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Vamos iniciar nosso estudo tentando descobrir o que é o direito. Afinal, o que você
espera encontrar neste livro?
Para começar, peço que você faça um exercício mental para imaginar três
julgamentos hipotéticos ocorridos em contextos muito diferentes entre si, mas que
envolvem um crime nada divertido: o estupro.
O primeiro caso ocorreu no coração da selva amazônica, em uma tribo isolada, que
nunca manteve contato com o mundo “civilizado”. Um índio ianomâmi praticou um
estupro contra a esposa de um membro de sua tribo e foi julgado e condenado pelos seus
pares. A pena: banimento. A tribo concordou em banir aquele índio estuprador do convívio
social e expulsou-o da comunidade. Até hoje o índio malfeitor vaga solitário pelas noites
escuras da floresta selvagem...
O segundo caso se deu em uma favela dominada pelo crime organizado. Houve um
estupro e os familiares da vítima procuraram o chefe do tráfico de drogas da comunidade,
clamando por vingança. O chefe da organização criminosa montou uma espécie de tribunal
paralelo com todos os princípios básicos de um julgamento oficial, ouviu a versão do
acusado, ouviu a vítima e algumas testemunhas e concluiu que o estupro ocorrera de fato.
De imediato, o criminoso-chefe sentenciou o estuprador e o condenou à pena de morte,
determinando ainda que a punição fosse executada com crueldade. Dez horas depois da
condenação, o estuprador foi encontrado morto e carbonizado no meio de um campo de
futebol que existia na favela.
Temos, nos exemplos acima, três situações hipotéticas que poderiam ter ocorrido
de verdade. Quais dos julgamentos podem ser considerados como direito?
É fácil perceber que a resposta a essa pergunta irá variar conforme a perspectiva de
análise. Existem muitas controvérsias quanto à definição de direito. Aliás, não existe
discussão mais acalorada e mais estéril do que a discussão em torno da definição de
direito. Para alguns, o direito da favela, o direito canônico, o direito indígena, o direito da
máfia, o direito internacional poderiam ser enquadrados no conceito de direito; para
outros, não. Para alguns, só é direito o direito positivo, imposto coercitivamente pelo
estado; para outros, também os princípios de justiça (direito natural), ainda que não
reconhecidos oficialmente pelo estado, fariam parte do conceito de direito. Para alguns, só
seria direito o que está na lei; para outros, o direito seria muito mais do que a lei.
Lei
Regras
Justiça
Obrigatórias
O que vêm à
mente quando
se pensa em
direito?
Costume Norma
Resolução
Julgamento
de conflito
1
O exemplo é meramente hipotético, mas não está muito longe da realidade. Há muitos juristas que
consideram que a experiência sexual anterior da menor é suficiente para descaracterizar o estupro
presumido caso haja o consentimento da vítima. O entendimento, contudo, é minoritário.
Quem está certo e quem está errado? A rigor, não dá para dizer quem está certo, já
que não existe alguém que seja titular da patente da etiqueta “direito”. A palavra “direito”
serve para designar um conjunto muito amplo de fatos sociais. Por isso, cada pessoa pode
definir como quiser, bastando que assuma as conseqüências de sua definição de forma
coerente e encontre um grupo de pessoas que aceitem e compreendam tal definição.
A definição de uma palavra depende do uso que as pessoas fazem dessa palavra. No
caso da palavra “direito”, as pessoas costumam utilizá-la em muitos sentidos diferentes.
Por isso, a definição de direito vai depender do uso lingüístico que um determinado grupo
social faz dessa expressão em um determinado contexto. Assim, não se pode dizer, em tom
taxativo e intransigente, o que é direito, pois essa palavra tem muitos usos diferentes.
A pergunta acima usa a palavra direito em duas acepções diferentes. “Saber direito”
significa “saber bem”, “saber corretamente”. Logo, a palavra direito, nessa expressão, está
no sentido de certo. No entanto, não é esse o sentido que adotamos quando perguntamos
para um grupo de estudantes da graduação de um curso jurídico “o que é direito?”. Aqui, a
palavra direito não tem um sentido muito preciso, mas, pelo contexto em que a pergunta
foi formulada, parece que pode ser traduzida como algo mais ou menos assim: “o que
vocês esperam estudar quando ingressaram na faculdade de direito”? Dito de outro modo:
“qual é o objeto de estudo de um estudante de direito”?
Perguntar sobre qual deve ser o objeto de estudo de um estudante de direito é uma
pergunta mais simples, pois é mais prática e talvez menos controvertida. Porém, até
mesmo essa pergunta pode gerar várias respostas diferentes. Há quem responda: “por
mim, não quero estudar nada. Quero é o diploma e ponto final”. Mas para esses alunos
não há muito o que dizer, exceto desejar-lhes boa sorte. Alguns mais patriotas dirão:
“pretendo estudar as leis do meu país”. Outros responderão: “quero estudar não apenas as
leis, mas todas as normas jurídicas aprovadas pelo estado”. Alguém, com a mente mais
aberta, diria: “pois eu desejo conhecer não apenas as normas jurídicas aprovadas pelo
estado, mas também todas as informações que possam ser úteis ao profissional do
direito”. E assim por diante...
O campo de estudo do jurista pode se tornar muito vasto na medida em que se abre
o leque de opções. Com isso, a própria definição de direito vai se tornando mais ampla.
Existem juristas legalistas que dizem que o direito é lei e nada mais do que a lei, mas este
tipo de jurista já está praticamente extinto. Outros dizem que o direito não tem nada a ver
com a lei, mas com a justiça – a lei seria um mero instrumento que muitas vezes se choca
com o conceito de justiça e, quando isso ocorre, o jurista deveria deixar a lei de lado e fazer
justiça. Há ainda os que sustentam que a lei é um produto social e, portanto, para conhecer
o direito é preciso estudar a sociedade como um todo, inclusive seus costumes e tradições.
Há quem diga que o direito autêntico é aquele que é produzido pelo estado; outros
responderão que o direito não é apenas o que o direito estatal, pois o pluralismo jurídico,
onde várias ordens normativas não-estatais concorrem com a ordem normativa “oficial”, é
uma realidade social inquestionável, sendo que, muitas vezes, a ordem jurídica estatal
sequer é a mais importante na gestão normativa do quotidiano da grande maioria dos
cidadãos. Como se vê, no final, há tanta divergência sobre a definição de direito que as
pessoas só podem estar falando de coisas diferentes, ainda que usando a mesma palavra.
E é isso mesmo. Como já foi dito, a palavra direito é um mero rótulo e pode ser
usada para se referir a muitas coisas diferentes. Se tivermos consciência disso, deixaremos
de perder tempo com muita discussão inútil que não leva a lugar nenhum. Por isso, vou
evitar, por enquanto, fornecer uma definição de direito. Ao invés disso, vou apresentar
algumas propostas famosas para tentar compreendê-las adequadamente.
Vou mirar em três propostas bem conhecidas: (a) direito é justiça; (b) direito é lei
ou norma positiva imposta pelo estado; (c) direito é toda forma de resolução de conflitos
sociais, inclusive aquelas que ocorrem à margem do direito estatal.
O que é
direito?
Direito é
Direito é
Resolução
Justiça
de Conflito
Direito é
Norma
Positiva
Dentro dessa ótica, a lei estaria estreitamente ligada à idéia de justiça. Mas
Aristóteles não era tão ingênuo. Ele sabia que, algumas vezes, a solução legal poderia
resultar em uma situação de injustiça, já que “a lei é sempre uma declaração geral e
existem casos que não podem ser abrangidos em uma declaração geral”. Em situações
assim, na concepção aristotélica, o papel do juiz seria restaurar a eqüidade, o que significa
dizer que o juiz deveria corrigir eventuais distorções pontuais contidas nas leis. Eis suas
palavras:
“quando a lei formula uma regra geral e depois disso surge um caso que é uma
exceção à regra, é correto, ali onde o pronunciamento do legislador é imperfeito e
errôneo por causa de seu poder absoluto, retificar o defeito, decidindo como o próprio
legislador decidiria se estivesse presente na ocasião, e como ele teria decretado se fosse
notificado do caso em questão” (p. 16).
Assim, para Aristóteles, as soluções para os problemas jurídicos não deveriam ser
estabelecidas de maneira rígida, mas como a régua de chumbo usada pelos construtores
de Lesbos, que se amolda às circunstâncias do caso. O importante, nessa perspectiva, é que
todos os agentes estatais (juízes, legisladores, governantes) exerçam suas atividades com o
objetivo de proporcionar a felicidade da comunidade política (polis), que é um dos sentidos
da palavra justiça. Para Aristóteles, o objetivo da polis seria a boa vida, e todas as
instituições sociais seriam instrumentos para alcançar esse objetivo. Assim, as leis também
deveriam servir a esse propósito, funcionando como um instrumento para estimular as
virtudes necessárias para que os membros da comunidade cumpram seu papel social com
excelência e alcancem a felicidade.
Ainda que as idéias de justiça de Aristóteles sejam muito mais abrangentes do que
as expostas nos três parágrafos acima, o certo é que houve uma clara tentativa de vincular
a noção de lei ou de direito com a noção de justiça (ou pelo menos, uma certa noção de
justiça).
Alguns séculos depois, essa mesma idéia foi incorporada ao direito romano. O
jurisconsulto Ulpiano foi o responsável pelo desenvolvimento dos famosos preceitos que
sintetizam a essência do direito: viver honestamente, não lesar a ninguém e dar a cada um
aquilo que é seu. Esses três preceitos possuem uma inegável origem na concepção
aristotélica da justiça.
Viver
Honestamente
Os três preceitos
Não ofender
do direito
ninguém
segundo Ulpiano
Dar a cada um o
que lhe pertence
Essa proposta é simpática, porque, de fato, todos desejam que o direito seja justo.
A própria palavra direito traz em sua etimologia um juízo de valor que se aproxima da
noção de justiça. Justo é o correto; o correto é direito. Dito de outro modo: aquilo que não
é certo não poderia ser considerado como direito. Logo, a palavra direito só poderia
significar algo que se pretenda justo, ou seja, algo que aprovamos. Vários filósofos do
direito defendem que o direito deve necessariamente possuir uma “pretensão de
correção” ou então que deve se aproximar da “idéia de justiça”. O sistema normativo que
não tiver em mira esses objetivos não poderia merecer o rótulo de direito.
Foi nesse sentido que alguns juristas, com uma visão mais prática e mais voltada
para a realidade, sugeriram que o direito não teria nada a ver com a justiça. Essa história
de justiça seria conversa pra boi dormir, ou seja, não passaria de retórica vazia. Direito
seria força, poder, comando, ordem, sanção, imposição. Dentro dessa ótica, quem tivesse
talento para alcançar o poder político teria o poder para produzir o direito. Essa idéia foi
sustentada, por exemplo, pelo jurista inglês John Austin, durante o século XIX.
Austin reconhecia a existência de outros tipos de leis que não são impostas por um
soberano, como as leis religiosas, provenientes de Deus, e as leis morais, que são fruto da
opinião e do sentimento dos seres humanos. Porém, na sua ótica, só serão consideradas
como direito aquelas leis coercitivas estabelecidas por superiores políticos para inferiores
políticos. A superioridade política mencionada por Austin nada mais seria do que o poder
de afetar outros com mal ou sofrimento e de forçá-los por intermédio do medo a moldar
sua conduta segundo seus desejos. O superior político seria aquele que pode obrigar o
inferior político a obedecer aos seus desejos. O que vai definir se uma pessoa é
politicamente superior a outra é o hábito: X é superior a Y se e somente se Y tem o hábito
de obedecer X e não o inverso.
As regras impostas pelos soberanos aos súditos comporiam o direito positivo, que
seria a matéria específica do direito e, por conseqüência, dos juristas. O estudo teórico do
direito positivo seria objeto da disciplina “Jurisprudência”, que é um termo com duplo
sentido, já que também pode se referir ao conjunto de precedentes judiciais de um
determinado país. No sentido utilizado por Austin, Jurisprudência ou Ciência do Direito
seria o estudo teórico do direito positivo, ou seja, seria a análise das leis positivas, análise
esta que deveria ser feita sem levar em conta a bondade ou a maldade da lei. Afinal, a
existência de uma lei seria uma coisa, e o seu mérito ou demérito seria outra coisa. A lei
positiva seria uma lei, mesmo que as pessoas não gostassem de seu conteúdo. E o jurista
deveria estudá-la tal como existe.
Estabelecem como as
Determinam a regras primárias devem
obrigatoriedade de ser aplicadas, alteradas
uma certa conduta, ou revogadas,
impondo deveres aos conferindo poderes aos
seus destinatários seus destinatários
Apesar das divergências teóricas existentes entre Austin e Hart é possível perceber
um ponto comum entre eles. Ambos acreditam que o direito positivo está vinculado ao
poder estatal e não tem nada a ver com a moralidade, com a ética ou com a justiça. Muitas
ordens e leis estatais poderiam eventualmente ser úteis, boas e justas, mas isso ocorreria
por uma mera questão de coincidência. O direito, por si só, não seria bom nem mau. Mas
poderia ser bom e poderia ser mau, dependendo do ponto de vista e do uso que seria feito
dele. Algumas vezes, a lei positiva poderia coincidir com a justiça; outras vezes, poderia
divergir. Na prática, para saber o que é o direito, não adiantaria olhar para as estrelas e
procurar a justiça. O que importa não é o conteúdo, pois mesmo uma norma opressora e
injusta continuaria a ser direito, bastando para tanto que as autoridades estatais
reconheçam a sua validade e a imponham coercitivamente às demais pessoas. Daí a
conclusão: direito não teria nada a ver com a justiça ou com a moral. Direito seria norma
vinculante. Se for reconhecida a validade da norma pelas autoridades responsáveis por sua
aplicação, então tem-se o direito, ainda que a norma não seja justa. Eis, em síntese, o
significado de direito adotado por muitos adeptos do positivismo jurídico, que é uma das
mais influentes escolas do pensamento jurídico.
Nas comunidades mais pobres, como nas favelas, por exemplo, quase ninguém
pensa em procurar as autoridades estatais para solucionar seus problemas interpessoais,
até porque a confiança que os grupos menos favorecidos depositam no estado não é muito
elevada. Os mais pobres, para solucionarem os seus conflitos interpessoais, procuram os
líderes comunitários ou outras pessoas influentes dentro daquele grupo. Assim, quando há
uma briga entre vizinhos, poucos cogitam em entrar com uma ação judicial para resolver o
conflito. Geralmente, procura-se o presidente da associação de moradores ou outro líder
comunitário que irá tentar solucionar aquele litígio com base no costume local ou na
eqüidade e não propriamente nas normas jurídicas oficiais.
Eis uma síntese de três idéias em torno da definição de direito. Pela primeira, o
direito estaria necessariamente vinculado a alguma noção de justiça. Pela segunda, o
direito seria uma norma estatal validamente imposta independentemente de seu
conteúdo. Pela terceira, o direito seria o que a sociedade aceita como padrão de solução
de conflitos, mesmo que não seja imposta pelo estado e mesmo que não tenha qualquer
sentido ético.
Espero não ter causado muita confusão na cabeça do leitor ao apresentar essas três
propostas aparentemente contraditórias e, ao mesmo tempo, razoáveis sobre o conceito
de direito. Você é capaz de concordar com todas as três pelo menos em alguma medida?
Se isso ocorre, é por uma razão muito simples: no fundo, elas não são tão contraditórias
assim... Toda a confusão decorre do fato de que filósofos, juristas e sociólogos estão
utilizando a palavra direito para se referirem a coisas distintas. O desacordo de fundo é
mínimo; a grande divergência é meramente semântica.
1 - Aquilo que aquele prefeito fez não é direito. Ele gastou boa parte do orçamento
municipal em propaganda e shows populares.
Nas situações acima, a palavra direito aparece com significados bem diferentes.
Algumas vezes, a palavra direito é utilizada com um tom de aprovação, outras vezes com
um tom quase neutro e, em outras, num tom até mesmo depreciativo, como na última
frase.
Para a perspectiva sociológica, em todos os três casos o que houve foi a resolução
de um conflito social por instituições organizadas e burocratizadas seguindo regras sociais
aceitas pelo grupo afetado pela decisão. Logo, não haveria porque negar o rótulo de direito
para qualquer dos três julgamentos mencionados. Também os sociólogos evitam usar a
palavra direito num sentido de aprovação. O que importa é verificar a realidade social e
descobrir as formas de resolução de conflitos adotadas pela sociedade.
Por outro lado, dentro de uma perspectiva filosófica, é provável que apenas o
julgamento do índio fosse considerado como direito, pois é a que melhor se aproxima de
uma solução afinada com o sentimento de justiça da comunidade indígena. O julgamento
do estuprador da favela não teria sido justo no seu resultado, já que a punição com
crueldade não pode mais ser tolerada na atual fase de evolução da nossa sociedade
contemporânea. Do mesmo modo, o julgamento do empresário teria resultado em
injustiça, pois permitiu a impunidade de um violentador de crianças por uma mera filigrana
jurídica. Assim, nem o julgamento da favela nem o julgamento do Tribunal de Justiça
poderiam ser considerados como direito, no sentido filosófico ora defendido. Aqui, a
palavra direito não é neutra, pois só pode ser tido como direito aquilo que podemos
aprovar.
Será impossível resolver a questão se não for reconhecido que o direito está sendo
utilizado para designar realidades diferentes. No final, é provável que todos sejam capazes
de concordar com os seguintes pontos essenciais:
Quando criamos uma palavra como “direito”, nossa intenção é tão somente
simplificar um fenômeno complexo, apelidando-o com uma palavra mais simples para
facilitar a comunicação. Como vários fenômenos complexos diferentes podem ser
chamados de direito, basta que deixe claro que está tratando de uma coisa diversa e todos
se entenderão. Do contrário, todos brigarão por uma mera patente que não é de ninguém,
gerando uma discussão inútil, desgastante e infrutífera. Talvez isso fique mais claro com
exemplos.
Na foto, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos olha de soslaio para o jurista Hans Kelsen que olha
para você, esperando sua opinião
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos formou-se originalmente em
direito, na Universidade de Coimbra. Dizem que era um aluno brilhante, que tinha um
futuro promissor no meio jurídico, mas se revoltou com o conservadorismo do pensamento
jurídico português e preferiu seguir uma carreira mais “transgressora” (palavras dele) na
sociologia. Ele narra seu percurso intelectual no texto auto-biográfico “Frente-al-espejo:
relaciones entre las percepciones a las que llamamos identidad”. Lá, diz expressamente que
se desencantou com a “dogmática jurídica” e percebeu que, para entender o direito, seria
preciso realizar um enfoque exterior ao direito. Para isso, assim que se graduou, optou por
abandonar a faculdade de direito de Coimbra, onde prevaleciam “relações intelectuais de
caráter feudal”, que impossibilitavam uma abordagem mais sociológica do fenômeno
jurídico. Segundo ele, a influência germânica, fortemente positivista, impedia uma maior
aproximação entre o direito e a sociologia, fato que comprovou pessoalmente ao fazer
uma pós-graduação na Alemanha. Por isso, optou por prosseguir seus estudos nos Estados
Unidos, mais especificamente em Yale, onde cursou o doutorado em sociologia do direito.
Naquela faculdade, encontrou um ambiente mais fecundo para a libertação intelectual que
ele procurava.
Nos anos 1970, Boaventura saiu em campo para escrever sua tese de doutorado
tratando da resolução de conflitos nas favelas brasileiras. Escolheu, em particular, a favela
do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que, por razões de segurança, foi chamada por ele de
“Pasárgada”, em alusão ao famoso poema de Manuel Bandeira.
Essa definição teve como claro e confessado propósito ideológico defender uma
concepção de direito pluralista. Dentro dessa concepção, a produção do direito (vista nessa
dimensão bem ampla) não seria mais uma atividade exclusiva do estado, já que não seriam
apenas as autoridades estatais que solucionam conflitos com base na força, na retórica e
na burocracia. Ao lado das decisões proferidas pelos juízes oficiais, também seriam
“direito”, na ótica de Boaventura, as decisões tomadas por uma associação de moradores
de uma determinada favela envolvendo uma disputa entre vizinhos, por exemplo.
Monismo Pluralismo
Toda Existem outras
manifestação do manifestações do
direito decorre direito fora do
do poder estatal. estado.
Dou um exemplo. Imagine que um fiscal ambiental tenha aplicado uma multa a uma
empresa que poluiu uma lagoa. Para saber se essa ordem é uma ordem de direito, seria
preciso saber, em primeiro lugar, se esse fiscal tem a atribuição legal para realizar esse tipo
de atividade, ou seja, se ele é juridicamente competente para aplicar multas ambientais.
Em caso afirmativo, é preciso saber se a lei autoriza a aplicação da referida multa naquela
situação e se o valor da multa está de acordo com o limite estabelecido na lei. Se, de fato, a
lei autoriza a aplicação da referida multa, é preciso saber se essa lei foi aprovada de acordo
com o processo legislativo previsto na Constituição vigente. Se a resposta for positiva,
então a ordem emanada daquele fiscal seria uma ordem válida e, portanto, seria uma
ordem de direito.
Não é do perfil do jurista ficar em cima do muro. Juristas têm que realizar escolhas e
justificá-las consistentemente. Até agora, tentei apresentar algumas concepções de direito
reconhecendo seus méritos e deméritos. Cheguei à conclusão de que todas são corretas
em um certo sentido e, no fundo, não são tão inconsistentes entre si quanto se costuma
achar. Apesar disso, pouco falei sobre o que eu penso que seja o direito. Vou, portanto,
tomar partido, mas ressalto mais uma vez que não excluo outras definições e outros
sentidos que a palavra “direito” eventualmente possui. Aqui, me limitarei a defender o que
eu considero que deva ser o direito enquanto objeto de estudo, de pesquisa e de trabalho
do jurista. Não afasto, portanto, outras concepções que possam ser adotadas em outros
contextos mais variados.
Por isso, é perigoso dizer que “o direito do criminoso é direito” ou então “o direito
nazista é direito” sem cair numa confusão conceitual desnecessária. Nesse aspecto, estou
com aqueles que vinculam a noção de direito a uma intenção de justiça. Na prática, isso vai
significar que nem toda resolução de conflito poderá ser considerada como direito, do
mesmo modo que nem toda norma positiva poderá receber o rótulo de direito, ainda que
válida. O “direito” que não possua essa dimensão axiológica não é verdadeiramente
direito, mas pura e simplesmente a força travestida de direito ou um simulacro de direito.
Que fique bem claro, portanto, que o direito positivo nem sempre será direito, ainda que
imposto por uma autoridade pública. Em minha ótica, só é direito aquilo que podemos
aprovar numa perspectiva ética. Por isso, para mim, o direito é o poder que se justifica
eticamente, noção esta que desenvolverei mais à frente.
Mas não censuro aqueles que adotam um conceito neutro de direito desde que
esclareçam esse aspecto previamente. Se alguém quiser adotar um conceito bem amplo de
direito e opte por chamar o direito dos criminosos de direito, não há problema, desde que
se deixe claro que o direito dos criminosos viola o direito oficial do estado. Assumir que o
direito dos criminosos é direito não significa reconhecer que o direito dos criminosos não é
anti-jurídico ou não é algo intrinsecamente errado. Na definição de direito de Boaventura,
há lugar também para o direito dos criminosos, pois o direito dos criminosos se baseia na
força, na retórica e na burocracia. Na época em que Boaventura fez o seu estudo, ou seja,
nos anos setenta, as favelas brasileiras ainda não eram dominadas pelos grandes
traficantes ou pelas milícias, de modo que a resolução de conflitos talvez ocorresse de
forma menos violenta do que as que são impostas pelas organizações criminosas nos dias
de hoje. Mesmo assim, um aspecto relevante da definição de direito de Boaventura é que,
nele, estariam incluídos até mesmo julgamentos realizados por grupos criminosos, como o
tribunal paralelo criado pelo PCC – Primeiro Comando da Capital. Boaventura não inclui a
idéia de justiça, nem a ética, nem o reconhecimento estatal entre os ingredientes
indispensáveis para caracterizar o direito. Apesar disso, dificilmente ele assumiria um juízo
de valor positivo acerca das práticas criminosas mais violentas.
Por uma opção ideológica, contudo, é preferível não incluir o direito dos criminosos
no conceito de direito, pois isso pode gerar uma má-compreensão sobre aquilo que se quer
dizer. É inegável que os criminosos possuem códigos de conduta cuja estrutura é muito
semelhante à estrutura das normas jurídicas oficiais; realizam julgamentos paralelos
observando um processo rudimentar com algumas garantias semelhantes às observadas
pelos juízes do estado2; executam suas decisões com a força (coação) e, às vezes, até
mesmo produzem atos que podem ser, sob determinado ângulo, considerados como éticos
ou, pelo menos, aceitos pela sociedade. Apesar disso, por uma questão de escolha
valorativa, não vale a pena chamar esse sistema criminoso de direito. É que a palavra
direito tem um sentido popular que lembra a idéia de correção, de algo que é certo. E o
direito dos criminosos não é certo. Por isso, chamar o direito dos criminosos de direito
pode gerar uma falsa sensação de que se concorda com a existência de um tal sistema e,
creio eu, nem mesmo os sociólogos mais progressistas aceitariam isso.
De minha parte, prefiro não chamar o direito nazista de direito, pela mesma razão
já apontada, ou seja, o uso comum da palavra direito, pelo menos em língua portuguesa,
está vinculado à idéia de justo, de correto, e certamente o direito nazista não era
eticamente correto.
Aliás, essa discussão me fez lembrar um professor que fazia a seguinte comparação
para justificar o conceito kelseniano de direito. Ele dizia que “assim como um sapato velho
é sapato, um direito injusto também é direito”. A analogia não é adequada por uma razão
muito simples: ao contrário da palavra “sapato”, que é sempre neutra, a palavra “direito”
tem um sentido de aprovação que só pode ser deixado de lado se isso for esclarecido
previamente.
Perceba que a discussão é outra quando alguém afirma que “a lei nazista era lei”.
Nessa frase, praticamente não há desacordo. A palavra “lei”, ao contrário da palavra
“direito”, não costuma ter, pelo menos em língua portuguesa, nenhuma pretensão de
correção. Por isso, ela pode ser usada para se referir aos sistemas normativos justos ou
injustos. Aliás, é até importante que se perceba que a lei pode ser injusta, pois isso
obrigará que se faça uma constante avaliação moral do sistema legal, forçando o jurista a
se preocupar com as conseqüências éticas de sua atividade. Se tivermos consciência disso,
perceberemos que nem toda lei pode ser enquadrada no conceito de direito, exceto se a
palavra direito estiver sendo utilizada num tom neutro.
Para que sejam alcançadas soluções imparciais, nas quais os envolvidos possam ser
tratados como merecedores de igual consideração e respeito, é necessário um mínimo de
institucionalização dos critérios de julgamento. Institucionalização esta que se manifestará
através de normas, expressas ou implícitas, reconhecidas e aceitas pela comunidade como
normas válidas. O direito que não busque essa validade normativa é arbítrio e não direito.
Não estou falando de normas pré-estabelecidas que regulem detalhadamente a solução de
cada caso e preveja, sem nenhuma margem de dúvida, a resposta aos problemas jurídicos.
Esse tipo de proposta é impossível de se concretizar, pois a vida é muito dinâmica e
complexa para ser previamente normatizada, nem isso seria desejável. O que é necessário
é apenas um padrão de normatividade que sirva de norte para fundamentar e balizar as
soluções jurídicas. Esse padrão de normatividade deve ser um padrão axiológico – ou ético
– que possa ser justificado objetivamente e compreendido por pessoas racionais. Aliás, a
justificação das soluções escolhidas também é uma nota essencial para caracterizar o
direito. Um julgador que não se preocupe em fornecer explicações convincentes sobre o
conteúdo de sua decisão está a um passo de cair no arbítrio, que é tudo o que o direito
pretende evitar.
O direito estatal possui algumas funções sociais que são compartilhadas por outros
mecanismos desenvolvidos pela sociedade que funcionam de forma paralela ao sistema
oficial. Por exemplo, uma das funções do direito estatal é a resolução de conflitos que,
como se viu, também é uma atividade exercida por sindicatos, empresas, famílias, escolas,
igrejas etc. O mesmo se pode dizer da função de controle social. Não são apenas as leis
aprovadas pelo parlamento que estabelecem diretrizes comportamentais para os
indivíduos. Há outros tipos de normas – éticas, econômicas, sociais, religiosas – que
também regulam as condutas dos indivíduos e muitas dessas normas também são
chamadas eventualmente de direito pela sociedade. As leis canônicas, da Igreja Católica e
da Igreja Anglicana, por exemplo, também são chamadas de direito e possuem uma
estrutura e função muito semelhantes às das leis estatais. Por isso, é possível afirmar que
existem diversos espaços de produção do direito além do espaço estatal.
Portanto, como conclusão, diria:
(a) é possível chamar muitas coisas diferentes entre si de direito. Não há problema
nisso, desde que se saiba exatamente do que se está falando. O rótulo nunca deve ser mais
importante do que o conteúdo;
(c) vincular o direito ao sistema normativo estatal não significa negar a existência de
outros sistemas normativos que funcionam à margem dos mecanismos institucionais
oficiais de resolução de conflito. Dentro de uma perspectiva sociológica, o pluralismo
normativo regulando a vida social é uma realidade inquestionável;
(d) de minha parte, prefiro incluir a ética e a justiça como ingredientes básicos dos
sistemas normativos que queiram o rótulo de direito, sejam eles oficiais ou não. Por isso,
com relação aos exemplos citados no início deste capítulo, apenas o julgamento indígena
poderia ser enquadrado dentro daquilo que eu chamaria direito.
Você deve estar pensando, com razão, que essa conclusão é demasiadamente
escorregadia. Ela não responde à principal pergunta que me comprometi a responder:
afinal, o que um estudante de direito deve estudar?
Talvez o leitor mais perspicaz tenha percebido que a resposta a essa pergunta vai
depender de um fator adicional: da escolha de uma determinada escola de pensamento.
Dentro da teoria do direito, existem diversas escolas de pensamento com propostas muito
diferentes entre si. E isso afetará imensamente o tipo de estudo que um estudante de
direito fará. No próximo capítulo, analisarei alguma das escolas jurídicas mais importantes,
tentando apontar os seus pontos fracos e pontos fortes.
Leituras Complementares
Existem mais livros sobre a definição de direito do que pode abarcar a minha
humilde capacidade de pesquisa. Praticamente todos os livros de Filosofia do Direito, de
Teoria do Direito ou de Introdução ao Direito procuram apresentar algumas definições
mais conhecidas. Não há juristas, filósofos e sociólogos do direito que não tenham dado a
sua contribuição nessa matéria.
No livro “Os Grandes Filósofos do Direito” (Ed. Martins Fontes), organizado por
Clarence Morris, há o texto em português dos principais trechos das obras dos juristas mais
conhecidos. Algumas citações deste capítulo foram extraídas do referido livro.
A definição de direito como justiça pode ser lida em diversos outros autores. O
jurista alemão Robert Alexy, que é um dos mais influentes da contemporaneidade,
defendeu que o direito necessariamente tem que ter uma “pretensão de correção”. Suas
idéias básicas a esse respeito podem ser vistas no livro “Conceito e Validade do Direito”.
A sociologia jurídica crítica do português Boaventura de Sousa Santos pode ser lida
em várias obras do autor. Sugiro, em particular, o texto em espanhol “Sociología Jurídica
Crítica”, que reproduz os principais estudos “jurídicos” do sociólogo.
A idéia de que o significado de uma palavra é o seu uso na língua foi formulada por
Wittgenstein, que dizia também que “a fonte principal de nossas incompreensões é que
não reconhecemos o uso de nossas palavras”. Outros filósofos, como J. L. Austin e John
Searle, sugeriram que a pergunta decisiva na compreensão das frases e das palavras não é
se elas estão certas ou erradas, mas se a compreensão acontece ou não no sentido
pretendido por aquele que a utilizada num ato de fala. Este capítulo adota essa idéia
integralmente. O texto “Definição de ‘definição’”, de Desidério Murcho, também foi muito
útil.
Alguns insights para as idéias contidas neste capítulo vieram à minha mente depois
que li um trecho em que Karl Popper defendeu que as definições devem ser lidas “da
direita para esquerda” (A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. v. 2, Belo Horizonte: Itatiaia,
1998, pp. 20/22). Ele sustentou que as definições “da direita para a esquerda” (do
conteúdo para o rótulo) são muito utilizadas pela comunidade científica (de matemáticos e
físicos, especialmente) e talvez sejam responsáveis pelo baixo grau de desacordos
lingüísticos entre os membros dessa comunidade. Por meio desse tipo de definição, os
cientistas nada mais fazem do que introduzir rótulos abreviados para encurtar uma história
cumprida. Ao invés de se construir uma embalagem rotulada para somente depois
introduzir o seu conteúdo, faz-se o inverso: simplifica-se um fenômeno complexo,
apelidando-o com uma palavra mais simples. Por exemplo, os matemáticos, quando
querem se referir ao quociente entre o perímetro de uma circunferência e o seu diâmetro,
chamam isso de "Pi" ( ). Eles não criaram a palavra "Pi" e a partir daí procuraram uma
significação para ela. Primeiro veio o conteúdo e só depois foi colocado o rótulo. "Pi" é
apenas uma espécie de etiqueta criada para facilitar o uso prático de uma expressão
numérica muito longa. Em qualquer lugar do mundo, todos podem saber o significado de
"Pi" mesmo que se dê outro nome. Se alguém quiser chamar outra coisa com o mesmo
termo, basta que deixe claro que está tratando de uma coisa diversa e todos se
entenderão. Um físico pode colocar o nome do seu gato de “Pi” e certamente ninguém vai
achar que o gato é a mesma coisa do que o quociente entre o perímetro de uma
circunferência e o seu diâmetro.