direito ao culto de Deus particular e público, compreendida
ai a agáo caritativa religiosa» (Rádio-mensagem de 24/XII/
1942, A.A.S. XXXV [1943] 19).
Nao menos importante -é a afirmacáo do mesmo Pontífice
referente á atitude que o Estado deve tomar diante de erros
ocorrentes na sociedade civil. Nem sempre, dizia Pió XII, con-
virá que o Govérno civil os reprima ■diretamente; poderá, sim,
haver casos em que a prudencia e os interésses do bem comum
recomendem a tolerancia a finí de se evitarem males maiores:

«O dever de reprimir os desvios moráis e religiosos náoi pode ser


tomado como norma suprema de agSo. Deve ser subordinado a normas
mais elevadas e mais gerais que em certas circunstancias permiten»
que se imponha... como o melhor alvitre o de nao impedir o erro, a
íim de se promover um bem maior...
Um olhar para a realidade das coisas... mostra que o erro e o
pecado se encontram no mundo em larga escala. Deus os reprova ; nao
obstante, permite que existam. De outro lado, verifica-se que mesmo a
autoridade humana Deus nao impós um preceito absoluto,e universal
(de repressáo violenta), nem no setor da fé nem no da moral. Tal pre
cedo nao se encontra nem na conviccáo comum dos homens, nem na
consciéncia crista, nem ñas fontes da Revelacáo, nem na praxe da
Igreja. Para nao íalarmos aqui de outros textos da S. Escritura...,
Cristo na parábola do joio fez a advertencia seguinte: 'No campo do
mundo deixai crescer o joio juntamente com a boa sementé por causa
do trigo1 (Mt 13, 24-30)».
Donde conclui o S. Padre : «Primeiramente : o que nao corresponde
á verdade e á lei moral, nao tem objetivamente direito á existencia,
nem a propaganda nem á atividade. Em segundo lugar : nao obstante,
em vista de um bem superior e maior, pode-se justificar o fato de nao
se impedir por leis do Estado e meios coercitivos a existencia do mal
ácima apontado» (Discurso aos juristas católicos italianos, em
e/xn/i953).

Note-se que a tolerancia assim apregoada equivale simplesmente a


mera náo-intervengao;- de modo nenhum significa, assista ao govérno-
o direito de promulgar «alguma ordem positiva ou alguma autorizagáo
positiva para se ensinar ou fazer coisa contraria á verdade religiosa ou
ao bem moral». Pois, explica Pió XII:

«Urna ardem ou urna autorizagao désse género nao teria fórca obri-
gatória e seria ineficaz. Nenhuma autoridade poderla promulgá-la, por
que é contrario á natureza obrigar o espirito e a vontade do homem ao
erro e ao mal, ou obrigar a considerar o erro e o mal como coisas indi
ferentes. Nem mesmo Deus poderla dar urna tal ordem positiva ou tal
positiva autorizacao, porque cairia em contradigáo com a sua absoluta
veracidade e santidade» (Discurso ácima citado, em «Discorsr e Radio-
messaggl» XV. 1954 pág. 487; cf. «Revista Eclesiástica Brasileira»
1954, 196).

_ 318 _
LIBERDADE RELIGIOSA

Estas palavras dispensam qualquer comentario: promover direta-


mente o erro ou o mal nunca poderá ser licito; sómente é permitido
tolerar o erro e o mal existentes, caso se tenha em vista um bem maior
a ser preservado.

5) Por fim, o Papa Joao XXIII (1958-1963) seguiu a linha


de seus antecessores, principalmente na encíclica «Pacem in
íerris» (ll/TV/1963). Neste documento, declarava S. Santidade
dever-se incluir entre os direitos do homem «o de honrar a Deus
segundo as retas normas de sua consciéncia e professar a Reli-
giáo tanto particular como publicamente» (A.Á.S. [1963]
260s).

Os comentadores (entre os quais, S.E. o Cardeal Bea no discurso


citado no inicio desta resposta) observam que na declaracáo ácima o
Pap&.Joáo XXIII salvaguarda o direito á liberdade religiosa mesmo
para os que erram de boa fé (isto é, julgando sinceramente que estáo
acertando)," contanto que nao perturbem o bem comum, S. Santidade
falou, sim, de «normas retas», isto é, sinceras, tragadas de boa fé (mes
mo r.a base de principios erróneos), e nao própriamente de «normas
verídicas ou verazes». Tal pronunciamento, como sabemos, está longe
de significar relativismo religioso; existe, sem dúvida, um so Credo ver-
dadeiro, destinado a todos os povos; contudo a adesáo a ésse Credo, da
parte do homem, há de ser livre e consciente; nunca poderá ser imposta
por constrangimento.

Eis, em suma, o que a S. Igréja, de maneira coerente com as


suas declaragóes anteriores, quer lembrar ao mundo no dia de
hoje, no tocante á liberdade religiosa.

V. ESPIRITUAMDADE

TEÓFILO (Salvador) :

5) «Que sao os chamados 'dons do Espirito Santo' ?


Qual o seu significado mi vida crista?»

Por «dons do Espirito Santo»» entendem-se hábitos sobrenaturais


que tornam a alma apta a seguir especiáis inspiraco.es do Espirito de
Deus.
Trataremos abaixo do fundamento bíblico e do concelto exato dos
dons do Espirito Santo. A seguir, procuraremos analisá-los e delinear
a sua importancia para a perfeicao espiritual.

- 1. Fundamento bíblico

1) A Sagrada Escritura menciona nao raro a comunica-


gao do Espirito Santo aos justos. Dentre os mais notáveis teste-
munhos, destaca-se o de Is ll,2s, que em seu teor original assim
se refere ao Messias :

— 319 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 5

«Sobre Ele repousará o Espirito de Deus, espirito de sabedoria e


de inteligencia, espirito de conselho e de fortaleza, espirito de ciencia
e de temor do Senhor, e respirará no temor do Senhor».
A traducáo grega dita «dos Setenta», confeccionada na coldnia
judaica de Alexandria (Egito) nos séc. III/II a. C, e a traducáo latina
«da Vulgata» apresentam urna variante no final da lista : «... espirito
de ciencia e de piedade, e será cheio de temor do Senhor», perfazendo
assim o número de sete dons.
Como quer que seja, o Profeta assevera que o Messias, em sua na- •
tureza humana, possuirá a plenitude do Espirito de Deus. A Trádigáo
crista deduziu dessa passagem a conclusáo de que os discípulos de
Cristo, configurándose ao Primogénito, sao também agraciados pelo
Espirito Santo, o qual lhes comunica os sete mencionados dons. Em
conseqüéncia. os filhos de Deus sao movidos pelo Espirito de Deus
(cf. Rom 8, 14)); recebem graca por graca da plenitude de gracas que
o Espirito depositou na santissima humanidade de Cristo (cf. Jo 1, 16).

O que chama a atengáo nesse texto de Isaías, é que serviu


de base á enumeragáo precisa de sete dons do Espirito Santo.
Nao se poderia, porém, dizer que o autor sagrado tenha tido a
intengáo de definir número; quería antes dizer «totalidade das
gracas que o Espirito Santo haja por bem conferir a algum
justo». Por isto enumerou seis dons e, para atingir a cifra «sete»
(símbolo da plenitude), repetiu o último membro da lista.

Em conseqüéncia, pode-se muito bem admitir que, além dos sete


dons explícitamente mencionados por Is 11 (LXX), o Espirito Santo
comunique ainda outras dádivas aos seus fiéis, dádivas correspondentes
ás variadas situacoes em que o cristao deva dar um auténtico testemu-
nho de Cristo ao mundo.
Ainda outros textos da Sagrada Escritura podem ilustrar a doutrina
dos dons do Espirito Santo.

2) Tenham-se em vista as palavras do autor do livro da


Sabedoria:

«Orei, e o espirito da sabedoria desceu a mim. Preferí essa sabedo


ria aos cetros e ás coroas... Com ela foram-me dados todos os bens...
Através dos séculos ela se difunde em todas as almas santas tornándoos
amigas de Deus. Deus, em verdade, só se compraz naqueles em quetn
habita a sabedoria» (7, 7s. 11. 27s).
Observe-se que a sabedoria, o primeiro dos dons comunicados ao
Messias conforme Is 11,2, é, neste texto, prometida a todos os justos.

3) De resto, no Antigo Testamento lé-se mais de urna vez


■ que o Espirito de Deus se comunica aos homens, inspirándoos
e movendo-os, principalmente quando se trata de realizar obras
de certo vulto. . ~
Assim o Patriarca José, possuindo o dom de interpretar os sonhos
pelos quais Deus quería realmente comunicar urna mensagem aos ho
mens, é tido como portador do Espirito de Deus (cf. Gen 41, 38s).

— 320 —
OS DONS DO ESPIRITO SANTO

No livro do Éxodo, Deus declara ter derramado o espirito de sabe-.v


doria (habilidade artística) sdbre os artesáos de Israel que hao de con-
feccionar as vestes sacerdotais de Aaráo (cf. 28, 3). Fez o mesmo em
íavor de Beseleel e dos ourives encarregados dos objetos do culto (cf.
Éx 31, 3). Os setenta anclaos conselheiros de Moisés tamben» foram
agraciados pelo Espirito para desempenharem sabiamente as suas fun-
cóes (cf. Núm 11, 17.25).
Nao será hecessário insistir ñas freqüentes comunicag5es do Espi
rito aos Juízes, aos Reis e aos Profetas de Israel: assim a Otoniel (cf.
Jz 3, 10), a Gedeao (cf. Jz 6, 34), a Jefté (cf. Jz 11, 29), a Sansáo (cf.
Jz 13, 25; 14, 6; 19; 15, 14), a Saúl (cf. 1 Sam 10, 6. 10), a Davi (cf. 1
Sam 16. 13), aós Profetas (cf. 1 Sam 19, 20.24).
Em conclusáo, ésses diversos textos deixam no leitor a impressáo
de que os homens de Deus, que se distinguen! pela sua piedade ou pelos
seus feitos heroicos, vivem em íntima comunháo com o Espirito de
Deus. Éste freqüentemente os guia de modo maravilhoso, embora nem
sempre os leve a íázer milagres.

2. Conceito teológico

Entende-se claramente o que sao os dons do Espirito Santo, desde


que se tenham em vista os seguintes principios :

O cristáo é chamado a ser «Filho de Deus», ou seja, a parti


cipar da vida do próprio Deus. Ora isto implica que o desenvol-
viniente da vida crista se dá muito mais por iniciativa de Deus
do que por iniciativa do homem. O progresso sobrenatural nao
consiste própriamente em que o homem procure afirmar a si
mesmo numa especie de autodominio estoico, mas está, antes,
em deixar-se invadir pelo Espirito de Deus, o qual se torna assim
o principio inspirador da oragáo e da atividade do cristáo. Os
filhos de Deus sao muito mais movidos pelo Espirito Santo do
que mov^em a si mesmos.
Ora, em vista disto, o cristáo renasce da agua e do Espirito
Santo no Batismo; recebe entáo um principio de vida nova ou de
vida divina:

a graca santificante (que reveste a alma a guisa de um hábito


ou de urna entidade nova)

as virtudes infusas, que sao as faculdades de acáo dessa entidade


nova:

virtudes teologais (fé, esperanga e caridáde), para atingir a


__ Deus em sua vida íntima,

virtudes moráis (justiga, prudencia, temperanga, fortaleza),


para atingir devidamente as criaturas.

As virtudes infusas sao orientadas por urna regra de con


futa sobrenatural; o objetivo que visam, é o Deus da Revelagáo

— 321 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 5

Crista. Contudo o modo como procedem, é humano, dependente


das limitacóes e deficiencias da natüreza humana, pois é a razáo,
iluminada pela fé, que determina o modo de exercer as virtudes
infusas. Isto dificulta ou mesmo ímpossibilita as virtudes infusas
atingir com seguranga o seu fim sobrenatural.
Sendo assim, o próprio Deus quér tomar a si a orientacáo
da conduta humana, mediante os chamados «dons do Espirito
Santo». Estés vém a ser hábitos infusos na alma para que possa,
captar mogóes que o Espirito, dispensando 6 moroso raciocinio
humano, comunica ao cristáo; o modo de agir dos dons já nao é
humano, mas divino. O Espirito de Deus concede assim inspirá-
góes certeiras e instantáneas, em lugar das deliberagóes freqüeh-
temente inseguras e lentas do raciocinio.

Tenha-se em vista o caso de alguém que é interrogado de maneira


indiscreta : nao pode revelar a verdade, mas também nao lhe é licito
mentir. Pde-se entáo a deliberar sdbre a atitude a tomar, usando do
seu bom senso humano assim como da virtude Infusa de prudencia.
É bem possivel, porém, que nao encontré solucáo ou só a encontré
tarde ciernáis. Nesses casos, o Espirito Santo pode suprir o deficiente
trabalho humano mediante o dom de conselho; movido por éste, o cris
táo percebe sem demora qual a resposta a .dar para evitar tanto a vio-
lagáo de um segrédo como urna mentira.
Urna comparacáo clássica ilustra bem a diferenca entre o proceder
das virtudes infusas e o dos dons : -
Um barco movido a remos ou por bracos humanos pode adiantar-se
em direcáo do porto almejado; mas, sem dúvida, avanca lenta e peno-
sámente. Caso essa nave expanda as velas, os remadores poderao ees-
sar a sua labuta; bastará, que o vento sopre na boa direcáo para que a
ñau progrida de maneira multo mais rápida e certeira. Pois bem; o pro-
gresso «a remos» vem a ser o das virtudes infusas, cujo modo ou ritmo
é o da razáo humana. O progresso <ta velas abertas» é o dos dons do
Espirito Santo, cujo modo ou ritmo é o das insplragóes divinas, lúcidas
e imediatas.

3. Emimeraciio dos dons

Eis a doutrina de Sao Tomaz de Aquino (t 1274), que segué'a


linha de S. Agostinho (t 430) e S. Gregorio Magno (t 604), estabele-
cendo um nexo entre os dons do Espirito Santo, as virtudes infusas e
as bem-aven turancas evangélicas (Mt 5, 3-12).

Dos sete clássicos dons, quatro se referem ao conhecimento


(inteligencia, ciencia, sabedoria e conselho), ao passo que os tres
restantes visam mais própriamente a vontade e a sensibilidade
do cristáo.

a) Inteligencia: comunica a faculdade de penetrar de ma


neira profunda e intuitiva as verdades reveladas. Os misterios

— 322 —
OS DONS DO ESPIRITO SANTO

da fé sao assim ilustrados com mais perspicacia; os textos da'


S. Escritura, entendidos com maior clareza; os motivos de crer!¿
se tornam mais patentes... Nao sem razáo, os medievais costu-.~
mavam lembrar. que «inteligencia» vem de «intus legere», ler
dentro, ler no interior das realidades. *
, - ■ ' '
"" Segundo S. Agosfinho é S. Tomaz, o dom da inteligencia aperfeigoa
a virtude da 1é. Produz a bem-aventuranca dos puros de coracao, pois
estes costumam ver o sinéte de Deus em tudo que acontece aqui na
térra. . . .

tí) Ciencia: permite distinguir com certeza quase instin


tiva as proposigóes de fé de quaisquer outras proposigóes. Comu
nica também novo modo de ver o mundo e o próximo, modo so
brenatural, de sorte que o cristáo compreende melhor a harmo
nía e a continuidade do plano de Deus que, benévolamente,
abrange todas as criaturas. Contemplando as maravilhas da na-
tureza, os acontecimentos da historia ou o íntimo das almas,, o
justo espontáneamente se eleva até o Senhor, admirando-0 atra-
vés de cada ser criado.

O dom da ciencia corrobora a virtude da esperanza, pois faz ver


ao cristáo o vazio das criaturas e, conseqüentemente, a necessidade de
por sua confianca ím Deus para poder chegar ao Criador. Produz a
bem-aventuranca dos que choram as suas faltas, pois manifesta a gra-
vidade do pecado.

c) Sabedoria: dá o conhecimento experimental de Deus,


conhecimento que se baseia em certa afinidade com o Senhor; é
sápido (saboroso), porque decorre do amor. Comunica também
a visáo mais profunda que se possa ter a respeito,das criaturas.
Éste dom, de modo especial, se manifesta na contemplagáo in
fusa ou nos graus superiores da oragáo. É mesmo o mais nobre
dos dons do Espirito Santo.

A sabedoria fomenta a virtude da caridade, pois é conhecimento


baseado no amor a Deus. Proporciona a bem-aventuranca dos pacíficos,
pois dá a paz de alma .aos justos e faz que estes a possam comunicar
ao próximo ñas suas tribulagóes.

d) Conselho: habilita o cristáo a perceber com rapidez, ñas


situagóes embaragosas, o melhor alvitre a fim de evitar o pe
cado e servir aos designios de Deus.

É o dom que corrobora e completa a virtude da prudencia. Está


relacionado com a bem-aventuranca dos misericordiosos, pois inclina á
prática da misericordia: perdoar ao próximo é, sim, o meio mais eficaz
para obtermos o perdáo de Deus e chegarmos ao Altíssimo.

_ 323 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964, qu. 5

e) Piedade: leva o cristáo a honrar a Deus como Pai num


genuino espirito filial, preservando de atitudes aberrantes a de-
vocáo. Incita outrossim a venerar a Palavra de Deus nos livros
sagrados e a acudir solícitamente ao próximo, principalmente
aos indigentes, porque também na pessoa déstes Deus vem ao
encontró dos seus fiéis.

Corrobora a vlrtude da Religiftai, que é um aspecto da Justina (jus-


tica para com Deus). Leva' k bem-aventuranca dos mansos, porque dá
a ver nos homens outros tantos filhos de Deus e irmáos, excluindo riva
lidades.

f) Fortaleza i reconforta o cristáo a fim de nao renunciar


á prática do bem diante de dificuldades e perigos, fazando assim
que mais seguramente chegue ao termo de seus empreendimen-
tos (mérito raro, na maioria dos casos). Incute também a con-
fianga no auxilio divino e magnanimidade para suplantar as
adversidades.

Confirma a virtude iníusa da fortaleza e ocasiona a bem-aventu


ranca dos que tém fome o sede de justica, pois estes por certo possuem
forte desejo.

g) Temor de Deus : é o dom que faz recear, numa atitude


filial, toda e qualquer ofensa ao Pai do Céu; por isto constitui a
base de toda a ascensáo espiritual. Na medida em que cresce o
amor da alma para com Deus, o temor mais e mais se baseia
na intuigáo de que Deus é a Suma Bondade.

Aperfeicoa a virtude da temporánea e favorece a bem-aventuranca


dos pobres em espirito, pois leva o cristáo a se separar de honras e vai-
dades, para aderir mais certeiramente a Deus.
Como se vé, o nexo entre os dons do Espirito Santo e as bem-aven-
turancas evangélicas (Mt 5, 3-12) apresentado nos incisos ácima é um
tanto frouxo. Contudo, visto que é de venerável antigÜidade, costuma
ser transmitido entre os mestres de espiritualidade.
Eis, em quadro sinótico, como se poderiam, apresentar os dons e
suas func6es na vida espiritual:... ver pág. 325. \
Por último, nao se poderla deixar de observar que nem todos os
teólogos aceltam a distincáo entre dons e virtudes iníusas; n&o se trata
de materia de fé. A distincao, porém, pousa sobre bom fundamento, pois
apela para o fato de que as virtudes iníusas se exercem segundo o modo
lento do homem, ao passo que os dons comunicam a facilidade de agir
própria do; Espirito Santo.

4. Os dons e a perfeicao espiritual

1. A influencia dos dons, nos primordios da vida espiritual,


é latente e rara. Com o progresso interior, tende a se tornar

— 324 -r
Dons Virtudes ■ Bem-aventuran-
córrespondentes cas, evangélicas

para penetrar a verdade Inteligencia Fé Os puros de


coracáo

a respeito de Deus e de
seus misterios Sabedoria Caridade Os pacíficos

a inteligencia
iluminada pela fé \
para julgar a respeito das criaturas — Ciencia Esperancá Os que cho-
ram

a respeito de nossos atos — Conselho Prudencia Os misericor


Os dons
aperfeicoam diosos

em relagáo ao culto de Deus Piedade Religiáo Os mansos


(justica)

em relacáo aos perigos Fortaleza Fortaleza Os que tém


a vontade e íome e sé-
a sensibilidade de de jus
tica

em relacáo á concupiscencia desregrada - Temor Temperanca Os pobres


dé Deus em espi
rito
OS DONS DO ESPIRITO SANTO

manifesta e freqüente. Nesse mesmo ritmo, a alma vai atingindo


o estado místico. Éste nao é senáo o exercício eminente das vir
tudes infusas e dos dons que as acompanham.
A contemplagáo infusa ou mística que ocorre nessa etapa
suprema da vida espiritual, deriva-se da fé vivificada pela cari-
dade e iluminada pelos dons da inteligencia e da sabedoria. É
preciso frisar que tal contemplagáo constituí ó desabrochar nor
mal da graga santificante e da vida sobrenatural depositadas
ñas almas pelo Batismo; é, portante, o termo á que deve aspirar
todo e quaíquer cristáo que nao queira ficar na mediocridade.
Mesmo nos justos devotados á vida ativa (ao apostolado das escolas,
dos hospitais, das missóes ou a outros afazeres temporais) os dons da
inteligencia a da sabedoria desenvolvem suas funcóes, embora de ma-
neira menos contemplativa e mais prática do que ñas almas dedicadas
ao silencio, á oracáo e á clausura; Sao Vicente de Paulo, por exemplo,
gozava da contemplac.3.0 infusa mesmo em meio ás suas tarefas apostó
licas; sabia, sim, ver o próximo e as obrigacSes práticas como outras
tantas facetas da sabedoria e do plano de Deus a respeito déste mundo.
Era o dom dá sabedoria que Ihe incutia tal visáo, levando-o a orar e
a unir-se a Deus através dos diversos misteres de cada día.
É de importancia capital reter que em todo e quaíquer quadro de
vida, em toda e quaíquer vocacáo, o cristáo tem a' vocacáo suprema á
contemplacáo infusa ou a um regime de vida estritamente norteado
pelos dons do Espirito Santo,... em particular pelo dom da sabedoria.

Para que a alma chegue a tal estado (que é a característica


essencial da vida mística), o Espirito Santo nao deixa de Ihe
comunicar as inspiragóes necessárias ao exercício dos dons Caso
haja docilidade e generosidade por parte da criatura assim agra
ciada, a santificagáo se desenvolve em ritmo constante. Excite-
-se, portante, a magnanimidade das almas para corresponderem
ao Espirito Santo e aos seus dons! E os imensos tesouros da
graca divina nao seráo esbanjados, como tantas vézes acontece...

De resto, a íim de facilitar a correspondencia dos fiéis ao Espirito


Santo, a Providencia Divina lhes envia salutares provacSes, ditas «puri-
ficacóes passivas». Estas sao inerentes ao estado de contemplacáo in
fusa, pois por si mesmo o cristáo nao teria a coragem necessária para
se desembarazar do seu «velho homem». Quem as sabe aceitar, faz seu
purgatorio na térra e mais e mais desfruta da vida eterna iniciada no
tempo.

2. No Intuito de ilustrar quanto acaba de ser dito, seguem-se


alguns exemplos da agao dos dons do Espirito Santo na vida dos santos.
Cada um déstes tem, sem dúvida, sua faceta própria, concorrendo de
modo pessoal para exprimir aos olhos do mundo a multiforme graca_
de Deus.

a) Em S. Teresa de Lisieux (t 1887), grande contemplativa, além


do dom da sabedoria, parece ter tido papel relevante o dom da fortaleza.

— 326 —
OS DONS DO ESPIRITO SANTO

Foi éste que tornou realmente heroica a sua natureza de jovem donzela,
natureza que, conforme revelou a grafologia (estudo da escrita), muito
bem se teria prestado as funcóes de artista de cinema ou de manequim
de modas (cf. «P. R.» 45/1961, qu. 1).
Assim desde o día da sua Primeira Comunháo, Teresa concebeu o
desejo de «se unir á fprga de Deus» (Histoire d'une ame. Lisieux
1S53, 44).
— Esta fdrca, ela áobtevé de fato, nao para transferir montanhas
físicas, mas para se consagrar inteiramente ao servico de Deus em
meio as mais arduas circunstancias; para se tornar «crianca espiritual»
(no seu «pequeño caminho» da infancia espiritual), teve que ser extre
mamente corajosa.
Aos quinze anos de idade em Roma, pediu pessoalmente ao Si Padre
Leáo XIII a licenga para entrar no Carmelo.
Quando anos mais tarde, já na clausura, durante urna noite sofreu
a sua primeira hemoptise, sinal de tuberculose e prenuncio da morte
próxima, dominou seus afetos a ponto de nem sequer acender a luz
para averiguar o alcance do que acontecerá.
Passou seus anos de vida religiosa padecendo de aridez espiritual,
isto é, sem gozar de consoló interior. No convento nem sempre era com-
pfeendida pelas irmas de hábito. Além disto, a molestia a consumía
devagar, enquanto ela ia sofrendo e procurando viver tao tranquila
quantó as demais Religiosas. Desta forma, as suas duras provacñes
passaram despercebidas aos olhos de inultos membros da comunidade.
A própria santa explicava qual o segrédo de sua estupenda cora-
gem: era justamente a sua humildade, em virtude da qual se tornava
dócil ás inspiragoes do Espirito Santo : «Quanto mais somos fracos,
destituidos de virtudes..., tanto mais estamos aptos para a ac3o désse
Amor, que consomé e transforma» (Lettres, pág. 341).
i Heroísmo pela fórca do Espirito Santo dentro dos moldes da ira-
gilidade humana, eis urna das grandes características de S. Teresa de
Lisieux.

- b) Em S. .ToSo-Maria Vianney (t 1859) é notoria principalmente a


acáo do dom da ciencia, que fez daquele homem rude um insigne conhe-
cedor dos designios de Deus a respeito das almas e um pregador de
verdades profundas em termos simplicissimos.
file mesmo dizia:
. «Um cristáo movido pelo Espirito Santo nao tem dificuldade em
abandonar os bens déste mundo para ir ao encalco dos bens do céu.
Sabe fazer a diferenga. O • 61ho do mundo nao vé para além da vida
presente, como o meu ólho carnal nao vé para além dessa parede quan
do a porta da igreja está fechada. O ólho do cristáo, porém. penetra até
o fundo da eternidade. Ao homem que se deixa guiar pelo Espirito
Santo, parece que nao existe o mundo; ao mundo parece que nao existe
Deus» (A Monnin, Vie du Curé d'Ars, t. 2. ParU 1861, 448).
' O dom de ciencia t&o perspicaz levava o santo a mortificar-se cons
tantemente; via que, para apreender os valores eternos, é preciso renun
ciar aos prazeres temporais. Nao em váo dizia que «o sacerdote é o
homem devorado pelas almas»; o santo cura percebia muito bem o valor
das almas por quem ele se deixava devorar.
O dom da ciencia em Vianney suscitava outrossim o temor, temor
salutar de nao estar cumprindo devidamehte a sua missao pastoral junto
ás almas, ... temor de nao ter «enchido» a sua vida passada, de ter
que comparecer diante de Deus com as maos vazias.

- - _ 327 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 79/1964. qu. 5

«O ambiente mole (apático) desta regiáo me perturba. Tenho médo


de me perder por nao trabalhaí suficientemente». > .
«Teremos muito tempo para o lazer (para repousar-nos) quando
estivermos no cemitério». v,--:- " '. '

c) Em S. Anselmo de Cantuária (t 1109), Doutor da Igreja, dito


«Pai da Teología Escolástica», é muito evidente o dom da inteligencia.
Foi éste que o íéz penetrar profundamente ñas verdades da fé, como se
depreende, por exemplo, da oragáo que o Santo formulava no inicio
dos seus trabalhos intelectuais : . .

«Creio, Senhor; mas Tu, que das a inteligencia (a visao penetrante)


da fé, concédeme, na medida em que o julgares útil, a graca de conv
preender» (Proslogion 2).
«Nao tentó, Senhor, penetrar em Tuas alturas, mas desejo entrever
Tua verdade, que meu coracáo ere e ama» (Proslogion 1).
Assim a teología de Anselmo se apresenta como a resposta dada
por Deus ao Santo, cujo amor o tornava especialmente disponivel para
as inspiracoes do dom da inteligencia.
Compreendendo melhor as verdades divinas, o Santo nao podía dei-
xar de experimentar a alegría de quem possul a Deus, alegría que é
o antegózo da bem-aventuranea celeste :

«Aqueles que ora se regozijam, entraráo por completo na alegría


do seu Senhor... Que minha alma tenha íome désse gozo, que minha
carne tenha sede désse gozo, que todo o meu ser o deseje, até que eu
entre na alegría do Senhor, que é Deus, Trindade e Unidade, bendito
pelos séculos sem fim» (Prosl., conclusáo).
Semelhantes observares se poderiam tecer a respejto dos demais
Santos Doutores, nos quais o dom da inteligencia loi eminente.

D. Estévuo Bettencourt O.S.B.

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