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Histéria da Danca no Ocidente HISTORIA DA DANCA NO OCIDENTE PAUL BOURCIER ‘Tducio [MARINA APPENZELLER Martins Fontes SG Paulo 2006 _— Estante 783.8 /B767h /2.0. Gera 80042 C. Socials Rogisto 143078 IMM Indi ice bara YZ) ee | Aofe RAR fee RS 2454 Cane © BT Li Mr ome Bs Le, ‘ ea ies oe dre tat 1987 s pe 1. A primeira danga foi um ato sagrado 1 | A orquéstica madaleniana ae 3 peace. | Quatro documentos .. 4 A figura de Gabillou, 5 — A figura de Troisfréres, 6 — fresedemates O “semicfreulo” de Saint-Germain, 8 — A roda de Sree pis Addaura, 8 ‘re ’ A erosao do sagrado .. 9 Moat Kas Matsoti Dangas agrérias e dangas totémicas. TH A danga nos antigos impérios . B O Oriente Médio, 13 - 0 Egito dos faraés, 14 —. aS dan- ga entre os hebreus, 17 Tana tu dane cio (P ow; be Marin 2. A danca, dom dos Imortais 19 gto Pet Sass a 04 fae (eas 20 See A danga grega, ato total . 22 |. angn= iris 2. Danan — Big. Ti "Dionisio, este deus miltiplo. 23 cpb192.209 Fugir para as montanhas, 25. je | Das ménades a Eurfpide: 27 1.Danga: Moin 783308 0 ditirambo, um género “recuperado”, 28 — O coro da tragédia, 29 — O coro da comédia, 31 — 0 coro sati- eee een eae reed 3 nara Martine Fontes Etre Lede. rico, 31 ua Cost Ramo, 390 1935-000 So Polo SP Brst Pe translonnacnes ds pirica 32 Tn (t}s2el 3677 ax 1) 31080983 eee eae ir intel Dangas de culto e de festas ose Dangas da vida cotidiana Técnica da danga grega.. A danga entre os etruscos A danga entre os romanos . A Idade Média inventa a retérica do corpo wu. Dangar na igreja apesar da Igreja A idade de ouro da estampie... : A danga macabra da Guerra dos Cem Anos Rumo & danga-espetac O balé de corte Os primeiros documentos eseritos do Quattro- cento. id pect: do Cinqnenento Cesare Negri, dito o Trombone, 67 Caroso, 68 A danga de corte. ‘As dangas de corte aa Renascenga mt esa, 69 A invengdo do balé de corte O material téenico, 73 - A temética dos balés de Marco Fabrizio e, 16 — Uma tentativa abortada: o balé “metrifi- cado”, 78 A filiagio do balé de corte ‘As tentativas 0 balé de casamento de Henrique, 82 - “O Balé dos embaixadores poloneses”, 84 0 “Balé cémico da rainha”’..... ‘Trés ligdes dancadas de politica Um balé de politica externa: 0 “Balé de Mi nerva” .. “A Libertagaio de Renaud” . ede Luts “A aventura de Tancredo na floresta encantada” . 65 67 79 81 85 90 4 96 98 0 balé barroco.. balé de corte fora da Franca. O balé de corte fora da corte. Os profissionais da danca ... A invenedo da danga clissiea ... ‘A opera italiana é “recheada” de balés A sobrevivéncia do balé de cort A danga cléssica, filha legitima de Luts XIV... Al Absent raat ts tage) 118 — Beate mestre de danga da Franga, 114 Moligre inventa a comédia-balé “Os impertinentes”, 121 — “O casamento forgado”, 124—“A princesa de Elide”, 125 ~ 126 ~ A “Pastoral edmica”, 12: 128 ~ “M, de Pourceaugna ”, 129 — “0 burgués gentil-bomer “Psyché”, 131 ~“A condessa de Esearbagnac”, “0 doente imagindrio”, 134 Lully: a danga torna-se “divertimento” A 6pera no interior. Os dangarinos da Academia : Louis-Guillaume Pécourt, 143 ~ Nicolas Blondy, 143 ~ Jean Balon, 144 — Marie-Thérese Perdou, dita (de) Subligny, M4 amor médico”, seorge Dandin”, ", 128 - “Os magnificos 130 - 33 amantes O desabrochar ea morte da escola eldssica .. A condigao de espectador... A condigao de dangarin A escrita da danga . A 6pera-bal6é ..... A temética da épera-balé os 102 103 104 107 107 110 112 119 135 142 142 147 150 152 153 157 159 160 16L Condigées de representagao A reforma de Noverre.. Uma carreira néo conformista, 164 — Uma doutrina de eontestagao, 170 A escola classica morre com os ‘Trés Gloriosos.. 175 Os grandes dangarinos do século XVIII... 7 Marie Allard, 178 - Gasparo Angiolini, 178 — Jean Pierre Aumer, 179 — Barbara Companini, dita la Bar- barina, 180 ~ Marie-Anne de Cupis de Camargo, 181 — Jean Bercher, dito Dauberval, 182 ~ Charles-Louis Didelot, 182— David Dumoulin, 183 ~ Louis Duport, 183 — Louis Dupré, 184 — Maximilien Gardel, dito Gardel, o Primogenito, 186 — Pierre Gardel, dito Gardel, 0 Cagula, 186 ~ Marie Madeleine Guimard, 187 ~ Anne Heinel, 189 — Jean-Baptiste Lany, 189 — Louise Lany, 190 ~ Charles Le Pieq, 190 — Frangoise Prévost, 191 — Antonio Rinaldi, dito Fossan, 192 Marie Sallé, 192 ~ Gaétan Vestris, 192 Vestris, 195 — Salvatore Vigano, 196 — Auguste . A danga romantica A técnica romantica: 0 “estilo da alma” 201 O “Balé das freiras”, 202 “A silfide”. 202 “Giselle” 205 As grandes dangarinas romantica: 208 Marie Taglioni, 208 — Franziska, dita Fanny Elssler, 210 - Carlotta Gi 211 O coma prolongado da danga na Opera 212 A expansiio da danga francesa no exterior...... 214 A escola francesa de Copenhagen, 214 — A escola académica de Sao Petersburgo, 215 A doutrina académic 220 8. O neoclassicismo 225 Os Balés russos de Diaghilev 225 A breve aventura dos Balés suecos 230 Dois caminh alanchine e Lifar 235 George Balanchine, 236 — Serge Lifar, 239 9. A danga moderna “made in USA” Um precursor naio reconheeido: Franco sarte . A edificacaio do sistema, 244 — A influéncia, 245 - A transmissao do delsartismo, 246 Isadora Duncan “danga sua vid A influéncia de Dunc Loie Fuller 252 253 Sua vida, 25 ade Ruth Saint- Denis, 258 ‘Ted Shawn. 260 A Denischawnschool 262 O Bennington College 264 Charles Weidman . 265 Doris Humphrey 266 Do paleo ao estiidio, 267 — A raiz do gesto, 269 A descendéncia de Doris Humphrey 272 José Limon, 272 — Betty Jones, 273 — Louis Falco, 273 Martha Graham e os grandes mitos humanos.. 273 Dos Apalaches ao Labirinto, 275 — A alma e a técni- ca, 278 A descendéncia de Martha Graham... el: Erie Hawkins, 281 — Merce Cunningham, 282 — Paul Taylor, 285 — Twyla Tharp, 286 Os “post modern” Lester Horton Alvin Ailey. 289 | A Robert Mallet, reitor da Academia e 10. A escola germanica e sua linhagem ameri 291 chanceler das universidades de Paris, 0 iniciador: Emile Jaques-Daleroz 291 poeta, Um teérico completo: Rudolf von Laban. 293 a quem a Universidade deve sua aber- Mary Wigman. 295 tura para a historia da orquéstica, eo Uma obra trdgica, 296 — Dionisio germanico, 298 fato de ter reconhecido uma resso- Kurt Jooss 300 | ndncia singular no discurso do corpo. Alwin Nikol 301 PB. Munray Louis. 304 | a Susan Buirge. 304 Carolyn Carlson. 305 Quadro sindtico da danga moderna 308 LL. Danear hoje 309 Maurice Béjart: rumo ao “balé total” 311 Qs anos de formagio, 311 — Os anos de expe 313 —O triunfo da “Sagrado”, 314 — Por uma danca total, 316 ~ A vontade de ecumenismo, O estado da danga na Franga Roland Petit, 324 — Janine Charrat, tralizagdo coreogréfica, 327 324 335 Indicagdes bibliogréficas . \ Capitulo 1 A primeira danca foi um ato sagrado Oprimetro dancarino tem 14000 anos — Oneolitico inventa a danga ritual Certos autores descreviam outrora uma “ceriménia M@ieada”’ da pré-histéria: na gratacde Pech-Merle ner a iiaed evenitacteecn il hareeiclemancawedtialberss yinham dangar para obter maior fecundidade. Alguns eram até mais precisos, dizendo que elas executavam ‘uma danga em ritmo bindrio, com o tempo forte sobre 0 pé esquerdo. Como prova, as marcas que haviam deixado na argila. B, sem divida, uma narrativa co- movente: as trevas da gruta, as mulheres dangando por entre a fumaga das tochas, uma bela seqiéncia que se presta muito bem ao sonho! Infelizmente, para essa gente cheia de imaginacio, basta ir li constatar a verdade: em Pech-Merle, sé ha duas marcas de pés de criangas, o direito e o esquerdo; um pouco mais atra uma $6 marca, bem escayada no chao, de um tinico pé de mulher, o esquerdo. E pouco para uma multidio de peregrinos. Eis um exemplo tipico de falta de probidade cienti- fica: nao verificar as fontes e deixaraimaginacao vagar alegremente para além do documento E dificil estudar a orquéstica da época da pré-hist6- ria, pois ela se estende porum periodo consideravel: 0 primeiro documento que apresenta um humano in- 2 Hist6ria da Danga no Ocidente discutivelmente em acao de danga tem 14000 anos; o periodo histérico comega apenas cerca de oito séculos antes de nossa era. Além disso, esses perfodos cobrem culturas bem diferentes: a madaleniana, a primeira onde encontra- mos documentos orquésticos, vai de 12000 a 8000 anos antes de nossa era; a neolitica, cujas areas sao muito dispersas, se estende de 8000 a.C. a 5000 ou 2000 a.C., conforme as regides; é sucedida pela idade do bronze, por um milénio ou um milénio e meio, antecedente a idade do ferro, que alcanga a época histérica a partir da qual comegamos a dispor de do- cumentos escritos. Enfim, se os documentos iconograficos do periodo madaleniano parecem agora conhecidos e classifica- dos ou fotografados corretamente, o mesmo absoluta- mente nao acontece com os documentos dos periodos seguintes, precisamente porque sao abundantes e estao dispersos pelo mundo. Ainda é necessario ela- borar um trabalho muito importante de levantamento e de comparacao, pois os especialistas da pré-histéria se preocuparam muito pouco com a historia do movi- mento, sem perceber quais as nogdes complementa- res que esta poderia lhes trazer. Foram reconstituidos corpus de vasos e inscrigées antigas, que permitiram que se conhecesse melhor a histéria e as civilizagdes de outrora. Ainda é preciso montar 0 corpus orchesti- cum. Impée-se, portanto, uma grande prudéncia nas conclusées a serem tiradas dos documentos que co- nhecemos, as quais devem ser consideradas apenas como sondagens. Também se impée uma grande pradéncia quanto a sua interpretagao. Comete-se freqiientemente 0 erro de estuda-los com a nossa mentalidade modema, que A primeira danga foi um ato sagrado 3 0s analisa em comparag’o com as nossas civilizagdes atuais ou com aquelas ditas “primitivas”, na medida em que ainda existem. O bom senso nos aconselha mantermo-nos numa atitude estritamente objetiva, estritamente descritiva. Estamos, diz essencialmente o grande estudioso da pré-historia André Leroi-Gourhan, na posicao de um arquedélogo dos milénios futuros que poderia desco- brir, por exemplo, documentos do ritual catélico sem dispor de textos que o explicassem. Que ligacgao ele poderia estabelecer entre as numierosas representa- ‘des de uma pessoa crucificada e 0 simulacro de refei 40 que é a comunhéo? A regra essencial é, portanto, examinar bem os do- cumentos, nao ir além das constatagdes evidentes e nao ceder a tentacao de imaginar sistemas de ritos magicos, como se faz, com muita freqiiéncia. A orquéstica madaleniana Na época paleolitica, o homem é um predador; vive da caga, da pesca e da colheita, sujeito aos acasos do destino. No clima rude da glaciagao de Wiirm, que fez com que as geleiras dominassem grande parte do ter- ritério atual da Franga, o animal é um inimigo dificil de ser vencido, uma presa dificil de ser abatida. As- sim, ele condiciona a sobrevivéncia do homem; forne- cendo-lhe 0 indispensdvel: carne e gordura para a alimentagao, peles para as vestimentas, ossos e chifres para os instrumentos. O ecossistema paleolitico ba- seia-se nos animais; as dangas s6 poderiam referir-se a eles. Os agrupamentos humanos nao ultrapassam a es- cala da horda. O meio para a habitagao, possivel so- 4 Historia da Danga no Ocidente mente nas regides fora das geleiras, 6 semiperma- nente: as entradas das grutas e nao as proprias grutas, abrigos sob as rochas. Pode ser também um acampa- mento num ponto de passagem obrigatorio dos reba- nhos em migracao, como o sitio de Pincevent, proximo de um antigo vau do Sena. As grutas sdo santuarios, pois existe o sentimento religioso. Comprova-o 0 uso da sepultura ritual, com os cranios salpicados de tin- tura ocre. As sepulturas de crinios de animais, tam- bém tingidos de ocre, levam a supor que os homens pré-historicos cultuavam os animais. Portanto, nao se deve excluir a priori a idéia de uma danga religiosa que nenhum documento atesta expressamente. Quatro documentos Quatro documentos orquésticos caracterizam a &poca paleolitica e, mais precisamente, quanto aos trés primeiros, a cultura madaleniana. Sao eles: —uma figura na gruta de Gabillou, gravada 12000 anos antes de nossa era; —um semicirculo de ossos, datado de 10000 a.C., dito de “Saint Germain’, pois, encontrado na gruta de Mas-d’Azil, encontra-se no museu de antigiidades nacionais de Saint-Germain-en-Laye; —um conjunto de nove personagens, gravado na gruta nimero dois de Addaura, perto de Palermo (Si- cilia); datado de 8000 a.C., pertenceria ao mesolitico, periodo intermediario entre o paleolitico e 0 neoli- tico. Nao consideraremos a figura do “homem com o arco”, da gruta de Trois-Fréres, pois seu movimento orquéstico nao é evidente, nem o conjunto das mulhe- A primeira danga foi um ato sagrado 5 res pintadas na gruta de Cogul (provincia de Lerida, na Espanha), cuja composi¢ao e data sao incertas. E muito pouco, principalmente se compararmos esta amostragem restrita com os trinta e cinco docu- mentos “‘orquésticos” que o professor Schmidt, espe- cialista da universidade de Tibingen, citava ha algu- mas décadas. Mas deve-se saber que eram raras as representacdes humanas na época paleolitica: 4% de homens e 2,5% de mulheres entre 1794 figuras parietais, segundo Leroi-Gourhan, E preciso considerar que o mimero de documentos € limitado e que ha um rigor em sua selecao. Feliz- mente, os documentos considerados sao caracteristi- cos. A figura de Gabillou Numa parede da gruta de Gabillou (perto de Mussi dan, na Dordonha), esta representado 0 ancestral dos dangarinos: a silhueta gravada de um personagem, visto de perfil, de cerca de trinta centimetros de al- tura. A cabeca e 0 compo esto cobertos por pele de bisao. As pemas, sem qualquer diivida humanas, in- dicam uma espécie de salto no lugar. O Angulo do torso com as pernas é de vinte e cinco a trinta graus. Nao levaremos em consideracao os sinais gravados 40 lado ou sobre ele: podem ser anteriores & gravacaio da silhueta e nada ter a ver com ela. Continuam inex- plicaveis na atual fase de nossos conhecimentos. Nao poderiamos comentar muito mais sobre esta figura se nao a aproximassemos de uma, mais expli- cita, na gruta de Trois-Freres, 6 Historia da Danea no Ocidente A figura de Trois-Freres Este documento, datado de 10000 a.C., encontra-se na gruta de Trois-Fréres, proxima de Montesquiou- Avantés (Ariége). Esta isolado de qualquer outra re- presentagao, o que é raro, principalmente nesta gruta, cheia de figuras. Encontra-se num canto absidal, no fundo da cavidade, a muitos metros de altura. Sem chegarmos as observagées Ifrico-subjetivas do abade Breuil, que foi o primeiro a descobri-la— e justifica- das pela beleza e estranheza (da figura)—, faremos as seguintes constatagée — Corpo. A cabega, gravada, esta voltada para frente. O tronco, silhuetado por um trago espesso de tinta preta, apresenta-se em um falso perfil. Os dois bragos estao em semi-extensao, o direito num plano ligeiramente superior ao esquerdo, O tronco marca uma inclinagao de cerca de quarenta graus em relagéo pernas. Estas estao levemente flexionadas sobre os joelhos; a esquerda esta diante da direita, erguida; 0 pé esquerdo assenta-se horizontalmente no chao; 0 direito, em relevé, prepara-se para colocar-se no mesmo plano. O conjunto é um bom instantaneo de um movi- mento de giro do corpo sobre si mesmo, realizado por um calcar dos pés no mesmo nivel. Nao é possivel saber se o movimento é feito sem que 0 dangarino saia do lugar, numa érea circular ou numa linha. —Vestimentas. A cabega esta inteiramente coberta por uma mascara de rena (ou de cervo), com chifres € pélos. O tronco esta vestido com uma pele, provavel- mente de bisio ou de cavalo. Nas nadegas estao fixa- dos um 6rgao sexual masculino — de rinoceronte, segundo Leroi-Gourhan—e uma cauda de cavalo. A primeira danga foi um ato sagrado it Este traje é, sem diivida, elaborado. Nao é 0 caso de consideré-lo um disfarce para a proxima cagada. E uma roupa proposital, inabitual e portanto cerimonial ou ritual, constatagao reforcada pelo detalhe do érga0 sexual masculino. — Carter da danga. O personagem executa um giro sobre si mesmo. Como a constituigao anatémica dos homens daquela época era, segundo os especialis- tas, andloga a nossa, os efeitos psicossomaticos deste giro sao aqueles que todos sentem: perda do sentido de localizagao no espaco, vertigem, uma espécie de desapossamento de si mesmo, um éxtase no sentido etimolégico da palavre Como uma analogia eloqiiente, é preciso notar que em qualquer parte do mundo e em qualquer época, inclusive na nossa, as dangas sagradas, através das quais os executantes pretendem colocar-se num es- tado em que acreditam estar em comunicagao ime- diata com um “espfrito”, se executam através de giros. Os xamas, lamas, dervixes, exorcistas mugulmanos, feiticeiros africanos giram sobre si mesmos em seus exercicios religiosos, 0 que os leva a um estado de transe provocado pela danga, como o do dangarino de Trois-Fréres. Imitagoes tachistas desta figura, datadas de épocas posteriores, foram encontradas na Suécia e princi palmente na Africa do Sul. Leroi-Gourhan acredita que se trata da representacao de um mito. Qual? Como se espalhou por regiGes tao afastadas umas das outras? Deve-se acreditar, conclusao que ultrapassa a consta- tagao pura, que a humanidade dispunha de uma espé- cie de fundo cultural comum? Desde ja, a danga nos leva além do simples movimento. 8 Historia da Danca no Ocidente O “semicirculo” de Saint-Germain Este fragmento de um circulo de ossos data da época madaleniana e é praticamente contemporaneo do dangarino de Trois-Fréres. Pode-se observar, cla- ramente gravada, a silhueta de um homem, cuja ca- bega esta coberta por uma mascara em forma de fo- cinho. Os bracos esto na mesma posi¢do que as duas figuras precedentes; 0 corpo, aparentemente nu, ape- sar de que estrias no contorno possam levar a pensar na representagdo esquematica de uma pele, esta in- clinado quarenta graus em relagao ao eixo das pemas; © sexo € itifilico; a perna esquerda esta erguida, 0 joelho levemente flexionado; a direita esta estendida, 0 pé colocando-se no cho pelos dedos. Aroda de Addaura Data de 8000 a.C., portanto do mesolitico, quando as representagées de grupo comegam a ser freqiientes, esta cena gravada na gruta de Addaura apresenta uma toda de sete personagens dangando em tomo de dois personagens centrais que se contorcem no chao—um deles parece estar na posicao de ponte. Estes tiltimos sao itifalicos, enquanto os outros nao o sio. Todos esto nus, mas usam as mascaras com 0 focinho pon- tudo, freqiientemente encontradas nas figuras parie- tais — mesmo naquelas que nao indicam movimento —e que nao representam um animal claramente de- terminado. O movimento vai da direita para a esquerda, ou seja, € oda diregao aparente dos grandes astros, 0 sol e a lua. Deve-se reconhecer uma danga césmica? A res- posta nao cabe ao dominio da constatagao. Sem aven- Aprimeira danga foiumatosagrado. 9 tar hipoteses gratuitas, contentar-nos-emos em obser- var que todas as rodas espontaneas, mesmo as das criangas de nossos dias, giram na mesma direcao. Trata-se aqui da mais antiga representagao da danga de grupo. No atual estado de nossos conhecimentos, a roda é 0 movimento primitivo da danga coral. E ver- dade que a roda tem as virtudes de uma dindmica de grupo, principalmente nos casos em que é conduzida por animadores colocados no centro, como acontece em geral nas dancas africanas, por exemplo. Ha uma excitacdo nervosa reciproca, um abandono de ao menos uma parte da identidade pessoal em proveito da identidade do grupo. Em suma, parece, segundo os documentos conhe- cidos, que a danca nos periodos mesolitico e paleoli- tico esta sempre ligadaaum ato cerimonial que coloca 0s executantes num estado fora do normal. O estado de despersonalizacao que parece ser pro- curado é favorecido pelo uso de mascaras de animais que, obrigatoriamente, fazem parte do rito. Desde ja, é preciso observar que a mascara perma- necera: de uso ritual nos tempos antigos, torna-se acessério de representagao obrigatorio até meados do século XVIII, quando é substituida pela maquilagem. No Oriente, a mascara ou a maquilagem completa sio ainda regra na maioria das dangas religiosas. A erosao do sagrado A partir do periodo neolitico, a condigao humana se transforma fundamentalmente: de predador, o homem transforma-se em produtor; descobre as prati- 10 Historia da Danga no Ocidente cas daagricultura e da criagao de animais; pode dispor de reservas de alimentos e, em certa medida, tornar-se senhor de seu destino. Temos duas conseaiiéncias: a populagao vai au- mentar e, por possuirem bens e serem obrigados a protegé-los, os homens vao se organizar em grupos mais poderosos do que a familia. Nascem as cidades, diferentes umas das outras e até rivais, cada uma com sua personalidade propria, suas proprias divindades protetoras, com freqiiéncia um animal simbélico, um totem. Como é normal, os ritos religiosos personalizam-se em cada grupo 4 medida que este descobre sua identidade. Cada grupo ter, portanto, sua ou suas dangas proprias. Por outro lado, qualquer grupo humano tende a alcangar a estabilidade, pois é formado para garantir uma certa ordem; é organizado em classes especiali- zadas em fungées. A classe sacerdotal, cujo papel € manter contato com as divindades protetoras, nao dei- xara os atos rituais e as dangas ao acaso das inspiragoes individuais. Cada cidade ter seu rito, suas dani fixas. Mas, por outro lado, a superpopulagao, os rezzou acarretam grandes movimentos migratorios a partir do quinto milénio antes de nossa era. O ponto de partida foi a margem nordeste do Mediterraneo, precisa- mente onde a neolitizagao e o uso de metais foram mais precoces. Duas rotas abriam-se: uma terrestre, que seguia o vale dos grandes rios (Dantibio, Reno), outra maritima, mais tentadora, que levou gradual- mente os homens do Leste mediterranico a implanta- rem suas culturas, seus ritos, suas dangas nas ilhas ena costa. O efeito dessas migragées foi impor aos paises invadidos culturas alégenas ou — 0 que foi freatiente A primeira danga foi um ato sagrado 11 — sobrepor s culturas autéctones praticas culturais estrangeiras. E possivel supor com bom senso que, se adocumen- tagao fosse suficientemente ampla e datada, poder- se-ia constituir uma etnologia orquéstica, da mesma forma que foi possivel recentemente comecar a esta- belecer uma etnologia juridica. Assim, talvez fosse possivel explicar alguns fatos que atualmente sé podemos constatar com espanto: por exemplo, na ceramica dita de Samara (império de Sumer) ha bordas de vasos decoradas com frisos muito tipicos de fileiras de dangarinos “estenografados”; exatamente 0 mesmo motivo encontra-se num prato que aparentemente pertence ao segundo milénio antes de Cristo, descoberto na necrépole do Moulin em Mailhac (proximo de Narbonne), na métopa de um prato proveniente de uma aldeia sobre pilotis do lago de Bourget (museu de Chambéry), num hidriao grego de estilo geométrico e em muitos outros documentos. Nao sao concebiveis intercimbios a tal distancia e com tantos séculos de intervalo. Essas convergéncias demonstrariam a existéncia de um patriménio cultural comum a toda a humanidade? Dangas agrarias e dangas totémicas Enquanto se espera, é possivel clas riamente os documentos conhecidos. Em nenhum lugar foram encontradas representa- Goes de dangas agrarias miméticas muito antigas Foram resgatadas, porém, em grande mimero, repre- sentacdes de combates cerimoniais dangados. A civi- lizac 10 grega nos mostrara o lago entre as dangas guer- teiras e os rituais agrarios. ificar proviso- 12 Hist6ria da Danga no Ocidente Os pesquisadores também tentam decifrar uma cena orquéstica resgatada em Fulton’s Rock (Africa do Sul), publicada por Lee e Woodhouse em Art on the Rocks of South Africa (p. 162): um personagem (vi- tima humana de um sacrificio ritual ?) é enterrado num. recinto em torno do qual outros dangam. Ja seria pos- sivel observar aqui um mito que anunciaria o da cor grega, 0 mito do deus, celebrado em muitos cultos, que morre e ressuscita na primavera, como a natu- reza? Principalmente na Africa do Sul, pode-se observar cenas de danga, em solo ou coletivas, entre as pinturas rupestres, os participantes vestidos de animais de forma mais ou menos realista. Levam a supor um culto totémico dangado. De fato, a arqueologia nos mostra que os agrupamentos humanos tinham entao sua di- vindade-totem. Em Catal Hiyiik (Turquia), era vene- rado 0 touro, simbolizado pelo bucranio, culto que se espalhard mais pelos paises mediterranicos. Pode-se, portanto, sem risco de erro, identificar essas dangas com atos rituais dirigidos & divindade protetora do lugar. A partir de entao, assiste-se a uma mudanga no sen- tido da danga: da identificagéo com 0 “espirito”, con- seguida pela danga por giro, passa-se a uma liturgia, a um culto de relagdo e nao mais de participagdo, a um rito civico, porque integrado a vida da cidade e co- mandado por ela. Enfim, os documentos mostram 0 nascimento da danga cerimonial leiga: 0 cortejo suntuoso dito “da dama branca” (Africa do Sul) inclui um grupo de dan- carinas. As pinturas rupestres do Tassali apresentam mogas em saltos de uma grande pureza de linhas. A primeira danga foi umatosagrado 13 A danga nos antigos impérios O Oriente Médio Por falta de documentagao suficiente, s6 se pode falar com grande precaugao da danca nos antigos im- périos médio-orientais. E verdade que um grande pe- riodo sem evidéncias estende-se entre 0 abandono da pintura parietal e 0 surgimento de uma iconografia orquéstica na ceramica e em outras artes plasticas. Mas também é verdade que os documentos, bem nu- merosos a partir do segundo milénio antes de Cristo, sido, como os do neolitico, pouco levados em conside- ragao. De fato, muito pouco chegou até nés em matéria de orquéstica do império de Sumer, que abre a série dos grandes impérios mesopotamicos. E bem arriscado reconhecer em relevos dangas que devem ser, com maior probabilidade, apenas desfiles ritmados; mais arriscado ainda é reconhecer, como fazem alguns au- tores, um “bastio de danga” na representagao de um bastao recurvado. Mais interessante é a ceramica que nos apresenta fileiras de dangarinos estereotipados; melhor ainda é um pedago de louga do Louvre, um fragmento de um coro de mulheres, cobertas por lon- 0s véus, que se dao as mos para dancar em roda. E provavel que seria extremamente proveitoso um levantamento sistematico, nos museus de Teera, Bagda e Alepo, dos documentos orquésticos desta época e dos impérios que substitufram Sumer. Na mesma regio, mas em época mais tardia, a de Partos, no inicio de nossa era, foram encontrados mui- tos exemplares de um motivo ornamental em bronze, designado pelos arquedélogos pelo nome de “haste de 14 Historia da Danga no Ocidente estandarte”. Trata-se de um circulo no qual se inscre- vem quatro dangarinos, joelhos flexionados, bragos erguidos € maos unidas. Trata-se, com grande proba- bilidade, de uma roda referente a um rito césmico, sem duvida solar. OEgito dos faraés No decorrer de sua longa histéria, da época neoli- tica até 0 ano 30 antes de nossa era, o Egito praticou amplamente a danga, na forma de danga sagrada, de- pois de danga littirgica — principalmente liturgia fu- neraria—e, enfim, de danga de recreagao. Os arquedlogos encontraram no alto Egito pintura rupestres da época neolitica, semelhantes as da Africa do Sul e do Tassili. Com destaque para a que repre- sentaria uma roda em torno de um personagem masca- rado, e outra representando uma roda de mulheres que se dao as maos. Assim, o Egito testemunha, por sua vez, 0 estreito parentesco das formas e das finali- dades na orquéstica desta época. Mas, desde o periodo pré-faradnico, o Egito marca a sua originalidade através de representagGes coreogra- ficas em armas rituais. Nos ttimulos, e desde a epoca antiga, qualquer que fosse a condigao de seu proprieta- rio, vé-se dangarinos e dangarinas, aparentemente espe- cializados, acompanhando cortejos funerarios e guiando os defuntos até o limiar de sua vida pés-terrestre. Os baixos-relevos dos templos descrevem procis- sGes com partes coreograficas obrigatérias. Em Luq- sor, dangarinos com clavas ou bumerangues figuram no cortejo da visita anual do deus Amon, proveniente de Kamak. Também em Lugsor, o deus era acolhido por um colégio de sacerdotisas-dangarinas quase A primeira danga foium ato sagrado. 15 nuas, com postos proeminentes no templo. No templo de Bouto, dancava-se anualmente um combate ritual para celebrar 0 advento da primavera (cf. Drioton, “Les fétes de Bouto”, in Bulletin de l'Institut d Egypte, n.° 25, 1943, p. 6). Por outro lado, a vida da corte exigia a participagao de dangarinas, freqiiente- mente representadas, no cortejo dos farads, com a cabega graciosamente jogada para tras. Um bom niimero destas representages orquésti levanta questdes ainda nao resolvidas. Assim, o ti- mulo de Antef-Iker, governador de Tebas sob Sesés- tris I, no Médio Império, mostra, ao lado de uma cena de danga que evoca a ceifa ea vindima, uma outra ago interpretada como um rito de fecundidade: a “aber- tura dos seios das mulheres” (cf. Alliot, “Le culte d'Horus a Esfou”, in Bibliotheque d’étude, p. 226, Institut frangais d’archéologie orientale). Em que consistia exatamente esta pratica dangada? Era um verdadeiro sacrificio ou uma lembranga atenuada? O que sao estes sacerdotes-dangarinos, ditos “Muu”, que podemos ver a partir do Antigo Império (terceiro milénio antes de Cristo), até o Novo (de 1500 a 400 anos antes de nossa era), substituindo os danga- rinos dos cortejos ftinebres para ajudar os mortos em Sua iniciagao a vida intemporal? Os numerosos docu- mentos iconograficos em que figuram, com leves mo- dificagées indumentarias através dos tempos, evoca- riam dem6nios infemais ou funcionarios sacerdotais especializados? Também sao encontrados, da época do Baixo Impé- rio, toda uma profusio de representagdes de um deus dangarino chamado Bés, grotesco, careteiro esteato- Pigico, que pode lembrar os silenos dangarinos, tao gordos que os especialistas chamam-nos “sdtiros estu- 16 Historia da Danca no Ocidente fados”, que, por volta da mesma época, aparecem nos cortejos dionisfacos nos vasos gregos. Influéncia ou coincidéncia? $40 bem numerosos os documentos iconogrificos sobre a danga no Egito; mas sua dispersao pelos mo- numentos egipcios, pelos museus e a mé classificacdo sao um grande obstaculo 4 compreensao da orquéstica egipcia. A isso podem-se acrescentar textos bastante herméticos, principalmente aqueles que fazem alusio adangas célebres nos mammisi quando dos aniversa- tios rituais das divindades. Baixos-relevos em Den- dera ilustram estas ceriménias, através de dangas de macacos acompanhados de deuses-anées (ef. Daumas, “Les mammisi de Dendérah”, in Bulletin de U'Insti- tut frangais d’archéologie orientale, pl. LIV). Um estudo sério sobre a danga no Egito ainda esta por ser feito: exigiria, com certeza, trabalhos interdis- ciplinares; mas poderia trazer novas nogées sobre a cultura egipcia e suas relagdes com as culturas vi nhas. Logo de inicio, os intereambios parecem evi- dentes: na época do Alto Império, observa-se no Egito a pratica da danga com joelhos flexionados, seme- lhante A dos hebreus, dos cretenses, dos gregos; tam- bém se percebe, em diversos periodos, 0 gesto dos bragos em oposigao, uma palma voltada para o céu, a outra para a terra. Trata-se de dangas tipicas de um antigo fundo mediterranico, de uma transposigao or- quéstica do sinal indo-europeu do svastika (em sans- crito, “vida feliz”)? —// Também é possivel notar imediatamente 0 gosto dos egipcios pela danga acrobatica, principalmente pela danga em que se joga a nuca ou todo 0 corpo para tras a ponto de fazer uma ponte, alcangando-se os tornozelos com as maos. Um belo exemplo deste mo- A primeira danga foi um ato sagrado 17 vimento é dado pelo célebre “fragmento da danga- rina”, conservado no museu egipcio de Turim. Esta pratica também é encontrada com freqiéncia entre os gregos. A danga entre os hebreus Os hebreus sao proibidos por sua religido de repre- sentarem seres vivos. A documentagao iconografica excluida, s6 podemos recorrer aos documentos escri- tos, essencialmente 4 Biblia. Hé algumas alusdes & danga, principalmente nos livros liricos, como os Salmos, mas geralmente sao vagas, do tipo: “Louve- mos Javé através de cantos e dancas”. Além disso, nos textos candnicos, como a Mishna, cédigo das praticas rituais no Templo de Jerusalém no século I de nossa era, nada concerne a danga. Em primeiro lugar, a danga hebraica surpreende pelo seu carater paralitirgico: nao inscrita no ritual das celebragées, parece ser abandonada a esponta- neidade da multidao; no entanto, é praticada num contexto religioso. Por outro lado, seu conteido é vago, mas seus esquemas se inscrevem em limites rigidos: rodas, dancas em fileiras, giros. Quando se trata de nabis e de multiddes em peregrinagao, parece ser uma espécie de socializagao de transes indivi- duais. E preciso observar que, tinica em seu contexto cronolégico, é praticada sem mascaras, indubitavel- mente devido a interditos religiosos. Finalmente, apresenta um cardter absolutamente excepcional suas formas e seu espfrito— ela conseryou sua fungao religiosa — nao evolufram: 0 povo hebreu é 0 tinico a nao ter transformado sua danga em arte. Mas nao é sua cultura marcada por um conservadorismo rigoroso? 18 Histéria da Danca no Ocidente _ Encontramos dangas em fileiras, por exemplo, no Exodo, XV, quando a profetisa Miriam, irma de Moi- sés, tamborim na mao, dirige um coro de mulheres para celebrar a passagem pelo Mar Vermelho; o mesmo rito sera dangado na vitéria de Jefté Juézes, XI, 34), nade Davi sobre Golias (I Samuel, XVII, 6-7), na de Judith sobre Holoferno (Judith, XV, 12-13). As todas sao evocadas no Exodo, XXXII, quando, ao des- cer do Sinai, Moisés encontra seu povo dancando em tomo do Bezerro de Ouro e, de forma mais ortodoxa, nos Salmos (XXVI, 6): “Javé, ando em roda em tomo de teu altar”. As “jovens de Silo” dancam em roda nos vinhedos, sem diivida durante a festa dos Tabernacu- los, quando os homens de Benjamin vém rapté-las (lutzes, XXI, 19-23). ‘A famosa danga de Davi quase nu diante do Arco, ao voltar a Jerusalém (II Samuel, VI), merece ser exami- nada mais detalhadamente. Ao se examinar © texto, pode-se observar que ela se caracteriza por giros(me- karkér) e saltos (mepazzez). Voltamos a encontrar aqui a técnica orquéstica mais antiga, a da época ma- daleniana. Talvez possamos considerar a nudez de Davi como uma lembranga do itifalismo outrora ri- tual? E, no entanto, estamos no inicio do primeiro milénio antes de Cristo. Finalmente devemos notar 0 emprego, por varias vezes, de um termo ambiguo que evoca a idéia de uma danga “manca”. A traducao grega do primeiro livro dos Reis (XVIII, 21) propée uma explicagao, empre- gando o termo oklazein parao termo hebraicopisseah : “acocorar-se”’. Aparentemente trata-se da danga com os joelhos flexionados, freqiiente nas culturas antigas do Mediterraneo oriental. Capitulo 2 A danga, dom dos Imortais Danea dionisiaca— Ptrrica—Dangas de culto—A técnica grega De seu nascimento a sua morte, a civilizagao grega é completamente impregnada pela danea. Ritos religio- sos, pan-helénicos ou locais, ceriménias civicas, fes- tas, educagao das criangas, treinamento militar, vida cotidiana, a danga esta presente por toda a parte. Comprovam-no milhares de documentos em figuras e textos. E possivel acompanhar com uma precisao bas- tante satisfatéria a evolugao das idéias orquésticas através da cultura grega. Apenas os primordios da civilizagao grega (aproxi- madamente de 1500 a 700 a.C.) ainda nao sio bem conhecidos. O deciframento da escrita linear B, de Micenas, é recente e nao sao todos os textos deste periodo que podem ser explorados. As descobertas ‘arqueolégicas ainda podem nos trazer muitos dados Conyém, portanto, ser prudente quanto a esta fase. ‘Aqui também falta 0 corpus orchesticum que, se reunisse todos os documentos dispersos ao acaso por museus onde nem sempre sao acessiveis, permitiria uma historia exata e comparativa. Com muita freqiiéncia, a danga na Grécia foi abor- dada a partir da classificagao de Platao (Leis, 1): dana de beleza/danca de feitira, com subgrupos internos. 20 Historia da Danga no Ocidente Ponto de vista de filésofo e nao de historiador. 0 Ultimo deve tentar captar a dindmica da danca grega, sua elaborag4o original, sua evolugao em fungao das transformacées da cultura e do contexto sdcio-politi- co. A danga grega nasce em Creta Todas as narrativas lendérias gregas situam em Creta a origem de suas dancas e de sua arte lirica: foi na “ilha ascendente”, segundo o qualificativo de Ho- mero, que os deuses ensinaram a danga aos mortais, para que estes “os honrassem e se alegrassem”; 14 foram reunidos os primeiros “Tiases” (grupos de ce- lebrantes) em honra de Dionisio; la foram compostos os primeiros ditirambos (termo cuja origem parece bem pré-helénica); 14 nasceu o choros tragico e a pr6é- pria tragédia. Estes textos traduzem um fato atestado historicamente: para os imigrantes do Oriente Médio, Greta foi um ponto de parada precoce; por escolha, fixaram-se na ilha no terceiro milénio antes de Cristo, para depois se espalharem pela Grécia continental; também a partir dali estabeleceram contatos conti- nuos com os colonos jé estabelecidos no baixo Egito. ‘A partir de documentos que chegaram a nés, pode- mos acreditar que a danca tenha tido um papel impor- tante na cultura cretense: intervinha na liturgia oficial e também nos grandes atos da vida particular. No entanto, estes documentos nao so numerosos: cerca de doze, atualmente classificados, ¢ entre os quais os mais antigos datam de meados do segundo milénio antes de Cristo. O fato nao é surpreendente se nos lembrarmos que Creta por muitas vezes foi devastada A danga, dom dos Imortais 21 Por terremotos ¢€ invasdes antes desta época. Entre- tanto, sao documentos significativos. Creta herda tra- digées orquésticas que detectamos desde o inicio da hist6ria; aprimora-as e transmite aos gregos um mate- rial que estes transformarao completamente. Belos anéis de ouro encontrados nos timulos reais (Isopatta, Kalvya, perto de Phaistos) e afrescos em Cnossos mostram dangarinas girando sobre si’ mes- mas, ora com os joelhos flexionados, ora saltando. Um grupo de terracota, proveniente de Palaiakastro e con- servado no museu de Heraklion, apresenta trés mu- lheres dancando em roda enquanto uma quarta toca lira. Outro apresenta trés mulheres encapuzadas dan- cando em roda em torno de uma arvore. Estas dancas pertencem A tradicao religiosa original. Num sareé- fago encontrado em Agia Triada, um grupo de danga- rinas e um grupo de mulheres misicas figuram num cortejo funerdrio. _ = Omais interessante é constatar 0 uso freqiiente em Creta do gesto simbélico: a dangarina estende os bra- gos horizontalmente, quebra os antebragos na altura dos cotovelos e coloca-os em oposicao, um para o alto, ‘0 outro para baixo; no primeiro caso, a palma se abre em direcao ao céu, no outro, em diregdo a terra. E um festo reservado A danca: os adoradores cretenses apresentam-se com uma mao a altura do peito, a outra aberta para frente, sem diivida em diregao a divin- dade, normalmente representada com os bracos er- guidos, Observamos este gesto entre os egipcios, voltare- mos a encontré-lo entre os dangarinos dionisiacos — a cerdmica grega mostra-o até o inicio do século IV a.C. —e depois entre os etruscos. Atualmente, faz parte do material orquéstico dos dervixes, apds ter passado 22 Historia da Danga no Ocidente pela danca religiosa dos sufis, 0 sdma, associada & danga por giros. Perenidade surpreendente, Adanga grega, ato total Para os gregos, a danga era de esséncia religiosa, dom dos imortais e meio de comunicagao com eles. Os autores classicos afirmam-no: ordem e ritmo, caracte- risticas dos deuses, também so as da danga (Platao, Leis, Il). A orquéstica é a criagio direta da Musa com seu aspecto trinario: poesia, musica, movimento. Ea mousiké, é achoreia dos Tragicos Adanga é também “um meio excelente de ser agra- davel aos deuses e de honré-los” (Platao, Leis, VI). Esta presente na celebracao dos mistérios: “Nao ha iniciagdo sem danea” (Pseudo-Luciano,A dana). Dai os mitos narrados pelos autores gregos, se- gundo os quais os préprios deuses teriam ensinado a pratica da danga (0 que lembra a tradicao hindu): Réa revela-a aos Coribantes, Atena ensina a pirrica.. Enfim, a danga é divina porque da alegria. Um jogo de etimologia que os gregos adoravam: choros deriva- riadechora, aalegria. Para Sécrates, que praticava a memphis, a danga forma o cidadao completo: “Os que honram melhor os deuses pela danca sao também os melhores no com- bate” (Platao, Leis, VII). Para ele, adanca é um exercicio que “dé proporgdes corretas ao corpo”. E fonte de boa satide; os pitagéri- cos afirmam que ela “expulsa os maus humores da cabega” (Polidoro, Pitdgoras). Anacreonte diz numa cancao: “Quando um velho danca, conserva seus ca- belos de anciao, mas seu coragao é o de um joven”, — A danca, dom dos Imortais 23 A educagao concederd portanto muito espaco & danga. Em suas varias formas, a pirrica € a base da formacao fisica, da formacio militar. E também um treino para a reflexao estética e filosdfica. Isto é con- firmado por Platao (Leis, II): achoreia é uma educagao completa. Povo admiravel que nao separou 0 corpo do espi- rito, para quem 0 corpo também era um meio de con- quistar o equilibrio mental, o conhecimento, a sabe- doria. Dionisio, este deus multiplo Sob sua forma especifica, a danga dionisfaca é a danca mais antiga conhecida na Grécia. Provém do velho fundo neolitico, Sua evolugao ilustra de forma exemplar a evolugao de toda adanga, de todaa cultura grega. Dionisio é ainda um desconhecido: nem sua origem hem sua natureza sao conhecidas de forma indiscuti- vel. Até 0 inicio deste século, os eruditos viam nesta entidade um deus alégeno, importado do Oriente Préximo, mais precisamente da Frigia ou da Lidia. Seu proprio nome associava para eles uma raiz grega, di(F)o, a uma estrangeira, nusos, considerada como equivalente de kouros, ou seja, “jovem deus” ou “filho de deus”. Uma outra grafia, lida recentemente em duas tabu: thas de Minos, Di-wo-nu-so-jo, leva outros a acredita- tem ser Dionisio de origem grega. No entanto, se- gundo nossos conhecimentos atuais, ele néo aparece antes do século VII a.C. e, primeiramente, nos vasos Gorintios. A questao permanece aberta e é bastante Pr Histéria da Danga no Ocidente importante para se compreender bem a danca dioni- siaca (cf, Martin e Metzger, La religion grecque, PUF, 1976). Esta dualidade na origem de Dionisio é acompa- nhada por uma dualidade de sua natureza — que tal- vez.a explique. Por um lado, aparece como 0 deus do despertar primaveril da vegetacao e portanto como 0 deus da fertilidade-fecundidade: muitos dos ritos dionisiacos sao ritos agrarios e comportam a ostenta- cao do phallos. Por outro lado, é o deus do ubris, entusiasmo, embriaguez (em seu sentido material e espiritual), do transe, do éx-(es)tase. Deus do irracional, antinémico e complementar do luminoso Apolo, Dionisio representa uma corrente muito forte entre os gregos: seu culto impregna mui- tos outros. Podemos encontré-lo associado as praticas oraculares de Apolo em Delfos, aos ritos do deus cu- rador Asclépio, 4 celebragao dos mistérios de Eléu- sis. Os homens tém os deuses que merece! ubris, constante do espirito grego, é um contrapeso para 0 racionalismo rigido. Mas, como o irracional é a exalta- ao do individualismo, como toda sociedade quer su- bordinar os individualismos, 0 culto dionisiaco, em grande parte dangado, sera recuperado pelo sistema social. A principio danga sagrada, danca de loucura mis- tica, a danga dionisiaca tornar-se-d cerim6nia Tittrgica de forma fixa inscrita no calendario, depois ceriménia civil, antes de se tornar ato teatral e dissolver-se na danga de diversao. A lei universal da erosao do sa- grado verificar-se-4, como quando da passagem do paleolitico a época da producao. A dana, dom dos Imortais 25 Pugir para as montanhas Dionisio nao tinha 0 monopélio das dangas ditas orgidsticas que parecem caracterizar os cultos originé- tios do Oriente. Assim, os coribantes celebram Ci- hele, “a grande mae”, com gritos, movimentos vivos, ritmados pelo estalar dos crétalos e pelo rolar dos timpanos. Também 0s gales, outra confraria de danga- rinos especializados no culto de Adonis, deus oriental igualmente da fertilidade, festejam sua ressurreigao primaveril com passos precipitados, saltos, flexionar dos joelhos e de todo 0 corpo, chegando as vezes a um igraui de frenesi que os leva se cortarem para regar o al- tar com seu sangue. Apuleio descreve bem essas prati- tas em O Asno de Ouro ou as Metamorfoses (VII). Conhecemos o culto primitivo de Dionisio nao por documentos representando figuras da época — de fito, estas s6 aparecerao com os vasos corintios—, mas ‘por textos posteriores Era celebrado principalmente por mulheres pos- suidas pela mania, a loucura sagrada, donde seu nome, ménades. Elas abandonam suas casas, fogem para a floresta, para as montanhas: o oribasis. Entre- " fiim-se a dancas arrebatadas, cacam pequenos ani- ‘mais com as maos, sacrificam-nos, rasgando-os com os dedos — 0 diasparagmos, no qual é evidente a lem- branga dos sacrificios humanos —, e comem a carne a, 0 que 6 chamado omofagia (lembrem-se dos litos de Orfeu e Panteu). Na época histérica, em Esparta, essas praticas foram \bstituidas pelas festas de primavera de Artemis Ko- alia (de korythalis, ramo novo). Celebradas por lilheres fantasiadas de homens, que colocavam halloi postigos, sua correspondente na Lacénia eram 26 Historia da Danga no Ocidente os Brullikistai, ocasido de dangas frenéticas de mu- Theres disfarcadas de homens e vice-versa, com acompanhamento de cimbalos rituais; alguns desses instrumentos, com dedicatérias, foram encontrados nos santuarios de Artemis Limnati Podemos nos surpreender com o fato de a sabia Arte- mis apadrinhar cerimonias deste tipo. Mas é preciso observar que ela substituiu divindades locais louva- das desde os tempos mais antigos. Um processo de substituigéo pode ser constatado em toda parte; as novas religiées mudam o nome das divindades, mas conservam 0s costumes: quantas fontes “milagrosas”, louvadas desde os tempos mais antigos, acabaram tendo como padrinhos santos catélicos! Essas praticas de cultos foram representadas em vasos, nossa fonte principal de documentagao em forma de figuras, com freqiéncia esteriotipadas — e s cortejos dionisiacos. Ao redor de Dioni- 1ades sao acompanhadas por satiros, por ‘cos, lembranca das representagdes que encontramos na época pré-historica. Vestidas de ne- bride — pele de corca — ou de pardalide —pele de pantera — sobre 0 chiton, levam 0 tirso, bastao enci- mado por uma pinha, ou a férula, canigo ornado com um buqué de folhas e flores, ou ainda instrumentos de percussao, crétalos e tamborins principalmente. Suas dangas — pois quase sempre esto representadas em movimentos de danga — sao formadas por movimen- tos vivos: passos corridos ou escorregados, bragos es- tendidos, com maior freqiiéncia em oposigao, salto: com as pernas esticadas ou nao, torso, pescogo e ca- bega jogados para tras, seu gesto tipico (“o revirar que tritura as nucas”, notava Pindaro), $6 podemos pensar no revirar das dancas egipcias. Recusar-nos-emos, en- 7 v q Adanca, dom dos Imortais 27 tretanto, a tentar a reconstituigao do “passo das ména- des”, propostopor Louis Séchan emLa danse grecque antique e idealizado a partir de movimentos inspira- dos em diferentes vasos: ele descreve uma sucessao de passos corridos, de um grand jeté no lugar, bracos estendidos em oposigao, o busto inclinado. E um en- cadeamento interessante, mas com um tanto de in- vengao. A partir do século VII a.C., 0 culto de Dionisio tornou-se uma liturgia. Antes de mais nada, liturgia agraria, em Atenas. O deus é representado por uma Grvore ou um tronco de madeira onde se penduram Vestes, mascaras; as pessoas vio em procissio, em sua direcao, levando o phallus e sacrificios. S40 as Dioni- iacas dos campos, que acontecem no inicio do ou- tono. No calendério litirgico de Atenas, figuravam, a se- guir, as Leneanas em janeiro, as Antestérias em feve- reiro-marco: trés dias de festa que associavam a be- bida e a homenagem aos mortos — possivel contami- nagao com um culto ctoniano do deus. No calendario agricola, esta festa marca o inicio do periodo em que se trabalha nos vinhedos. Em marco-abril, eram celebradas as grandes Dioni- siacas: a efigie do deus era tirada de seu templo e as pessoas levavam-na em procissao ao teatro no flanco da Acrépole, onde, durante dois dias, organizavam-se concursos de ditirambo e, depois, trés dias de concur- $08 dramaticos, com coros dangados. Das ménades a Euriy O ditirambo, hino cantado e dangado em honra de Dionisio, chegou a sua forma final por volta do século 28 Historia da Danga no Ocidente VI antes de nossa era. Muitos helenistas, assim como Aristételes, consideram-noo germe da tragédia grega. Oditirambo,um género “recuperado” Mas 0 ditirambo nem sempre foi um género tio moderado. Parece que, em sua origem, foi um inter- mediario entre a loucura sagrada das ménades e a ceriménia civica. Sua evolugao é um bom exemplo da “recuperacao” pela comunidade das praticas cultuais que levavam ao transe individual e também uma boa ilustragao da lei universal da erosdo do sagrado. Dois elementos permitem que tenhamos uma idéia, sem dtvida préxima da realidade, do que era o diti- rambo primitive, Num distico — um dos raros frag- mentos conservados de uma obra que parece ter sido importante —, Arquiléquio de Paros, poeta e merce- nario que viveu no inicio do século VII a.C., vanglo- se de saber “entonar bem o belo canto do senhor Dionisio, o ditirambo, fulminado no coragao por um bom gole de vinho” (Jeanmaire, Dionysos, Pai 1970, pp. 235 ss.). Por outro lado, existia em Atenas, segundo o testemunho de Deméstenes, uma confraria dos iobacchoi, cujo nome indica sua fungao: nas ceri ménias, esses “bacantes” soltavam gritos rituais, and- logos aos “iu-iu” arabes e que foram traduzidos pelo Evohé biquico. Pode-se considerar que o ditirambo primitivo era uma roda em torno de um coro, que devia contar com cinqiienta participantes rodando em volta de um altar de Dionisio, sobre 0 qual era celebrado um sacrificio sangrento, lembranga da omofagia das ménades; lembranga também, atenuada, dos sacrificios huma- nos que, na época mais antiga, eram sem diivida ofe- A danca, dom dos Imortais 29 recidos ao deus: é preciso mencionar que, ainda no século IV a.C., uma crianca era sacrificada e comida titualmente num culto no monte Liceu, na Arcddia, para celebrar Dionfsio; um dos qualificativos desta divindade era “comedor de carne crua”. O chefe do coro, 0 exarchén, lancava uma invoca- (ao, sem dtivida em alguns versos improvisados, os dangarinos respondiam por gritos rituais, tudo du- rante a ceriménia que, preparada por “um bom gole de vinho”, levava os participantes a um estado pré- ximo do transe. Podemos nos reportar ao exemplo ainda atual das ceriménias de seitas mugulmanas ou africanas. Em Corinto, no século VI a.C., as invocagées e gri- tos cederam lugar a um poema composto com antece- déncia, cantado alternadamente pelo exarchén e pelos dangarinos. Arion teria sido 0 autor do primeiro poema ditirambico. Transplantado para Esparta, para Atenas e para outras cidades, o ditirambo tormou-se um género poético praticado por grandes autores como Pindaro, sendo sempre, contudo, cantado e dan- gado em roda ao redor de um altar de Dionisio. O costume da roda poderia explicar igualmente a forma circular da orchestra nos teatros gregos primitivos. Logo o ditirambo tornou-se o motivo para um destes concursos de que os gregos tanto gostavam. No século IV a.C., 0 ditirambo perdeu seu sentido religioso e passou a ser um simples concurso coral em que eram celebrados os deuses e 0s heréis. O coro da tragédia Desenvolvido o papel do exarchén, colocado nao a cabeca do conjunto, mas diante dele, travando um 30 Hist6ria da Danga no Ocidente didlogo com ele, sendo duplicado, triplicado por per- sonagens cujo destino se cantava, eis que nasce a tragédia. Sabemos que seu iniciador, Tespis, s6 uti- lizava um ator. “Esquilo, oprimeiro, aumentou de um para dois o nimero de atores, diminuiu a importancia do coro e atribuiu o papel principal ao didlogo”, afirma Aristételes (Poética, 1449 a). Séfocles utiliza trés atores, Euripedes até oito. Ao mesmo tempo, o mimero de participantes do coro baixa de cingiienta (0 do ditirambo) para quinze (cf. J. de Romilly, La tragé- die grecque, PUF, 1973). No século IV a.C., 0 coro desaparecera. E preciso sublinhar a importancia do papel do coro na tragédia classica. O coro entrava pelo lado direito, 0 parodos, desfi- lava em um retingulo de trés filas e cinco linhas, em Euripedes, os melhores dangarinos na fila da direita, do lado do piblico. Cantava e dancava na propria métrica dos versos que lhe eram confiados, Com fre- qiéncia, a métrica anapéstica (VU —) marcava a inter- vengao do coreuta, que dava o sinal para os cantos e para as dangas, como no ditirambo. Outra possibili- dade: apenas os dangarinos figuravam na orchestra, cantores e misicos sustentando-os em voz em off. Eo que era chamado hiporquema, utilizado sobretudo para movimentos vivos em que os coristas néo po- diam, fisiologicamente, cantar e dancar ao mesmo tempo. O coro executava trés ou quatro entreatos liri- co-coreogrificos (que lembram os “‘divertimentos” de nossas Operas) entre os episédios dramaticos. Os con- juntospodiam intercalar solos, duos e trios. Ao final da aco, o coro saia pelo lado esquerdo, oexodos. Os autores tragicos eram encarregados de organizar ou, ao menos, de supervisionar as agdes do coro. Es- Adanga, dom dos Imortais 31 quilo estipulava suas préprias coreografias; $6focles chegou a dangar no papel de Nausicaa. O coro da comédia ‘Um espago maior e mais livre era dado, na comédia, a aco do coro, formado, em principio, por vinte e quatro membros, organizados em quatro filas de seis ou seis filas de quatro. Num trecho especial, apara- base, 0 coro podia interpelar diretamente 0 publico em nome do autor. A forma de entrada variava: uma carga para os Cava- leiros de Arist6fanes, giros para A Paz, um combate para Liststrata... A forma do exodos era com freqiién- cia a de uma parada baquica e burlesca. Destaca-se a das Vespas,,com os trés filhos de Carchinos em papéis acrobaticos. A danga da comédia, a cordar, era mais movimen- tada que a da tragédia, que lembrava principalmente a emelia. Caracterizava-se por ondulacées dos quadris, que podiam lembrar a danga do ventre, pelo busto quebrado paraa frente, por saltos. Ocoro satirico Ainda mais movimentado que o da comédia, 0 coro Satirico, composto por cinco filas de trés, transfor- mou-se pouco a pouco em farsa, em commedia dell’arte. Sua danga chamava-se sikinnis. Da danga sagrada da mania a esta bufonaria bas- tante ousada, passando pela liturgia agraria, pela festa civica e pela peca de teatro, completa-se 0 circuito de ferosio do sagrado. 32 Historia da Danga no Ocidente As transformagées da pirrica As dangas guerreiras existem desde a época neoli- tica, e voltamos a encontra-las na Grécia. Cronologi- camente, manifestam-se primeiramente em Creta, depois no Peloponeso, principalmente em Esparta; s6 chegam a Atenas no século VI a.C. Sabemos que as migragdes que partiram do Cres- cente fértil chegaram em primeiro lugar a Creta e depois a regiao de Micenas. Deve-se concluir que as dangas guerreiras sao um ritual importado que foi modificado em suas formas mais do que em sua essén- cia durante a evolugao cultural da Grécia? E uma hipétese bem verossimil, mas ainda nao suficiente- mente confirmada no estado atual de nossos conheci- mento: A danga nacional por exceléncia de Esparta era a pirrica, considerada como um elemento essencial da educagao geral e como uma preparagao militar, além de ter uma fungao religiosa, cujo sentido obliterou-se gradualmente. As criangas aprendiam-na desde os cinco anos (Platao, Leis, XIV). O aprendizado, sob a diregio dohoplomachos (o combatente sob as armas), compreendia exercicios preparatorios de flexibili- dade, chegando o aprendiz até a ter de jogar 0 corpo para tras e alcangar os tornozelos com as maos. Em seguida, ensinava-se a quironomia (porte de bragos e mios), simulacro dos gestos do combate. Tratava-se de uma verdadeira danga, pois todos os movimentos eram encadeados por um ritmo dado pelo tocador de flauta dupla, oaulos. Os vasos nos mostram centenas de exemplos destes exercicios. Uma variedade da pirrica, aembateria, era 0 passo de ataque oficial da falange lacedemoniana. Era es- Adanga, dom dos Imortais 33, candida pelo aulos num ritmo anapéstico e acompa- nhada por cantos de circunstancia. Ateneu (O Ban- quete dos Sabios, XIV) conservou para nés um frag- mento do célebre poeta manco, Tirteu: “Vamos, criangas de Esparta, que a danga do ataque celebre Ares”. No plano das festas civico-religiosas, a pirrica era dangada para 0 culto de Didscuros e durante as Gim- nopedias, celebracéo muito solene, executada por dangarinos nus, conduzidos por um coreuta coroado de palmas, no ritmo lento de um pea (Ateneu, op. cit., XV), na parte da agora chamadachoros. Também em Atenas a pirrica era considerada trei- namento fisico e preparacao militar, “a danga guer- reira por exceléncia” (Platao, Leis, VIL). Os pirriquistas participavam dos cortejos das pe- quenas e das grandes Panatenéias. Eram divididos em trés coros — adultos, efebos e criancas —, cada um formado por dois grupos de “inimigos” de oito danga- tinos, no total um conjunto de quarenta e oito. Como 08 coros tragicos, seu recrutamento, treinamento e Apresentacao ficavam a cargo de cidadaos ricos, que tinham o titulo de coregos. O orador Lisias (XXI, 4) fonta-nos que o custo de um tnico coro de efebos chegava a 7 minas (uma mina: 436 gramas de ouro). Os pirriquistas concorriam entre si. Prémio para 0 me classificado: um boi no valor de 100 dracmas uma dracma: cerca de 4 gramas de prata), destinado AO sacrificio. Um baixo-relevo, encontrado no flanco da Acré- pole, representa oito pirriquistas vencedores e seu torego. Certos pesquisadores reconheceram pirri- (uistas no friso do Partenon. 34 Hist6ria da Danga no Ocidente ‘A pirrica degenerara como a danga dionisiaca: de rito litargico, de rito civico, passara a ser danga de representacao. A evolugao deve ter sido rapida. Ja Xenofonte descreve (Anabase, IV) pirricas dangadas como brincadeiras, nos intermédios dos banquetes: um pirriquista, um escudo em cada brago, simula pa- radas contra adversarios que vém, cada um de um lado, dando voltas, giros; termina por um giro seguido \ de um roulé-boulé. Em outro trecho, o autor descreve um véo simulado, seguido por uma perseguigao e por um combate entre um lavrador e um malfeitor. As dangas folelricas de Creta e da Lac6nia, onde ainda se pratica o pyrrhichis, conservam a lembranga da pirrica. Seu ritmo em trés tempos e seus saltos lembram abourrée, tradicional do Auvergne. Daneas de culto e de festas Nao se pode falar de uma danca religiosa pan-helé- nica. Cada deus tinha seu rito préprio com variantes locais muito importantes, porque as varias cidades queriam preservar zelosamente sua cultura original. E preciso acrescentar a esta nogao que, em muitos i casos, um culto antigo fora recoberto por um novo, mas conservando elementos mais ou menos importan- tes. | Em Esparta, celebravam-se as Hiakynthia (Ateneu, ! op.cit., IV), onde, segundo os fragmentos de texto que chegaram a nés, ritmos lentos e dancas de jovens em tempos répidos sucediam-se as dangas antigas. Em Delos, lugar lendério do nascimento de Apolo, sede de uma confederacio dominada por Atenas, | onde “todos os sacrificios eram celebrados com dan- i gas e mtisica” (Pseudo-Luciano), um colégio de vir- A danca, dom dos Imortais 35 gens sacerdotisas tinha a fungao de celebrar um culto dangado ao redor do altar de Apolo. A ceriménia acon- tecia a noite, A luz de archotes, acompanhada por peas e cantos hiporquemiticos. Era celebrada segundo o calendario litirgico ou a pedido de devotos particula- res que davam uma contribuicio, Todavia, a mais célebre das ceriménias de Delos era a danca do geranos (0 grou). Segundo a tradi¢ao, havia sido inventada por Teseu, vencedor do Mino- tauro, e pelos sete rapazes e sete mogas de Atenas que salvara. Era celebrada em julho. Podia apresentar-se como uma danga em fileira de rapazes e mocas intercalados e que se davam as maos: uma espécie de farandola, cujas ondulagées evoca- yam o entrelagado do labirinto. Um bom exemplo é fornecido pelo “vaso Frangois” (museu de arqueolo- fia de Florenca). Ainda com maior freqiiéncia, os par- ticipantes eram colocados em duas fileiras que forma- vam um V, como num véo de grous. O geranos era dangado a luz de archotes ao redor niio do altar de Apolo, como seria normal, mas do de Afrodite, omado com chifres de touro e, por este mo- tivo, chamado keraton. Originalmente, Afrodite era uma deusa da fertili- dade vinda do Oriente; 0 culto do touro, do bucranio, era comum naquela regiao; finalmente, a tradi¢éo atribuia a origem do geranos a Creta. Encontramo- Nos, portanto, diante de uma estratificagao tipica dos Intercambios culturais que, durante milénios, produ- Ziram-se no cadinho da bacia mediterranica. Acrescentemos que a danca em fila em que os parti- ipantes se ligam por um lengo, um pedaco de tecido, im ramo ou uma coroa era muito difundida na Grécia itiga € continuou através dos séculos, como teste- 36 Histéria da Danga no Ocidente munham os ortostatos da época helenistica, descober- tos recentemente na Anatolia, e o registro das danca- rinas sobre o pedestal do obelisco de Teodésio, em Istambul. Atualmente, a danga popular do kalaman- tianos representa sua sobrevivéncia. As Partenéias (yartena: jovem) eram muito difuny didas por toda a Grécia. JA no século VI a.C., Safo cantava-as. Voltamos a encontra-las em Creta, em Ar- gos, por ocasiao das festas de Hera Antéia, em Tirinto eaté na Grande Grécia. Estao geralmente associadas a um culto floral primaveril. Mas, quanto a um tema mais particular, podemos ver no Louvre o baixo-rele- vo chamado “as dancarinas Borghese”. Representa a danga das ergastinas, jovens de Atenas encarregadas de fiar e tecer a 1a para o peplos oferecido a Atenas durante as Panatenéias, Caminham dancando, carre- gando corbelhas, onde se encontra ala necessaria para 0 seu trabalho, com a efigie da coruja, passaro dedi- cado a deusa (ergon: trabalho). Em Karyai, lugar de culto nos confins da Arcédia e da Lacénia, consagrado a Artemis Karyatis e as ninfas, as mogas das grandes familias de Esparta traziam, sobre a cabega, em procissao, oferendas em cestos de vime. Estes cestos trangados foram substituidos por diademas feitos de folhas trancadas e entrelacadas. Vestidas com um chiton a altura dos joelhos e preso ao corpo por um cinto, elas tragam turbilhdes em meia ponta, maos no peito ou bragos estendidos. Um ex-voto em Delfos apresenta trés mogas de Ka- ryai (karyatides), encostadas no topo de um fuste. Este monumento mostra a passagem para um motivo estereotipado de arquitetura, em que cabecas de mu- lheres, portando amplos enfeites, sustentam um enta- blamento. As mais conhecidas sao as cinco (uma foi A danga, dom dos Imortais 37 ‘reconstituida) cariatides no pértico do Erechthéion, ha Acrépole de Atenas. Dangas da vida cotidiana A danga intervinha em todos os momentos da vida dos gregos, do nascimento a morte. Encontramos por- anto: —dangas de nascimento e pés-parto; ignoramos sua ‘Natureza, mas nio ha diividas de que existiram; sabe- mos até que as dangarinas recebiam como agradeci- nento paezinhos redondos de milho temperados com raos de sésamo; — dangas que celebram a passagem dos efebos A eategoria de cidadaos; ignoramos sua forma, se é que tiveram uma forma fixa; | —dancas nupciais celebradas em dois tempos, na ‘Aoite das nipcias e no dia seguinte pela manha, sompanhadas por cantos de himeneu; a noite, dan- ‘gava-se diante da porta dos recém-casados, cantando- se 0 epitalamio (epithalamion: cangao do leito); temos uitos textos célebres a respeito deste assunto; pela manha cantava-se e dangava-se uma alvorada diante aporta; _ —dangas de banquetes, executadas com maior fre- qiiéncia por uma dancarina profissional, acompa- la por uma tocadora de aulos ; eram dangas provo- tes, que a dangarina acompanhava com o estalarde erdtalos e por dangas acrobaticas. Xenofonte (Ban- ‘ete, II) descreve o mecanismo; a kubistésis, ances- tral do salto mortal, também era praticada como atra- ao entre os pratos: um salto sobre as maos, cabeca jogada para frente, o executante recai sobre os pés ou ‘completa uma volta ou, ainda, permanece equilibrado 38 Historia da Danga no Ocidente sobre as maos e, com os pés, esboca passos de danga ou apanha objetos; por vezes, os acrobatas executa- vam um salto mortal passando por arcos recobertos de laminas —mas isto ja nao se trata de danca. Técnica da danga grega - Dispomos de trés tipos de fontes para tentar conhe- cer a técnica, ou as técnicas, de danga dos grego: — os textos de autores antigos; nesse caso, as infor- magées sao fragmentarias ou alusivas; para exploré-las em profundidade, seria preciso elaborar e analisar, através da informatica, um glossario de todos os ter- mos empregados para designar as dancas; — os documentos representados e, principalmente, as milhares de figuras orquésticas nos vasos; mas seria necessario possuir um repertério exaustivo e poder compari-los; —os escritos dos comentadores do baixo periodo, como Ateneu; eles nos formecem muitas informacées, mas s6 podemos aceité-las se lembrarmos que escre- yeram muito tempo depois do desabrochar das técni- cas de danga que descreviam; assim, Ateneu com- punha na primeira metade do século III a.C.; sem davida, a tradigao que nos narra é modificada pelo que via, principalmente pela importincia da mimica em seu tempo. Assim mesmo, temos algumas certezas: —os gregos usavam a meia-ponta, mantida com firmeza e, por vezes, tao préxima da ponta, que o escultor da dancarina do Efeso representa-a na ponta, © que contradiz o estudo anatémico de seu movi- mento; —o8 gregos procuravam a harmonia da simetria A danga, dom dos Imortais 39 1 ‘pelo uso sistemético da oposigao lateral dos membros semelhante & nossa), mesmo nas figuras das cenas dionisiacas; mas é um equilibrio natural; —finalmente, os gregos apresentavam muito 0 que joderiamos chamar de atitude arriére basse: 0 pé de ris esté colocado na altura do inicio do jarrete; em uma, um excelente instantAneo de um tempo de cor- rida leve; este movimento foi muito reproduzido pelos romanos, que nele viam o gesto esteredtipo da danga; é a posicao mais comum nas estatuetas galo- romanas que representam dangarinos; esta moda che- gou ands: o Génio da Bastilha esta em posigaoarriére asse. Observaremos que os comentadores nao nos deixa- ain qualquer lista de passos. Como um passo poderia codificado e ensinado sem ter um nome? Este léncio de autores, no entanto muito sistematicos, eva a pensar que a danca era bastante livre entre os egos dentro de uma mimica e de géneros impostos. _As listas dos comentadores concernem, de fato, fipenas aos gestos miméticos — schemata — e movi- entos significativos — phorai —, considerados nao partir de sua execucao muscular, mas catalogados 10 meios de expressao. Assim, no que se refere as Mifios, encontramos, por exemplo: maos estendidas voltadas para o céu = gesto do suplicante, maos es- ndidas diante do espectador = apéstrofe ao publico, nios estendidas horizontalmente ao chao = gesto de fisteza. Trata-se de um repertério de gestos conven- onais, como por exemplo o de Bharatha Natyam. vontade de mimica expressiva se encontra em ata como: scopos (gesto do observador, do es- ); xiphirmos (gesto de apontar a arma); morphas- 08 (gesto de imitagao de animais). 40 Historia da Danca no Ocidente Esta tendéncia pode ser encontrada ainda em cerca de duzentos nomes de danga que chegaram a nos: alétés (a corrida), deinos (turbilhao).themmaustris (as tenazes), ou seja, um passo em que os tornozelos se entrechocam como na mourisca da ldade Média, aul umentrechat. 2 Encontramos até danas destinadas a imitaranimais determinados e que levam seu nome — danga do mocho (scops), da coruja (glaux) — ou a imitar os homens em alguma posicao definida — gypones (an- cidos apoiados em bengalas A danga entre os etruscos Nao conhecemos a danga etrusca através de textos, mas somente por representacdes, a maioria encon- trada em ttimulos. Devemos examina-las com precau- cdo, pois a influéncia grega foi precoce na Etriria— desde o século VII a.C. — e muito profunda. E por- tanto possivel que os documentos reproduzam arqué- tipos helénicos e também que tenha havido Contant nacao na inspiragao dos artistas entre a lembranga destes arquétipos ea sua cultura autéctone. — Esta influéncia foi sentida como ainda mais natural por terem 0s etruscos, ao menos em sua maioria, vindo do Oriente mediterrnico e por terem um velho fundo cultural comum com os gregos. ; Nao é surpreendente, portanto, encontrarmos, antes de mais nada, a danga guerreira entre os etrus- cos. Em seguida, esta danga foi introduzida em ua onde a veremos com os salianos durante 0 reinado de Numa, rei-sacerdote etrusco. ‘A maioria dos documentos mostram-nos dangas dionisiacas. O cémos (cortejo) do deus geralmente A danga, dom dos Imortais 4l iio é representado. Mas as ménades —algumas como quebrado de nuca caracteristico — e as silenes sao _ tomuns. Suas dangas parecem de tempo rapido, rit- madas normalmente por crétalos. Os instrumentos de Acompanhamento eram o aulos ea lira. Foram encon- tradas pinturas caracteristicas nas paredes dos tamu- los ditos “das Leoas” e “do Banquete”. No primeiro, observamos uma dancarina que estende 0 braco di- feito na horizontal, antebrago ereto e palma da mao _ liberta para o alto; 0 brago esquerdo est na mesma _ Posigdo, mas 0 antebraco e a mao, palma aberta, estio Yoltados para baixo. Na segunda, um dangarino man- tém os bracos horizontais, mas os antebragos estao erguidos; as maos estao abertas em oposigdo, como na figura precedente. Ja havia se encontrado com fre- qliéncia este gesto de quironomia. Com certeza, tinha tum sentido. Mas qual? Adanga entre os romanos Na longa histéria dos romanos, trés perfodos podem Her destacados no que se refere 4 danga: Reis, Repi- Hlica e Império. Sob os Reis, do século VIII ao século VI a.C., como Homa era dominada pelos etruscos, foram introduzi- (las, assim como a maioria dos ritos religiosos, dancas le origem agréria, mas cujo sentido original ja se hiavia perdido: rito dos lupercos, dos arvales, dos sa- anos, O ltimo é o mais facil de decifrar. __ Os autores latinos, principalmente Ovidio Fastos, ), narram com detalhes os costumes dos salianos. Os {tos consistiam em dangas guerreiras, celebradas com enos énfase em outubro e mais amplamente na pri- lvera, em honra de Marte (os romanos consagravam 42 Historia da Danga no Ocidente a Marte o més do nascimento da primavera). A cele- bragdo comegava no primeiro dia do més, quando 0 colégio de doze sacerdotes salianos ia a ciria de Marte, no Palatino, para executar um sacrificio ritual e lapegaras lancas e os doze escudos sagrados (ancl). (Alenda contava que umancile havia caido do cét aos pés de Numa; era a garantia da perenidade de Roma; para diminuir o risco de roubo, doze escudos seme- lhantes haviam sido fabricados.) Sua procissao e suas dangas s6 comegavam, porém, no nono dia do més (0 calendario littirgico de Roma indica nesta dataancilia ‘mouent) para durarem, ao que parece, dez dias. Se- guiam um itinerario obrigatério, pontuado por etapas diarias, por sua vez divididas em pontos de parada. Em cada uma delas, ao redor de um altar, onde era celebrado um sacrificio, 0 chefe do colégio, opraesul (0 que danca primeiro), dancava em solo e cantava 0 hino saliano, uma espécie de litania em versos satur- nianos, cujos fragmentos conservados ja eram ininte- ligiveis sob o Império. O grupo de juniores dancavae cantava em seguida, depois os seniores e finalmente todos juntos. Sua danca era um tripudium — danga em trés tem- pos — que escandiam cantando, mas sobretudo ba- tendo em seus escudos com suas langas. Era um costume muito antigo: os coreutas gregos procediam da mesma forma para chamar a atencao de Zeus. Acreditava-se — e ainda se acredita, vide 0 emprego dos sinos em caso de tempestade — que 0 som do bronze afastava os “espiritos” maus. Completada a jornada diéria, os salianos retiravam- se para uma mansio proxima para repousar apés um banquete, cuja qualidade gastronémica era famosa (Cicero, Ad familiares, VI; Horacio, Odes, II; Apuleio A danga, dom dos Imortais 43 diz a respeito de um cavalo por demais bem nutrido: "“Poderiamos dizer que jantou como os salianos”). O colégio dos salianos, assim como todos 0s outros grandes colégios sacerdotais, prosseguiu suas ativi- dades até o fim do Império, mas esquecendo comple- amente o sentido dos ritos que conservava. Segundo Tito Livio (VII, 2), desde 390 a.C., his- trides etruscos participavam dos jogos cénicos. Desde 0 inicio da Republica, a influéncia helenis- tica em matéria de orquéstica foi preponderante em Roma. As origens religiosas das dangas haviam sido completamente esquecidas; estas passaram a ser ape- Mas uma arte de recreagao. Daf a hostilidade de esta- distas como Cipiao Emiliano, que mandou fechar as escolas onde os ludi saltatorii gregos ensinavam as criangas de boas familias. Também Cicero qualifica a danga de ministra uoluptatis. Mas subsistiam as dan- jas tradicionais da velha cultura romana, a dos bufoes quando das ceriménias triunfais, as das obséquias de {ytandes personalidades e as das ceriménias nupciais. Durante o Império, a danga voltou a moda; era pra- ada até por mulheres das classes altas. Mas triunfou uulmente nos jogos de circo (em alguns momentos do perio, contava-se até cento e trinta e cinco dias de 0s gratuitos porano). Mandava-se buscar pirriquis- da Jonia. A pantomima dangada era muito apre- jnda. Dois dancarinos de origem grega foram muito lebres naquela época (Ateneu, op. cit., I): Batilo, 44 Histéria da Danga no Ocidente Da mesma forma, as dancas de banquete eram mais dadas a indecéncia do que a orquéstica. Eram execu- tadas principalmente por cortesas, a maior parte de origem siria ou africana. Podemos constaté-lo na pin- tura de Pompéia no museu de Napoles, que repre- senta uma dangarina nua, e também no relato de Ta- cito (Annales, XI) de uma danga hibrica das vindimas, executada por Messalina e seus companheiros de de- vassidio. Eis-nos bem afastados do culto original de Dionisio, deus da fertilidade, e é possivel compreender os ana- temas langados contra a danca pelos Pais da Igreja, anatemas cujo peso sera sentido durante toda a Idade Média. = Capitulo 3 A Idade Média inventa aretorica do corpo A danga na igreja— A idade de ouro da estampie—A danga macabra da Guerra dos Cem Anos —Momos e entremezes Definitivamente, além da magnifica cunhagem de moedas, conhecemos muito pouco a respeito da cul- tura gaulesa. A tnica alusdo a danga gaulesa atual- mente reconhecida é encontrada em duas moedas de ouro, cunhadas no século II antes de nossa era pelos namnetas; no reverso de cada moeda, 0 tipo de danga- rino que encontramos com freqiiéncia nas civilizagoes mediterranicas: joelhos flexionados, bragos em opo: gio, uma palma em direcdo ao céu, outra a terra. Ou- tras moedas, provenientes do povo de Veliocasses, poderiam ser interpretadas como apresentando um gesto parecido, mas a leitura nao é tao evidente. Essas moedas sao conservadas no gabinete de medalhas da Biblioteca Nacional de Paris (inv. n.°s 6721 e 6722). Por maior que seja o interesse dessas moedas, seria bem imprudente concluir que a danga que represen- tam era a danca gaulesa. Em primeiro lugar, so um testemunho tinico e portanto insuficiente. Por outro lado, como as partes de cima das moedas sao a repro- dugao de um tipo grego, nada nos garante que o re- Verso também nao seja uma reprodugao de um tema nao autéctone. 46 Historia da Danga no Ocidente Estamos mais bem informados sobre o periodo ga- Jo-romano. Podemos constatar a assimilagao répida, ao menos nas cidades, da cultura romana, a ponto de os galo-romanos se situarem entre os tiltimos escritores adequados da literatura romana. on No campo da danga, os bronzes orquésticos galo- romanos que conhecemos apenas reproduzem arqué- tipos romanos. Ora, so as tmicas evidéncias sobre a danca deste periodo; mostram que a Galia romana é uma continuagao de Roma, Podemos destacar as mi- niaturas em bronze encontradas em Neuvy-en-Sullas e conservadas no museu de Orléans: nao que nos mostrem algo sobre a técnica orquéstica desta época, mas sua propria rusticidade demonstra que a danga era conhecida fora das classes privilegiadas social ou geograficamente, o Orléanais tendo sido uma das re- gides menos marcadas pela influéncia romana. Um célice gravado, encontrado na necrépole de Stephansfeld-Brumath (no museu de Strasbourg), evoca uma roda popular. Também nada sabemos sobre a danca na alta Idade Média, exceto — 0 que é importante — que havia assumido novamente um papel quase paralitdrgico. Dancar na igreja apesar da Igreja ‘As modalidades dos oficios religiosos catélicos pre- cisaram-se pouco a pouco, principalmente sob a in- fluéncia dos costumes monisticos, até as codificagoes do papa Gregorio, o Grande (fim do século VI). Ainda se sobrepunham a costumes locais muito enraizados, que levavam em conta as tradigoes pagis. A danga religiosa da Idade Média era uma heranca popular que nunca deixou de ser suspeita para as autoridades Aldade Média earetoricado corpo 47 eclesiasticas. E também verdade que, pormanifestara " espontaneidade individualista, a danga nao se en- quadra de forma nenhuma nos cinones. Assim, os testemunhos mais interessantes sobre a danga religiosa na Idade Média sao, antes de mais nada, os interditos que nao cessaram de atingi-la. O mais antigo é o do concilio de Vannes, em 465, Entre 05 andtemas que se sucederam, podemos destacar 0s do concilio de Toledo em 587, o decretal do papa Zacarias em 774 contra os “movimentos indecentes da danga ou carola”, a homilia do papa Ledo V que con- denava, em 847, “os cantos e carolas das mulheres na igreja”. No final do século XIL, as constituigdes sino- dais do bispo de Paris, Odon (Constitution, 36), pres- crevem ao clérigo que proiba os choreae, “principal- mente em trés lugares: nas igrejas, nos cemitérios e nas procissées”. Serao retomadas pelas instrugdes de Gerson (De visitatione prelatorum): “se os leigos e ulheres entrarem no coro e trouxerem carolas aos lugares sagrados”. Em 1209, o concilio de Avignon decreta (Atos, V): “Durante a vigilia dos santos, nao deve haver nas igrejas espeticulos de dana ou de earolas”. Em 1444, a Sorbonne, por sua vez, declara: “Nao é permitido dangar carolas nas igrejas durante a elebracao do servigo divino”. Em 1562, em sua reor- mizagao da Igreja, 0 concilio de Trento sente-se rigado a adotar estas regras. A persisténcia das condenagées prova a persistén- dos costumes. Por outro lado, parece que as formu- Ges do concilio de Avignon e da Sorbonne indicam ie 0 habito de dancar é permitido fora dos oficios e algumas datas. Mas conhecemos manifestagdes de danca 4 margem stas proibicdes: a Chronique de saint Martial, de 48 Historia da Danga no Ocidente Limoges, indica a organizagao de uma chorea em 1205, depois em 1215, quando da partida dos Cruza- dos (“Dangou-se a carola e a alegria foi grande”), e, enfim, em 1278. A chorea é a carola, a roda. Temos aindaacarola em Sens, nanoite de Pascoa, ao redor do pogo do claustro: sob a diregao do arcebispo, os digna- tarios do cabido dangavam, intercalando-se com as criancas do coro. O Padre Claude-Frangois Ménétrier (Des. ballets anciens et modernes selon les regles du théatre, Paris, René Guignard, 1657) observa que este costume era generalizado e que prosseguiu: “Ainda vi em algumas igrejas, no dia da Pascoa, os cénegos tomarem as criangas do coro pela mao e cantarem hinos de regozijo, dangando pela igreja”. O que dangavam? Vimos que dangavam a chorea, que era a danga de roda fechada ou aberta, muito praticada, sob o nome de carola, na Idade Média até o século XIII inclusive, e 0 tripudium, uma danga em trés tempos, na qual os executantes nao se tocavam; na carola davam-se as mos ou se seguravam pelo ante- brago. Otripudium é confirmado nos repertorios musicais litirgicos como as coletaneas de conduits de Notre- Dame de Paris. Jean Beleth, antigo reitor da Sorbonne, dignatario do cabido de Amiens, escreve em seu Rationale (fim do século XII) que, apés as vésperas de Natal, “os didconos se reinem em um tripudium e cantam 0 Magnificat”. Dancavam nao somente ao som dos tropos, con- duits ow rondés latinos, mas também ao som do canto comum, o gregoriano. Outro testemunho: um manus- crito da catedral de Sens mostra a partitura de uma danca que, segundo os estatutos do cabido, deveria 7 Aldade Médiaearetéricado corpo 49 ser executada pelo prechantre duas vezes por ano. Sobre as vocalises acrescentadas aos responsos do dia, as notas do gregoriano estéo marcadas por sinais Pouco comuns, que poderiam bem ser anotagées co- reograficas, tendo até a mengao Ariére, pauta de mu- sica colocada ulteriormente” (J. Chailley, “Un docu- Ment nouveau sur la danse ecclésiastique”, in Bulle- tin de la Société internationale de musicologie, vol. XXI, 1949). _Existiam, ao menos em parte, dramas ou acées litir- gicas dangadas? E possivel, mas nao certo. Um brevia- tio de Rouen, datado do século XII, descreve um drama representado no coro da catedral por ocasiao do Natal; comporta rubricas que indicam uma acdo, com deslocamento de grupos de atores, pastores e anjos. Papéis desempenhados pelos cénegos e pelas crian- gas do coro. Sem dtivida, esses deslocamentos aconte- ciam num certo ritmo, mas seria precipitado falar em danga coral. Quanto ao folclore, lembremo-nos que, até 0 século XVII, os cdnegos da catedral de Auxerre executavam uma brincadeira dangada na procissao, durante a qual cada um deveria jogar bolas no capuz daquele que estava a sua frente (ignoramos a origem e o sentido deste costume). Em Limoges, durante a festa de Saint Martial, padrinho da cidade e da catedral, os fiéis, nas vesperas, dangavam no coro da catedral e no final da ¢erimOnia cantavam salmos ao invés da doxologia ha- bitual; era uma invocagao no dialeto do Limoges: Sant Margau, prega per nos / Et nos espringerem per a (Saint Martial, roga por nés / E dangaremos para As tinicas excegdes aos andtemas lancados contra a utilizagao da danca no ritual eclesidstico encontram- 50 Historia da Danca no Ocidente se na Espanha, de maneira precisa, desde a alta Anti- gitidade. De acordo com o ritual de Santo Isidoro, adotado pelo concilio de Toledo no século VII, durante os oficios eram executadas dangas ritmadas pelas batidas de tambores e tamborins. No perfodo da ocupacao mugulmana de Toledo, este costume foi conservado no ritual de sete igrejas deixadas aos catélicos. Quando Afonso VI de Castela retomou a cidade em 1085, 0 ritual romano substituiu 0 mogarabe durante cerca de cinco séculos; em seguida este se restabele- ceu com suas dangas rituais. Algumas cartas de Juan de Ribera fornecem indica- Ges sobre as dangas executadas em Valenga durante as procissées de Corpus Christi nos séculos XVI e XVII. Os dangarinos — criangas, que tinham cerca de trinta aulas preparatérias e eram vestidas tradicional- mente com trajes de seda carmesim — apresenta- vam-se no inicio da procissao, na volta, diante da igreja e depois no claustro. Conservamos os cantos polifénicos compostos por Juan Bautista Gomes para essas dangas, cujos passos originais ignoramos. As dangas religiosas mais conhecidas da Espanha sao as “Seises”, dancadas na catedral de Sevilha du- rante a Semana Santa e principalmente em Corpus Christi a partir do século XVI. Nestas também, os executantes eram criancas — originalmente seis, donde o nome da dan¢a. Usavam trajes de corte e seus passos e representagdes derivavam das dangas de corte. i Essas tradigdes podem ser aproximadas do costume observado em certas paréquias bascas, onde, durante os oficios de Natal, um jovem, vestido de branco, executa uma danga ritual diante do altar; os batte- Aldade Média earetéricado corpo. 51 ments e€ os entrechats inspiram-se diretamente na _ técnica classica. No entanto, apesar de algumas excegdes, as conde- nagoes eclesidsticas atingiram seu objetivo; a danca nao foi integrada a liturgia catélica. Esta recusa é ainda mais notavel pelo fato de, em muitos casos, os trajes e até os lugares de culto paga ido assi u luga pagao terem sido assi- mnilados sem dificuldade. Sem diivida, o recurso obri- _ fatorio ao corpo e a seus poderes pouco controlaveis é oh motivo do ostracismo especial que se abateu sobre a mca. Podemos constatar que, desta forma, a Idade Média Yealizou uma ruptura brutal na evolugao da coreogra- fia, normal em todas as culturas precedentes: nas cul- turas da alta Antigtiidade, a danca é sagrada; numa ‘segunda fase, transformar-se-d em rito tribal totémico; jomente no final da evolugao, ela se tornara matéria lara espetaculos, matéria de divertimento. Aqui, as luas primeiras fases sao proibidas; a danca na Idade lédia cristé é apenas divertimento, Sua evolugao ina cultura leiga, a cultura feudal, portanto tardia- lente, € que comecara esta evolugao interna. Até ito 86 se pode falar de danga instintiva. Podemos observar também que, a partir da Renas- Iga, quando a censura religiosa se atenua, a danca- etculo encontra suas primeiras intrigas dramati- num sistema mitolégico-alegérico, como se ten- sse naturalmente a se lembrar de sua fungao princi- y Mais tarde, na €poca romantica e depois, o pre- feérico serd um outro sucedaneo. 52, Hist6ria da Danga no Ocidente A idade de ouro da estampie % A carola e 0 tripudium podiam ser dangados por qualquer pessoa: bastava marcar um ritmo simples e obstinado, As camadas privilegiadas inventaram uma forma de dangar “com estruturas que variavam’’, a danga “metrificada”, em que 0 corpo seguia as indica- Ges de uma métrica musical que mudava. Ao mesmo tempo, uma diversidade, uma procura de beleza for- mal comegavam a organizar 0 movimento, Nao é surpreendente constatarmos que a danca “metrificada” nasceu na cultura de oc, antes de pas- sar, meio século mais tarde, para a de oil: a danga é um bom indicador do nivel de civilizagao. Ora, no vasto territ6rio de oc, delimitado ao norte pelo Poitou, pelo Limousin e pelo Lyonnais, ao sul pelo Ebre, germi- nou precocemente uma nova civilizacao. O substrato das invasées barbaras era menos espesso; os visigodos e os francos nao haviam implantado estruturas de ocupagao permanente. O peso do aparelho feudal era menos esmagador, o dominio da Igreja menos onipre- sente; a literatura de oc é uma literatura leiga. A sepa- racao entre Alienor da Aquitiniae o rei da Franga Luis VII (1152) havia fortalecido a originalidade da cultura de oc. A cruzada dos albigenses ira arruina-la a partir de 1209: os nobres de oc refugiam-se na regiao catala proxima; a burguesia urbana teve, de certa forma, que colaborar. Se o pensamento universitério nao péde mais se manifestar no dominio feudal de oc (Montpel- lier é catala), uma literatura refinada, da qual o ro- mance Flamenca € um bom exemplo, continuara a se desenvolver ainda durante um século. Por outro lado, a Franga de oil sé afirmara plena- mente sua grandeza politica e intelectual no século A ldade Média e a ret6rica do corpo 53, ‘XIIL A universidade de Paris desempenha um papel “europeu, confirmado pela investidura pontifical em 251. E claro que o pensamento critico é mantido igidamente a margem por um contexto de doutrina elada; mas as querelas especulativas desenvol- vem-se dentro do sistema. A arquitetura se liberta das formas da arte romanica, ‘que nao havia conseguido dominar o peso da pedra, “Apesar de sua beleza indiscutivel: o principio de equi- librio explorado pela arte ogival permite inventar a “arte da luz. A misica participa do movimento de busca intelec- al. Em meados do século XII, as escolas de Paris, a a abadia Saint-Victor e, depois, principalmente a de Notre-Dame com Leonin e com Pérotin, o Grande, inauguram a polifonia e logo o contrapontismo. No - século XITI, a miisica torna-se rapidamente leiga. Vao ascer duas correntes, a cangao popular e a arte dos trovadores. Os poetas e misicos fecham-se de bom grado em formas fixas e relativamente complicadas, onde en- ‘contram ao mesmo tempo a seguranca e o impulso da -imaginagao formal. Desde esta época, manifesta-se uma tendéncia, sem diivida fundamentalmente fran- Gesa, & ret6rica, exagerada nos dois séculos seguintes. Uma pesquisa paralela de equilibrio e refinamento Mharca a danca. A danca “metrificada” é entao reinven- luda, de acordo com a métrica da misica ou da poesia que lhe serve de apoio, com maior freqiiéncia de ‘cordo com ambas. Como 0 conhecimento, mesmo elementar, das re- fas simples que regem os movimentos do corpo, issim como uma educag&o do ouvido, torna-se neces- 54 Historia da Danga no Ocidente ‘ sdrio ao dangarino, eis que nasce a danga erudita. Ao mesmo tempo, esta se separa da danga popular. Cabe a danga popular manifestar sentimentos con- fusos, fortes — a alegria, a inquietude — e manter ritos, cujo sentido original foi perdido, através de mo- vimentos nao sujeitos a regras. E 0 dominio do rondel, da carolae de seus derivados, das dancas em fileira de qualquer natureza, cujo tempo e cujos passos, escor- regados, corridos ou saltados, sao livres. Sao dangas de grupo em que os participantes confirmam sua comu- nhao segurando-se pelas maos ou antebragos. Ao contrario, no contexto fixo da misica e da poesia, as dangas “metrificadas” serao exercicios em que se exige, antes de mais nada, a beleza das formas; serao as dangas das classes desenvolvidas culturalmente, das classes dominantes. Podemos classificd-las em dois grupos: dangas a tempo vivo, trotto e saltarelo, e dangas em tempo moderado, ductia, nota, estampie. As tiltimas sao as mais estruturadas. Diferem sobre- tudo pelo mimero e pela forma das estrofes a serem dangadas e nao pela sua organizagao geral. $40 com- postas por segdes ou puncta — nés dirfamos estrofes ou estancias —, desenvolvidas musicalmente se- gundo o principio de variagao sobre um tema original A ductia permaneceu puramente instrumental. FE composta por trés puncta ou mais, cada uma compor- tando duas frases musicais parecidas, divididas por uma cadéncia suspensiva (pontuagao no discurso mu- sical que da a impressio de uma terminagao imper- feita). A primeira frase — A— leva a esta cadéncia e é chamada “a aberta”; a segunda tende a conclusao definitiva— A’ —, com orefrio —R—, e é chamada “a Aldade Média earet6ricado corpo 55 fechada” (clausus). Temos, portanto, a seguinte cons- trucao: A A’R/ BB’ R’/CC’R’/ete. Anota é umaductia menos desenvolvida, que pode Ser cantada. Aestampie (de stampare: bater, porque os dangari- hos marcavam 0 ritmo com seus pés) é, antes de mais nada, instrumental, mas logo se torna cantada. Seu instrumento tfpico parece ter sido a viela de arco. A primeira estampie conhecida, a ocita Kalenda maya, do trovador Raimbaut de Vacqueiras, morto em 1205, foi encontrada na forma cantada. Como a ductia, é formada de puncta, com “aberta” e “fechada”. Mas 0 sistema de rima é mais complicado: os versos de cada Punctum podem comportar uma tinica rima para 0 Conjunto, uma rima para cada uma das duas frases melédicas ou rimas alternadas em cada estancia. O refrao pode ou nao ter a mesma rima que aestancia ou alterna-la. Retine-se normalmente uma danga em tempo mo- derado a uma danga em tempo vivo; mas se a juncéio é “a no fim do século XIII, ainda nao é obrigaté- a. Como podemos constatar, estamos diante de uma lena retérica literaria, musical e coreografica. A Idade Média inventou a retérica do corpo: um culto da mma pela forma, que, repitamos, parece ser uma mstante do espirito francés em todos os campos das les. danga macabra da Guerra dos Cem Anos Apos o desenvolvimento do século XIII, 0 século 'V estimula uma série de crises. Til 56 Historia da Danga no Ocidente Em primeiro lugar, a crise da Igreja. do reforgar 0 poder real, o rei Filipe, o Belo, foi légico consigo mesmo esforgando-se em destruir o dominio da Igreja sobre o Estado, como seus predecessores haviam feito com o feudalismo. Mas a crise mais grave ¢ de ordem econémica e dos a dar maior importancia aos camponeses na gestao das terras, uma seqiiéncia de mas colheitas, a partir de 1315, vem mostrar que o pais ainda é muito frégil economicamente. Depois, a partir de 1337, comeca a Guerra dos Cem Anos, que s6 acabard de fato em 1453. Em 1346, estoura uma epidemia de peste negra que mataré um tergo da populagao. A isto deve-se acres- centar as violéncias da guerra. No inicio, uma série de derrotas francesas, ocupagao inglesa, guerra civil entre Armagnacs e Bourguignons a partir de 1407, revoltas devidas A miséria: jacquerie ao norte do do- minio real, Tuchins em Languedoc, Maillotins em Paris, sem contar as razias, os assassinatos das “Gran- des Companhias”; comega um século de terror para 0 povo. Sera preciso aguardar 1449 para que Carlos VI reorganize o aparelho estatal. Neste contexto, nao é surpreendente que os intelec- tuais e artistas atinjam os extremos: pesquisa de uma beleza puramente formal — os grandes retéricos em literatura, o estilo gético na arquitetura —; gosto pelo paroxismo do tragico — os chorosos da Borgonha, as estatuas-cadaveres de Ligier Richier. ‘A misica completa sua revolugao técnica decisiva; torna-se uma arte inteiramente independente. A danga nao é uma excecao nas grandes tendéncias da época: extremo refinamento da forma, sentido da morte em sua realidade mais brutal. A Idade Média ea retérica do corpo 57 A evolugao da danca nobre, observada no século precedente, prossegue. Nao somente a alterndncia dos tempos lento e répido torna-se regra (um bom exemplo é 0 Lamento de Tristdo), mas os ritmos tam- bém so variados. O manuscrito do século XIV (Bi- blioteca Nacional de Paris) que fornece este Lamento, de ritmo ternario, faz com que sua seqiiéncia seja uma outra danca com a mesma métrica, a Monfredina, e depois umarota binaria. A dupla reuniao, tempo lento € tempo vivo, ritmo temario e ritmo binario, se impée desde o final do século XIV. Ao mesmo tempo, a carola muda de sentido, nao é mais apenas uma manifestacao de alegria e torna-se, ‘em muitas ocasides, uma “danga macabra” (prova- velmente do arabe makhbar = cemitério). Responde assim a um tema de pregagao bem antigo, que apre- sentava a morte como uma motivagao para viver dentro dos preceitos cristaos. Mas, nesta época, o tema “toma-se insistente nos sermonarios, que o tratam tal- "yez mais de um ponto de vista realista do que teold- ico. A literatura a ele responde principalmente com 4s “Peregrinagées da vida humana”, de Guillaume de ligueville, e sobretudo com os “Versos da Morte”, do isterciense Hélinand de Froidemont, literalmente ima seqiiéncia de estrofes para a danca macabra. O jostume de se dancar em cemitérios, que se iniciou no éculo anterior, difunde-se para mostrar que a vida 6 ma carola conduzida pela morte. Conhecemos as jinturas alegéricas ditas ‘“dangas macabras”, como as lo Chaise-Dieu, da Ferté-Loupiére perto de Joigny, Kermaria perto de Saint-Brieuc, de Vergonnes laine-et-Loire), de Meslay-le-Granet (Eure-et- ir). Mas 6 preciso observar que sao apenas transpo- iges de modelos dangados do fim do século XIV até 58 Historia da Danga no Ocidente theados do século/XVa Gitemos ai dangsmnacabrado cemitério dos Inocentes em 1424, narrada pelo Jour~ nal du bourgeois de Paris, outra que o duque de Bor- gonha mandou celebrar em 1449 em sua mansio de Bruges e, finalmente, a que os franciscanos de Besan- gon executaram na igreja Saint-Jean apds seu cabido provincial em 1453. Encontramos trés fontes de inspi- ra¢do: popular, que insiste no realismo; nobre, desti- nada ao espeticulo; religiosa, com 0 objetivo edifica- dor. Pode-se associar a este clima mistico-realista as conseqiiéncias orquésticas de uma “epidemia” de co- réia ou danga de Sao Guido que ocorreu no inicio do século XV na Renania, atingindo a Italia e passando por Lorraine, Dangava-se para conjuré-la. A procissao dangada de Esternach, em Luxemburgo, cujos passos rituais (dois para frente, um para tras) lembram a pa- vana, conserva uma lembranca folclérica desta medi- cago. Rumo A danga-espetaculo: o momo Aparece um novo género que determinara a forma futura do balé-teatro: o momo. O momo (de momer: disfargar-se; momon: méscara)— sua correspondente italiana sera a mascherata, mascarada — é, antes de mais nada, uma espécie de carola burlesca, na qual os participantes estéo mascarados e disfargados. Um dos mais antigos exemplos representados 6 uma miniatura do Roman de Fauvel (século XIII). Um dos momos mais célebres 6 0 Bal des ardents (29 de janeiro de 1393). Froissart narra-o em suas Chroniques (Ed. Buchon, pp. 176 ss.): numa festa na A Idade Média ea retérica do corpo 59 mansao Saint-Paul, por ocasiao do casamento do duque de Vermandois com a dama de honra da rainha, o rei Carlos VI —dito o Louco—quis fazer um momo ese disfarcou, com quatro companheiros, de “homem selvagem’”. “Estavam cobertos de pélos, da cabeca 4 planta dos pés.” Usavam “camisas impregnadas de Bee sobre as quais haviam posto grandes quantidades linho fino (cardado)”. Para reconhecer 0 rei, 0 duque de Orléans aproximou uma tocha dos momos. Os cinco comecaram a pegar fogo. Trés morreram imediatamente, um outro no dia seguinte; o rei foi Salvo pela duquesa de Orléans que se jogou sobre ele © abafou 0 fogo com as dobras de seu amplo vestido, Estes momos dangavam a mourisca, fato confirmado pela Cronica de Saint Denis: “Comegavam correndo para todos os lados; davam horriveis uivos de lobo, depois punham-se a dangar a sarracena”’. A mourisca era uma danga pretensamente impor- tada dos arabes. No final do século XVI, Thoinot Ar- beau descreve-a: danga bindria, escandida por batidas dos pés, substituidas, em caso de cansago, por batidas dos calcanhares; uma pulseira de guizos era amarrada 40s tornozelos dos dangarinos. Os movimentos, em tempo de colcheias, so os seguintes: bate caleanhar direito / bate calcanhar esquerdo (bis) — bate calca- nhares (pés juntos) / suspiro” (a partitura indica na ‘ealidade uma semipausa, Orchésographie, pp. 94 ss.). O momo tomou-se espetaculo quando passou a ser tilizado como atracao, como entremez, entre os pra- de um banquete. Charles d’Orléans parece evocé- ‘Venus sommes en cete momerie Belles, bonnes, plaisans et gracieuses 60 Historia da Danga no Ocidente Prestz.de dancer et faire chiere lye Pourresveiller vos pensées joieuses.* (ewores, Ed. Ch. d’Héricault, t.1,p. 149, balada IIL.) Christine de Pisan (Le Livre des faicts du sage roi Charles , XL) conta que, para receber o imperador dos Romanos em 1337, 0 rei mandou que se represen- tasse, durante um banquete, a tomada de Jerusalém em movimentos ritmados. Em meados do século XV, a execucao do entremez real acompanhado de um grande fausto. Compro- va-o este didlogo, em Le Mistére du Vieil Testament, entre Héliab e David, que celebra suas nipcias com Michol: HELIAB: — Trompettes, sonnez haultement Pour resjouirla seigneurie (Icy sonnent les trompettes. On met les tables.) DAVID: _ Faites venir la momerie Qui est dedens le char enclose.. HELIAB: Sus, tost, tabourin, sans séjour, Entendez A votre morisque ‘Vous en sgavez bien la pratique (ley dansent la morisque. Aprés la morisque, ils ostent les tables,)* (Ed, J. de Rothschild [E. Picot], Paris, 1878, t.1V, p. 143) * Vindas a este momo, belas, boas, agradaveis alegres, prontas para dangar e para despertar seus pensamentos felizes. ** HELIAB: Trombetas, soem bem alto para alegrar os senhores. (Aqui ‘as trombetas soam. As mesas sdo postas.) DAVID: Mandem vir omomo, fechado no carro... HELIAB: Vamos, ripido, tamborim, sem parar. Escute sua mouriscs, vocé sabe praticé-la.(Aqui danca-sea mourisca. Apdsa mourisca, tiram ax mesas.) A Idade Média e a retérica do corpo 61 Entre os momos-espetaculos mais célebres, citamos ‘oRepas du faisan em Lille, a22 de janeiro de 1454.Os duques de Cleves e de Borgonha dao uma grande esta, cujo momento principal é um servico de faisées durante o qual os senhores presentes fazem um inde a um futuro reencontro. O entremez represen- ado é evidentemente uma viagem, a de Jasao indo a HiEscoubly). O casamento do duque de Borgonha Bruges, em 1468, ofereceu como entremez a en- “d'une trés grande baleine gardée par deux gayants, laquelle avait ‘hans son ventre deux seraines et XII ou XIII hommes habilles rangement. Lesquels hommes et seraines vuidérent hors la ba- Bre pour dancer, chanter et cbattre ct desdits hommes aval qui ‘combattaient et d'autres qui dansaient” (Escoubly, op .cit,).* Bem estabelecido nas cortes de principes do século , 0 momo ja adianta elementos do balé de corte que ira se desenvolver cem anos mais tarde: dangarinos, santores, musicos, carros, efeitos de maquinaria. Mas falta-lhe a alma do espetaculo: a agao dramatica coor- denada. Falta-lhe também a diversidade nas dangas: apenas acarola e a mourisca sao comprovadas. _ Os verdadeiros balés com agaéo dramatica mais ou enos embrionéria e dangas variadas serao encontra- ‘dos no século XVI. Observemos, todavia, que o habito ‘da entrée — no sentido moderno,:de mimero sem ligacao dramatica rigida com o resto da obra — ja era ‘considerado, em detrimento da légica, e sobrevivera até hoje no balé académico.¥ * de uma baleia muito grande, guardada por dois escudeiros, que tinha seu ventre duas sereias e doze ou treze homens vestidos de forma stranha, Os homens e as sereias sairam da baleia para dangar, cantare se debater e, entre os homens, alguns combatiam, outros dangavam O balé de corte A experiéncia italiana — Descoberta de um género novo, o balé-teatro— Da propaganda 4 adulagdo Enquanto na Franca as desventuras publicas impu- nham, durante os séculos XIV e XV, uma semi-estag- nagao a evolugao cultural, a Italia passava por sua Renascenga com 0 Quattrocento Nunca os franceses foram tao atraidos pela Italia quanto neste periodo em que, terminada a Guerra dos Cem Anos, 0 poder central e as finangas restauradas por Lufs XI, a unidade territorial completada, 0 poder e o impulso reencontrados, a Franca se mostrava im- paciente em evoluir. Nunca também os intercémbios entre os dois paises foram tao importantes no plano humano, por intermédio de intimeros italianos fixados na Franca — num primeiro tempo, sobretudo ban- queiros — ou por ocasido das guerras da Italia, de 1494 a 1526. No campo do pensamento e das artes, a Renascenga francesa passa pela Renascenga italiana. Para com- preender a evolugao da coreografia na Franga do sé- culo XVI, é preciso examinar a do Quattrocento. Um fato importante: é na Italia, nesta época, que se inicia a formagao de uma sociedade cortesa, ainda nao enrijecida pela etiqueta. Em torno do principe, reu- ne-se gente que tem em comum, nao tanto 0 gosto pela cavalaria, como 0s franceses, quanto 0 davirtu, o culto 64 Hist6ria da Danga no Ocidente do individuo e sua exaltagao por meios diretos ou paralelos, uma queda refinada pela elegancia intelec- tual e pelas artes, um estilo de vida que busca 0 ex- traordinario, O Cortegiano (o “Cortesao”), de Baldas- are Castiglione, é um bom exemplo desta camada ‘ocial. Foi um livro importante para a difusao do espi- rito de corte na Franga. Francisco I chamava-o de seu breviario. Adanga de corte assinalaré uma nova etapa: desde o século XII, a danga “metrificada” havia se separado, na Franga, da danga popular. No Quattrocento, ela se tornara uma danga erudita, onde sera preciso nao so- mente saber a métrica, mas também os passos Também, pela primeira vez, surge o profissiona- lismo, com dangarinos profissionais e mestres de danga. E um fato importante: até entio, a danga era uma expressao corporal de forma relativamente livre: apartir deste momento, toma-se consciéncia das pos- sibilidades de expresso estética do corpo humano e da utilidade das regras para explora-lo. Além disso, 0 profissionalismo caminha, sem diivida, no sentido de uma elevagao do nivel técnico. Ao que parece, os professores de danga nio perten- ciam a um nivel social baixo: faziam parte do meio imediato dos principes. Vemo-los participarem de fes- tas da corte, das quais sao o centro. Ludovico Sforza utilizar seu proprio professor de danga como agente diplomatico. Participam, ainda, em Veneza, da vida familiar: nas familias patricias, a apresentagao da noiva a sua futura familia era feita sob a forma de um balé mudo; admitia-se que o professor de danga nao somente 0 organizasse, como também assumisse 0 papel de pai de familia quando este nao pudesse com- parecer. ? O balé de corte 65 Os primeiros documentos escritos do Quattrocento Textos importantes, verdadeiros cédigos de danga, mostram-nos a situagao desta arte no Quattrocento. Segundo um testemunho posterior nao confirmado {Gian Batista Dufort, Histoire du ballet, Napoles, 1728), o primeiro codificador teria sido Rinaldo Ri goni com seu livro Il Perfetto Ballerino, imprimido em Mildo em 1468. Mas a obra nao péde ser encon- trada. (Observemos que o primeiro livro impresso sobre a danga que nos chegou é L’Art et Instruction de bien danser..., editado por Michel Toulouze, em Paris, entre 1496 e 1501.) : O primeiro grande mestre do Quattrocento é Do- menico da Piacenza (de acordo com 0 seu local de nascimento, em data desconhecida) ou da Ferrara (de acordo com a cidade onde trabalhou e morreu, em 1462). Temos um manuscrito seu (na Biblioteca Na- cional de Paris), 0 primeiro tratado de danga: De arte saltendi et choreas ducendi. Seus alunos, Guglielmo Ebreo (chamado, acredita-se que apos sua conversao, Giovanni Ambrogio de Pesaro) e Antonio Cornaz- zano, deixaram dois manuscritos: respectivamente, De practica seu arte tripudii (Biblioteca Nacional de Paris) e Libro del arte de danzare (Biblioteca do Vati- cano). A obra de Domenico da Ferrara esta dividida em duas partes: uma gramatica do movimento, baseada em cinco elementos constituintes da danga: métrica, comportamento, memoria, percurso, aparéncia, (E importante observar que os termos técnicos usados para designar os movimentos coreograficos nao tem o mesmo contetdo corporal que os dos dias de hoje; s terao o mesmo sentido a partir do final do século XIX. 66 Histéria da Danga no Ocidente E uma nogio a se ter sempre em mente.) A segunda parte enumera os passos fundamentais, dentre os quais nove sao considerados “naturais” e trés “aci- dentais” (dirfamos “artificiais”). Entre os primeiros: 08 passos simples ou duplos a voltae ameia-volta (que so feitos sem erguer os calcanhares), 0 salto (pouco elevado). Os segundos sao o battement (batida) dos pés, 0 passo corrido, a mudanga de pés. Guglielmo Ebreo considera passos mais variados: tempo de salto, contrapasso e volta, principalmente. O capitulo final é uma autobiografia e uma lista com exemplos de varios balés dos quais o autor participou. Cornazzano é mai intelectual: sistematiza os passos e estabelece regras de colocagao. Também fornece exemplos de dangas, entre as quais amercantia ¢ a sobria, que sio o em- briao do mimodrama. O repertério que nos trazem compreende cerca de vinte dancas que se reportam a “danga baixa” e ao saltarelo. So marcadas em voz iinica, sem indicagio de valores nem de ritmo, mas com textos explicativos. Excepcionalmente, em Comazzano, encontram-se dangas anotadas em duas vozes: o tenor canta a melo- dia, a voz de cima segue-a com imimeros acompa- nhamentos, tipicos das ornamentagées improvisadas que serao requisitadas dos instrumentos ainda mais altos, principalmente dos violinos, até o século XVIII. Podemos perceber um esboco do virtuosismo téc- nico. Assim, Castiglione nos conta em seu Cortegiano que um dangarino da corte da duquesa Elisabetta d'Urbino, Barletta, era célebre pelos seus duplicati ribattimenti, battements duplos. Ainda, Colonna, em Hypnérotomachie (ou O sonho de Poliphile), ao des- ctever um balé em forma de partida de xadrez que teria visto em seu sonho (tema que sera retomado com Obalé de corte 67 freqiéncia mais tarde), indica um encadeamento de giros duplos no are giros duplos no chio, agora inte- grados na escrita académica, mas ainda nao conheci- dos por Feuillet em 1700. Trata-se de uma imaginagao premonitéria ou de um encadeamento muito dife- rente do que conhecemos. O desabrochar do Cinquecento No século seguinte, como poderiamos esperar, prossegue a evolucao rumo a uma técnica mais exi- gente. Dois autores testemunham-no. Cesare Negri, dito 0 Trombone (Milao, 1530— ?) Negri foi um dangarino e mestre de danga precoce. Segundo seu proprio depoimento, apresentou-se diante do concilio de Trento. Encontrando-se em Malta na época da batalha de Lepanto (1571), dangou numa galera diante dos almirantes vitoriosos. Em 1574, em Milao, organizou uma mascarada com vinte e cinco entrées de carros que simbolizavam os movi- mentos da alma; mais tarde, dirigiu um brando na praga ducal, com oitenta e dois participantes da alta nobreza. Seu tratado, la Grazia d’amore (Milao, 1602), foi reeditado de forma mais completa, com um novo ti- tulo, Nuove Invenzione di balli (Milio, 1604). Com- porta trés partes; a segunda fornece cingiienta e cinco regras técnicas e a terceira, dangas com solfas e des- crigao coreogrifica. Ai encontram-se passos novos como otrango (meia-ponta), osalto da fiocco, espécie de jeté girando: tratava-se de tocar, com a ponta dos 68 Histéria da Danga no Ocidente pés, num salto, um né de lengos suspenso ao teto (fiocco). Negri foi o primeiro a preconizar os piedi in fuore, inicio doen dehors. Marco Fabrizio Caroso (Sarmoneta, ?—?) Fez carreira em Roma. Seu tratado, il Ballerino (1577?) — primeira edigdo conhecida: Veneza, 1591 —,dedicado a Bianca Capella de Medici, gr-duquesa de Toscana, apresenta uma nomenclatura de passos. Entre outros, encontramos cinco tipos de cabriola, uma feita no ar; spezzata in aria, e uma cabriola in- trecciata (entrelagada), ancestral, quanto a etimolo- gia, do entrechat. Encontramos também 0 fioro (donde veio ofleuret ou pas de bourrée), osalto tondo in aria (giro no ar), 0 pirlotto (pirueta) e 0 groppo, origem do coupé Em edigées posteriores (1600 em Milao, 1630 em Roma), o mimero de passos relevés chega a sessenta e ito. Tudo é acompanhado por solfas Adanga de corte Etquand Anglais furent dehors Chacun se mist en ses efforts De bastir et de marchander Eten biens superabonder.* Esses versos de um tabeliao anénimo do Laval, do fim do século XV (citados em Histoire de la France, de Georges Duby, Larousse, 1971), mostram bem a ener- gia de trés geragées que, em trés quartos de século, * Equandoos ingleses foram expulsos, todos se puseram a fazer esforgos ara construire negociar, e trazera superabundaneia de bens. O balé de corte 69 yeergueram a Franca apés a Guerra dos Cem Anos, De fato, no fim do século XV, o reino voltou a ser o mais rico eo mais populoso da Europa. A influéncia cultural da Itélia no inicio do século XVI é evidente nas artes. O aspecto dos castelos e das vilas mudam; ha uma transformacao total da arquite- tura quando Francisco I confia Fontainebleau a Pri- matice e Rosso. Mas no plano do pensamento e da literatura, a origi- nalidade francesa é absoluta. A fundagao, mesmo ina- cabada, do Collége de France garante o triunfo do humanismo e rebate o conformismo da Universidade. A Pléiade, nova escola literaria, langa um manifesto nacionalista como primeira publicacao: la Défense et illustration de la langue francaise (Defesa e ilustra- cdo da lingua francesa), de Joachim du Bellay. Apartir de Francisco I, uma verdadeira vida de corte organiza-se pelaprimeira vez. Ele agrupa fidalgos nao titulares de cargos essenciais do Estado, que sao con- fiados a especialistas. Os cortesaos tém vocacdo para Jutar com brio e para procurar o refinamento do com- portamento com 0 objetivo de elaborar uma arte de viver com elegincia. Para esta nova sociedade, a danca, aperfeigoada pela Italia, sera um exercicio apaixonante. As daneas de corte da Renascenga francesa Dois documentos fornecem informagées precis L’Arte Instruction de bien danser...., de Michel Tou- louze, do inicio do século XVI; Orchésographie, de Thoinot Arbeau (anagrama-pseudénimo do cénego Jehan Tabourot), mostra, em 1596, 0 progresso € a diversificagao conseguidos. 70 Historia da Danga no Ocidente Toulouze sublinha quase que exclusivamente a “baixa danga”. Danga de casais, exclui os saltos e emprega muitos passos que se sucedem sem enca- deamentos obrigatérios. Passo simples, passo duplo, balanco, modo de andar, conversao so executados em quatro tempos ou quaternions. Arbeau apresenta um exemplo que se estende por uma série de vinte quaternions: inicio no segundo metro — reveréncia — balango — dois passos simples — um passo duplo/reinicio — um passo duplo/ reinicio— dois passos simples — trés passos duplos/ reinicio— um passo duplo/reinicio— balango— dois passos simples — um passo duplo— balango — con- verso (Arbeau, op.cit., pp. 255s.). E facil reconstituir com 0 corpo este esquema, se- guindo-se um texto musical na coletanea principal, o das Basses Dances de la cour de Bourgogne. AOrchésographie, de Thoinot Arbeau, detalha com clareza e precisao os passos de danga do século XVI: — Pas de Brébant (ow de Brabant), que é a nova transformagao do saltarelo (aalta danza dos italianos), alternada, com freqiiéncia, com a “baixa danga”’ —Bransle. A danga em voga nos dois primeiros tergos do século. Danga diferente, de acordo com a regiao: hd uma bransle da Champagne, do Poitou, da Borgonha... Danga mimodramitica: os bransles das lavadeiras, dos tamancos, das ervilhas, do eremita, por exemplo. Pode-se distinguir o bransle simples, de ritmo lento (4/4), 0 bransle double, mais vivo (6/4), 0 bransle gay, ainda mais rapido (6/8). Importam-se dangas da Espanha: 0 candrio, que Arbeau acha que “parece por demais selvagem”; a ¥ O balé de corte a chacona, a principio viva e licenciosa, tomar-se-4 a danga nobre por exceléncia no século XVII; apassa- cale, que lembra os passeios provocantes das mogas nas raas, mas que se tornara mais tranqiiila, sob a forma de chacona. Outras vém da Itdlia: a pavana, uma das principais dangas da época e que continuaré predominante no século seguinte, com seus passos escorregados marcados por paradas curtas; 0 pazzo mezzo, bem pouco praticado, mais vivo do que a pa- vana da qual é ancestral. Da Provenga vem a volta, danga de casais em que o cavalheiro estreita sua par- ceira e gira sobre si mesmo fazendo-a saltar. Conside- rada imoral, é apreciada por Brantéme, pois o salto “fornece com freqtiéncia algo agradavel de se ver’. Adanga tipica do século é a galharda. Dangada em segiiéncias de cinco passos num tempo de 6/4, inte- grando saltos, grous, coices, rus de vache e cabriolas, era uma danga de elevagao. O tordido era uma varie- dade da tiltima que se dangava “baixo e perto do solo, numa métrica ligeira e concisa”. A associag&o pava- na-galharda substitui a alternancia “baixa danga” — saltarelo, fora de moda. O repertério, bem rico como podemos constatar, é completado pelagavota, uma danga destinadaa reinar até o fim do século XVIII. No entanto, Arbeau a consi- dera apenas como “uma coletanea e reuniao de varios balangos duplos... dangados em métrica binaria” Or- chésographie, p. 93). Mas tratava-se apenas de dangas comuns nos bailes da corte. Faltava organiza-las em espetaculo. As con- digées politicas iriam impor ao poder a utilizagao do balé como meio de propaganda. 2 Historia da Danga no Ocidente A inyengio do balé de corte A segunda metade do século XVI comporta, de fato, uma sucessao de tensdes politicas e de guerras. Apés a morte de Henrique II, trés partidos lutam pelo poder: a realeza, os Guise e os protestantes. A luta contra os protestantes através da tortura e da morte comegara com Francisco I. Henrique IT comanda uma repressio brutal. No reinado de seus sucessores, 0 pais sera dilacerado por guerras civis que darao ao inimigo es- panhol a oportunidade de intervir, diretamente ou nao. A unidade do pais e a autoridade real centraliza- dora sao colocadas novamente em questio. No inicio do século, apresentou-se 0 problema di nastico, com a subida ao trono de um Valois- Angouléme, pequeno nobre do interior. A sucesso foi dificil. O mesmo nao acontecer no final do século, quando a morte de Henrique III, sem herdei- ros, trard ao poder uma nova dinastia, a dos Bourbons, com Henrique de Navarra, também pequeno nobre, mas protestante € que, no principio, tinha contra si a maioria dos francese: ‘Além das dificuldades dindsticas, as regéncias: a morte de Henrique II concede o poder nominal a seu jovem primogénito, Francisco IJ, ao qual sucederio, sem posteridade, mas nao sem taras, seus irmaos Carlos 1X e Henrique II. O poder realmente sera exercido pela rainha-mae, Catarina de Medici, uma italiana que favorece a vinda de numerosos italianos & corte. Apés o assassinato de Henrique IV, ainda outra regéncia de mulher, uma outra italiana, Maria de Me- dici, de 1610 a 1617. Apés a morte de Luis XIII, até a tomada de poder pessoal de Luis XIV (de 1642 a 1661), ainda uma O balé de corte 73 regente, desta vez espanhola, Ana d’Austria, sob a qual — e sobre a qual — reinara de fato um outro estrangeiro, um italiano, seu Primeiro Ministro, 0 car- deal Mazarino. Esta sucessao de mulheres estrangeiras teré como efeito o enfraquecimento do poder real, subversdes e as tiltimas tentativas da classe nobre de se apossar do poder politico: guerras de religiao no governo de Ca- tarina, guerra de principes no de Maria, frondas no de Ana. Daia necessidade de afirmacao do poder real como tinico meio de paz e prosperidade e a de fazer propa- ganda, nao para 0 povo, cujo peso politico continua nulo, mas para os Grandes, Até Luis XIII, 0 balé sera, como constataremos, um meio privilegiado de propa- ganda. Depois da autoridade real solidamente resta- belecida, o balé se transformara de afirmagao do prin- cipio monarquico em ceriménia de adulacao da pes- soa do rei. O material técnico Os organizadores de balés tinham as dancas da corte a sua disposigao. A “baixa danga” desapareceu em meados do século XVI, 0 balango e a galharda nao sao mais empregados no fim do século, a alemanda, a gavota, a pavana, a sarabanda, o passe-pied, olouré, a bourrée, 0 canario continuam na moda a espera do reino do minueto, por volta do século XVI. Este era o material da danga: 0 balé de corte foi,em primeiro lugar, um baile organizado em torno de uma agao dramatica. Outro elemento: a danga geométrica de solo. Demos um exemplo com a “dana num tabuleiro de et 74 Historia da Danca no Ocidente xadrez” do Songe de Poliphile. O balé de corte se apaixonara pelas evolucdes geométricas dos dancari- nos: circulo, quadrado, losango, retangulo. Essas figu- ras eram nitidamente identificaveis, pois os balés eram concebidos para serem vistos do alto. Os dang: rinos faziam evolugées numa parte da sala, todos no mesmo nivel; na outra parte eram montadas bancadas para os espectadores. Chegou-se até a desenhar letras com fileiras de dangarinos, com maior freqiiéncia os monogramas dos soberanos, por vezes o nome da he- roina do balé, como Alcina. A este respeito, podemos citar uma historieta de Tallemant des Réaux Histo- riettes, t. I): A senhora Bar “mandou, certa vez, que se dangasse um balé em que todas as figuras tragassem as letras do nome do rei. — Entao, senhor, disse-lhe depois, nao notou como todas as figuras compunham exatamente todas as letras do nome de Sua Majes- tade? — Ah, minha irm, ele lhe disse, ou a senhora nao escreve nada bem ou nao sabemos mesmo ler, pois ninguém percebeu o quea senhora mencionou” Terceiro elemento: as entrées ou drias, reservadas a temas especificos ou tradicionais: entrées de firias, de deménios, de combatentes, cuja danga era livre, ou improvisada e que recorriam muitas vezes a mimica e aacrobacia. Estes combates dangados eram entéo uma lembranga muito proxima, uma transposigao das lides que constituiam as principais festas de corte até mea- dos do século XVI. O profissionalismo nao existia nos primeiros tem- pos do balé de corte: “coreégrafos”, executantes, eram todos corteséos, com freqiiéncia da classe alta. Pouco a pouco — e, em primeiro lugar, entre as faixas menos nobres, mas que exigiam virtuosismo em atra- Ges como o funambulismo e a acrocabia, inseridas no O balé de corte 15 balé — apareceram os bailarinos profissionais. Numa segunda fase, que podemos situar por volta de 1635, estes obtiveram um mesmo nuimero de papéis que os cortesios (cf. Ballet de la Merlaison). Numa terceira fase, apartir de 1670, os amadores serao eliminados do palco. De acordo com Francois de Lauze (Apologie de la danse et la parfaicte méthode pour l’enseigner tant aux cavaliers qu’aux dames, s.1., 1623), “hadistingdes entre as capacidades do amador de corte € as dos bailarinos. Aos tiltimos reservam-se passos como fleu- rets, pequenos floreios ou balango de pés, piruetas (no sentido de varios giros violentos ou forgados), cabrio- las (nem mesmo meias-cabriolas)”. Desta primazia do amador sobre o profissional no inicio do balé provém, sem divida, nossa ignorancia quanto aos mestres de danga. $6 conhecemos 0 nome dos dois mestres italianos de Carlos IX, Diobono e Bracesco. Dai também o fato de que, até o século XVIL, os tratados de danga tenham sido mais obras de reflexao intelectual sobre o balé do que exposigées de técnicas. Nao é possivel reconstituir exatamente a composi- cao coreografica dos balés de corte. Duas fontes per- mitem uma visio fragmentiria: —Os libretos. Até 1611, um iinico libreto havia sido publicado, o do Ballet comique de la reine. O habito de publicar libretos com texto completo sé data de Luis XIII, Conhecemos apenas fragmentos, ou de segunda mao, ou ainda por alusées, dos cerca de du- zentos e quinze balés compostos anteriormente. E ainda é preciso observar que os libretos s6 excepcio- nalmente indicam as dangas empregadas. 76 Historia da Danga no Ocidente —A musica. Resgatamos uma literatura importante de musica para danga; a maior parte nao é encontrada em edigGes comuns. Estas dangas foram narradas sem indicagdes, na maioria dos casos, dos balés em que foram utilizadas, Apresentam-se em coletanez os dois tomos de Robert Ballard, do fim do XVII, a colegao de Praetorius, do inicio do século XVIII ea posterior, de Philidor, o “anotador” do rei,a quem devemos 0 conhecimento da maior parte das miusicas compostas para as comédias-balé de Moliére. Estamos informados sobre a musica vocal principal- mente pelas Airs de cour @ 4 et 5 parties, publicadas por Pierre Guédron em 1602. Um importante trabalho de decifracao de solfas de alatide esta sendo feito neste momento no CNRS (centro nacional de pesqui- sas cientificas) e revela uma misica bem interessante. A temdtica dos balés de corte ‘A mitologia fornecen aos autores de balé a maior parte de seus libretos. Ela esta presente em toda parte, mal escondendo os personagens reais. A alegoria, principalmente no século XVII, tem um papel muito reduzido. A seguir vem a inspiragao romanesca, baseada so- bretudo em Ariosto e que renova uma velha tradigao nacional. “A ago do balé, escreve o jesuita Ménestrier, pode ser uma espécie de romance, como o dos Amadis, dos cavaleiros do Sol, de Primalion, etc. Isto faz com que Ariosto fornega ha um século um grande ntimero de balés dangados na Franga e na Itilia” (Des ballets anciens et modernes ,p. 61). Apenas para a Franga, em centoe cinqiienta anos, pudemos descobrir os seguin- O balé de corte 7 tes balés e tragédias liricas inspirados em Roland fu- rieux: 1550 — Mascarada de Saint-Gelais, em Blois. Tema de Rogério e Morfisa. 1556 — Mascarada em Blois. Tema de Rolando. 1610—O Ballet de M. de Vendome. Tema de Al- cina. 1618 —La Folie de Roland. 1653—O Ballet de la nuit (texto de Benserade), dangado para Luis XIV. Tema: Rogério de Bradamante, Medor e Angélica. 1664 —Les Plaisirs de Vile enchantée. Tema de Alcina. 1685 — Roland, texto de Quinault, misica de Lully. E, provavelmente, a lista nao é completa. Podemos acrescentar a influéncia de Ariosto no teatro, de Garnier a Thomas Corneille, na poesia, de Baif a La Fontaine, com Joconde. A moda “a la Ariosto” manifestou-se até nos gadgets da época, por exemplo, numa brincadeira nova a partir do jeu de Voie, o“labirinto do amor”. Como antitese, encontramos muitos balés burles- cos; da mesma forma, na literatura do inicio do século XVII, o burlesco tem um papel nada negligenciavel, que vai das pecas fantasticas, quase surrealistas como Fées de Saint-Germain (Fadas de Saint-Germain) ao obsceno Ballet des andouilles (Balé das lingiiigas). Tradicionalmente, 0 perfodo do carnaval — que co- megava entao em janeiro — era festejado com muitos balés, o que também explica a insercao de episédios cémicos em balés romanescos. A galanteria “pastoral” também era uma fonte de inspiragao abundante como reagao a rudeza dos cos- 78 Hist6ria da Danca no Ocidente tumes. O sucesso de Astrée e 0 movimento dos Pré- cieux podem ser explicados pela mesma razao. Finalmente, a politica estarj presente em intimeros balés até o advento de Luix XIV. Presenga por alusao, como no Ballet comique de la reine (Balé cmico da rainha) e em Ja Délivrance de Renaud (A Libertagao de Renaud), ligao politica direta, como em Ballets de Pau et de Tours ou em La Prospérité des armes de France (A prosperidade das armas de Franca) de Ri- chelieu, e até mesmo um fato politico, como a paz de Minster, que inspirou La Naissance de la paix (O Nascimento da paz) a Descartes, Uma tentativa abortada: 0 balé “metrificado” Um dos objetivos confessos do humanismo renas- cente e particularmente da Pléiade era ressuscitar a arte da Antigiiidade. E uma restauragao da mousiké grega —a unidade fundamental da poesia e do movi- mento —, que foi tentada pela Academia de Miisica e Poesia, fundada em 1571 pelo poeta Antoine de Baife pelo compositor Thibault de Courville: ... pour l'art de musique Réformer i Ja mode antique Les vers mesurez inventer.* A idéia basica era construir, segundo uma mesma métrica— dactilo, espondeu, iambo, anapesto—, uma métrica francesa, a partir da qual se modelaria uma métrica musical e uma métrica corporal. Nogao pura- mente tedrica: o sistema é possivel numa lingua acen- tuada como a grega e a latina; nao se pode construi-la ag Pavtadnptara ate da mvisica moda antiga, inventarversos metifice O balé de corte 79 numa Iingua tao pouco marcada de breves e longas como o francés. Segundo a teoria de Baif, chegar-se-ia a um sistema de equivaléncias; a métrica do coriambo, por exemplo, dariaa seguinte equagao: Métrica do verso: —vy /u—/v— Muisica: dd d/dd/dd Danga: passo longo, passo breve, passo breve/passo breve, passo longo/passo breve, passo longo. Nao era uma perspectiva isolada, mas ade um grupo coerente e de peso. A casa da rua de Fossés Saint- Victor, local de reuniao da Academia, era freqientada nao somente por Carlos [X, mas também pelos bons compositores da época: Claude Lejeune, Jacques Mauduit, Jacques Dufaur. O organizador do Ballet comique de la reine, Beaujoyeux, deixa claro que ten- tava seguiras regras editadas com todo o cuidado. Esta tentativa nao foi feita somente em Paris. Em Veneza, em 1600, foi dancado um Ballo de fiore, cujo subtitulo era Contra passo fatto conversa mathematica sopra versi d’Ovidio (Contrapasso & maneira de conversa matemitica sobre versos de Ovidio). A filiagao do balé de corte Vimos que, desde o século XII, havia sido encon- trado na Franga o prinefpio da danga metrificada, da danga de corte. Vimos também que os mestres italia- nos do Quattrocento aperfeicoaram-na, tendo os fran- ceses codificado a técnica da danga. Mas nao encon- tramos em data precoce, na Itélia, agées dramaticas traduzidas essencialmente pela danga, nao encontra- mos verdadeiros espetaculos de balé. A Aminta de ‘Tasso, criada em 1573 para o principe Afonso III 80 Histéria da Danga no Ocidente de Este, 6 apenas uma pastoral em que o texto domina, em que a danga intervém pouco e, ainda, fora da agio. Até a Ripresentazione di anima e di corpo (Roma, 1600), de Emilio di Cavalieri, é um oratorio. Se o autor prevé “balés” em sua participacdo ao leitor, sio ape- nas mouriscas e pastorais, apresentadas no prélogo ou nos intermédios. Ao contririo, na Franga, entre 0 momo da Idade Média, os entremezes do século XV, as dangas que acompanham as lides da primeira metade do séculoXV e obalé de corte propriamente dito da segunda metade do século, a transigao se fez por pequenas etapa: Na realidade, durante a Renascenga, tantas obras sucederam-se, houve tanto intercmbio entre os ho- mens da Franca e da Italia, que a cultura coreografica chegou a parecer comum. O Ballet comique de la reine marca bem esta fusdo: 0 autor é italiano, 0 gé- nero, sua técnica de representagao e sua aco coreo- grifica so franceses, Mas antes de se denyolver com- pletamente, podia-se sentir na Franga que o balé era inteiramente importado da Italia— no que se refere & técnica—, e Ronsard pode escrever: L’accord italien, quand il ne veut batir Un théatre pompeux, un cotiteux repentir, Lalongue tragédie en mascarade change. Ten est Finventeur, nous suivons ses legons ‘Comme ses vétements, ses moeurs et ses facons Tout 'ardeur des Frangais aime la chose étrange.* (Ocuvres, Ed, Marty-Laveaux, Paris, 1893, t. VI, p. 310) * Quando 0 acordo italiano nio quer constmair um teatro pomposo, um arrependimento custoso, transforma a tragédia longa em masearada, Eo inventor dela, sigamos suas ligées, assim como suas vestimentas, seus ‘costumes e seus modos, Todo o ardor dos franceses ama a coisa estranha, O balé de corte 81 As tentativas O balé de corte vai tatear durante cerca de trinta anos, antes de se fixar de modo claro e definitivo. Quando Henrique II entra em Paris em junho de 1548, sdio organizadas lides. As crénicas contam que os concorrentes chegavam ao torneio conduzidos por momos disfarcados de amazonas e dancando um es- boco de balé. Em 1550, festeja-se o parto da senhora de Luxem- burgo: nove damas de honra de Catarina de Medici, que representam as nove musas, descem de um cena- rio que simula 0 Pamnaso, Declamam e dangam diante do rei e da corte. Da mesma forma, em 1554, em comemoracao a volta do rei a Saint-Germain, repre- senta-se uma mascarada de seis sibilas, entre as quais estao suas filhas, Elizabeth e Claude, e sua futura nora, Maria Stuart. Mas eis que em 1564 aparece o primeiro balé de corte com seus elementos constituintes, danga, mii- sica, poesia, cendrio com maquinas, ligados a uma ago dramatica: Carlos 1X, influenciado por sua mae, faz uma viagem de propaganda pela Franca. Em Bar- le-Due, perto do feudo de seu rival, oduque de Guise, representa-se um balé com versos de Ronsard, onde se pode ver uma querela dos quatro elementos, dos quatro planetas maiores, cujas desordens sao apazi- guadas por Jiipiter. A alusao é clara: Jupiter, coorde- nador do mundo, garantia de harmonia e paz, é 0 rei. Este primeiro balé de corte, ainda bem proximo dos trionfi a italiana por sua falta de complexidade, é, porém, bem notavel, porque, pela primeira vez, apre- senta uma aco dancada; é, na verdade, o primeiro balé de propaganda. 82 Historia da Danca no Ocidente O segundo, de estilo diferente, tera a mesma finali- dade. Durante esta mesma viagem, Catarina chegoua Bayonne para encontrar sua filha Elizabeth, casada com 0 rei da Espanha, Filipe II, que, tendo subornado Guise contra a coroa, nao se abalou. Num festim na ilha de Aiguenau, Catarina apresenta aos senhores espanhois 0 reino de Franca, numa mascarada que encomendou a Baif. De cada lado daaléia que levavaa sala de banquetes, grupos de mogas que representa- vam as dezesseis provincias da Franga executavam dangas de sua regiao: “poitevines com a cornamusa, provengais, a volta com timbales...” escreve Bran- tome. Na sala, onde pastoras “vestidas de ouro e de cetim” serviam, um prélogo que celebrava a paz era cantado pela “fada dos Pireneus” entre “um grande grupo de satiros mtsicos”, que precediam um carro onde havia um “rochedo luminoso”. Abrem-se 0 ro- chedo eas drvores que o ornavam: de la descem ninfas que dangam e cavaleiros que combatem dancando. A filiagao com o entremez é nitida. O balé de casamento de Henrique Mais caracteristico é 0 balé dangado por ocasiao do casamento de Henrique de Navarra e Margarida de Valois, no Louvre, a 20 de agosto de 1572 (fonte: Mémoires pour Vestat de la France sous Charles le Neuvieme). Em primeiro lugar, foi apresentado um desfile de carros sobre temas marinhos. Um deles, em forma de cavalo marinho dourado, trazia Carlos IX vestido de Netuno, rodeado de principes e senhores que danca- vam ‘Apés esta referéncia ao entremez, veio o balé pro- priamente dito. Seu acompanhamento eram versos de O balé de corte 83 Ronsard e a misica do cantor-idolo da época, 0 cas- trado Etienne le Roy, cantor da camara do rei e abade de Saint-Laurent. A agao é dangada na grande sala de Bourbon do Louvre, que vai se tornar 0 local de repre- sentacdo dos grandes balés por um bom periodo. No lado direito, o paraiso com um arco do triunfo e os Champs-Elysées, “um paraiso embelezado pelo verde e por todas as espécies de flores e 0 céu empi- reo, que era um grande circulo com os doze signos, sete planetas e uma infinidade de estrelinhas que provocavam uma grande luminosidade e claridade por meio de lampadas e tochas acomodadas por tris”. 1A estavam postadas doze ninfas, “vestidas com bas- tante riqueza”’. No lado esquerdo, 0 inferno, “no qual havia muitos diabos e diabinhos que faziam macaquices e arruaga, com uma grande roda que girava cheia de guizos”. Cavaleiros errantes (Navarra e dois nobres hugue- notes) querem se apossar do paraiso, mas um outro partido, o do rei e seus irmaos, rechagam-nos e€ os aprisionam no inferno. “Imediatamente descem do céu Merctirio (Etienne le Roy) e Cupido, dancando e cantando.” O rei e os seus vao ao paraiso procurar as ninfas “que levam ao meio da sala, onde elas come- cam a dancar um balé bem diversificado, que durou mais do que uma boa hora”. A pedido de Mercurio, de Cupido e das ninfas (alusao ao casamento que deveria trazer a paz entre catdlicos e protestantes e ainda aliviar 0 rei da pressao dos Guise), Navarra e seus companheiros sao libertados. Lides e fogos de artifi- cio arrematam a festa. Ao integrar elementos — entremezes, lides — ins. pirados no passado, o balé propriamente dito mostra um progresso decisivo em relacao ao de Bar-le-Duc: a 84 Historia da Danga no Ocidente acao dramatica € clara e diversificada com suas peri- pécias. O cenrio é légico, engenhoso, pitoresco. O balé das ninfas, porém, nao esta perfeitamente inte- grado acao, mesmo sendo 0 principal elemento co- reografico. Trata-se claramente de um balé de propaganda, que expée alegoricamente o estado da Franca: os protes- tantes vencidos serao libertados pela cleméncia do rei, e a paz sera garantida. Propaganda iluséria: trés dias depois, seria a noite de Sao Bartolomeu. Talvez por ser uma afirmagao publica da mudan¢a de politica que o rei queria, o balé, de certa forma, levou os Guise e Catarina a cometerem 0 irreparavel. O“Balé dos embaixadores poloneses” Em 1573, uma importante delegagao de nobres po- loneses vém a Paris oferecer o trono ao duque de Anjou, irmao do rei, seu futuro sucessor, sob o nome de Henrique III. Carlos IX, que quer se livrar de Anjou, prepara uma recepgao luxuosa. Um balé é composto para a ocasiao. Jean Dorat escreve os versos latinos (que mais tarde serao traduzidos por Ronsard e Amadis Jamyn). Mu- sica de Roland de Lassus. Cendrio de Mansenius (Mancini?). Autor: Balthazar de Beaujoyeux; este balé é sua primeira criacao conhecida na corte. A obra comeca por um prélogo em latim entre a Franga, a Paz e a Prosperidade. Depois aparece um carro com um rochedo, sobre o qual estio dezesseis ninfas. “Apés terem dado uma volta na sala sobre esta rocha, numa parada, como no campo, todas acabaram descendo do rochedo e, tendo se posto em forma de O balé de corte 85 equeno batalhao estranhamente inventado, os violi- 108 chegandbo a trinta, tocando uma dria de guerra bem ‘agradével, elas comegaram a marchar ao som da aria de violinos e com uma bela cadéncia, sem nunca dela Sair, e se aproximaram e pararam diante de Suas Ma- Jestades e depois, ao dangar seu balé tao bizarramente inyentado e com tantos giros, contornos e desvios, entrelacamentos e misturas, afrontamentos e paradas, nenhuma dama falhou em seus passos, pois estas damas tinham o julgamento sdlido e boa memoria.” (Brantéme, Mémoires) Apresenta-se finalmente a ninfa de Anjou, que faz o elogio ao futuro rei da Polonia. Podemos negligenciar as outras festas, como 0 fes- tim com entremezes oferecido pelos almotacés de Paris a Henrique III, no dia 6 de fevereiro de 1578, que comportava uma “écloga latina e francesa... jun- eente com 0 oraculo de Pa”, os autores sendo Dorat e Bait. O “Balé cémico da rainha” 1581 € 0 ano da criagio do Ballet comique de la reine, balé de corte caracteristico, o mais conhecido, que fixara o género. Do dia 18 ao dia 24 de agosto de 1581, foi celebrado com extremo fausto 0 casamento do duque de Joyeuse, um dos favoritos do rei, com a irmé da rainha Luisa, Marguerite de Lorraine-Vaudémont. O rei havia encomendado para as mascaradas e lides versos de Ronsard e Baif e musica de Claude Lejeune. Por sua vez, a rainha quis montar um balé, Como os “for- necedores” habituais estavam ocupados, dirigiu-se a 86 Historia da Danga no Ocidente Balthazar de Beaujoyeux, que havia se qualificado com 0 Ballet des ambassadeurs polonais como orga- nizador destes espetaculos. Seu nome de origem era Baldassarino da Belgioso. Era um piemontés que, segundo Brantéme, viera para a Franca com um conjunto de violinos “muito deli- cado, muito completo”, trazido pelo marechal de B: sac. Fez carreira na corte. Em 1567, foi criado de quarto de Catarina de Medici; mais tarde desempe- nhou a mesma fungao junto a Maria Stuart. Participa da vida intelectual da época, pois freqiienta a acade- mia de Baif. Toma-se escudeiro e senhor de Landes. Morre em 1585 (ou 1587). Em suma, uma carreira na corte nem um pouco além da média. Beaujoyeux emprega os colaboradores disponiveis: para os versos, o senhor de la Chesnaye, esmoler do rei; para a mtisica instrumental, 0 tocador de baixo € alatiide Lambert de Beaulieu e Fabrice Cajetan, um discfpulo de Baif, que diz compor uma musica “metri ficada’”’; para a parte vocal, mestre Salomon, cantor € criado de quarto do rei. Todos de terceira categoria. Realmente era preciso que o género do balé de corte tivesse chegado a maturidade para que estes peque- nos talentos tornassem sua obra um arquétipo. Beaujoyeux concebe o balé como uma agao falada, cantada e dangada segundo os costumes da época. Seu assunto sao os encantamentos de Circe, tema de Ho- mero que era da ordem do dia, pois Agrippa d’Au- bigné afirma em suas Memorias que, desde 1573, tempo em que era escudeiro de Henrique de Navarra em Londres, havia “concebido Circe”. ‘A obra nao ficou pronta a tempo. $6 foi apresentada no dia 15 de outubro na grande sala Bourbon do Louvre. ¥ O balé de corte 87 Mas Beaujoyeux havia refletido sobre as experién- cias precedentes e sentido que a légica do balé de corte era a de um “teatro total’. Escreve claramente no preficio de seu libreto: “Nao se deve atribuir tudo ao balé sem prejudicar a comédia... Assim, animei e fiz falar o balé e retumbar a comédia e, acrescentando representag6es e ornamentos ricos, raros, posso dizer ter contentado, em um corpo bem proporcionado, os olhos, os ouvidos e a compreensao”. O cenario é conhecido através do tinico documento iconografico que possuimos sobre este balé: uma gra- vura que ilustra 0 prologo. O rei e a rainha ficaram sob um dossel no fundo da sala. Ao seu redor, 0 ptiblico nas bancadas. Diante deles, do lado direito, a pequena mata e a gruta de Pa, do lado esquerdo, a “abébada dourada” do céu, feita com nuvens pintadas, iluminadas por dentro, que ser- via de tribuna para os cantores e muisicos. Na extremi- dade da sala, o espaco cénico: nao havia cenario, mas sim, pintados num mesmo plano, os jardins e 0 palécio de Circe, tendo de cada um dos lados uma passagem para Os carros € os atores. As pinturas eram de Jacques Patin, pintor do rei. Pode-se notar a semelhanga desta cenografia com ado balé parao casamento de Navarra. “As dez horas da noite, depois que se fez siléncio, escutou-se imediatamente atras do castelo (de Circe), uma nota de oboé, cometas, sacabuxas e outros ins- trumentos doces de misica.” Comegava 0 balé que deveria durar cinco horas e meia. Tratava-se de uma enorme maquina mitologico-ga- lante com intengao politica subjacente, organizada em um prologo e seis entrées: —Prélogo. Um nobre, que escapou do palacio-pri- sao de Circe, pede o apoio do rei contra ela. 88 Historia da Danga no Ocidente —Primeira entrée — Ao redor de Tétis (0 composi- tor Beaulieu) e Peleu, estao num carro as nereidas ¢ os tritdes dangarinos (a rainha Luisa, o principe de Lorraine, os duques de Guise, de Nevers ¢ 0 proprio Joyeuse), assim como vito tritées cantores. Circe apa- rece e petrifica~ — Segunda entrée. Mercirio entra com um grupo de ninfas; da vida aos “petrificados”, aspergindo-os com um liquido. Circe os petrifica novamente, inclu- sive Mercario e seu séquito, e depois os leva prisio- neiros a seu castelo. —Terceira entrée. As driades e as ninfas da floresta imploram a Pa, que promete ajudar. —Quarta entrée, Minerva aparece num carro em forma de serpente, rodeada de Virtudes. —Quinta entrée. Japiter desce do céu sobre sua guia. —Sexta entrée. Pa se junta a eles, seus satiros “ar- mados de bastdes nodosos e cobertos de espinhos”. Todos atacam 0 castelo. Jupiter aprisiona Circe e en- trega-a ao rei —Final. Pela primeira vez, é dangado um final que se tornard tradicional no balé de corte: 0 grande balé do qual participam todos os nobres — dangarinos, em trajes que se tornarao também tradicionais—penacho na cabega, mascara em geral dourada, tiinica curta que deixa as pernas muas, borzeguins flexiveis que vao até o meio da barriga da perna. Quando o rei participa, tem nos bragos lacos de fitas. Finalmente comega-o baile para toda a corte. O género esta definitivamente fixado com suas ba- nalidades e achados: prélogo em homenagem ao rei, entrées em diversos tons, que se inscrevem numa agao coordenada psicologicamente, uso do canto e da O bale de corte 89 danga misturados; a poesia declamada, um outro ele- mento, logo sera transformada em recitativa, mas 0uso dos “versinhos” dedicados aos personagens sobrevi- vera. O cenario ainda é estatico. Logo comportara mu- dangas visiveis. A cena A italiana sera utilizada, e as maquinas serdo aperfeigoadas. Nao temos uma partitura completa da obra; nao sabemos, portanto, que tipos de danga foram executa- dos, mas a maioria, com certeza, foi extraida do reper- torio de dangas da corte. Temos somente uma certeza: a danca geométrica foi utilizada para o final da obra. Em seus comentarios no libreto, Beaujoyeux indica- nos “uma entrée de quinze figuras, dispostas de ma- neira tal que, no final do trecho, todas se voltassem sempre para 0 rei; diante de sua Majestade, dangaram 0 grande balé com quarenta trechos ou figuras geomé- tricas... ora em quadrado, ora em roda e de muitas e diversas maneiras, e logo em triangulo acompanhado poralgum outro pequeno quadrado e outras pequenas figuras. No meio deste balé, constroi-se uma cadeia composta de quatro entrelacamentos diferentes”. Deve-se notar que 0 espago, entao, sé é utilizadoem quatro diregées, as perpendiculares dos cantos da sala. Atualmente utilizamos oito diregdes, as perpen- diculares e as diagonais. A utilizagao das quatro dire- Ges sera regra até 0 século XVII, inclusive, como indica a Choréographie de Feuillet. Beaujoyeux tinha consciéncia de ser um inovador. Afirma com énfase em seu Adresse au roi de France et de Polongne (Mensagem ao rei da Franga e da Polé- nia): “...E como as cares deliciosas que uma estagao nega a outra, ou de que uma regio é mais privilegiada do que regiées vizinhas, sd conservadas por meio da 90 Historia da Danca no Ocidente gordura e transportadas, despertando admiragao pelo territério que as possui, também esta refeigao de espi- rito que os senhores consideraram agradavel e que ainda nao cresce em qualquer outro lugar a nao ser no territério que os obedece, conservada no agticar das boas gragas dos senhores, temperada por sua aprova- cao e preservada na caixa deste pequeno monumento (seu libreto), possa conceder a todas as nagées sabo- rear o néctar, a ambrosia com a qual os senhores se deleitaram e satisfizeram os apetites de seu povo”. O Ballet comique de la reine fixou o arquétipo do balé de corte. O género sera aperfeigoado em sua forma, tornar-se-d mais refinado, mas nao mudara, nao evoluira em profundidade até se apagar, o interesse da corte voltando-se para outras artes, no final do século XVIL. Durante um século, o balé de corte explorara a for- mula estabelecida em 1581. Ira se espalhar pelas cor- tes da Europa e, curiosamente, sobrevivera até mea- dos do século XVIII nos balés organizados pelos je- suitas em seus colégios. Trés ligdes dangadas de politica Nao seria 0 caso aqui de analisar ou enumerar a imensa quantidade (quase mil) de balés de corte. E preciso, porém, reservar um lugar especial para os Ballets de Pau et de Tours, trés balés curtos, mas que mostram claramente a sua finalidade politica. Catarina, regente de Navarya, irma de Henrique de Navarra, era amante de seu primo, o conde de Sois- sons que, para ficar junto dela, havia desertado do exército. Henrique queria que ela se casasse, por questées politicas, com o principe de Bar. Ela recu- O balé de corte 91 saya e mantinha Soissons junto a elaem Pau. O Ballet de Pau (23 de agosto de 1592) pode ser considerado como uma primeira intimacao piiblica a princesa, sob aforma de alusao transparente. Apés um prélogo que louvava a beleza de Catarina, dois cavaleiros franceses e dois héarnais comecam a discutir: os primeiros querem casé-la na Franca, os outros se opdem a isto. Dangando um passo mezzo, aparece Merctrio, anunciando que Jupiter e Apolo resolveram que um combate decidiria 0 destino da princesa, um combate que ndo se travaria entre cave leiros, mas entre ninfas, duas de Diana, duas de Cu- pido. As tiltimas ganham. A honra se salva, e Catarina se casard na Franca. O grande balé celebra a paz fu- tura. Comoa licdo no foi ouvida, Henrique manda trazer sua irma a Tours, sua propria corte estando em Am- boise. Donde duas novas adverténcias, os dois Ballets de Tours. O primeiro, também chamado Ballet de Madame marco de 1593 — apela as alegorias, Amor, Razao, e Diana e dez ninfas. Em trés entrées, Razao e Diana yvencem o Amor; Diana toma suas flechas, dando-as & Razao, que as entrega ao rei. O segundo, também conhecido como Ballet de Ma- dame de Rohan — maio de 1593 —, coloca em cena Medéia, uma sibila, quatro ninfas, dois cavaleiros es- panhdis e dois franceses —a Franga estava em guerra fria com a Espanha, que havia enviado forgas para apoiar 0 partido catélico hostil a ascensao de Henri- que ao trono. Num prologo e seis entrées, Medéia, a maga, que é do partido espanhol, é vencida pelos franceses, auxiliados pelas ninfas. Antes da batalha, a sibila havia previsto que somente a uniao de Catarina 92 Histéria da Danga no Ocidente e Henrique numa politica comum poderia quebrar 0 encantamento da feiticeira. Os espanhdis, que haviam sido feito prisioneiros, sao entregues a Henrique, Medéia & Madame. 2 ‘A poesia declamada é mais usada do que o canto. E verdade que esses balés foram rapidamente improvi- sados. Na Franea, a evolucao ird no sentido da dupla musica vocal-danca; na Inglaterra, em direcio da dupla texto falado-danga: sera o mask, forma teatral ilustrada sobretudo por Ben Johnson desde 1605. A partir do advento de Henrique IV, 0 balé de corte floresce: de 1594 a 1610, descobrimos tracos de cento e cingiienta e seis balés ou mascaradas. Mesmo em 1611, um ano apés 0 assassinato do rei, haverd doze. Neles dominam danga, mtisica e poesia, em detri- mento dos cenarios e trajes. Com excegao de um Bal- let des cing nations, em 1598, por ocasiao do batismo de um bastardo do rei e da duquesa de Beaufort, e do Ballet de M. de Vendéme, a 12 de janeiro de 1610, quase todos sao balés burlescos e até grosseiros. Sem diivida, a falta de refinamento na corte de Hen- rique é um dos motivos do aviltamento do balé de corte, mas é preciso observar que, durante a década que segue as guerras de religiao, observa-se uma es- pécie de vazio na inspiragao literaria e artistica, antes do grande impulso que acontecera no primeiro tergo do século. Noplano da cenografia, houve uma inovagao impor- tante em Ariméne, pastoral dangada em Nantes, em 1506, para o governador da Bretagne, o duque de Mercoeur. Ha uma cena com uma inclinagao de 6%. Os cenarios foram pintados sobre as superticies de pent4gonos; sua manobra, operada por um maquinista. debaixo deles, permitia mudangas visiveis pelos es- O balé de corte 93 pectadores. Este método, inventado pelos tragicos gregos do século IV a.C. — os periaktoi —, redesco- berto na Italia do século XVI, é utilizado na Franga por Ruggieri, antigo astrologo da rainha-mae, agora cen6- grafo. Além disso, a maquinaria comportava um globo que descia dos arcos, onde estava Jupiter, em meio a trovées e raios. O Ballet de M. de Vendéme ou Ballet d’Alcine (12 de janeiro de 1610) assinala um progresso notavel. Pela primeira vez, procura-se alternar cenas nobres com cenas cémicas. O procedimento sera normal dali por diante. O tema é de Roland furieux (cap. VI e VII), mas é interpretado com uma fantasia barroca. O prologo dao tom, apresentando o “senhor Gobbemagne, consalto- tier da ilha dos macacos”’, com escravos mouros e turcos, cantores ou dangarinos, e um cortejo de violi nos disfarcados de “macacos verdes”, Na primeira entrée, Alcina faz dancar os cavaleiros que ela trans- formara em enormes torres e donzelas, potes de flores emochos, moinhos de vento e baixos de viola (Picasso nao inovard com Parada, em 1917). As ninfas escre- vem dangando 0 nome de Alcina. Ha combates de andes “em cabriolas”. Basta o olhar do rei para desen- cantar os cavaleiros, enquanto o palacio de Alcina rui em chamas. A entrée final é dangada por cavaleiros que “escrevem” figuras geométricas representando “o alfabeto dos druidas encontrado num velho mo- numento”. No plano da acao dramatica, os progressos sao niti- dos: Alcina éum personagem vivo e nao uma alegoria, com sentimentos que vao da soberba ao desespero. No plano coreografico, ha maior criatividade, as dangas so mais variadas, desde a “geometria” das ninfas e 4 Historia da Danga no Ocidente cavaleiros até liberdade do combate de andes. Tam- bém ha progresso na cenografia: 0 decorador, Senhor de Francine (Francini, intendente geral das Aguas e Fontes), utiliza telas com contrapesos e chassis rolan- tes que permitem a cena final. Mas a disposicao geral nao mudou: os dangarinos sao vistos no mesmo plano, diante do cenario e nao dentro dele. Finalmente, pro- gressos no plano musical: a orquestra se torna mais importante, Os doze violinos “macacos”, colocados numa tribuna, tocam em cinco vozes: alto, contralto, baixo, quinta pars, baritono. O recitativo substitui a declamagao. O balé falado esta morto. O sucesso foi grande: foi preciso reprisar o balé trés vezes. No entanto, temos um descontente, Pierre de VEstoile, que anotou em seu Journal: “Mostraram-me hoje o Ballet de M. de Vendéme, nova obra insipida impressa, que engordard a coletinea de bobagens des- tes tempos”. E verdade que havia uma grande dife- renga entre o libreto, pueril, e a representagao, sur- preendente. Um balé de politica externa: 0 “Balé de Minerva” Em 1610, Luis XIII tem nove anos. A regente, sua mae, Maria de Medici, tenta, em primeiro lugar, con- ciliar os principes através de doagdes importantes. Em 1614, eles se rebelam e ameagam provocar uma revolta dos protestantes; os parlamentos se agitam, principalmente o de Paris. Os estados gerais tm de ser reunidos de outubro de 1614 a fevereiro de 1615. A regente decide fortalecer sua autoridade destruindo as aliangas desejadas pelo rei falecido e tentando se aproximar da Espanha. Conclui um duplo casamento espanhol: sua filha Elizabeth une-se a Filipe IV de Obalé de corte 95 Espanhae Luis fica noivo de Anad’ Austria. (A filhade Elizabeth seria Maria Tereza, prima e futura esposa de Luis XIV.) Realiza-se entao, antes da partida de Elizabeth, um balé que mistura a auto-satisfacdo publicitaria com a poesia césmica: o Ballet de Minerve (19 de margo de 1615). A multidao era tao grande que a premiere foi agitada, e a obra teve de ser dancada também a 22 de marco, sempre na sala do Bourbon do Louvre. Autor: o poeta de corte Etienne Durand (tinha a renda da venda de 2000 livros por ano), com a colabo- ragio de Malherbe. Compositores: Antoine Boesset, superintendente da misica do rei e seu sogro, Gué- dron. Uma inovagao: eles substituem o recitativo, deci didamente pouco conforme ao gosto francés, por coros. Apos o prologo da Noite, a entrada dos Vapores noturnos. As sibilas predizem a grandeza da Franca. Seguida pelo Sol num carro, a Aurora atravessa 0 céu. Mudancas a vista do publico: a terra, os rochedos, as. ondas; dangarinos, pastores e tritées anunciam a vinda de Minerva. Ela triunfa sobre um carro levado por ‘Amores, seguida de amazonas, coroada pelo Renome e pela Vitoria. Anuncia-se a idade de ouro, benfeitoria de Maria-Minerva: Un siécle renaistra comblé d’heur et de joye... Tous métaux seront or, toutes fleurs seront roses, Tous arbres oliviers; L’an nauraplus d’hyer, le jour n’aura plus d’ombre Etles perles sans nombre Germeront dans la Seine au milieu des graviers.* * Renascerd um século pleno de felicidade e alegria../ Todos os metais, Hero our, todasas flores, rosas, todas as érvores, oliveiras;/ oanonndo tera “als invemo, o dia ndo tera mais sombra/ e um sem mtimero de pérolas! ‘Menminariino Sena, em meio ao cascalho. 96 Historia da Danga no Ocidente E 0 inicio de um género que vai se impor dali por diante: a representacdo com maquinas, em que 0 tinico objetivo da trama dramatica é 0 de serviro efeito cénico. Mas a obra marca um progresso decisivo no plano coreografico: o balé de corte atinge a maturi- dade. O cendégrafo é Francini. Mandou construir um cenario de seis pés de altura por oito toesas, em qua- drado, ligado a sala por planos inclinados. A’ Noite apresenta-se diante de uma tela-cortina. Por tras, chassis rolantes, chassis poligonais, telas com contra- peso, algapGes permitem a mudanga instanténea dos cinco cenarios, As entradas e saidas se fazem por aber- turas reais do proprio cendrio. Pela primeira vez, os dangarinos movimentam-se dentro do cenario. “A Libertagdo de Renaud’... e de Luis O governo de Maria de Medici esta desacreditado, sua equipe ministerial muda incessantemente, 0 ver- dadeiro poder pertence ao favorito Concini, marechal d’Ancre, detestado por todos. Luis XII, que, com de- zesseis anos, € maior legalmente, continua afastado dos negécios; passa seu tempo a cacar com seu favo- rito Luynes. Os principes levantam tropas contra Concini, que manda prender seu chefe, Condé. Com 0 balé cujo tema escolheu na Jérusalem déli- vrée, de Tasso, e que encomendou a Etienne Durand, Luis anuncia sua vontade de intervir, de assumir efe- tivamente o poder, o que fara a 21 de abril do mesmo ano, ou seja, trés meses depois, com 0 assassinato de Concini. O tema é duplo: libertacao do herdi e gran- deza do rei. O papel de Renaud era desempenhado por Luynes, O balé de corte 97 o proprio rei figurava em duas entrées (um deménio do fogo e Godefroy de Bouillon). © prelidio se passa diante de uma cortina, que representa 0 palacio de Armide. O primeiro cendrio é um rochedo cheio de nichos, onde estao os deménios. (0 rei e doze cortesaos). Renaud esta ao pé da rocha. Danga dos deménios. O segundo cenario mostra 0 jardim encantado de Armide. Uma ninfa quer seduzir ‘os soldados que vieram procurar Renaud. Eles resis- tem; ela é substituida por monstros hibridos: mo- chos-juizes, cies-camponeses, macacos-donzelas, Os soldados continuam impavidos, Renaud canta e danca © poder do amor. Um guerreiro estende-lhe um es- pelho. Renaud vé nele sua covardia. Arrasado e fu- rioso consigo mesmo, ele se deixa levar. Terceiro ce- nario, o jardim devastado: Armide chama os deménios para socorré-la, eles aparecem sob a forma de caracéis, caranguejos, tartarugas. Ela os transforma em velhas que cagoam dela e levam-na para fora do paleo, en- quanto 0 palacio desmorona. Quarto cenario: um car- ro-bosquezinho transporta os soldados de Godefroy de Bouillon, que cerca Jerusalém. Didlogo de Renaud com um eremita, que completa sua conversioem uma cena de superespetaculo, com um coro de noventa € duas vozes e quarenta e cinco instrumentos. Quinto cenario: Renaud se rende na tenda de Godefroy, a quem os senhores homenageiam, jogando-se a seus pés como diante de um deus. Ha um duplo significado politico no balé; o proprio libreto da a chave: deménio do fogo, o rei quer “pur- gar seus stiditos de qualquer desobediéncia”. Nacena final, o rei estabelece pela primeira vez, prefiguragao do que sera gradualmente elaborado e completado por Luis XIV, uma etiqueta de distanciamento. 98 Historia da Danga no Ocidente Num cendrio muito avancado, 0 contraste das dan- cas é habilmente explorado: dignidade da danga dos deménios purificadores, dos cavaleiros cortesdos, em oposigao com o burlesco dos deménios da feiticeira. Além da significagao politica desta oposigdo, deve-se ver nela um reflexo da dupla tendéncia presente na literatura da época: o grandioso melodramatico com Pyrame et Thisbé, de Théophile de Viau, de 1621, Parthénée, de Gomberville, de 1622, e o realismo cémico doFrancion, de Sorel, publicado em 1623. “A aventura de Tancredo na floresta encantada” Apos um outro balé “cavalheiresco”, la Folie de Renaud, cujo texto é de René Bourdier, substituto de Durand, que passou pelo suplicio da roda e foi quei- mado em Greve por ter escrito panfletos contra Luy- nes, eis uma obra de mesma inspiragao, l’Aventure de Trancrede en la forét enchantée (12 de fevereiro de 1619), que chama a atencao pelo progresso que assi- nala no plano da coreografia pura. O balé, extraido da Jérusalem délivrée, de Tasso, foi encomendado por Luynes. Celebra, portanto, sua gloria ea do rei em trés atos e quatro quadros. Texto de Porchéres e Bordier, mtisica de Guédron e Belleville, maquinaria de Francini; ha até um pirotécnico, Ho- race Morel, oficial de artilharia. O relato do balé nos é dado por Scipion de Gramont, que nao esconde o papel de Luynes: “E 0 senhor, meu senhor, escreve, que, com sua prudéncia e felicidade, desfez as cadeias nao de uma floresta encantada, mas de todo um reino enfeiticado por sua propria desgraga”. Apés um prélogo em que se vé 0 cerco de Jerusa- lém, o primeiro ato é consagrado a floresta: 0 mago O balé de corte 99 Ismen, aliado de Saladin, combate com os seus satiros, silvanos e driades os lenhadores que constroem ma- quinas de cerco. Tancredo e os cavaleiros rechacam os deménios. A floresta arde. Trevas. No segundo ato, Tancredo liberta Clorinda, aprisionada num cipreste magico. No terceiro ato, anjos musicos e cantores des- cem duas vezes no palco transformado em templo. No Ultimo ato, triunfo: os conquistadores da Palestina cantam louvores ao rei e a seu favorito. Aqui as dangas sao adaptadas as situagées, tém valor descritivo; as dangas de corte se altermam com dangas “cadenciadas”, por vezes geométricas. Nao falta 0 pa- tético, como o reencontro de Tancredo e Clorinda (Monteverdi s6 escrevera oCombattimento em 1624). O efeito cénico é procurado com insisténcia: no pri- meiro ato, quando da entrada das divindades do in- ferno, Plutéo, numa danga do fogo, queima a coroa de Proserpina, que acende a coroa de Charon; este transmite a chama as doze divindades que, entrando de trés em trés, dangam seu balé, “considerado o mais bonito devido a tantas chamas e luzes, que provoca- vam tanta diversidade”. Mais do que a Dédlivrance de Renaud, a Aventure de Tancréde conseguiu associar ao superespetaculo uma danca e uma mtisica muito evoluidas. Obalé barroco Os balés mitolégicos se sucedem em meio a balés burlescos na abundante produgao coreografica da época de Luis XIII, que assiste ao apogeu do balé de corte. Entre os balés burlescos, devemos reservar um lugar especial ao Ballet de la douairiére de Billeba-

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