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http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=249110
valter hugo mãe regressa com um novo romance, "a máquina de fazer espanhóis",
numa nova editora, a Objectiva (com a chancela Alfaguara), deixando para trás
Maria do Rosário Pedreira, que o revelou em 2004, e Ana Pereirinha, com quem
publicou os seus três romances e ao lado de quem venceu um prémio José
Saramago em 2007. Teve uma crise de choro quando percebeu que mudar de
editora estava iminente, "andei uns dias a fazer um qualquer luto". Tomou uma
decisão de risco por sentir que era necessário colocar-se "nas mãos de pessoas
diferentes, e que ajudem a perspectivar o mundo de um modo diferente". valter
quis pôr-se em crise para "repensar e abalar alguns conceitos prévios". Como neste
livro, sobre a terceira idade, os vários senhores Silva de Portugal e um lar de idosos
subversivos. "Gosto da noção de risco, de alguém entrar na minha vida e
destrambelhar as minhas convicções."
Há alguém que, a dada altura, sai da vida do escritor e igualmente abala as suas
convicções. "a máquina de fazer espanhóis" é dedicado ao pai de valter hugo mãe,
"que não viveu a terceira idade". Numa nota final, o autor explica que o seu pai
"sempre disse que morreria de um cancro antes da terceira idade": "eu achava que
o meu pai era maluco". Este livro é um "e se" dessa velhice, e da velhice de valter
também, explica. "Parece que estou a culpar o meu pai deste livro, não é? Este
livro manifestamente fez-me sofrer um bocadinho. Mas depois de estas coisas
[serem] transformadas em literatura, a minha vida fica mais ligeira. Há um lado
terapêutico" Está à procura de uma salvação. Ao dedicar o livro ao pai, culpo-a "de
todos estes pensamentos."
Passaram dez anos. Durante muito tempo, o pai não foi tema da sua literatura, não
esteve lá. Esteve a mãe, estiveram muitas mulheres. "o apocalipse dos
trabalhadores", por exemplo, "é um livro profundamente feminino, no sentido em
que é uma tentativa de chegar à percepção feminina do mundo, à dignidade
feminina, e por isso é um exercício radicalmente diferente deste". Talvez porque
dez anos sejam o fechar de um ciclo, algo parecia definir-se "agora como nunca" e
o tema pôde, então, impor-se. "Sem que fosse demasiado penoso para mim, ou
intrusivo para o meu pai. E sobretudo para que valesse a pena para a literatura".
Imaginar uma velhice que não se teve e a que não se assistiu "não foi mexer em
nada de novo", uma vez que todas as histórias, por mais autobiográficas, são feitas
de uma "intuitiva imaginação". "A pesquisa", explica, "é o cúmulo da minha vida, é
toda esta acumulação que se chama valter hugo mãe, ou que se chama valter hugo
alves pimenta de lemos, que as pessoas conhecem como valter hugo mãe." Por
isso, entra nessa velhice supondo-se nela, "enfim, tentando entender o ser humano
de um modo universal". Todos somos "um bocadinho de todos os homens." Porque,
como no romance, todos somos "Silva".
Viver contra o aluimento do corpo
Vivemos num tempo em que ser jovem está na moda. "Admiramos profundamente
as pessoas que não aparentam a sua idade", nota valter. Por exemplo: "Gostamos
muito da Madonna porque aos 50 anos parece ter 35." E, no entanto, abre-se cada
vez mais "um fosso entre as pessoas que poderíamos considerar no activo e as
pessoas que, pelo peso da idade, se vão entregando a um conforto" - os velhos.
Estamos irremediavelmente "mais distantes uns dos outros, como se fôssemos
populações de diferentes planetas, de diferentes sociedades".
Isto assusta-o: a geração que hoje tem 30 ou 40 anos "vai ser muito especial
quando chegar a velha, porque muito rarefeita". Somos filhos únicos, ou temos
apenas um irmão, "vamos chegar mais sozinhos à terceira idade, vamos ser
radicalmente menos, entregues, cada vez mais, à nossa própria sorte". Se não
houver uma cultura que perceba os "mecanismos sociais de protecção da terceira
idade, arriscamo-nos a chegar a velhos e termos uma velhice muito menos
confortável, e até substancialmente aterradora", argumenta. Para valter, há toda
"uma política ou uma ideologia acerca da terceira idade que é urgente ser atendida,
para que isso possa resultar numa consciência social que perdure até aos nossos
tempos de velhice." Há um longo caminho a percorrer: ainda temos "demasiados
problemas com lares", ainda andamos "à procura da definição dos direitos de um
cidadão que necessita de assistência", não sabemos "o que exigir a um lar, com
que dinheiro se faz um lar, e onde o vamos buscar".
Voltamos, então, à questão do pai. Porque talvez o fascismo tenha criado o "grande
pai" de todos nós. Se "somos todos silva neste país", todos somos, como se lê,
"silvestres", "crescemos aí como mato". E também todos somos rasteiros, como as
silvas, baixinhas, que não levantam muitas ondas e andam ali por baixo: "Somos
discretos e achamos sempre que não somos capazes de". Talvez todos sejamos
netos do "grande pai". valter reage com alguma indignação: "Eu não quero ser neto
desse senhor! Mas as pessoas que partilham comigo este país, o meu tempo de
vida - não todas, mas uma boa parte delas - elegeram Salazar como o maior
português de sempre. O que é que isso significa?". "a máquina de fazer espanhóis"
procura identificar esse problema e responder a estas questões: "Quem somos,
afinal, em relação ao fascismo, o que é que sobra de neto daquele homem?" Em
valter, não sobra nada de Salazar. Talvez sobre o fado, "que ele promoveu e
abraçou", ou o gosto pelo folclore. "Mas eu tenho uma espiritualidade não-religiosa,
vou às igrejas ver arte, só. Tenho uma concepção da família absolutamente
humanista e sou absolutamente avesso ao poder exercido à revelia e a todas as
formas de censura. Estou no avesso de tudo aquilo em que aquele homem
acreditava, estou no avesso do universo de merceeiro daquele homem."
Aqui juntam-se dois pais: o pai verdadeiro que não viveu a velhice, e um "grande
pai" que é o avô de todos nós. Num escritor que escolheu chamar-se "mãe". Como
se mata o pai? Como se luta contra a "virilidade, esta testosterona que sempre
imperou no nosso país", uma masculinidade subreptícia, silenciada, escondida? "O
meu lado maternal participa neste livro dotando de uma ternura profunda os
homens, os bons fascistas, ou melhor, os bons homens que tiveram de, aqui ou
acolá, fechar os olhos ao fascismo. Nunca percebemos se eles são exactamente
fascistas, ou não." O escritor quer humanizar estes homens, anda à procura "da
dimensão humana do erro", do homem que "ideologicamente e politicamente erra"
e que "pode não deixar de ser profundamente humano". Ou bom homem.
"Este romance tem muito a ver com esse meu lado maternal, feminino, delicado
até, profundamente perecível, lingrinhas [risos]. Esse lado aparece em todos os
meus livros na tentativa de encontrar a humanidade nas situações mais aberrantes.
Foram homens que fizeram aquilo: se chegámos a uma situação aberrante foi
porque alguma coisa na nossa condição humana estava errada", conclui.
No final do livro, o senhor silva grita dizendo "que queria morrer português, queria
ser português com a menoridade que isso tivesse de implicar". Para valter, não
está em causa querer ser espanhol, "o que está em causa é esta frustrante
persistência de um sentimento de que não somos tão bons quanto os outros". Acha
que nos devíamos entender, nós e os espanhóis. "Somos diferentes. Gosto que
sejamos fadistas, e sou mais fadista no estrangeiro. Há qualquer coisa em mim
que, se não vier das carnes, do sangue e dos ossos, vem da cultura, que suscita a
necessidade de ser mais fadista em determinadas situações. E gosto que um
espanhol possa ser sevilhano, ter os olhos na testa como nos quadros do Picasso, e
falar-me do Goya com o orgulho que lhe compete". valter quer Portugal como um
país de "gente que se esforça por impressionar os outros, por se melhorar a si
própria e que possa depois orgulhosamente dizer aos outros: eu sou o país do
Camões, do Fernando Pessoa, do Herberto Hélder. Eu sou o país da Amália
Rodrigues."
Talvez por isso, o cânone da língua, de Camões a Herberto, passando por Eugénio
de Andrade e, sobretudo, Pessoa, esteja no livro de forma explícita. Há uma
personagem, o "Esteves sem metafísica", roubada à "Tabacaria" do Álvaro de
Campos. "O Esteves entra aqui por um delírio e por uma paixão enorme pelo
Pessoa. O que fiz com o Esteves foi um jogo como o Pessoa gostava de fazer, um
jogo puramente pessoano: mostrar como a literatura, por mais que se ocupe da
realidade, se faz de ficção e vai ao encontro daquela máxima de que o poeta é um
fingidor. Por isso, fingi coisas acerca do Pessoa, e fingi coisas acerca de uma
personagem sua, para brincar com ele com as sua próprias armas." Há aqui uma
certa ironização do papel do escritor, um fazer justiça às personagens, um "colocar
em crise da dignidade do escritor": "Se abalo os grandes louros do Pessoa, estou
imediatamente a abalar-me a mim também".
No camarim dos artistas da Casa da Música, valter hugo mãe põe o chapéu por
causa da corrente de ar. "Agora sou outro." Cresceu a admirar David Bowie e
"aquela coisa camaleónica de se repensar, de arriscar, de ser outro, sendo sempre
ele mesmo." A conversa segue, então, sobre os Governo, projecto do escritor com
Miguel Pedro e António Rafael, dos Mão Morta. O disco, "propaganda sentimental",
saiu no final de 2009, e valter justifica: "Estamos fartos de governos que falham, e
que nos iludem." A propaganda é sentimental, porque a outra já não serve: "A
única coisa que é verdade é o que vem dos afectos. Este é um governo para
profundas declarações de amor, para a gestão dos corações".
Os portugueses podem votar: ao fazer o "download" gratuito do álbum no site da
editora, "cada pessoa está a votar em nós e motiva-nos a prosseguir". Concertos só
lá para Setembro. Os Mão Morta estão a gravar um novo álbum e a celebrar 25
anos de carreira, uma efeméride que não lhes permite governar.
Admite que sempre quis ser cantor, desde miúdo, mas a timidez não o deixava
dizê-lo a ninguém. A ideia de alguém lhe dizer "ah, és cantor? Então, canta lá
alguma coisa" foi o suficiente para ficar calado muitos anos. Cantar tem, então, a
ver com uma proposta de vida: "Ter alguma lata." O palco ainda mete medo,
"facilmente tropeço nos meus próprios pés", mas, assume "acima de tudo o risco".
Correr riscos e aceitar falhar seguindo a máxima de Beckett, "falhar, falhar sempre,
falhar melhor".
Rui Reininho disse que valter era uma espécie de Antony com Variações. Valter
identifica-se, mas fica chateado que lhe digam que é uma versão portuguesa do
Antony. "A voz dele é um luxo absolutamente requintado e, ao pé dele, sou uma
peixeira com voz de homem." Mas também não é bem Variações, apesar de sentir
"aquela coisa da insatisfação". Os poemas passam por aí, "não estou bem aqui, só
estou bem onde não estou". Antony e Variações são referências valiosas, mas, se
calhar, Reininho é que é referência maior. Há uma ligação natural de valter a
Anthony (são amigos, e Anhony é personagem no romance "o nosso reino"), mas,
se prestarem bem atenção, "encontram mais facilmente o Reininho ali dentro,
como encontrariam outras pessoas como David Thomas Broughton, ou Chet Baker",
sem o veludo do Chet. E encontrariam a mulher inimitável: Billie Holiday. "No
fundo, sou um profundo imitador da Billie Holiday. Sou a Billie Reininho."
R.R.