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SOBRE SENADORES QUE DORMEM A INVENCA\ DO CINEMA. DIRETO Joao Moreira Salles Se o documentarista Robert Drew vier mesmo ao Brasil para o festival E tudo verdade, que este ano [2005] o homenageia com uma retros- pectiva de sua obra, serd o caso de Ihe fazer a pergunta: “E verdade que 0 senhor inventou o cinema direto porque um dia ficou com sede vendo televisdo?”. Ou, talvez, melhor nao. A histéria é boa demais para que se corra o risco de vé-la desmentida pelos fatos. Como ja dizia aquele filme, se a versdo for mais interessante do que o fato, que se publique a versao. A versao, no caso, é a seguinte: no inicio da década de 50, 0 jovem reporter da revista Life Robert Drew assistia na TV a um programa do lendario Edward R. Murrow quando sentiu vontade de tomar um copo d’agua. Foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou a garrafa, depois © copo, verteu, bebeu, pensou um pouco na vida, voltou. Foi quando se deu conta do seguinte: apesar de ter permanecido pelo menos dois minutos longe da TV, a trama ainda lhe parecia perfeitamente clara, como se ele nao tivesse despregado os olhos do aparelho. Nao foi dificil descobrir a razao: na cozinha, continuara a ouvir a voz de Murrow. Drew fez entao a experiéncia contraria: abaixou o volume e ficou olhando as imagens mudas. 0 programa se tornou incompreensivel. Pensou lA consigo: “Ainda nao descobriram a televisdo. Continuam fazendo radio” . Foi uma dessas epifanias que determinam todd uma vida. Dali por diante a missdo de Drew seria descobrir do que a TV era capaz. 0 desafio era ambicioso: de que maneira tornar 0 jornalismo de televisdo propriamente televisivo, ou seja, como contar histérias nao- ficcionais num novo meio em que 0 olho vale mais do que 0 ouvido? Drew levaria quase dez anos para encontrar a resposta. Quando @ encontrou, em 1960, produziu um dos trés ou quatro grandes abalos sismicos da hist6ria do documentario. Drew viveu uma vida aventurosa. Combateu na Segunda Guerra, passou mais de trés meses atrds das linhas inimigas, foi piloto de elite da Forca Aérea americana, onde se tornou um dos primeiros homens na face da Terra a pilotar jatos. Quando estava prestes a partir para o Japao a bordo de um P-80 ouviu a noticia da bomba de Hiroshima. Nao gostou. “Porra, agora a guerra vai acabar.” Queria riscar o céu do inimigo acima da velocidade do som. Nao riscou. Voltou a vida civil como jornalista da revista que fizera a melhor cobertura fotografica da guerra. As fotografias da Life tiveram uma influéncia determinante sobre ele. Drew abria a revista e via imagens de Capa, Cartier-Bresson, Eisenstadt, McAvoy, que Ihe davam a sensagao de acesso direto aos fatos. Era como estar junto da agéo, sem mediagdes. Em 1954, convenceu a rede NBC a lhe emprestar uns trocados para realizar um piloto de documentério. Queria tentar reproduzir através de imagens em movimento a mesma urgéncia das fotografias 35mm. Fracassou sensacionalmente. 0 filmete que dirigiu se parecia com todos os outros programas que ele se acos- tumara a criticar. Uma coisa era sair na rua com uma Leica no bolso; outra era chegar na cena a bordo de um caminhao-baU, desembarcar 130 quilos de equipamento, instalar refletores, fixar a camera no tripé de carvalho Macigo, esperar pelo som, bater a claquete, gritar “Som!” e enfim pedir: “Por favor, a senhora continue a agir como se nao estivéssemos aqui”. Drew se deu conta de que nao poderia haver revolucdo de linguagem sem antes haver uma revolugdo tecnolégica. Chamou dois craques, os cinegrafistas (e depois documentaristas) Richard Leacock e D.A. Pennebaker, e todos arregagaram as mangas. Leacock era 0 estrategista. Para ele, 0 desafio consistia em “me libertar do tripé e filmar em sincro- nismo”. Uma proposta revoluciondria para a época. O sonho era entrar em qualquer situagdo com uma equipe de duas pessoas — um cinegra- fista e um técnico de som — e cada qual poder se deslocar com liberdade e independéncia. A empreitada toda levaria oito anos para se cumprir. Quando o equipamento sonhado por Drew finalmente ficou pronto, o documentario, de joelhos, agradeceu. Pela primeira vez os documen- taristas seriam capazes de acompanhar a agdo ao invés de dité-la. Mas que ag&o? Que historias contar com o novo equipamento? Esse foi o segundo desafio de Drew. Para enfrenté-lo, pediu um ano de licenga (nao remunerada) a Life e foi a Harvard estudar técnicas narrativas. Leu Flaubert e gostou. Descobriu a estrutura do drama realista. Notou 0 rigor com que cada personagem descrevia um arco draméatico prdprio, ao fim do qual jd nao era a mesma pessoa do inicio do livro. Decidiu que o melhor seria filmar nao fatos, mas processos em que os individuos sao obrigados a fazer escolhas cruciais. Percebeu sobretudo que as pessoas se revelam nao apenas por gestos grandiloqlientes, mas também, e talvez principalmente, por detalhes comuns: um aceno de mao, uma troca de olhares, uma camisa amarrotada, uma barba malfeita. Decidiu abrir mao de todos os recursos cléssicos do documentdrio — locugao, trilha sonora, entrevistas — e se virar apenas com aquilo que passivamente a camera fosse capaz de ver e 0 som de ouvir. Leacock diria mais tarde: “Nao entrevistar, nao interferir, néo pedir que uma agao seja repetida — nao porque seja imoral, mas porque nao funciona”. Em 1960, com grande parte do equipamento 4 mo (mas nao todo: camera e som haviam ficado 85% mais leves, mas ainda estavam unidos por um cordao umbilical; a liberdade completa sé seria atingida trés anos depois), Drew propés aos senadores Hubert Humphrey e John Kennedy acompanha-los durante cinco dias pelo interior do estado de Wisconsin, durante a campanha para a indicagao do Partido Democrata as eleic¢des presidenciais daquele ano. Explicou as regras: precisava de acesso — entrar nos carros € nos quartos de hotel, por exemplo; em contrapartida, nao importunaria 0 candidato com perguntas, a equipe ficaria quieta, apenas observaria. Humphrey e Kennedy toparam. Assim surgiu Primary, 0 primeiro filme do cinema direto. Nao é um filme perfeito, longe disso. (Alias, Drew jamais alcangaria a graca de um filme perfeito. Seus subordinados, Pennebaker e 0 cinegra- fista Albert Maysles, sim.) A gramética ainda estava sendo desenvolvida, havia muito a ser afinado. Em alguns trechos Drew chega a empregar velhos recursos como a locugdo, mas mesmo nesses casos tudo soa um pouco diferente. Nao se trata mais de uma voz que comenta e da ligdes, como nos documentarios da época (e de hoje também...), mas que apenas informa 0 contexto ("Nesse condado o voto é majoritariamente catélico”) e em seguida se cala, de modo que as imagens, e nao mais um locutor, encaminhem a histéria. Para os jovens realizadores, as surpresas eram constantes. Hé uma seqiéncia em que Leacock acompanha Humphrey numa viagem de carro chatissima. As tantas 0 tédio é tamanho que Humphrey comeca a cochilar. Leacock filma. “Foi a primeira vez na minha vida, ¢ também a Giltima, em que filmei um senador dormindo.” Todas as noites Drew e sua equipe — um quem-é-quem da histéria do docu- mentario: Leacock, Pennebaker, Albert Maysles — se reuniam no quarto de hotel para mostrar "o que tinhamos roubado durante o dia; éramos como ladrées de jéias”. Nos ultimos anos esse tipo de cinema foi inteiramente desacredi- tado pela critica. Boa parte da bibliografia técnica mais recente € composta de livros escritos contra o cinema direto. As razées nao so ruins. Existe uma inegavel ingenuidade da parte de alguns pioneiros do movimento (mas nao de todos) em relagao a idéias como objetividade e nao-interferéncia. Certas afirmagdes deles evocam perigosamente a velha ilusdo realista de que o mundo equivale a sua representagao. Como se nao bastasse, muitos criticos apontam a fragilidade de um cinema que pressupée a possibilidade de uma camera ser ignorada por quem esta sendo filmado. Os de espirito mais fino até admitem que essa invisibilidade possa eventualmente se produzir (como de fato se produz), e dirigem seu desprezo para 0 fato de o diretor deseja-/a, contentando-se apenas com o papel de observador subserviente dos fatos. "Filmar a superficie das coisas revela a superficie das coisas”, alguém escreveu. Pode ser. Mas 0 que a grande maioria esquece é que até a chegada da turma de Drew (e, honra seja feita, de Jean Rouch na Franga) o docu- mentério estava em coma profundo. Respirava artificialmente, por meio do uso indiscriminado de recursos extra-imagem: locugao, cartelas, trilha. A péssima idéia de que o filme nao-ficcional seria antes de tudo um instrumento para ilustragao das hordas desinformadas fez 0 género ago- nizar em salas vazias. Era de esperar, pois ninguém gosta de aula nao solicitada. 0 mais grave ainda estava por vir. O pendor missionério provo- cou nos documentaristas um serifssimo efeito colateral: preguiga. Como tudo podia ser despachado com uma locugao em off; como tudo podia, e devia, ser explicado; como nenhuma imagem tinha o direito de ser ambigua, que dird o filme todo; entao: a troco de que olhar para o mundo? E aqui, precisamente, que entra Drew. Ele jé mereceria um lugar na hist6ria do cinema pela revolugao tecnolégica que produziu. Pela primeira vez uma camera era capaz de ir a rua para investigar 0 mundo em fluxo, com som e imagem em sincronia. Nao é pouca coisa. Mas nao 6 tudo e nem 6 0 mais importante. Com Drew, os documentaristas voltaram a ver. Quando nao se tem mais & mao os recursos narrativos classicos do docu- Mentario, a sada é observar as coisas atentamente na esperanga de flagré-las no momento em que acontecem. 0 cinema direto é feito dessas pequenas epifanias, se me permitem usar a palavra pela segunda vez. Ha uma seqiiéncia extraordinaria em Primary que ilustra bem isso. Kennedy e Jacqueline sobem no palco de um salao apinhado de gente. E a comunidade polonesa de uma cidade pequena, € 0 protocolo pede a Jacqueline que faga uma breve saudagao em polonés. Para Kennedy, um politico experimentado, decorar um punhado de palavras estrangei- ras nao seria dificil. Para Jacqueline, sim. Ela é jovem, nao tem sequer trinta anos. Esta nervosa. Um documentario tradicional que precisasse transmitir essa informagao ao espectador simplesmente mostraria 0 rosto dela e diria: “Jacqueline esta nervosa”. Mas o cinema direto no pode fazer isso. As regras proibem. 0 jeito é prestar atengao, esperar, intuir. Albert Maysles se desloca para tras‘do palco e percebe as maos que Jacqueline entrelaga nas costas, escondendo-as do publico. Fecha a lente nos dedos aflitos, que se dao nds uns nos outros. Pronto: Jacqueline esté nervosa. O grande legado do cinema direto sao essas observages mitidas. Um senador que dorme, um candidato que se deixa arrumar para uma sessao de fotografias, um grande compositor que ensaia umas notas no seu quarto de hotel, um caixeiro-viajante que contempla o fracasso num café de beira de estrada. Parece pouco, mas é muito. E uma prova de que certos momentos sé so pequenos na aparéncia. Talvez por isso nao seja mesmo uma boa idéia fazer a tal pergunta sobre 0 copo d'agua. Seria uma pena se a revolugao do cinema direto ndo tivesse nascido de uma coisa tao sem importancia, de um homem que se levantou e foi até a geladeira.

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