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SEMINARIO 1.P.CH. BIBLIOTECA Capitulo 6 Os Autores do Novo Testamento Introducéo Para os cristos, o capitulo mais importante da histéria da interpretagao das Escrituras é sem duvida o que trata da interpretacao do Antigo Testamento pelos autores do Novo. Ao longo dos séculos, os estudiosos do Antigo e do Novo Testamento tém-se dedicado a esse assunto. O mesmo nao tem apenas interesse académico. Ele tem importancia crucial para pelo menos duas dre- as. Primeira, para nossa propria hermenéutica. Queremos uma hermenéutica biblica. Mas até que ponto a hermenéutica dos autores do Novo Testamento pode nos servir de modelo? Segunda, para a questo da inerrancia das Es- crituras. Na maioria das vezes, os autores do Novo Testamento usam Ppassagens do Antigo Testamento com o sentido original fornecido pelo con- texto gramatico-histérico. Porém, as vezes, eles aparentam usar um texto sem respeito ao seu contexto vetero-testamentario. Além disso, ocasional- mente mudam, substituem, omitem e adicionam palavras nas suas citagdes. Nosso objetivo neste capitulo é mostrar como os autores do Novo Testamento interpretaram o Antigo, a luz do seu ambiente cultural e teolé- gico, e dos demais modelos interpretativos em vigor em sua época, dos ‘quais ja mostramos alguns exemplos. A maior limitagao deste capitulo é que nao teremos como nos apro- fundar em varias das questées pertinentes ao assunto. Nosso interesse sera ente mostrar como a interpretagdo dos autores do Novo Testamento se xa no milieu hermenéutico da época, explorando as semelhangas, as 108 A BiBLIA E SEUS INTERPRETES diferencas e, especialmente, entendendo quais os principios que a controla- vam. Nesse processo, varias questées serao levantadas ¢ deixadas sem resposta detalhada e profunda. Uma outra limitagao é imposta pela quanti- dade de autores do Novo Testamento. Se fossemos dar atengao individual a Mateus, Marcos, Lucas, Joao, Paulo, Tiago, Joao, Pedro, Judas e do autor de Hebreus, fariamos este capitulo desproporcionalmente longo. Procurare- mos citar todos eles 4 medida que formos ilustrando os principios dominantes da hermenéutica que lhes era comum, Porém, maior destaque sera dado aos escritos de Paulo, pela razao simples de que ele foi quem mais escreveu. Temos alguns pressupostos que desejamos deixar claros antes de pros- seguir. Partimos da convic¢ao da harmonia e unidade do Novo Testamento, da inspiracao e infalibilidade de seus escritos, e da sua autoria apostélica ainda durante o 12 século da era cristé. Também reconhecemos que nao temos resposta para algumas das intrigantes questées que aparecerao no curso de nossa pesquisa. Entretanto, rejeitamos a priori qualquer resposta que requeira engano ou erro por parte dos autores do Novo Testamento. Preferimos aguardar por respostas que expliquem as dificuldades sem ferir © principio da autoridade e infalibilidade das Escrituras. A incredulidade impaciente de muitos estudiosos criticos acaba por leva-los a rejeitar a au- toridade do Novo Testamento, propondo explicag6es que tornam seus autores em redatores desajeitados ou tedlogos incoerentes e manipuladores irres- ponsaveis das Escrituras do Antigo Testamento. A Biblia dos Autores do Novo Testamento A Biblia dos autores do Novo Testamento eram as Escrituras judaicas, que posteriormente vieram a se chamar Antigo Testamento. A Biblia era central na vida deles, como também na dos rabinos, essénios, e demais grupos ¢ individuos que ja estudamos. Era a autoridade maxima em termos de reli- giao e conduta. O apdstolo Paulo a considerava como a Palavra de Deus, inspirada e autoritativa (2Tm 3.16). A maioria das suas citagdes vem do Pentateuco, Salmos e Isaias, como ocorre nos demais autores neo-testa- mentarios ¢ entre os rabinos e nos escritos de Qumran. Uma importante questo é qual versio das Escrituras os intérpretes neotestamentarios usaram em seus escritos. Tomemos 0 caso de Paulo como exemplo. Muito embora em muitos casos ele tenha citado as Escrituras de meméria, permanece a pergunta: qual versao ele tinha memorizado? Sim, pois Paulo tinha diante de si varias opgdes: a versio grega (Sepiuaginia), a Biblia hebraica e versSes em aramaico. Um estudo cuidadoso demonstra que Paulo usou a Septuaginta, como Filo e, possivelmente, Josefo, que tam- bém utilizou-se do texto hebraico, como os rabinos e Qumran, e que ainda provavelmente usou targums (aramaico). Predominam as citagdes da Biblia hebraica e da Septuaginta, nessa ordem. Pode-se distinguir quando Paulo cita uma ou outra porque nem sempre a Septuaginta seguiu 0 texto hebraico Cariruto 6 - Os Autores po Novo TesTAMENTO 109 de forma consistente. O caso de Paulo é uma boa amostragem do que ocorre com os demais autores do Novo Testamento. O Antigo Testamento no Novo Qs autores do Novo Testamento em geral, e Paulo em particular, construi- ram seus escritos sobre a revelagao escrita prévia, as Escrituras do Antigo Testamento, seguindo a mesma tradigao hermenéutica que levou os autores posteriores do Antigo Testamento a construir sobre textos anteriores, con- forme vimos no capitulo primeiro da nossa obra. O Novo Testamento esta impregnado do Antigo e indissoluvelmente ligado a ele. O uso que os autores neotestamentarios fazem das Escrituras em seus escritos ¢ bem variado. Além de prover 0 arcabougo teolégico, o Antigo Testamento é constantemente citado pelos autores do Novo. Ha duas formas de citagdes: 1) Citagées formais — Essas citagdes geralmente tém uma formula introdutéria, como “esta escrito” ou coisa semelhante, e sao seguidas pela reproduco da passagem do Antigo Testamento 4 qual os autores se refe- rem. Existem aproximadamente 104 citagdes formais do Antigo Testamento nas cartas de Paulo. De acordo com o indice de citagdes da quarta edigao do texto grego da United Bible Society, temos 60 em Romanos, 17 em | Corin- tios, 10 em 2 Corintios, 10 em Galatas, cinco em Efésios, uma em 1 Timéteo e mais uma em 2 Timéteo. 2) Alusées intencionais — Sao aquelas ocasides onde os autores neo- testamentdrios nao se referem explicitamente as Escrituras, mas onde claramente est’io dependendo de uma ou mais passagens do Antigo Testa- mento. Podemos considerar como alusdes as citagdes livres, reminiscéncias, referéncias a eventos, paralelos de linguagem, ecos, etc. A caracteristica comum é que as alusées nao sao precedidas por uma formula introdutéria. Alguns exemplos das cartas de Paulo: (1) A exposigao de Paulo dos efeitos da queda em Romanos 5.12-14 reflete Génesis 2.16ss; 3.1ss; ete; (2) As exortagdes em | Corintios 10.1-15 se baseiam em varias passagens sobre a desobediéncia dos israelitas no deserto (Nm 11.1ss; Ex 32.1ss; Nm 25.1ss; 21.1ss; 14.1ss); (3) A alegoria de Sara e Agar em Galatas 4.21-31 é baseada em Génesis 16.1ss. Dificuldades com as Citagées O que nos interessa no momento so as citagdes formais que os autores neotestamentarios fazem, porque é aqui que a forma como interpretam as Escrituras transparece de forma mais clara, No geral, eles reproduzem essas passagens respeitando o sentido das mesmas conforme seu contexto hist6- rico, mantendo o sentido que tinham para os leitores originais. Porém, muitos criticos apontam para ocasides em que eles parecem estar manipulando e 110 A Bipuia & seus INTERPRETES torcendo as Escrituras para provar seus argumentos. Vejamos algumas des- sas criticas feitas ao apdstolo Paulo. Localizacao ignorada Algumas vezes Paulo parece estar citando a Escritura, mas nao con- seguimos localizar a passagem do Antigo Testamento a que ele se refere. Por exemplo, em Efésios 5.14 ele faz uma citagdo introduzida pela palavra “diz”, que as vezes introduz uma citagao formal do antigo Testamento (cf. Rm 10.6 ¢ 8). S6é que nao conseguimos encontrar no Antigo Testamento nenhuma passagem similar & que Paulo reproduz em sua carta. Alguns criti- cos dizem que 0 apéstolo simplesmente inventou uma passagem do Antigo Testamento para dar fora ao seu argumento. Porém, ha cutras possibilida- des além de acusar Paulo de charlatanice. Ele pode estar citando uma parte de um hino crist&o, ou de uma formula usada no batismo, Ou melhor, ele pode simplesmente estar citando de memoria uma combinagao de passa- gens do Antigo Testamento. No caso, uma combinagao de Isaias 26.19 e 60.1, duas passagens em que o profeta conclama o povo de Deus a desper- tar-se diante da luz gloriosa da salvagao: Efésios 5.14- Pelo que diz: Desperta, 6 tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, ¢ Cristo te iluminard. Isaias 26.19 - Os vossos mortos ¢ também 0 meu cadaver viverio e ressuscitarao; despertai € exultai, os que habitais no p6, porque o teu orvalho, 6 Deus, sera como o orvalho de vida, ¢ a terra dard 4 luz os seus mortos. Isaias 60.1 - Dispde-te, resplandece, porque vem a tua luz, e a gléria do Senhor nasce sobre ti. Um outro exemplo € 1 Corintios 2.9. Aqui, claramente Paulo diz es- tar citando as Escrituras, usando sua férmula introdutéria preferida “esta escrito”, Porém, nao conseguimos encontrar no Anti: igo Testamento a passa- gem a que ele se refere, Nao é necessario acusar Paulo de desonestidade. Mais uma vez, parece que o apéstolo est citando de memoria duas passa- gens do Antigo Testamento, combinando 0 sentido de ambas numa tnica citagao livre: 1 Corintios 2.9 - ... mas, como esta escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais Penetrou em coragao humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam, Isaias 52.15 - .. assim causaré admiragao s nagbes, e os reis fechariio a sua boca por causa dele; porque aquilo que nao thes foi anunciado verdo, ¢ aquilo que nao ouviram entenderao. Isafas 64.4 - Porque desde a antigitidade nao se ouviu, nem com ouvidos se percebeu, nem com os olhos se viu Deus além de ti, que trabalha para aquele que nele espera. Outros exemplos poderiam ser citados, mas sto realmente poucos (cf. 2Tm 2.19b). A melhor explicagdo para esses casos em que 0 apéstolo Capituto 6 - Os Autores po Novo TESTAMENTO nay diz citar as Escrituras é que o faz de memoria, fundindo textos € dando o sentido geral deles, sem fazer uma citagao ipsis literis ou formal. Esse fen6- meno nao esté restrito somente a Paulo, mas pode ser percebido em outros autores do Novo Testamento. Mateus, por exemplo, apela para os profetas para justificar que Jesus seria chamado de “nazareno” (Mt 2.23), mas nao sabemos de onde ele tirou essa citag’o, que é provavelmente uma interpreta- cao de varias profecias indicando que o Messias habitaria em ‘Nazaré. E importante que levemos em conta que os padrées modernos a que estamos acostumados (aspas, notas de rodapé, indicagao da fonte, etc.) exi- gem uma precisaio muito maior na reprodugao de textos em outros textos, do que os padrdes da época apostélica. Além disso, em muitos casos, é possivel que Paulo esteja citando de memoria, sem a preocupa¢ao de repro- duzir 0 texto biblico de forma exata. E bem verdade que, em um bom nimero de casos, as citacgdes de Paulo seguem literalmente 0 texto do Antigo Testa- mento (cf. GI 4.27; Rm 3.13; 4.17,18; etc.), 0 que sugere 0 uso de uma copia da Biblia. Porém, isso nao precisa ser verdade em todos os casos. Mudancas intencionais do texto Um pouco mais complicados sao aqueles casos em que Paulo cita o igo Testamento com mudangas aparentemente intencionais do texto ori- . Algumas sio de menor importancia, consistindo apenas na troca de ou outra palavra para adaptar a passagem ao seu novo contexto, sem cio alguma do sentido original. Por exemplo, vejaa citagao que Paulo de Génesis 15.6 em Romanos 4.3: os 4.3 - Pois que diz a Escritura? Abraio creu em Deus, ¢ isso the foi imputado para Génesis 15.6 - Ele creu no Senhor, ¢ isso the foi imputado para justiga. Na grande maioria dos casos, as alteragdes so como acima. Elas nio o sentido original da passagem do Antigo Testamento, e podem ser das a citagdes de memoria (Paulo trocou “Senhor” por “Deus”) ou fio ao contexto do material que Paulo esta escrevendo (trocou “ele” “Abraiio”). Porém, em outros casos, as alteragdes parecem mudar inten- mente 0 sentido da passagem do Antigo Testamento. Os criticos de ‘© acusam de torcer as Escrituras para servir aos seus propésitos. Veja aracdio abaixo de duas citagdes de Paulo em 1Corintios. ios 2.16 - Pois quem conheceu a mente do Senhor, que 0 possa instruir? 40.13 - Quem guiou o Espirito do Senhor? Ou, como seu conselheiro, o ensinou? fos 3.20 - E outra vez: O Senhor conhece os pensamentos dos sdbios, que sto pensa- vaos. 94.1 O Senhor conhece os pensamentos do honem, que so pensamentos vaos. 112 A Bipuia £ seus INTERPRETES No primeiro caso, Paulo citou Isaias trocando “Espirito” por “men- te”. A troca poderia parecer normal, pois no pensamento de Paulo o Espirito é quem entende e transmite a mente do Senhor, conforme 1 Corintios 2.10.11. Por outro lado, a troca torna o argumento de Paulo em 1 Corintios mais pertinente, pois ele esta tratando da mentalidade humana decaida em con- traste com a mentalidade do homem regenerado. A troca, pois, parece intencional. No segundo caso, Paulo trocou “homem” por “sdbios” e mais uma vez a troca parece intencional, com 0 objetivo de fortalecer seu argumento. Paulo esta fazendo uma critica 4 sabedoria humana e aos sabios deste mun- do que nao conhecem a Deus. Portanto, ao citar a passagem de Isaias, introduz a palavra “sabios”, como se os mesmos fossem 0 tipo de homens onde esse desconhecimento de Deus se mostra de forma mais aguda. Esse procedimento nao é exclusivo do apéstolo Paulo. Outros auto- res neotestamentarios o utilizam igualmente. Pedro, por exemplo, ao citar Joel 2.28 no dia de Pentecostes, troca “depois” por “nos ultimos dias” (cf. At 2.17). Em todos esses casos de troca intencional percebe-se que os auto- res neotestamentarios estao dando uma versao interpretada da passagem do Antigo Testamento. Nos casos mencionados acima, nao ha realmente vio- léncia ao sentido do texto original. Pedro simplesmente interpreta Joel dizendo que o “depois” do profeta se referia 4 chegada dos ultimos dias, com o derramamento do Espirito em Pentecostes. E preciso lembrar que Paulo nunca se propde a dar uma citagao ver batim do texto hebraico em suas cartas. Esse principio é de extrema importancia. Se Paulo tivesse a intengao de dar uma citagao verbatim, e entao trocasse as palavras, estaria cometendo um erro. Mas, se ele esta se propondo apenas a reproduzir 0 sentido de um texto do Antigo Testamento, a situagdo é diferente. Com raras excegées, o argumento de Paulo nunca se baseia na fraseologia, gramatica, sintaxe ou tempos verbais do hebraico, e sim no sentido do texto sendo citado. Assim, Paulo as vezes usa a formula “esta escrito” mas reproduz 0 texto biblico apenas de forma geral (cf. Rm 2.24). Uso da Septuaginta Na maioria dos casos em que cita o Antigo Testamento, Paulo repro- duz a passagem biblica em coeréncia com o texto hebraico e a Sepfuaginta, como, por exemplo, em Romanos 2.6; 2.16; 3.4; 1 Corintios 3.20; etc. Nou- tras ocasides, ele segue o texto hebraico e nao a Septuaginta, quando a mesma diverge do hebraico. Ver, por exemplo, Romanos 1.17; 11.4; Gala- tas 3.11. Em algumas ocasides, porém, Paulo segue a Septuaginta mesmo quan- do ela difere do texto hebraico, ou o traduz inadequadamente. O fato é CapituLo 6 - Os Autores Do Novo TestAMENTO 113 estranho, acusam seus criticos, pois o apéstolo certamente conheciao texto hebraico e também a Septuaginta e poderia saber quando a tradugao nao estava adequada. Ha varios exemplos, como Romanos 2.24; 3.14; etc. Veja a comparacao abaixo no caso de ICorintios 6.16, em que. Paulo segue a Septuaginta, que introduziu a expressao “os dois” na passagem de Génesis 2.24. 1 Corintios 6.16b - Porque, como se diz, serao os dois uma sé carne. Génesis 2.24 (tradugdo literal do hebraico) - Por isso, deixa 0 homem pai ¢ mae € sé une & sua mulher, ¢ serao uma sé carne. Génesis 2.24 (LXX) - Portanto, deixara o homem seu pai e sua mae ¢ se unira a sua mulher e serao os dois uma sé carne. No caso acima o problema nao parece tao grave, pois a adigao da Septuaginta é 6bvia e nio muda em nada o sentido do texto. Mas, o fato indica que Paulo por vezes preferia seguir a tradugo grega do Antigo Tes- tamento, mesmo tendo 0 original hebraico ao seu alcance. Esse fato pode apresentar um problema teolégico, ou seja, um apéstolo infalivel usando uma interpretacao falivel. Devemos nos lembrar de algumas coisas, ao es- tudarmos esse assunto. Primeiro, podemos admitir que as passagens da Septuaginta citadas por Paulo (bem como no restante do Novo Testamento) passaram a ter sta- tus de Escritura, e portanto, inspiradas, sem que tenhamos de admitir, como Filo, que toda a Septuaginta é inspirada. Nesse caso, 0 principio € valido para citagdes extra-canénicas, como a citagao do apécrifo Ascensdo de Moi: feita em Judas 9, Da mesma forma, as citagdes que Paulo faz de autores pagaos, como Aratus e Cleantes (At 17.28), Epimenides (Tt 1.12) Menan- der (1Co 15.33), nao tornam os escritos deles inspirados. O uso que Paulo faz de tradigdes rabinicas em aramaico, que mais tarde receberam forma escrita nos targums, também nao precisam nos preocupar, Aplica-se 0 mes- mo principio. Através da cultura hermenéutica do Judaismo rabinico, Deus preservou aspectos da verdade, as quais foram posteriormente, através do apéstolo inspirado, incorporadas na revelagao escrita. Segundo, na grande parte das vezes em que a Septuaginta é citada, mesmo traduzindo inadequadamente o texto hebraico, pode-se argumentar que nao existe violéncia ao sentido do texto original. Por exemplo, a citagao em 1Corintios 6.16 da Septuaginta em Génesis 2.24, a qual acrescenta “os dois” ao texto hebraico, apenas reflete o fato que Paulo esta preocupado, nao em reproduzir 0 hebraico verbatim, mas em reproduzir e aplicar seu sentido. Calvino, comentando Hebreus 11.21, onde o autor segue a Sepiua- ginta “bordao” e nao o texto hebraico “cama”, afirma que o escritor de Hebreus se acomodou as versdes em grego disponiveis aos seus leitores, que eram judeus da Dispersao, quando isso nao alterava de forma significa- tiva o contetido do seu ensino. 14 A Bisuia E SEUS INTERPRETES Terceiro, nao devemos exagerar a dimensao do problema. Boa parte do ataque que é feito 4 Septuaginta visa desacreditar a exegese apostélica, e por inferéncia, a exegese gramatico-histérica. Para alguns estudiosos con- servadores, pode-se achar, em cada caso onde a Septuaginta € citada diferentemente do hebraico, uma razao convincente, que se harmoniza com nossa crenga na inspiracao e inerrancia da Biblia. Tradugao independente Por vezes Paulo cita uma passagem do Antigo Testamento de forma diferente tanto do texto hebraico quanto da Septuaginta. Mais uma vez a acusacao de torcer as Escrituras vem a tona. Porém, nesses casos, nao é impossivel que ele esteja fazendo sua prépria traducao diretamente do he- braico ou simplesmente fazendo uma citagao interpretada da passagem. Por exemplo, as citagdes em seqiiéncia que ele faz em Romanos 3.10-12 de varios salmos (SI 14.1-3; 53.1-3) divergem do hebraico e da Septuaginta apenas na seqiiéncia das palavras e nos vocdbulos, mas o sentido é absolu- tamente © mesmo, A mesma coisa em 1Corintios 1.19, onde ele cita Isaias 29.14 (ver ainda Gl 3.10). Um exemplo classico € a citacdo que o apéstolo faz em Efésios 4.8 do Salmo 68.19: Efésios 4.8 - Por isso, diz: Quando ele subiu as alturas, levou cativo 0 cativeiro e concedeu dons aos homens. Salmo 67.19 (LXX) - Subiste as alturas, levaste cativo 0 cativeiro, recebéstes dons para os homens, sim, pois foram rebeldes, para que possas habitar entre eles. Salmo 68.19 (hebraico) - Subiste as alturas, levaste cativo 0 cativeiro; recebeste ho- mens por dadivas, até mesmo rebeldes, para que 0 Senhor Deus habite no meio deles. No exemplo acima vemos dois fendmenos: (1) A Septuaginta trocou 0 objeto direto do verbo “receber” de “homens” para “dadivas”. (2) Paulo seguiu a Septuaginta nisto, e também traduziu o verbo hebraico lacah, que significa “receber” como se fosse “conceder”, mudando assim aparente- mente o sentido original do Salmo. Existem varias explicagdes para esse fenémeno. Os criticos acham que Paulo simplesmente torceu 0 texto he- braico para poder acomodé-lo ao seu propdsito, que era de mostrar que Cristo, ao subir as alturas e ser glorificado, concedeu dons espirituais 4 sua Igreja. Mas 0 texto hebraico e sua versio grega da Septuagintaeram conhe- cidos dos leitores de Paulo e especialmente de seus inimigos, os judaizantes, que facilmente poderiam acusd-lo de desonestidade. O apdstolo deve ter se sentido seguro em fazer essa alteragao. A melhor possibilidade é que Paulo esta se referindo, sob a forma de citag&o, a um sentido implicito no tema geral do Salmo. O mesmo trata da vitoria de Deus sobre seus inimigos, a qual é descrita em termos do triunfo militar de um general vitorioso, que apés capturar os inimigos, entra em sua cidade, trazendo-os como seus escravos em cortejo triunfante, recebendo- Carituto 6 - Os Autores po Novo TEesTAMENTO 115 ‘0s como despojo ou dadivas da guerra. Na mesma ocasiao, ele distribui os despojos da vit6ria entre seu povo, como dadivas ¢ dons graciosos. Paulo percebeu no Salmo que o mesmo tratava, nado somente do fato de que Deus, ao vencer em Cristo 0 cativeiro da morte, levou-a cativa e ganhou homens para si, mas deu a estes homens dons ¢ dadivas para o servigo na Igreja, seguindo o costume militar. Que Paulo estava bastante familiarizado com este costume e que 0 usou para descrever a vitéria de Cristo, percebe-se por Colossenses 2.15, “... ¢, despojando os principados e as potestades, publi- camente os expés ao desprezo, triunfando deles na cruz”. Entendemos que a explicagao acima resolve o problema satisfatoriamente. Texto em outro contexto Os criticos da hermenéutica de Paulo apontam o fato que existem ainda casos em que, mesmo nao havendo alteragdes significativas nas cita- gGes, 0 texto referido é empregado pelo apéstolo num contexto e com um sentido aparentemente diferentes do original. Vejamos alguns exemplos: (1) Paulo aplica aos gentios em Romanos 9.25-29 passagens do Antigo Tes- tamento que originalmente falam de Israel (cf. Os 2.23; 1.10; Is 10.22-23; 1.9). Entretanto, o problema se resolve quando esta aplicagao é examinada a luz da teologia paulina de que os gentios cristos sao o Israel de Deus, o verdadeiro Israel, o remanescente fiel profetizado. (2) Em Romanos 10.5-8 Paulo usa Deuteronémio 30.12-14 para provar a justificagao pela fé, en- quanto que a passagem originalmente parece defender que nao é dificil guardar as obras da Lei. Mais uma vez 0 uso do apéstolo pode ser justifica- do luz da sua doutrina de que o sistema de salvagao pela fé estava embutido dentro da Lei, e que o remanescente fiel foi justificado pela fé no Antigo Testamento, exatamente como os cristaos de seus dias. Em todos estes casos acima, e noutros, nao é dificil provar que Paulo estd fazendo um uso legitimo das passagens em suas cartas, desde que exa- minemos cada caso cuidadosamente a luz da teologia do apdstolo ¢ dentro do contexto maior no Antigo Testamento do qual as passagens foram tira- das. Entretanto, é quando examinamos as caracteristicas da hermenéutica de Paulo que passamos a compreender melhor seu uso do Antigo Testamen- to, bem como dos demais autores do Novo Testamento. Principios Controladores da Hermenéutica Neotes- tamentaria Qs escritores do Novo Testamento compartilham algumas caracteristicas gerais do uso das Escrituras com os rabinos e essénios de sua época. Ac citar as Escrituras, eles geralmente fazem um comentario ligeiro (midrash?), visando aplicar o texto a situagéio presente. Raramente estéo envolvidos em 116 A Bipia & seus INTERPRETES exegese do texto, 4 semelhanga dos essénios e rabinos. Eles visam mais aplicagao do texto. Ainda assim, sua aplicagao e sua énfase sao bem disti tas do que os outros grupos estao fazendo, como veremos mais adiante. Os _ autores do Novo Testamento também utilizam formulas introdutérias, tais como “esta escrito”, “a Escritura diz”, etc., que saio comuns no material rabinico e de Qumran. A contribuigao distinta dos cristdos para a hermenéutica biblica € sua re-interpretagao radical das Escrituras do Antigo Testamento a luz dos eventos historicos-redentivos relacionados com a encarnagao, vida, morte € ressurrei¢ao de Cristo, e o surgimento da Igreja Crista. Neste sentido, a exegese deles representa um rompimento com o rabinismo judaico, coma comunidade do Mar Morto e com os demais individuos que estavam in- terpretando as Escrituras em seus dias fora do ambito da Igreja Crista. Vejamos agora 0 que tornou o resultado da interpretag’io do Antigo Testa mento pelos autores neotestamentarios tio diferente daquele produzido pelos demais grupos da época. Cristo 6 a Chave das Escrituras Os escritores do Novo Testamento estdo convencidos de que Cristo é a cha- ve que abre o sentido do Antigo Testamento. Paulo, por exemplo chegou a essa conclusao, nao através de exegese, mas através de revelagao, cf. Atos 9.1-9; Galatas 1.14-16. Uma vez que creu e entendeu que Jesus a quem perseguia era 0 Messias prometido de Israel, passa a ler sua Biblia, nao mais como um rabino, mas como um judeu que encontrou o cumprimento da promessa de Israel. O texto classico onde o apéstolo explica esta conver- sao hermenéutica é 2 Corintios 3.13-17, onde ele defende que a conversioa Cristo destranca a porta para o sentido das Escrituras. Para Paulo, até hoje, quando os judeus Iéem os livros da antiga alianga, a mente deles esta cober- ta com o mesmo véu que havia sobre a face de Moisés, ao descer do monte coma Lei nas maos, pois nao enxergam Cristo neles (2Co 3.14 e 15). Este véu havia sido colocado por Moisés para que os israelitas nao pudessem ver que o seu brilho, o brilho da antiga alianga, estava desaparecendo (3.13). O véu representa o carater inferior da antiga alianga, onde a presenga de Cristo era indicada de forma velada nas Escrituras, e pressagiava a chegada da nova alianga. Jesus é aquele de quem elas falam, mas sob a forma de simbo- los, figuras, tipos, instituigdes, profecias. A vinda de Jesus Cristo cumpre esses simbolos (3.14b). Assim, quando um judeu se converte a Jesus como Senhor, 0 véu é retirado pelo Espirito, e agora o judeu convertido goza de liberdade para finalmente ler as Escrituras sem véu e ver Jesus nelas (3.17). Em resumo, para Paulo e demais autores do Novo Testamento, a Lei de Moisés (Rm 10.4-9), os Profetas (Rm 1.2; 16.25-26), e os Escritos (Rm 4.7-8), falavam de Cristo e da salvagio através dele (cf. 1Co 15.1-4). 0 Antigo Testamento, com suas profecias ¢ historia, encontrava cumprimento Carituo 6 - Os Autores po Novo TEsTAMENTO 117 pleno e final em Cristo e na nova era inaugurada por ele. Assim, com fre- qiiéncia, Paulo comprova este fato em suas cartas aludindo ou citando o Antigo Testamento: - Cristo como filho de Abraao (G1 3.16); - A obediéncia e os sofrimentos de Cristo (Rm 15.3; Gl 3.13); « Aressurreigao, senhorio e dominio de Cristo (1Co 15.25, 27; 15.45; Ef 4.8). O carater cristocéntrico da hermenéutica dos autores do Novo Testa- mento torna-a radicalmente diferente da hermenéutica dos rabinos ¢ dos essénios, para quem, nas palavras de Paulo, os escritos da antiga alianga eram um livro velado. Os Ultimos Dias ja Raiaram Os primeiros intérpretes crist&os esto convencidos de que seus dias sao dias de cumprimento, de realizagdo das promessas do Antigo Testamento, ¢ que, em Cristo, a época futura predita pelos profetas havia raiado. Assim, para eles, as Escrituras se aplicam a sua propria geragao (cf. 1Co 10.11)e0 surgimento da Igreja cristé € 0 cumprimento divino do Antigo Testamento (cf. 1Co 2.9; Rm 16.25-27). Desta forma, Paulo é capaz de defender os principais eventos e ensinos desta nova época citando as Escrituras. Como amostra, mencionaremos 0 tratamento que Paulo da a dois eventos de sua época, para os quais ele encontra justificagao nos escritos inspirados do Antigo Testamento: 1) Israel rejeitou o Messias — Um dos principais eventos relacionados com o raiar da era messianica é 0 fato de que Israel nao reconheceu Jesus como o Messias. Porém, para Paulo, essa rejeigao nao devia surpreender ninguém, pois jd estava escrito que seria assim. Ele trata do assunto em sua carta aos Romanos e seu ponto é que tal rejei¢do pode ser encontrada nas paginas dos préprios escritos dos judeus. De acordo com Paulo, Génesis 21.12e 18.10 mostram que os verdadeiros descendentes de A braao sao aque- les que se apegam as promessas (Rm 9.6-10). A causa maior da rejeigao, entretanto, é a soberania de Deus, que havia escolhido Jacé e aborrecido Esai, conforme Génesis 25.23 interpretado em Malaquias 1.2,3 (Rm 9.10- 13). E ao rejeitar os judeus, Deus estava exercendo de forma justa a sua soberania, da mesma forma como rejeitou Faraé de acordo com Exodo 33.19 © 9.16 (Rm 9.14-18). A queda de Israel foi o tropego na rocha profetizado em Isaias 28.16 (Rm 9.33). Moisés (Dt 32.21) ¢ Isaias (Is 65.1 ,2) ja haviam dito que Deus provocaria 0 citime de Israel com outro povo (Rm 10.19-21). Mas, isso nao significa que Deus abandonou definitivamente 0 povo da antiga alianga. Resta ainda uma futura salvagao para Israel, conforme Isaias 59.20-21 e Jeremias 31.33-34 (Rm 11.26,27). 118 A BiBLiA E SEUS INTERPRETES 2) Os gentios sao parte do povo de Deus - Outro evento momentoso da chegada da nova época ¢ a entrada na Igreja de pessoas nao judaicas. Para Paulo, a futura inclusao dos gentios na Igreja era algo que podia ser encontrado nas préprias Escrituras judaicas. Estava 14 0 tempo todo — os judeus 6 que nao haviam percebido por causa da cegueira espiritual. Os profetas Oséias (Os 2.23; 1.10) e Isaias (Is 10.22,23; 1.9) haviam falado claramente de um remanescente fiel que seria tomado de entre os povos (Rm 9.25-29). Um remanescente de israelitas fiéis que Deus sempre con- servou pela graca soberana em momentos de crise, como ocorreu na época de Elias (1Rs 19.10,14,18), é um tipo da Igreja gentilica, enquanto que os demais judeus foram endurecidos, conforme profetizado em Isaias 29.10 e no Salmo 69.22,23 (Rm 11.3,4,8-10). Varios outros textos so citados pelo apéstolo em Romanos para demonstrar que a entrada dos gentios no povo de Deus era algo previsto nas Escrituras (cf. Rm 15.9-12 onde o apéstolo cita passagens de 2Sm, Dt, SI e Is). A justificagaio dos gentios pela fé é defendida por Paulo em Galatas 3.6-14 com base na propria justificacao de Abraao (Gn 15.6 ¢ 12.3), na propria Lei de Moisés (Dt 27.26 e 21.23; Lv 18.5) ¢ no profeta Habacuque (Hb 2.4). Para o apéstolo, a justificagao pela fé em Cristo nao era algo novo, mas ensinado nas Escrituras do préprio Antigo Testamento (cf. ainda Rm 10.6-8,11,13,15,16,18; 2Co 6.2). Tipologia Um outro importante componente da hermenéutica neotestamentaria é 0 conceito de tipologia. Estudiosos tém apontado para o fato de que Jesus e seus discipulos entendem a Histéria em termos de Heilsgechichte, “historia da salvagao”, uma série de eventos salvadores determinados por Deus, que ocorrem numa determinada seqiiéncia hist6rica, tendo seu climax na vida, morte e ressurreigao de Jesus Cristo. E dessa forma que Paulo pode se refe- rir 4 encarna¢4o como tendo ocorrido na “plenitude do tempo” (GI 4.4) ea ressurrei¢ao como tendo ocorrido na “dispensagao [oikonomia] da plenitu- de dos tempos” (Ef 1.10). Ou seja, Deus vinha agindo salvadoramente no tempo e na Histéria, de uma forma planejada, calculada e secreta. Com a vinda de Cristo, é revelada a dispensagiio do mistério, desde os séculos, oculto em Deus (Ef 3.9). E tudo isso, naturalmente, “por meio das Escritu- ras proféticas” (Rm 16.25,26). A idéia predominante aqui é aquela da continuidade intima entre os eventos narrados no Antigo Testamento e aqueles ocorrendo nos dias dos autores do Novo Testamento. Sao todos eventos da mesma grandeza, da mesma categoria. Sao eventos salvadores, manifestagdes do plano eterno de Deus. Sob essa perspectiva, Paulo ¢ demais autores do Novo Testamento assumem a correspondéncia entre as Escrituras do Antigo Testamento e os eventos histéricos-redentivos ocorridos em Cristo Jesus. Essa correspon- déncia é basicamente de promessa ¢ tipo (Antigo Testamento) ¢ cumprimento Capituto 6 - Os Autores D0 Novo TeEsTAMENTO 119 antitipo (Novo Testamento). Os eventos, personagens ¢ instituigSes regis- trados no Antigo Testamento sao entendidos como “‘tipos” das realidades presentes em Cristo Jesus. Desta forma, Paulo considera a historia de Israel no deserto como tendo acontecido de forma fipica, para servit de exemplo aos cristaos (1Co 10.11). Adao é visto por ele como um tipo de Cristo, na qualidade de cabeca e representante da raga humana, através de quem o destino da mesma é determinado (Rm 5.14). Os demais autores do Novo Testamento seguem na mesma linha. O autor de Hebreus igualmente vé as experiéncias negativas de Israel no deserto como fipicas para servir de exor- tagao aos cristdos (Hb 4.11). Tiago vé os sofrimentos dos profetas também como fipo a ser imitado pelos cristaos (Tg 5.10). Pedro ensina que Deus, ao destruir Sodoma e Gomorra, colocou-as como exemplo (hupodeigma) aos impios (2Pe 2.6). A Diferenca entre Tipologia e Alegoria A diferenca entre tipologia e alegoria tem sido largamente debatida pelos estudiosos. Se assumirmos que a tipologia pressupde esta continuidade his- torica e teolégica entre os dois Testamentos, fica evidente que todos os casos onde os escritores do Novo Testamento esto “alegorizando” estao, na ver- dade, “tipologizando”, apontando para a correspondéncia histérica e teoldgica entre eventos, fatos, instituigées do Antigo Testamento, e os no- vos fatos ocorridos recentemente em Cristo Jesus. E essa é uma das caracteristicas dominantes da hermenéutica neotestamentaria. Aqui podemos ver mais uma diferenga entre a hermenéutica de Paulo eaquela dos demais grupos ja estudados nos capitulos anteriores. Em com- paragdo com a exegese judaica praticada em seus dias, Paulo é muito m: sensivel as questées gramaticais, ao contexto historico, e a intengao ori; nal do autor biblico do que os monges de Qumran, do que Filo, ¢ a maioria dos rabinos. O apéstolo sempre assume a historicidade dos eventos relata- dos no texto biblico. Enquanto a realidade histérica do relato da tentago e da queda, por exemplo, sio minimizados ou tornados supérfluos pela ale- goria de Filo, se constitui no proprio fundamento da argumentagao de Paulo para justificar a necessidade da vinda de Cristo (ver Rm 5.12-21) e os di- ferentes papéis do homem e da mulher (1 Tm 2.11-15). Também, os aspectos gramaticais do texto hebraico sao importantes para ele: o fato de que em Génesis 12.7 a promessa foi feita ao descendente de Abraio (singular) € nota- da por ele como sendo uma indicag’o messianica, cf. Galatas 3.16. O contexto em que a passagem biblica foi escrita também ¢, no geral, respeitada por Paulo. A interpretacao alegorica dos rabinos, essénios, ¢ de Filo nao respeita o texto como texto, mas busca apenas o sentido oculto, espiritual e mais pro- fundo que ele supostamente carrega. Em contraste, a interpretagao de nosso apéstolo é bem mais sébria, natural, logica e coerente. E como ele, também os demais intérpretes cristaos, autores do Novo Testamento. 120 A BiBLiA E SEUS INTERPRETES Interpretagao como um Dom Espiritual Apostélico Uma outra caracteristica da interpretagao neotestamentaria do Antigo Tes- tamento € a consciéncia que seus autores tém de que so levados pelo Espirito Santo a descobrir 0 verdadeiro sentido dos antigos escritos sagrados, senti- do este que é consistentemente cristocéntrico. Essa caracteristica fica clara quando 0 autor de Hebreus, ao explicar o sentido da disposigao dos utensi- lios e departamentos do tabernaculo, bem como o fato de que somente o sumo-sacerdote entrava no santo dos Santos, com sangue, diz: .. querendo com isto dar a entender o Espirito Santo que ainda o caminho do Santo Lugar no se manifestou, enquanto o primeiro taberndculo conti- nua erguido. E isto uma parabola para a época presente (Hb 9.8,9). O autor percebe na disposigao do taberndculo um sentido que o Espi- rito agora torna claro, ou seja, que as ofertas e os sacrificios de animais oferecidos a Deus nao eram capazes de santificar os ofertantes e que um maior € melhor sacrificio — 0 de Cristo — se fazia necessario. O Espirito como Mestre A idéia de que o Espirito guiaria ao conhecimento do verdadeiro sentido das Escrituras pode ser inferida da promessa feita por Jesus aos seus discipulos: o Espirito Santo os haveria de guiar a toda verdade, cf, Joao 15.26; 16.13.0 proprio Jesus abriu o entendimento deles para compreenderem as Escritu- ras (Le 24.45). Mais tarde, 0 apdstolo Joao se refere ao Espirito Santo como sendo a ungao vinda de Deus que ensina todas as coisas aos cristdos (1Jo 2.20,27). O apéstolo Paulo declara que somente mediante o Espirito se pode conhecer 0 mistério de Cristo (1Co 2.10-12), e isso mediante a comparagao de “coisas espirituais com espirituais” (2.13). Muito embora todo cristao seja participante do Espirito e, portanto, por ele guiado a verdade, parece que a revelacao dos mistérios de Deus contidos nas Escrituras do Antigo Testamento era um dom apostélico, con- signado aos autores do Novo Testamento como parte da inspiragao divina para registrar infalivelmente a verdade de Deus, Quem sabe encontramos tragos desse dom em 1 Corintios 13.2: “Ainda que eu tenha o dom de profe- tizare conhega todos ‘os mistérios e toda aciéncia...” Ouaindaem | Corintios 14.6: “Agora, porém, irmaos, se eu for ter convosco falando em outras lin- guas, em que vos aproveitarei, se vos nao falar por meio de revelagéio, ou de ciéncia, ou de profecia, ou de doutrina?” Aparentemente, Paulo entendia que o conhecimento dos mistérios e da ciéncia (espiritual), algo relacionado com revelagao e doutrina, era um dom que ele mesmo Possuia € que era para a edificacdo das igrejas. Esse charisma capacitava o intérprete a asso- ciar acontecimentos do Antigo Testamento ao presente, como Paulo faz em Galatas 4.21-3 1, associando Sara e Agar respectivamente aos cristdos e aos judeus. Pelo Espirito, Paulo descobre como os fios ocultos nas Escrituras entre o passado e o presente se relacionam, e o manto que esta sobre o Capituto 6 - Os Autores D0 Novo TESTAMENTO 121 passado é levantado. A relagio tipoldgica entre o passado € 0 presente erao coragio deste dom apostélico de interpretagao. Nesse sentido, Paulo funciona como sucessor escatolégico dos pro- fetas do Antigo Testamento. Sua hermenéutica é similar 4 deles. Assim como Isaias, Paulo interpreta os escritos sagrados anteriores a luz dos eventos escatolégicos e de sua nova situagao historica. Entretanto, porque ele éum apéstolo, ele anuncia o cumprimento das promessas feitas aos profetas do Antigo Testamento. Como os profetas do Antigo Testamento, ele reconhece estar incumbido dos mistérios de Deus (1Co 4.1). Essa caracteristica trans- parece mais claramente quando encontramos Paulo revelando “mistérios” em suas cartas. A Revelacao dos Mistérios Nessas ocasides, Paulo expde esses mistérios como se eles fossem contidos nas Escrituras do Antigo Testamento, e agora se tornaram claros através de sua exposigao. Embora a revelagao de Jesus Cristo que ele recebeu na estra- da de Damasco, e que esta no comego de sua carreira apostélica, tenha sido direta, sem qualquer mediagao, é evidente que Paulo nao aprendeu todas as profundezas do mistério de Cristo naquele momento ¢ da mesma forma. Outros aspectos do mistério, que ele expde em suas cartas, quase certamen- te vieram progressivamente, € isto nao aparte ou sem aquela outra revelacao, as Escrituras do Antigo Testamento. O nosso ponto é que, ao revelar esses mistérios em suas cartas, como alguém que foi incumbido deles, Paulo 0 faz em conexao com citagées interpretadas das Escrituras do Antigo Testamen- to. Vejamos alguns exemplos: a) Romanos 11.25-27 — O mistério do endurecimento de Israel ¢ a completa inclustio dos gentios na igreja (Rm 11.25) sao revelados em cone- xo com a citagao “esta escrito” de Isaias 59,20,21 ¢ 27.9, cf. Salmo 14.7 e Jeremias 31 .33,34. b) Romanos 16.25-27 — na doxologia final da carta aos Romanos, Paulo faz referéncia ao seu evangelho como sendo a revelagao do mistério guardado em siléncio nos tempos eternos, e que, agora, se tornou manifesto ¢ foi dado a conhecer por meio das Escrituras proféticas. Aqui transparece claramente a relagao entre mistério, revelagao e as Escrituras na hermenéu- tica do apéstolo. ¢) I1Corintios 15.50-57 — Sua exposigao do mistério do corpo da res- surrei¢do é apresentada como o cumprimento de Isaias 25.8 e Os¢ias 13.14. d) Efésios 5.31,32 — O grande mistério de Cristo e a igreja, que € refletido na relagao de marido e mulher, deve ser deduzido de Génesis 2.24. E uma questo muito interessante como 0 conhecimento desses mis- térios veio a Paulo. Nao esté claro quando e como Paulo recebeu 0 conhecimento deles. Talveza revelagao tenha vindo numa visdo, como aquela 122 A BIBLIA E SEUS INTERPRETES de 2 Corintios 12. 1-7. Mas ele nunca reivindica autoridade para sua exposi- ¢do desses mistérios na base de uma experiéncia como aquela. Alguns sugerem que Paulo recebeu os mistérios e a interpretagao deles através de um ordculo de um profeta cristo. Mas isso também nfo pode ser confirma- do pelos textos ¢ vai contra a énfase de Paulo na origem direta e imediata de seu evangelho. As referéncias as Escrituras do Antigo Testamento, logo apés o desvendamento do mistério, por outro lado, podem indicar os meios atra- \vés dos quais Paulo chegou a conhecer esses mistérios. E aparente que o mistério e sua revelacao estao de alguma forma relacionados com as Escrituras do Antigo Testamento. Provavelmente a re- velagio do sentido do mistério veio a Paulo enquanto ele examinava as Escrituras, numa espécie de discernimento inspirado, que lhe permitia vero sentido do mistério no Antigo Testamento a luz dos eventos do evangelho. Nessa conexdio, podemos nos referir a relagdo especial de Paulo com o Es- pirito, como um apéstolo de Cristo. Seu apostolado explica satisfatoriamente os mistérios que ele recebeu e revelou nas suas cartas através de exposigdes iradas dos escritos do Antigo Testamento. Ele era antes de tudo um ministro do novo pacto, um pacto do Espirito, superior ao da letra, publica- do sob Moisés (2Co 3.3-9). Ele fala como 0 ministro de um pacto cujos membros gozavam da liberdade hermenéutica trazida pelo Espirito, que lhes removeu o véu de seus coragdes quando eles voltaram-se ao Senhor pela primeira vez (2Co 3.14-18). Como apéstolo de Cristo, Paulo reivindica uma relagao especial com o Espirito do Senhor. Seu apelo ao Espirito em 1 Co- rintios 7.40, “... penso que também eu tenho o Espirito de Deus”, é feito em sua fungao de apéstolo e visa silenciar os “espirituais” de Corinto que se gabavam de ter posse exclusiva do Espirito. A sua proclamagao da palavra da cruz que produziu sua propria demonstragao do Espirito e de poder (1Co 2.1-4), 0 seu gloriar-se acerca dos sinais de um verdadeiro apéstolo (2Co 12.12), ¢ seu apelo aos seus leitores como fruto do seu trabalho no Senhor (1Co 9.1), que em 2 Corintios 3.1-3 é representado como uma carta escrita com 0 Espirito do Deus vivo, refletem esse apelo ao Espirito em conexao com seu apostolado. Conclusao Concluimos este estudo com uma pergunta crucial. Podemos aplicar a her- menéutica de Paulo e demais autores neotestamentarios hoje? Ou seja, podemos interpretar as Escrituras em moldes similares aquele usado por eles? Alguns estudiosos consideram que Paulo e demais autores do Novo Testamento sao arbitrarios no uso das Escrituras do Antigo Testamento em seus escritos, como por exemplo, o conhecido estudioso alemao Ernest Kasemann, ao comentar Romanos 3 em seu Romerbrief. Para esses estudio- sos, nada temos a aprender com os escritores do Novo Testamento, pois a Carituto 6 - Os Autores Do Novo TESTAMENTO 123 exegese deles é inferior, rudimentar e totalmente inadequada aos nossos dias. Em nossa opiniao, esse tipo de abordagem reflete a convicgao ja pre- concebida que a Biblia é somente um livro totalmente humano e cheio de erros. Percebe-se também uma ma vontade em dar crédito aos escritores neotestamentarios e em levar em conta o ambiente e contexto em que vive- ram. Rejeitamos, pois, essa abordagem do assunto. Outros, indo ao extremo oposto, tendem a usar a hermenéutica neo- testamentaria como modelo para a deles, sem qualquer percepgao do seu carter especial. Também usam a doutrina da inspiragao € inerrancia para descartar qualquer tentativa de entender os autores neotestamentarios a luz do ambiente hermenéutico de sua época. Porém, 0 fato de crermos na inspi- ragdo desses autores e na sua inerrancia ao escrever nao elimina a possibilidade de estudarmos seus métodos hermenéuticos, e mesmo de cons- tatar que eram filhos da sua €poca, e que, como tal, estavam condicionados ao ambiente hermenéutico em que escreveram ¢ labutaram. Uma outra possibilidade envolveria as seguintes consideragdes. Pri- meira, devemos nos aproximar das Escrituras com as mesmas perspectivas que dominavam a leitura dos autores neotestamentarios: - Cristo é 0 tema das Escrituras. - As Escrituras falam a nds, que estamos vivendo nos Ultimos tempos, e devem ser aplicadas as nossas circunstancias. - Devemos depender do Espirito para nos iluminar em nosso entendi- mento do texto sagrado. Nesse sentido, sem davida alguma, seremos seguidores dos discipu- los de Cristo em nossa hermenéutica. Segunda, devemos praticar uma hermenéutica que leve em conta a sensibilidade dos autores neotestamentarios ao contexto histérico das Es- crituras do Antigo Testamento e geralmente as peculiaridades da gramatica hebraica e grega. Devemos ainda lembrar que suas interpretagoes levavam quase sempre em conta a intengao do autor antigo, e que eram extremamen- te sobrias ¢ geralmente literais, em comparagaio com os grupos ao seu redor. Terceira, devemos considerar 0 fato de que os autores do Novo Testa- mento eram apéstolos ou associados apostélicos, ¢ como tal, gozavam de uma relagiio especial com 0 Espirito Santo, a qual envolvia revelagao e inter- pretaciio das Escrituras. Como vimos no caso de Paulo, ele estava plenamente consciente desse fato. A tipologia que ele emprega em suas cartas ¢ resultado do carater apostdélico-pneumatico da sua hermenéutica. E esse aspecto que 0 capacita a relacionar Sara e Agar com realidades da nova era em Cristo, a relacionar Adao e Cristo, 0 véu de Moisés com a cegueira dos judeus, ea desvendar os “mistérios”. Neste ponto, devemos reconhecer humildemente, que nos cabe estudar e entender o que Deus falou através do seu apdstolo inspirado, ¢ aplicar, no temor do Senhor, a nossa vida e as nossas igrejas.

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