Sunteți pe pagina 1din 36
Ceticismo e mundo exterior OSWALDO PORCHAT PEREIRA Tornou-se um lugar bastante comum da filosofia moderna e contemporanea exigir, no ponto de pattida de toda e qualquer re- flexao filoséfica e como condi¢ao sine qua non de seu mesmo desen- yolvimento livre de predeterminagdes e prejuizos, a “suspensao metodoldgica de juizo sobre o mundo exterior”. Nao se proibe ao fildsofo, por certo, que viva a sua vida cotidiana como um homem qualquer, nem que continue a pautar sua conduta pelas regras cos- tumeiras que presidem ao comportamento comum dos homens. O que se lhe pede, porém, é que — enquanto filésofo e nao enquanto homem — nao assuma em sua reflexdo filoséfica as opinides, cren- gas e pretensdes ao conhecimento proprias ao vulgo e que delas deci- didamente se dispa, por uma exigéncia de método, no decorrer de seu empreendimento de filosofar e desde 0 seu proprio inicio. Pode- Tia acaso ser de outra maneira, se a filosofia sempre se quis e se quer eminentemente critica? Proceder de outro modo nao seria o mesmo que prejulgar, ao menos em parte, aquilo mesmo que se quer sub- meter ao crivo da anilise e da critica filoséfica? Predeterminar os Tumos de nossa reflexdo, os parametros de seu equacionamento e, puma medida importante, muitos jA de seus resultados? Se assim é, nao parecera sendo muito natural que a propria existéncia de um mundo exterior seja objeto de uma suspensio filoséfica de juizo. Por um compreensivel imperativo metodolégico, pér-se-4, entaio, o mundo “‘entre parénteses”, Nao assumindo 0 mundo exterior como 33 objeto de conhecimento ou saber, o filésofo reservar-se-4 para, no momento oportuno, de dentro de seu sistema e coerentemente com ele, proferir uma decisao filoséfica sobre o estatuto ontolégico da- quela “‘exterioridade” ou, pelo menos, sobre o real significado epis- temolégico da crenga ordindria nela. Tao habitual se tornou essa postura metodolégica e tao natural ela nos parece que n&o vislum- bramos, a primeira vista, como se poderia assumir alguma outra, sem incorrer num dogmatismo ingénuo e bem pouco critico. De tal modo se incorporou a nossa tradigao filoséfica esse modo de ver as coisas que muitas filosofias nem mesmo se demoram em considera- lo e esclarecé-lo, menos ainda em discuti-lo. A exigéncia metodolé- gica, nao menos presente, se torna aqui implicita. Nao serd exage- rado, por isso mesmo, sustentar que ela desempenha o papel de um axioma basico da metodologia filoséfica, cuja aceitac4o nao se teria como nem por que questionar. Entretanto, uma consideragao mais atenta do desenvolvimento histérico do pensamento moderno nos faz facilmente ver que, nessa postura metodoldgica ‘natural’ que se adota para filosofar, vem embutida toda uma historia da filosofia, 4 qual ele esté umbilical- mente ligada e da qual ela é um produto, por assim dizer, cristali- zado.' Nao mais se percebe isso t&o-somente porque o sentido da historia se perdeu. Recorda-la, porém, nos leva a reconhecer que normas metodoldgicas que nos parecem obyiamente impor-se repre- sentam, em verdade, o resultado datavel de uma orientagao filosé- fica particular, ainda que amplamente difundida e secularmente vi- toriosa. A origem moderna dessa postura metodolégica encontra-se incontestavelmente na 1% Meditagao de Descartes. Na busca de um fundamento firme para o saber, Descartes suspende o juizo sobre todas as opini6es que outrora recebera como verdadeiras.? Por mais provayeis que sejam e por mais dificil que seja recusar-lhes crenca, Descartes empenha-se metodologicamente em destruji-las, bastando- lhe, para rejeita-las, que nao se manifestem como absolutamente certas e indubitaveis, isto é, que surja uma razio, por menor que (1) As consideragdes que seguem resumem alguns pontos que estudamos num artigo intitulado “Saber Comum e Ceticismo’’, a ser publicado num dos proximos niimeros de Filosofia e Epistemologia. (2) Descartes, Méditations, p. 271 in Descartes, Oeuvres et Lettres, Bibliothé- que dela Pléiade, NRF, Gallimard, 1953. 34 seja, para delas duvidar.* Sua diivida se exerce sobre o conhecimento sensivel, mediante os argumentos baseados nas ilusdes dos sentidos enos sonhos, e atinge os proprios conhecimentos matematicos, gra- gas a hipotese do génio maligno. Assim, a suspensao de juizo se efetua universalmente sobre todas as nossas aparentes verdades cos- tumeiras, incluindo manifestamente a mesma existéncia do mundo exterior: “‘Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que nés vemos, nao sdo sendo ilu- sdes e enganos”’.‘ A seqiiéncia, todos a conhecemos: a certeza irre- cusavel do Cogito resistira 4 diivida hiperbdlica e triunfara sobre ela, constituindo o alicerce inabalavel sobre que se erguera todo o edifi- cio filoséfico e cientifico. Um admirador de Descartes, 0 abade Francois Para du Phan- jas, escreveu em 1779 0 que se pode tomar como um comentario licido e pertinente da estratégia cartesiana nas primeiras pAginas das Meditagées: “Descartes ensinou a seu tempo a arte de fazer 0 Ceticismo dar nascimento 4 Certeza filoséfica”.° O préprio Descar- tes, alias, descreveu-se como o primeiro dos homens a derrubar as dtividas dos céticos.® E, no intuito de derrub4-las, sua estratégia consistiu precisamente em retomar a yelha argumentagao cética, ba- seada nas ilusdes dos sentidos e nos sonhos, contra nosso pretenso conhecimento das coisas exteriores, parecendo exacerbar a diivida cé- tica até o extremo limite; por meio da ficcfo metafisica do génio maligno; em retomar a pratica cética da suspensdo do juizo, apli- cando-a aparentemente de modo universal e radical, fazendo-a inci- dir expressamente sobre a propria existéncia das coisas exteriores; para finalmente manifestar a impoténcia do ceticismo ante a evidén- cia irresistivel do Cogito. Devemos a Richard Popkin paginas escla- recedoras sobre o confronto de Descartes com a crise pirrénica de seus contemporaneos e sobre o papel desse confronto no desenvol- Vimento de sua filosofia.? A Renascenga fizera reviver 0 ceticismo Tego, 0 novo pirronismo disseminou-se e achou guarida em boa Parte dos mais brilhantes espiritos da época. Descartes, porém, assi- mila e utiliza instrumentalmente o arsenal cético para fazé-lo de algum modo yoltar-se contra o proprio ceticismo, minando nossas (3) Ibid., pp. 267-268. (4) Ibid., p. 272. (S) Cf. R. Popkin, The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza, Uni- versity of California Press, 1979, p. 172. (6) Cf ibidem. (7) CE. ibid., cap. IX: “Descartes, Conqueror of Scepticism", pp. 172-192. “7 35, certezas comuns para “‘limpar o terreno”’ e permitir que a certeza ao Cogito venha a servir de fundamento para uma filosofia positiva e sistematica. Inaugurando um estilo de filosofar basicamente justificacio- nista* e fundamentacionista,? que requer, como condic¢Zo prévia para a constituigao do saber filoséfico, uma tabula rasa de nossas certezas comuns, em geral — e de nossas certezas sobre 0 mundo exterior, em particular —, 0 cartesianismo reservou ao ceticismo um curioso destino. Porque, ao utilizar instrumentalmente o ceticismo de que metodologicamente se alimenta, ele estranhamente o pre- serva, embora pretendendo supera-lo. A suspensio cética de juizo sobre o mundo exterior converteu-se em estratégia-padrao e em pre- liminar metodoldgico ao filosofar. Com isso, o cartesianismo deu um passo decisivo para a incorporac&o da mensagem cética ao pensa- mento moderno, o que nos permite mesmo falar adequadamente de um modelo cético-cartesiano estabelecido no inicio das Meditacées. Esse modelo, a filosofia pés-cartesiana adotou-o com extraor- dinaria freqiiéncia."° Entretanto, com uma diferenca fundamental: enquanto a metodologia cartesiana da 1* MeditagGo percorre sua etapa cética por via argumentativa, o pés-cartesianismo, de um modo geral, houve por bem prescindir dessa argumentacaio. Tudo se passa como se essa nao tivesse mais de ser retomada, como se os re- sultados por meio dela alegadamente obtidos nao tivessem mais de ser revistos, como se um novo empreendimento filoséfico, qualquer ,8) Popper, a quem se deve a atual yoga do termo ‘‘justificacionismo”, carac- teriza como justificacionistas aqueles filésofos que sustentam “roughly speaking, that whatever cannot be supported by positive reasons is unworthy of being believed, or even of being taken in serious consideration”, cf. K. Popper, “Truth, Rationality and the Growth of Scientific Knowledge’’, p. 228, in Conjectures and Refutations, London, Routledge and Kegan Paul, Sthed., 1974. (9) Para Rorty, foi com o empirismo lockeano que a epistemologia fundamen- tacionista emergiu como o paradigma da filosofia, cf. R. Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature, Basil Blackwell, Oxford, 1980, p. 59. Mas é certo que o raciona- lismo cartesiano no é menos fundamentacionista em sua epistemologia. (10) Em “Saber Comum e Ceticismo”, procurei mostrar como esse modelo é complementado pela “moral proviséria" do Discurso do Método, a que corresponde, Por sua vez; no ceticismo antigo, a adogao “adoxastica” da vida comum (koinds bios). A nogio cartesiana de “morale par provision” é enriquecida por Gellner, que nos fala de uma “ética do conhecimento proviséria”, a qual constitui a outra face da Suspens4o de juizo sobre o mundo caracteristico da postura epistemolégica pés-car- tesiana, ef. E. Gellner, Legitimation of Belief, Cambridge University Press, 1974, p. 43. 36 que ele seja, devesse necessariamente ter principio ja no fim da 1% Meditagao de Descartes. A “‘suspens&o metodoldgica de juizo sobre o mundo exterior” tornou-se algo como 0 axioma basico e indiscu- tivel da metodologia filosdfica ao qual me referia no inicio. E, desse modo, 0 ceticismo metodoldégico se fez um paradigma onipresente, por vezes um paradigma oculto, mas pelo menos pressuposto sempre. E pressuposto em olena ignorancia de suas origens, como se ele nao fosse o resultado histérico de uma determinada postura filos6fica, construido sobre um estilo de argumenta¢4o muito particular. II Essa suspensao de juizo sobre as coisas exteriores, que a filo- sofia cartesiana de tal modo valorizou, foi sabidamente uma atitude caracteristica e fundamental do ceticismo grego. Em verdade, a epoché (suspensao de juizo) cética dizia respeito a todas as opinides e crengas humanas, sustentadas por filésofos ou por homens co- muns. Sexto Empirico descreve-nos 0 cético como um filésofo que, na esperanga de obter a quietude e a imperturbabilidade (ataraxia), saiu a campo para investigar o que é verdadeiro e o que é falso nas coisas, porque perturbado pelas anomalias e contradigdes que nelas encontrava e pela divida sobre a que alternativas dar seu assenti- mento." Ele pés-se a filosofar no intuito de efetuar um julgamento critico de suas representacdes (phantasiat) das coisas e de apreender quais as verdadeiras e quais as falsas.'2 O cético nao suprime, por certo, as aparéncias (ta@ phaindmena), isto é, aquilo que o conduz involuntariamente ao assentimento segundo a representag’o passiva (phantasia pathetiké):" ele da assentimento As afecgdes (pdthe) que se produzem necessariamente segundo a representacao.'* Em yer- dade, a aparéncia fenoménica (t6 phainémenon) é 0 critério da es- cola cética, “assim chamando ao que é yirtualmente a sua repre- sentagao"’.!5 Mas tal género de concepgao nao envolve a realidade do (11) Sexto Empirico, Hipotiposes Pirronianas I, 12. Todas as citagdes das obras de Sexto Empirico terio como referéncia a edigdo de R. G. Bury na Loeb Classical Library. (12) Hip. Pirr. 1, 26. (13) Ibid. 1, 19; cf. também II, 10. (14) Ibid. 1, 13; ef. também I, 193. , (1S) Ibid. 1, 22. Sexto Empirico identifica aqui o “fenémeno” e sua represen- tagfio, ndo distinguindo entre o que nos aparece e 0 que seria virtualmente nossa a 37 que é concebido,'® os ‘‘fenGmenos”, por si mesmos, “‘meramente estabelecendo o fato de que aparecem, mas nao sendo capazes de indicar também que realmente existem (hypdkeitai)".'’ A aparéncia fenoménica, porque repousa num assentimento e afeccdo involunta- ria, nao é objeto de diivida ou investigacao. ' Nao se discute sobre o “‘fendmeno’’, que se reconhece, mas sobre sua interpretagao: conce- dendo-se que algo aparece, investiga-se sobre se 0 objeto é tal qual aparece. O'cético sente a dogura do mel e assente a que o mel lhe aparece como doce, mas é matéria de diivida e investigagio se ele é doce, no que concerne 4 sua esséncia ou razao (/égos), “‘o que nao é o ‘fendmeno’, mas o que se diz do ‘fendmeno’”’.!° A diivida se poe a propésito de um discurso (/égos) que, falando do “fendmeno”, pre- tende desvelar sua esséncia ou razdo (/6gos), isto é, a propdsito de um discurso humano que se propde como interpretacao da aparén- cia fenoménica ¢ como desvelamento do discurso interno do objeto, manifestando o ser para além do aparecer. Eos filésofos pretendem, com efeito, que os “fenémenos” sao significativos das coisas nao-evi- dentes (¢@ adela), que por meio delas seriam apreendidas: segundo eles, “os ‘fendmenos’ s4o a visdo das coisas nao-evidentes”. Ora, é precisamente essa pretensa passagem do nivel fenomé- nico ao do ser nao-evidente que o cético vai pdr em xeque, recor- dando alias que € objeto da propria investigacao filoséfica a questio sobre se as apar€ncias fenoménicas tém existéncia real.” Filésofos e mesmo pessoas comuns polemizam sobre se as aparéncias fenoméni- cas sao sensiveis ou inteligiveis.” E é grande e manifesta a discordan- cia (diaphonia) das posigées: alguns negam As aparéncias fenoméni- representa¢ado do que nos aparece. Em outras palayras, nossas representacdes sao os préprios objetos de nossa experiéncia. A respeito dessa identificagéo entre phantasia € phainémenon por Sexto Empirico, em contraposigao a Enesidemo, que os distin- guiv, leiam-se as excelentes consideragdes de C. Stough em seu livro Greek Skep- ticism, University of California Press, 1969, pp. 115-125. (16) Hip. Pirr. 11, 10. (17) Sexto Emptrico, Contra os Légicos Il, 368, Nas notas que seguem uti- liza-se, para fazer referéncia a essa obra, a sigla latina “Adv. Log.”’. (18) Hip. Pirr. 1, 22. Anteriormente aos céticos, os cirenaicos haviam susten- tado, como nos lembra Sexto Empirico, a infalibilidade de nossas afeccdes (pathe), € somente delas, cf. Adv. Log. I, 191. (19) Hip. Pirr. 1, 19-20. (20) Ibid. 1, 138. (21) Ady, Log. Il, 357. (22) Ibid. 11, 362. AB cas uma existéncia real, enquanto outros Ihes atribuem a existéncia real e tentam provar por argumentos que elas sao verdadeiras.* Ea mesma comparacdo entre as aparéncias fenoménicas, de que se po- deria querer tirar alguma luz, revela apenas um insandvel conflito entre elas” e nos deixa perplexos sobre onde fundamentar nossa confian¢a nelas,* de modo a transcender o nivel puramente fenomé- nico. A diaphonia generalizada entre os discursos, filosdéficos ou apenas comuns, que se querem yeiculos de uma tal transcendéncia, 0 filésofo cético a descobre, em cada caso, insuscetivel de ser resol- vida.”* Pois sua experiéncia é sempre a da iguai forga (isosthéneia) dos discursos € razdes que se aduzem e podem aduzir, em cada caso, a favor das partes em conflito.”” Usando uma de suas férmulas pre- feridas, o cético dira entao que ‘‘a todo discurso se ope um dis- curso igual”, tendo em vista os discursos que se propdem a estabe- lecer algo ““dogmaticamente’’, isto é, com remissAo a uma nao-evi- déncia, e entendendo essa igualdade no sentido da credibilidade ou nao-credibilidade e aquela oposi¢ado como conflito.% Essa pratica de opor a todo discurso um discurso de igual forca, Sexto Empirico né-la descreve como o principio fundamental do ceticismo.* Assim, ao reconhecimento da diaphonia, que por si so exibe a nao-evidén- cia, sucede, em cadacaso, a manifestac&o da isosthéneia. Incapaz de decidir entre aiternativas de igual peso, no tendo como aceitar uma opiniao ou rejeita-la, 0 cético ¢ levado a suspensao de juizo, 4 epoché.*! Como nos explica Sexto Empirito, a epoché “um estado de repouso do intelecto (didnoia), devido ao qual nada (23) fbid. II, 365; ef. também 1, 369. (24) Ibid. II, 362-363. (25) Ibid. 1, 365-366. Ci. Hip. Pirr. 1, 227: “Quanto as representagdes, nds dizemos que elas sdo iguais quanto a credibilidade ou naio-credibilidade, no que res- peita a razfo (/égos)”. (26) Hip. Pirr. 1, 165. O tropo da diaphonia é, como se sabe, um dos cinco tropos gerais da argumentagao cética, que se devem a Agripa. (27) Hip. Pirr. 1, 8-10, 26; ef. tarmbém Adv, Log. 11, 363, (28) Hip. Pirr. 1, 202-203. Sobre ‘‘dogma” no sentido de assentimento a um dos objetos nao-evidentes de que se ocupam as ciéncias, cf. 1, 13. (29) Ibid. I, 12. (30) Cf. ibid. Tl, 182: “pois as coisas controversas, na medida em que so controvertidas, sao nao-evidentes’’. (31) Ibid. 1, 26. E 0 cético descobre que @ ataraxia, que ele buscava na ver- dade sobre as coisas, sobrevém como por acaso 4 époché sobre a yerdade e a reali- dade, cf. ibid. 1, 26-30. 20 afirmamos nem negamos”’;*? ao dizer que suspende o juizo, 0 cético quer simplesmente significar que ¢ incapaz de dizer no que deve acreditar ou nao acreditar dentre quantas coisas se lhe apresentam, ja que lhe aparecem iguais as alternativas no que respeita A sua cre- dibilidade ou nao-credibilidade.** Ocorre assim que, em virtude da isosthéneia e da conseqiiente inevitabilidade da epoché, o cético deixa de “dogmatizar”,*4 isto €, nao mais da assentimento a ne- nhuma das coisas nao-evidentes. Ele nao encontrou um critério de verdade, um critério que regule a crenga na realidade ou irreali- dade.** O cético se confinara, entao, se assim nos permitimos ex- pressar-nos, ao universo de suas representagdes. Mesmo ao proferir suas férmulas, estara apenas anunciando, sem opinar (adoxdstos), 0 que lhe aparece, ‘‘sem fazer nenhuma asser¢ao positiva sobre os ob- jetos exteriores (peri tén dxothen hypokeiménon)’’* e sobre sua na- tureza:*’ ao dizer, por exemplo, que a todo discurso se opde um discurso igual, sua proferigao nao é “‘dogmatica”, mas meramente “o amincio de uma afeccao humana (anthropeiou pdathous apagge- lian) que aparece (hé asti phainémenon) a quem a experimenta”.* Mesmo ao discorrer sobre 0 ceticismo, 0 cético nao esta afirmando positivamente que as coisas sao como ele as diz, mas apenas anun- ciando, 4 maneira de um cronista, o que Ihe aparece no momento.” Seu discurso nunca é assertivo nem opinativo, ele nao visa uma reali- dade, ele se produz como mero “‘discurso da representagao”’, expres- sio da pura fenomenicidade. E, o que é mais, esta andlise do seu discurso, 0 cético deve em verdade estendé-la a todos os discursos, em que pese as pretensdes de seus autores. Assim, por exemplo, um fildsofo que se diz critério da verdade esta apenas dizendo o que lhe (32) Ibid. I, 10. (33) Ibid. I, 196. (34) Ibid. I, 12. (35) Sobre a inexisténcia de um critério de yerdade, ef. Hip. Pirr. Il, 18-21; sobre os varios significados de “‘critério”, cf. 1, 21 seg.; II, 14-17. Para uma discussao geral da problematica do critério, cf. I], 22-79 e os dois livros Contra os Légicos. (36) Hip. Pirr. 1, 15. (37) Ibid. 1, 208; cf. também I, 21S. Sexto Empirico usa diferentes expressdes para referir-se 4s coisas exteriores: t6 éxothen hypokeimenon (Hip. Pirr. 1, 15), t0 ektos hypokeimenon (Hip. Pirr. 1, 48, 61, 99, 102, 113, 117, 128, 134, 144), t6 hypo- keimenon (Hip. Pirr. 1, 47, 58, 59, 78, 80, 87, 106, 140), t6 ektés (Hip. Pirr. 1, 46, 80, 99), t6 pragma (Hip. Pirr. 1, 107, 118, 132, 140), 16 ektds hypokeimenon pragma (Hip. Pirr. 1, 163). (38) Hip. Pirr. 1, 203. (39) Ibid. 1, 4. 40 aparece (t6 phainédmenon hauto) e nada mais, o mesmo ocorrendo com cada um dos outros filésofos que 0 contradizem. A fenomeni- cidade adquire destarte uma dimensio universal, ela recobre igual- mente ambos os dominios do sensivel e do inteligivel. E a epoché nada mais faz sendo traduzir a incapacidade humana para trans- cendé-la. Para manifestar a efetiva isosthéneia dos discursos todos que se propdem a transcender a esfera fenoménica e desse modo mostrar a inevitabilidade da epoché, o ceticismo grego constituiu, como se sabe, um conjunto extraordinario de argumentos, que ele foi siste- matizando ao longo de sua histéria e cuja ordenagao final nés encon- tramos nas obras de Sexto Empirico. Este autor expde-nos as figuras gerais da argumentacao cética, elaboradas pelos velhos e pelos novos céticos, particularmente os dez tropos de Enesidemo“! e os cinco tropos de Agripa.” E passa longamente em revista as posi¢des “dog- maticas’’ nas diferentes ramificagdes do pretenso saber humano, sobretudo na Légica, Fisica e Etica, que correspondem as trés divi- sdes da filosofia tornadas tradicionais pelo pensamento estdico. Alguns dentre aqueles argumentos, principalmente os que se contém em boa parte dos tropos de Enesidemo — e deles fazem precisa- mente parte os argumentos que se fundamentam nas ilusdes dos sentidos — pareceriam, a primeira vista pér em xeque tao-somente nosso conhecimento da real natureza dos objetos exteriores, nao po- rém a sua propria existéncia.“ Pois nado é assim que se deveria in- terpretar uma passagem como esta: “‘serei capaz de dizer como me parece cada um dos objetos, mas sobre como ele é quanto 4 sua natureza serei compelido... a suspender 0 juizo”’?* Desse tipo sao os argumentos baseados nas diferencas entre os animais ou entre os seres humanos, na diferente constituigao dos drgaios dos sentidos, nas diferencas entre as condigées e disposicdes humanas (incluindo- se aqui o argumento dos sonhos), na diferenga das percep¢des con- forme a posicao, distancia e localizagao dos objetos, “ etc. A suspen- Sao de juizo diria respeito, nao propriamente a existéncia de um (40) Adv. Log. 1, 336. (41) Cf. Hip. Pirr. 1, 36-163. (42) Cf. ibid. 1, 164-177. (43) Cf. ibid. II, 13; Ady. Log. 1, 1-26. (44) Cf., por exemplo, Hip. Pirr. 1, 61, 78, 93, 124, 132, ete. (45) Ibid. 1, 78. (46) Correspondendo, respectivamente, aos 19 (cf. Hip. Pirr. 1, 40-78), 2° (ef. 1, 79-91), 39 (cf. 1, 91-99), 49 (cf. I, 100-117) e 52 (cf. I, 118-123) tropos de Enesi- 41 mundo exterior, mas aos recortes que nossa percepciio sobre ele efe- tua. Creio, no entanto, que uma anAlise mais atenta e aprofundada desses argumentos nos revela que eles surgem claramente a distin- ¢4o entre objeto fenomenal e objeto real, nossas impressdes dizendo respeito ao primeiro, nossa epoché traduzindo a impossibilidade de afirmar o que quer que seja sobre 0 ultimo: nem mesmo caberia, por exemplo, dizer que temos a percep¢ao de objetos exteriores. Como disse C. L. Stough, concluindo sua hicida andlise da doutrina do phainémenon de Enesidemo, a meu ver com inteira razdo: “O mé- todo de Enesidemo... fornece uma base para uma episiemologia pu- ramente fenomenista, na qual o objeto exterior, privado de qualquer fungao, se tornou totalmente desnecessario”. 47 Seja como for, inimeros outros textos de Sexto Empirico sao absolutamente decisivos no sentido de mostrar-nos que a epoché, tal como preconizada pelo ceticismo grego (deste excluindo-se, por certo, a filosofia probabilista da nova Academia‘), punha em xeque a exterioridade do mundo, em geral. Contra os filésofos que, para defender o carater adequado e suficiente da percep¢ao sensivel, ar- gumentavam que a Natureza fizera os sentidos comensuraveis com seus objetos, Sexto Empirico pergunta “qual Natureza?” e iembra a diaphonia indecidiyel entre os “‘dogmaticos” acerca da mesma reali- dade da Natureza.” Mas sao sobretudo os dois livros contra os Fi- sicos (e 0 terceiro livro das Hipotiposes Pirronianas) que se podem aqui invocar. Neles, Sexto passa sucessivamente em revista os argu- mentos que se podem aduzir para mostrar o carter inapreensiyel da existéncia dos deuses ou de uma divindade qualquer, de uma causa- lidade ou passividade real nos objetos, dos principios materiais, dos corpos, das varias formas de movimento e do repouso, do devir e do perecer, do espago e do tempo, do nimero; * sobre todos esses tépi- demo, O argumento dos sonhos, utilizado no 4° tropo (I, 104), nao recebe aqui um tratamento privilegiado, como na 18 Meditacao de Descartes. Recebe-o, no entanto, na critica de Carnéades A noco estica de representagao apreensiva, ef. Adv. Log. I, 402-403. (47) C. Stough, Greek Skepticism, p. 105. Leia-se todo 0 capitulo 4 ("“Skep- ticism of Aenesidemus”), pp. 67-105. (48) Sexto Empirico insiste na distingdo entre a filosofia cética e a filosofia académica de Arcésilas e Carnéades, cf. Hip. Pirr. 1, 3 e, mais particularmente, I, 226-235. (49) Ibid. I, 98. (50) Sobre os deuses, cf. Contra os Fisicos 1, 13-194 e Hip. Pirr. Wi, 2-12; sobre a causalidade e a passividade, cf. Contra os Fisicos 1, 195-330 e Hip. Pirr. UI, 42 cos da filosofia ‘“‘dogmatica’’ e do pretenso saber comum, n&o resta ao cético senao a epoché. Mesmo aqueles discursos que pareceriam estar plenamente fundamentados nas aparéncias fenoménicas, como os que afirmam a realidade do movimento, se véem contestados por igualmente fortes argumentos filosdficos, nao tendo o cético como entre uns € outros decidir.5' A filosofia estéica havia identificado 0 Todo (t6 hélon) com o mundo (késmos), mas sdlidos argumentos também se podem formular em favor da inexisténcia de todos e de partes.5* Nunca tendo como justificar qualquer pretenséo do dis- curso de transcender a esfera da fenomenicidade, o cético suspende necessariamente seu jutzo sobre a propria existéncia de uma reali- dade exterior. Compreende-se que nenhum argumento aparente- mente mais radical como o do génio maligno cartesiano se faz neces- sario: alias, a existéncia mesma de uma divindade qualquer ja é objeto da epoché cética e um argumento dessa natureza nao haveria por que considerar-se particularmente relevante. Ill Deixemos por alguns momentos as questdes histéricas e reflita- mos um pouco sobre a nog¢ao mesma de realidade ou mundo exte- rior. E, por certo, uma estranha nogao. Ern relagéo a que se dirao exteriores certos objetos? Em relagdo a que se dira exterior 0 mun- do? “Mundo exterior’ parece imediatamente contrapor-se a “mun- do interior” e, em que pese As conotagdes espaciais dessas expres- sdes, uma tal disting’o e oposigio parece que imediatamente nos 13-29; sobre os prineipios materiais, cf. Hip. Pirr. III, 30-37; sobre os corpos, cf. Contra os Fisicos 1, 389-440 e Hip. Pirr. U1, 38-55; sobre 0 movimento € 0 repouso, cf. Contra os Fisicos 11, 37-168 e Hip. Pirr. 111, 63-97, 102-108, 115-118; sobre o devir e operecer, cf. Contra os Fisicos I1, 310-351 ¢ Hip. Pirr. If1, 109-114; sobre 0 espaco, ef. Contra os Fisicos 11, 6-36 e Hip. Pirr. III, 119-135; sobre o tempo, cf. Contra os Fisicos 11, 169-237 e Hip. Pirr. IIL, 136-150; sobre 0 ntimero, cf. Contra os Fisicos I, 248-309 e Hip. Pirr. II], 151-157. (51) Hip. Pirr. 111, 81. Sexto desenvolve consideragdes andlogas acerca da existéncia do espago, ef. ibid. IIL, 135. (52) Cf. ibid. II], 98-101 e Contra os Fisicos 1, 331-358, particularmente 331-332. 43 remete, se queremos servir-nos de uma terminologia moderna, a dis- tingdo e oposigo entre mental ¢ nao-mental, entre a mente humana (o que quer que a expresso “mente” possa designar) como “uni- verso interior” e tudo aquilo que dela nao faz parte, isto é, a reali- dade “fora da mente”, o mundo. Desta realidade extramental en- tende-se fazer parte, ent&o, o nosso corpo, objeto exterior como os outros que 0 sao, parte do mundo e mundo, também ele. A natu- reza e o alcance de uma tal bipolarizagao se tornam bastante pa- tentes quando se considera a questao do mundo exterior sob o pris- ma da dtvida ou da suspensio de juizo sobre sua existéncia. Ou mesmo quando nos propomos simplesmente a examinar, ainda que sem suspender 0 juizo ou duvidar, quais seriam os fundamentos de nossa crenga numa realidade exterior e que razdes se podem invocar para valida-la; ou quando fazemos a mera asser¢do de que temos boas razoes para acreditar que ha objetos exteriores.5* Com efeito, a andlise da mesma linguagem de que nos servimos, em cada um desses casos, parece muito claramente indicar que se esta, desde 0 inicio, re- conhecendo e assumindo aquela bipolaridade. Pois, dizendo que te- mos dtivida sobre a exist@ncia de uma realidade exterior, ou que sobre ela suspendemos 0 juizo, ou que buscamos razées para justi- ficar nossa crenga nela, ou mesmo apenas proclamando que as te- mos, também estamos do mesmo tempo ipso facto pressupondo que, se uma yez mais nos permitimos uma metafora espacial, o lugar onde se dao essas diversas operacdes é a nossa mente, espécie de “universo interior” a que se contrapde um mundo que concebemos como “exterior” e inteiramente outro que nao ela, unicamente em relacao a qual se define essa ‘“‘exterioridade”. Em outras palavras, uma simples reflexao sobre um qualquer desses procedimentos de problematizagao, explicita ou meramente implicita, da existéncia do (53) Referindo-se ao que chama de “teoria oficial” sobre a mente (‘‘o dogma do Fantasma na Maquina”, cuja origem atribui a filosofia cartesiana) e 4 concepgao de um mundo mental em oposigao ao mundo fisico, em ambos os quais se desenro- laria a histéria particulr de cada pessoa, escreve Ryle: “It is customary to express this bifurcation of his two lives and of his two worlds by saying that the things and events which belong to the physical world, including his own body, are external, while the workings of his own mind are internal", cf. G. Ryle, Lhe Concept of Mind, Penguin Books, 1949, p. 14. (54) Como na seguinte passagem de Malebranche, a propdsito dos corpos ex- teriores: “Nous avons... plus de raison de croire qu'il y en a, que de croire qu’il n'y en a point. Ainsi il semble que nous devions croire qu'il y en a”’, cf. N. Malebranche, De la Recherche de la Vérité III, 63 (ed. Rodis-Lewis). 44 mundo “exterior” imediatamente descobre — e isso como condi¢ao sine qua non da propria inteligibilidade de nossa linguagem — que ele necessariamente repousa sobre o reconhecimento e a aceitagao prévia de uma distingao radical entre a mente e o mundo. Aquela, como o “lugar’’ da propria divida ou crenga, este como 0 seu objeto. Aquela, como uma espécie de “‘espago interno”’ onde se da a repre- sentacao do mundo, esta como o seu correlato intencional, a inves- tigagio dizendo respeito 4 eventual realidade ou nao-realidade de um tal correlato. Mas a mente, também, como 0 que é dado e nao é problematizado, enquanto o mundo, ao contrério, como 0 que nao é dado, j4 que é, ou pode ser, problematizado. E quer parecer que 0 proprio vocabulario da exterioridade ja sugere, de si mesmo, uma tal problematizacao € a ela convida. De fato, precisamente porque pressupde — e se contrapde a uma “‘interioridade”’ dada, a nocao de exterioridade emerge, por assim dizer, ja prenhe de problematici- dade e a possibilidade desde logo se insinua de questionar-se a reali- dade dessa “‘exterioridade’’. De outro lado — e na medida mesma em que nosso corpo esta incluido nessa “‘exterioridade” problematica ou problematizavel —, parece também inegavel que, a cada vez que exprimimos um da- queles procedimentos de problematizagao da existéncia do mundo “exterior”, estamos pressupondo que a referencialidade do pronome “eu”, ingrediente por certo necessario de nossas formulagées lin- giisticas e utilizado para falarmos daquela dtivida ou suspensdo de juizo ou investigagao ou crenga, esta primordialmente voltada para nossa mente. Com efeito, operada a distingao entre a mente e o corpo, € problematizado 0 corpo, é aquela que o pronome entao imediatamente remete, destarte assinalando a consumagao de uma como ruptura entre 0 eu e o corpo proprio. O corpo, que eventual- mente cremos “‘ter”’, aparece assim como outra coisa que nao verda- deiramente o nosso eu, nem deste uma parte propriamente dita mas, sim, do mundo que esta ‘fora de nds” e no qual, por isso mesmo, Parece devermos dizer que também nao estamos. Além disso, preci- samente porque a “interioridade” ¢ dada e nao o é a “exteriori- dade", diremos que somente aquela temos acesso imediato e nao a €sta, nao portanto também a nosso corpo. Nosso acesso privilegiado é ao “universo de nossa mente”, isto é, a nossos pensamentos, idéias, impressées, afeccdes, representagdes; em suma, a esfera da repre- Senta¢do, nao as coisas e objetos representados. Essas consideragdes, ainda que sucintas, parecem-nos clara- Mente indicar que a problematizagao cética do mundo “exterior” — 45 como também, alias, a mera concepgao de uma tal “‘exterioridade"’, mesmo se acompanhada de crenga firme em sua existéncia real — implica efetivamente na oposicdo nitida entre mentee mundo, na dis- tingao radical entre mente e corpo, na contraposicao entre repre- senta¢&o e objeto representado; em resumo, numa doutrina positiva da mente e numa concep¢ao da representacao a ela associada, mes- mo se apenas em germe e nao explicitamente formuladas. Mas creio podermos dizer mais do que isso: é porque se adere de inicio a uma tal doutrina e a uma tal concepcao, mesmo se apenas entrevistas e nao desenvolvidas, que a “‘exterioridade” pode conceber-se e emer- gir como problema e que as diferentes modalidades de problemati- zacao podem ter lugar. Porque perguntar pela existéncia de uma realidade ‘‘exterior” € 0 mesmo que perguntar se ao “mental” que nos é “dado” corresponde algo de ‘“‘nao-mental’’, isto é, se o ‘‘men- tal” representa efetivamente algo real e outro que nao ele, se a partir dele podemos inferir a existéncia desse outro, transcendendo a re- presentagao e atingindo o representado. Como se disse recente- mente, esta é a pergunta “profissional” do ceticismo.® Assim, a in- vestiga¢do sobre a existéncia de uma realidade “exterior” nao é mais que a investigacado sobre como responder a essa“pergunta. E a sus- pensao cética do juizo sobre aquela realidade é a confissio de que para essa pergunta nao se encontrou uma resposta. Analogamente, dizer que se tém boas razdes para crer numa tal realidade é dizer que se encontrou para essa pergunta uma boa resposta. Mas tudo isso somente se compreende se uma distingdo nitida entre “mental” e “nao-mental” ja esta postulada, firmada e assumida previamente. Se ja se aceitou, de algum modo, desde o inicio aquilo que U. T. Place denominou “‘a falacia fenomenoldégica”, isto é, a idéia de que “descrigdes das aparéncias das coisas sao descrigdes do atual estado de coisas (state of affairs) num misterioso ambiente interno”,*° a suposi¢ao de que, “quando o sujeito descreve sua experiéncia, quan- do ele descreve como as coisas se do a seu olhar, ouvido, olfato, gosto ou tato, ele esta descrevendo as propriedades literais de obje- (SS) Cf. R. Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature, p. 46: “skepticism in the manner of Descarte’s First Meditations was a perfectly definite, precise, ‘profes- sional’ question: How do we know that anything which is mental represents anything: which is not mental?", Rorty entende, porém, que © ceticismo antigo nao formulou essa pergunta “‘profissional’’, (S6) U. T. Place, “Is Consciousness a brain process?”’, in The Mind/Brain Identity Theory, ed. C. V. Borst, The Macmillan Press Ltd., 1970, p. 42. 46 tos e eventos numa espécie peculiar de tela interna de cinema ou televisio’’.*” Sao essa aceitacdo e essa suposi¢do prévias que dao sen- tido 4 tarefa proposta de buscar 0 mundo a partir de nossas repre- sentagdes. Assim como sao elas, também, que permitem uma asser- cao como a de que “eu nao me contradigo ao sustentar positivamente que eu nao conhego nenhum fato externo”.S* O “exterior” se torna problema porque se privilegiou decidiamente o “‘interior’’. Nao fosse essa opc¢io — e trata-se de uma nitida opgao filosdfica — e outra teria necessariamente de ser a maneira de lidar-se com os argumen- tos baseados nas ilusdes dos sentidos, ou nos sonhos, ou nas ‘‘con- tradicdes” da experiéncia perceptiva em geral, ou na eventual perfi- dia de um deus enganador, ou na discordancia infindavel das opi- nides dos filésofos e dos homens comuns, ou na eventual forca igual de persuasao dos discursos em conflito. Nao fosse ela e nao haveria como justificar a idéia, afinal de contas bastante estranha, de que a existéncia e a natureza das coisas se devem discutir a partir da consi- deragao e andlise de nossos processos mentais. Em outras palavras, estou defendendo a tese de que a problematizacao cética do mundo, concebido como “‘exterior’’, repousa em verdade, em que pese a pre- tensdo dos céticos de haverem procedido a uma époché universal sobre todas as opinides e doutrinas, sobre uma op¢ao filoséfica par- ticular, iste é, sobre alguma forma de filosofia da mente, no sentido mais geral que se possa conferir a essa expressao. Uma tal filosofia da mente pode obviamente assumir distintas configuracdes, mas me parece que duas aliernativas mais imediatamente se desenham: pode optar-se por uma teoria substancialista da mente, identifi- cando-se ew e substancia pensante, recusando-se ipso facto aberta- mente a postura cética inicial ou, pelo menos, rejeitando-se sua ex- tens&o para além da problematica do mundo “exterior”; ou pode optar-se por uma nocao de mente como mero feixe e sucessao de data incorrigiveis e indubitaveis, eventualmente suscetiveis de serem Integrados e sistematizados em maior ou menor grau. E esta se- gunda maneira de conceber a mente, que dela faz uma colegao de cen, (97) Ibid. p.49. Lembre-se a comparago humeana da mente com um teatro: ‘The mind is a kind of theatre, where several perceptions successively make their appearance; pass, re-pass, glide away, and mingle in an infinite variety of postures and situations” (D. Hume, A Treatise of Human Nature, ed. Selby-Bigge, Oxford, at the Clarendon Press, p. 253). (S8) G.E. Moore, “Hume's Philosophy”, in Philosophical Studies, London, Routledge and Kegan Paul Ltd., 1922, p. 159. 47 “representages”’ ou “‘percepgdes” com a qual se pode identificar o eu — eo homem® —, parece guardar fidelidade a postura original e ser com ela plenamente compativel. IV Tudo isso parece-me resultar de uma consideracao mais atenta da questo da assim chamada exterioridade do mundo e de sua pro- blematiza¢io filoséfica. E nao yejo como se pudessem evitar tais conclusées. Retornemos, porém, ao ceticismo histérico, tal como ele nos foi preservado e explicitado na obra de Sexto Empirico. Quer parecer-nos que tudo quanto acima expusemos a propésito da epo- ché cética sobre a existéncia de uma realidade “exterior” ja nos pro- picia elementos mais que suficientes para mostrar que a reflexio tedrica ha pouco esbocada se vé plenamente confirmada pela andlise histérica. Isso salta-nos tanto mais aos olhos quando recordamos que a postura critica do ceticismo se definiu fundamentalmente con- tra um pano de fundo constituido pelo sistema filos6fico estdico, reconhecidamente predominante naquela época; e quando atenta- mos na estreita relacio que facilmente se descobre entre a formula- ¢ao de problematica cética e a teoria estdica do conhecimento. Esta, como se sabe, construiu-se sobre a nocaio de representa¢ao (phanta- sia) e uma de nossas principais fontes para reconstitui-la € preci- samente a obra de Sexto Empirico. Inicialmente entendida como (59) Cf, Hume, A Treatise of Human Nature, Appendix, p. 634: “When I turn to myself, I never can perceive this se/f without some one or more perceptions; nor can I ever perceive any thing but the perceptions. "Tis the composition of these, therefore, which forms the self”; ibid. , p. 252, acerca dos homens em geral: “they are nothing but-a bundle or collection of different perceptions which succeed each other with an inconceivable rapidity, and are in a perpetual flux and movement’’; ibid., p. 207, sobre a mente: “what we call a mind, is nothing but a heap or collection of different perceptions, united together by certain relations, and suppos'd, tho’ falsely, to be endowed with a perfect simplicity and identity”. (60) Cf. Adv. Log. 1, 227-262; 370-439; Hip. Pirr. Il, 70-79. Sobre o signifi- cado da nogao de phantaséa para a teoria estdica do conhecimento, diz Stough (Greek Skepticism, p. 36): “The notion of impression (phantasia) is of major importante in the Stoic theory. It is central to their account of the origin of knowledge and is, accordingly, the most important component in the resulting definition". Preferimos traduzir phantasia por “representacio” antes que por “‘impressio”, como faz Stough. 4g uma impressao (y§posis) na alma, posteriormente como uma alte- ragao (heterdiosis) nela, a phantasia estdica, a partir de sucessivas discusses entre os filésofos da Escola e outras tantas reformulagdes da doutrina,®! vem a ser definida como uma alteragao passiva na parte regente (to hegemonikén) da alma, estando nesta definigao implicado que essa passividade é 0 resultado de um impacto produ- zido pelos objetos exteriores (ta ektdés) ou das afeccdes (pdthe) em nds, como, por exemplo, no caso dos sonhos. E as representagoes so classificadas™ em persuasivas (“‘provaveis”, pithanai), nao-per- suasivas (“‘improvaveis”’, apithanoi), tanto persuasivas como nao- persuasivas e nem persuasivas nem ndo-persuasivas; as persuasivas produzem um movimento brando na alma, 0 que nao ocorre com as ndo-persuasivas, as quais nos fazem declinar do assentimento. Das representagdes persuasivas ou “‘provaveis”’, umas sao verdadeiras (aquelas a cujo respeito é possivel fazer uma assercao verdadeira), outras falsas (a respeito das quais é possivel fazer uma assergao falsa como, por exemplo, a de que o remo sob a agua esta torcido), outras yerdadeiras e falsas (como a representacao que Orestes teve de Ele- tra, verdadeira porque produzida por um objeto real, mas falsa na medida em que pareceu a Orestes, em sua loucura, ter a represen- tagao de uma Furia), outras ainda nem verdadeiras nem falsas (como as representages genéricas). E uma representagao verdadeira dir-se-4 apreensiva (kataleptiké) ou nao-apreensiva. Esta nogao de representagdo apreensiva é basica, como se sabe, para a teoria es- t6ica do conhecimento — os estdicos dela fizeram o critério da ver- dade® — e contra ela se concentrou particularmente a critica cética. Os estéicos entenderam a representacio apreensiva como “‘aquela que proyém de um objeto real e é modelada e estampada conforme a0 proprio objeto real, sendo tal que nao poderia provir de algo ir- teal”, uma representag’o que, por assim dizer, reproduz “‘artisti- camente”’ todas as peculiaridades do objeto. E alguns estéicos acres- centaram 4 definic&o a expressio “nao tendo nenhum obstaculo”, Para levar em conta aqueles casos em que uma representacao, em Si mesma yerdadeira e apreensiva, pode no entanto aparecer ao su- Jeito como improvavel, em virtude das circunstancias adjacentes. (61) Cf. Ady, Log. I, 227 seg. (62) Cf. ibid. 1, 241 seg. (63) Ibid. 1, 227, defi (64) Ibid. 1, 248; cf. também I, 152, 402, 426. Sexto explica demoradamente @definicao em 1, 248-260. a * Mas, nao hayendo obstaculo, a representac¢do apreensiva, ‘“‘sendo evidente e impressiva, quase nos toma pelos cabelos, dizem eles, arrastando-nos ao assentimento e de nada mais precisando para de tal modo sobrevir-nos, ou para indicar sua diferenca em relacdo As outras’”’,® qual uma luz que a Natureza nos deu para o conheci- mento da verdade, Uma representacio que, além de ser verdadeira, é€ de tal natureza que 6 ineapaz de tornar-se falsa.® E os estéicos dirao que, tanto quanto é absurdo alguém conceder a existéncia das cores mas abolir a visio como irreal ou indigna de confianga, ou dizer que os sons existem mas negar a existéncia da audicao, é-o também reconhecer a existéncia dos objetos, investindo porém con- tra as representagdes, por meio das quais eles se apreendem.” O conhecimento se entender, ent@o, como uma apreensao firme e in- falivel do objeto, esta apreensao nao mais sendo do que assentimento a uma representacao apreensiva.® Temos assim, no estoicismo, de um lado, uma clara oposi¢ao entre a alma e os objetos “exteriores” (1a ektés) e uma nitida teoria causal da percepgao — é 0 préprio Sexto quem expressamente né-lo aponta; © de outro, uma concep¢ao especular do conhecimento per- ceptivo, entendido como apreensao infalivel do objeto, sob forma de assentimento 4 representacao apreensiva que ele produz na alma, numa luminosa evidéncia que torna inquestionayvel a experiéncia e compuls6rio o assentimento. O que nos permite dizer que, para o estoicismo, o conhecimento do “exterior” se constréi, de algum modo, como uma experiéncia “interior” de natureza toda peculiar.” Os filésofos da Nova Academia, Arcésilas e Carnéades em par- ticular, rejeitarao a teoria estéica da representac4o apreensiva e ne- gardo a existéncia de um critério qualquer de verdade.7! Carnéades (65) Jbid. 1, 257-258, (66) Ibid. I, 152. (67) Ibid. 1, 260, (68) Ibid. I, 151. (69) Ch. ibid. 1, 383: “A representacio é um efeito do objeto representado (6 Phantastén) eo objeto representado é a causa da representagaio". (70) Deixamos de lado, por nao dizer diretamente respeito a nosso propésito, a dificil teoria estdiea dos lektd (“exprimiveis"), entidades incorpéreas tais como as Proposicdes (axiémata), que produzem na alma as “‘representagdes racionais” (phan- tasiai logikat), através das quais pode a razdio a elas aceder, ef. Adv. Log. Il, 69 seg. Sexto expde a critica eética dessa teoria em II, 75 seg.; 258 seg.; 404 seg. (71) Sobre a critica de Arcésilas a nogdo estdica de representacao, cf. Adv. Log. I, 150-158; sobre a de Carnéades, cf, ibid. 159-166, 402 seg. SO fembrara que um tal alegado critério nao subsiste independente- mente da afecgao (pathos) da alma produzida pela evidéncia senso- rial, nela, em verdade, devendo ser buscado; a representagao estéica deyendo entender-se como uma afecgao do ser vivo que seria indica- tiva tanto de si propria quanto do objeto evidente que a produz.” Por outro lado, j4 argumentara Arcésilas que nenhuma representa- cao é tal que nao possa ser falsa.” E Carnéades insistira em que sempre sera possivel descobrir, em face de qualquer representagao aparentemente verdadeira, uma outra que, embora falsa, é exata- mente semelhante aquela primeira e é dela, portanto, indistingui- yel.”* Consideremos as representagdes de um homem que sonha ou em estado de loucura:” elas sao tao evidentes e impressivas quanto as de outro homem qualquer, essa igual evidéncia e impressividade testemunhando de sua indistinguibilidade em relagdo as outras; por outro iado, o fato de que essas representacoes, além de impelirem ao assentimento, conduzem a agdes que lhes sao conformes, como é obyiamente o caso da loucura, indica 0 seu alto grau de evidéncia e impressividade. Em outras palavras, a analise das afecedes da alma que constituem as representagdes nao descwbre nenhum trago carac- teristico, nenhuma diferenga real que permita efetivamente distin- guir as representagdes ditas apreensivas daquelas a que se nao con- fere esse estatuto. A recusa do critério estéico da verdade sobre 0 mundo “‘exte- tior’’ nao obstou, entretanto, a que os filésofos da Academia assu- missem a base mesma da teoria da representacao, sobre ela desen- volvendo sua doutrina “probabilista’’.” Carnéades, com efeito, re- toma a nogio de phantasia” e lembra seu carter duplamente rela- tivo: a representagao é sempre de um objeto (um objeto sensivel ex- terno, por exemplo), mas ela é também de alguém (do homem no qual ela se da). Sua verdade ou falsidade — das quais nao temos critério — diz respeito a sua relagao com 0 objeto; com relagao, (72) Ibid. 1, 160-162. (73) Ibid. 1, 154, (74) Ibid. 1, 164, (7S) Ibid. 1, 402-408, (76) Cf. Stough, Greek Skepticism, p. 41: “But the Academics made no effort Rea udiate the psychology at the base of the doctrine (isto é: da doutrina estéica do “cimento). In fact, they accepted the theory of impressions as such and the per- ceptual model that it Suggests”. (77) Sobre a doutrina da representagao de Carnéades, cf. Adv. Log. I, 166- to rep $1 porém, ao sujeito que as experimenta, algumas representacées lhe sao aparentemente verdadeiras e se dirdo persuasivas (ou “proya- veis”, pithanoi), outras lhes sao aparentemente falsas e se dirio nao- persuasivas (ou “improvayeis”, apithanoi). Dentre as representa- g6es “‘provaveis”’, algumas sao obscuras e vagas, outras ao contrario exibem a aparéncia de verdade de modo intenso, de uma intensi- dade que pode assumir diferentes graus, permitindo-nos distinguir entre representacoes mais ou menos “provaveis”, conforme A sua maior ou menor vivacidade.’8 E Carnéades toma, entao, a represen- tacao “provavel” como critério,” nao por certo para o conhecimento da realidade, mas para a conduta da vida e a aquisi¢ao da felici- dade. Em face, porém, de questdes n&o-triviais, mas de maior im- portancia, nao nos satisfaremos com regular nossa conduta por re- presenta¢des meramente “‘provaveis’’; nesses casos, dado que nossas representacdes se combinam umas com as outras como os elos de uma cadeia, formaremos nosso juizo a partir da concorréncia (syn- dromé) de varias representagdes e de sua integracZo consistente umas com as outras: nosso critério sera, entao, uma representacao “inabalavel” (aperispastos), isto 6, uma Tepresentagao que, além de “provavel”’, esté também integrada num sistema de representacdes consistente. Em questdes de importanciu maxima, quando nossa propria felicidade est4 em jogo, exigiremos ainda mais de nossas representagdes, procedendo ao escrutinio sistematico e atento de cada uma daquelas que se acham mais estreitamente concatenadas com a representa¢ao que nos interessa, isto é, nés testaremos nossa representacao, obtendo destarte uma Trepresenta¢ao com o grau ma- ximo de confiabilidade: além de “provavel” e “inabalayel”, ela es- tara também “‘testada” (diexodeuméne). ®! Ao conhecimento infalivel dos estéicos sucede assim 0 conheci- mento “‘provavel" dos Académicos. Assume-se sempre, por certo, a “exterioridade” e mantém-se a teoria da representa¢do e a concep- ¢ao de verdade. Mas, ao preseryar-se a no¢ao de conhecimento como experiéncia “‘interior’’, fundada sobre a natureza peculiar de nossas afeccdes (pdthe), descobre-se a impossibilidade de tom4-las como (78) Ibid. 1, 171-172. E impossivel nao fazer a aproximagao entre a doutrina da representagao de Carnéades e a teoria humana das percepcdes ¢ da crenea, tal como exposta no livro I do Tratado da Natureza Humana. (79) Adv, Log. 1,173. (80) Ibid. 1, 166. (81) Cf. ibid. 1, 176-189. $2 base para um critério absoluto de verdade. As representacdes servi- rao apenas de critério para a vida cotidiana, a partir das diferencas que entre elas se manifestam no que respeita 4 aparéncia de yer- dade, com grau maior ou menor de vivacidade, individualmente ou concatenadas em sistema. O ceticismo propriamente dito dara um passo adiante. Os cé- ticos n&o dirao como os Académicos, é fato, que a verdade é ina- preensivel e que dela nao ha critério em sentido absoluto, conten- tando-se com a suspens&o de juizo (epoché) e nao querendo incidir num dogmatismo as avessas. Argumentarao duramente contra as varias concepgées de critério, mas nao pensarao como os Académi- cos, que seus argumentos so conclusivos e definitivos. Em verdade, reconhecerao que argumentos “‘dogmaticos” em favor da existéncia de critérios para o conhecimento da realidade e da verdade s&o tao fortes e persuasivos como os que se Ihes podem opor; mas esta mes- ma isosthéneia entre argumentos ‘‘dogmaticos’’ e argumentos “‘céti- cos” contara em seu favor compelindo-os irrecusavelmente a epo- ché.® De qualquer modo, enfrentarao decididamente a problema- tica do critério e se ocuparao extensamente dela. Considerando mais particularmente os critérios “légicos’’ in- troduzidos para a pretensa apreensdo da verdade, Sexto Empirico dentre eles distingue 0 critério do agente (o homem, pelo qual se daria a captagao da realidade e da verdade), o critério do instru- mento (os sentidos (aisthéseis) e 0 intelecto (diénoia), por meio dos quais a realidade se apreenderia) e 0 critério da aplicagdo e uso (ou critério da representacao (phantasia), cuja aplicagao corresponderia ao uso daqueles instrumentos, j4 que se supde que o homem apreende a realidade por meio de seus sentidos e intelecto, conforme 4 representagao). E Sexto investe contra todos eles. Argumenta para mostrar o carter inconcebivel do homem, a partir da diapho- nia existente entre os “‘dogmaticos” e da freqiiente ininteligibilidade de suas concepcdes do homem.* Mesmo que fosse concebivel, nao seria o homem apreensivel, j4 que ndo 0 sio o corpo e a alma, que se (82) Cf. Hip. Pirr. 11, 79; Adv. Log, 1, 443 seg. (83) Hip. Pirr, 11, 16, 21; Adv. Log. I, 34-37, 261. (84) Sobre o critério do agente (o homem), cf. Hip. Pirr, Il, 22-47 ¢ Adv. Log. 1, 263-342; sobre o critério do instrumento (sentidos e intelecto), cf. Hip. Pirr. Hl, 48-69 e Ady. Log. 1, 343-369 sobre 0 critério da representagao, cf. Hip. Pirr. 1, 70- 79 Adv. Log. 1, 470-479. Os argumentos que, de modo sucinto ¢ resumido, exponho No texto sao tirados dessas passagens. (85) Cf. Hip. Pirr. 11, 22-28; Adv. Log. 1, 263-282. 53 dizem compé-lo.® Alias, sobre a propria existéncia da alma, ha en- tre os filésofos controvérsia.” Dir-se-4 que julgamos as coisas pelos sentidos, ou pelo intelecto, ou por ambos conjuntamente? Ora, ha diaphonia entre os filésofos no que concerne a realidade dos objetos dos sentidos, discute-se sobre a capacidade de apreensdo dos senti- dogs ou sobre o carater eventualmente “vazio” de suas afeccdes.” Se os sentidos apreendem algo, sera tio-somente as suas afeccées.” Meramente passivos e em si mesmos irracionais,” incapazes de se apreenderem a si proprios,” certamente incapazes de congregar as suas diferentes percepcdes, eles nao podem certamente apreender a substancia corpérea, nem mesmo as propriedades dos corpos, en- quanto tais. E Sexto também relembra® os tropos de Enesidemo, que sobejamente enumeram as discordincias entre as representa- des propiciadas pelos sentidos. Mas que dizer do intelecto? E, por certo, a parte menos evidente da alma,™ sendo grande a diaphonia sobre ele e sobre sua propria existéncia, questéo que n&o se pode decidir nem apreender. Como poderia julgar adequadamente das outras coisas um intelecto que se contradiz sobre sua prépria essén- cia, sobre sua propria origem e localizag&o? % Ora, o intelecto deve- ria ser capaz de apreender-se previamente a si mesmo; coisa que ele n&o consegue, antes de apreender seus pretensos objetos.”” Por outro lado, nao se entende como ele poderia apreender a substancia corp6- rea, ou os préprios sentidos, sem tornar-se irracional como eles e desmentir, assim, sua alegada racionalidade.”* Recorrer-se-4 acaso 4 acho conjunta do intelecto e dos sentidos? Mas os sentidos se opdem freqiientemente ao intelecto e, de qualquer modo, quando neles se baseia, 0 intelecto € compelido a enunciados conflitantes.” Além de que, intervindo entre os objetos externos e o intelecto, ha- (86) Hip. Pirr. 1, 29. (87) bid. U1, 31. (88) Zbid. II, 49-S0. (89) Ibid, 11, 72, 74. (90) Adv. Log. 1, 293, 344. (91) Ibid. 1, 301-302. (92) Ibid. 1, 294-300. (93) Ibid. 1, 345-346. (94) Hip, Pirr. I, 32-33. (95) Adv. Log. 1, 349-350; Hip. Pirr. 11, 57. (96) Hip. Pirr. 11, 58. (97) Adv. Log. 1, 348, 310-313. (98) Ibid. 1, 303-309. (99) Hip. Pirr. M1, 63. 54 yerfio os sentidos de estorvar o intelecto e de impedir que ele apreen- da os objetos.” O que pensar, enfim, da representagao? Entendida como algo intermediario entre o intelecto e os objetos externos, ela se diz uma jmpress4o ou alteragao na parte regente da alma. Ora, uma tal re- presentagao € inconcebivel e inapreensivel: nio somente as nogdes de impressao e alteracdo envolvem dificuldades insuperaveis, mas hA também inegavel diaphonia sobre a propria existéncia da parte regente da alma." Por outro lado, a doutrina da representagao as- sume que 0 intelecto nao tem contacto com os objetos externos e que a representa¢ao se da através dos sentidos; ora, na medida em que estes somente apreendem, se tanto, as suas proprias afecgdes (pd- the), nao ha propriamente representagdes dos objetos exteriores, mas téo-somente daquelas afecgdes, coisa outra que nao a realidade exterior. Diz-se que a representacao é um efeito do objeto repre- sentado (t6 phantasidn), que este € a causa da representacgao ao im- pressionar a faculdade sensitiva; mas, nesse caso, ao aplicar-se as tepresentagdes, o intelecto estara recebendo tao-somente os efeitos dos objetos representados, nao os proprios objetos exteriores repre- sentados.! Falar-se-4 acaso da existéncia de uma semelhang¢a entre as afeccdes dos sentidos e os objetos externos, entre as representa- des € os objetos representados? Mas como podera o intelecto saber dessa semelhanga, se ele nfo tem acesso aos objetos externos, mas tHo-somente 4s suas representacdes?'* Como podera alguém que nao conhece Sécrates e vé o seu retrato saber que o retrato a ele se assemelha? “ Alias, as nogées de representago apreensiva e de obje- to real, tais como a filosofia estoica né-las define, configuram uma circularidade manifesta: pois se define aquela como uma representa~ ¢4o que provém de um objeto real e é a ele conforme, mas se define 0 objeto real corno “‘aquele que provoca uma representacado apreensi- va’'.'°° Por essas e muitas outras razdes, dever-se-4 reconhecer que os objetos externos sio nio-evidentes para nés e, por isso mesmo, incog- nosciveis.!°’ Mas também nao ha por que aceitar a doutrina “‘pro- (100) Adv, Log. 1, 352-383. (101) Cf. Hip. Pirr. 1, 70-71; Adv. Log. 1, 370-380. (102) Hip. Pirr. 11, 72-73. (103) Adv. Log. 1, 383. (104) Hip. Pirr, 11, 74; Adv. Log. 1, 384-385. (108) Hip. Pirr. II, 78; Adv. Log. 1, 358. (106) Adv. Log. I, 426. (107) Ibid. 1, 366. ss babilista” dos filésofos da Academia. '* Consideremos aquelas re- presentagoes a que eles atribuem 0 maximo de confiabilidade, as re- presentagdes “‘provaveis’’, “‘inabalaveis” e “testadas”; ora, assim, como criticaram o critério da representagao apreensiva, argumen- tando que se podem descobrir representagdes falsas exatamente se- melhantes aquelas que se propdem como absolutamente verdadeiras e delas, portanto, indistinguiveis, analogamente se pode argumentar que, no exame das representagdes “‘provaveis’’, falsidades poderao subsistir ao lado do que é testado, escapando a nosso escrutinio. E sempre a relagio com a verdade, qualquer que ela seja, que se des- cobre como irremediavelmente problematica, nenhuma razio per- manecendo para que se atribua a alguma representacao uma dose maior de credibilidade. Poderia parecer que o ceticismo rejeitou toda a teoria estdica do conhecimento, desde os seus mesmos fundamentos. Mas essa im- pressdo err6nea nao se mantém apés um pouco de reflexio. Porque, se a postura e a argumentacao cética mais atentamente se conside- ram, verifica-se que uma parte importante daqueles fundamentos se manteve incdlume. Com efeito, toda a argumentacdo cética assume, sem questiona-lo, o ponto de vista estéico — e Académico — se- gundo o qual, para haver conhecimento, é necessario haver um cri- tério para decidir da adequagao ou nao-adequacao das nossas assim chamadas representacdes aos objetos “exteriores”, por elas alegada- mente representados. Os estéicos propuseram a representacgao apre- ensiva, os Académicos — mantendo aquele ideal de conhecimento, mas negando sua exeqitibilidade — substituiram-na pela represen- tacgao “‘provavel”, os céticos procuraram incansavelmente mostrar que nao temos como dar preferéncia a uma Trepresentagao sobre outra,'® como superar a diaphonia entre elas, como nado reconhecer a isosthéneia entre os discursos que as exprimem. Mas ipso facto (108) Cf. ibid. 1, 435-438. (109) Tal é, com efeito, a tematica constante dos varios tropos de Enesidemo, cf., por exemplo, Hip. Pirr. 1, 87, 112-117, ete. 56 estavam aceitando que a questao do conhecimento da realidade “‘ex- terior” somente se podia definir em fungao da natureza de nossas representagoes. Estas, 6 verdade, em decorréncia da argumenta¢gao cética, se Véem privadas, por assim dizer, de seu carater propria- mente representativo, na medida em que sua efetiva representativi- dade é problematizada e se torna apenas virtual. Pois nao se concebe como os sentidos ou o intelecto poderiam transcender as represen- tacdes €, por todas as razdes que vimos, a passagem para fora de nossas representacdes, para 0 “exterior’, se encontra irremediavel- mente interrompida. Mas isso quer dizer que se assumem as repre- sentacdes em si mesmas, enquanto dizem respeito. tao-somente a nossas afecgdes: é a velha doutrina cirenaica que se retoma, segundo a qual apenas nossas afeccdes (pathe) so apreendidas, somente elas sio infaliveis e indubitaveis.!!° Somente a elas, que se produzem de modo necessario e “‘conforme 4 representagao” (kata phantasian) da © cético seu assentimento.'! Entretanto, precisamente porque se problematiza a alegada representatividade, se falara menos em phantasia que em phaindmenon e sera esta nocdo que se tera agora como fundamental. Em suma, a phantasia se faz mero phaindme- non e Sexto Empirico identificara 0 phaindémenon, aquilo que nos aparece, que nos move jnvoluntariamente ao assentimento conforme a representagao passiva (kata phantasian pathetikén),'? com o que virtualmente seria uma representagao, sua propria representagao. 18) E 0 fendmeno tudo recobre, 0 sensivel e 0 inteligivel; dir-se-4 fend- meno nao apenas a aparéncia sensivel que se presume remeter a0 objeto exterior, mas também quanto sobrevém a nosso pensamento: ao discorrer sobre a escola cética ou ao proferir suas formulas, 0 cé- tico estA somente anunciando seus fendmenos e suas afeccdes do momento, tanto quanto um “dogmatico” quando diz, por exemplo, ser ele proprio um critério de verdade.''4 E 0 discurso nao-tético dos céticos se faz mera expressao da fenomenicidade. Assim, o ceticismo assumiu plenamente a distingZo estéica — e Académica — entre o “interior” € 0 “exterior”, aquele como dado, este como o que nele se representa. E mostrou — a meu ver de modo coerente e irrecus4vel — que nao ha como passar de um tal ‘‘inte- (110) Hip. Pirr. 1, 215; ef. também Adv. Log. 1, 191. (111) Hip. Pirr. 1, 13. (112) Ibid. 1, 19. (113) Ibid. 1, 22; ef. acima, nota 1S. (114) Cf. Hip. Pirr. 1,4, 15, 187, 190, 197, 203; Adv. Log. 1, 336. 57 rior” a um tal “‘exterior’’, que a andlise do “interior” nao nos leva a nenhuma porta de saida. Esse o sentido da problematizacao cética do mundo “exterior’’, esse 0 caminho que leva 4 epoché. Sera valido atribuir-se ao ceticismo uma teoria da mente? Creio que devemos matizar nossa resposta. Vimos que o ceticismo recusou uma teoria do homem, assim como uma teoria dos sentidos ou do intelecto (dia- noia). Entendeu que a didnoia dos dogmaticos é inapreensivel ou, pelo menos, que ha fortes argumentos contra a sua apreensibili- dade. Mas, por outro lado, Sexto Empirico definiu a epoché como um estado de repouso da didnoia, devido ao qual nada afirmamos nem negamos.!!5 Nao ha certamente, ai, nenhuma contradicao. En- tendida como parte da alma humana, como faculdade capaz de ser- vir de instrumento para a apreensao dos objetos “exteriores”, a did- noia se configura como uma entidade postulada pela filosofia “dog- matica”’, sobre cuja existéncia os céticos suspendem obviamente o seu juizo. Mas quer parecer-me que, sem nenhuma infidelidade a postura cética, aquela expressio poderia usar-se para designar a propria multiplicidade e sucesso de nossas “representacdes”, 0 feixe de nossas “‘afecgdes”, 0 nosso “mundo interior’ a que a mani- festagao da isosthéneia garante um “estado de repouso”’. A defini- ¢ao sextiana da epoché parece-me apontar também nessa diregao. E, ao dizer que, ao proferirmos nosso discurso, estamos apenas anunciando nossa prépria afecco (pdthos), uma “afeccdo hu- mana”, " Sexto parece-me caminhar, ouso dizé-lo, para uma iden- tificagdo entre a didnoia, 0 eu fenoménico e o “homem”,. Mas 0 ceticismo nao dispunha, por certo, das categorias con- ceituais necessdrias para um tal Passo, que somente 0 empirismo moderno viria a dar explicitamente.'” Pouco aparece, no entanto, ter faltado para que a didnoia, uma vez expurgada sua concepcao “dogmatica”, viesse a entender-se como a mente de nossa filosofia moderna. Todas as razées acima me levam a dizer que uma teoria da mente esta contida em germe na obra de Sexto Empirico. E nao apenas em germe: estou convencido de que, uma vez reconhecido o compromisso do ceticismo com uma concepcdo mentalista e afas- tado um temor injustificado de anacronismo, uma vez removidos os (11S) Hip. Pirr. 1, 10. (116) Cf. ibid. 1, 203: “de modo que a proferigao da frase nao é dogmatica, mas 0 anuncio de uma afeccao humana (anthropeiou pathous), que aparece a quem a ~ experimenta”’. (117) Vejam-se os textos de Hume citados acima, nota 59. SR preconceitos que podem criar obstaculo a uma interpretagio mais adequada dos textos, uma analise mais aprofundada destes vira a mostrar que os filésofos céticos desenyolveram todo um conjunto de idéias exploratérias acerca do contetido de nosso mundo “interior” ou “mental”, isto é — recorrendo a uma terminologia mais proxima 4 que utilizaram —, acerca das relagdes que se podem descobrir entre nossas multiplas “afeecdes", manifestando as diferentes for- mas de integragdo e organizagao que se processam na esfera feno- ménica. A etiologia de Enesidemo"* e a doutrina cética do signo “eomemorativo”!!? podem-se invocar sob essa perspectiva e sua comparagao com a teoria humana da causalidade e conjungao cons- tante se impde absolutamente. Muitos outros textos sugerem toda uma teoria do conhecimento claramente empirista, com base em nossa apreensdo dos “‘fenmenos’’.'% Em resumo, dispomos de ele- mentos mais que suficientes para asseverar que a problematizacao do mundo “exterior” levada a cabo pelo ceticismo grego de fato repousa, como A nossa reflexdo tedrica de ha pouco nos aparecera que nao poderia deixar de ser, sobre uma teoria mentalista do co- nhecimento. Eu diria mais: a postura cética me aparece como uma conseqiiéncia “‘quase légica’’ de uma tal teoria. Nao nos é possivel, portanto, concordar com Rorty quando"! opée o ceticismo grego ao “‘ceticismo a maneira da 1£ Meditagao de Descartes”, vendo naquele unicamente uma postura moral e um es- tilo de vida, enquanto somente a 1" Meditagao viria a colocar a questao “profissional” precisa: “Como sabemos que algo que émen- tal representa algo que nao é mental? Como sabemos se 0 que 0 Olho da Mente vé é um espelho,.. ou um véu?". A movidade carte- siana consistiu, para Rorty,!2? na introdugao de uma nogao de es- paco interior tinico em que tudo que hoje chamamos de “mental” constituia “objeto de quase-observagao"’: sensagGes corpéreas e per- ceptivas, verdades matemAticas, regras morais, a idéia de Deus, ete. (118) Cf. Hip. Pirr. 1, 180-185. (119) A nogao de signo é discutida amplamente em Hip. Pirr. 1, 97-133 e Adv. Log. 1, 141-299. Os céticos suspendem o juizo sobre a existéncia dos signos “indica- tivos”” propostos pela filosofia “dogmitica’’, mas. reconhecem plenamente os signos “comemorativos", com base na conjuncdo constante entre “fendmenos” de que se tem experiéncia na vida comum, cf. Hip. Pirr. 1, 100-102; Adv. Log. IL, 151-158- (120) Sobre o empirismo de Sexto Empirico, leia-se a interessante exposi¢a0 de Stough em Greek Skepticism, p. 107 seg. (121) R. Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature, p. 46. (122) Cf. ibid, p. 50. Somente com Descartes a mente humana teria sido pensada como um tal espaco interior (conforme um modelo em que “o intelecto inspeciona entidades modeladas sobre imagens retinianas”’),’ como uma espécie de arena interior com seu observador interior. Rorty entende que uma tal concep¢io, ainda que sugerida por diversos textos antigos e medievais, nunca fora, anteriormente ao século XVII, tomada suficientemente a sério de modo a formar a base para uma problemAtica.'* Ele concorda com os autores para quem 0 pro- blema mente-corpo nao se pusera no mundo grego'* ou para quem a representacaio dos seres humanos como possuidores de um “‘den- tro” e de um “fora” é basicamente moderna. '?° Ele se inclina deci- didamente a aceitar a tese de que o ‘“‘ceticismo epistemoldgico” emergiu da teoria da percepgao representativa criada por Descartes e Locke !2”e entende que o “problema do véu das idéias’’ — isto é, 0 problema das ‘“‘idéias” como uma espécie de anteparo entre 0 sujeito eo mundo —, responsavel pelo lugar privilegiado € central que a epistemologia assumiu na filosofia, € um problema que somente a “4nvencdo da mente” no século XVII permitiu se colocasse.!8 Rorty hesita sobre o papel aue o yéu das idéias pode ter desempenhado no ceticismo antigo, mas cré, de qualquer modo, que foi meramente acidental e nao central, como na tradigao Locke-Berkeley-Kant; nao Ihe parece claro que o phainémenon cético tenha sido algo como uma idéia lockeana, incorrigivelmente posta diante da mente, e cré que o que mais desta se aproximou, no pensamento antigo, foi a representagao apreensiva dos estdicos.!° E certo, porém, que Rorty nao se apega dogmaticamente a suas teses: admite a possibilidade de que se venha a estabelecer que a novidade das doutrinas carte- (123) Cf. ibid., p. 45. (124) Cf. ibid., p. 50. (125) Eo caso de W. Matson em “Why Isn’t the Mind-Body Problem An- cient”, in Mind, Matter and Method: Essays in Philosophy and Science in Honor of Herbert Feigl, ed. Paul Feyerabend and Grover Maxwell, Minneapolis, 1966, citado por Rorty em Philosophy and the Mirror of Nature, p. 47 en. 15. (126) Eo caso de G. Matthews em ‘Consciousness and Life’, iz Philosophy 52 (1977), citado por Rorty em Philosophy and the Mirror of Nature, p. S1 (nota). (127) Essa é a tese de E. Gilson e J. H. Randall referida por Rorty, ob. cit., p. 49, n. 19: (128) Philosophy and the Mirror of Nature, pp. 50-51. (129) Ibid., p. 46, n. 14. Nessa nota, Rorty exprime suas reseryas com relagao A tese de Stough (cf. Greek Skepticism, p. 24), segundo a qual Pirro via o phaind- menon como uma cortina entre 0 sujeito e o objeto. 60 sianas da percepgao representativa e do “‘espago interior” dos seres humanos seja somente aparente, e de que a leitura da filosofia hele- nistica e a apreciacao do papel dos estéicos no pensamento da Re- nascenca venham a apontar para muito mais continuidades na his- toria da filosofia que as que sua exposicao concede.” Ora, tudo quanto vimos nas paginas anteriores acerca da teo- ria estdica da representagao e de como ela foi utilizada pelo ceti- cismo antigo, que ao mesmo tempo parcialmente a preservou e a modificou, de qualquer modo a assumiu € incorporou a sua dou- trina, tudo isso parece-me claramente demonstrar que Rorty tinha mais do que razdo em suas hesitagdes. Porque podemos dizer com seguranga que “as doutrinas cartesianas da percepgado representa- tiva e do ‘espago interior’ dos seres humanos” nao constituem, de fato, uma novidade. A ‘mente’ nao foi “inventada” no século XVII, o estoicismo e 0 ceticismo grego conheceram-na a seu modo. Tratar-se-ia, quando muito, de uma “reinvencao”. E mesmo isso pode por-se francamente em divida: falta apreciar nao apenas o papel dos estéicos no pensamento da Renascen¢a, mas também — ¢ creio que sobretudo — o grau de presenga do “mentalismo” cético na vasta literatura renascentista que veiculou, comentou e fez revi- ver o ceticismo antigo, culminando na crise pirrénica dos contem- poraneos de Descartes, 4 qual a filosofia do Cogito pretendeu por termo. Seja como for, é certo que 0 ceticismo de Enesidemo e Sexto Empirico — como também, alias, a filosofia “‘probabilista’” da nova Academia — tem uma dimensao epistemolégica fundamental e que, embora sob outra roupagem terminolégica, o problema do véu das idéias nele esta claramente presente. Por um lado, 0 phaindémenon desempenhou efetivamente o papel de uma cortina e anteparo em face do mundo; e ele recobria todo o sensivel e o inteligivel, as re- presentagées da percepgio sensivel tanto quanto as concepgdes em geral (também a de Deus), as verdades das ciéncias e as regras de conduta, tudo, em suma, que hoje chamamos de “mental”, Por ou- tro lado, o problema do conhecimento foi claramente definido em termos de “inspegio do mental’, em termos de andlise critica do “interior” e de suas pretensdes de significar a “‘exterioridade”’. oO “dentro” eo “fora” dos seres humanos se pensou explicitamente e, Tessalvadas as restrigdes que cuidamos de acima definir, a distingao Mente-corpo pode dizer-se que estava pressuposta. Mas é dbvio que (130) Rorty diz dever essa sugestao a M. Frede, cf. Philosophy and the Mirror of Nature, p. 51, nota. 61 o reconhecimento desses fatos em nada enfraquece o significado pa- radigmatico da doutrina cartesiana: a problematica da mente aden- trou a filosofia moderna yia Descartes — e Locke, por certo. Um itiltimo ponto requer ainda nossa atencao. Mostramos acima como a problematizacio do mundo “exterior” no ceticismo grego emergiu do privilégio previamente atribuido ao “interior”, a esfera do ‘mental’. Ora, o mesmo se passa, de modo muito nitido, com a problematizagao do mundo nas Meditagoes cartesianas, onde Os textos nao deixam margem a nenhuma diivida: também aqui a Suspensao de juizo se faz possivel Porque de algum modo se pres- sup6e desde o inicio a distingao entre ‘‘mente” ¢ mundo, a oposi¢aio entre “mente” e corpo. Com efeito, Descartes emprega explicita- mente 0 vocabulario da “exterioridade” e reconhece como um dado imediato tao-somente os “pensamentos"” em seu “espirito”. Assim, ao introduzir a ficgio do génio maligno, 0 filésofo supde que todas as coisas que yé sao falsas, que nada existe de quanto a memoria lhe representa, que corpo, figura, extensio, movimento e lugar sao me- ras ficcdes de seu espirito;"! ele supde que “todas as coisas exterio- res que nds vemos nao sao senio ilusées e enganos” utilizados pela divindade para engané-lo."°? Tera algum Deus posto em seu espirito “esses pensamentos’’?!35 Descartes, alias, confessa que, mesmo an- tes, nunca acreditara que certas coisas, como o poder de mover-se, de sentir e de pensar, pudesse atribuir-se a natureza corporal. E toda a argumentacao que conduz a certeza do Cogito se desenvolve sobre a pressuposicao da identificagao desse “espirito com 0 ex pen- sante: “ha muito tempo tenho em meu espirito uma certa opiniao, a de que ha um Deus que pode tudo e por quem eu fui criado e Produzido tal qual eu sou"; 13 Passando, em seguida, a hipétese de que a divindade possa engan4-lo, o filésofo continua: “‘suporei, por- tanto, que ha, nao um Deus verdadeiro, ..., mas um certo genio mau, que empregou toda a sua industria em enganar-me. Pensa- rei que o céu, o ar, a terra, s NAO s&o sendo ilusdes e enganos, de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar- me-ei a mim mesmo como nao tendo em absoluto maos, olhos, car- (131) Descartes, Méditations théque de la Pléiade, Gallimard, 195. (132) Ibid., p. 272 (0 italico é meu). (133) Ibid., p. 274, (134) [bid., p. 276. (13S) Ibid., p. 270 (o italico é meu). p. 274, in Descartes, Oeuvres et Lettres, Biblio- 62 ne, sangue, como nao tendo nenhum sentido, mas crendo falsa- mente ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadaménte ape- gado a esse pensamento; @ se, por esse meio, nao esta em meu poder chegar ao conhecimento de nenhuma verdade, pelo menos esta em meu poder suspender meu juizo”."° Sobre uma tal pressuposi¢ao, a certeza do Cogito se explicita tranqiiilamente: “sem duvida eu era, se eu me persuadi, ou se pensei somente alguma coisa. Mas ha nao sei que enganador muito poderoso e muito astuto, que emprega toda a sua indiistria em enganar-me sempre. Nao ha, pois, absoluta- mente dtivida de que eu sou, se ele me engana’.'3’ A certeza do Cogito é a certeza de um eu que a si mesmo se reconhece como “coisa que pensa’”’ e a nogio de “‘pensamento” recobre todo o do- minio do “interior”: “O que é uma coisa que pensa? E uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que nao quer, que imagina também, e que sente’’."°* As coisas imaginadas podem nao ser verdadeiras, mas o poder de imaginar faz parte do “pensamento”’, talvez sejam falsas as aparéncias dos sentidos, mas o sentir, em sentido proprio, nao é outra coisa senao “pensar”. Ea analise do pedago de cera levara Descartes a concluir que “nao ha nada que me seja mais facil de conhecer que meu espirito”.'0 A questo da realidade das coisas “exteriores” devera decidir-se a par- tir da inspecao do ‘mundo interior’. Assim, no inicio da 5.4 Medi- tacao, 0 filésofo escreve: “Mas, antes que eu examine se ha tais coi- sas que existem fora de mim, devo considerar suas idéias, enquanto elas esta@o em meu pensamento, e ver quais sdos as que sao distintas € quais sao as que so confusas”’. '*! (136) Ibid., p. 272 (o italico é meu). (137) Ibid., p. 275 (0 italico é meu), (138) Ibid., p. 278. Com base nesse € noutros textos de Descartes que vio no mesmo sentido, Rorty afirma: “Once Descartes had entrenched this way of speaking it was possible for Locke to use ‘idea’ in a way which has no Greek equivalent at all, as meaning “whatsoever is the object of the understanding when a man thinks’ or ‘every immediate object of the mind in thinking’ (R. Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature, p. 48). Entretanto, como vimos acima, 0 phaindmenon cético assemelha-se de Perto a idéia lockeana. (139) Méditations, pp. 278-279. Cf. ibid. , p. 284: “ainda que as coisas que eu sinto e que eu imagino nao sejam talvez absolutamente nada fora de mim e em si mesmas, estou entretanto seguro de que esses modos de pensar, que chamo de senti- Mentos e imaginagdes, enquanto so somente modos de pensar, residem e se encon- tram certamente em mim” (0 italico é meu). (140) Ibid. p. 283. (141) Ibid. , p. 310 (0 itdlico é meu). 63 Os textos parecem-me falar por si mesmos. Somente 0 privilé- gio conferido ao “mundo interior” e a identificacaio do ex com o “espirito” tornam possivel a problematizaga0 do mundo que nos cerca, concebido como “‘exterioridade”. Eo Pressuposto da “mente” que engendra 0 ceticismo sobre o mundo, assim como é a substan- cializagao da “‘mente” que abre o caminho Para a superacio e re- jeigao do ceticismo e para a recuperacao do mundo, restabelecendo nossas certezas “dogmaticas”’. E oportuno, porém, lembrar que esse expediente estava ao alcance de Descartes t&o-somente porque — e malgrado as aparéncias em contrario — 0 ceticismo da 12 Medita- ¢o foi, de fato, muito menos radical que 0 ceticismo grego. Pois vimos como a epoché de Sexto Empirico era absolutamente univer- sal: ela incidia sobre todas e quaisquer opinides e doutrinas, as dos filésofos e as dos homens comuns; em particular, ela dizia também respeito 4s controvérsias sobre a existéncia da alma, sobre a exis- téncia e a natureza do intelecto, sobre o poder do intelecto de apreender-se a si préprio, sobre sua capacidade de apreensao dos objetos. Descartes efetuou, em verdade, uma discriminacio seletiva entre os argumentos céticos, ele a nenhum momento utilizou — nem mesmo examinou ou discutiu — aqueles argumentos que deveriam leva-lo 4 suspensdo de juizo sobre os tépicos fundamentais e as cer- tezas basicas sobre os quais se edificaria a sua filosofia. Somente em apar€ncia, portanto, Descartes exacerbou a diivida cética até o seu extremo limite. VI Comentamos, no inicio deste trabalho, o “‘axioma metodolé- gico” assumido por muitas filosofias, segundo o qual deveriamos proceder a uma suspensio de juizo sobre o mundo “exterior”, como condigaéo mesma de uma abordagem critica da problemAtica filosé- fica e para nao prejulgar os resultados de nossa investigacao. Lem- bramos também a circunst4ncia de que, no mais das vezes, se faz essa exigéncia metodolégica, ignorando-se — ou desprezando-se — 0 fato histérico de que a epoché sobre 0 mundo, proposta pelo ceti- cismo grego e retomada na 14 Meditagao cartesiana, sua origem moderna, resultara em ambos os casos de uma sdlida e exaustiva argumentacao no sentido de mostrar a inevitabilidade da divida 64 acerca de nossas certezas comuns sobre 0 mundo, assim como a aparente injustificabilidade destas tiltimas. Tudo se passa, disse- mos, como se esse itinerario nado mais tivesse de ser percorrido e como se a validade das razdes que os céticos e Descartes aduziram para justificar a epoché nao mais devesse ser reexaminada. Donde termos falado em “‘axioma metodolégico”’. Assim vistas as coisas, é natural, entao, que nos recusemos a proceder aquela epoché sem considerar atentamente as razdes céti- cas que contariam a seu favor. Nosso reconhecimento da existéncia do mundo que chamam de “exterior” é algo para nés obyiamente fundamental e define os parametros de nosso esquema conceitual basico. N&o ha, por isso mesmo, que aceitar, sem mais, que, em nome do espirito critico e por uma exigéncia obscura de método, tenhamos de despir-nos de nossas certezas primeiras e mais s6lidas. Nao ha por que conceder, sem mais, que fazer dessas certezas 0 ponto de partida do empreendimento filoséfico seja prejulgar inde- vidamente os resultados finais desse empreendimento. J4 que nada nos proibe de efetuar, se necessdrio, 4 luz das conclusdes a que che- garmos ao longo de nosso itiner4rio filoséfico, uma revisio, mesmo se drastica, de nosso ponto de partida e daquelas certezas. A mera suspeita aventada da possibilidade de um prejulgamento e uma pre- determinagao viciosos nao se pode estimar suficiente para impelir- nos a abandonar ‘“‘metodologicamente”, porque queremos filosofar, nossas convicgSes mais firmes de homem comum. Impomo-nos, por- tanto, como tarefa submeter previamente a andlise e ao exame cri- tico os argumentos céticos que fundamentariam a alegada necessi- dade da epoché, para somente em seguida decidir sobre ela. Por outro lado, se € correta a andlise que acima empreende- mos da natureza filos6fica da problematizagao do assim chamado “mundo exterior’, tanto no ceticismo grego quanto no cartesia- nismo, temos uma raz4o a mais — e, quer parecer-nos, uma razao absolutamente decisiva — para rejeitar uma suspensdo de juizo pre- cipitada sobre o mundo. De fato, aquela problematizagao e o pré- prio vocabulario da “‘exterioridade”’ em que ela se exprime aparece- Tam-nos, tanto a nossa reflexdo tedrica quanto a andlise atenta dos textos, como indissociavelmente ligados a uma teoria “mentalista” do conhecimento, mesmo se no articulada, que vimos repousar so- bre alguma forma de distingao radical entre “mente” e mundo (e, Paralelamente, de oposigao entre “mente” e corpo), sobre alguma forma de identificacao entre 0 eu e a “mente” e sobre uma doutrina geral da representagao. Ficou-nos, assim, patente que o ceticismo, 65 em suas verses grega e cartesiana, encerra um inegavel conteiido filoséfico positivo, em que pese a suas pretensdes explicitas em con- trario. E é dai, precisamente, que se engendra, por uma necessidade quase légica, a problematizacao cética do mundo, concebido como “exterioridade"’. Que os filésofos da epoché no se tenham aperce- dido da presenga desse contetido filoséfico especifico no cerne mes- mo de sua postura cética deveu-se certamente 4 sua identificagado profunda com todo um universo histérico de idéias, concepgées e vocabulario, no qual yinham, entretanto, embutidas orientagdes e tendéncias de pensamento cuja particular especificidade Ihes esca- pava. Isso é especialmente manifesto, como vimos, no ceticismo de Enesidemo e Sexto Empirico, herdeiro direto da problemAtica es- téica. Em verdade, trata-se de um fendmeno que nao é sendo dema- siado freqiiente na histéria da filosofia, a cujo propésito é muito conveniente lembrar as palavras de Rorty, ao recordar a licao que aprendeu de alguns de seus mestres: “que um ‘problema filosdfico’ era um produto da adog&o inconsciente de postulacdes (assump- tions) construidas no yocabulario em gue o problema era enunciado — postulacGes que tinham de ser questionadas antes que o préprio problema fosse considerado seriamente”’. Em face de tudo isso, nao apenas se requer que examinemos e discutamos as razées céticas para a epoché antes de a ela aderirmos, mesmo se “‘metodologicamente”’ tao-somente. E também necessario que se discuta a prépria aceitabilidade de uma forma de problema- tizag%o do mundo que se revela soliddria de uma concepgao “menta- lista” do conhecimento. No final das contas, 6 esta mesma concep- ao que se tem de examinar e submeter a andlise critica, ao invés de assumi-la ‘‘por implicacio”.E, quando se atenta na ampla discussao que contemporaneamente se processa em torno da problematica da mente, fica particularmente evidente que seria mais que ingénuo rendermo-nos precipitadamente a nao sei que intuicio do “mental”. O ceticismo constitui, sem sombra de diivida, uma das ques- toes mais cruciais para a reflexdo filoséfica e nao hA como obscure- cer sua importancia. Mas nao é possiyel seriamente enfrenta-lo se a ele antecipadamente nos rendemos. Endossar o mito da suspensao metodoldgica de juizo sobre o mundo é uma das formas dessa rendi- cao. E filosoficamente das mais perigosas. Porque a filosofia nao mais recupera o mundo, a nao ser por artificio. A recuperacdo carte- (142) R. Rorty, ob. cit., Preface, p. XII, 66 siana do mundo, baseada no apelo 4 perfeicao € bondade divinas,!? aparece-me como um desses artificios. Vil — Como vocé sabe que existe o mundo exterior? — O que quer dizer “exterior”? Como um homem comum, eu me reconhecgo no mundo e como parte do mundo. — Mas vocé pode estar plenamente seguro, por exemplo, de que tem um corpo? N&o Ihe parece que pode haver sérias razdes para duvidar de sua existéncia, assim como da exist€ncia dos outros objetos fisicos? — Confesso que tenho grande dificuldade em entender a ex- pressaio ‘“‘duvidar de que eu tenha um corpo". Eu me reconhego como um corpo, pelo menos também cor - um corpo. Eu sou este corpo € n&o vejo como nfo referir o pronome “‘eu"’ a este corpo que eu sou. Dai a minha dificuldade. O que pode querer significar “du- vidar de que este corpo.que eu sou tenha um corpo”’? Ou, se vocé quiser: ‘‘duvidar de que este corpo que eu sou seja um corpo”? — Mas vocé se recusa, entio, a discutir a questao da exterio- ridade do mundo ou a da real existéncia do corpo. — Nao. Mas entendo que essas quest6es se devem considerar sob outro prisma. — De que maneira? — Tomando-as, nao como questdes que se devam diretamente enfrentar e tentar resolver, mas como formulagées que filésofos pro- puseram num certo vocabulario, as vezes mal dissimulando certos pressupostos. Tome o exemplo da divida sobre o préprio corpo. Se um filosofo pergunta como eu posso estar certo de que tenho um corpo, ele esta evidentemente pressupondo que eu me posso conce- ber sem meu corpo, que eu nao devo identificar-me com meu corpo, que eventos tais como minhas dividas, certezas, pensamentos, inde- pendem de meu corpo. Ora, todos esses pressupostos sao teses filosé- ficas bem precisas que temos de examinar para ver se merecem ou nao (143) Cf., por exemplo, Méditations, pp. 324-325. 67 nossa aceitagao, se ha argumentos sérios ou no para sustenta-las. Vocé entende por que eu nao posso responder diretamente Aquela pergunta? E isso vale para todas as perguntas do mesmo tipo. — Vocé nao esta excessivamente cético? — Eu diria exatamente 0 contrrio. 68

S-ar putea să vă placă și