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ALBA cary Vy AA ha bel Luis PAIXAO © p MUSUMECI © php taurus [aa ites Meme eer (oly eros MM 13a) 14-5 7.10) OU REDUCAO DE RISCOS LEITURAS AFINS Conformlsmo ¢ Resisténcla Aspectos da cultura popular ‘70 Brasil Macilena Chai Drogas ‘Substdios para discussao Masur/Caslini ‘A Maquina ea Revolta ‘Alba Zaluar Colegio Primeiros Passos O que € Alcoolismo Jandira Masur O que € Cidadania Maria de Lourdes Manzini-Covre © que € Prevencio de Drogas Roberto Wisthott (0 que € Toxicomania Jandira Masuc DROGAS E CIDADANIA REPRESSAO OU REDUCAO DE RISCOS : ANTONIO LUIZ PAIXAO BARBARA MUSUMECI DOMINGOS BERNARDO SILVA SA 4 EDWARD MACRAE GILBERTO VELHO editora brasiliense Copyright © dos autores, 1994 Nenhuma parte desta obra pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrénicos, fotocopiada reproduzida por meios mecinicos ou outros quaisqiler sem autorizagao prévia da editora. ISBN: 85-11-08077-5 Primeira edigdo, 1994 Preparagao de originais: CAssio de A. Leite Revisto: Carmem T. §. Costa e Laura Bacellar (Capa: Maria Eliana Paiva An Marquts de Séo Vicente, 1771 css 8 «Sao Pato 'Sb. Fone (011) 861.3366 - Fax 861-3024 IMPRESSO NO BRASIL SUMARIO. 1. Introdugio: Drogas e cidadania ‘Alba Zaluar 2. A dimensio cultural e polftica dos mundos das drogas Gilberto Velho 3. A importincia dos fatores socioculturais na determinagio da politica oficial sobre oso ritual da ayahuasca Edward MacRae 4. A guerra is drogas é uma guerra etnocida ‘Anthony Henman 5. O consumo de dlcool no Pais Bérbara Musumeci 6. A criminalizago das drogas e o reencantamento do mal ‘Alba Zaluar 7. Problemas sociais, politicas publicas Antonio Luiz Paixao 8. Projeto para uma nova politica de drogas no Pais Domingos Bernardo Silva Sd 23 34 aT 83 7 129 7 1 INTRODUGAO, DROGAS E CIDADANIA Alba Zaluar Este livro tem por objetivo preencher uma lacuna nos debates que invade de idéias preconcebidas todos os nos- sos meios de comunicagio: a questo das drogas ilicitas ¢ as conseqiiéncias da criminalizacio, assim como a alterna- tiva da descriminalizacio. O Brasil encontra-se décadas atrasado nesta polémica. O conhecimento divulgado pela midia ainda é extremamente estigmatizador € precon- ceituoso em relagZo aos usuarios de drogas, o que sé vem a piorar a situagZo deles, especialmente dos que se tornam obcecados e acabam, por causa do cenario econdmico, po- licial, social e medico extremamente hostil, envolvidos pelas malhas do crime organizado. Além disso, a perspec- tiva que se adquire da questio via o contexto sociocultural do usuario da droga tem perdido espaco para a visio farmacolégica e aepidemiol6gica, assim como a visio psi- colégica, mesmo entre aqueles que consideram a atual po- Iitica nacional das drogas repressiva e atrasada. ‘A nossa situagio em relagio a0 uso e abuso da droga chega perto da calamidade. Um médico santista - Fabio Mesquita ~ fez pesquisa que revelava nao s6 a associago cada vez maior entre o uso de drogas injetaveis e o alastra- mento do HIV, mas também como a geografia da doenca 7 DROGAS E CIDADANIA coincide com a geografia da rota do trdfico no Brasil decorréncia das medidas repressivas nos paises produto. +85 de coca, Nem por iss0 as medidas preventivas da coflseguiram mt in RDS coneeguiram maar o entendimento da droga © 0 As medidas de distribuigio de seringas ¢ agulhas AIDS parecem ter se consolidado em poucas prefeitures como a de Santos, mas ainda estio longe de ser um pro” om nacional. Assim mesmo, visam sobretudo contro- lar o alastramento da AIDS, apenas um dos riscos que correm os usuarios de drogas. Foi com esse espiito que ¢ ex-prefeita de Santos, Telma de Souza, instafou em 1989 tum programa de trocas de seringas velhas por novas entre gs usuitios de drogas para conter 0 avango da AIDS, aléms distribuir preservativos e realizar gratuitamente tester do HIV a maneira de muitas cidades européias. Entretan, to, a medida foi alvo de presses do Ministério Public que chegou a instaurar inquérito policial sob 2 alegagio gue o programa incentivava o uso de droge. de lei sobre as drogas no Brasil, considerado tind, a ae ™ einer: medidas desriminalizadoras que sugere, e foi apresenta, do no CONFEN (Conselho Federal de Entorpecentes) roposta era de que a apreensio da droga e a punigio aplicada ao reincidente (quando caracterizado como usd, tio) deixassem de ser julgadas pelo Cédigo Penal, passan. do a ser problema de ordem sanitéria ou administrative, Isto porque “o consumo é préprio do direito privado”™ (ou civil *o direito penal nio pode ter por objeto con lutas estritamente privadas". © documento defende aac th, como seu principal alvo, uma estratégia preventive extensa 2 todas as substancias psicoativas licitas e ilfeitas, O alvo é.a “pessoa humana” e nio a substncia psicoativa om si. Apenas de seu carter liberal, se comparade 3 ler $44 0 anteprojeto INTRODUGAO ’ em vigor desde 1976, este anteprojeto nfo advoga a legali- zagio de nenhum tipo de droga ilicita, apenas o tratarnen- to diferente do usudrio. Este projeto parece ter sido abandonado, pois os conselheiros que o defendiam foram demitidos e acusados de conivéncia com o trifico. Os seus autores tém também sido acusados pela imprensa de pertencerem a quadrilhas de traficantes e de serem “vicia- dos em drogas”. Entretanto, apesar desta politica repressiva de combate as drogas, apesar dos fortes preconceitos apontados con- tra os usudrios e aqueles que defendem uma politica me- nos repressiva, 0 coasumo delas continua se alastrando rapidamente, em especial entre os mais jovens e entre as populacées mais pobres, Nestes setores mais vulnerdveis 4 agio policial, os efeitos da propria repressio podem ser desastrosos por estimularem a criminalidade violenta. Isto porque, no combate ao uso de drogas, a policia tem um enorme poder em determinar quem seri ou nio, processado e preso como traficante, crime considerado hediondo. Jovens de classe média e alta nao chegam a ser estigmatizados como problemiticos, anti-sociais ov violentos, apresentando-se muito mais como jovens em busca de diversio ou, quando exageram, jovens que neces- sitam atendimento por médicos e clinicas particulares. Nestas classes sociais costumam funcionar também os grupos de narcdticos anénimos, considerados interna- cionalmente os mais efetivos na diminuigio dos abusos ¢ riscos que eavolvem as drogas ilicitas. Jovens pobres, porém, nio gozam da mesma compreensio: so presos como traficantes por carregarem consigo dois ou trés gra- mas de maconha ou cocaina, o que ajuda a criar a super- populasion carceriria, além de tornar ilegitimo e injusto o incionamento do sistema juridico no Pais. O texto de Alba Zaluar trata de pesquisa receate feita num bairro popular do Rio mediante depoimentos reco- 10 DROGASE CIDADANIA Ihidos entre os que ji tinham convivido de uma forma ou de outra com as bocas de fumo. Descobre que poli- siais costumam prender meros fregueses ou pequenos repassadores de drogas (avides) para mostrar eficiéncia ne eal, Os dados estates recolhidos nas duas olicias Confirmaram estas afirmagdes. Entre 1983 e © 18° Batalhio da Policia Militar apreendeu na tee que funcionam cinco bocas de fumo, movimentando cer cade trinta quilos de maconha e quarenta quilos de coca. fa semanais, trés vezes menos por tréfico do que por posse € uso de droga. Além disso, tanto na Secretaria Estadual da Policia Civil quanto no 18% Batalh3o da Poli. cia Militar, ndo se faz distingio clara e efetiva entre 6 usurio de droga ¢ 0 traficante, embora haja artigos die rentes para eles no Cédigo Penal. A quantidade apreen- la nfo é 0 critério diferenciador, pois encontraram-se 2805 classificados como “posse e uso” com 1860 quilos de maconha apreendida € casos classificados como “tréfico” com apenas dois gramas. Esta indefinigio, que estd na legislagio mas principalmente na prética policial, s6 vai magnificar o poder policial, o que, por sua vez, inflaciona a conmupeao. As conseqiiéncias desse poder sobre as tela. see entre os usuarios os policiais so analisadas neste exto. Um dos critérios de avaliacao da existéncia de ci nia nos dias de hoje & a maneira como o Estado Penc a distribuigdo de seus beneficios e servigos a fim de garan. tir o atendimento de seus cidadios, diminuindo a parcela dos marginalizados. O Estado brasileiro ainda nao encon- Ligue caminho para eftivar os direitos sociis de seus cidadios. As politicas sociais sempre estiveram subordi- sadas 20 processo de acumulacio de capital, o que explica Por que a oitava economia mundial tem a ectogésima per siglo em desenvolvimento social, que se mede pelos direi. tos sociais fundamentais: trabalho, educagio e satide. Bo Rite sh iin SRR athcer the INTRODUGAO u E neste contexto sécio-econdmico mais amplo que 0 consumo de drogas tem crescido grandemente entre as parcelas mais pobres da populagio no Brasil, as mais afetadas pelas falas da escola e do mercado de traba- Iho em lhes dar esperancas e projetos para 0 futuro, Nao falta, pois, no Brasil, o que Becker chamou de “motiva- gio de um ato desviante”, derivada de uma situago na qual o agente social no aceita a ordem social ou o atual estado do jogo social e politico e se revolta contra ele. Nio que a pobreza explique o ato desviante, mas ela pode, em conjugacio com as falhas do Estado na cria- 40 de possibilidades de ascensio social, assim como a nova cultura hedonista que faz parte da cultura jovem, facilitar a escolha ou a adesio 3s subculturas de uso de drogas ilicitas. Essas subculturas, no entanto, nfo sko derivadas de alguma relagio intrinseca com a subs- vincia ingerida. Elas também tém sua historia e se trans- formaram nas iltimas décadas, como aponta o texto do professor Gilberto Velho. O estudo desses valores associ- ados 4s culturas jovens é importante na medida em que sabemos ser 0 ato desviante ou a sua repeticio uma decor- réncia do seu aprendizado no grupo social do qual 0 jovem faz parte. Esse pertencimento vem a gerar uma série de atitudes, valores ¢ identidades que néo necessa- riamente sio anti-sociais, desviantes ou perigosos, nem violentos. $6 num contexto de extrema marginaliza- gio dos jovens, ou seja, pela prépria atitude dos demais em relagio a-eles, podem tais atitudes se cristalizar e, devido aos lagos reais de amizade, dominio ou divida criados, dificultar o rompimento com o grupo, portanto com 0 proprio desvio. Por tudo isso, 0 professor Gilber- to Velho defende a descriminalizagio do uso ea repressio 20 trifico. Faz parte do contexto cultural e institucional da forma- 40 das subculturas jovens a propria atitude dos outros 2 DROGASE CIDADANIA agentes governamentais ¢ dos outros grupos sociais em relacdo aos ususrios de droges. As imagens negatives oe reconceitos, o medo, que, no Brasil, chegam is raias da demonizaao do viciado, contribuem decisivamente para a cristalizasio da subcultura marginal e dos tons agressi- vos e anti-sociais que algumas vezes adquirem, A violén. cia ¢ 0 arbitrio policiais, derivados do poder de iniciar rocessos criminais contra o usuirio,‘criam em toro dele um efrculo infernal de inseguranga, perigo e incenti. vo ao crime. E isto que os textos de Alba Zaluar e Ant. nio Luiz Paixio procuram mostrar. Nio seria exagero afirmar que, entre os pobres, existe maior pressio para o envolvimento com os grupos de criminosos comuns, por conta da facilidade de entrar em divida com o traficante, da facilidade em obter armas e estimulo para a acto crimi, nosa, da facilidade de esbarrar na repressdo policial que prende os “maconheiros” pobres para acrescentar alitne, Fos na sua folha de servicos, bem como da dificuldade em encontrar atendimento médico e psicolgico quando vém a ter problemas reais no uso e controle das drogas. ‘Apesar disso, ndo se pode dizer que os preconceitos em relagio aos chamados “viciados” sejam maiores entre os pobres do que nos demais setores da populasao. Recolhi depoimentos draméticos de jovens bandidos que conta. vam como haviam se envolvido com grupos de crimino. 50 por um processo miltiplo de exclusdo na familia, na escola, na vizinhanca, de perseguigao pela policia e de di- vida com a quadrilha da “boca de fumo”. Ao mesmo tem. po, encontrei também afirmagbes sensatas, algumas mais, utras menos represivasejustas, que contestavam aatual situagio de perseguicio indiscriminada aos “maco- aheiros”favelados e pobres: eee “(..) As drogas que fossem combatidas a pantir no do consu- midor e sim da chpula mais alta que sio os chefBes (.)*" iNTRODUGAO 13 “Maconheiros, no matélos, ees nio matam, nfo roubarn, 0 que eles fazem de errado & pegar esse vicio horrivel, na hora que fumam ficam abusados nio sabem 0 que estio fazendo. Se é para matar maconheiro, mas antes matar os bandidos, assassinos, que tiram a vida de outeas pessoas sem mais sem ‘menos. Eu no acho certo ninguém tirar a vida do outro (.)” Principalmente, nio se pode concluir que todos os usu- Arios de drogas so iguais ou até que professem o mesmo credo cultural. Nada mais enganoso. Pesquisas feitas em todo o mundo sugerem diferencas em graus de envolvimento ou de relagéo com a droga e com 0 grupo - se a tomam nas horas de lazer ou divers%o ocasionais, se ela é central na definigio de um estilo de vida alternativo compartilhado com outras pessoas, ou se ela é 0 eixo na definicio da identidade individual do usuério compulsi- ‘vo. Os textos de Anthony Henman e de Edward MacRae falam de usos rituais e controlados socialmente da maco- nha e de outras substdncias psicoativas que nada tém a ver ‘com as imagens geralmente associadas a este uso nos seto- res urbanos e modernos da populacio brasileira, O texto de Edward MacRae trata também da luta tra- vada dentro do CONFEN para tornar legal o uso da ayahnasca, substancia de uso milenar entre populagées in- digenas e recente entre populasdes urbanas brasileiras. O uso da ayahuasca & ritual e, portanto, socialmente contro- lado. $6 permitido bebé-la em situagSes especiais, com a participagio da comunidade de fiéis. Mulheres gravidas criangas esto excluidas dessa atividade, que retine os membros da comunidade religiosa em torno de valores de solidariedade e do amor a Cristo, identificado com o san- to daime. Por esse trabalho, e pelos de Anthony Henman ¢ Barbara Musumeci, é possivel entender como o préprio conceito de “droga” historicamente datado e vinculado avalores sociais nem sempre consensuais. “ DROGAS E CIDADANIA texto de Birbara Musumeci revela com clarezaain- consisténcia na definisfo oficial atual do que é uma droga Prejudicial ao ser humano, jé que trata do dleool. Apersr de ser a maior causa da violéncia doméstica, de acidentes com mortes no transito ¢ de gastos nos hospitais piblicos com o tratamento de seus usuérios contumazes, 6 cons, mo do Alcool é liberado. Ela nos conta a histéria penal desta substancia que jé foi contraven¢io, crime por uso volitivo, mas que hoje &dirimente penal quando a pessoa ahs fometeu atos criminosos extiver sob seus efeitos. Tro indo em mitidos, uma alcootizada acidente de tinsto cesttando em morte do sien ck sua pena diminuida justamente por estar alcoolizada. _ Falar em direitos humanos hoje deixou de ser uma ati- vidade de filésofos ¢ a sua definigao nfo é mais considera. da uma questio filosdfica que discute o que seria afinal 6 humano. O problema é politico ea sua discussfo é publi, ca. Assim, estamos diante de uma ago contraditéria do Bado. Ao Esado compete assegurar 0s direitos socais, Politicos, civis ¢ os de quarta geraco (os ecolégicos) dos cidaddos. Mas 0 Estado, no caso do. ne das aecleae tem apresentado sua outra feicdo: a de repressor das ativi, dades condenadas criminalmente. Como esta tema interfe. tido naquela é um tema de pesquisa ainda a ser desenvalido £n2 Vda de muitos joven, a rani de tan as histérias dramdticas i Violéncia, abandono, porta iat ad ana No caso brasileiro, além das anomalias assinaladas dlversos autores nas politicas socinis, tais como a frag. mentagio institucional e a centralizacio decisbria que, en tte outros problemas, acarretou a burocratizasio’ dos servigos piblicos, temos o total desrespeito 3s garantins constitucionais que limitam 2 ago da policia. Revise bhumilhantes, provas plantadas, processos pelo porte de ‘ga com a caracterizacio de crime de trifico (que é con. INTRODUGAO 15 siderado hediondc), dependendo do arbitrio do policial, resultam em prises injustas ou em extorsées ilegais. ‘Nos hospitais piblicos em que existem programas de ~ tratamento de viciados todos os problemas apontados coalescem de forma tragica. Normas internas rigidas, aten- dimento precicio por falta de equipamentos e de pessoal tecnicamente qualificado, atrasos, burocratas sem com- promissos com os objetivos humanos e politicos desses programas que prejudicam a agao dos poucos médicos realmente mobilizados neles. Os efeitos negativos dos internatos, que criam outras formas de exclusio dos vicia- dos, ja foram bastante apontados na literatura, Vao desde os danos A identidade pessoal e 3 dignidade do usudrio até ao artificialismo embutido na ndo-reincidéncia do uso da droga, porque baseada no isolamento do usudrio de seu grupo de referencia, ou seja, do grupo de usuarios que for mam o contexto cultural ¢ social do uso. 'A questio mais importante discutida hoje nos paises democraticos diz respeito justamente aos direitos huma- nos dos usuarios de drogas e a aco contraditéria do Esta- do em relagao a eles. A criminaliza¢io do uso vem sendo apontada nio sé como uma agressfo aos direitos privados ¢ individuais do cidadao, mas também como um empeci- tho para que ele, por temor de ser processado e preso, procure os hospitais piblicos quando sofre as conse- qiiéncias do abuso de drogas ilicitas, Relatério entregue a0 orgios da Comunidade Européia sugere, por isso, a diminuigao das medidas repressivas ¢ o estimulo 4 pro- cura, pelos usudrios, dos servigos de satide publica (Silvis etal., 1992). ‘A tendéncia hoje nesses paises ¢, pois, adotar medidas no repressivas de inspiracio liberal, cujo esp{rito poderia ser sintetizado na idéia de que as politicas proibitivas com relagio as drogas nas ultimas trés décadas foi um comple. to fracasso (Jiirgens et al., 1992; Drucker, 1992). As novas 6 DROGAS F.CIDADANIA medidas de redugdo de risco tornaramsse ainda maié ne- cessérias visto que 0 uso de drogas injetiveis, cujo aumen- to é continuo apesar de toda a criminalizacio resultante da politica repressiva, jé se caracteriza como uma epide- mia capaz de desencadear outras como 2 da hepatite e a da = AIDS. A rejeigio aos paises que adotam a pena de monte para traficantes, como o Ira, a China e a Tailindia, embo- ra quantidade de apreensio da droga para caracterizar o traficante seja bem maior do que nos palses europeus ¢ ainda mais no Brasil, se dé também pelo entendimento de que tais medidas colidem com a nogio de direitos huma. nos (Hendriks, 1992; Silvis, 1992). A reformulagéo da questéo provocou uma verdadeira revolucio no atendi- mento ¢ protesio 20 usuério de deogas illctas, vistos ago. ra como um objetivo da sociedade democritica e da sade Piiblica ao mesmo tempo. ‘ Nfio que a polémica tenha terminado. A distribuiggo de drogas por organismos estatais, politica hoje seguida i pela Inglaterra, Holanda, Suica ¢ Alemanha, continue rovocando acirrados debates em torno dos efeitos das . drogas distribufdas sobre a sade do usuério, sobre os di- reitos do usudrio que, a6 se transformarem nam grupo de ressifo, exigem cada vez mais drogas de graca, e da pe manéncia de um mercado negro, ainda que menos vi lento ¢ ameagador, ao lado dos centros de distribuigio = Rratuita, Esto em questo até onde vio os direitos indivi. od Suais dos usudrios de drogas e onde comesam os direitos sociais de todos, inclusive o direito A seguranca, A Inglaterra foi o primeiro pafs europeu a implantar uma politica de prescrigfo médica de drogas, além de se- x ringas e agulhas para as doses endovenosas, por clinicas = aurorizadas, com a finalidade de controlar os riscos de infecgdo ¢ a delingiiéncia associada ao tréfico. Mas hoje a existe uma crescente preocupacio nesse pals com as medi- das radicais da liberacio de droge: fevadasisGltimas con. # a” = eo INTRODUGAO v seqiiéncias em alguns paises. A Sufga, por exemplo, desde 1988, vem distribuindo utensilios aos seus viciados para doses endovenosas, e permitiu que uma de suas pragas se tornasse espaco aberto ¢ inveiramente livre 20 uso de quaisquer drogas, como meio de controlar (e saber) 0 ni- mero de viciados entre os seus cidadaos, eliminar 0 tréfi- co, ¢, sobretudo, quebrar a cadeia de contaminagio do virus da AIDS, capaz de atingir os usudrios ocasionais de drogas injetiveis. Em 1992 esse pais, encurralado pelas es- tatisticas que o colocavam como o primeiro no mundo em niimero de viciados per capita, aliado aos alarmantes niimeros de dbitos por overdose, tomou outra medida: coloca sob controle médico, e em certos locais apenas, a distribuicio de cocaina, morfina, metadona injetdvel, anfetaminas e heroina, numa tentativa de livrar-se dos tra- ficantes e dos crimes violentos, assim como estabilizar o admero de drogados até 1993. Deixa, portanto, a politica da liberacio para entrar na descriminalizagio controlada, no caso, pela medicalizacio. Na Holanda, a politica de distribuigio de drogas ilici- tas limita-se 4 metadona (um opiéceo substituto da herof- na), obtida sob controle de agentes que trabalham em programas das prefeituras de diversas cidades, atingin- do sobretudo as prostitutas e os jovens com o intuito de reduzir os riscos do uso: as infecgées, os crimes associados a0 trifico e & dependéncia do traficante. Esses programas nfo funcionam em hospitais, altamente equipados, buro- cratizados ¢ grandes, mas em casas modestas com equi- Ppamento barato, e contam com pessoal altamente envol- vido nos objetivos humanitarios e sanitarios do projeto. A metadona é uma substincia sintética que, apesar de cri- ar também dependéncia, s6 é produzida pelo servigo mé- dico. Nao é, portanto, mercadoria disponivel para trafi- cantes. Outras drogas, como a cocaina e seus derivados, © épio e a morfina, continuam proibidas. Mas podese 1" DROGASE CIDADANIA obter pelo menos uma das drogas, consideradas ilitas em outros paises, no mercado legal das cidades holande. sas: a maconha é vendida nos bares das cidades. Nesses paises em que os programas de redugao de risco se montam em sistemas de distribuigio gratuita de drogas ilfcitas e de seringas, hd, de fato, uma ideologia da liberda- de individual que limita a intervengfo estatal. Se a Pessoa deseja ser ajudada, ou para livrar-se do vicio ou para dimi- nuir 0s riscos de infeceio, entio procura por vontade pré- Pria o programa correspondente, O respeito A subjetivi- dade do usuario § garantido, porém nada se faz em termos Sociais mais amplos para mudar as idéias vigentes acerca da droga, do vicio e do viciado. Ms ndo se eae colo liberagdo de todas as drogas ilicitas, visto inexistir acordo Quanto aos seus efeitos nocivos e quanto is conseqiiéncias Para o trifico, controlado hoje pela mifia. ~ A Franca, a0 contririo, é um dos paises que ainda pro- movem politica repressiva ¢ que se recusam 2 seguir os paises vizinhos na distribuicao controlada e gratuita de drogas. Representantes do governo francés ndo mais, tem a maxima do ministro do Interior, Paul Quilés - ‘Drogue douces et drogues dures, le méme régime if s'applique” -, que tanta polémica provocou quando fe dita publicamente, em fungio das presses que os paises de politica mais liberal vém exercendo sobre os de polit a repressiva, Uma das conseqiiéncias na Europa é que os usudrios de drogas dos paises com politica repressiva, tra. tados como criminosos ou incapazes de procurar (¢ rece. ber) tratamento médico, acabam procurando refigio nos paises mais liberais. Isto, & claro, tem criado muitos pro- blemas para a execusio dos programas de teatamento, reeducagio ¢ prevengio nos paises que desistiram dj-——~ criminalizacio. Entretanto, é na Franca que existe um proj , : jeto ~ no qual trabalha uma brasileira, Lia Cavalcanti ©, oais clare INTRODUSKO. a mente educador, no sentido de mudar as i dos usuarios de drogas, para fazé-los deixar o vicio, e de seus parentes e vizinhos. Sua abordagem é “comunitéria” e diz-se inspirada pelas experiéncias latino-americanas. Por isso entendem o trabalho de esclarecimento e debate que retine os vizinhos, sejam usufrios ou nfo, com tuito de.diminuir os preconceitos e o medo em relagdo aos chamados “viciados”, que sofrem as conseqiiéncias sociais penosas de serem rotulados de desviantes. $6 fun- ciona num bairro pobre, habitado principalmente por imigrantes drabes. No tem escala nacional, nem se desti- na aos usuarios de outras classes sociais. No entanto, a sua Preocupagio com a diminuigao ou neutralizagio do pre- conceito chama a atencio para o fato de que nenhuma politica de distribuigio gratuita de drogas dar4 resultados se nfo for acompanhada de um trabalho que mude as re- lagSes entre os viciados e os que com eles interagem. Na Franga, nfo seria exagero dizer, a politica de prevengio é asunto de todos e nfo apenas do usuério individual. ‘Os Estados Unidos também vém adotando uma politi- ca repressiva das mais violentas ¢ intiteis nos dltimos tem- 10s. Apesar de liderar a war om drugs, com gastos Rabulosos nas ‘campanhas internacionais (foram gastos 45 bilhSes de délares nos iltimos quatro anos, pagos pelos contribuintes norte-americanos), para desmantelar as grandes redes e rotas do narcotrifico, assim como a des- truigdo de plantagSes nos paises latino-americanos produ- tores das drogas ilicitas, e apesar de ter também o maior miimero de traficantes e usuirios de drogas encarcerados, 08 Estados Unidos continuam apontados pelas estatisticas pelos especialistas como o pais com maior ntimero de drogas diversificadas em circulagZo. A cocaina, 0 crack, 0 “base”, as anfetaminas, a herofna, o éxtase sio as mais co- nhecidas, algumas consideradas muito nocivas ao organis- mo, por criarem dependéncia (heroina), e outras nocivas » DROGASE CIDAPANIA & mente, por induzirem a crises parangicas e psicéticas (cocaina e crack). Nem as taxas de criminalidade violenta baixaram em decorréncia dos gastos com a repressio. Ao contrério, essas taxas continua a aumestar nos princi pais centros urbanos do pais. Em Baltimore, 12* cidade americana com 740 mil habitantes, populaglo predomi. nantemente negra e com renda média de 19 mil délares anutis, estima-se que 60% de todos os crimes envolvem drogas. Entre 1986 e 1991, a policia dessa cidade prendew 82 mil pessoas por crimes e contravencées relativas a dro- gas. Em 1991, 46% dos homicidios tinham aver com dro. ga (Lavine, 1993). Hoje a sociedade norte-americana apresenta uma di so provocada pelo acirrado debate em torno da legaliza- $40 do uso de drogas. Representantes do préprio governo expressam preocupagao com a superpopulagao carceréri resultante da repressio aos viciados, agentes penitencidri- osdenunciam que hoje encarceram e vigiam simples usu tios de drogas ¢ nao perigosos criminosos. O texto de Anténio Lutz Paixdo recupera os termos principais do debate em curso. Na discusséo européia, também chega-se i conclusio de que as campanhas de prevenci0, com sua énfase sobre os horrores da droga, sio ineficazes por induzirem a desmo- ralizasio dos servigos puiblicos pelos usuarios que conhe- cein os efeitos de diversas drogas e aqueles que sabem como controlélas socialmente. Além disso, ndo resolvem os pro- blemas da discriminaco contra os usuarios que, sentindo- se mais estigmatizados, tenderiam a fugir dos orgios encarregados da prevengio, A experiéncia destes, contu. do, tem sido importante meio de ajuda na prevengao, prin. cipalmente mediante conversas informais e palestras com 5 grupos mais afetados pelo uso abusivo das drogas. Assim, a discussio livre e aberta em varios féruns entre usudrios € nZo-usuirios, entre pesquisadores das cifncias a INTRODUGAO. a exatas e das humanas, sobre os efeitos farmacolégicos de diversos tipos de droga, assim como sobre a personalida- de ea saide mental do usuétio e o contexto social do uso da droga, parece ser a saida para os impasses ¢ desafios de uma nova conceituacio das substincias classificadas hoje como “drogas”. Esta abordagem tem 0 mérito de aprov. tar aexperifncia dos préprios usudrios, o seu saber adqui- rido sobre o1usoe os problemas do abuso. E ndo sed por falta de pessoal que se deixard de tentar esta saida BIBLIOGRAFIA DRUCKER, Emest. “Drug prohibition in America: a human sights perspective", in Drogues et droits de 'bomme. Ligue Suisse Des Droits de Homme, Genebra, 1992. EGO (Espoir Gotte d'Or). Developpement social du quartier de la ‘Goilte d'Or et prevention communantaire de Infection par le VIF. Paris, 1993, mimeo. JORGENS, Ralfe; GILMORE, N. e SOMMERVILLE, M, “Drugs and drug use”, in Drug use and human rights in Europe: Report for the European Commission, Urrecht, Faculty of Law, Utrecht ‘University, 1992. : LAVINE, Howard. “Remarks for mayor Kurt Schmoke’, in 4th international conference on the reduction of drug related barm. Roterdi, 1993, mimeo. : SILVIS, Jos. “The history of drug control with regard to human. rights", in Drug use and buman rights in Europe: Report for the European Commission. Utrecht, Faculty of Law, Utrecht University, 1992. 2 A DIMENSAO CULTURAL E POL{TICA DOS MUNDOS DAS DROGAS. Gilberto Velho I Faz parte do senso comum, especialmente na impren- sa, a nogio de um “mundo das drogas”. Gostaria, neste texto, de examinar algumas idéias associadas a essa pre~ missa, Nas ciéncias © conceito/nogio de mundo vin- cula-se principalmente 4s obras de George Simmel e Alfred Schutz, que sugeriram a possibilidade de classificar e identificar dominios da realidade que se distinguiriam mediante fronteiras sociolégicas e descontinuidades cul- turais.! Particularmente, no nosso caso da sociedade moderna-contemporinea 0 processo de complexificagio e diferenciagio tende a multiplicar espagos e dominios sociais ¢ simbélicos que denomiinamos genericamente de mundos. Assim, a existéncia de um “mundo das drogas” vincular-se-ia & observacio de redes sociais que organizam sua produsio, distribui¢ao e consumo, bem como a con- juntos de crencas, valores, estilos de vida e visGes de mun- do que expressariam modos particulares de construgio social da realidade. Embora seja possivel, em termos mui- to genéricos, estabelecer tal recorte, parece-me essen: caracterizar a heterogeneidade de um hipotético “mundo das drogas” dentro da amplitude da sociedade contempo- m DROGAS E CIDADANIA rinea, Isto aparece, por exemplo, quando pensamos em uma aldeia do altiplano boliviano, em traficantes interna. cionais de diversas procedéncias e em centros de consumo em cidades como Nova York, Paris ou Rio de Janei Dentro dessas grandes metrépoles, por sua vez, ident camsse variados grupos, categorias sociais e individuos que consomem drogas de modo diferenciado, Jé chamei a aten¢io em outras oportunidades: para a necessidade de relativizar e contextualizar 0 estudo do que se classifica de droga. “A prépria nogéo de téxico e o conceito de drogas so altamente problemiticos ¢, dependendo do critério ¢ da posigéo do investigador, podem abarcar des- de a heroina até 0 papo-de-anjo. (..) A contribuisio da antropologia para a compreensio desta problemética con- siste em mostrar como existem n maneiras de utilizar as substincias, em fungio de variéveis cultutais ¢ sociolégi- cas Estas nio sé se somtam, como complexificam as dis- ; ; i tngbes que postam sr regiradas a0 nivel da andlis Nio h4 como, por conseguinte, pressupor ee ma chamar de “mundo das drogas”, Tratase de nogio muito ampla, a partir da qual precisamos estabelecer dis- tingSes e particularidades. Essas diferencas, até certo pon- to, acompanham as fronteiras da estratiicagio cio. econdmica mais geral. Mas associam-se também a distin. tas orientacées e tradigbes culturais e As peculiaridades no consumo de drogas especificas como maconha, cocai- na, crack, écido, dlcool ete. Historicamente, por sua ver, a mesma droga pode apresentar usos e padres de consu. mo muito diferenciados. No caso brasileiro, 0 uso da maconha é exemplar em termos dessas transformagées. Tradicionalmente, esta droga foi consumida pot camadas populares em varias regides do Pals, tanto no campo como na cidade, E fendmeno muito recente 0 seu uso DIMENSAO CULTURAL E POLITICA 3s mais disseminado nos setores médios e elites. Este fend- meno s6 teve 0 seu inicio observado a partir da década de 60. Nas pesquisas que realizei durante 0s anos 70, registrei alguns depoimentos que explicavam a difusio da maconha pelos setores mais abonados mediante a sua introdugio por jovens norte-americanos, freqiientadores de elegantes clubes da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ou seja, dentro de um quadro geral de difusio de estilos de vida “contra-culturais” dos anos 60, veio também o hébi- to de fumar maconha. Rapidamente, ainda segundo esses depoimentos, estabeleceram-se selagdes entre os novos consumidores ¢ as tradicionais “bocas de fumo” dos mor ros cariocas. Por outro lado, é inegavel que ndo era uma completa novidade, mesmo para esses setores mais clitizados. Também encontrei pessoas que contavam que “turmas de rua” de Copacabana e Leme, ja nos anos 50, teriam tido acesso 3 maconha. Mas 0 fato mais signi- ficative em termos culturais foi, justamente, a utiliza- 40 da droga dentro de um conjunto de valores imbrica~ do a um estilo de vida alternativ6. Se na situagio ante- rior dos anos 50 fumar maconha poderia ser alternativa esporidica 20 consumo de bebidas alcodlicas, a partir dos anos 60 passa a expressar um significado diferente. Como se sabe, 0 movimento denominado de contrs- cultura caracterizavase por uma rejeigéo de um modo de vida convencional em que os valores familiares, edu- cacionais ¢ de trabalho eram duramente criticados, quan do ndo rejeitados em principio, Enfatizava-se, por outro lado, uma concepgio de mundo em que a liberdade amorosa, sexual, 0 comunitarismo, um certo tipo de hedonismo ¢ o descompromisso com objetivos materiais cram marcantes. Também no se tratava de um movi- mento homogéneo. Algumas de suas vertentes incorpora- vam a utilizagio regular do Acido lisérgico. De modo geral a misica era um elemento forte e constitutive do a DROGASE CIDADANIA Seu modo de vida, sempre enfatizando uma explicta d- Desejo frisar, portanto, nio sb a existénci jo frsar . ia de expt sean ies xd de pape estilo de vida, mas, principalmente, 2os miltiplos signi Gados atrbuidos& utilizasio das diferentes drogas. E fun, lamental compreender que o uso de drogas nao deve ser examinado isoladamente, Faz ij ; . Faz parte de um conjunto ao gut! pode estar integrado de modos distintos, Por meio a antropologia e da histéria, sabemos como diferentes cultura riaram um espago préprio para o consumo dos mais variados cipos de drogas, muitas vezes em contextos igiosos, em rituais e cerimbnias especificos. Registrar, f¢ diversos casos em que « droga é um veiculo prvilegis lo para a comunicasio com o mundo dos espirleas ¢ com absoluta clareza essa utilizagio,* Como observei no trabalho anteriormente ci no tral ado, * questio € que ao disseminar-se o uso de droges por dlfe FER'EE Segmemtos da sociedade, specificamente, em fami. lias de elites e camada média, criou-se situagio nova. Nao tudes ¢ comportamento dos filhos, netos, sobri soas préximas do mesmo segmento social. A. ae muito mais de uma mudanga global gue se manifesta em as dimens6es da vida, com conflito e desencontro dentro das familias e das escolas™ Portanto, ni estamos lando de uma fotiedade de pequena escals, tribal ou Siibontsa, mas de um mundo metropoticane na socieda de ial de grandes mimeros e extrema diversidade, Nesta, a negociasio da realidade, constitutiva de toda a Vida social, aparece com caréter parcicularmente drama, © em situagdes que ameacam fronteiras ¢ definiges mais estritas de comportamento e crengas mais enraizadas, DIMENSAO CULTURAL E POLITICA 2 U O relativismo cultural da antropologia, quando aplica- do a dreas de confronto e impasse, especialmente da socie- dade do investigador, traz, sem divida, problemas especificos. Insistimos que para a compreensio do fené- meno das drogas, assim como de qualquer outro, é paso indispensavel a sua contexwualizagao. Todas as tentativas de explicagdes genéricas, baseadas em premissas fisiolgi- cas e psicoldgicas, tenderam a ficar no nivel da rotulacio ¢ da estigmatizacio, Seria, por outro lado, ingénuo igno- rar que 0 uso de drogas por diferentes grupos s6 é possi- vel nas nossas circunstancias sécio-historicas, a partir da existéncia de redes nacionais e internacionais que expres- sam interesses politicos e econdmicos. Assim, o fendme- no cultural apresenta a sua inevitével dimensio de poder. Especificamente o trifico internacional de drogas mobili- za recursos ¢ atores que atuam de modo clandestino ou semiclandestino, constituindo-se em poderoso instru- mento de poder. Também nfo atua isoladamente, mas articula-se a outras atividades ilegais como trifico de armas, aparecendo, constantemente, misturado a negéci- 9s oficiais de exportagio e importagio. Sabe-se da fragili- - dade da fronteira entre atividades legais ¢ ilegais em varias Areas do comércio internacional, Como 0 tréfico de drogas é uma das atividades mais lucrativas de que se tem conhecimento, torna-se uma tentagio quase irresistivel para certos aplicadores de capital menos éti- cos, Esta é a principal razéo para as imensas dificulds- des de controlar a circulagio das drogas por meio de medidas policiais e repressivas em geral. Jé comesa a se disseminar pelos setores mais iluminados do aparelho legal a idéia de que a criminalizagio e perseguigio 20 mero usudrio constituem perda de tempo e de energia. Por outro lado, sabe-se cada vez. mais das conexdes entre % DROGASE CIDADANIA traficantes e poderosos setores das elites oficiais, tanto . A GUERRA As DROGAS n {adios ¢ a0 mesmo instante ele no & ele & contra os Indios, isso af eu digo, posso até dizer pra ele, a ele pode mandar me siatar, Se tem lei para matar o {ndio, se no tem, entio (..)" (CIMI, 50, pp. 9-10) Celestino teve a sorte de contar sua histéria a um interlocutor simpatizante dos indios, José Porfirio Fontenele de Carvalho. Ao assumir a chefia da Ajudancia de Barra do Corda no comego de 1978, Carvalho ficou profundamente chacado ao descobrir que a pritica de tortura fora autorizada por seu superior, coronel Arman- do Perfetti - um ex-oficial da Policia Militar sem nenhu- ma experiéncia de trabalho com indios, e cuja nomea- 40 como delegado da 6* Delegacia Regional da FUNAI fora resultado de favor politico em nivel estadual. Era de se esperar como conseqiéncia das indagagdes um caso exemplar de idealismo lutando contra o nepotismo € a corrup¢io. Mas atengio! O desenrolar da historia demonstra claramente como interesses escusos e obscuras maquinagdes conseguem perverter o curso normal da jus- tiga, cada vez que se trata do temivel assunto das drogas. ‘© testemunho de Celestino foi gravado no final de fevereiro de 1978. Em maio do mesmo ano, sr. Mourao, chefe do Posto Indigena Bacurizinho, finalmente concor- dou em fazer uma declarag$o sobre o seu envolvimento no caso do indio Djalma Guajajara: “(..) com relacio a maus-tratos aos indios, tenho a informar que cheguei a presenciar, quando 0 indio Djalma Guajajara estava sen- do interrogado dentro do acampamento do BEC em Grajati, o Dr. Nazareno (segundo ele identificava-se) apli- carthe dois tapas, com as mfos abertas, nos ouvidos do indio Djalma Guajajara. Como nao aprovava as atitudes agressivas contra o indio, retii 1¢ do local no sabendo. ‘0 que ocorreu depois. Explico ainda que a pessoa que se dizia chamar Dr. Nazareno dizia-se pertencer & Policia 7” DROGAS E CIDADANIA Federal e chefiava a equipe em operagio em Grajai” (CIMI, 50, p. 1). Teria sido suficiente perguntar 20 préprio Djalma sobre as torturas que sofreu, mas aparentemente o sr, Mourio nio fez. isso, nem se preocupou em apurar qual. quer informagio sobre © assunto até ser interrogado, qua- se um ano depois, por Porfirio Carvalho. Ja por essa época, Carvalho tivera a oportunidade de sentir na pele as Press6es ¢ as arbitrariedades da Policia Federal, ao tentar sem éxito convencer 0 comandante da Operagio Maco- nha de 1978 dos efeitos nefastos de sua atuacdo sobre as, conturbadas relagées inter-¢tnicas na regiio. A documen- tagio de Carvalho, justamente com o depoimento de Celestino e 0 relatério do indigenista Elomar Gerhardt denunciando a atuagio dos agentes federais dentro das areas indigenas, foi enviada primeiro & delegacia em So Luis e depois a sede da FUNAI em Brasilia, A Polt- cia Federal passou entdo a hostilizar os funciondrios da FUNAI em Barra do Corda, tentando em repetidas ocasides provar que eram eles os grandes traficantes que se beneficiavam da produgio de maconha dos indios. O préprio coronel Armando Perfetti reagiu as acusagdes de tolerar a tortura de indios com a fria declaracio de que no conhecia nenhum individuo chamado Celestino Guajajara. Seu nome finalmente ganhou as manchetes quando insinuou que as acusagdes que Ihe eram feitas par- tiam de traficantes de maconha ataantes no interior do Maranhio (EMa 24.08.78). A prépria comissio de inquérito da FUNAI - obvi mente pressionada pela Policia Federal em Brasilia ~ con- cluiu cinicamente pela improcedancia das acusagdes contra a8 autoridades, isentando de culpa o delegado Perfetti e punindo Carvalho e outros dois indigenistas pela divulgacio de documentos oficiais (ESP 10.10.78). Uma semana mais tarde, o préprio Celestino chegou a AGUERRA AS DROGAS ~ Brasilia e, na companhia de varios chefes tenetcharas, repetiu suas dentincias 20 entio presidente da FUNAI, general Ismarh de Araijo Oliveira. Celestino também foi recebido pela cipula do CIMI e concedeu algumas entrevistas a jornais (ESP 18.10.78). Sua intervengao sus- tow a punicéo a Carvalho e aos outros indigenistas, mas mesmo assim 0 delegado Perfetti continuov no cargo, s6 sendo demitido um ano mais tarde, quando foram com- provados sua anuéncia e seu direto envolvimento em varios casos de invasio e usurpacio de terras nas reser- vas indigenas. Como era de se esperar, as investigagdes realizadas pelo delegado de Ordem Politica e Social do DPF para apurar as dentincias de tortusa também deci- diram - apds um ano de demorados iaquéritos - pela “improcedéncia da deniincia”, devido a0 fato de que Celestino estava encapuzado na ocasifo, ficando portanto impossibilitado de identificar seus torturadores (ESP 22.0679). E dificil acreditar que 0 caso de Celestino Guajajara tenha sido apenas um acidente hist6rico, um aconte- cimento limitado a uma determinada época, quando 0 emprego da tortura ainda continuava em voga nos Srgios policiais. Reportagens esporddicas do interior do Mara- nhio descrevem a repeticao, a cada ano, das tristemente célebres Operagdes Maconha, uma rotina no calendétio da Policia Federal no periodo de abril a julho. Pior ainda, a violéncia fisica contra indigenas ¢ outros pequenos pro: dutoses da regio jé deixou de ser noticia, e faltam funcio- narios de estatura e da coragem de um Porfirio Carvalho para denunciar os abusos praticados em nome da repres- sio As drogas. Existe uma clara légica neste cendrio de indiferenga, pois a politizagdo da questi das drogas avanga inexoravelmente com a contratagio dos agentes do extinto DOPS para as delegacias estaduais de entor- pecentes, e com 2 monopolizasio da repressio poll- ” DROGAS E CIDADANIA tica nas mos da mesma Policia Federal, que tanto tem-se distinguido na luta por controlar 0 tréfica. Que este con- trole tem-se colocado 3s ordens das grandes mafias inter- nacionais ~ como no caso da corrup¢io comprovada do Superintendente Regional do DPF no Amazonas, Ivo Americano - ou que 0 excesso de zelo repressive comti- nua dando margem 3 tortura com pancadas e choques elé- tricos (conforme foi denunciado pelo cantor portugués Sergio Godinho em dezembro de 1982, no Rio de Janei- 10), nada disso parece alterar a légica cega da campanha de vitimizaso dos usudrios de drogas, assim como no tem levado a nenhum questionamento fundamental da forma pela qual a nossa sociedade encara a questZo do abuso de tais substincias. ; No fundo, néo se procura solucionar um problema de satide publica, e sim assegurar a representagfo de uma “verdade” cientifica, monolitica e intolerante, que 20 mesmo tempo reflete ¢ justifica © autoritarismo da estra- tura politica no plano maior. Numa época em que o pre- sidente dos Estados Unidos dedica grande parte de sua visita a0 Brasil a insistir na necessidade de uma guerra sem quartel Ss drogas, numa década em que a infiltrapo de agentes da Drugs Enforcement Administration (DEA) norte-americana continua subvertendo os aparelhos esta- tais em toda a América Latina, nfo é de se esperar muito Tespeito ao direito anacrénico dos indios de comtinuarem desfrutando do seu patriménio cultural, Afinal de contas, na heréica luta contra a “erva assassina”, pequenos deta- Ihes como os direitos humanos de um grupo de indios podem ser pisoteados sem preocupacto alguma. & u desservico que rendemos a nés mesmos, pois, ao rotular 8 fndios tenetehara como meros “maconheiros”, perde, mos a oportunidade de aprender uma ligio sobre 0 uso \ adequado desta planta, de inestimivel valor para a nossa civilizagio. AGUERRA AS DROGAS * BIBLIOGRAFIA ‘CIMT ~ Boletim do Conselho Indigenista Missiondvio, Brasilia, CB - Correio Brasiliense, Brasilia. 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Os indios traficarem drogas poderio, ‘em tém tido um tratamento especial is izados em relago 20 problema, 0 que penalmente, ou seja, presos, tem estimulado traficantes a lhes segundo ecisio vomada ontem. proporcionar sementes ¢ recur pelo Conselho Federal de Entor- sos para plantio, voltando 4s pecentes (Confer), depois de tribos apés a colheita e compran- uma palestra e discusses com 0 do toda a produsZo para venda. presidente da Funai, Coronel As informagdes foram dadas Paulo Leal. Aos juizes, no ontem A tarde pelo presidente do entanto, seri recomendada a Gonfen, Arthur Castilho, ressal- aplicagio atenusda das penas wanda que ‘dentro do aspecto previstas na lei antitéxicos, de cultural, o consumo de determi- acordo com_o que prevé o nadas substincias utilizadas em Estatuto do {ndio, inclusive 0 rituais, geralmente de cunho cumprimento da pena em regime religioso, mistico, nfo éum {ator de semiliberdade, em estabeleci- de desagregagio da comunidade’. ‘mento da Funai. Observou, no entaato, que este ‘Esta decisio deve-se ao aumento consumo eventualmente deve significativo do cultivo, uso e ocorrer dentro de rituais e oca- comertializagio de maconha por ses especificas, de acordo com {ndios, priacipalmente no Mara- determinadas regras culturais nfo, em comunidades onde 0 proprias de cada comnidade em, uso desta droga nio fazia parte de que se evita, inclusive, a utiliza: suas culturas, tendo sido intro- ¢fo por parte das criansas. Um dia depois a Folha de S; Paulo (07.05.83) publicou 0 seguinte desmentido: Funai nao reprimird os indios por uso de drogas © presidente da Funai, coronel_ “A operasio contra as drogas, Paulo Moreira Leal, garantiu entre elas 0 epadu (coca) ¢ a ontem que a asio repressiva maconha, se dirige aos nio- contra o uso de alucindgenos Indios que extio wsando o$ grt nfo seri estendida aos indios. pos indigenas na comercializa- ” DROGASE CIDADANIA comunidades, evitando-se 0 co- mércio, Entre as comunidades indigenas que fazem uso de -agas encontramse as Gi jaras no Maranhio, os Maco, Tueuna e Tucano, 20 Amazo- nas, © © presideme da Funai reconhece 0 fato de que estes grupos indigenas usam aluci- ndgenos ‘apenas em rituais’ ‘A Funai, informou 0 coronel Leal, j4 eacaminhou amostras ddas ervas uiilizadas pelos indios para a Central de Medicamen- ‘tos a fim de que sejam feitos estudos sobre 0 uso medicinal dessas ervas. gfe das deoges” - afirmou 0 coronel Leal Disse ele ainda que, na cam- parka de Gscalizasio contra a comercializagio das drogas plan- tadas pelos indios, a Funai "con- ta com total apoio da Policia Federal. Nio podemos repri- mit 05 {odios, pois 0 uso de alguns alycindgenos é cultural. © imporvante agora é coibir ‘musmo perseguir os brancos que se aproveitam deste trago cul- tual’. Para 0 cotonel Leal, o dificil nessa operacio & determinar 0 limite das plantagSes para as Finalmente, O Estado de S. Paulo (10.05.83) se viu na obrigacho de corrigir sua versio original, mediante uma diminura nota: Funai néo pune téxico @ presidente do Conselho Fe- deral de Entorpecentes, Arthur Castitho, negou ontem em Bev silia que o rgSo tenha deter- minado a repressfo 20 consumo de maconha nas comunidades indigenat: “Em nenhum momen to afirmou-se que a Funai iria punir {adios por isso, mesmo porque a compettacia paca a repressio aos tbxicos é da Policia Federal ¢, segundo estudos da Fundaslo, a maconha nfo faz parce da cultura indigena”. Quais sio as principais divides suscitadas por uma lei- ura atemta destes textos? Além das referéncias de praxe aos “rituais", misticos ou no, que estariam orientando o taso de drogas entre as populagées indigenas do Pais, ob- serva-se, em primeito lugar, uma clara discordancia entre A GUERRA ASDROGAS ” o presidente da FUNAI ¢ o presidente do CONFEN sobre o status cultural do uso da maconha entre os indios do Maranhio. Se o primeito considera que “ndo podemos reprimir os indios, pois 0 uso de alguns alucindgenos é cultural” (note-se de passage que nenhuma das duas plantas citadas, nem maconha nem coca, é propriamente um “alucindgeno”), esta posicio se vé abertamente con- testada pelo presidente do CONFEN, com base em dados apresentados pela propria FUNAI: “(..) segundo estudos da Fundag#o, a maconha nio faz parte da cultura indigena”. Sera que 0s presidentes dos dois Srgios federais envol- vidos nessa questio nZo puderam chegar, mesmo apés longas discusses @ portas fechadas, a um acordo sobre a interpretacao dos dados etnogréficos? Nao é possivel que a confusio em torno desta interpretacdo se deva, antes de mais nada, a uma certa confusio também no préprio levantamento dos dados em questio? Enfim, cabe & comunidade cientifica questionar a objetividade e a com- peténcia dos citados “estudos da Fundacio”, especial- mente se tais estudos, 40 serem examinados em detalhe, nada descrevem além de vagos, indefinidos e mistificantes “citvais” e “regras culturais”. ‘Como ja demonstrei no texto principal deste traba- Tho, é muito dificil definir exatamente o que é “ritual” ov “regra” no uso tenetehara da maconha. Se ritual é obser- ‘var wma certa concentragio no ato de fumar, uma reci- procidade nas trocas de baseado com parentes ¢ afins, € um tipo de comportamento padronizado nos gestos e nas, expresses, os tenetchara praticam “ritusis” ao consumir a maconha. Agora, se em vee do carater difuso, ambiguo ¢ espontineo das priticas tenereharas se vé, nas palavras do presidente do CONFEN, “regras culturais” que evi- tam “a utilizagio por parte das criangas”, é de se colocar uma interrogago fundamental. 8 DROGAS £ CIDADANIA De acorde com a minha experiéncia entre os tene- tehara, os meninos comegam 4 puxar fuma na mesma idade em que se iniciam no uso do tabaco também. Isso ‘corre, em geral, na fase p6s-infantil mas préadolescente, ou seja, entre os seis ¢ os dez anos. O pouco acesso des- ses meninos 4 maconha ~ eu no diria que eles fumam o dia todo, nem mesmo todo dia - nio é determinado por moralismos paternos, mas pelo simples fato de no dis- porem de plantacdes proprias, e de serem os ultimos na hierarquia masculina que prevalece na roda dos furnantes. Por esta razdo, € justamente 0 pai, ou possi- vyelmente um “padrinho” in loco parentis, que pode inver- ter a hierarquia ¢ oferecer o baseado a seu filho, antes de passélo aos outros homens adultos, Sem diwvida esta ati- tude paterna, determinads por um real respeito entre as geragdes, assim como pela falta de autoritarismo no pro- cesso educativo, ter’ pouca acolhida entre os pais “civili- os acostumados a tratar o assunto através do meda e negagio. Por outro lado, é de se indagar também a origem ea veracidade da informagio sobre 0 “aumento significativo do cultivo, uso e comercializacso de maconha por indios, principalmente do Maranhio, em comunidades onde 0 uso dessa planta no fazia parte de suas culturas”, Nao é possivel que esta constatagio se inspire em novas mano- bras de certos elementos na Policia Federal, interessados tanto em aumentar o raio e a impunidade de sua atuac3o, como em desviar as atengGes de sua evidente incapacidade de atuar contra 0s grandes traficantes no Maranhio? Com 0 “total apoio” da Policia Federal citado pelo presiden- te da FUNAS, pode-se contar com uma crescente ativi- dade repressiva nas reas indigenas, impressio confir- mada por uma leitura atenta das sinistras palavras do presidente do CONFEN: “Em nenhum momento afir- mou-se que a FUNAI iria punir indios por isso, mesmo AGUERRA AS DROGAS a porque a competéncia para a repressio aos téxicos é da Policia Federal (..)”. Ao analisar os discursos das diferentes autoridades envolvidas, chega-se 4 impressio de que em breve vere- mos multiplicarem-se os casos de abusos, espancamentos, e torturas aos indios que utilizam maconha, coca, ou qualquer outra substancia considerada “alucindgena”, “téxica”, ou “entorpecente”. Sem divida, espera-se em cdrculos oficiais que os resultados dessas campanhas aca- bem confirmando a tese da “nao-indianidade” do consu- mo das drogas vegetais, ¢ que efecivamente 0 uso de tais substincias deixe de fazer parte da cultura indigena, Ao desenvolver uma politica dessa natureza, o Estado brasi- leiro dé renovadas provas de sua clara vocagio etnocida — agora, porém, justificada perante a opinido piiblica em termos da guerra contra as drogas. O resultado de tal obs- curantismo seré 0 empobrecimento nio s6 da cultura indigena, mas da cultura brasileira como um todo, priva- dado exemplo de uma relaco sadia com a flora psicotré- pica do Pats. O CONSUMO DE ALCOOL NO Pais* Barbara Musumeci © alcool ocupa, n0 Brasil, o primeito lugar na escala de consumo de substncias psicoativas, licitas ou ilfcitas, seguido a distincia por tabaco, inalantes, medicamen- tos psicotrdpicos, maconha e cocaina, respectivamente (Bucher e Tortugui, 1987; Carlini et al., 1990). Nio obstante a controvérsia em torno dos critérios para a defi- nigio do alcoolismo e deteccdo do némero de alcodfatras, estima-se uma prevaléncia de alcoolistas variando entre 3 e 10% da populagao adulta, na razao de sete homens para cada mulher. Enquanto 84% dos brasileiros mencionam 0 uso ocasional de bebidas, 21% relatam consumo didrio de Alcool e 19% admitem a embriaguez semanal (Santana ¢ Almeida Filho, 1990). Utilizando 0 método CAGE, que consiste na aplicagdo de quatro perguntas bésicas em torno do alcoolismo, a Pesquisa Nacional sobre Saiide e NutricSo, realizada pelo IBGE em 1989, forneceu os seguintes dados: consideran- do-se a populagdo acima dos cinco anos, o ntimero de * Ente texto foi publicado, originalmente, em versio condenssda, na série ‘Fotha de Dados", editada pelo Nicleo de Pesquisa do ISER, em dezembro de 1992, ™ DROGAS E CDADANIA alcoolistas situase na faixa dos 4%, atingindo 7% dos homens e 1% das mulheres. A mesma proporgio de 1% se mantém, com respeito as mulheres tanto na regio urba- na como rural, revelando-se, todavia, um aumento de 0,6% nos {ndices de alcoolismo masculino encontrados na drea rural, Ainda segundo o IBGE, a faixa etdria entre 30 49 anos aquela que, proporcionalmente, concentra o maior nuimero de alcoolistas de ambos os géneros. Realizadas em 1987 e 1989, em dez capitais brasileiras, junto aos alunos da rede oficial, pesquisas comparativas demonstram ainda um crescimento no consumo de bebi- das alcodficas, assim como do tabaco, medicaments e outras substAncias psicoativas (Carlini et al., 1989; 1990). Confirmam tatnbém a predominincia do uso do alcool que, diferentemente das outras drogas, representa um fa- tor de impacto no Ambito da saiide coletiva. Dados referentes a 1987 apontam a ocupagao de 32% dos leitos hospitalares e a utilizagao de 40% das consultas médico-psiquidtricas como conseqiiéncia do abuso do Alcool, atribuindo ao alcoolismo a oitava causa de auxilio- doenga na Previdéncia Social e a terceira causa de absen- teismo no Pais, Cerca de 75% dos acidentes de transito fatais, no Brasil, e 39% das ocorréncias policiais estao relacionados 20 uso do Alcool, enquanto os custos econd- micos, decorrentes direta ou indiretamente do abuso do alcool, situam-se na ordem de 5,4% do Produto Interno Bruto (Bertolote, 1990). : ‘Lamentavelmente, o numero de_ pesquisa epidemiologi- cas, clinicas e farmacolégicas desenvolvidas no Brasil ain- da é muito pequeno. Da mesma forma, sio praticamente inexistentes, nesta rea, os estudos de cariter sécio-antro- poldgico, cuja importincia vem sendo ressaltada pelos orga- nismos encarregados da politica nacional relativa 4 depen- déncia quimica. Além disso, as poucas pesquisas em que se apdiam os programas e as politicas de preven¢30 do alcoo- © CONSUMO DE ALCOOL 8 Tismo e da drogadigio no mereceram o incentivo necessi- rio para que tivessem continuidade nos ultimos anos. Antecedentes Histéricos Desde a primeira década deste século, os indices de alcoolismo no Brasil j4 eram considerados alarmantes, a despeito da precariedade das pesquisas existentes. Em funsio disso, foram elaboradas diversas propostas e proje- tos antialcodlicos que, entretanto, no chegaram jamais a entrar em vigor. Documentos elaborados por médicos juristas denunciavam a inércia dos governos frente 20 que se considerava um dos maiores flagelos da humanidade, atribuindo-a ao poder econdmico ¢ eleitoral das industri- as de bebidas (Moraes, 1921; Jaguaribe, 1917; Liga Bras. de Hygiene Mental, 1932). A queixa freqiiente contra a imobilidade do Executive e do Legislative e contra o despreparo da populacio, insensivel ao tema, constituiv, assim, o pano de fundo do combate 20 alcoolisno no Brasil, convertendo a educago antialcodlica no mecanis- mo privilegiado de luta contra o mal etilico. Ainda que a aboligio completa do consumo de bebidas fosse muitas vezes almejada, os projetos apresentados a exa- me limitaram-se a medidas restritivas, tais como: a sobre- taxacio das bebidas; o incentivo 4 produgio de 4lcool com- bustivel; o controle estatal dos dias, horarios ¢ locais de venda e consumo de bebidas; a limitacio da propaganda alcodlica; a obrigatoriedade do ensino antialcodlico nas escolas, cursos e quartéis; a punig¢$o com multas e/ou prisio para os alcodlatras infratores e, finalmente, a cria- 40 de asilos especiais para a internagio e recuperagio dos inebriados. A tinica excegio a esse conjunto de propos- tas regulatérias foi o frustrado projeto de Afranio Peixoto que, em 1925, postulou a proibigio completa da fabrica- % DROGAS E CIDADANIA do, venda ¢ consumo etflico, sem ter conseguido, no entanto, o niimero minimo de assinaturas para tornélo digno de apreciagao por pare do Legislative. ‘Para enfrentar o problema do alcoolismo, que se supu- nha menosprezado pelo Estado, constituiram-se socieda- des de cardter privado, como a Liga Antialcoélica de Sao Paulo, que mantinha um dispensirio para tratamento dos alcoolistas por meio da hipnose, ¢ a Liga Paulista de Profilaxia Moral e Sanitaria, destinada ao tratamento de sifiliticos e alcoolistas pobres. Embora contemplando interesses mais amplos, a Liga Brasileira de Hygiene Men- tal também teve atuagdo destacada neste campo, realizan- do congressos, promovendo encontros ¢ enviando pro- jetos antialcodlicos 40s poderes competentes. Em 1925, instala-se no Pals a Unido Brasileira Pré- ‘Temperanga (ramificagio da World’s Women’s Christian Temperance Union), que foi capaz de implementar, na pritica, algumas medidas jamais alcancadas pelas vias ofi- . Em pouco tempo, a Unido Pré-Temperanga ja reu- nia filiais em diferentes estados e iniciava um trabalho amplo e sistemético de natureza pedagogica, além de ins- tituir e tornar tradicional a comemoragio da semana antialcoélica no Pais. Como reconhecimento por sua vas- ta atuago contra as bebidas alcodlicas, a coca, 0 épio, a morfina, © famo e contra os jogos lotéricos, essa socieda- de, composta exclusivamente por mulheres, recebe, em 1950, o titulo de instituiga0 de utilidade publica (Unido Brasileira Pré-Temperanga, 1950). Aspectos Legais Do ponto de vista legal, este somatério de esforgos de \_ senvolvidos por ligas e sociedades temperantes teve, no entanto, Uma repercussio pouco significativa. Em 1930, OCONSUMO DE ALCOOL, "7 apés 0 arquivamento de diversas propostas ¢ representa- 60s, © presidente da Camara chega a nomear uma comis- sio para estudar os caminhos legais de combate 20 alcoo- lismo no Brasil, mas a conclusio dos trabalhos sugere a inexisténcia de ambiente moral ¢ de condigdes materiais para a aplicagdo da lei seca no Pals. (Peixoto, 1930). A comissio elabora, entio, um projeto de lei, reunindo as diversas medidas restritivas contidas nas propostas ante- riores. Seu destino ser, porém, 0 mesmo dessas propos- tas e de tantas outras defendidas posterior mente, que ter- minaram arquivadas ou tornaram-se letra morta. Jia legislacio penal brasileira ocupou-se de forma superficial e, muitas vezes, ambigua dos problemas relati- vos 20 dlcool, ao longo deste século, O Cédigo Penal de 1890 determinava a pena de prisio celular, por quinze a trinta dias, para quem se embriagasse por habito ou se apresentasse em ptiblico em estado de embriaguez mani- festa. Considerava inimputdveis os que se encontrassemn sob privagio de sentidos e de inteligéncia, mas nao fazia mengo explicita, nesse item, aos casos de embriaguez. O Cédigo Penal de 1940, que o sucedeu, também penalizava a embriaguez pré-ordenada, mas jé autorizava explicita- mente a isencdo de pena para crime cometido em estado. de embriaguez plena e acidental, devido a caso fortuito ou forca maior, resultando em privagdo da capacidade de entendimento ou de livre determinagio. Excetuando-se a legislagio relativa aos critérios para produgio e comercializacdo, que apenas restringe a venda de bebidas a menores (artigo 63 da Lei de Contravencio), a legislago sobre Alcool no Brasil é, ainda hoje, conside- ravelmente inexpressiva. Alguma mengio 4 embriaguez, no que se refere A imputabilidade, pode ser encontrada no Cédigo Penal vigente que, como seu antecessor, de 1940, considera atenuante a embriaguez completa prove- niente de caso fortuito ov forga maior. A pena, nestas w DROGASE CIDADANIA circunstincias, pode ser reduzida de um a dois tercos, ao contrério do que acontece no caso de embriaguez valun- ‘ria ou culposa, que nao exclui a imputabilidade penal, Por sua vez, a Lei de Contravencio penaliza, atualmen- te, 0 agente embriagado, se ele causar escindalo ou colo- car em perigo a propria seguranca ou a vida de alguém, determinando sua internasio, quando constatada embri- aguez habitual (artigo 62). : ‘Quando se considera a austncia de legislagdo restritiva a0 consumo de bebidas alcodlicas, percebe-se que a passi- vidade governamental combatida pelos militantes amti- alcodlicos, no inicio do século, contribuiu de forma signi- ficativa para que o Brasil mantivesse, ainda hoje, uma postura francamente liberal em {ace do Alcool. Paradoxal- mente, verifica-se que 0 liberalismo relativo 20 uso do Alcool contrasta com a abordagem punitiva e repressiva que caracteriza a lei de téxicos em vigor, ainda que o im- pacto do consumo de drogas ilicitas sobre a saiide coletiva seja, no Brasil, incomparavelmente menor do que aquele provocado pelo leool, Medidas Politicas de Combate ao Alcoolismo © Conselho Federal de Entorpecentes ~ CONFEN -, vinculado a0 Ministério da Justiga, é 0 drgio incurnbido, nacionalmente, de trasar as politicas relativas a0 uso indevido de drogas. Embora contaminado, freqiiente- mente, por interesses politicas ¢ por embaragos técnicos © administrativos, o CONFEN tem procurado definir uma, politica nacional voltada néo apenas para o enfren tamento do problema do wréfico, mas dedicada, igualmen te, a combater o abuso de substancias psicoativas licitas, ou icitas, Segundo documento publicado em 1988, no (© CONSUMO DE ALCOOL ” ual define as metas ¢ 3s concepgées que 2s orientam, 0 (ONFEN defende a adogdo de uma postura preventiva e veraptutica, centrada no individuo e em suas motivacdes (e nio na propria droga), enfatizando a importincia da proterio social que o Estado deve oferecer ao cidadao. ‘Com este intuito, pretende coibir o uso abusivo ou inade- quado das substancias ilicitas, assim como daquelas consumidas legalmente, atuando, para isso, junto aos pro- fissionais da sade, aos fabsicantes ¢ comerciantes, além de buscar transmitir, a0 usudsio, as informagbes correras sobre os efeitos danosos, decorrentes do uso indiscriminado de tais substancias (CONFEN, 1988). ‘O CONFEN opée-se 3 liberalizasio de qualquer droga capaz de afecar o psiquismo humano e procura atuar jun- to ads governos, entidades, institui¢des, universidades e associagées, na busca da integras3o programitica operacional ‘das atividades de prevengdo e recuperacio dos dependentes de drogas. Considera estes ultimos como doentes, “merecedores de uma atengio eficaz e nio estigmatizante por parte do Sistema de Satide”, o que 0 Jeva a propor uma diferenciagio entre o utilizador, utilizador-traficante, 0 traficante eo produtor, Do ponto de vista da prevengio e da terapbutic, tl distingdo per mite, por outro lado, a identificacio entre a figura do alcoolista ¢ a do uswirio de drogas ilicitas, Em junho do corrente ano, 0 CONFEN apravau os termos da Politica Nacional de Drogas, incluindo 0 Alco! ‘entre as drogas merecedoras de atengio. Por levar em con- ta os efeitos secundérios decorrentes do uso das substinci- as psicoativas, “aqueles originérios de juizos prévios, da ignorincia ow da intolerancia, que conduzem ao estigma e 4 marginalizagio”, a PND pretende contemplar tanto a prevengio primaria como a secundaria e a tercidria, alme- jando a reinserpio social do dependente. A PND propée, ainda, que os programas de prevengio se desenvolvam es- 50 DROGAS E CIDADANIA pecialmente junto & crianga e a0 adolescente, na escola, na familia e na comunidade e que o Estado intervenha, com seu “poder de policia’, para coibir 0 uso de drogas lictas, segundo as sangGes especificas previstas na lei, ‘O CONFEN elaboron e vem submetendo 4 discussig © ‘um anteprojeto de lei, substitutivo do artigo 16 da lei n® 6368, em vigor, que dispde sobre a prevensio do uso indevido de drogas. Este anteprojeto visa a “desin. criminagfo” do usudsio de drogas e apenas prevé sangies Gplicéveis, simultaneamente, a¢ consumidor de drogas iMbitas © 20s que se apresentarem em estado de embria- guez), tais como: a suspensio da licenca para conduzir veiculos ou para portar armas, o pagamento de multase a suspensio da licenga de permanéncia no Pais, para estran- geiros. A hipétese penal é aventada somente em casos de resistencia, desobediéncia ou desacato 4 amtoridade encar- regada de apreenséo da substincia considerada ilegal (CONEEN, 1992), A lei n® 6368 tem motivado intenso debate, tanto por criminalizar o usuario de drogas, sujeito 3 detengdo de seis meses a dois anos, quanto pelo fato de desconsiderar ‘0s alcoolistas, assim que se destine nominalmente aos usudrios de substdncias entorpecentes que determinem de- pendéncia fisica ou psiquica. Esta omissio se torna particu- Jarmente problemitica quando considerada a tendéncia atual de enfatizar a dependéncia quimica, focalizando pri- mordialmente © individuo em detrimento da substancia consumida, Além do programa do CONFEN, a CORSAM, Coot denagio de Saiide Mental do Ministério da Sade, criou, em 1990, um servico especifico para a “Aten¢ao a0 Alcod- lismo e A Drogadigao”, ¢ elaborou um plano giiingiienal de atividades no campo das dependéncias quimicas, exch indo desse plano apenas o tabaco. Entre as prioridades estabelecidas pelo Comité Assessor da CORSAM para 0 OCONSIMODE ALCOOL ” Programa Nacional de Controle do Abuso de Alcool e Outras Drogas, destaca-se a andlise da legislacio em vigor, sabre dlcool e drogas, ¢ das prapostas de alteracio existentes, cujos resultados, sob a forma de pareceres, s40 encaminhados pela CORSAM 20 Congresso Nacional (ABEAD, 1992). Evolugao do Conceito Ao longo deste século, o conceito de alcoolismo foi se desvinculando da esfera moral em que esteve imerso para inserever-se, gradualmente, no terreno das patologias. A nogio de que o alcoolisma constituia uma doenga expres- sou-se, inicialmente, mediante uma énfase nos aspectos fisiol6gicos do problema, embora até meados deste sécu- Io, salvo excegbes, a abordagem medicalizante tenha se limitado aos efeitos resultantes da ingestio de bebidas alcodlicas. Posteriormente, 0 conceito de alcoolismo des- tacou-se da idéia de deterioragio crdnica do organismo, situando-se no ambito da dependéncia, o que significa que a definigao do alcoolismo passou a privilegiar os padrdes de consumo de Alcool, em vez. dos resultados da ingestio excessiva do etanol Engel, 1977). Essa tendéncia encontrou expressio na década de 40, nos trabalhos de F. M. Jellineck, considerados marcos fundamentais para 0 desenvolvimento do conceito. Ao instituir uma classificagio dos tipos de bebedores, esse autor teria dado infcio & moderna conceituagio do pro- blema, em que pesem as criticas e revisdes por que passou sua tipologia. ‘io obstante as diferencas que se ocultam sob 0 rotulo “doenga” ea dificuldade em definir os limites da aplicabili dade desse conceito na esfera do alcoolismo, existe, hoje, um razoivel consenso em relagio ao fato de ele circuns- 92 DROGAS E CIDADANIA crever uma patologia das formas de consumo alcoslico, além das perturbagées orginicas descritas tradicionalmen- te. A idéia de alcoolismo como doenga focaliza, basica- mente, a incapacidade ou dificuldade do bebedor em controlar o montante de bebida ingerida, o que é determi- nado e determina, por sus vez, uma série de disfungSes de navareza bioldgica, psicolégica e social. Posteriormente, servindo de suporte as criticas diri- gidas a0 modelo de Jellineck, diversas pesquisas contri- buteam para a desubstancializagao do conceito de alcoo- lismo, apoiado até entao na suposigfo de um desen- volvimento estavel e regular da “doenga”. Em face da instabilidade dos padrées de consumo detectada por tas pesquisas e frente & utultiplicidade de respostas ~ bio- Veen, sicolégicas € culturais - 2 ingestéo do alcool, “lcovlisme vem sendo definido como uma sindro- me (ADS ~ Alcohol Dependence Syndrom) e inserido num continuum varidvel, no interior do qual diluem-se as demarcag6es rigorosas entre o alcodlatra e 0 nio-alcoéla- tra (Clark, 1991). ‘Ancoradas na suposigio da existéncia de determinantes bioquimicos no desenvolvimento do alcoolismo, as hipé- teses substancialistas vém sendo também contestadas por pesquisas que revelam a importincia do fator expectativa na conformagio dos efeitos experimentados pela ingestio do dlcool. Diversos autores apontam, dessa forma, a intervenincia de estimulos ambientais e cognitivos no processo de desenvolvimento da chamada compulsio alcoélica (Masur, 1988) e alguns propdem a substitui¢o do termo “perda do controte” sobre a bebida por “contro- le prejudicado”, acentuando, com isso, 0 viés relativizante do conceito (Clark, 1991). Caracteristicas genéticas indicam capacidades diferenci- adas de metabolizagio do dleool, determinando variagées potenciais no consumo, que so consideradas fatores de t | © CONSUMO DE ALCOOL ” vulnerabilidade a0 alcoolismo. Apesar disso, evita-se falar em predisposi¢ao orginica, pois as condigdes bioldgicas apenas ampliam as possibilidades de desenvolvimento do alcoolismo, sem, no entamo, determinilo (idem). A hipétese etiolégica de maior aceitacio, hoje, remete & interagio de miltiplas causas, levando os protissionais e extudiosos do tema a enfatizar 0 aspecto da dependéncia ¢ a utilizar 0 conceito de “sindrome biopsicossocial”. Esta é, por exemplo, a perspectiva da décima e dltima Classific capo Internacional de Doengis (CID 10), produzida pela Organizagio Mundial de Saéde, que define o alcoolismo por meio do conceito de “sindrome de dependéncia”, incorporando-o a0 universo da drogadigio. Recursos Preventivos e Terapéuticos Enquanto alguns programas de prevensio e/ou trata- mento se ocupam exclusivamente do alcoolismo, parte dos projetos se volta para 0 uso indevido do dlcaal e de outras drogas, considerado como um sé problema a exi- gir agdes e politicas integradas, No Ambito da iniciativa privada, destaca-se 0 trabalho dos Alcodlicos Andnimos, uma organizagio de auto- ajuda, composta exclusivamente de ex-bebedores, funda- da em 1935, nos Estados Unidos, e disseminada, atual- mente, por quase todos 0s paises do mundo. Servindo de modelo para organizagdes congéneres, os A.A. merece- ram, por sua reconhecida eficicia, a aprovagio generaliza- da dos profissionais envolvidos no combate 10 alcoo- lismo, e das organizagées internacionais que atuam no Ambito da sade. ido os cilculos da prépria irmandade, relativos a0 ano de 1990, estima-se em 1,8 milhio o nimero de membros da Aleodlicos Anénimes em todo o planeta o DROGASE CIDADANIA (CLAAB, 1990). Dados de 1986 situam 0 Brasil como o terceiro pais em nimero de participantes, precedido, nes- ta escala, apenas por Estados Unidos e México (Makela, 1991). Instalados no Brasil desde 1947, 0s A.A. contam, nacionalmente, com a participagdo de mais de 75 mil membros distribufdos em cerca de 5 mil grupos pelas diversas regiGes do Pais (A.A-/comunicagio oral). © método empregado pelos A.A. baseiase num siste. ma interacional, fundamentado em doze passos e doze tradigdes, que, mesmo inalteriveis, se prestam permanen- temente a reinterpretagdes e apropriagées variadas, Trata- se de um programa baseado na abstinéncia completa, que tem como suposto a nogio de que 0 alcoolismo é uma doenca que acomete, aleatoriamente, algumas pessoas. Propde-se, ento, apenas para essas pessoas, que evitern 0 primeiro gole, realizando, um dia de cada vez, 0 progra- ma sugerido pela irmandade, cujo eixo bisico & © inver- cambio da experiéncia etflica dos alcoolistas. Esse intercimbio sustenta-se, por sua vez, em pracessos interacionais especificos, orientados pelas doze tradigdes, que conferem 20 grupo uma estrutura organizativa abso- lutamente singular. Diversas clinicas particulares, situadas via de segra nas grandes cidades, assim como o CREDEQ, tinico centro de tratamento, no Pais, vinculado ao SUS (Sistema Unifi- cado de Saiide), utilizam o método Minessota, também origindrio dos Estados Unidos. Esse mérodo adapta os doze passos de A.A. a um trabalho terapéutico especi- alizado, empreendido por equipes multidisciplinares, dedicadas ao tratamento da dependancia quimica em sen- tido amplo, Ao contrério dos A.A., que oferecem seu pro- grama para os que possuem o “desejo sincero de abandonar a bebida”, os programas baseados no mé Minessota, realizados em ambulatério ou em regime de internagdo, executam um trabalho de incervengdo que © CONSUMO DE ALCOOL 9s procura debelar as resisténcias do dependente quimico em reconhecer sua dependéncia e em querer tratéla. ‘Outros programas, inspirados no modelo psicanalitico do francés Olievenstein, vinculados ov nio a hospitais ¢ fundages governamentais, utilizam diversas formas de psicoterapia de grupo, adaptadas 4s circunstdncias espect- ficas do alcoolismo e da drogadicio. ‘No dominio das ages coletivas, a ABEAD (Associagfo Brasileira de Estudos do Alcoo! e Outras Drogas) elabo- rou, em 1991, a Proposta para uma Politica Nacional de Prevengio do Consumo do Alcool, Tabaco e outras Dro- gas Psicoativas, com base num convénio estabelecido entre a Fundasio Mauricio Sirotsky ¢ 0 Ministério da Educagd0. O programa, intitulado Valorizacio da Vida, localiza a questa do dlcool, do tabaco e das outras drogas na esfera da educacio e da satide, procurando integrar-se as politicas sociais mais amplas ¢ dectendendo 0 respeito as particularidades histéricas, sociais e culvurais no enfren- tamento da questio das drogas, licitas e ilicivas. Esse pro- grama nio foi, todavia, implementado em fungio de mu- dangas no plano ministerial. Existem, no entanto, alguns PI preventivos de cardver regional, vinculados 2 empresas piblicas e privadas, cujos resultados nao foram ainda avaliados suficientemente, Trata-se de investimen- tos médicos e pedagégicos que incluem desde o polémico exame compulsério para deteceo de uso de drogas, ut zado por algumas empresas, até 0 trabalho de diagnéstico, encaminhamento e esclarecimento, nos diversos niveis das escolas e das empresas. A falta de conhecimento relativo aos indices de consu- mo € 20s aspectos socioculturais, que envolvem o uso da bebida e de outras drogas, tem dado lugar, por vezes, a iniciativas preconceituosas ¢ antidemocraticas, no ambito da dependéncia quimica. Diversos profissionais da arca tém chamado a atengio para este aspecto, sugerindo que 96 DROGASE CIDADANIA 08 programas preventivos ¢ teraputicos levem em conta 0s estudos realizados ¢ alertando para a necessidade de ampliagio e consolidagio do quadro de pesquisas no Pais, BIBLIOGRAFIA ABEAD. Boletim da ABEAD, n° 13, Sio Paulo, jun. 1992, p. 10. BERTOLOTE, J. M. “Os custos econbmicos e sociais do aleoolis- mo", ia RAMOS, S, P, e BERTOLOTE, J. M. (orgs). Alcoolismo hoje. Paria Alegee, Artes Médicas, 1990. CARLINI, E; COTRIM, B, SILVA-FILHO, A. R.e BARBOSA, M. T. 8. Consumo de dropaspricatrpicas no Brasil em 1987. Brasilia, Ministério da Sade, 1989 (apud ABEAD, 1991), CARLINI, E; COTRIN, B, SILVA-FILHO, A. R. e BARBOSA, M, ‘T.S. 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Alcoolismo hoje, Porto Alegre, Artes Médicas, 1990. i 6 A CRIMINALIZACAO DAS DROGAS EO REENCANTAMENTO DO MAL* Alba Zaluar Este texto se baseia em duas pesquisas realizadas por mim e a equipe que me acompanhou.' A primeira foi feita num bairro popular e tinha por objetivo conhecer as idéi- as sobre o crime, as instituigdes estatais encarregadas de combaté-lo e a saciedade. Nessa pesquisa foram entrevis- tados cerca de setenta jovens, principalmente do sexo masculino, que pertenciam a quadrilhtas de assaltantes ou traficantes, assim como os que tinham participagZo perifé- rica € eventual nas atividades criminosas. Ela foi realiza- da do final de 1986 até meados de 1991, utilizando técni- cas da histéria de vida, entrevistas e, por intermédio de um dos assistentes de pesquisa, da observasio participan- te. A segunda pesquisa foi feita entre os anos de 88 e inicio de 1991 e teve por base o material escrito no verso do guestionario da maior pesquisa de opinifo feita no Brasil + Exta pesquisa foi realzada gragas 20 financiamsento obtido junto & FINEP ¢ is bolsas concedidas pelo CNPq aos pesquitadores Alba Zaluar seus agtstentes Paulo Lins e Maria de Lourdes da Silva, A FAEP da ‘ambém concedeu aur, quando o financismento da FINEP havi terminado, Foi, na sua primeira versio, publica na Revita do Rio de Janeiro da VER), 0° 1, 1933, ot DROGAS E CIDADANTA —“O Rio Contra o Crime” - que mobilizou mais de 200 mil pessoas no Grande Rio, Do que foi escrito pela popu- lagio retiramos suas imagens da crime, do criminoso, das instituigdes e do governo. Daf inferimos que, com base numa situagio entendida como perigosa, a populasio do Rio sugeria reformas institucionais de varias ordens ¢ mmudanges nas politicas governamentais que diziam respei- to A educagio, a0 emprego, ao salirio. Predominava nes- ‘tes textos urna visio desencantada do mal que assinalava ‘0 aspectos socials ¢ institucionais da questo. Mas ladoa . lado, is vezes no texto da mesma pessoa, surgia outra con cepsio do mal quando a referéncia era aos bandidos, que yinculava-o 3 figura do diabo, entendida como a encar- nagio do mal absoluto ¢ no mais, como natradigao afro- brasileira, como a ambigiiidade entre o bem e o mal dos Exus (Zaluar, 1985). Nas entrevistas dos bandidos, a mes- ma tensio entre o mal encantado ¢ o secular aparecia. ‘Entre as concepsbes seculares do mal, figorow uma visfo sociolégica vulgar, que imputa “causas sociais” a0 aumento da violénca. Esta visio mouse senso comum, mas ela perdeu para a perspectiva muito mais forte que € a pelea institucional deste fendmeno amedron- tador do Brasil metropolitano moderno, na qual reivindi- cavarse a reforma das instituigdes, fosse para tornd-las ‘mais eficientes, fosse para torni-las mais justas. A visio exclusivamente moral do crime foi quase tho rara quanto 4 psicopatoldgica, que era freqiiente na literatura médica e judicidria no comeco do século. A visio psicoldgica & ainda bastante rara (Zaluar, 1989). Isto cevela um processe de desencantamento do mal, em que os planos infra ou super-humano perdem lugar para o entendimento das fraquezas ou razées hus Subjacentes 20 ato criminoso. Trata-se, pois, da concep” do de umn mal humanizado porque fruto de condigdes ou de motivages humanamente compreensiveis (Pocock, j A. CRIMINALIZAQAO DAS DROGAS » 1985), diferentemente do mal absoluto (evil) atribuido as bruxas e demais parceiros do diabo dentro da tradigio cristd, seja por causa das crengas em moralidades absolu- tas (MacFarlane, 1985), seja por uma concepsio do mal desinteressado ou desumano (Pocock, 1985). Esta concepsio do mal teria desaparecido na Europa entre os sfculos XVI e XVI para dar lugar a0 mal secu- lar e desencantado, o que se explicaria, segundo Allan MacFarlane (1985), nao pela substituisio de status por contrato (Gluckman, 1965), e nem pela predomindncia da ciéncia sobre a magia (Thomas, 1971), mas pela confusio entre o bem o mal que a economia mercantil dissemaina- tia por conta de sua dependéncia do dinheiro. Cisndo Marx, Burrigde e Simmdl, e apresentando uma riqueza de material histbrico, ele conclui que, com o triunfo do capi- talismo nessa época na Inglaterra, o mal absoluto estaria temporarfamente desaparecido: “De modo geral é 0 dinheiro, © meseado e © capitalismo que eliminarn 2s moralidades absolutas (.) Agora est claro ‘que 0 que era considerado a raiz de todo mal, isto & 0 amor aa diaheiro, era também a fonte de todo o bem, isto &, a barganha"" MacFarlane aqui se refere 4 maxima de Sio Paulo segundo a qual a raiz de todo mal esté no amor ao dinhei- 10, base do horror & avareza da tradic3o cristi. Esta pouco a pouco perderia a hegemonia para a tendéncia humana de buscar 0 lucro ¢ aumentar o poder aquisitivo por meio do comércio, considerado por Adam Smith e outros eco- nomistas cléssicos como um pilar da civilizag3o modema. Assim, conclui ele, o bem e o mal estariam misturados nas proprias raizes da sociedade moderna. A sociedade de mercado € que elimina 0 conceito do mal absoluto. O capitalismo inventou 0 cinza, 103 nto cris- Os peri ‘irilidade = pedem is Andes, as rials la ao Tio, a. Dizermn ca), inge- rineiros a te aconte- em vivos. aincerceda s a0 Tio 108 ritos scomegar 1 Depois © depois ia cocae rafas que dizemos: seidentes agocom, we seis ria equi- © grupo m outra sm bom 100 DROGAS E CIDADANIA Pocock, outro autor inglés, recusa a perspectiva evolu- cionista ou historicista em favor da interpretagdo estratu- talista das crengas fo mal nos tempos antigos e atuais. Analisando virias oposisdes légicas presentes nessas cren- «as, conclu que a concepsio do mal nfo & apenas um modo de afirmar uma moral, mas também de simbolizar a inversio do proprio ideal de ardem. Em outras pala- vras, aponta para o que os homens nJo devem fazer ¢ também para o que os homens no séo, tendo valor ontolégico. Algumas caracteristicas das criaturas diabéli- cas, vais como dormir de cabeca para baixo, ou matar a sede com sal, nfo teriam nenhum valor moral. E todas as sociedades humanas teriam expresses para 0 néo-huma- no, para a desordem, inclusive as modernas. Nestas, tais expressées seriam encontcadas nas imagens sobre 08 cri- minosos que comereram crimes considerados monstsuc- sos: estupro, abuso sexual de criangas, tortura. Mas quando a desordem nio esté associada 20 mal absoluto, construido como o anténimo da moralidade vigente, tal como acontece nas religiées primitivas da América ¢ da ‘Africa, a concepgio de mal no é tio dicotbmica como na tradigdo judaico-crist’ e mugulmana. nates Pocock tem razio, porém, na sua perspectiva anti- evolucionista, pois, de fato, wie é apenas o dinheiro que é cinza. Também a magia, na qual a desordem nao vem car- regada de cotiotagdes morais absolutas, anula moralidades dicotmicas, pois ela pode ser usada para o bem e para o mul, para ajudar e defender pessoas ou para destrui-las. O ‘mal’e o bem convivem nas mesmas entidades espirituais. ‘As crengas na existéncia de bruxas, embora existam em muitos sistemas mégico-religiosos primitivos, nao podem, ser confundidas com as epidemias de caga as bruxas qué\ representaram uma forma extrema de processos sociais de conflito, num contexto de guerca religiosa (Thomas, 1971), ow de repressio as praticas ¢ crencas magicas popu: NS A CRIMINALIZAGKO DAS DROGAS 101 lates (Luck, 1987}, especialmente verdadeira no caso das religides indigenas do Novo Mundo (Taussig, 1980; Mello ¢ Souza, 1987). Qutros autores apontam a guerra entre catélicas ¢ protestantes, que ocupou o$ europeus durante séculos, como a causa da perseguicio fandtica as ‘bruxas, que nio foi feita exclusivamente pela Inquisiclo catélica, mas sempre em nome de um mal absoluto encar- nado em pessoas demontacas. Seria dificil, portanto, redu- zir tais processos complexos a mecanismos econémicos. MacFarlane, no entanto, esti certo ao afirmar que o dinheiro tem esta propriedade perturbadora de com- prar tudo, inclusive a fachada moral ¢ 0 reconhecimento Social. Mas nem sempre é assim. Na Inglaterra do século XVI e XVI, o dinheiro comprava tudo (Thompson, 1978). Em alguns paises do mundo de hoje também, © que deve ser analisado do ponto de vista cultural ¢ institucional. Somente combinando as perspectivas cultu- ral e institucional pode-se entender os processos comple- XOS que provocam a mudanga da economia moral da multidio, jd que é 2 moral e nfo a légica que importa considerar. O proprio MacFaslane analisou em outro tex- to (1989) a cultura do capitalismo, a qual estaria assentada em dois pilares: a moeda e a lei. Na Inglaterra, primeiro pais do mundo a se industrializar e berco do capitalismo, 0s dois pilares da Justica e da Economia apoiavam-se ¢ Yimitavam-se mutuamnente de tal modo que 0 uso da vio- Iéncia pouco se fer necessirio, Isto quer dizer que a amnbi- valéncia moral ow a amoralidade do dinheiro pode ser restringida por meios seculares que, apesar de ngo cria- rem o mal eo bem manique(stas, sio morais. B exat mente isto que esté expresso uma lei socialmente legiti- mada ¢ aceita como justa. Os estudos sobre o encantamento do mal na América, especialmente a Latina, apontam para outros processos. Dois fivros recentes, e que se dedicaram exclusivamente 108 DROGAS E CIDADANIA sinal. Deram a ela 0 nome de Mallku, que & também 0 termo para os altares sagrados da terra nas montanbias, 08 altares dos sitios ancestrais. O grupo disse em quéchua: © condor veio ‘not ajudar a comer (..} © homesn queria levar o seu pedago cde carne para casa, mas 0 sham§ o impediv dizendo que ele Aeveria comer ali mesmo "seniio a mulher do Tio vai comer oe!” (.).” (Taussig, 1980, pp. 145-51) Suas interpretagdes acerca da predomindncia do culto 20 diabo nas populagées andinas pressupéem, portanto, que as tentativas catblicas de demonizagao das divindades incas foram inteiramente bem-sucedidas. Além disso, ele atribui este culto “do diabo” ao aparecimento do sistema de produgio de mercadorias, em que prevalecem as rela- 8es entre coisas, em economias précapitalistas, em que prevalecem as relagSes entre pessoas. Ora como a sua pressuposigio é discutivel, a sua conclusio tem validade controvertida. Seus dados histéricos demonstram como 0 sistema capitalista foi implantado nos Andes de modo incontrolade ¢ sem limites institucionais na forma da lei para proteger os mineiros andinos. La, como em muitos outros locais da América, a exploracio capitalista asso- ciou-se 4 escravidio dos povos nio-europeus para montar uum sistema de relagdes‘de trabalho das mais iniquas em toda a historia da humanidade. Seus dados histéricos de- monstram também as tentativas feitas pelo poder colonial catélico de demonizar os cultos mdgicos e religiosos dos povos americanos, Acima de tudo, a manutengio do cul- to a0 Tio nos Andes tem a ver com o sincretismo religio- 80, feadmeno comum em toda a América Latina, que permitiu a manutencio de identidades étnicas ¢ de movi- mentos politicos de resistencia 4 colonizasao, a escra- vidio ed exploragio iniqua. Nesse sincretismo, 0 Tio nio € igual a0 diabo cristéo. Como acontece com os Exus, meros intermedigrios, ¢ outras entidades das religides afro-brasileiras, so figuras da ambigiiidade, que servem aoe A CRIMINALIZAGAO DAS DROGAS 10s ao bem e ao mal ao mesmo tempo.’ Nao esti, tampouco, incorporado em nenthuma pessoa que deva ser exorciza da, como na tradicao crista. ‘Uma anilise do que acontece no mundo hoje, em espe- cial no Brasil, revela que o desaparecimento de morali- dades absolutas no pode ser reduzido ao funcionamento do mercado. © capitalismo triunfante na Europa encon- trou limitagées institucionais (Polanyi, 1975) e o fortale- cimento do igualitarismo, cujo sentido principal tendeu a ser a igualdade perante a lei ¢ a efetiva extensio de direi- tos a cada vez mais setores da populacao. Foi por isso, ¢ nfo por uma suposta vitéria da légica da mercadoria sobre a sociedade, que as concep¢Ses maniqueistas do ma) desapareceram da Europa, ow seja, porque as forcas destrutivas do mercado encontraram limites institucio- nais ¢ morais na sociedade. Em ovtras palavras, a socieda- de conteve, no seu duplo sentido, o mercado (Polanyi, 1975) Hoje, alguns fendmenos intrigantes que tém acomteci- do em todo o mundo apontam para um processo recente de reencantamento do mal e o reaparecimento das dico- tomias nftidas entre o bem eo mal em economias de mer- cado hd muitos séculos estabelecidas. Narrativas de cri- mes reais combinam-se com a renovacio da fantasia a respeito de criaturas diabdlicas. Noticias sobre seitas saté- nicas tornam-se mais e mais comuns na imprensa. Muitos livros e filmes dedicavam-se a exorcizar imaginariamente esce medo que reaparece quase no final do séeulo. Em 1989 saiu um numero especial da revista Time, cuja maté- tia de capa foi a existéncia do mal absoluto, A reportagem sugeria que este existia, narrando muitas histérias sobre crimes horrendos praticados hoje nos Estados Unidos, varios dos quais sob o efeito ou conectados ao trafico de drogas. O mal e o bem absoluros tornarami-se uma preo- cupago pésmoderna. Nio se trata mais apenas de crimi- 106 DROGASE CIDADANIA nosos ou maus elementos identificados com a desordem ‘ou 0 descontrole social, mas da encarnagio de entidades diabélicas a ameagar o reino de Deus. Nao por acaso, 0 mal deriva de um produto da América indigena - a coca, planta de uso medicinal milenar e controlado na popula- ‘gfe andina, que transformou-se em mercadoria vendida ilegalmente aum mercado sem nenhum controle. ‘No Brasil, onde a cacaina fez sua entrada na década de 70, como em diversos outros paises ocic is i nalidade moderna ¢ empresatial desde entio é organizada segundo os principios do mercado e da defesa dos interes- ses econdmicos do grupo que contrala o empreendimen- to, mas faz isso sem o amparo da e contra alei. A demanda que garante 0s ales lucros do empreendimento é decor- réncia de mudangas no estilo de vida e nas concepgdes do trabalho, do sofrimento e do futuro. Depois da Segunda Guerra Mundial, o hedonismo colocou o prazer € 0 lazer A frente das preocupagSes humanas (Offe, 1989). O jogo, as drogas, a diversfo tornaram-se 0 objetivo mais impor- rante na vida para muitos setores da populasio, especial- mente os mais jovens. O crime teats desenvolveu-se nos atuais niveis porque tais priticas socialmence aceité- veis e valorizadas foram proibidas por forga da lei, possi- bilitando nfveis inigualéveis de luctos a quem se dispSe a negociar com estes bens. Os lucros nfo sio gerados pela produtividade ov pela explorasio maior do trabalho, mas pela propria ilegalidade do empreendimento (Salama, 4993; Fonseca, 1992). Com tanto hucro, fica facil corrom- er policiais e, como no hé lei para proteger os negécios dese secordacconomi, quisquer conitose dspitassfo resolvidos pela violéncia. As taxas de crimes violentos ‘aumentaram em todos os paises em que o combate A droga apela para a repressio, inclusive no Brasil. Enquanto imagens que sio imterpretadss pela popula: 40, este novo fendmeno do crime organizado cria um A CRIMINALIZAGAO DAS DROGAS 107 nivel de violencia tal e um novo medo que as experincias compartilhadas pelas vitimas dela vem reforgando ao lon- go dos anos. Esse medo, embora resulte de experiéncias reais inegaveis de perigo e de destruigio enfrentadas no cotidiano das grandes cidades, adquire um cardcer imagi- nario nas narrativas das sivuag6es vividas, especialmente porque vinculadas a interpretagSes que j4 pressupdem a origem do mal. Os textos partem sempre da idéia de que a situaglo & grave e que a incidéncia de crimes violentos aumentou tanto que a populla¢Zo passou a cobrar mudan- gas e reformas de varios tipos para conter essa situagio preacupante. Mais recentemente, as segdes de cartas dos Ieitores de jornais didrios apreseritam textos indignados de amedrontados moradores, que vivem atrés das grades de suas residéncias e dos vidros de seus automéveis, concla- mando todos para o fim da passividade, sem dizer como fazé-lo. O terror acompanha hoje o cotidiano popular. Embora esteja claro que uma das conseqiéncias da proibigio é a construgio ideolégica do viciado e do trafi- cante como agentes do mal, ou a demonizacdo da propria droga, nao se pode atribuir a aceitagZo popular da concep- so maniquelsta do mal A mera manipulagio da informa: cio via midia. O medo tem razdo de ser. Os dados sobre crimes violentos no Rio durante os dltimos anos contic- mam essa postura da populacio: em 1982, as taxas de homicidio em Nova York e Rio eram as mesmas: 23 po? 100 mil habitantes (New York Times, 21 de agosto; CIDE, 1989}, mas em 1989 4 taxa de homicidio na regido metro- politana do Rio jé estava trés vezes maior do que a de Nova York (56,7 por 100 mil habitantes no Rio; 17 por 100 mil em Nova York). O mimero de homicidios, que incluem as mortes violentas por acidentes no trnsito, era de 2826 em 1980 ¢ de 7654 em 1989. Esse surpreen- dente crescimento durante a década de 80 den-se parti- cularmente na Baixada Fluminense, e nfo inclui a cifra wot DROGAS E-CIDADANSA negra que descobri existir no bairro que estudei, por con- ta dos “cemitérios” clandestines que escondem homi- cldios dos registros oficiais da policia, Oficialmente, 0 numero de crimes violentos no Rio tem crescido siste- maticamente e a participacio dos jovens infratores (“me- nores”) era trés vezes maior em 1985 do que em 1982 (Campos, 1988). Na regio de Sio Paulo, o mimero de crimes violentos no total dos crimes registrados era de 20% no inicio da década, mas ja atingia 30% no final dela, Em 1987, a taxa de homicidio nessa cidade era de 53,8 ‘mortes par cada 100 mil habitantes (Adorno, 1992). Para se ter uma mais precisa da dimensdo do fendmeno da violéncia nessas cidades, basta dizer que em 1988, na Colémbia, onde 2 violéacia tem alcangado recordes mun- diais durante varias décadas e fax parte h4 muito do coti- diano da populacdo, onde a guerrilha, os grupos para- militares, 0 sicariato ¢ a guerra suja prosperaram durame a Ultima década, a taxa é de setenta homicidios por cada 100 mil habitantes. ‘A idéia de que tadas as taxas so apenas uma for- ma disfargada E uta de classes, em que os pobres estio cobrando dos ricos, nfo tem fundamento, visto que aumentam muito mais na petifetia da cidade, onde moram os pobres. Tudo leva a crer que os pobres sio as principais vitimas desta onda de criminalidade violenta que assola a Rio, seja pela acdo da policia ow pela dos préprios delingiientes, que nao tém recursos politicos ¢ econdmicos que thes garantam acesso 3 Justica e a segu- ranga. No bairro estudado por mim, por exemplo, quel- xas de roubos ¢ furtos na delegacia policial eram tio numerosas quanto as de lesio corporal. Aos cinqiienta homicidios com vitimas registrados entre 1983 ¢ 1991 somaram-se os 69 cadAveres encontrados no mesmo peri- odo, mas sem perfazerem os 722 mortos listados pela populacio local entre 1976 ¢ 1991. A CRIMINALIZAGAODAS DROGAS 109 A vinculagio, accita como um trufsmo, entre pobreza e criminalidade € um dos pressupostos mais arraigados em toda a populacio brasileira, mas nao estd permitindo ati- tudes mais eficazes dianse do novo fendmeno da criminalidade do Brasil urbano, vinculado a uma ativide de empresarial organizada do crime. Se antes esse determinism aparci nas conceprées religions do crime em que a vontade das divindades centrais ou de entidades espirituais periféricas é que decidiam a ago criminosa da pessoa, hoje esta concepgio sarefeita cede lugar a0 determinismne sociolégico que considera a pobreza 0 meio social ideal ou o “meio de cultura” (no sentido bac- teriolégico) para o aparecimento do criminoso, Ao mes- mo tempo, o reteata psicapatolégice do eziminoso, nos moldes do tipo lombrosiano do criminoso nato, parece ceder lugar também a uma nova conceituagdo social desse criminoso que “nio tem jeiva”, nato na pobreza destitu da de moralidade e reincidente no crime mediante uma carreira de violéncias, crimes e prisdes. ‘A conceituagio secular da crime permanece num pais em que valores hierdrquicos ¢ individualistas, tradicionais e modesnos coexistem. Valores, imagens e idéias do cato- licismo aliados 3 concep¢io do bera limitado, prdpria das comunidades fechadas nas quais 0 lugar de cada um est preestabelecido mediante privilégios e regalias préprios da posigio sécial ocupada, sempre foram fortes, Mas fos- tes também se tomnaram os valores individuais negativos ¢ ‘95 meios modernos de ascender socialmente pela posse de dinheiro e acesso a0 mercado, que se faz de modo a con- fundir meios licitos com ilicitos e de modo a aumentar a taxa de mobilidade ascendente. O conhecido padrio paternalista e clientelista da formagio social brasileira mascou também o desenvolvimento capitalista que se fez por rogalias ¢ financiamentos generosos conseguidos jun- to ao governo, Criadas as raz6es para a impunidade e os 110 DROGASE CIDADANIA privilégios de alguns em detrimento dos outros, as leis ¢ as instituigdes no conseguem conter as forgas negativas do mercado, como se nota no fendmeno da inflacio. Mas em nenhum outro setor da economia ficou mais clara a oposigao aos limites impostos pela lei do que no crime organizado. Neste, 0 arrepio da lei forga 0 uso da violén- cia e o descontrole da ambigio de ficar rica. Além disso, os valores hedonistas tipicos de uma socie- dade pés-moderna ou de alta modernidade (Giddens, 1990), pés-ética e pés-sociedade do trabalho (Offe, 1989} também deixaram sua marca em varias camadas da popu- las0, Os controles morais que tornamn a lei desnecessaria pararam de funcionar e nfo foram substituidos por uma nova ética baseada ma liberdade pessoal ¢ no entendimen to com os outros pelo didlogo. Portanto, o Brasil é hoje uma economia de mercado em que os controles morais sio fracos, a ética no se enraizou no comportamento co- tidiano, especialmente dos politicos e dos empresirios, ¢ onde a lei nao é vista pela populago como justa e equini- me. E é exatamente esta confusio entre valores pés-mo- dernas ¢ individualistas que nio se baseiam nas “liberdades negativas”,‘ definidas legalmente, e as crengas tradicionais e hierdrquicas, despidas de sua fora moral, que faz seaparecer no imagindrio social a idéia de um mal absoluto. Mas, diferentemente dos séculos passados, no se trata mais do “olho ruim”, neutralizado com a ajuda das entidades ambiguas da religiosidade popular, e sim do “coisa ruim”, . Historicamente o Brasil nunca foi o palco de guerras religiosas ou de dios religiosos duradouros. Ao contre: rio, a Inquisigéo aqui teve presenca distante ¢ nunca se observaram surtos de caga as bruxas, tais como ocorre- ram na Europa e nos Estados Unidos (Zaluar, 1985; Mello ¢ Souza, 1987). A Ultima autora afirma mesmo que ‘Brasil, e ndo mais Portugal, ornow-se a partir do século ose ‘A CRIMINALIZAGAO DAS DROGAS rt XVI 0 refagio mais seguro para judeus ¢ conversos, a0 lado dos Paises Baixos (Mello e Souza, 1987, p. 97). Todavia, hoje no Brasil, gracas a esta configuragao cul- tural e institucional, 0 medo realista transformou-se no pavor ou terror irracionais ¢ propiciou a volta da dico- tomia nitida e absoluta entre o bem e o mal. O nome do diabo passa a ser invocado cada ver mais comumente para atribuir sentido ao viver sob a inseguranga e incerteza dos encontros odiosos com os bandidos. E os préprios bandi- dos, identificados pessoal ¢ profundamente com esta encarnagio do mal, reinterpretam a sua saga por um pac- to ficticio com ele. Basear-me-ei em duas histérias de vida - a de Pedrinho Queimado ea de Ourinho ~ cujos nomes expressam bem suas trajetérias diferenciadas no mundo do crime, para demonstrar a coexisténcia dessas duas concep¢des do mal em tensio permanente no Brasil de hoje. Ambos, como nos contam as suas historias, foram arrastados para a criminalidade violenta pela conjungio entre a confusio moral € o sistema da ilegalidade consentida em que 0 co- mércio de algumas drogas floresce. No total, foram 65 entrevistas-com jovens diretamente envolvidos com 0 mundo do crime, das quais infiro a subcultura desenvol- vida no atual estigio do crime organizado, Pedrinho, como muitos jovens pobres, iniciou sua tra- jetoria criminosa pelas dividas contrafdas no consumo de drogas, que o impulsionaram a comegar a roubar (até mesmo sua prépria familia) e, como ele diz, “tomar gosto pela parada”. Ao mesmo tempo, sua familia isolou-o quando comesou o vicio e passou a acusé-lo como respon- sivel, algumas vezes injustamemte, por qualquer sumigo de objetos. A identidade de ladrio reforgou-se. $6 mais tarde é que descobriu que “nunca metia a mio numa boa” (coubar muito para ficar rico e nio ter mais problema) ¢ ficava s6 “correndo atris da furada” para pagar as cons- ry DROGASE CIPADANIA tantes dividas de téxico, de armas emprestadas que 0 policial tomava, de pagamentos varios a quadrilheiros ¢ policiais quando conseguia roubas bens mais caros. Ter- minou sendo preso e descobriu que a prisio estava cheia de gente inocente, apanhada em bocas de fumo quando comprava para consumir porque © policial nio encon- trava o “vapor” ou o gerente do lugar, o que é confir- mado pelas estatisticas oficiais de apreensfio de téxico na rea. Entre 1983 ¢ 1991, o 18% Batalhio da Policia Militar apreendeu por tréfico ~ na rea em, que funcionam cinco ‘bocas de fumo, movimentando cerca de 20 milhées de cruzeiros semanais ~ 4488 gramas de téxico (maconha e cocaina), ou seja, 4,5 quilos assim distribuidos: 800 gra- mas em 83, 69 gramas em 84, 500 gramas em 85, 2217 gramas em 86, 138 gramas em 87, 111 gramas em 88, 786 gramas em 89, 322 gramas em 90, 456 gramas em 91, Por posse e uso de droga foram apreendidas as seguintes quan- tidades: 2023 gramas em 83,1021 gramas em 84, 800 gra- mas em 85, 790 gramas em 86, 999 gramas em 87, 1967 gramas (1862 de maconha e 105 de cocafna) em 88, 3063 2365 de maconha e 98 de cocaina) em 89 ¢ 1584 em 90. Esses s4o dados somados de maconha e cocaina. Esta ulti ma sé passa a ser apreendida a partir de 1986, em quanti- dades sempre muito inferiores & maconha, especialmente nas tomadgs dos usudrios. Além disso, tanto na Secretaria Estadwal da Policia Civil quanto no 18¢ Batalhao da Poli- cia . nfo se faz distingdo clara e efetiva entre o-usu- frio de droga e o traficante, embora haja artigos diferentes para eles no Cédigo Penal. A quantidade apre- endida nio é 0 critério diferenciador, pois encontraram- se casos classificados como “posse e uso” com 1860 gramas de maconha apreendida e casos classificados como “rifico” com apenas 2 gramas. Essa indefinigdo, que esta na legislagio, mas principalmente na pritica policial, $6 er aati am A CRIMINALIZAGKO DAS DROGAS coy vai favorecer a inflagio do poder policial, 0 que, por sua vez, vai inflacionar a corrupsio. Posteriormente, quando ji estava marcado (queimado) pela passagem na penitenciéria, que o tornava alvo da ago policial, teve que entregar bens, inclusive um imé- vel, para nfo ser enquadrado num processo montado pelo policial que o extorquia ¢ torturava (no “pau-de-arara” e pelo assédio e sedugio de sua mie ¢ irmf). Descreve 0 crime organizado como aquele em que o dinheiro ganho em grandes empreendimentos, tais como o assalto a ban- cos £0 tedico, fazem 0 bandido respeitado pela policia e cercado de regalias na prisio: “(.) A comupeio gera Ik dentro porque entra urn bacana na cadeis, ele € trarado como um rei, nfo como um preso. A comida dele & especial ¢ visita toda hora, televisio a cores, tudo bonitinho, © pobre nio, o pobre é ali, o cimento no pulmio, botar o puliio na cimente frio, 0 Desipe mothan- doa cela pra nego deitar ne molhado, tirando o sofredor dali para bater nele toda bora (..) © cara & inocente, mas eles cismam com ele, af vai apanha ele, bate, bate, espanica até sangrar, dando gargahadas (..) Assim @ uma quadrilha orga nizada: todo mundo quer trabalhar, 0 cara té cheio de mi- fo, s6 arrebenta a boa. Até a policia quer trabalhar: chega em cima do ladrfozinho de cordio, do cachanguista (ladr30 de casa), o cara ti caidinho, chega em cima do assaltante de ‘banco, do traficante, o cara té é cheio de milhia: (...) me dé um dinheiro af pra te botar na rua. cara cheio de ouro 10 dedo, no pescogo, o maior pistolda responsa, A polfcia fica qualé seu doutor, cheia de guere guere, tudo corrupto,” Ourinho, como muitos adolescentes pobres, comegou fazendo mandados para os traficantes e seus parceiros, viciou-se “porque estava revoltado com a mae”, em virta- de dos conflitos religiosos que ela (umbandista) tinha com 0 seu pai crence, Participou de algumas aventuras na ws DROGAS E CIDADANIA selva de pedra, assalrando para pagar dividas e matando para mostrar coragem e “disposigo” aos colegas. Ouri- nho fez logo parte da Organizasio e ficou pouco tempo reso, pois sempre comprou a sua liberdade da maneira usual: em certa ocasifio, passou para o nome de um polici- al uma casa com todos os bens que tinha na época para nao ser processado por muitos crimes no bairro, alguns dos quais nZo tinha cometido; em outras, entregou muito ouro e armas modernissimas (que conhece muito bem) com 0 mesmo fim. Por conta da sua impunidade (e invisibilidade para os policiais), e porque nunca morreu nos ingmeros tiroreios de que participou (nos quais ma- tou muitas pessoas, varias quando ainda era menor), acre- ditou que tinka um pacto com 0 diabo, o que confirmou num terreiro: para nio morrer nem ser visto tinha que dar sangue para a diabo. Passou a vestir-se com grandes capotes negros, a carregar uma machadinha e varias armas de fogo, a sé sair de casa A noite e a derramar sangue de pessoas, ferindo ou matando, para satisfazé-lo. O diabo, em ver das sete mulheres que havia prometido, deu-lhe onze, todas levadas de carro para os motéis da redondeza ¢ todas submetidas a torturas, tais como abrir o rosto com um talho feito a’machadinha, ferro quente na pele etc, Mandava algumas de suas vitimas cavarem a propria Sepultura antes de morrerem, por raxdes que ele nem sabia, Enterrou muitos no que se tornou o cemitério clandesiao do lugs. Maton inimigo de poficisl que nfo tinha disposigdo para fazé-lo, sb para cheirar muita cocai- na com um amigo, paga com 0 dinheiro obtido. Cheirava carreiras e carreiras até ficar “transformado”, quando comesava a ver inimigos em volta apontando-the armas. O diabo Ihe dizia que ele nao tinha mais jeito. Essas manifestag6es incontroléveis de violéncia ser chamadas de guerra, Mas é uma guerra que se d& prin- cipalmente entre jovens pobres e negros ou mestigos que ‘A CRIMINALIZAGAO DAS DROGAS. us, se matam entre si. No conjunto habitacional da CEHAB, onde morreram 722 jovens ~ de 13 a 25 anos ~ na guerra entre quadrilhas de traficantes e assaltantes, a quase totali- dade era de jovens de cor. As mortes cometidas por poli- ciais, que nfo foram muitas, nio mudam esse quadro, ja ‘que agiram quase sempre na \égica da guerra de quadri- thas, tomando posigio em defesa daquela 3 qual estavam aliados. Para se ter uma idéia mais precisa do efeito devas- tador desse crescimento incontrolado da destrutividade, em torno de 380 pestoas (das quais 77 sic menares) esto envolvidas hoje no trafico de drogas dentro do bairro lar estudado, que tem cerca de 150 mil habitantes. Os 722 jovens mortos na guerra, em aperias treze anos, reptesentam a substituiggo total do contingente de tra- ficantes e seus ajudantes menores por duas vezes neste curto periodo de tempo. ‘Mas é um engano achar que esse é um fenémeno do Rio de Janeiro apenas. Nao é a questo da indistria de turismo do Rio, de Sao Paulo ou de Salvador que est4 em pauta, mas sim a nossa continuidade enquanto sociedade. Pesquisadores da UNICAMP, trabalhando em pequenas cidades do litoral paulista, onde foram procurar a cultura caipira ou a caigara, encontraram 9 mesmo fendmeno: familias de pescadores divididas por numerosos assassina- tos entre seus membros em que tios matavam sobrinhos, pais, seus filhos e enteados, primis, seus primos; jovens que se recusavam a pescar porque o tréfico é muito mais Tucrativo; histérias de vingangas, fugas, prisdes, medo. ‘Que guerra é esta? Em primeiro lugar é uma guerra peculiar que parece deixar todos os lados dela dentro de prises: burgueses respeitadores da lei atrés das grades de seus condominios e casas, cercados de vigilantes e segu- rangas; 08 pacificos trabalhadores nas mios da seguranca ¢ terror das bocas de fumo nas favelas ou dos grupos de exterminio na Baixada Fluminense; os bandidos pobres 16 DROGAS E CIDADANIA nos presidias propriamente ditos ou no clrculo vicioso de suas dividas eternas com os seus inimigos, com as quadei- Thas, com a organizagio. Em segundo lugar, é uma guerra que comeca movida por propésitos individualistas de enriquecimento répido ¢ de busca desenfreada do prazer, mas que se perde nos Circuitos intermindveis de vinganca interpessoal, do puro prazer em dominas, matar ou fazer mal a outrem, Entre os bandidos impera o gosto pelo estilo de vida dos ricos, pela exibigio do poder e o esbanjamento de riqueza, em que o consumo conspicuo também inclui os instrumen- 108 da guerra, exibidos ¢ usados de maneira extravagante. Essa légica cultural é também sealimentada pela necessi- dade, para se afirmar diante das mulheres, que o jovem tem de estar com dinheiro no balso para consumic rapi- damente o que conseguiu ganhar facilmente, Nessa ex io ¢ orgia de consumo, o jovem eria para si mesmo um cioulo vicioso, do qual ndo consegue sair. E preciso estar repetindo sempre o ato criminoso para ganhar o dinheiro facil, que sai facil do seu bolso. Esse cleculo demon{aco fecha-se ainda mais pelo cons- tante pagamento de parte do butim aos quadrilheiros mais bem armados ¢ mais poderosos do que ele, assim como 20 policial corrupto. Para continuar a agir crimi- nalmente a fim de ganhar dinbeiro fécil, o jovem emara- nhase numa rede de obrigagdes na forma de pagamemos em dinheiro e outros favores como, por exemplo, algum inimigo desses poderosos chefes do mundo da’con- aravengio e do crime. ‘Subjacente a esta guerra esto, de fato, os princfpios do mercado, 6 que levados ao paroxismo e, por nio estarem submetides a nenhum controle institucional, nem sofee- rem as limitagdes da lei, aplicados a qualquer coisa, inclu- sive A vida humana: mata-se por certa quantia de dink ro, traficamse pessoas adultas e crlangas, E uma guerra A CRIMINALIZAGAO DAS DROGAS w fruto da légica econdmica do capitalismo levada até as suas tiltimas conseqiiéncias, sem os limites institucionais das regulamentagbes extra-mercado que poderiam conter © efeito desagregador dessa economia montada na vanta- gem individual. A previsio profética de Polanyi (1975) sobre a capacidade que esta economia tem de destruir a sociedade parece estar se cumprindo aqui, 0 continente americano, mediante uma intervengdo excessiva do Esta- do, criminalizando a circulagSo de um bem que ¢ deseja- doe consumido por significativa parte da populagio. ‘A moral, dividida entre a dos consumidores de drogas € dos nio-consumidoses, esté paralisada em virvude da hipo- crisia inerente a proibi¢do do consumo dessas drogas, enquanto outras que também fazem mal permanecem liberadas. Um isnpasse foi criado. Os consumidares vivern para o proximo prazer, afetando no maximo a si mesmos, mas os cidadios cumpridores da lei consideram os vicia- dos, assim come os traficantes, agentes modernos do eter- no deménio. Todos os crimes que mobilizaram a opinigo publica, desde a corrup¢ao do ex-presidente da Republica até o assassinato de uma famosa atriz foram associados na midia ao consumo de drogas consideradas leves na Europa enos Estados Unidos: a maconha e 0 pé de cocaina. A tenttativa de controlar o mercado pela lei (a crimina- lizagdo de consumo e comércio) no funcionou. Sem con- seguir implementar a proibipdo, o efeito foi liberar as for- as destrutivas do mercado que, na ilegalidade, tornou-se imune a qualquer controle exterior (de ordem jurfdica ou politica) e foi facimente dominado por oligopélios e organizagdes poderosas e clandestinas, que impuseram suas proprias regras baseadas na fosca bruta das armas de fogo, dnico insirumento disponivel, além do dinheiro que tudo compra, para resolver conflitos e disputas comerciais ‘ou pessoais. O tecido social, montado na reciprocidade positiva ou no contrato garantido por direitosde ambas as ns DROGASE CIDADANIA partes, foi cedendo lugar & reciprocidade negativa da vin- ‘anga de sangue eda cobranca de quaisquer perdase preju. fz0s por meio de mais uma vida humana, ou deseo. Tando-se dessa l6gica dos interesses mercantis, de uma sim- ples ¢ gratuita maldade qualquer. As “liberdades” indi duais negativas tornaram-se um fato sem sentido da vida cotidiana. Nio é, portanto, apenas a légica econbmica que explica a dindmica dessa guerra, em que a milicarizagio das partes em conflito é conseqiiéncia previsivel. Os bandidos jovens e pobres do bairro escudado sfo adeptos de uma ideologia moderna ¢ individualista que ndo se baseia, porém, nos direitos positivos da participagio democriti- a, mas nos negativos: a ilusio quanto 4 independéncia abyoluta do sujeito ¢ sua liberdade de agir sem restrigées estd atrelada a uma concepeio extremamente autoritiria do poder. Se 0 chefe ou o “cabeca” so concebidos como homens inteiramente autnomos ¢ livres, essa capacidade de exercer sem restri¢des a sua vontade faz-se as custas da » submissio dos seus seguidores denominados teleguiados, uma relagZo sempre mediada pelas armas de fogo moder. nas (¢ pela disposigio em ustlas sobre outro ser huma- ng), bem como pelo poder do dinheiro que o chefe acumula, Essa relagio de dominio-submissSo, cuja experi- ancia traz 3 tona sentimentos sadomasoquistas de ambas as partes, fica ainda mais patente no caso das vitimas des- se ovens, S6 mais recentemente & que, com 0 progress vo dominio das quadribhas por uma organizagdo central, a hierarquia se verticalizou mais e os “cabecas” de quadri- Ihas locais passaran a dever obediéncia as determinagBes do comando superior. Aqui, porém, apesar da inegivel racionalizagio dos conflitos interpessoais e da diminuigZo das mortes por divida de sangue, ainda imperam decisbes arbitedrias, fruto da vontade de tuns poucos comandantes que decidem quem deve morrer’ O “cabesa” é sempre nents ane = ‘A GRIMINALIZAGAO DAS DROGAS 19 aquele que enxerga além dos limites postos comumente ao exercicio da imaginagio e do arbitrio, em qualquer grapo social, até mesmo o compasto de desviantes. A analogia com um poder militar, que nio é controlado por nenhum outro exterior a ele, é Sbvia. Certamente esse guerra nido est4 dependente das regras consensuais de um cédigo tradicional da vinganga de san- gue ou da honra familiar, nem muito menos da Conven- gio de Genebra, o que lhe fornece um carter particular- mente feroz. Mas acaba por construir seus préprios cédi- gos e transforma seus instrumentos de forga ~ as mais mo- dernas armas, a5 usadas nas mais recentes guerras convencionais (Ir4/Iraque; guerra do Golfo etc.) ~ em fetiches do poder e da virilidade, portanto elementos de fascinio dos adolescentes em busca de simbolos da mascu- linidade. A parca preocupacio com as evidéncias de culpa de quem é por eles justigado e o descontrole das ages tornam-na o cendrio de interminaveis maldades, em que o “desinteresse” ou a grawidade deixam de explicar, nos quadros do que é definido como humano, o sentido do ato. Nela, matar, queimar, estuprar, ferir pelo simples prazer de fazer o mal e submeter 0 outco extravasam 0 sentido interessado da competigao pelo lucro no mercado ilegal de drogas ou de defender a lealdade aos chefes da organizacie ¢ adquirem 0 sentido de um mal j4 no mais humanamente compreensivel. ‘A auséncia de sentido humano para a violéncia estaria dada na violéncia que deixa de ser um meio para se atingir um fim socialmente justificdvel e passa a ser um fim em si mesma: a violéncia pela violéncia, analisada por Hannah. Arendt (1972), ou a cadeia interminavel de conflitos que s6 termina com a completa destruigio do adversario, ana- lisada por Simmel (1983). Todos acabam conduzindo 4 simples gratuidade do ato, feito desinteressadamente, pelo simples prazer que proporciona. x0 DROGAS E CIDADANTA © uso cada vez mais comum de termos que expressam desumano ou o sub-humano para designar os principios agentes dessa guerra - bestas, feras, animais, monstros -, que 66 merecem a morte, é expressio disso, mas é tame bém um ingrediente a mais a alimentar o circuito das tro- cas odiosas, que nessa guerra também simbélica se di. E esses termos sio empregidos tanto pelos enclausurados cidadios respeitadores da lei* quanto pela massa carcerfria que pune exemplarmente o autor de crimes considerados hediondos, tais como estupro, perversidade ‘com criangas, delagio, traigo etc. No entanto, a reagio moral da populacio a esse quatro de violencia, corruplo ¢ comércio ilegitimo tende a condenar a todos: o simples viciado ¢ os piores homicidas e corruptos. Por fim, ¢ talvez. aqui resida a chave do seu entendi- mento, esta é uma guerra extremamente mével, em que é dificil visualizar quais os inimigos que realmente se defrontam.nela. Os otérios do asfalto e os malandras da favela, a classe média abastada e 0 pobre, o policial eo bandido, as quadrithas de pequenos assaltantes ou de even- tuais ladrdes contra as poderosas quadrilhas de traficantes, as quadrilhas de traficantes entre si, as organizagdes ¢ as quadrilhas, os grupos de exterminio e os menores, os ban- didos maiores e os menores revezam-se de cada lado, em alguns casos (por exemplo o de policiais e bandidos, gru- pos de exterminio ¢ quadtilhas, maiores e menores) mis- turando-se de tal forma que qualquer légica classifica- téria minimamente coerente torna-se quase impossivel. Entretanto, é claro que essa guerra reviveu o poder local 0u privado e reduzit o poder do Estado em algumas zonas, urbanas. Além das reagdes morais extremas. Nesta situagio de conflito descontrolado, qualquer um pode ser o inimigo se impede ou atrapalha 0 prazer desin- teressado ou o lucro certo, obtido por varios empreendi- mentos mercantis, num dos quais até a propria vida das } 4 { { nei ACRIMINALIZAGAO Das DROGAS wa pessoas pode vir a ser mercadejada, como no caso dos seqiiestros que tém a finalidade de obter capital para 0 narcotrifico, Nesse uso constante, porém desnorteado, da violéncia, © objeto dela no esth delimitado enquanto idemtidade coletiva clara, considerada como 0 inimigo a ser vencido para que a justica seja feita. Os menores que participam do “movimento”, e por causa disso levam arma na cintura, sio tratados por esses personagens € pelos traficantes do mesmo modo que todos os outros pedes na guerra: se deu prejuiza, se dew “volta”, se deu “derrame”, se incomodou de alguma maneira o arranjo de poder, estd morto, Todavia, o aprofundamento na carrei- ra do crime e a valorizagdo perversa do poder adquicido pela disposiggo para matar tornam mais comuns os homi- Cidios cometidos por um desagrado qualquer, um olhar enviesado, um no, um cordio.” No plano politico, isso significa reduzir os conflitos As relag6es interpessoais e individuais, abandonando-se as coletividades enquanto grupos de interesse ou de posigdes ideolbgicas. Significa também fazer da macropolitica a arena em que 0s interesses inconfessiveis das organiza- ges criminosas poderosas se valem da aco de lobistas € do trifico de influéncias para tomar conta da vida politica e perverter a vida institucional da nagio. Mesmo no res trito e discriminado mundo prisional, organizagdes de nivel intermediario também funcionam para marcar dife- rengas entre os presos ¢ instituir privilégias de tratamen- to, inclusive o préprio direito 3 vida dentro dos muros da penitenciéria (Zaluar, 1987; Coelho, 1988), No bairro popular, a distingio entre trabalhadores bandidos ¢ sem divida central, pois a identidade de traba- thador se monta em parte pela oposigso ao bandido; mas também ali um campo de ambigiidade mistura as catego- rias quando a identidade acionada & a de pobre que as vezes as pe em conjungio, is vezes em distingio. O m DROGAS F CIDADANIA resultado final disso é a figura do bandido comum como um personagem ambfguo e, no plano real, temido, Hi, pois, dissenso claro e profundo quanto ao que é moral no homem - se 0 trabalho, se o dinheiro fécil conseguido no crime ~ e quanto 3 coragem envolvida nos desafios entre parceiros desiguais, em que uns tém arma de fogo e ‘outros nfo. Em vez. de sistema de disposigées, dilema de disposigdes: para matar ou para trabalhar. Esse dilema, entretanto, abre espago para muitos compromissos, ainda mais complexos e amalgamados quando entram em cena os representantes das instituigdes oficiais: policiais, advo- gados, juizes. Como em qualquer atividade de wansgredir o legal ou © socialmente aceito, a subcultura criminosa se sobrepde ¢ participa de diversos mundos ao mesmo tempo ~ o mar- ginal ¢ 0 central, © desviante e 0 oficial. © mundo do crime organizado est4 também no mundo empresarial, no mercado, e participa de seus valores e suas regras. Na Vinguagem cotidiana dos bandidos isso se manifesta em termos usados e na légica econdmica que preside seus cdl- culos, assim como esto presentes suas relagées com a familia, 0s vizinhos, 0s trabalhadores. Muitos deles parti- cipam simultaneamente das exigencias do mundo do tra- balho e do crime. E todos acabam por tomar contato com a cultura juridica hegeménica nas instituig6es suposta- mente encarregadas de defender a lei igual para todos ede reprimir quem a ofende, mas com as quais fazem, quando ganham suficientemente no crime, diversos tipos de acor- do e de compromisso. Nesse aspecto, o que diferencia as instituigées oficiais das organizacdes criminosas é a possi bilidade de uso de controles externos e de direitos indivi duais no caso das primeiras, princlpios do igualitarismo moderno, que protegem os subalternos do arbitrio de seus superiores, possibilidade esta inexistente na hierar- quia da organizagio criminosa. A CRIMINALIZAGAO DAS DROGAS. ray A histéria de Pedrinho Queimado é um exemplo de trajet6ria induzida pelo arranjo dos poderes institucionais e do crime organizado no contexto da criminalizagao do uso de drogas. E ilustra por que 0 esforgo deve ser posto em deslindar 0 aspecto “moderna” e capitalista da organi- zagio criminosa associada a policiais corruptos que, dan- do 0 tiro pela culatra na criminalizasio do consumidor € no conluio com os traficantes ricos, abre a caixa das mal- dades humanas, sem conter em absoluto 0 consumo € comércio das drogas. Nao se trata, pois, de considerar a Yegitimidade social ou a verdade do contrapoder desviante, em face da inevitabilidade e ubiqiiidade da soci- edade disciplinar opressiva, mas de analisar como a criminalizagio de um hébito ou gosto individual - ou seja, uma agao arbitraria e ifegitima do Estado, no contex- to de uma sociedade que estd longe de ser uma maquina disciplinar que controla corpos e mentes -, a situagdo de ilegalidade consentida aprofunda a revolta e as carreiras criminosas dos jovens usuarios de drogas. A histéria de Ourinho fala-nos muito mais da ambivaléncia da natureza humana, cujos aspectos negati- vos adquirem uma forma tio extrema que forgas desuma- fas ¢ suprachumanas so chamadas para explicé-la. O diabo & também um nome para a destrutividade, a socia- bilidade insocivel, a troca odiosa, a violéncia intermind- vel, a agressividade. Onde a lei no funciona para dar fim as exibigdes destrutivas das ages humanas, nem 0 contra- to social se baseia num acordo moral razodvel, as crencas nas moralidades absolutas aparecem como tentativas de domesticar ou explicar o que parece estar fora de contro- le, Sua vida também demonstra que 0 mal nio estd todo no Leviatd, que provocaria o aparecimento dele no interi- or dos homens feitos déceis, com o inconsciente destruido na disciplinarizagio das préticas instivucionais de controle social sobre os corpos eas mentes (Foucault, 4 DROGASE CIDADANIA 1979). A “cultura desviante” na qual tais histérias prospe. ram nio sio resistentes a0 poder, mas desenvolvern novas formas de poder baseadas no uso indiscriminado e des. controlado dos meios violentos, postos em pratica para matar rivais e oponentes, considerados inimigos mortais. Mas nem tudo esth : Pedrinho Queimado concluiu que “o crime é ilusio”, fruto das “mentes ocultas eciéncias apagadas”. Hoje advo. ga trabalho qualificado, educagio, oportunidade igual no mercado e na justica para os jovens pobres, um discurso que se enquadra no majoritariamente repetido pela popu- lagio do Rio de Janeiro. Nele o mal nfo esté encantado, nem absolutamente posto em algum agente humano, Conversa com os adolescentes do bairro, contando-lhes suas experiéncias e as armadilhas postas para eles pelo bri- Iho do pé, da arma e do dinheiro ficil. Acredita que os jovens o escutam, Apés a chacina de nove colegas seus numa casa em Cabo Frio, inclusive de uma jovem de dezessete anos vida, que ele atribuiu a um policial, Ourinho ficou horro- sizado com a sua prépria maldade, espelho do que outros fizeram:com seus amigos. Um dia viu Jesus Cristo num dnibus e passou a fazer parte, segundo suas palavras, de um outro CV: Cristo Vence. Mudou de lado na eterna batalha do bem contra o mal absolutos e nie aplica mais a pena de morte aos seus semelhantes, Entrou para a Assembléia de Deus e jogou fora todos os seus objetos de riqueza para dedicar-se a convener bandides, mostrando- Thes que o diabo tem que ser combatido todos os dias. Afirma jé ter convertido 87 deles. Mas os vizinhos que no pertencem 2 sua seita consideram-no um maluco que nunca conseguir atingir o seu objetivo. Os paremtes de suas vitimas continuam ameagando-o com a possibilidade de vinganca, tentando induzio a voltar para o crime, isto 4, carregar uma arma para defender a sua vida e voltar a ‘A CRIMINALIZAGAO Das DROGAS us matar para sobreviver. Os crentes de sua igreja planejam salvé-lo desses vizinhos e do diabo. A batalha, nao mais encenada dentro dele, promete lances dramiticos da eter- na luta entse o bem e 0 mal absolutos, jé agora igualmen- te distribufdos entre bandidos e seus vizinhos respei- tadores da lei, divididos pela religido que professam NOTAS 1, Da primeira equipe faziam parte Eduardo Villarin, Paulo Lins e Maria de Lourdes da Silva. Da segunda, Manoel Palicios, Juliano Werneck Vianna e Maria de Losrdes da Silva. 2. “More broadly, it is money, markets, and market capitalism that eliminates absolute moralities (..) Ie has now become clear that ‘was considered to be the root of evil, namely the love of money, was also the root of all that was good, namely the bargaining (..)” (MacFarlane, 1985, pp. 723). ; 3. Sdo su25 as palavras: “Ambiguamente mas persistentemente, os ‘europeus equacionaram a folclore, a religiio e a identidade africana dos escravos com 0 Diabo (cf. Genoveve, 1974, pp. 159-284). Mas para 0 eseravo africano 0 diabo nfo era necessarjamente 0 espirito wingativo do mal. Ele também era uma figura de alegria ¢ um poderoso trapaceiro. De acordo com Melville Herskovits, os africanos ocidentais entenderam 0 Diabo europe como 0 seu trapaceiro divino, e resistiram na sua filosofia moral 4 dicotomia nitida do bem ¢ do mal adotada pelos missionérios” (Taussig, 1980, . 43). Ao contrério dos negros bolivianos e pervanos que ficaram {solados no litoral, os negros brasileiros continuaram nos centros uurbanos ¢ rurais da exploragio capitalista ou do sistema de mercadorias, mamendo suas divindades e espiritos ambivalentes. 4. O conceito de liberdades negativas foi desenvolvido por varios autores, inclusive Isaiah Berlin, importante filésofo judeu, para distinguir 0 direito de fazer 0 que se quer, a despeito da opiniio ¢ vontade dos outros, do direito positive de participar em decisées democriticas. As liberdades negativas sio as que circunscrevem of ‘chamados direitos individuais contra 0s abusos do poder do Estado. (0 debate em tomo dessa questio tem se concentrado em temas tais 126 DROGAS E CIDADANIA ome 0 aborto, a pornografia e 0 uso de drogas, temas que levantam imediatamente a questio mora) ¢ legal. No casa do crime ‘organizado, porém, 2 falta de definigio legal das liberdades negativas feria um vazio no qual aspectos extremos e maléficos da agio individual ‘se manifestam, pois nfo tem efeitos apenas sobre o individuo que a praticon, tatenda conseqiiéncias perniciosas para os ‘outros, especialmente as vitimas dos crimes violentos. 5. A pesquisa acabou porque wm dos entrevistados, membro da organizagio criminosa mais noticiada no Rio de Janeiro, foi sssassinads durante a entrevista por dois visitantes, também da organizagio, porque ele havia matado anos antes inmio de um dos visitantes, Sabedores da histSria narrada pelo assistente de pesquisa que a presenciou, os comandantes da organizagio decretaram a pena de moree dos assassinos, além da mulher do asrassinado em. cuja casa tudo aconteceu e do tio dessa mulher, apenas porque tinha estado reso com 0 assassinado ¢ poderia ter dado alguma informacio importante. Todas at penas se justificavam pela proibigio de ‘membros da organizagio se matarem por razdes pestoais. ‘6, Numa primeira anilise do material do “Rio contra 0 Crime”, surpreendi-me com alguns textos, escritas com letra fina ¢ elegane, de mogas educadas em bons colégios, que exigiam ou sugeriam os Piores suplicios para os pequenos assaltantes de rua, a serem ‘no Maracand ou na praca da Apoteose e televsionados, “a stl, para todo o Bra (lua, 1905), 7. Maria Sflvia de Carvalho Franco (1974) j& havia chamado eo pete nace éncia costumeira no Brasil rural, em ‘que tamt ‘do haviam limites € controles institucionais claros e fortes ao mando privade dot senhores. BIBLIOGRAFIA ADORNO, Sérgio. “Criminal viclence in modern Brazilian society, the case of S. Paulo. Trabalho apresentado na International Conference of Social Changes, Crime and Police, Budapeste, Hungria, 1992, ARENDT, Hannah, Eichmann in Jerusalem. Nova York, The Viking Press, 1963. ~. Crisis of the Republic. 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Sio Paulo, SEADE, 1991. FA PROBLEMAS SOCIAIS, POLfTICAS PUBLICAS: © CASO DO TOXICO Anténio Luiz Paixéo Esse trabalho busca, de forma muito preliminar, a explorasio de dois aspectos analiticamente importantes para a avaliacdo de politicas de controle do uso e trafico de téxicos. Em primeiro lugar, o problema do téxico per- tence 20 dominio da moralidade. Quer dele gostemos ou desgostemos, a avaliacio do uso-de drogas envolve 0 exa- me das relagées do agente com suas raz6es, intengdes € motivos do mundo institucional e cultural que articula, externa ¢ coercitivamente, obrigasSes, expectativas ¢ demandas de natureza moral ¢ seus membros individuais, A controvérsia em torno da criminalizagio do téxico é exemplo adequado do dissenso moral da cultura na, ¢ definigdes discrepantes e contraditérias de responsabilidades e externalidades de uswirios, traficantes ¢ burocratas representam reorias morais incorporadas em instituigdes e préticas sociais (MacIntyre, 1988). Em segundo lugar, o t6xico é problema de politica piiblica, As sociedades modernas escolheram a repressio legal como instrumento de regulagdo de custos exter- nos atribuidos a opgdes morais de usudrios € estraté- gias empresariais de traficantes. Tal escolha, “resolvendo politicamente” o discurso moral, envolve dois problemas 30 DROGAS E CIDADANIA importantes. O primeito diz espeito a0 escape da lei penal e, conseqiientemente, do controle estatal de atos pri- vados. O segunda tem a ver com os elementos instcumen. tais e simbélicos que afetam a formagio ¢ a implemen- tagio de polfticas publicas. A persisténcia do prablema do téxico, apesar dos altissimos investimentos governamen- tais no combate a ele, parece nfo afetar 0 suparte piiblico a politicas fracassadas de criminalizac3o de usuarios e tra- ficantes. Esse paradoxo indica a importincia da “culvura dos problemas piblicos” (J. Gusfield) na andlise e avalia- sho de politicas estatais. Politicas respondem menos 20 cilculo de custo e beneficio e mais a mitos ambientais sobre a droga como ingrediente de desordesn. I A pouca erudigio do autor desestimula quaisquer vos, sobre a operacio de sistemas de classificagio moral de meios de acesso a “para(sos artificiais”. A sociedade euro- péia dos séculos XVI e XVI nao via com bons olhos 0 consumo - a principio secreto e posteriormente desinibido ~ do agiicar, do élcool, do chocolate e do taba- co produzidos no Novo Mundo, nos informa F. Braudel (1985). No século KIX, 0 épio ¢ a morfina eram muito populares nos Estados Unidos como medicamento e diversio de alguns milhdes de usudrios ocasionais e de 300 mil habitantes (Parsons e Gerstein, 1977, pp. 26-7). Cruzadas moralistas de forte conotagées racistas ~ os migrantes chineses eram vistos como inveterados consu- midores de épio ~ e a profissionalizagio da medicina e da farmicia resultaram na regulacio legal do uso e comer- cializagio de narcéticos nas primeiras décadas do século XX (Parsons e Gerstein, 1977, p. 27). Nessas mesmas décadas, membros da elite e intelectuais brasileiros consu- miram fartamente éter, cocaina ¢ morfina, e a maconha PROBLEMAS SOCIAIS, POLITICAS PUBLICAS 1 era desprezada como “dpio do pobre” (Andrade, 1987; Adiala, 1986). Desde 1921, 0 porte e a venda de drogas sao criminalizados no Brasil. ‘A “epidemia de heroina” nos anos 1950 nos Estados ‘Unidos inicia o moderno “problema piblico” do téxico. Embora a pesquisa empirica seja deficiente, hé indicagdes de que a heroina encontrou nos jovens desempregados desmobilizados pelo fim da Segunda Guerra Mundial, concentrados nos guetos urbanos, a base social de sua expansio. Na década 1965-1975 ela alcanga centros urba- nos médios e pequenos e a juventude de classe média, mobilizada pelos movimentos contraculturais que trans- formaram a expansio da consciéncia, 0 sexo desinibido, © rock’n roll ¢ as drogas em estilo de vida (Parsons ¢ Gerstein, 1977). A repressio autoritéria no Brasil néo impediu que, desde meados dos anos 1910, 0 “pio do pobre” se tornasse habito de jovens de classe média, logo iniciados nos prazeres psicodélicos e, na década seguinte, na cocaina. O resultado dessas epidemias foi a estrutusagio de um mercado de produgio, distribuigio e consumo de drogas “leves” cujos nimeros, contornos, mecanismos de ajuste das curvas de oferta e demanda e processos de operacio so, em enorme extensio, desconhecidos da pesquisa empirica. Devemos 20s economistas 0 avango mais signi- ficativo na descriggo do “mercado de bens ilegais” (Reuter ¢ Kleiman, 1986, Kleiman, 1989): 1, em 1982, nos Estados Unidos, estimava-se em 20 milhdes de pessoas o niimero de usuarios habituais de 6 milhées e 400 mil quilos de maconha e produzindo ren- da entre 15 ¢ 22 milhdes de ddlares; 4 milhdes e 500 mil pessoas consumiram 180 mil quilos de cocaina, gastando entre 19 ¢ 24 milhdes de délares; os 450 mil usuarios de 45 mil quilos de hero{na geraram renda entre 8 ¢ 9,5 milhdes de délares (Reuter e Kleinam, 1986, p. 294). Em

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