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LOY 2 Hae i‘ BOLETIM DO MUSEU NACIONAL fe . NOVA SERIE ‘RIO DF JANEIRO, RJ — BRASIL MN wes ‘d — ANTROPOLOGIA N® 32 MAIO DE 1979 “= A CONSTRUCAO DA PESSOA NAS 2 SOCIEDADES INDIGENAS * APRESENTACAO Este nimero do Boletim do Museu Nacional, série Antro- * pologia reine os trabalhos apresentados na sesso intitulada A Construgdo da Pessoa nas Sociedades Indigenas, realizada no primeiro dia do Simpésio A PESQUISA ETNOLOGICA NO BRASIL. O Simpésio A PESQUISA ETNOLOGICA NO BRASIL teve lugar no Museu Nacional e na Academia Brasileira de Cién- cia, ‘Rio de Janeiro, de 21 a 23 de junho de 1978, numa iniciati- va do Programa de Pos-Graduagdo em Antropologia Social do ‘Museu Nacional (UFRJ). Teve'o propésito de reunir especia- listas em sociedades tribais para discutirem temas e linhas de pesquisa relevantes para um maior didlogo entre aqueles que tra~ Balham na area da etnologia brasileira. Contou-se com 0 patro- cinio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico ¢ Tec- nolégico ¢ com 0 apoio da Regional Rio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciéncia e Academia Brasileira de Ciencia. Expressamos a essas entidades, mais uma vez, 08 nossos agra- decimentos. Além dos trabalhos ora publicados, foi também apresentada uma Comunicaggo da Profe. Lux Vidal (USP) sobre pintura corporal Xikrin que por necessitar de recursos de impresséo mais complexos no foi incluida na presente coletdnes. + Optou-se por manter a forma original em que os trabalhos forain apresentados, propria para exposico oral, tendo -orga~* nizador restringido-se a uma uniformizagdo das referéncias bi- bliograficas ¢ notas de rodapé. Composto ¢ impresso nas oficinas da Ga. Editora Fon-Fon ¢ Seleta, ‘ua Rua Pedro Alves, 60, Centro, Rio de Janeiro Yonne de Freitas Leite Organizadora A CONSTRUGAO DA PESSOA NAS SOCIEDADES INDIGENAS BRASILEIRAS Anthony Seeger Roberto da Matta £,..B.. Viveiros de.Castro- Museu Nacional — U.B.R.J. Introdugéo Cada regiéo etnogratica do mundo teve 9 seu momento na histéria da teoria antropolégica, imprimindo seu selo nos proble mas caracteristicos de épocas e escolas. Assim, a Melanésia des- cobriu a reciprocidade, o sudeste asidtico a alianga de casamento assimétrica, a Africa as linhagens, 2 bruxaria e a politica. As sociedades” indigenas da América do Sul, apss os canibais de Montaigne ¢ a influéncia Tupi nas teorias politicas do Ihiminismo 86 muito recentemente yitram a contribuir para a renovacéo ted- rica da Antropologia. Deve-se creditar a Robert Lowie e Claude Lévi-Strauss, sem davida, a apresentagéo do pensamento indigena sul-americato a0 circuit conceitual mais amplo da disciplina. E em termos ‘de etnografia — se excetuarmos Curt Nimuendaju — ¢ apenas apés a Segunda Guerra que comecam a surgit estudos descritivos mais detalhados de sociedades tribais brasileiras; e apenas mais re- centemente que se inicia a elaboragio teérica deste material. Ow seje, apenas mais recentemente o foco do problema se desloca de categorias mais abrangentes, referidas a sociedade nacional brasileira de um lado e ao «Indio» enquanto categoria genérica de outro, para o estudo de sociedades tribais especificas, quando © foco nio € mais a discussio do lugar do indio (junto com 0 negro € com o branco, na hiesarquia do universo nacional), mas — isso sim — a posicéo daquela socizdade tribal como uma rea- Iidade dotada de unidade. Hoje, pode-se dizer que a etnologia do Brasil ja aleangou certa, maturidade, desenvolvendo teorias e problematicas orig'- ‘ais, e dialogando em nivel mais abstrato com as quest6es intro duzidas na Antropologia pelas sociedades africanas, polinésias € australianas. O objetivo do presente trabalho é salientar as con- tribuigdes.que a etnologia dos grupos tribais brasileiros esta fa- zendo & Antropologia como um todo. De modo particular, foca- 2 lizaremos nossa atengdo sobte uma tese: que a originalidade das sociedades tribais brasileitas (de modo mais ampio, sul-ameri- cana) reside numa elaboragdo particularmente rica da nogho de pessoa, com referéncia especial & corporalidade enquanto idioma simbélico focal. Ou, dito de outta forma, sugerimos que 4 nogéo de pessoa e uma consideracéo do lugar do corpo humano na vi- so. que as sociedades indigenas fazem de si mesmas sfo cami- hos basicos para uma compreeasio adequeda da organizagio so- cial e cosmologia destas sociededes. Muitas etnografias recentes sobre grupos brasileitos — se- jam Jé, ‘Tukano, Xinguenos, ‘lupi — tém-se detido sobre cideo- logias nativas» a respeito da corporalidade: teorias de concepso; teoria de doengas, papel dos fluidos corporais no simbolismo ge- ral da sociedade, proibigSes alimentares, ornamentagdo corporal. Os trabalhos de Goldman, Reichel-Dolmatoff, S. e C. Hugh Jones. J. Kaplan, P. Menget, J. C. Melatti, C. Croker e tan- tos outros? séo um bom exemplo desta tendéncia, que domino © recém-publicado simpésio sobre Tempo e Espago Sociais (Actes du XLileme Congrés International des Ameéricanistes, Vol. Il) organizado por Joana Kaplan. Isto nao nos parece acidental, nem fruto de um bias tebrico. Tudo indica que, de fato, a grande maioria das sociedades tribais do continente. pri- vilegia uma reflexdo sobre a corporalidade na elaboracdo de suas, sosmologias, Mais importante ainda, porém, € 0 fato de que as etnografias mencionadas — e equi, sim, temos uma escolha te6- rica, mas guiada pelo objeto — necessitam secorrer a estas ideo- logias da corporalidade para dar conta dos principios da estrutu- ra social dos grupos; tudo se passa como se os conceitos que a Antropologia importa de outras sociedades — linhagem, alianca, grupos corporados — nfo fossem suficientes para explicar a. Or ganizacao das sociedades brasileiras. Cremos que, hoje, se pode dizer que a vasta problematica esbocada por Lévi-Strauss nas Mythologiques mantem realmente, uma relegéo profunda com a natureza das sociedades brasileiras; esta problematica néo trata apenas de mitos, ilusbes e ideologias: trata de principios que ope- ram ao nivel da estrutura socia’. Esta € a outra tese que vamos defender. Mas, na verdade, este privilégio da corporalidade se da den- tro de uma preocupacio mais ampla: a defini¢ao e construgao da (1) Ver bibliogratia. pessoa pela sociedade. A produgio fisica de individuos se insere em um contexto voltado para a produgao social de pessoas, i. e., membros de uma sociedade especifica. O corpo, tal como n6s ocidentais 0 definimos, ndo ¢ 0 iinico objeto (e instrumento) de incidéncia da sociedade sobre os individuos: os complexos de nominagio, os grupos ¢ identidades cerimoniais, as teorias sobre a alma, associam-se na construgéo do ser humano tal como enten- dido pelos diferentes grupos tribais. Ele, 0 corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posigéo central na visio que as sociedades indigenas tém da ratureza do ser humano. Perguntar-se, assim, sobre © lugar do corpo € iniciar uma indagaco sobre as formas de construgao da pessoa. A Nosao de Pessoa como Categoria Nio ha sociedade humana sem individuos, Isto, porém, nao significa que todos os grupos humanos se apropriem do mesmo modo desta realidade infra-estrutural, Existem sociedades que constroem sistematicamente uma nogdo de individuo onde a ver~ ftente interna € exaltada (caso do Ocidente) e outras onde a énfase recai na nogdo social de individuo, quando cle ¢ tomado pelo seu lado coletivo: como instrumento de uma relagio com- plementar com a realidade social, B isso que ocorre nas socie- dades chamadas «tibais» e € aqui que nasce a nogdo basica de pessoa» que queremos elaborar agora. ‘© conceito de pessoa, como Geertz observou, ¢ uma via real para a compreenso antropologica; num certo sentido, fazer an- tropologia ¢ «.. azalisar as formas simbélicas — palavras, ima- gens, instituigdes, comportamentos — em termos das quais os homens (people) ‘se representam, para si mesmos © para os ou- toss (Geertz 1976: 224-5). E sabemos, desde Marcel Mauss, que as vatiagbes na definigéo desta séo enormes, de sociedade para sociedade. Sabe- mos também, especialmente depois de Louis Dumont, que a visio ocidental da’ pessoa (do Individuo) € algo extremamente parti- cular e hist6rico. Hoje, depols de Mauss e Dumont, Geertz, Lienhardt,. Griaule (e depois dos helenistas franceses inspirados por Mauss), tomoi-se quase Ingar-comum afirmar isto, Levar isto as devidas consegiiéncias analiticas, porém, & algo mais di- ficil, como bem o demonstrou Louis Dumont (1966). Por sex 4 basica e central, a concepgéo do que seja o ser humano que n6s, ocidentais, entretemos, tence a ser projetada, em algum nivel, so- bre as sociedades que estudamos, com o resultado que as nogbes nativas sobre a pessoa passam a ser consideradas como «ideolo- gies; enquanto que nossas pré-concepcbes, nao analisadas, vo constituir a bese das teorias . Mas, sob esta algo vaga nogéo — pessoa — se escondem diferencas teOricas importantes, dentro da Antropologia. Em li nhas gerais, pode-se dizer que a Antropologia Social, desde Ma- linowski, tendeu sobretudo a analisar a personalidade social, isto $a pessoa como agregado de papéis sociais, estruturalmente prescritos (e 05 papéis serdo concebidos como feixes de direitos fe deveres). Ja a tradicio de Mauss, que foi retomada claramente por Dumont, mas que aparece em autores como Geertz, inclina-se para uma «etnopsicologias (Cameiro da Cunha 1978: 1), ou uma eetnofilosofias — ow seja, considera as nogdes de pessoa enquanto categorias de pensamento nativas — explicites ou im- plicitas —; enquanto, portanto, construgées culturalmente va- Hlaveis. Na concepcdo da pessoa como agregado de papéis assume- se, na verdade, um n6dulo fixo, por baixo da variagdo in! de papéis que os individuos, de sociedade para sociedade, a0 longo da hist6ria, puderam assumir. Este nédulo, € 0 Individuo, em sua concepcao ocidental moderna. Ja a propria perspectiva «juralista> de Radcliffe-Brown ¢ seus seguidores supunha uma concepcao de edireitos e deveress, que seriam assumidos por individuos dotados dos mesmos atributos que o pensamento do Ocidente atribui ao Individuo. Por isto, a dicotomia Individuo/ Sociedade vai ser recorrente nas discussdes tedricas da Antropo- logia Social, aparecendo sob varios disfarces: parentesco/descen- déncia (Evans-Pritchard), descendéncia/filiacio complementat. (Fortes), estrutura/communitas (Turner), estrutura social/orga- nizago social (Firth). Desde que Malinowski marcou os Tro- biandeses com a oposigdo mother-right vs. father-love, e que Redcliffe-Brown definiu o avunculado a partir de uma oposicao entre 0 direito e 0 afeto, 0 juridico e 0 optativo, o obrigatério © 0 espontaneo (Radeliffe-Browa, (1924) 1973), foram legiao, na Antropologia, as dicotomiss e analises dicotdmicas da estru- tura social em termos de uma polatizagéo entre o social e 0 individual, 0 normative e 0 espontdnto, o jutidico e o sentimen- 5 tal. Todas as anélises das sociedades entram neste modelo, Ao nivel des concepgdes da pesioa, esta tendéacia vai assumir um individuo dividido, dual — um pouco segundo a velha dualidade durkheimiana ‘entre corp e alma, individuo e sociedade. Vale notar ainda que, mesmo aqueles que buscaram reagit a0 idealismo e formalismo da escola inglesa , faz uma opco espistemolégica que nos parece definir a especificidade da Antropologia. Tomar a nosao de pes- s0a como uma categoria é tomé-la como instrumento de otgani- zagio da experigncia social, como construcao coletiva que dé significado a0 vivido no se pode simplsmente derivé-la, por dedugéo ou por determinacdo, de instancias mais reais» da praxis; a praxis, a prética concreta desta ou daquela sociedade € que s6 pode ser descrita e compreendida a partir das catego- rias coletivas (e tomamos aqui algo da posgéo de Sahlins, 1976). E tomar a categoria . Acusacio que foi levantada contra os etnélogos americanistas, € que estes passaram adiante para os indios. Ais Sociedades Indigenas Brasileiras: Seu Idealismo Joana Kaplan, abrindo um simpésio sobre «Tempo Social & Espago Social nas Sociedades Sul-Americanass no XLIT Con- gresso de Americanistas-1976, chama a atencéo para a difi- culdade de se aplicatem 0 conceitos classicos da Antropologia na anélise da organizacao social das sociedades sul-americanas; nosso problema, diz eb, € achar uma linguagem para exprimir os fenémenos constatados (entre eles, a propria dificuldade men- cionada). Fundamentalménte, 0s conceitos antropolégicos qué procuram defini a estrutura dos grupos sociais e da’ inter-rela- do entre os grupos — corporagéo, descendéncia, afinidade — ‘n30 dio conta dos tragos estruturais das sociedades deste conti- nente, Diz entéo Kaplan: «Por isso, nés sul-americenistas somos freqtientemente acusados de idealismo por nossos colegas africa- nistas (ou de outras partes do mundo), mais materialistas e “empiricamente’ orientados. Mas, se somos idealistas, € apenas porque ns amerindios que estudamos sio também idealistas no que diz respeito a ordenacao de suas sociedades. Devemos enca- rar este fato e sustenté-lo» (K»plan 1977: 9-10). Néo é facil sustenté-lo, aida mais porque a América do Sul vem coihecendo uma série de estudos resolutamente colocados no polo epistemolégico oposto: a ecologia cultural, que procura dar conta de fendmenos como autoridade politica, ‘guerra, orga- nizagéo cerimonial, tabus alimentores, etc., em termos de respos- tas adaptativas a dadas condicées da rel2¢G0 tecnologia/ambiente (ver Carneiro 1961 Meggers 1977, Gross 1975, Ross 1978). Em- bora seja indubitavel que os estudos de ecologia iluminem muitos dos mecanismos de organizacéo social das tribos sul-americanas, 7 esto sujeitos a todos os vicios inerentes a explicacées reducio- nistas e hiperdeterministas. Sobretudo, néo so capazes de ge- sar conceitos antropolégicos para a descricéo e 2 compsragéo dos fendmenos de organizagéo social. Muitos dos tracos recor entes das sociedades do continente — pequeno nimero de mem- bros, prevaléncia de sistemas cognéticos, auséncia de grupos cor- porados que controlem acesso a vecursos materiais escassos, divisio do trabalho, etc. — podem ser correlacionados com a ecologia da floresta tropical ou do cerrado. Outras coisas, porém — e sobretudo as variagGes entre os grupos no mesmo ambiente — escap3m ao modelo ecologista. Neste modelo, a sociedade € parte da Natureza; para os «idealistas», « Natureza ¢ uma regio dentro de uma cosmologia socisimente mantida e organizada. Kaplan lembra, no trabalho citado. que (ou melanésias, etc.) fo- ram reificadas pela Antropologia — 0 totem, o mana, o tabu, a Hohagem, a broxaria vs. a feiticaria, o grupo corporsdo — e alquimizedas em conceitos cientificos, universais, em normas, diante dés quais tudo, ou era encaixedo a forga, ou era consi- derado anémalo ¢ desviante (ai, a ecolocia nodia ser acionada para explicar). A hist6ria recente da etnologia sul-americana € nitite isto: como forcar o material a entrar nos modelos antro- polégicos, e/ou como explicar as anomalias. Assim, Murdock apelidou 0s sistemas sociais sul-americanos de (Murdock 1960), enquanto ‘Nimuendaju foi criticado pela facili- dade com que encontrava formas elaboradas de descendéncia e de prescticées matrimoninis aonde tals coises ndo existiam. A caracterizacdo dos Munduruku como «fortemente patrilineares» por Murphy foi crittcacla por simplificar uma realidade bem mais complexa (Ramos 1974). O aue fazer com sociedades com ter- minologia de parentesco Crow-Omakia que nio se dividem em arupos unilineares, © com metades atte nio prescrevem casamen- tos (Te)? Com uma sociedade de I'nhagens na qual 50% da populacéo nao pertence a linhagem nenhuma (Sanumé)? Com sociedades aonde as nogées de grupo ¢ corporagéo nfo atuam crucialmente em termos de controle de recursos materiais, mas — quando existem tais grupos — em termos de recursos simb6- licos (inémeros exemplos)? 8 ‘Todos estes debates, que se centrarem de modo mais espe- cifico sobre o uso dos conceitos de linhagem ¢ descendéncia. (e também no de alianca) sobre o material sul-americano, terminam por enfatizar um sul-americana — isto @, elaborar con- ceitos gue déem conta de material sul-americano em seus pr6- pros termos, evitando os modelos africanos, mediterraneos ou melanésios. ‘A necessidade de se construirem modelos préprios & socie- dades sul-americanas comeca a se generslizar entre os america~ istas, Recentemente, Albest e Menget (s/d) observarem que os trabalhos etnograficos recentes sobre a América do Sul indi- caram que as sociedades dali no entram éno quadro tipolégico tradicional da etnologia, orientada por uma perspectiva substen~ cialistay, por apresentarem cettas propriedades sécio-ideologicas, entre as quais «...a grande fluidez dos grupos sociais e a pre- seaca constante de um simbolismo complexo impossivel de ser reduzido a um simples reflexo ideolégico de uma ordem mais fundamentals (p, 1). Em seguida, resumem uma posigho que comega a se generalizar: «Assim, abstrair destas formas de orga- nizaggo social o discurso do parentesco, como sendo um operador sociolégico autonome, que funcionaria recortando unidades so Ciais discretas a partir de redes de interagdes produtivas geneo ogicamente fundadas, nos parece arbitrério, etnocéntrico..._€ initil. As unidades sociais desta area cultural so, do ponto de 9 vista de sua permanéncia, comunidades de propriedades simbs- Jicas que articulam sistemas de identidade social, antes de serem coletividades economica ou juridicamente solidatias. As transa~ ‘sGes sociais efetives... s6 podem ser entendidas como um siste- ma de categorias que distnibui as identidades sociais, as quais ‘sdo realizagces conjunturais deste sistema» (pps. 2-3). Vé-se agui que dois pontos so salientados: a «tiuidez> dos grupos sociais € a domindncia do simbélico da detinicéo da estrutuca social das sociedades indigenas do continente. ‘Yalvez se possa dizer que esta , tantas vezes apon- tada pelos etndgrafos, é simplesmente o resultado da aplicagéo! de modelos inadequados, modelos justamente que ndo consideram a-dimensao categorial-simbélica como formadora da praxis, Esta focalizagéo errada — buscam-se grupos, encontram-se categorias’ de pessoas; buscam-se recursos escass0s, encontram-se penas de arara, distintivos cerimoniais e espiritos — sugere ou ume impor- tagdo indevida de modelos ou um empirismo sociologizante que define a organizacéo social como uma questo de gente de carne © 050 se movimentando. Assim, em vez de nos perguntarmos sobre a auséacia de um sistema de descendéncia Nuer (ou Romano), deveriamos voltar nossa atencdo para aquilo que é caracteristico das socie- dades indigenas sul-americanas. Sugerimos aqui que as nodes ligadas corpordlidade ¢ construgao da pessoa sio algo basico. Isto no é ¢idealismos. ‘0s lagos de substancia. O corpo humano, entre os Jé, parece dividido da mesma forma: aspectos internos, ligados ao, sangue e ao sémen, a reproducao fisica € aspectos externos, ligados a0 nome, aos papéis piblicos, ao cerimonial — ao mundo social, enfim (expressos na pintura, oramentacéo corporal, cangées) (ver Da Matta 1976; Seeger 1974, 1975a; Mekstti 1976). Entre os grupos do Alto Xingu, a importancia das, substan- cias naturais € dos processos fisiolégicos também € evidente. Alt também se encontra algo como 2 os grupos Jé, um certo dualismo da iden- tidade humana tende a surgir em varias sociedades. Este dualismo, geralmente associado a polaridade homens/mulheres, vivos/ mortos, criancas/adultos é em sua versio mais simples, redu- zido a um feixe de oposigées cuja matriz €: individual (san gue, periferia da aldeias, mundo cotidiano) versus coletivo ou s0- cial (sima, nome, centro, vida ritual). O ponto a ser enfatizado € que 0 corpo € 0 locus privilegiado pelas sociedades tribais da América do Sul, como a arena ott 0 ponto de convergéncia desta oposigio. Ele & 0 elemento pelo qual se pode criar a ideologia central, abrangente, capaz de, nas sociedades tribais Sul Ameri- ‘canas, totalizar uma visdo particular do cosmos, em condigoes his- t6rico-sociais especificas, onde se pode velorizar 0 homem, valo- tizar a pessoa, sem reificar nenhum grupo corporado (como os lag ou linbagens) © que acarretaria a constituigéo de uma forma so social radicalmente diversa. Parece que a fabricacio da pessoa na América indigena acio- nna, de fato, oposigées polares; mas a natureza da relago entre 0 polos, entretanto, esta longe de ser estatica, ou de simples ne~ gaso versus complementariedade. em outras palaveas, a velha oposi¢ao Natureza/Cultura, subjacente sem davida aos grupos sul- americanos (gracas sobretudo aos Jé) ¢ que se exprime nestes dua- lismos, deve ser totalmente repensada. Para sociedades como os Tukano, por exemplo, a dominancia de um plano sobrenatural estabelece uma mediagéo entre Netu- reza e Cultura que praticamente chega a dissolver a antinomia. No caso dos Jé, os processos de comunicacao entre um dominio e ‘outro devem ser examinados para evitarmos cair em um formalismo protocolar. 13 Nao se trata de uma oposi¢ao entre o homem 0 animal rea- lizada longe do corpo € 20 longo de categorias individualizantes, conde 0 natural e o social se auto-repelem por definicao, mas de ‘uma dialética onde os elementos naturais sio domesticados pelo grupo ¢ os elementos do grupo (as coisas sociais), so naturali- zados no mundo dos animais. O corpo € a grande arena onde ‘essas transformag6es si0 possiveis, como faz prova toda a mito- Jogia sulamericana que deve, agora, ser relida como historias ‘com um centro: a idéia fundamental de corporalidade. ~ A continuidade fisica ¢ a continuidade social, na América in- digena, escolheram outro caminho que © grupo corporado perpé- tuo, que controla 0 poder produtivo e reprodutivo de seus membros. Assim, a genealogias so pouco importantes, comparativamente a outras partes do mundo; © tempo social ndo © tempo gencal6- gico: » negago do tempo, objetivo de todas as culturas, se exe- cuta aqui por outras vias que es da descendéncia e da heranca. Iguelmente, as sociedades da América do Sul nao concebem a si mesmes. como entidades politico-juridicas; a estrutura l6gica da sociedade reside num plano cerimonial ou metafisico, (Kaplan 1977, p. 391) — aonde as concepgées de nome e de substincia, de alma ¢ de satigue, predominam sobre uma linguagem abstrata de direitos e deveres. . A visio da estrutura social que a Antropologia tradicional nos legou € 2 de um sistema de relacio entre grupos. Esta visio € jnadequada para a América do Sul. As sociedades indigenas deste continente estruturaram-se em térmos de categorias légicas que definem relagées e posigdes socials a partir de um idioma de substancia, Mais importante que 0 grupo, como entidade simbélica, agui € a pessoa: mais importante que o acesso A terra ou as gens, & aqui a relaco com o corpo e com os nomes. Se o social Nuer era Tudo neste trabalho conduz @ sugestdo de elaborar 2 nogao de corporalidade nfo s6 como uma categoria fundamental das so- ciedades sul-americanas, mas também como um conceito basico que provavelmente nos permitira interpretar certos papéis sociais como o de chefe, bruxo, cantador ¢ xama. Elaboremos esse ponto. Sabemos como 0 corpo € destotalizado nas sociedades tribais da América do Sul, com atribuicéo de valores mais ou menos sociais a certes partes ou érgéios do corpo que esto servindo aqui como um idioma francamente social, Assim, os meninos, pres- 14 tes a se transformarem em homens (serem socisis), devem ter seus lébjos ¢ orelhas furadas. & essa penetracio grafica, fisica, da sociedade no corpo que cria as condigées para engendrar 0 es- paco da corporalidade que € a um s6 tempo individual e coletiva, social e natural. Quando tal trabalho se completa, 0 homem esta completo, sintetizando os ideais coletivos de manter a individuali- dade, tal como nés a concebemos, reforcando a coletividade ¢ a complementariedade com ela. ‘Mas 0 que ocorre quando tal equilibrio no € realizado, o ‘auendo uma dada pessoa se recusa( por varias raz6es) a manter esse balanco entre os requerimentos pessoais (que conduzem na trilha da verteate mais individualizadora) ¢ as demandas cole- tivas? aqui, supomos, que se abre 0 espacn onde surge o hruxo. 0 xamé, o cantador e o lider tribal. Pois € nestes papéis sociais que fo sistema tribal recupera e constroe algo parecido com 0 nosso individu: a pessoa fora do grupo, refletindo sobre ele e, por isso mesmo, sendo capaz de modificé-lo e guié-lo. %, assim, na area destes papéis que surge uma regido liminar, onde as pessoas po- dem expressar o seu profundo desacordo com 0 grupo (como ocor~ re com 08 bruxos) e a sua contribuigo ao patrimBnio deste gru- po, como acontece com os chefes e cantadores, que podem criar € inventar novos modos de a¢do que a coletividade decide incor- porar. De fato, todas as narrativas miticas situam sistematicamen- te tais figuras de herbis fora do mundo. Pessoas que. por um motives ot outro, freqiientemente um acidente, foram colocadas fora da aldeia © ali no mundo da natureza e em contato com sua substincia Fisica, encontraram alguma entidade natural (ex. um animal) que thes salva a vida e thes ensina uma nova técnica, basica para @ sobrevivéncia de seu grupo social, Na América do Sul nao teriamos renunciadores classicos, como ocorre na {ndia, ‘mas teriamos claramente os papéis e os espacos onde os impulsos internos das pessoas podem se manifestar. Acreditemos que tais espacos sejam individualizados, € que neles, uma aproximagéo do individuo tal como 9 concebemos podera aparecer. A sugestio é, pois, a de estudar esses paptis, tradicionalmente problematicos na etnologia sul-americana, como estados onde uma vertente indivi- dualizada da pessoa pode surgir, ficzndo colocado de modo mais ou menos claro, uma oposigao entre a coletividade eo lider (ou heréiou bruxo, ou cantador) que assim pode dialogar com ela em condigées altamente dramaticas e criativas. 15 Conclusio Em primeiso lugar, sublinhariamos a necessidade de uma and- lise comparativa em nivel amplo sobre simbolismo corporal co- mo linguagem bisica da estrutura social dos grupos sul-america- nos, em articulagdo com outras perspectivas: espaco social e tem- po social. Em segundo lugar, lembrariamos novamente a necessi- dade de se tomar o discurso’indigena sobre 2 corporalidade e a pessoa como informador da praxis social concreta e iinica via ndo- etnocéntrice de inteligibilidade desta praxis. Uma localizacio na nogdo de pessoa, e na corporalidade como idioma focal, evita ademais 0s cortes etnocéntricos em dominio ou instancias socials como éparentesco», «economia», , trabalho apresentado no simpésio «Social Time and Sodal’ Space in Lowland Southamerican Societies, J. Kae plan (org.) In Actes du XLil¢ Congrés International dos Americanistes (1976) vol. II. Paris: Societé des América- nistes. Hugh-Jones, S. — 1974 — Male Initiation and Cosmology ‘mong the Barasana Indians of Vaupés Area of Colombia, Tese de doutoramento” ndo-publicatia, University of Cam- bridge. Kaplan, J. — 1977 — «Orientation for paper topics» e «Com- ments» ao simposio «Social Time and Social Space in Lowland Southamerican Societiesy, J. Kaplan (org.). Ini Actes du XLIle Congrés International des Américanistes (1976), vol. Hl. Paris: Societé des Américanistes. Lévi-Stratiss. C, — 1962 — La Pensée Sauvage. Paris: Pion: 1966 — Le Cru et le Cuit. Paris: Pton. 1967 — Du Miel aux Cendres. Paris: Plon, Meggers, B, — 1977 — Amazénia, a iluséo de um paraiso, Rio de Janeiro: Civilizacéo Brasileira. Melatti, J. C. — 1976 (1968) — persiste j& que os velhos, doentes e defuntos enterrados na praca das aldeias se caracteri- zam por cheiros fortes que também caracterizam as cares prol- bidas consumo exclusivo do bope que morde primeizo as cames de cheiro forte por intermédio do benzedor (bari). O crescimento do feto esté associado ao bope em funcio do respeito demonstrado pela progenitora ¢ seu marido em relagéo a tum conjunto de regras ligadas & alimentaso ¢ ao intercurso sexual, Alimento e sexo constituem o que ha de mais proximo entre o ho- mem € 0 animal embora ambos se distingam num ponto: o pri- meiro caracteriza-se por orientar seu comportamento dietético e sexual pela regulamentagdo do bope: © segundo por desrespeitar esta regulamentacio. ‘O nome. O aparecimento desta expresso de , em termos de nossas categorias, ndo coincide com © aparecimento do individuo enquanto para a vida, cacando as ongas, as jaguatiricas e os civill- zados (isto pela mitologia bororo), recriando as fronteiras entre ‘animais e homens que, conforme se vera adiante, so diluidas com a motte do individuo, reestabelecendo igualmente as fronteiras en- tre vivos e mortos, entre sonhadores dormentes, gulosos e acorda- dos espertos para a caca, entre desrespeito e respeito, entre au- sfncia ou presenga de movimento. Pela nominacdo a crianca € associada a um cédigo de hospi- talidade de validade tribal pois: Nomen est Numen, razao pela qual os nomes' devem ser cuidadosamente selecionados segundo 23 contigéncias sociais varlaveis no tempo ¢ no espaco, o que tam- bem explica a outorgacdo néo de um mas de varios nomes a uma mesma ctlanca. Os nomes séo sempre sendo, portanto, tratado como «filho» pelos seus pais ri- tuais. Se o cagador representa a alma recente para a sociedade das almas representadas por homens Bororo. ele também repre- senta a alma do animal em que esta alma recente se transformou apés a morte. Dai o mistério das coisas ligadas as almas dos fi- nados e 0 grande perigo em compartilhi-las com as mulheres e os imaturos, Os nomes de caca pela morte de um Bororo s6 podem ser outorgados apos a mobilizacio de uma série de servigos cerimo- niais por parte da comunidade dos sobreviventes: cantos, con~ feccio da parafernélia mortuéria (esteiras, bandejas e cestos), refeigbes comunais feitas pelo homens na casa-dos-homens, dan- cas funerétias envolvendo intrincada teia de relagées cerimoniais entre os homens da aldeia, limpeza dos ossos, emplumacio, inci- neragéo dos pertences do finado, sepultamento dos cestos fune- arios ete, Um Heréi Mitico: O ledaga. Em suma, 0 Bororo também tem um heréi: 0 Iedage. O planejamento dos ciclos funerarios € sempre feito pelos chefes — os ledaga-mage — os que sabem © por isto mesmo conhecem as técnicas mortudrias desenvolvidas € conquistadas pelos grandes herdis miticos, associadas aos motivos decorativos e pinturas corporais usadas dentro e fora dos funerais. Ao ser cuidado como um morto — aroe — o Bororo representa uum evento do seu heréi mitico, o seu Iedaga, cuja grandeza he- roica obscurece 0 escdndalo de sua morte exigindo o eclipse, o exilio € a incineracao de todos os seus vestigios sonoros, palpa- veis ¢ visuais, Se lembrarmos que a outorgagao de nomes de vida também € pensada em termos destes ugares — nomes miticos — pois os he- rOis miticos sdo circularmente ibuidos em volta da casa-dos-ho- mens, configurando um pantheon circular que se reflete na morfo- logia da aideia, e se lembrarmos gue estes heréis miticos donos dos nomes.de vida correspondem a lugares ocupados por mulheres (dai 28 a matrilinearidade dos sistema) que com seus maridos procriam fi- Thos vivos e filhos mortos para cada heri, miticamente associa~ do ao mundo espiritual masculino (dai a patrilinearidade do sis- tema), chegaremos & conclusio de que os nomes pesscais entre os Bororo representam na verdade, expresso ndo de individualida- des, mas de feixes de relagées sociais de qualidade diversas. En- volvem conexées humanas ¢ cosmolégicas variaveis — forca vital compartilhada entre todos os organismos vivos, forgas sociais com- partilhadas entre os homens e os animais e entre os homens e plantas e forcas éticas compartilhadas por homens que convivendo com outros, geram monstros, palhacos ou caricaturas fortuitas no tempo, j4 que a eternidade pertence ao épico, 20 patheon dos gran- des heréis miticos que mantendo a ordem e banindo o caos, te- cem, a partir das mostes dos homens, a prépria trama do proceso de vida humana, No caso Bororo, os gloriosos herdis miticos so os grandes cagadores que se valendo de artimanhas das mais diversas nunca morrem, omnipresentes em todas as aldeias do territério tribal, morfologicamente estruturadas segundo o pantheon circular dos grandes chefes. Eis a sintese que um Bororo faz quando interpe- jado sobre a sua identidade: «Eu cou Jerigi Otojiwu eu sou este heroil» Bibliografia Albisetti, C. e Venturelli, A.J. — 1962 — Enciclopédia Bo- roro I, Campo Grande. 1969 — Enciclopédia Bo- ror I, Campo Grande. Crocker, J. C. — 1967 —~ The Social Organization of the Ears- tern, Bororo, Unpublished Ph.D. Dissertation, Cam- bridge: Harvard University. Levak, Z. — 1971 — Kinship System and Social Structure of the Bororo of Pobojari. Unpublished Ph. D. Disseztation, Yale University. Meyerson, I, — 1973 — Problémes de la Personne — Paris: Mouton. 29 ‘Thomas, L. V. et Luneau, R. — 1975 — La Terre Africaine et ses Religions. Paris: Larousse. Viertler, R.B. — 1976 — As Aldeias Bororo: al; aspectos de sua organizasio social. Coleco do Museu Paulista, Série de Etnologia, vol. 2, Séo Paulo. 1978 — «O Estudo de Parentesco ¢ as Prati- cas de Notinagao entre os Indios Bororo: 0s Nomes da Ca- ca pela Morte de um Bororo (Iebio-mage)» in Revista de Antropologia, vol. 21, 1.8 parte, Sd Paulo. DE AMIGOS FORMAIS E PESSOA; DE COMPANHEIROS, ESPELHOS E IDENTIDADES Maria Manuela Carneiro da Cunha Universidade Estadual de Campinas A sesso de hoje leva o titulo (I. ‘Meyerson 1973:8). Categoria hist6rica e cultural, portanto. Coi- sas que Mauss j& havia aliés mostrado, quando retracava a emer~ géncia da pessoa, ligando-a a condigées de tempo e de espaco, ¢ inserindo-a em modos de organizago, de ago e de pensa- mento. Contratiamente porém ao que se poderia esperar apés este prologo (que me parece no entanto necessario), creio que, sim, po- de-se falar em pessoa entre os Krahé, na medida em que me pa- rece existir entre eles a nocdo de um principio de autonomia. de dinamica propria. Mas esse principio pessoal deve ser, creio, procurado € no postulado. Escrevi, ha uns anos jé, umas col- sas sobre isso, ligando a nogdo de pessoa as instituigées de ami- zade formal e do compankeirismo. Como nfo tive, no entanto, casio de discutir © que havia entio escrito, pensei eproveitar este foro para um debate. No processo de condenser drastica- mente em oito as vinte paginas originais deu-se porém uma re- visio e uma clarificagdo do que entéo sustentava, e quem vier a comparar os dois textos perceberé nitidas diferences. 31 Naquele trabalho, tentei fundamentar alguns pontos que, por falta de tempo, apenas resumirei aqui. Afirmava mais ou menos seguinte: 1.) Que a amizade formal entre os Krahé devia ser entendi- da como consistindo essencialmente em uma relagio de evitagéo e solidariedade entre duas pessoas, conjugada com relagées prazenteiras assimétricas de cada qual com os pais de seus parceiros; insistia entéo que essa duas relagdes eram pensadas como um todo, e nao isolada- mente, e como tal deviam ser analisadas em conjunt ¢ implicava além disso que a ligacdo da instituigdo de amizade formal com os nomes préprios era secundaria, ou seja que era a modalidade kraho do tema Jé mais amplo da amizade formal. 2.0) Analisando os contextos em que intervém os amigos for- mais, distingula dois tipos de situagSes: um primeiro tipo que diz respeito a danos fisicos, como queimadu- ras, picadas de marimbondos ou de formigoes, em que © amigo formal € chamado para sofrer na pele preci- samente a mesma agressio fisica de que foi vitima seu parceiro; enquanto 0 outro tipo se refere aos ritos de iniclagdo e fim de resguardo do assassino, quando os ‘amigos formais permitem a reintegragio de um Khahé segregado do convivio social e, eventualmente, sua instauragio em uma nova condigo social. Queria aqui retomar, a partir dos pontos levantados, a dis- cussdo dessas praticas e instituicbes. Situemo-nos de saida além das varias explicagées funcionais: amizade formal e relag6es pra- zenteiras, modos de se conjugar e conjurar, como queria Rad- cliffe-Brown (1952): (1940); 103), uma divergéncia de interesse insctita na estrutura social; ou pela alianga que instaura entre grupos separados, provedora de seguranga no mundo incesto de Pequenos grupos antagénicos como os dos Tonga da Zambia, permitindo sangoes morais — de outras aldeias? Se o amigo formal é 0 outro, a antitese, entio sua presenca atesta a dissolupdo de personalidade, a volta 20 ‘aos indiferenciado que caracteriza os estados chamados limina- res. Mas, ao mesmo tempo, © confronto tese-antitese, nome- antonimo, conduz a sintese almejada no ritual, ou seja a0 novo status, Principio de restauragéo, sim, mas também, portanto, prin- cipio de instauracgo, portador de dindmica, fermento na massa que encerra possibilidades recaleada: 34 No plano cosmolégico, essa relagéo aparece com maior niti- dez: Sol e Lua sio amigos formais e ao mesmo tempo burlam-se mutuamente ao longo do mito da criacdo. Em suma reinem, talvez por falta de personagens em um mundo ainda deserto, as duas facetas da amizade formal. E a criagio se da isto é im- portante, através de um processo dialético. Rituais fundament Sio assim instituidos: se, por exemplo, corridas de toras. sio criago de Sol, ritos finebres e resguardo de parto seguem as preferéncias de Lua. Jé procurei_mostrar em um artigo sobre o messianismo canela (M. C. da Cunha 1973: 27 n. 2), a ligagao entre as cortidas de toras e a nogdo de tempo e de periodicidade. Parece pois adequado que seje © Sol, que, como diz Da Matta (1975; 242) (Isto talvez fosse mais matizada entre ‘0s Krah6 do que entre os Apinayé), o criador dos ritos de requ- laridade. Quanto a Lua, cabe-lhe a origem do trabalho agricola: por sua culpa, as ferramentas de Sol nfo operam mais sozinhas € exigem o concutso humano. E, como se queixa da auséncia de movimento, Lua provoca a criagdo de mosquitos e cobras que atormentam os homens. Lua portanto causa de diversos males € inconvenientes, instigador de varias desordens, por certo, mas € também ¢ precisamente por isso mesmo, © principio dindenico na criagdo, e finalmente o fundador de dois ritos fundamentai: Esses dois ritos séo, como vimos, o resguardo de parto € os funerais, e tomar-se-’ (espero) claro mais adiante que isso no parece ser fortuito: so estes os ritos de separagio de individucs do seio de suas parentelas que tém a ver com a criagio e a destruigéo de um espaco propriamente pessoal. Cabia a Lua instaurar esses ritos, Diziamos acima que a evitacdo, a distancia, seriam a propria esséncia da amizade formal. Explicita nesse sentido ¢ a prética Canela desctita por Nimuendaju (1946: 101). Os iniciandos, ao cabo do situal de pepyé, podem, se o desejarem, estabelecer relagdes de amizade formal, mediante o seguinte rito: de costes tum ‘para outro, mergutham no ribeirio em direcées opostas, ‘em seguida emergem ¢ se encaram. Significativamente, um sito ‘muito semelhante, mas com uma inverséo crucial servisia, entre os mesmos Canela, para estabelecer a relagdo que chamarei de compankeitismo (0 termo krahé € ikhuond, meu companheiro) : os candidatos mergulham juntos, abracados e na mesma direséo (C. Nimuendaju 1946: 105). 35 Nossos dados como os de Melatti indicam que sio . Um come a came protbida de mucura e envelhece instantanea~ mente, enquanto o outro continua 0 seu caminho. Nos dois mi- tos, a «construgio> € a mesma: o par de companheiros s6 parece existir em fungo do incidente cue os faré divergir: uma traje- toria serve por assim dizer de referéncia & outra, que se alterou. Mas para tanto, € necessdrio que as trajetérias sejam inicial- mente paralelas, 0 que & expresso pelo artificio estilistico de faz@-los chamarem-se mutuamente de ikhuond. ‘Os ikhuond se espelham portanto, cada qual refletindo o que 0 outro tem de singular, no plano bioléaico, ritual e também nesse dominio intermediario que € para os Krah6 o politico, His porque a placenta, ikhuoti seria o companheiro maior, o compa- nheiro por exceléncia, pois nascida com o homem, ela é sua primeira imago. O companheiro € a aco ou a funcéo simultanea, aquele que me espelha em minhas obras e no qual eu me reco- ahego © me assumo enguanto homem agindo. Mas se 0 compa- nheirismo permite assim pensar e assungdo de uma imagem, uma identificagéo, nao autoriza ainda a colocar como existente a no- Ao de pessoa Esta me parece ser precisamente a atribuigfo da amizade formal que, jogando com a alteridade, instaura uma dialética, um principio dindmico que fundam a pessoa como ser de autonomia. 37 Nesse sentido a amitade formal, em seu duplo aspecto de evi- tagio ¢ de selagées prazenteiras, ¢ uma modalidade de um pro- cesso de construgdo da pessoa. Instaura distancia e subverte a ordem. Vimos gue o amigo formal € conceitualmente 0 estranko, © outro, € enquanto tal, ele pode ser o mediador, o restaurador da integridade fisica e da posigéo social, gracas a jogos de dupla negagio em que os Jé sio adestrados. Ja mencionei em outro trabatho que é um procedimento usual entre os Kraho 9 de representar um grupo por alguém que Ihe é exterior. Assim por exemplo,uma menina ¢ associada aos homens, um menino as mui- Theres, duas meninas aos iniciandos... Como se cada um desses grupos s6 se recomhecesse através de um jogo de espelhos que The devolve o seu contrério, E Christopher Croker apontou me- canismos estreitamente paralelos a estes entre os Bororo, mos- trando que tanto a identidade social quanto a identidade fisica emergem através de processos especulares que as constroem, pro- cessos que fazem com que um Bororo nunca seja tanto si mesmo do que quando um totalmente outro 0 (C. Crocker 1977). Creio que este processo que vemos a obra em outros Planos se reencontra na construgao da identidade pessoal, e néo apenas biolégica ou social, através da amizade formal. Por outro lado, 0 amigo formal € também aquele que; a0 Brincar com os parentes de seu parceiro, nfo s6 aponta e marca © lugar do amigo, mas agride e subverte 0 grupo familiar: em que este se insere e Ihe talha um espaco pessoal, reafirmando limites. Vejam que isto esclarece algo que era curioso, ot seja a ndo-reciprocidade do comportamento jocoso. “Cada qual € alvo das pilhérias dos amigos formais de seus filkos e nao hes pode retrucar. Nesse sentido, talvez se possa corselacionar nas diver- sas tribos Je, 0 grupo dentro do qual se faz resquardo (ou seja aquele que pode obscurecer as fronteiras biolégicas de cada um) € 0 grupo com o qual se pode gracejar Assim, por excelncia, 0 amigo formal seria 0 que «contra dizs, nega, evita e inverte seu perceizo, e que Ihe abre assim uum campo pessoal, nfo sem ditvida como agente dotado de ra- 280, vontade e liberdade — esses atributos ocidentais da pessoa ++ mas coma ser de certa maneira tnico, diferenciado, e sobre- tudo provide de uma dinamica propria, em suma, como um su- jeito. 38 Bibliografia Colson, Elizabeth — 1962 — The Plateau Tonga of Northern Rhodesia (Zambia) Social and Religiois Studies: Manches- ter University Press. Crocker, Christopher — 1977 — Les réflexions du soi» in Cl. Lévi-Strauss (ed.) — L'Identité: 157-184. Paris: Bernard Grasset. Cunha, Manuela Carneizo da — 1973 — eLogique du mythe et de T'action. Le mouvement messianique Canela de 1963. L’Homme XIII, 4: 5-37. 1978 — Os Mortos 0s outros. Anilise do sistema funcrério © nogo de pessoas entre os indios Krahé. S. Paulo Hucitec. Da Matta, Roberto — 1976 — Um Mundo dividido. A estrutura social dos indios apinayé. Petsbpolis: ed. Vozes. Douglas, Mary — 1968 — «The social control of cognition some factors in joke perception», Man vol. 3, n° 3: 361-376. Gluckman, Max — 1965 — Politics, Law and Ritual in Tribai Society. Oxford: Basil Blackwell. Meletti, Julio Cesar — 1970 — O Sistema Social Krahé. ‘Tese de doutoramento apresentada a USP. Sao Paulo, mimeo. Meyerson, Ignace — 1973 — «Preface», in Problémes de le Per- sonne: 7-10, Paris: Mouton Nimuendaju, Curt — 1946 — The Eastern Timbira. University ‘of California Publications in American Archaclogy and Ethnology vol. 41. Radcliffe-Brown, A, R. — 1952 (1940) — ), isto € uma ordem que admite aguilo que a fabricagéo nega, ela permite a reprodugéo da Cul- tura como transcendéncia, Destes dois processos, examinarel sobretudo o de fabrica- do; deve-se ter em mente, contudo, que ele s6 adguire inteli- 41 gibilidade plena em conexdo com o de metamorfose. Ambos sio fundamentais, porque permitem pensar o estatuto da pessoa hu- mana em sue raiz, isto é, em sua diferenca dentro da ordem das coisas; eles envolvem passagens e mediagées entre os subtniver- sos Yawalapiti de significagéo. A expressfio «estou fazendo (meu filho)» é usada pelos Yawalapiti para explicar as ages de um homem em certos con- textos cruciais de produgdo de novas identidades: (1) durante o perfodo em que o homem constréi, por relages sexuais repeti- das, o corpo da crianga no corpo da mae*; (2) durante a reclusdo pubestaria, sobretudo em seu momento inicial, quando os pais devem-se abster de sexo, devem ministrar eméticos ao recluso e cuidar de suas necessidades; (3) para descrever a relagio entre um morto e seus pais, durante a ceriménia dos mortos. Usa-se também a categoria do efazers para designar o xama que inicia um outro: ele € dito o «fazedor» (inumdtsiri) deste outro, € sua relagdo com o novigo em reclusdo iniciética é assimilada a relagio do pai como jovem em reclusio pubertaria, ‘Os trés momentos principais enumerados séo as passagens cxiticas, social e ontologicamente, do ciclo vital: acesso a vida: capacidade de reproduzi-la (maturidede sexual); fim da vida. A iniciagéo xamanistica pode ser, aqui, pensada como capaci- dade de restaurar ou proteger a-vida (cura). Os momentos mencionados nfo so, assim, vistos como «na- turais», independentes da intervengéo humana. Sua fase liminar, explica-se, para os Yawalapit, como sendo o tempo da fabri- cacio do novo papel social por meio de uma tecnologia do corpo. Na transicéo entre estados da pessoa, a sociedade intervém radi- calmente, submetendo 0 individuo e «individuals (ver Pocock 1967) a uma normalizagao sécio-fisiolégica. ‘Vamos ao principio. A fabricacdo primordial dos humanos, reza 9 mito* foi rea- lizada por um demiurgo (Kwamuty, Mavutsinin), que, soprando fumaca de tabaco sobre toras de madeira postas em um gabinete @) A mie, esta, usa a expressio apenas no plural (“estamos fazendo"), (© que é coerente com a Enfase Yawalapiti no papel formador do sémen. ‘Ver Bastos 1978, pps. 3436, para o conceito Kamayura de “trabalhar™ a crianga, aonde a contribuicsio da mie parece ser mais elaborada. (A) Versbes deste mito em Villas Boas ¢ Villas Boas 1972, Agostinho 1974 ‘Monod-Beequelin 1975. 42. de reclusio, deu-thes a vida: eriou a mie dos gémeos Sol ¢ Lua, protétipos da humanidade atual. Ela foi a primeira mortal, em ‘cuja honra se celebrou a primeira festa dos mortos — um «subs- titutos da impossivel ressureicao, esclarece 0 mito. O demiurgo Kwamuty € designado, nos mitos, por wim epi. tero — itsati — que também significa «festax, «ritual», e mais pro- priamente a ceriménia dos mortos. Este ritual, 0 mais importante da sociedade xinguana, 6 como mostrou Agostinho (1974a), uma re-encenaco da criacéo primordial — seu simbolo focal sao toras da mesma madeira primeva, verdadeizos duplos, colossci, dos mortos (Vernant 1965).—, sendo o momento privilegiada de apresentacdo pablica dos jovens recém-saidos da reclusao pu- bertéria. Assim, € um ritual que entretece a morte e a. vida: ‘as mogas que saem da reclusio sio como as primeiras humanas: mae dos homens (pois a saida da reclusdo coincide. idealmente com 0 primeiro casamento). Por que ifsati <é> o.demiurgo e a festa mortudtia? Itsati € um qualificativo que se usa para exaltar individuos. muito habeis. na confecgdo de objetos culturalmente valorizados: bancos, mas~ caras, adornos plumarios, cestos, flautes. Neste sentido, ele re- fere 0 artesio ao modelo por exceléncia do criador: 0 demiurgo, gue produziu 0 artefato mais precioso — os humanos —, ¢ inau- gurou o fazer: da Natureza, extrafu a Cultura. ‘Itsati, assim, designa a produggo cultural — e concebe os homens como pro- ugao cultural, Sugere ainda a visio do ritual como um fazer (Viveiros de Castro 1978). Além da fumaca de tabaco, instru mento dos xamas e substancia que corresponde ao poder criativo do sémen, na esfera sobrenatural, a fabricaco dos humanos-exi- giu uma recluséo. As mogas de pau transformam-se em gente depois de encerradas no gabinete de palha (pdjw) que abriga 08 reclusos dentro da casa de seus pais. Falemos da recluséo. Sugizo que todo 9 complex xinguano da reclusio — que inclui a cowvade, a puberdade, a doenga (de modo mais brando), a iniciagao xamanistica, 0 lito, e de modo «simbélico», a gesta- Go e © sepultamento (este no periodo liminar entre o enterra- mento e a cerimOnia itsafl, um ano depois, que libéra a comuni: dade da presenca do morto) — todo este complexo deve ser reexaminado, em suas diversas manifestagées, & luz desta idéia: de que © corpo € corpo humano a partir de uma fabricagéo cultural. a Toda reclusio & sempre concebida, para ox: Yawalapiti, como uma mudange substantiva do corpo. rica-se recluso, dizem, para «trocar 0 corpos, Vale nota, porém, que a personi- ficagdo do homem ideal depende de uma adesio correta as regcas ditadas pela tecnologia do corpo na reclusio. Aqueles que no seguiram as regras alimentares ¢ sexuais da reclusio tornam-se ipufiofdri-mald, cgente imprestavel», e sé candidatos ideais a acusagées de feiticaria, além de sofrerem (por acimulo de sangue, resultado de incontinéncia alimentar especifica, ou sexual), pe- quena estatura (incontinéncia sexual do adolescente recluso), fra- queza, etc. A feitira e a avareza refletem, acsim, reclusdes mal sucedidas: ndo por acaso, os chefes (amulav) ‘sao idealmente belos, fortes © generosos ¢ devem ter ficado reclusos por perio- dos maiores na adolescéncia. Essa , categoria bésica do efios xinguano (ver Basso 1973, para os Kalapalo). A transigo social € uma mu- danga corporal, esta é «vergonhosas e deve ficar invisivel (a vergonha é marceda por restrigdes a interagio social: siléncio, invisibilidade). O ser em fabricagdo esta «nus — néo usa pin- tura nem adornos, que marcam estados, enquanto a focalizaco nos processos de incorporagao e excorporagéo marca 0 limen —, fragil, pois depende de seu grupo de substincia (ver Seeger 1975, Da Matta 1976, Viveitos de Castro 1977) para suas ne- cessidades mais elementares, e exposto a variados perigos fisicos € metafisicos. O8 reclusos, de fato, s60 freqientemente compa- rados a recém-nascidos — condigdo que parece fornecer 0 para~ digma da reclusio, além de sugerir uma metifora eficaz, a do nascimento, para descrever as passagens crucais; € como o re cém-nascido, € esta, como este, exposto a muitos perigos fisicos € metafisicos, A categoria evergonha> Yawelapiti define rela~ gbes sociais ambiguas ou liminares: reclusio, relagéo entre afin, entre as mulheres e 0s homens (enguanto grupos). Ela fala a espeito do perigo (ver Douglas 1976) — e € por isso que se aplica aos reclusos. Embora possa referir-se a uma experiéncia “4 psicologica (como a interpreta Gregor 1977: 220 e ss.), seu sigaificado € propriamente social. ‘O complexo da reclusio é, na verdade, um aparelho de construgéo da pessoa xinguana: € através dele que os papéis sociais sio asstmidos. Portanto, que o idioma da reclusdo seja sobretudo um idioma da corporalidade, isso nos indica o papel central que a imagem do cospo desempenha na elaboracao da persona xinguana. ‘Com isto quero dizer que se deve levar a sério a teoria ‘Yawalapiti a respeito da reclusdo, como sendo uma fabricacéo do corpo.§ Teorias como a de Gregor (1977: cap. 14), que interpretam a reclusio como método de manutengio do equilibria psico-social, por garaatir uma privacidade e um momento de relaxamento dos desempenhos piblicos, ndo permitem que se per- ceba © significado (versus a funcdo imposta & instituicao pelo observador) da reclusio dentro da ideoloaia xinquana; nfo per- mitem que se veja, nor exemplo, que s morte é vensada como reclusio* (e aue o Xingu apresenta wm sistema de duplas ext- quias disfarcado), e assim também a doenca, a gestacio. Sobre- tudo, a teoria de Gregor — a iinica até agora formulada sobre a reclusio xinguana — descualifica a interpretagio nativa da inctituicho, 0 que € uma opsSo teérica que recuso. Se os Yawn- Tapiti dizem que a recluséo é eparay se mudar 9 corpo, esta afirmativa no node ser tomada como <«metafora>; ela deve ser ouvida an pé da letra. desde ove se entenda que o ¢corpo>. para os Yawalapiti, é aloo diverso do aue assim chamamos. A tecnolosie’ de elaboraco do corpo em recliséo se exerce por meio de intervencées sobre os canais de contato entre 0 (5) Assim como a fabricacto do corpo se faz no gabinete de rectusto (ama hhipéstase do espaco domésticoprivado). as metamorfases se dio sm bretudo fora da aldeis, no mato, quando os individuos estio sds, iso- Indos da sociedad’, A reclusio-fabricacio isola o individuo wara poder “incorporélo” em duplo sentido); a metamorfose expele o Individuo pa- ra além das fronteiras do grupo ¢ da forma corporal hamana (6) Como reclusio pubertéria; agucles que morrem prépaberes chegam 20 ‘cfu J& péereclisos, Basso (1973: 58) diz que a alma recémchegada fos céus eatra em rechusso para recuperar suas forcas apés a longa © erizosa viagem. N&o hi criangss, como no hd sexo, afinidade ov trabalho, na aldeia dis mortos'— mundo congelado, sucessio eterna de fesias e rituais, (1) Ver Whitherspoon 1977: 86, sobre 9 necessidade de saber distinguir o que 6 metifors do que é afirmagio literal nos termos da cultura do ‘rupo estudaclo ¢ nko, da cultura do pesquisador. 45 corpo eo mundo. Trata-se da manipulagdo de algumas substan- cias que, devendo ou nao entrar/sair do corpo, colaboram para eeu crescimento © fortalecimento: asngue, stmen, alimentos, emé- ticos vegetais, tabaco. A perda de sémen enfraquece — e por isso, os jovens em reclusio pubestisia devem-se abster de sexo, sob pena de ficarem baixos. Por outzo lado, a producéo de um filho exige um gasto continuo de sémen, sendo assim vista como um esforgo e um trabalho, pelo homem. A retengéo de sangue — de sangue que deve sair — enfraquece igualmente. Por isso, a escatificagéo € técnica de fortalecimento. O sangue tende freqiientemente, se no forem tomados eméticos vegetais e se praticar a escarifica- do, a acumular-se na barriga, com efeitos deletérios. Isto pode ocorrer aos pais (ambos) de um recém-nascido — ea couvade, para o homem, consiste em tomar eméticos e jejuar para elimi © sangue (da mulher) que fica na barriga do pai — ou a0 executor de um feiticeiro, cujo sangue tem o mesmo destino. O alimento que mais afinidades apresenta com o sangue € 0 peixe. O peixe, base proteinica da alimentacdo xinguana, € sempre pros~ crito para os individuos cujo estado envolve perigo de reténcdo de sangue — pais em couvade, mulheres menstruadas, assassinos de feiticeiros, meninos que furaram a orelha no pikiké. O jejum do pelxe se desdobra na utilizecdo intensiva de eméticos vege- fais, que tém a dupla fungio de purificar o organismo das subs- tancias , e de produzir sémen (especialmente no caso do adolescente recluso). O uso de eméticos se faz em toda situagio de transigéo social ou de perigo mistico ou fisico. Sio tomados pelos xamis iniciantes, pelos lutadores antes de um confronto inter-aldeias e constituem a técnica principal da pri- meira fase da reclusio pubertaria (quando o adolescente é dito ataya Stsbri, «tomador de eméticor) . © tabaco é @ substincia xamanistica por exceléncia, quase © emblema do xami, ¢ tem funcées criadoras e transformadoras: induz 0 transe, cura doengas, cbenze> objetos e pessoas. & uma substéncia que caracteriza, iqualmente, os espiritos. Na verdade, © tabaco é a substancia mediadora entre o mundo atual e 0 mundo espiritual: abre ou fecha as portas entre os dois mundos. Sua fungdo ctiadora pode ser vista no mito de criagdo, quando da vida as foras de madeira primeva. Ele vai desempenhar pa- pel analogo 20 do sémen ¢ ao dos eméticos, em outro registro — 46, no registro em que fabricacio ¢ metamorfose se misturam € con- fundem, Toda esta Igica da incorporagio/excorporagéo de substan cas criticas constitui 9 corpo xinguano em sua trajet6ria do nas- cimento @ morte e se manifesta com mais forca nos momentos de reclusdo: momentos em que o corpo é manipulado seguado esta egica. Assim, o que se passa Lygia Sigaud Janeiro de 1979 — Gilberto Velho 51

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