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1) O estádio do espelho ocorre quando crianças reconhecem sua imagem no espelho entre 6-18 meses, levando a uma identificação primordial do eu.
2) Essa experiência simboliza a precipitação do eu na forma antes da dialética da identificação e da linguagem.
3) A imagem especular no espelho situa a instância do eu em uma linha de ficção irredutível que prefigura sua destinação alienante.
1) O estádio do espelho ocorre quando crianças reconhecem sua imagem no espelho entre 6-18 meses, levando a uma identificação primordial do eu.
2) Essa experiência simboliza a precipitação do eu na forma antes da dialética da identificação e da linguagem.
3) A imagem especular no espelho situa a instância do eu em uma linha de ficção irredutível que prefigura sua destinação alienante.
1) O estádio do espelho ocorre quando crianças reconhecem sua imagem no espelho entre 6-18 meses, levando a uma identificação primordial do eu.
2) Essa experiência simboliza a precipitação do eu na forma antes da dialética da identificação e da linguagem.
3) A imagem especular no espelho situa a instância do eu em uma linha de ficção irredutível que prefigura sua destinação alienante.
[EU] TAL QUAL NOS REVELADA NA EXPERINCIA PSICANALTICA
(Comunicao no XVI Congresso Internacional de Psicanlise, Zurich, 17 de julho de 1949)
J acques Lacan
A concepo do estdio do espelho que introduzi em nosso ltimo congresso h treze anos, para depois fazer parte do uso no grupo francs, pareceu-me digna de ser lembrada hoje vocs. Especialmente pelos esclarecimentos que traz quanto funo do [eu] na experincia que dele nos d a psicanlise. Experincia da qual preciso dizer que nos ope a toda filosofia derivada diretamente do cogito. Talvez algum de vocs que se recorde do aspecto de comportamento do qual partimos, esclarecido por um fato de psicologia comparada: o filhote do homem, numa idade em que se encontra, por pouco tempo, mas ainda por um tempo, superado em inteligncia instrumental pelo chipanz, j reconhece todavia sua imagem como tal no espelho. Reconhecimento assinalado pela mmica iluminativa di Aha-Erlebnis, onde para Khler se expressa a percepo situacional, tempo essencial do ato de inteligncia. Esse ato, com efeito, longe de esgotar-se como no macaco no controle uma vez adquirido da inanidade da imagem, logo repercute na criana em uma srie de gestos, nos quais ela experimenta ludicamente a relao dos movimentos assumidos da imagem com seu meio ambiente refletido e desse complexo virtual com a realidade que ela reduplica, ou seja, com seu prprio corpo e com as pessoas, e tambm com os objetos que se encontram junto a ela. Esse acontecimento pode produzir-se, como se sabe desde Baldwin, a partir da idade de seis meses. Sua repetio tem freqentemente atrado nossa ateno diante do espetculo impressionante de um lactente em frente ao espelho, que no tem ainda o domnio do andar, nem mesmo da postura ereta, mas que, todo contido que est por alguma sustentao humana ou artificial (o que chamamos na Frana um trotte-bbe), sobrepuja, num af jubilatrio, os entraves desse apoio, para suspender sua postura em uma posio mais ou menos inclinada e reconduzir, para fix-lo, um aspecto instantneo da imagem. Essa atividade conserva para ns at a idade de dezoito meses o sentido que lhe damos e que no menos revelador de um dinamismo libidinal, at ento problemtico, do que de uma estrutura ontolgica do mundo humano que se insere em nossas reflexes sobre o conhecimento paranico. Basta conhecer o estdio do espelho como uma identificao no sentido pleno que a anlise d a este termo: a saber, a transformao produzida no sujeito quando assume uma imagem, cuja predestinao a este efeito de fase est suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do termo antigo de imago. A assuno jubilatria de sua imagem especular pelo ser ainda mergulhado na impotncia motora e da dependncia da lactncia pelo homenzinho neste estdio de infans nos parecer desde ento manifestar, em uma situao exemplar, a matriz
1. Em portugus tem o nome de andador. N.T. 2 simblica onde o [eu] precipita-se em forma primordial antes de se objetivar na dialtica da identificao ao outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua funo de sujeito. Essa forma deveria ser designada como [eu]-idal, se quisssemos faz-la entrar em um registro conhecido, considerando-se que ser tambm o tronco das identificaes secundrias, termo sob o qual reconhecemos as funes de normalizao libidinal. O ponto importante, porm, que esta forma situa a instncia do eu, desde antes de sua determinao social, em uma linha de fico, irredutvel para sempre apenas pelo indivduo ou antes, que somente assintoticamente se juntar ao vir a ser do sujeito, qualquer que seja o xito das snteses dialticas por meio das quais tem de resolver enquanto [eu] sua discordncia com sua prpria realidade. que a forma total do corpo, pela qual o sujeito antecede em uma miragem a maturao de sua potncia, no lhe dada seno como Gestalt, quer dizer, em uma exterioridade onde certamente essa forma mais constituinte do que constituda. Mas, sobretudo, em uma exterioridade onde ela lhe aparece num relevo de estatura que a imobiliza e sob uma simetria que a inverte, em oposio turbulncia de movimentos com os quais ele tenta anim-la. Assim, esta Gestalt, cuja pregnncia deve ser considerada como ligada espcie, mesmo dois aspectos de sua apario, a permanncia mental do [eu], ao mesmo tempo que prefigura sua destinao alienante. Ela cheia de correspondncias que unem o [eu] esttua onde o homem projeta-se como aos fantasmas que o dominam, ao autmato, enfim, que, em uma relao ambgua, tende a aperfeioar o mundo de sua fabricao. Pelas imagos, com efeito, das quais nosso privilgio ver perfilarem-se, na nossa experincia cotidiana e na penumbra da eficcia simblica, os rostos velados, a imagem especular parece ser o umbral do mundo visvel, se confiamos na disposio em espelho da imago do corpo prprio que se apresenta na alucinao e no sonho, que se trate de seus traos individuais, quer mesmo de suas enfermidades ou de suas projees objetais, ou se observarmos o papel do aparelho do espelho nas aparies do duplo onde se manifestam realidades psquicas alis heterogneas. Que uma Gestalt seja capaz de efeitos formativos sobre o organismo, atestado por uma experimentao biolgica, ela prpria to estranha idia de causalidade psquica que no se pode decidir formul-la como tal. Nem por isso, esta experimentao deixa de reconhecer que a maturao da gnada na pomba tem por condio necessria a viso de um congnere, sem importar seu sexo, - e to eficazmente que seu efeito obtido simplesmente colocando-se ao alcance do indivduo o campo de reflexo de um espelho. Do mesmo modo, na linhagem do gafanhoto, a passagem, da forma solitria forma gregria obtida expondo o indivduo, em um determinado estdio, ao exclusivamente visual de uma imagem similar, desde que esteja animada de movimentos de um estilo suficientemente prximos queles que so prprios de sua espcie. Fatos que se inscrevem em uma ordem de identificao homeomrfica que envolveria a questo do sentido da beleza como formativa e como ergena. Os fatos de mimetismo, porm, concebidos como de identificao heteromrfica, tambm nos interessam aqui, na medida em que colocam o problema da significao do espao para o organismo vivo, - os conceitos psicolgicos no parecendo mais imprprios a trazer sobre isso algum esclarecimento que os esforos ridculos tentados
2. Deixamos sua singularidade traduo que adotamos, neste artigo, Ideal Ich de Freud, sem dar maiores motivos, acrescentando que ns o mantemos desde ento. 3. Cf. Claude Lvi-Strauss: Lefficacit Symbolique, Revue de lHistoire des Religions, janeiro-maro 1949. 3
a fim de reduzi-los suposta lei mestra da adaptao. Relembremos apenas os clares que a fez luzir o pensamento (jovem ento e em recente ruptura com as prescries sociolgicas nas quais se havia formado) de um Roger Caillois, quando, sob o termo de psicastenia legendria, subsumia o mimetismo morfolgico a uma obsesso do espao em seu efeito desrealizante. Ns mesmos havamos mostrado, na dialtica social que estrutura como paranico o conhecimento humano, a razo que o torna mais autnomo que o conhecimento animal no que diz respeito ao campo de foras do desejo0, mas que tambm o determina neste pouco de realidade que a denuncia a insatisfao surrealista. E estas reflexes que incitam a reconhecer, na captao espacial que o estdio do espelho manifesta, o efeito no homem, inerente mesmo a essa dialtica, uma insuficincia orgnica de sua realidade natural, se que atribumos algum sentido ao termo natureza. A funo do estdio do espelho revela-se para ns desde ento como um caso particular da funo da imago, que a de estabelecer uma relao do organismo com sua realidade ou, como dizemos, do Innenwelt com o Unwelt. Mas essa relao com a natureza est alterada no homem por uma certa deiscncia do organismo em seu seio, por uma Discrdia primordial que os sinais de mal-estar e a incoordenao motora dos meses neonatais denunciam. A noo objetiva do inacabamento anatmico do sis piramidal como de tais remanescncias humorais do organismo materno confirmam este ponto de vista que formulamos como o dado de uma verdadeira prematurao especfica do nascimento no homem. Observemos, de passagem, que esse dado reconhecido como tal pelos embriologistas, sob o termo de fetalizao, para determinar a prevalncia dos aparelhos ditos superiores o neuroeixo e especialmente deste Cortez que as intervenes psicocirrgicas levarnos-o a conceber com o espelho intraorgnico. Esse desenvolvimento vivido como uma dialtica temporal que decisivamente projeta em histria a formao do indivduo: o estdio do espelho um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficincia antecipao que, para o sujeito, preso na iluso da insuficincia espacial, maquina os fantasmas que se sucedem de uma imagem do corpo fragmentado a uma forma que chamaremos ortopdica de sua totalidade e armadura enfim assumida de uma identidade alienante que vai marcar com a sua estrutura rgida todo seu desenvolvimento mental. Assim, a ruptura do crculo do Innenwelt Unwelt engendra a quadratura inesgotvel das recolagens do eu. Esse corpo fragmentado, termo que tambm fiz introduzir em nosso sistema de referncias tericas, mostra-se regularmente nos sonhos quando a moo da anlise toca em um certo grau de desintegrao agressiva do indivduo. Ele aparece, ento, sob a forma dos membros disjuntos e desses rgos figurados em exoscopia, que adquirem asas e armam-se para as perseguies intestinas, que a pintura, do visionrio Jerome Bosch, marcou para sempre em sua asceno, durante o sculo XV, ao znite imaginrio do homem moderno. Mas essa forma revela-se tangvel mesmo sobre o plano orgnico, nas linhas de fragilizao que definem a anatomia fantasmtica, manifesta nos sintomas de ciso esquizide ou de espasmo da histeria. Correlativamente, a formao do [eu] simboliza-se oniricamente por um campo fortificado, como um estdio mesmo, distribuindo da arena interior s suas muralhas circundantes, ao seu contorno de cascalhos e pntanos, dois campos de luta opostos onde o sujeito embrenha-se na busca do altivo e longnquo castelo interior, cuja forma (s vezes justaposta no mesmo roteiro de cena) simboliza o isso de modo impressionante. Paralelamente, sobre o plano mental, encontramos realizadas essas estruturas de obra fortificada cuja metfora surge espontaneamente, e mesmo como 4 sada nos sintomas do sujeito, para designar os mecanismos de inverso, de isolamento, de reduplicao, de anulao, de deslocamento da neurose obsessiva. Porm, ao fundamentar-se unicamente sobre esses dados subjetivo, por pouco que os emancipemos da condio de experincia sustentada por uma tcnica de linguagem, nossas tentativas tericas ficariam expostas crtica de se projetar no impensvel de um sujeito absoluto. por isso que procuramos, na hiptese aqui fundada sobre uma afluncia de dados objetivos, a linha diretriz de um mtodo de reduo simblica. Ela instaura, nas defesas do eu, uma ordem gentica que responde ao desejo formulado pela Srta. Anna Freud na primeira parte de sua grande obra; e situa (contra um pressuposto freqentemente expressado) o recalcamento histrico e seus retornos, em um estdio mais arcaico que a inverso obsessiva e seus processos isolantes, e estes, por sua vez, como prvios alienao paranica que data da transformao do [eu] especular em [eu] social. Este momento onde acaba o estdio do espelho inaugura, pela identificao imago do semelhante e o drama do cime primordial (to acertadamente ressaltado pela escola de Charlotte Bhler nos fatos de transitivismo infantil), a dialtica que desde ento liga o [eu] a situaes socialmente elaboradas. este momento que decisivamente faz transferir todo o saber humano na mediatizao pelo desejo do outro, constitui seus objetos numa equivalncia abstrata pela rivalidade do outrem e faz do [eu] este aparelho para o qual toda impulso dos instintos ser um perigo, mesmo que ela respondesse a uma maturao natural a prpria normalizao dessa maturao dependendo desde ento, no homem, de uma mediao cultural: como acontece com o objeto sexual no Complexo de dipo. O termo narcisismo primrio, pelo qual a doutrina designa o investimento libidinal prprio a esse momento, revela, no pensamento de seus inventores, luz de nossa concepo, o mais profundo sentimento das latncias da semntica. Ela, esclarece tambm a oposio dinmica desta libido libido sexual que eles procuraram definir, quando evocaram instintos de destruio e mesmo de morte para explicar a relao evidente da libido narcsica com a funo alienante do [eu], com a agressividade que se desprende em toda a relao com o outro, ainda que seja a mais samaritana das relaes. O fato que eles tocaram nesta negatividade existencial, cuja realidade to vivamente promovida pela filosofia contempornea do ser e do nada. Essa filosofia, porm, no a apreende, infelizmente, seno nos limites de uma auto- suficincia da conscincia, a qual, por estar inscrita em suas premissas, encadeia, nos desconhecimentos constitutivos do eu, a iluso de autonomia onde ela se fia. Moo de esprito que, para nutrir-se singularmente de emprstimos experincia analtica, culmina na pretenso de assegurar uma psicanlise existencial. Ao trmino do empreendimento histrico de uma sociedade para no mais se reconhecer com outra funo seno a utilitria, e na angstia do indivduo antes a forma concentracionria do lao social cujo surgimento parece recompensar esse esforo, o existencialismo se julga pelas justificaes que d dos impasses subjetivos que, com efeito, provm disso: uma liberdade que jamais se afirma to autenticamente quanto entre os muros de uma priso, uma exigncia de engajamento onde se expressa a impotncia da pura conscincia em ultrapassar qualquer situao, uma idealizao voyerista-sdica da relao sexual, uma personalidade que somente se realiza no suicdio, uma conscincia do outro que somente se satisfaz pelo assassinato hegeliano. A esses propsitos ope-se toda a nossa experincia, na medida em que ela nos desvia da concepo do eu como centrado sobre o sistema-percepo-conscincia, como organizado pelo princpio da realidade onde se formula o pressuposto cientificista mais oposto dialtica do conhecimento, - para nos indicar no ponto de 5 partida a funo de desconhecimento que o caracteriza em todas as estruturas to fortemente articuladas pela Srta. Anna Freud. Pois se a Verneinung representa a forma patente, latentes em sua maior parte ficaro seus efeitos enquanto no sejam iluminados por alguma luz refletida sobre o plano da fatalidade, onde se manifesta o isso. Assim compreende-se esta inrcia prpria s formaes do [eu] onde podemos ver a definio mais extensiva da neurose: o quanto a captao do sujeito pela situao que d a frmula mais geral da loucura, tanto daquela que jaz entre os muros dos manicmios como daquela que ensurdece a terra com seu barulho e sua fria. Os sofrimentos da neurose e da psicose so, para ns, a escola das paixes da alma, tanto quanto o peso da balana psicanaltica, quando calculamos a inclinao de sua ameaa sobre comunidades inteiras, d-nos o ndice de amortecimento das paixes da cidade. A este ponto de juno da natureza com a cultura, que a antropologia de nossos dias perscruta obstinadamente, somente a psicanlise reconhece o n de servido imaginria que o amor deve sempre tornar a desfazer ou cortar. Para tal obra, o sentimento altrusta sem promessa para ns que colocamos luz a agressividade subentendida na ao do filantropo, do idealista, do pedagogo e mesmo do reformador. No recurso que preservamos do sujeito ao sujeito, a psicanlise pode acompanhar o paciente at o limite esttico do tu s isto, onde lhe revela-se a cifra de seu destino mortal, mas no est unicamente em nosso poder de praticantes conduzi-lo a este momento em que comea a verdadeira viagem.