AS TATUAGENS E A CRIMINALIDADE
FEMININA
Marina Albuquerque Mendes da Silva
RESUMO.
‘Este artigo analia 2 tatuagem. tl como € praticada pela popuiaco da Penitencidria Feminina da Capital (S40 Paulo), enquanto
lum sistema de comuniagSo expecifcamente articulado a0 universo da criminalidade e da delinguéaci,
esse sentido, procuralevanar as determinagOes erelagBes que se estabelecem entre 0 corpo enquanto suport para a construgto
4e sistemas d significagto ligados a representagdo da realidéde,e 3 crm
idade ea delinquéncia como fendmenos que 56 se
realzam efetivamente a partir da intervencio e stuacto do sistema institucional
UNITERMOS
ANTROPOLOGIA URBANA -TATUAGENS E REPRESENTACOES - TATUAGENS E CRIMINALIDADE
FEMININA - SISTEMA PENTTENCIARIO - INSTITUCIONALIZACAO DA CRIMINALIDADE
INTRODUGAO
Pretendo neste trabalho apreseoiar algumas
consideragées sobre 0 corpo humano como um
suporte de signos (RODRIGUES, 1986) e como
portador de diversas ordens de linguagens, as
quais, na medida em que se articulam em sis-
temas constituldos culturalmente, s6 poderdo
adquirir significado dentro de contextos sociais
especificos.
Além do corpo enquanto produto das
técnicas corporais (MAUSS, 1974), ser4 que
poderfamos pensar nas marcas ¢ adornos
corporais como reforcadores e realizadores de
“Nao hd praticamente sociedade
que nao fira de alguma forma o
corpo de seus membros”
(RODRIGUES, 1986:62)
determinados cédigos e linguagens capazes de
revelar algo da natureza das relagies soci
dentro das quais sf produzidos e tomam
existencia?
E as tatuagens? Como elas podem ser
classificadas? No que elas diferem das outras
formas de adornos corporais ¢ qual o seu
significado especifico? Em que momento elas
surgem e em que sistemas esto inseridas?
E a partir destas perguntas iniciais que
tentaremos pensar a tatuagem tal como é
praticada pela populacdo da PenitencidriaFeminina de Sao Paulo, conforme levantamento
io nos anos de 1980 €
Desde os primeiros contatos mantidos com
aquela populacao ficou evidente que nao
estévamos diante de um fendmeno que pudesse
ser compreendido de forma isolada ¢ apenas
circunscrito ao saber € & vontade particular de
seus portadores. Ao contrério, ocorreu de forma
‘quase imediata a constatagio de que se tratava
de um sistema de comunicagdo (portanto
coletivo) especificamente articulado ao universo
da delinquéncia: no momento da pesquisa,
atingia cerca de 35% da populacdo ¢ se
constituia a partir de categorias simbélicas que
eram comuns ¢ legiveis ndo s6 as suas
portadoras, como também aos outros agentes
sociais implicados diretamente nos mecanismos
de producio, manutencio e reprodugéo do
fendmeno da delinquéncia (os sistemas policial,
penal e judiciério - FOUCAULT, 1977)
Foi a percepeio inicial dessas condigbes que
‘nos incentivou a procurar compreender a l6gica
especifica de produgéo deste universo de
tatuagem como sistema ¢ como uma ordem de
Tinguagem que - através da construgéo de um
discurso qualitativo ¢ classificatério inscrito
graficamente no corpo de seus portadores - tem
como atribuigéo fundamental discorrer,
interpretar e construir versées a respeito do
proprio universo da delinquéncia, a partir do
onto de vista no s6 de seus portadores e da
populacdo penitencidria em geral, como
também daqueles que controlam a manutengao
a reprodugao do préprio fenémeno,
Isso significa que a compreensio deste
universo s6 € posstvel se for considerado como o
produto das relagdes que se estabelecem entre
vérias ordens de significacao, cujas categorias
samentais de emtendimento devem scr
procuradas naqueles mecanismos sociais (neste
aso, a vivencia institucional), que transformam
“ilegalidades em delinquéncia” (FOUCAULT,
op sit).
CCarloe Chagas - Sho Paulo,
ANATUREZA E A CULTURA: A
CONSTRUGAO DO CORPO E A
CORPOREIDADE PERMIMIDA
“0 mundo do simbolismo ¢ infinitamente
diverso por seu contetido, mas sempre limitado
‘por suas leis”
(LEVE-STRAUSS, in MAUSS,1976)
Sabemos que a oposigdo entre natureza ¢
cultura € a que funda o sentido como uma
atribuicéo eminentemente humana
(LEVI-STRAUSS, 1976). Outras ordens de
Contrastes € oposicdes surgirao a partir desta
primeira, sempre realizando-se através de
configuragdes simbélicas que, mesmo que
infinitamente diversas em seu contetido, scréo
sempre limitadas em termos de sua organizagio
tenquanto sistemas de comunicagéo. A cultura,
como sistema de representagées, procura dar
‘ordem ao universo através do estabelecimento
de “descontinuidades” (rupturas, contradigdes,
distingSes, etc) aplicadas a uma ordem continua.
(€ desordenada) que seria a da natureza. Este
procedimento, indispensivel & constituiga0 do
‘universo dos significados, organiza-se enquanto
‘cbdigo e linguagem, ordenando o mundo nio s6
‘em fungdo de razbes préticas, funcionais ot
te6ricas, mas principalmente em fungéo de
razbes intelectuais: a necessidade de
classificagao e ordenagio do mundo que 0
rodeia € oque da a0 homem a inteligibilidade de
‘sua prépria existéncia e da vida social.
A propria nogdode cultura implica umaidéia
de natureza humana: se partirmos da oposicao
centre natureza e cultura, para que seja possivel
a instauragao do estado social (a intervengao da
rogra num “estado natural”), € somente
recolocando a capacidade de produgéo da
cultura no nivel das potencialidades naturais do
homem - portanto na sua conseiéncia - que este
raciocinio se completa. Sendo assim, pode-se
‘Pesquisa realizada pela autora parao CEDEC - Centro de Estudos de Cultura Contemportines, com 0 apovo da Fundags0
‘Cadernos de Campo -n# 1 1981afirmar que é a propria cultura que vai instaurar
uma nogéo de natureza ¢ de natureza humana,
tranformando-as em construgbes culturais que
vio variar de uma sociedade a outra, seja no
espago ou no tempo.
‘Comoe poderia considerar 0 corpo humano
dentro dessas colocagées? Se formos pensar na
oposigao entre natureza e cultura, ele viria a
ocupar um lugar privilegiado (e altamente
tensionado) na medidaem quenele se concentra
a regrae a natureza, O que nio a interdigao do
incesto sendo a intervengao radical da
ordenagdo da cultura sobre a natureza (€ 0
momento radical onde essa ordem sobrepuja a
desordem da natureza) através do controle da
semualidade, da alianga ¢ da procriagéo?
Podemos perceber, portanto, que 0 controle
do corpo ¢ vital ¢ crucial para o surgimento do
universo da cultura como condicao de
humanidade, possibilitando 0 surgimento das
relagées sociais enquanto uma linguagem que s6
se realiza na consciéncia/inscosciéncia dos
individuos. Desta forma, poderfamos também
dizer que a instauragéo da regra no nivel da
realidade empfrica repousaria em primeira
instancia sobre corpo humanoe seus “instintos
naturais”
Como esse controle seria exercido?
Exatamente pela “culturalizago” de aspectos
da natureza humana (principalmente de suas
fontes de desordem) até que se consiga
novamente “naturaliza-los” dentro de cédigos
de comportamento de uma determinada
sociedade. Podemos concluir, portanto, que a
propria nogdo de corpo. de uso do corpo e das
relagbes que com ele podem ser estabelecidas,
so construfdas culturalmente, passando pela
mediagao de um repertério que é claborado &
selecionado por cada sociedade. E desta
maneira que podemos considerar 0 corpo como
um sistema de significados produzido
socialmente ¢ que s6 adquire significado
socialmente, sendo, portanto, passivel de leitura
e de decodificacio,
Esta articulagdo entre corpo ¢ sociedade
pode ser investigada ¢ apreendida a partir de
méltiplos aspectos, visto que 0 corpo humano
pode ser compreendido como instincia da
‘As tatuagens @ a criminaidade ferinina
hatureza que € totalmente reconstruida pela
cultura.
Estas consideragbes nos levam em diregio a
Marcel Mauss, pelo menos em relacao a duas de
suas preocupagdes: 0 fato social total ¢ as
técnicas corporais. Como poderfamos articular
‘estas duas questocs? Quanto a idéia de fato
social total, na introdugdo de “Sociologia ¢
Antropologia” (MAUSS, 1974), Lévi-Strauss vai
afirmar que:
“a nogao de fato social total esté em relagao
direta com a dupla preocupagao (...) de ligar 0
social ¢ 0 individual de um lado, 0 fisico (ou
fisiolégico) ¢ 0 psiquico de outro” ( 1974:15).
Levando-se em conta tais consideracdes,
poderfamos nos preguntar se seria possivel a
compreensio das técnicas corporais € do
préprio corpo humano como um fato social
fotal, na medida em que concentraria cm si
‘mesmo a regra ¢ a natureza, sendo capaz de
manifestar as dimensdes sociais, fisicas ¢
psiquicas presentes nas condutas ¢ nas
interpretages das condutas, apontadas como
necessérias por Marcel Mauss.
Em primeiro lugar, osistema de significagdes
pelo qual 0 corpo & construido pode ser\
investigado e apreendido a partir de algumas
categorias do pensamento coletivo e dos
sistemas de pensamento vigentes numa
determinada sociedade. De acordo com Mauss,
estas técnicas corporais, presentes no
nascimento, na infancia, na adolescéncia € na
idade adulta (e também as de alimentacéo,