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SAMIZDAT

www.revistasamizdat.com

28
maio
2010
ano III

ficina
SAMIZDAT 28
maio de 2010

Edição, Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho
A História da Literatura é também a História de suas rup-
Revisão Geral turas. Cada nova geração traz em si a essência da transfor-
Maria de Fátima Romani mação e da renovação. O novo precisa substituir o antigo; o
arrojado precisa emergir sobre as ruínas do obsoleto. Como
Autores diria Fernando Pessoa, sempre “uma coisa depois da outra”.
Ana Cristina Rodrigues Contudo, aquilo que se definiu como Modernidade foi a
Caio Rudá hipérbole deste percurso. Nunca antes tantos artistas e escri-
Cirilo S. Lemos
tores se empenharam tanto para enterrar o passado e desen-
volver novas formas de expressão; nunca antes o “obsoleto” se
Dênis Moura
revelou tão ultrapassado.
Giselle Natsu Sato
No cerne desta mentalidade estava toda uma revolução so-
Henry Alfred Bugalho cial e intelectual. As mudanças nas Artes refletiam a mudan-
Joaquim Bispo ça no ser humano e tudo se transformou: a escrita, a sexua-
José Guilherme Vereza lidade, a cultura, as relações sociais, as ciências, a tecnologia,
Jú Blasina até as guerras mudaram de natureza.
Leandro da Silva Somos herdeiros desta tradição, ou, melhor, somos herdei-
Léo Borges ros da ausência de tradições. A Modernidade nos lançou no
Marcia Szajnbok nada e aqui ainda estamos.
Maria de Fátima Santos Para onde devemos nos encaminhar? Qual é a nossa mis-
Maristela Deves
são? O que há de importante para ser dito?
Polyana de Almeida
Acredito que ainda não sabemos.
Wellington Souza
Henry Alfred Bugalho
Textos de:
Carlos Drummond de Andrade
Samuel Beckett

Imagem da capa:
http://farm4.static.flickr.
com/3022/2551618539_ffdab52be5_o.
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autores. A aceitação da revisão proposta depende da vontade
expressa dos colaboradores da revista.
Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

ENTREVISTA
José Inácio Vieira de Melo 8

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


José 12
Carlos Drummond de Andrade

MICROCONTOS
Ju Blasina 15

CONTOS
Uma história mal contada 16
Joaquim Bispo
Ai sonhos, sonhos... 18
Maria de Fátima Santos

Dança macabra 20
Henry Alfred Bugalho
Gargalhadas 24
Cirilo S. Lemos

Comportamento inadequado 30
Léo Borges

Alma de Urânio 34
Leandro da Silva

Sempre há uma verdade... (Parte 4) 36


Maristela Scheuer Deves

Sobreviventes e viajantes 38
Dênis Moura
TRADUÇÃO
Molloy 40
Samuel Beckett
TEORIA LITERÁRIA
Beckett e a desconstrução do humano 44
Henry Alfred Bugalho

RECOMENDAÇÃO DE LEITURA
Orgulho e preconceito contra zumbis 48
Ana Cristina Rodrigues
Lua Nova 52
Giselle Sato

ARTIGO
Manifestos Modernistas 54
Fatima Romani

CRÔNICA
Quando a natureza precisa intervir, quem são
os culpados? 56
Giselle Sato
Quando o mundo cai 58
Ana Cristina Rodrigues

POESIA
Inspirando 60
Ju Blasina
Á la Khlebnikov 62
Caio Rudá de Oliveira
Efemeridades memoráveis dela 64
Wellington Souza
Concisos 65
Wellington Souza
Tempestade 66
Ana Cristina Rodrigues
Passado 67
Polyana de Almeida
O homem só 68
José Guilherme Vereza
Manifesto 72
Marcia Szajnbok

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 74


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
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www.oficinaeditora.com
Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiam,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprimir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo de um samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

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E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Entrevista

José Inácio Vieira de Melo


José Inácio Vieira de Melo (1968),
alagoano radicado na Bahia, é poeta e
jornalista. Publicou os livros Códigos
do silêncio (Salvador: Letras da Bahia,
2000), Decifração de abismos (Salvador:
Aboio Livre Edições, 2002), A terceira
romaria (Salvador: Aboio Livre Edições,
2005) – Prêmio Capital Nacional de
Literatura 2005, de Aracaju, Sergipe, A
infância do Centauro (São Paulo: Escri-
turas Editora, 2007) e Roseiral (São Pau-
lo: Escrituras Editora, 2010). Organizou
Concerto lírico a quinze vozes – Uma
coletânea de novos poetas da Bahia (Sal-
vador: Aboio Livre Edições, 2004) e a
agenda Retratos Poéticos do Brasil 2010
(São Paulo: Escrituras Editora, 2009).
Publicou também o livrete Luzeiro
(Salvador: Aboio Livre Edições, 2003)
e o CD de poemas A casa dos meus
quarenta anos (Salvador: Aboio Livre
Edições, 2008). Participa das antologias
Pórtico Antologia Poética I (Salvador:
Pórtico Edições, 2003), Sete Cantares
de Amigos (Salvador: Edições Arpoa-
dor, 2003), Voix croisées: Brésil-France
(Marselha: Autre Sud, 2006) e Roteiro
da poesia brasileira – Anos 2000 (São
Paulo: Global, 2009).
Coordenador e curador de vários eventos
literários, como o Porto da Poesia, na
VII Bienal do Livro da Bahia (2005) e
a Praça de Cordel e Poesia, na 9ª Bienal

Foto: Ricardo Prado


do Livro da Bahia (2009), assim como
os projetos A Voz do Poeta (2001) e
Poesia na Boca da Noite (2004 a 2007),
ambos em Salvador, e Travessia das
Palavras (2009), em Jequié. É curador
do projeto Uma Prosa Sobre Versos,
em Maracás, desde 2008.Foi co-editor
da revista de arte, crítica e literatura SAMIZDAT – Você transita antagônicos. Mas o fato de
Iararana, de 2004 a 2008. É colunista do entre a literatura e o jorna- ser jornalista não define nada
site Cronópios e edita o blog Cavaleiro lismo. Estes dois mundos se em minha criação poética.
de Fogo (www.jivmcavaleirodefogo. comunicam em sua obra, Por outro lado, auxilia bas-
blogspot.com). Venceu o Prêmio Na- ou são exercícios paralelos, tante na divulgação.
cional Iararana de Poesia 2001/2002 e talvez até antagônicos?
o Concurso de Fotografia e Poesia Vila
d’Água 2009. JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE SAMIZDAT – Do Nor-
MELO – Não diria que sejam

88 SAMIZDAT maio de 2010


deste brasileiro já surgiram pinheira Filho. Sem falar na mas por ano. Às vezes, estou
grandes nome da literatura nova safra de poetas que está deitado numa rede, lendo,
nacional, como Jorge Amado, se consolidando. A poesia aí um passarinho canta no
José Lins do Rego, João Ubal- produzida no Nordeste é, pé de juá, que fica ao lado, e
do Ribeiro, Cecília Meireles, sem sombra de dúvida, de desperta um verso em mim.
Raquel de Queiroz, entre um vigor extraordinário. Outras vezes estou dirigindo,
incontáveis outros. No en- Talvez se deva a essa tradi- ouvindo rock, quase sem-
tanto, esta região tem histo- ção oral da qual você fala. pre o Led Zeppelin, e aí sou
ricamente alguns dos piores Talvez seja porque toda essa tocado pela musa, e surgem
índices de analfabetismo do aridez, todo esse desespero versos. Até contando gado,
país, sendo que, hoje em dia, seja a massa mais propícia passando na cancela, já fui
concentra 50% dos iletrados para amalgamar os versos. acometido pela poesia. Então,
brasileiros. Como você en- Talvez seja por a poesia ter não tem um processo. Eu
tende esta contradição? “Em começado no Nordeste, es- não escolho hora pra fazer
terra de cego, quem tem um pecificamente na Bahia, com poesia. A poesia é quem
olho é rei”, ou a qualidade Gregório de Mattos. determina o instante. E pra
literária nordestina funda-se ela, essa amante exigente, não
numa rica tradição popular tem hora certa. Tem que ser
oral? SAMIZDAT – Escarlate: cor no momento que ela deter-
que por muito tempo repre- minar. Não entendo muito
JIVM – Engraçado, dos sentou a nobreza, sobretudo
escritores que você citou de sociedade. Não sou muito
na Idade Média, figura sem- sociável.
apenas um é poeta. A Ce- pre nos teus escritos. Qual a
cília Meireles. Que não é relação entre a cor e o teu
nordestina. Ela é carioca. E fazer poético? SAMIZDAT – Seu novo
a minha preferida na língua livro, Roseiral, evoca muitas
portuguesa. O fato é que a JIVM – A cor vermelha
exerce uma grande influên- imagens, que se apresen-
maioria dos grandes roman- tam em mais de um poema,
cistas e poetas do século XX cia em minha pessoa. O meu
nome “Inácio” significa “Fogo”. como pedras e pétalas. Há
era formada por nordestinos. também representações da
Recentemente, Ivan Junquei- Sou ariano com ascenden-
te em áries. Minha cor é o infância, do humano, do
ra, poeta, ensaísta e tradutor, feminino e do erótico. Por
falou em uma entrevista para vermelho. Minha pedra é o
rubi. E a palavra escarlate que o privilégio das roseiras?
Carlos Ribeiro, no jornal A Fale um pouco sobre o novo
Tarde, que a melhor poesia bate sempre em minhas pál-
pebras. É uma palavra acor- trabalho.
do Brasil, na contemporanei-
dade, é feita no Nordeste. E dada. Quente. E eu não gosto JIVM – Não foi assim:
é verdade. Basta se debruçar de dormir. Vai ver que é por “O meu próximo livro vai
sobre a obra dos cearenses isso que ela aparece tanto se chamar Roseiral”. Nada
Francisco Carvalho, Gerardo nos meus versos. disso. Numa madrugada, lá
Mello Mourão e José Alcides na Pedra Só, acordei com um
Pinto, ou dos maranhenses monte de imagens destram-
SAMIZDAT – Gostaríamos belhadas que falavam de ro-
Nauro Machado, José Chagas
que falasse um pouco sobre sas, de mulheres, de sangue,
e Ferreira Gullar, ou ainda
seu processo de composi- de pétalas e de pedras. Então,
dos pernambucanos Alberto
ção. Como você combina a logo de cara fiz uns seis
da Cunha Melo e Marcus
inspiração e os insights com poemas, a maioria saiu em
Accioly, e mais o sergipa-
a racionalização do poema? versos decassilábicos. Meses
no Santo Souza, e, claro, os
Como o íntimo interage com depois surgiram uns poemas
baianos Maria da Conceição
o ambiente e a sociedade em falando mais das pedras, do
Paranhos, Antonio Brasileiro,
sua obra? planeta, das eras. Depois dei
Florisvaldo Mattos, Myriam
Fraga, Roberval Pereyr, Luis JIVM – Eu não tenho um mergulho na infância.
Antonio Cajazeira Ramos, processo de criação. Escrevo Um mergulho doloroso, mas
Adelmo Oliveira e Ruy Es- pouco. Em torno de 25 poe- que, por outro lado, trouxe o

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aflorar do erotismo no ado- verdade, de um questiona- Coordenação da entrevista:
lescente de cabelos encaraco- mento relacionado ao que é
Caio Rudá de Oliveira
lados. O Roseiral começa no divino. Por outro lado, é uma
terreiro de pedras, que leva denúncia do que é feito em
ao jardim, labirinto escarlate torno da idéia de Deus – seja
Perguntas feitas por:
por onde se faz a travessia qual for a nomenclatura (Alá,
para alcançar a calçada da Deus, Brama...). Assim como Caio Rudá de Oliveira
juventude e, finalmente, che- é uma abertura para uma
Georgio Rios
ga à casa da maturidade. “A série de denúncias que apa-
casa dos meus quarenta anos” recerão em outros poemas, Joaquim Bispo
é o alicerce disso tudo. como, por exemplo, a do
Henry Alfred Bugalho
patriarcalismo arcaico, que
desembocou no coronelismo Wellington
SAMIZDAT – Roseiral é que até hoje ainda vigora
um livro forte. Nele figuram em certas paragens do Brasil,
termos que não estão no sobretudo do Nordeste. Jogar
cânone poético. Por que essa pedras para despertar a au-
opção? rora das ideias. Eu sou uma
JIVM – Como já falei, não pessoa de fé. Mas a minha fé
é uma questão de escolha, de aumenta através do conheci-
opção. Os poemas surgiram mento.
da maneira que estão no
livro. Eu poderia ter optado
em não ser franco com a SAMIZDAT – Como você
minha obra e mudar deter- analisa o engajamento social
minadas palavras que pos- do poeta: possível, indispen-
sam vir a desagradar alguns sável ou facultativo?
ouvidos mais melindrosos. O JIVM – Não existe assunto
que acontece é que não faço poético e assunto não po-
poesia para agradar fulano ético. Na poesia até o im-
ou beltrano. Faço poesia por possível é possível. E nada é
uma necessidade. Se fosse obrigatório. Agora, eu, parti-
uma coisa que eu pudesse cularmente, não acredito em
controlar, juro que deixava poeta que não vive a poesia
de lado e nunca mais escre- nem muito menos em poeta
veria um verso. Mas se fizer que não lê poesia. A leitura é
isso, eu morro. indispensável.
SAMIZDAT – Além das
palavras corajosas e robustas, A Samizdat agradece a
figura no poema de aber- participação do poeta José
tura “Transmutação” a ideia Inácio, que faz aniversário
de Deus repreendido pelos hoje, dia 16, com o lança-
humanos. Ainda que o autor mento do seu novo livro Ro-
não seja submetido compul- seiral na Academia de Letras
soriamente ao seu contexto da Bahia, às 17 horas.
social, como você analisa
essa postura distinta de um
poeta cuja terra caracteriza-
se, entre outras coisas, pela
religiosidade?
JIVM – Não se trata de
uma repreensão. Trata-se, na

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10 SAMIZDAT maio de 2010
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José
Autor em Língua Portugesa

http://www.flickr.com/photos/sgmdigital/2423632945/sizes/o/
Carlos Drummond de Andrade

12 SAMIZDAT maio de 2010


E agora, José?
A festa acabou, Com a chave na mão
a luz apagou, quer abrir a porta,
o povo sumiu, não existe porta;
a noite esfriou, quer morrer no mar,
e agora, José? mas o mar secou;
e agora, você? quer ir para Minas,
você que é sem nome, Minas não há mais.
que zomba dos outros, José, e agora?
você que faz versos,
que ama, protesta? Se você gritasse,
e agora, José? se você gemesse,
se você tocasse
Está sem mulher, a valsa vienense,
está sem discurso, se você dormisse,
está sem carinho, se você cansasse,
já não pode beber, se você morresse...
já não pode fumar, Mas você não morre,
cuspir já não pode, você é duro, José!
a noite esfriou,
o dia não veio, Sozinho no escuro
o bonde não veio, qual bicho-do-mato,
o riso não veio, sem teogonia,
não veio a utopia sem parede nua

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e tudo acabou para se encostar,
e tudo fugiu sem cavalo preto
e tudo mofou, que fuja a galope,
e agora, José? você marcha, José!
José, para onde?
E agora, José?
Sua doce palavra, fonte: http://www.memoria-
seu instante de febre, viva.com.br/drummond/poe-
sua gula e jejum, ma022.htm
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?

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Carlos Drummond de Andrade nasceu em Minas Drummond, como os modernistas, proclama a
Gerais, em uma cidade cuja memória viria a per- liberdade das palavras, uma libertação do idio-
mear parte de sua obra, Itabira. Posteriormente, foi ma que autoriza modelação poética à margem das
estudar em Belo Horizonte e Nova Friburgo com os convenções usuais. Segue a libertação proposta por
Jesuítas no colégio Anchieta. Formado em farmácia, Mário de Andrade; com a instituição do verso livre,
com Emílio Moura e outros companheiros, fundou “A acentua-se a libertação do ritmo, mostrando que este
Revista”, para divulgar o modernismo no Brasil. Du- não depende de um metro fixo (impulso rítmico). Se
rante a maior parte da vida foi funcionário público, dividirmos o Modernismo numa corrente mais lírica
embora tenha começado a escrever cedo e prossegui- e subjetiva e outra mais objetiva e concreta, Drum-
do até seu falecimento, que se deu em 1987 no Rio de mond faria parte da segunda, ao lado do próprio
Janeiro, doze dias após a morte de sua única filha, a Mário de Andrade.
escritora Maria Julieta Drummond de Andrade. Além
de poesia, produziu livros infantis, contos e crônicas. fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drum-
mond_de_Andrade

http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada

ficina
14 SAMIZDAT maio de 2010
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Microcontos

Oqdz... Ju Blasina

http://www.flickr.com/photos/b0jangles/3445979453/sizes/m/
...Da Exatidão ...Da Ambição ...Da Dependência

Ao servir as taças, falhava Emprego nenhum lhe Era muito cômodo para
sempre no mesmo ponto. Era servia, afinal, pensava alto. E ele, mas não se ela o acom-
um fracasso em cheio! desde pequeno só queria ser panhasse.
auditor.

...Da Inocência

Pediu para o papai-do-céu


proteger o outro papai. Dias
depois um acidente fez duas
vítimas. O vizinho se recupe-
ra em casa, o papai, no céu.

...Da Latência ...Da Inconstância ...Da Exorbitância

Eram quatro da manhã e Vez ou outra era dele, mas Custava os olhos da cara,
um silêncio estranho enchia não raro falhava. mas vinha uma bengala de
a casa. Quatro e dois ele brinde.
latiu.

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Contos

Uma história mal contada


Joaquim Bispo

16 SAMIZDAT maio de 2010


Pedro desceu as escadas derrota.
sem olhar para trás. Não Henry Alfred Bugalho
* A
queria saber se Amélia GUI
Nova York
chorava, se o espreitava pela Pedro entrou e não
janela. Este amor chegara se aproximou de Joana.
ao “final” e não valia a pena Postou-se em frente dela

para Mãos-de-VAca
pensar mais nisso. de braços cruzados e disse,
glacial:
*
– Quero essa história
– Não foi nada disso! – muito bem contada, tintim
Joana parecia visivelmente por tintim. O Guia do Viajante Inteligente
ofendida.
– Mas que história? – Jo- www.maosdevaca.com
– Então, se não te enro- ana parecia surpreendida.
laste com ele, porque é que
ele estava em tua casa às – Queres-me dizer que
duas da manhã? já te esqueceste do tipo que
meteste cá em casa?
– Já te expliquei que o
táxi onde eu ia teve um – Como te expliquei ao
acidente em que fiquei ma- telefone, tive um acidente e
goada e esfarrapada e ele ele ajudou-me.
ofereceu-se para me trazer – Pelos vistos, gostaste da
a casa. ajuda! – Pedro arrastava as
– E trouxeste-o tu para palavras.
casa. – Pedro afivelava um – Sim, foi simpático
sorriso sarcástico. ajudar-me no estado em
– Ele também estava es- que eu estava. – Joana fazia-
toirado com a ida ao hos- se desentendida. Não queria
pital e tudo isso. – insistia um “desenvolvimento” do
Joana. – Quis ser simpática. ciúme dele. Mas Pedro não
desarmava:
– Para ser simpática não
é preciso metê-lo na cama. – Estavas aflitinha, era?
– Pedro escolhia as palavras *
que pudessem ferir mais. Desde as dez da noite
– Para! – berrou Joana. – que Pedro tentava contac-
Estúpido! Desaparece. Como tar Joana e ela não atendia.
é que podes dizer isso de Vinha do Norte onde tinha
http://www.flickr.com/photos/emilyhigginson/1353441602/sizes/l/

mim? feito a “apresentação” se-


– Estou farto desta mer- manal da empresa, e queria
da toda! Para mim, chega. vê-la ainda nessa noite. O
Tchau! – Pedro encami- telefone tocava mas nin-
nhou-se para a porta. – Fica guém atendia. Só às duas da
bem. Volta lá para o teu manhã ela atendeu de casa
amiguinho… e Pedro percebeu uma voz
masculina lá atrás. Ficou
– Estúpido! Estúpido, possesso.
estúpido! Não te quero ver
mais. Quando chegou a Lisboa,
dirigiu-se directamente a
Pedro bateu com a porta, casa de Joana. Subiu as es-
enquanto Joana se afundava cadas duas a duas.
no sofá, num “clímax” de

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Contos

ai sonhos, sonhos...
Maria de Fátima Santos

http://www.flickr.com/photos/jeremybrooks/2385606610/sizes/l/

18 SAMIZDAT maio de 2010


Sem ruído, caminho, pé carnaval com dois palhaços.
ante pé na bordinha do Que a minha vista deste
meu olho esquerdo lado, é dada a visões: poços
E nem estou chorando, e princesas e sapos e mui-
que não é lágrima: aquele ta gordura em poções de
verde é tinta de eu ter esta- bruxedos…
do a enfeitar-me. Nunca é assim no olho
E desço, a ver se o con- esquerdo que só adormece
traforte do sapato surte quando cantam os galos.
aquele efeito que vi no
cadeirão do sapateiro:
Eu que me sento na bor-
– Pode mostrar-me da- dinha, com os dois sapatos
queles costurados? dependurados do mindinho.
E o homem deu-me um Se me acontece ador-
par: verniz encarnado com mecer um olho sem que o
muitos buraquinhos. outro acorde, costumo ter
Sobram deles o meu dedo sonhos dos dois olhos.
mindinho. Quando se dá, fico-me
Uma gota verde a desli- enroscadinha no verde da
zar como se fosse lágrima minha íris como colcha que
e eu a caminhar no bordo, me cubra.
um pé a seguir ao outro. É só então que calço o
– Olha! meu par de sapatos e ando
Espanto-me e torno: de saltos muito altos, mui-
to encarnados…Ando,
– Olha como fico bem então, por muito lado e não
de saltos altos! apenas na bordinha do meu
E dizendo isto, distraio- olho enfeitado de verde.
me.
Deslizo pelo rosto e
grito:
– Olha como choro!
O contraforte preso
entre dois dedinhos, e eu a
descalçar-me para que não
magoe o olho por onde
caminho, devagarinho, sem
outro destino que não seja,
entendo, mas sem muita
certeza.
Irei apenas na sombra
dos meus cílios sem que
seja para ir para onde.

No meu olho direito, eu


estou dormindo e sonho
com cavalos e um corso de

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Contos

Henry Alfred Bugalho

Dança Macabra
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20 SAMIZDAT maio de 2010


José — também conhe- do de um pedido — Man-
cido como José da Kombi, da uma loura gelada pra
ou simplesmente Zé Carre- refrescar.
teiro — entrou no boteco, O dono do bar, Barto-
logo ali, quase na esquina lomeu, atendia de pronto,
da Saldanha Marinho, a sempre atencioso e sorri-
ruela dos malandros, com dente, mesmo com o bê-
a Visconde de Nacar, a bado mais inconveniente.
avenida das prostitutas, e José segurou o seu copo e
cumprimentou seus amigos. entornou-o num gole só.
No balcão estavam sentados Deu uma bafora de satisfa-
Jonas de barbas grisalhas, ção — Ah! Essa é da boa! —
Ronaldo ou Rony — o recebendo a aprovação de
mecânico truculento —, o João, que o olhava curioso
Mário da construção — exí- e ansioso, talvez tentan-
mio pedreiro que carregava do recordar-se de alguma
pinga na garrafa-térmica história mais ou menos
para firmar o pulso logo de interessante que fosse digna
manhã — Paolo da Sicília de ser posta na roda. Com
— italiano mal-encarado o cérebro anuviado, desistiu
que adorava cuspir no chão, — “Quem sabe mais tarde?”,
no copo, no balcão, fosse pensou, esquecendo-se, logo
onde fosse — e Pedro — si- em seguida, daquilo que
nuqueiro e pinguço profis- pensara há dez segundos
sional; uma das duas mesas atrás. José pediu mais uma
ainda permanecia vazia, rodada. Uma terceira. Uma
na outra estava sentado quarta. Uma décima.
sozinho o eloqüente João,
contador de causos que Por que ele fazia aquilo?,
deixara o interior do estado José pensou, olhando filoso-
para procurar emprego na ficamente para o reluzente
cidade. Malograda tentativa. copinho vazio. Não quero
Ocupação atual: degustador voltar pra casa. Não agüen-
de cerveja. Jogavam sinuca to aquele nenê que não
o Chico da Luz, excelente para de chorar nunca. Os
eletricista, e Paulo Véio, um dois meninos já eram sufi-
polido e circunspeto senhor cientes, não entendo porque
na casa dos cinquenta anos, a Lúcia quis um terceiro fi-
freguês do boteco há mais lho. Realmente, não suporto
de quinze. mais essa vida. Ou será que
ela pensa que o dinheiro
José entrou e se sentou dos carretos é suficiente pra
ao lado de João. Pediu uma dar o que comer para aque-
caninha. Apenas uma, para les pançudinhos? Ela que se
começar. Uma televisão vire! Aposto que a cobra da
monocromática transmitia mãe dela deve estar lá em
o jornal das oito, mas nin- casa. Maldito aquele que
guém lhe dava importância. inventou a sogra! Os pais
Alguns comentavam a der- deveriam morrer quando
rota do Coritiba no último duas pessoas se casam. Que
jogo, outros reclamavam do pensamento horrível este!
calor, sempre acompanha- Concentre-se no copo. Por

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que ele está vazio? — Enche em dois anos. Eu seria um distinguir algum ponto de
aqui, Bartolomeu! — Aí vem grande jogador, sem dúvida! referência, algum rosto co-
ele, meu Salvador! Como Mulher é bicho ruim, não nhecido, a sua Kombi. Sua
é belo o líquido que desce gosta de ver homem feliz. cabeça rodopiava, carros
pelo gargalo da garrafa e Se bem que eu ainda amo passavam de um lado, ôni-
preenche o copo vazio, e, Lúcia; adoro aqueles olhi- bus vermelhos e compridos
depois, como eu estendo nhos pretos que me recep- do outro. Onde estou? Cadê
o meu braço, apanho o cionam quando chego em a minha perua? Mantinha-
copo cristalino, suspendo-o casa. Então ela vem e me se de pé com esforço. Solu-
até a minha boca, e como, beija na bochecha e diz que çava. Sentiu uma ânsia de
virando-o rapidamente, sentiu saudades. Sinto falta vômito, mas ainda não era
sinto aquele líquido cálido do seu corpo contra o meu, a hora para isso; talvez em
e inebriante descendo por juntos, entrelaçados, sob casa. Zé olhou para cima e
minha goela abaixo, caindo os lençóis. Mas isso foi há viu, com pouquíssima dis-
gostosamente sobre o meu muito tempo atrás. Agora é tinção, alguém o observan-
estômago semivazio, onde só choro e criança berran- do na janela de um prédio.
o resto de lanche da tarde do, e sogra reclamando que Maldito bisbilhoteiro! Desce
ainda está sendo digerido, eu tirei sua filha de casa aqui embaixo pra eu te dar
e como ele entorpece o para deixá-la na miséria. Só uma surra e ensinar a não
meu cérebro boçal, quase que ela tem é uma vida de espionar as pessoas! Onde
analfabeto. O boteco é belo. rainha, isso sim! Fica o dia estou? Ele sentiu suas per-
A minha casa é o inferno. inteiro em casa, sem fazer nas fraquejarem e a cabeça
Adoro as histórias do João, nada, enquanto eu labuto pesou. Deu três passos para
mas esta eu já conheço. É todo santo dia pra levar trás e tombou, chocando a
sobre o dia que os sem- comida pra casa. O único cabeça violentamente no
terras tentaram invadir luxo que eu tenho é a mi- chão. Toc!
a fazenda do seu antigo nha cachacinha de vez em Ninguém se importou
patrão, e sobre o tiroteio quando. Também sou filho com aquele homem incons-
que aconteceu lá quando o de Deus, caramba! ciente largado na calçada.
fazendeiro resolveu reagir. As pessoas que passavam
Deve ser bom morar no por ali ou desviavam ou
campo, longe deste caos que Zé Carreteiro deixou o
boteco trançando as pernas, fingiam que não havia
é a cidade, longe do trânsi- ninguém aos seus pés. Se Zé
to. Até hoje não sei porque tropeçando nos próprios
pés. Estava alto. Longe. estava morto ou vivo, isto a
resolvi fazer carretos. Claro pessoa alguma importava.
que me lembro! Foi quando Muito longe. Só não bebeu
mais porque o dinheiro que O seu corpo inerte era algo
eu perdi o meu emprego semelhante a um saco de
na construção. Se não fosse recebera naquele dia havia
terminado; se tivesse mais, lixo à espera do caminhão
aquele pequeno acidente. de coleta. Isto até que uma
Não foi minha culpa ter não teria saído tão cedo de
lá. Virou à direita na rua viatura da polícia apareceu;
derrubado aqueles tijolos não se sabe se ela simples-
na cabeça do negão. Eu não Fernando Moreira e, cam-
baleante, passou ao lado do mente circulava pela região
queria ter machucado nin- ou se alguém, compadecen-
guém. Bons eram os tempos tubo de ônibus. Zé Carretei-
ro caminhou uns cinqüenta do-se ou enojando-se com
que eu jogava futebol. Eu aquele bêbado despejado na
podia ter sido melhor que passos de bêbado (frente,
esquerda, direita, trás, fren- calçada, ligou para a polí-
Pelé! Foi Lúcia quem me cia para que eles tomassem
perdeu. Embarrigou bem te, frente, direita, esquerda,
trás, frente...). Estacou. Onde alguma providência.
quando minha carreira de
jogador estava começando a estou? Olhou para os lados, A viatura estacionou
deslanchar. Eu estaria na se- para baixo, para cima. Ficou sobre a calçada e dois
leção brasileira no máximo rodando no lugar, tentando soldados da polícia militar

22 SAMIZDAT maio de 2010


desembarcaram. Olharam e partiram carrancudos. tos, de tal modo que, num
com desdém para o vaga- Uma senhora se aproxi- esforço descomunal, Zé se
bundo e ordenaram que mou e, postada à espera do levantou e esforçou-se para
ele se levantasse, porém, coletivo, olhava de soslaio, caminhar em linha reta.
sem resultado. Trocaram bastante desconfiada, para o Viu o seu veículo estaciona-
algumas palavras entre si, embriagado que estava sen- do e, contente, foi até ele.
maldições, talvez, sobre tado, com o torso levemente Zé Carreteiro dirigiu
a ingrata profissão deles. reclinado para a direita, para casa. Subiu na calça-
Soldado Moraes tentou justamente atrás dela. da três vezes, furou cinco
despertar Zé Carreteiro sinais vermelhos e quase
empurrando-o com os pés. Onde está a minha Kom-
bi?, procurou-a Zé, desani- atropelou um casal de
Zé resmungou. Abriu os velhinhos. Ao chegar em
olhos vagarosamente e viu mado. — A zenhora zabe
onde ixtá a minha berua?, casa, espancaria sua esposa
o vulto uniformizado dos e seus dois filhos, vomitaria
grandalhões. Quem são murmurou, miando, o ébrio.
— Eu acho que iztacionei na cama e sujaria todo o
essas pessoas? Por que estão banheiro com urina. Quan-
olhando para mim?, diva- aqui berto. E soluçou, sen-
tindo o gosto acre dos líqui- do deitasse sua cabeça na
gou o bêbado, que sentia cama para dormir, pensaria
uma forte dor-de-cabeça, dos gástricos que tentavam
voltar. Será que esta gorda apenas em como sua famí-
terrível combinação da que- lia estragara sua vida, sem
da com a embriaguez. Os não vai me responder? Zé
Carreteiro se levantou e, refletir em nenhum mo-
dois policiais se olharam e mento em como ele des-
decidiram carregar o bêba- ainda em passos de bêbado,
prosseguiu em sua busca truía, dia após dia, as pesso-
do até o outro lado da rua as que mais o amavam.
e deixá-lo sentado no ponto pela Kombi. Atravessou a
do ônibus metropolitano. rua, quase sendo atropela- Eu podia ter sido melhor
Ergueram-no, suspenden- do, e caminhou até o tubo que Pelé! Ah, se podia!
do-o pelos braços (não sem do biarticulado. Distinguiu
antes ter tentado despertá- o cobrador e também lhe
lo mais uma vez). As pernas perguntou sobre a perua.
de Zé, semiestendidas, ro- Recebeu apenas um olhar
çavam com o peito dos pés de desdém e continuou
no chão, ao mesmo tempo em sua marcha. Os pensa-
em que a calça, dois núme- mentos ainda rodopiavam
ros maior que o manequim e mais uma vez não pôde
do usuário (presente da sua manter-se de pé. Ao contrá-
sogra), escorregava lenta- rio da primeira vez, porém,
mente, exibindo sua cueca esta queda foi mais amena;
bege com três dias de uso. Zé Carreiro caiu de joelhos,
Zé se esforçou para erguê-la regurgitou líquido somente,
novamente, mas como era e beijou o solo. Olhava as
carregado pelos braços, não pedras da calçada forman-
conseguia segurar a peça de do um mosaico, viu uma
roupa que caía. Os policiais barata passando, e viu os
depositaram o bêbado, cujas pés de um rapaz. Um ôni-
calças já estavam na altura bus passou, ruidoso, estre-
dos joelhos, na porta de um mecendo o chão e ferindo
estabelecimento comercial os ouvidos. Zé sentiu vergo-
em construção, localizado nha de si próprio, pois es-
logo em frente do ponto de tava literalmente na sarjeta.
ônibus. Eles embarcaram, Tal sentimento contribuiu
então, no automóvel policial para clarear os pensamen-

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Contos

Cirilo S. Lemos

Gargalhadas
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Cícero entra em casa. Testamento: seu cachorro, eu não quero.”
Na mão treme um proto- seu puto. Pode ir tirando “Bate nessa boca, mãe.
colo. No rosto, um sorriso o cavalinho da chuva se Não vai acontecer nada
que traz ao mesmo tempo acha que vou deixar você disso.”
felicidade e expectativa. fazer essa prova. Você só
A mãe levanta do sofá, a
A respiração está pesada, entra pra polícia por cima
bacia de feijão vai ao chão.
os músculos estão tensos. do meu cadáver.
Cícero espera que ela cres-
Desobedecera às ordens A mãe, que continua ça, cuspa seus perdigotos
da mãe e se inscrevera no sentada no sofá, olho no elétricos, desate a matra-
concurso da polícia. feijão que cata para o jan- quear esquecendo-se da
Ainda podia ouvir os tar, ouvido atento à novela, força que faz para abran-
destemperos dela rever- agora ergue a cabeça. Olha dar o sotaque. Mas a mãe
berando pela casa de devagar para a porta, dá não faz nada disso: apenas
cômodos pequenos e de cara com Cícero para- lhe dá as costas e come-
desbotados: você não vai e do com o semblante per- ça a recolher o feijão. A
acabou. Não quero perder dido. cabeça treme de leve. Está
você presses doidos que “Que papel é esse?”, ela nervosa, ele sabe. Conhece
andam pela rua. É assim pergunta. Cícero imagina bem a mãe que tem.
mesmo que ela diz, o sota- mil respostas, mil explica- “Vai ter que andar carre-
que pernambucano dan- ções, vem na mente a ima- gando arma”, ela diz.
çando na boca, contraindo gem dela se agigantando
o para com o esses. Pres- “Só vou usar para me
feito uma górgona terrível,
ses. Quase preces. defender”, Cícero respon-
recebendo a notícia como
de.
O que queria mesmo quem recebe um balaço
era abraçá-la, deslizar a no peito e caindo no chão “E se precisar matar
mão por entre seus cabe- de cimento. alguém, logo você que não
los finos, agora cinzentos agüenta nem ver cachorro
Não era má pessoa, a
pela idade, e tranqüilizá- morto na rua?”
mãe. Até compreende
la: não tem problema não, o medo que ela sentiu “Não vou virar bandido,
mãe. Vou ser um bom po- quando ele, bebendo café mãe. Não vou machucar
licial, honesto, não vou me com leite antes de ir para ninguém à toa.”
http://www.flickr.com/photos/barjack/135263802/sizes/o/

meter com coisa errada. a obra onde trabalhava “Polícia bonzinho só se


Seria bom se ela o olhasse como servente, lhe conta- fode, meu filho.”
com aqueles olhos cheios ra da vontade de fazer o
de calor e o abençoasse. “Não vou virar bandido,
concurso da polícia. Era
Tudo seria mais fácil. mãe”, repete Cícero.
seu único filho, e perdê-
Por outro lado, ela po- lo significava também Ela se retira para o
deria ficar furiosa, esbra- perder-se. quarto. Parece resignada,
vejar, crescer até ficar do mas Cícero sabe o quanto
“Tá besta, menino? Que
tamanho da casa, mil tro- ela está sofrendo. Pensa
papel é esse?”, ela repete.
vões explodindo ao seu re- se não está sendo egoísta
“É o nosso futuro, mãe.” insistindo naquela histó-
dor, enquanto lhe apontava
um dedo do tamanho do “Futuro com você dei- ria, matando a velha aos
dedo do Senhor do Velho tado dentro de um caixão poucos. Não, a egoísta é

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ela. Tem o direito de de- O resultado ele vê no oficiais da corporação, e
cidir a própria vida. Sen- jornal. Desliza o dedo também aquelas não tão
te de repente uma raiva pelas colunas de CPFs em oficiais. Tenta ser gentil e
comendo-o por dentro e busca do seu. Lá está o educado com todos, embo-
entra no quarto, disposto número, espremido entre ra isso às vezes lhe renda
a despejar sobre ela a lava outros tantos, sem signifi- comentários debochados e
incandescente que entope cado para ninguém além risadas abafadas pelas cos-
sua garganta. Encontra-a de si. Não pode ser, ele tas que finge não ouvir.
ajoelhada ao pé da cama, pensa, uma euforia cres- Em casa, a mãe quase
rezando com a foto de seu cendo no pé da barriga. não fala nada. Limita-se a
pai já falecido contra o Olha de novo, finge que lhe servir a comida, o café
peito, e a raiva desaparece. não acredita, confere e e a lavar sua roupa. Cícero
“Vão matar você, meu reconfere. É o seu núme- não gosta dessa situação,
filho, e ainda dar gargalha- ro, é o seu número mes- mas acha que a culpa não
da.” mo. Levanta-se da mesa, é sua. Se ela aceitasse suas
dá voltas pela cozinha, a escolhas, as coisas não
O dia da prova. Cícero
mão na boca num gesto precisavam chegar a esse
chega cedo ao local onde
incrédulo de quem quer ponto. Nos dias de folga,
ela será realizada, com
expelir uma explosão que tranca-se no quarto e as-
duas canetas pretas no
é grande demais para ser siste à TV. Às vezes, vai até
bolso. Se tivesse mais di-
contida. Vai até o fogão, o bar do Arnaldo beber
nheiro, teria levado umas
esquenta o café. Seu nú- um refrigerante, rever os
dez, sempre acha que as
mero, é seu número mes- amigos, mas os amigos
canetas vão falhar na hora
mo. Lá de fora, enquanto não são mais os mesmos
H. Está nervoso, roendo as
varre a poeira e as folhas desde que ele entrou para
unhas até ferir os dedos
teimosas da calçada, a mãe a polícia. Fazem brinca-
cheios de calos. O fiscal
pode ouvir sua gargalhada deiras, riem, mas algo soa
lhe entrega o caderno
ruidosa irromper. falso. Cícero ri sem von-
de questões e o cartão-
resposta com um olhar A convocação chega tade, paga o refrigerante,
indiferente. Cícero morde através de um telegrama. mas Arnaldo se recusa a
a tampa da caneta, a, b, d, Exames de todos os tipos aceitar o dinheiro, dizendo
c, c, a. Sessenta questões, são feitos para atestar a que é um presente. Cícero
uma redação e quatro sanidade física, mental e agradece, lembrando de
horas que se arrastam en- moral de Cícero. Ao ver- todas as ocasiões em que
quanto os olhos latejam de gar o uniforme com seu Arnaldo, abrindo o cader-
cansaço. Quando termina, sobrenome e tipo sanguí- no de fiados, fez questão
levanta-se da cadeira, o neo, pensa no pai e no de receber até a última
corpo pesando toneladas, orgulho que ele sentiria. caixa de fósforos vendida.
e vai para o ponto de Automaticamente, o pensa- “Vamos dar uma volta”,
ônibus. Durante a viagem mento lhe puxa a imagem diz o tenente Flores certa
observa um mundo cinza, carrancuda da mãe. manhã. Cícero olha para
no qual a paisagem é que Na aula de tiro, Cícero a viatura, onde conversam
parece se mover, não o se mostra dedicado. Domi- outros dois policiais que
ônibus. na rapidamente as normas nunca vira.

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“Tenho que organizar nui a velocidade e encosta gritando Venâncio, en-
uma papelada aí”, ele des- a viatura. quanto Silva desfere tapas
conversa. Flores não aceita “Fica aí todo mundo, estalados no rosto de um
a resposta quase inaudível. ninguém sai não, por- rapaz de cabelos descolo-
“Vamos”, ele repete, e ra”, gritam os policiais, ridos, que chora enquan-
o olhar duro que lança é avançando depressa na to o sangue escorre pelo
praticamente uma senten- direção deles, fuzis em do canto da boca. Flores
ça. Cícero entra no carro, punho. “Todo mundo com faz um sinal para que os
no banco do carona. Os as mãos na parede agora, homens o arrastem para a
outros dois, Silva e Ve- vai, vai”. Os doze mole- traseira da viatura. Outro
nâncio, viajam no banco ques obedecem, assusta- rapaz também é colocado
de trás, conversando coi- dos. Sabem que os canas ali. Os demais são dis-
sas que o movimento dos só querem uma desculpa. pensados e desaparecem
pensamentos de Cícero Venâncio e Silva começam depressa.
leva para longe de seus a revista, enquanto Flores A viatura volta para a
ouvidos. Apenas as garga- dá cobertura dez passos rodovia, e durante a con-
lhadas ficam, mas Cícero atrás. Cícero não está ali versa Cícero apenas ouve
sente nelas augúrios terrí- como ator naquela farsa: as gargalhadas. Piadas,
veis. antes disso, sente-se um brincadeiras, os lamentos
Em algum momento, mero expectador incrédu- dos rapazes lá atrás, o caos
quando a viatura diri- lo de um vídeo amador sonoro de buzinas, nada
gida por Flores penetra transmitido num telejornal disso é mais que um lam-
na rodovia, os homens qualquer. Quando Silva pejo longínquo.
começam a contar histó- acerta o bico do fuzil Chegam a um terreno
rias sobre tiros acidentais nas costelas de um rapa- baldio cercado por um
que estouram a cabeça zote franzino de cabelos matagal alto, aos pés de
do carona, com detalhes descoloridos, se dá conta um morro deserto. Flores
minuciosos a respeito da do mar de lama no qual manda os homens tra-
massa encefálica sangrenta mergulhou de cabeça. zerem os moleques e os
espalhada pelo pára-brisa Não pode protestar, não coloca perfilados, as mãos
trincado, e a expressão pa- na frente de todo mundo no alto da cabeça. Cho-
tética de surpresa no rosto para não desmoralizar os ram, enquanto os homens
esfacelado do cadáver. colegas, mas também não debocham e gritam coi-
Cícero sente o estômago pode aceitar uma coisa sas sobre morte, o que só
protestar. daquelas. O jeito é desligar piora as coisas. O segundo
os ouvidos e transformar rapaz, a voz embolada
“Olha ali, olha ali”, avisa
as imagens em filme em pelas lágrimas, diz que é
Silva, apontando para uma
preto e branco; mas ao trabalhador, apanha, cai,
quadra esportiva de ci-
fazê-lo, o que ocupa seu é levantado pelos cabelos.
mento à beira da via, onde
lugar é a voz da mãe apli- Cícero percebe que está
um grupo de rapazes des-
cando sermões com uma tremendo.
cansa após uma partida de
gargalhada histérica ao
futebol, tirando sarro uns Flores acende um ci-
fundo.
dos outros, brincando e garro, manda os moleques
gargalhando. Flores dimi- “Cadê a parada?”, está correrem. Atônitos, eles

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não sabem se correm, se saber até que ponto pode “Seu filho da puta, se
ficam, mas sabem que de ser levado, se é confiável isso der galho tu tá ferra-
qualquer forma a vão ati- para integrar o grupelho. do”, ameaça Flores, devol-
rar. “Corre, caralho”, grita Pode apertar o gatilho, me- vendo a arma para Cícero.
Flores. Não tem jeito. Cí- tralhar os rapazes e ir um “Você matou os mole-
cero observa o movimento passo além, um verdadeiro ques”, diz Cícero.
dos ossos quase furando a batismo de fogo. Provaria
“Não, você matou. Foi da
pele quando os dois infe- para a mãe que poderia
tua arma que saiu a muni-
lizes se viram para correr. se adaptar e sobreviver
ção.”
Por um átimo, os olhos de naquela selva; mas assim
um deles cruzam direta- mataria também algo den- Que merda, pensa Cíce-
mente com os seus. tro de si, algo irrecuperá- ro. Lembra das palavras da
vel, algo pelo qual ansiaria mãe: polícia bonzinho só
Flores dá dois tapinhas
quando deitasse em sua se fode, meu filho. Já podia
no ombro de Cícero: “atira
cama à noite. até ouvir suas gargalhadas
nesses merdas”.
quando dissesse para ela
Cícero se surpreende: Ou também poderia -
que não queria mais saber
“eu?” e essa possibilidade lhe
daquela carreira dos infer-
parece naquele momento
“É, você. Atira logo.” nos.
a mais saborosa - descar-
“Mas eles estão de cos- regar o fuzil no Flores,
tas. E desarmados.” no Venâncio e no Silva
“Caralho, Flores, os pu- e mandá-los para o in-
tos vão sumir no matagal”, ferno. As conseqüências
avisa Venâncio. que se fodam, ele ia ficar
gargalhando. Mas tudo o
“Atira, garoto.”
que faz é negar com mais
“Eu não”, responde Cí- veemência quando Flores
cero, num tom a princípio reitera a ordem. O tenente
hesitante. Aqueles dois toma o fuzil de sua mão e
rapazes tinham quase a faz mira. Quando os rapa-
sua idade, só estavam jo- zes já ganham o matagal
gando bola com os amigos e sentem nascer outra vez
como ele mesmo costu- um laivo de esperança,
mava fazer quando não uma saraivada de balas os
tinha nenhum bico à vista. atinge e derruba , agoni-
Então pensa que tudo não zantes, sobre uma poça de
passa de um teste para sangue.

28 SAMIZDAT maio de 2010


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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ficina
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Contos

Léo Borges

Comportamento
inadequado
30 SAMIZDAT maio de 2010
Eu não podia deixar de – Ele me chamou pra Sei que o que fazia era
mostrar meu espanto com sair de novo, Jacqueline. O errado. Que alguém, em
o que vinha acontecendo. problema não foi o convite, algum período da História,
Afinal, uma coisa é a vida e porque do jeito como estou estabeleceu que aquilo era
outra é a ficção das letras, contando parece que foi algo que afrontava os mais
dimensões que não se mis- com poucas palavras. Mas é elementares conceitos de
turam, ou que não deveriam. como ele faz, como ele me boa conduta. Traição, sim,
Olhava para a tela do com- envolve. Tenho estado muito vil e suja. Mas, eu não es-
putador e pensava em como sozinha... tava disposta a servir como
dar um fim naquele conto, o Minha amiga não com- pára-raios dos males da Hu-
último do meu livro erótico, pletara dois anos de casada, manidade. Comportamento
com aquela situação descon- mas de fato estivera poucos inadequado, grande balela!
fortável martelando minha meses com o marido sob o Ser humano é egoísta desde
mente. Conhecia a Paula e mesmo teto. O trabalho dele sempre, e, pra mim, durante
sabia que ela não era disso, não permitia que ficas- aqueles minutos mais do
não era dessas. Eu compre- se sem viajar por mais de que nunca.
endia suas angústias e des- três semanas. E ela tentava Jairo se esmerava em me
temperos, mas estava certa manter a discrição, driblan- satisfazer e só isso bastava
de que alguns sentimentos do happy hours e convites para que meu suposto arre-
devem ser reprimidos para para festas. Com algum pendimento se transformas-
o bem da manutenção de esforço, estava conseguindo. se em depravação, desejo
algo maior (no caso dela, o As tentações, Paula deixa- por mais pecado, por mais
matrimônio). va por minha conta, que, libertinagem. O gozo fingia
– Eu sei, Jacqueline. Você agindo como uma psicólo- que vinha, mas era suspen-
tem razão. Meu casamento ga fervorosa, escritora que so. E eu estava disposta a
não foi de brincadeira, e entendia as armadilhas da ficar ali até meu marido
você, como minha melhor sedução, seguia demovendo voltar de mais uma de suas
amiga, sabe disso. os pensamentos volúveis que intermináveis viagens e, por
– Pois então, Paula. Se surgiam. isso, a festa não poderia
te dou conselhos é porque – Você recusou, não é? ser interrompida assim, de
gosto de você. Mesmo que novo.
Um vácuo revelador
seu relacionamento não bastou para perceber que Em nossa primeira vez,
estivesse indo bem, eu não minha missão começava a Jairo não suportou a pressão
aceitaria isso. Não é coisa falhar. e se esvaiu em minha boca.
de mulher direita, de mu- Fiquei puta! Não pelo fato
lher casada. – Não, amiga... saímos, em si, é claro, mas porque
mas não fomos longe. Fo- não soube esperar. Havia
Paula consentia com mos a um barzinho aqui
minhas ponderações, mas o uma surpresa pra ele na-
http://www.flickr.com/photos/mazelx/2928935021/sizes/l/

perto de casa. quele dia, no dia em que


limiar do certo e do errado
que regia sua vida, sempre – E aí ele te levou em terminaria meu livro de
fazia transparecer a inse- casa depois e ficou nisso, contos. Por trás, de quatro.
gurança. E problemas sen- certo? E no fim ele ainda decidiria
timentais, quando brotam, – Mais ou menos isso... o que queria de mim afinal.
não são solucionados com quando me trouxe em casa, Queria tudo? Só uma parte?
frugais exemplos de bom aconteceu. Eu juro que não E se perdeu no prefácio oral.
comportamento, de dizer queria, que virei o rosto, Agora era diferente, e ele ti-
que quem contrai laços mas aconteceu: nos beija- nha ciência. E mais que isso,
matrimoniais não deve trair. mos... ele tinha tempo.
Trata-se de caráter e ética *** Com ele eu me transfor-
cristã, coisas que não admi- mava mesmo. Não havia
tem muitas interpretações. frescura. E esse sentimento

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rugia tão forte dentro de mesmo quando eu estava na – Não sei bem como
mim que era difícil encon- intimidade com meu mari- definir, Jackie, mas acho que
trar limites. Era o nosso ter- do, o esposo de Paula sur- não ando bem... emocio-
ceiro encontro e, certamen- gia em insights totalmente nalmente, eu quero dizer.
te, vinha sendo o mais pleno, despropositados. Aparecia e Tenho tido um comporta-
sem pudores, sem receios, se situava, jogando conosco mento parecido com esse
sem culpa. Sedenta, pedia o jogo da sedução, como se, do livro. Casada com uma
rouca que fizesse o que com isto, pudéssemos livrá- pessoa e desejando outra, a
desejava, o que sempre quis, lo de sua derrota conjugal. pessoa errada. Ou sou eu a
o que queríamos. Como era “Olha, sua mulher é uma errada, sei lá. Você sabe do
bom aquilo, aquele gosto de puta, mas eu não”. Dentro que estou falando.
ser puta, uma vadia qual- daquela psicose diabólica eu As conversas com a Paula,
quer. confundia os rostos, os cor- quando convergiam para
Jairo entendia e preparava pos, e me via submetida a esse pântano lascivo, ficavam
um grand finale ainda mais transas incomuns, estranhas, perigosas.
emocionante. Com meu ma- humilhantes – algumas tão
sinistras, que poucas prosti- – O que foi agora, Paula?
rido aquilo era raro, coisa
de mulher certinha, de com- tutas topariam – enquanto, Eu estava absorvendo os
portamento adequado ao na verdade, estava apenas problemas da amiga. Para
ambiente familiar. Diferente tentado fazer amor com o livrá-la deles eu estava qua-
do que estava acontecendo homem da minha vida. se os vivendo.
agora, o que eu queria mes- – Oi, Jacqueline, tudo – Saí com ele novamente.
mo ser devorada pelo espo- bem? E dessa vez rolou mais que
so da Paula. A Paula do meu – Oi, Paula, tudo. beijos.
conto, da minha imaginação, Ou então, eu estaria
que agora se transformava – Como está o trabalho
com o seu livro de contos com inveja. Sim, esse era o
em vítima, como se ingênua motivo real que ignorava
fosse. “Oi Jacqueline, o Jairo eróticos?
para não assumir minha
viajou, preciso da sua ajuda”. – Indo bem. Estou fechan- intolerância. A puta da
Sempre desconfio dessas do o último conto e aí vou Paula fodia descaradamente
meiguices nauseantes. enviá-lo para revisão. Acho com um amigo enquanto o
*** que antes do fim do ano marido viajava a trabalho e
ele estará publicado. Por eu, naquela de ditar moral
A tarde caía acinzentada, sinal, esse último está muito
fria e chuvosa, pedindo um e regras de comportamento,
quente e psicótico. ficava tentando domar mi-
fondue com um bom vinho.
Uma transa gostosa e a noite – Qual o título? nha vontade latente de estar
estaria selada com chave-de- – “Comportamento inade- fazendo o mesmo.
ouro. Tudo perfeito exceto quado”. Título que também – Você está brincando,
pelo drama de Paula que dá nome ao livro. Nele o Paula.
não me largava. Cuidar da pecado não deveria existir, – Não, Jacqueline, nós
vida sexual alheia me estres- mas como se faz presen- transamos e o pior é que
sava, porque, ainda que eu te, tudo acaba adquirindo gostei. Gostei demais.
fosse a grande amiga, em úl- um contorno impróprio.
tima análise, o problema era Trata-se de um denso conto ***
apenas dela. E, se não fosse sensual, mais picante que os Xingamentos calculados
por isso, como explicar as demais. Acho que o nome serviam para estimular as
fantasias despudoradas que está muito pertinente. sensações e os espasmos or-
vinham intoxicando meu – Essa atitude é tudo o gásticos, de tão intensos, me
subconsciente? Sonhos tor- que eu não queria ter. engasgavam. Dois, três, di-
turantes que se infiltravam versos. Não me prendia em
realidade adentro, pois até – Como assim, Paula?

32 SAMIZDAT maio de 2010


contagem, só queria sexo, fu- você não vai me chamar de tos. Dei pra ele sim e agora
rioso ou não, mas que fosse puta, que vai entender meu vou ter de viver com essa
de todas as formas. Sons sel- problema. minha decisão.
vagens entravam por meus – Foi rápido, só para Estava incrédula. “Dei pra
ouvidos como uma sinfonia matar a vontade, né? – de- ele sim”. Aquelas palavras
doce que, aliada aos volup- sejava imensamente que feriam meus ouvidos. Sua
tuosos movimentos, forma- menos coisas houvessem atitude havia quebrado a
vam a pólvora do gozo. “Va- ocorrido, ou que pelo menos barreira da normalidade e
dia! Você fode melhor que a ela não se aprofundasse nos Pâmela agora estava mais
Paula!”. “Mete!”. Nossos gritos detalhes. Minha raiva, pura convicta do que nunca sobre
se completavam quase como inveja disfarçada, começa- o rumo de sua vida. E a
estrofes satânicas, versos va a vazar através do meu verdade é que eu estava em
malditos, harmônicos entre tom áspero. Que merda é ruínas, não por falhar como
si, mas que incineravam os a vida! Uma putinha que a idiota protetora matrimo-
bons costumes. A hipocrisia não conhece nada de nada nial, mas por não me permi-
humana ia revelando sua e já se entrega aos prazeres tir ousar como ela ousava,
face mais pervertida naque- do pecado, e eu escrevendo viver como ela vivia. “Com-
les instantes intermináveis, contos eróticos para entreter portamento inadequado, sem
doces para nós, amargos burguesinhas mal amadas. juízo e sem arrependimento.
para quem amávamos. Não adianta lição de moral,
– Quando ele me chupou,
Ficamos deitados ainda senti o que nunca sentira Jacqueline, porque é a devas-
algum tempo refletindo nas antes. Foi mágico, arrepiante! sidão que vai fazer seu livro
nossas atitudes adolescentes, Meu marido nunca fez algo vender como nunca.” Não
tão gostosas quanto inconse- assim. Ajoelhei e retribuí, havia mais argumentos. Eu
qüentes. Era isso que quería- como uma donzela que per- não tinha mais o que fazer
mos? Não, não era. Mas, in- de os pudores. a não ser aceitar o delí-
felizmente, bom ou não, eu rio daqueles dois mundos
estava satisfeita. Jairo ainda “Donzela que perde os distintos, o meu e o dela,
se superava e matinha sua pudores”. Essas são mais que agora se fundiam. Olhei
interpretação cínica, jogo vagabundas que as putas de para a tela do computador e
sórdido que ia além dos berço. Tudo era decepção. vi o cursor piscando na últi-
lençóis. Fingia interesse em Quando a mulher se predis- ma linha, pedindo definição.
meus assuntos particulares põe a isso, é o fim. Como
ela iria olhar e beijar no- – Tchau, Jackie. O Jairo
para tentar me convencer de acabou de chegar. Vou pro-
que o que mantínhamos era vamente seu marido? Com
aquele gosto de outro na curar alguma coragem para
mais que sexo. Um grande encará-lo.
cafajeste, sem dúvida. boca...
– Isso não combina conti- ***
– Como vai o livro que
você está escrevendo? go, Pâmela! Comportamento Ficou bom. Só não podia
inadequado é só o título me esquecer de modificar
Bem lembrado. Seria bom de um livro que ainda nem este último nome também.
reinventar um nome para a lançado foi! Coisa feia. Você
minha protagonista. é casada! Pense nisso, no que
*** os outros vão falar!
– Gostou demais?! Que – Você é uma amiga
isso, Pâmela? muito pura, Jacqueline. Vou
Silêncio. parar de contar as merdas
que tenho feito. Acho que
– Gostei, vou dizer que não dá para falar sobre isso
não? Minto pra todo mun- com ninguém, nem contigo.
do, menos pra você. Sei que Não resisti aos meus instin-

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Contos

Alma de Urânio
Leandro da Silva

- Formiga venha aqui, me peixe, quando terminar com presentes para todos, com
ajude a subir com a rede na toda essa areia, ele será seu. sua música em três cordas,
caixa. Ao entardecer, bambo de depois de assar o melhor dos
O dia durava mais naque- cansaço, leva a pá e o balde pescados para seu avô e avó,
les tempos, eram boas horas com peixes para um trapiche então, visualiza a hora em
carregando as embarcações. que fica no outro lado da que carrega a pedra com cin-
Ultimamente, tratavam de fa- vila. co dos seus primos, e todos
zer tudo o quanto antes, para choram em sua honra.
- Está com sede? Bebe da
não haver atraso no dia da botija, e corre pra lá. Cuida Consegue colocar metade
chegada da pedra na aldeia. quando... quando chegar a do que deve fazer nesse tra-
Formiga era parrudo, com pedra. piche bem na hora da passa-
mãos grandes e pés tortos. gem da pedra pela entrada
Pensa três vezes nos pei- sul da vila. Se sente abando-
Com uma pá, passava de xes, na água, no fogo.
trapiche em trapiche ofere- nado quando nota que não
cendo-se para trabalhar. Imagina ele, em um outro fará o resto há tempo.
futuro, onde estará do alto - Filho, irei pedir ao espí-
- Menino, essa areia: pra dos trapiches, com muitos
cima! Olhe aquele balde de rito da pedra uma maneira

http://www.flickr.com/photos/cobalt/421324875/sizes/l/

34 SAMIZDAT maio de 2010


de conseguir respeito entre ram de maneira silenciosa e
os homens... fantástica.
Foi o que sua mãe lhe dis- Chegando à clareira pôde
Um detetive...
se quando antes de desapare- ver que já foram eleitos os
cer no momento em que foi carregadores da pedra. Per- Uma loira gostosa...
eleita para carregar a pedra deu a parte das oblações aos
para a mata. ancestrais, a parte dos pedi- Um assassinato...
Já passou como um raio a dos de proteção e principal-
carroça dos peixes, sinal de mente a dos desejos.
que só ele está ali naquele - Está feito.
trapiche. Todos aproveitando
E o pau comendo entre
Os de fora, escondidos de
a celebração, menos Formiga. Formiga, deixam escapar o
as máfias italiana e
- Vem menino! comentário. chinesa.
­
Uma senhora agita um Formiga pensa, fica matu-
pano esfarrapado no ar e tando o “está feito”. Com toda
grita para Formiga. a manha de seus ágeis passos
Ele sai aos solavancos, nem se aproxima curioso do local

O Covil
se importando com os pedre- onde essa gente estranha se
gulhos que cortam seus pés esconde.
ao longo do caminho, ansio- Os estranhos somem. So-
so e desesperado para ver a
pedra, que tanto engrandecia
mem, como os de sua gente a
cada nova estação, quando no dos
suas expectativas. No meio rito à pedra brilhante.
do caminho, seus devaneios
corriam ainda mais rápido
Os povos do Níger, sobretu-
Inocentes
que ele na sua cabeça, “ainda
vou ser alguém de minha do o povo Tuareg, encontram-
gente”, pensou consigo. E se se em um estado de crise ali- www.covildosinocentes.blogspot.com
“estabacou” no chão, sem ver mentar. Em conflitos políticos
uma pedra um pouco maior e econômicos, onde a explora-
a sua frente. ção do urânio por parte das
multinacionais é o centro dos
Ergue a cabeça, rasteja um conflitos que colocam a sobe-
pouco, pode ver então “uns rania alimentar da população
alguéns” no meio de umas em segundo plano.
árvores por ali perto.
O povo Tuareg tem suas
Eles usam coisas nas mãos terras invadidas pela explo-
e olhos e ficam olhando a ração do urânio, no ano de
mulher que recém lhe cha- 2008 em armas apresenta suas
mara. reivindicações.
Formiga se levanta essa Em fevereiro de 2010, uma
gente de fora com esses junta militar provisória efetua
objetos estranhos estão a sua um golpe de Estado, prometen-
frente mas não o enxergam. do a libertação progressiva do
Estava a poucos metros Níger.
da clareira onde acontecia Povos que precisam comer,
naquele momento a come- assim como nós não comemos
moração à pedra. Ia indo em pedras brilhantes radioativas.
direção a ela, com a mente Comer o que só poderá vir
tão absorta que mal pode da solidariedade e reforma do
notar as pessoas a sua frente. w
agrária.
gr nl
Essas, quando o viram andan-
át
oa
do, assustaram-se e corre-
is d

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Contos

Maristela Scheuer Deves

Sempre há
uma verdade....
(Parte 4)

36 SAMIZDAT maio de 2010


O lugar onde
Com o passar dos dias, sumiria de casa se assim a boa Literatura
minha mãe ficava mais não fizesse. Por fim, ela
e mais preocupada. E eu topou, mas nos horários
é fabricada
também, principalmen- das refeições, abria rapi-

http://guisalla.files.wordpress.com/2008/09/machado1.jpg
te depois que comecei a damente a porta e ali dei-
acordar de madrugada e xava uma bandeja cheia
me encontrar, para minha dos meus antigos pratos
surpresa, parada aos pés preferidos.
da cama de meus pais,
Para não magoá-la, eu
contemplando-os sob a
aceitava, mas não conse-
luz do luar, a boca sali-
guia suportar o cheiro da
vando.
comida. A minha salva-
Horrorizada, eu me ção naqueles dias foi um
obrigava a voltar para cachorro magro que pas-
o meu quarto, trancar a sava sob minha janela: às
porta e meter-me outra escondidas, eu lhe dava
vez na cama. Somente as refeições e devolvia

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
para acordar dali a uma os pratos vazios à minha
hora, na mesma situação. mãe. Mas o melhor mes-
mo foi que o cachorro foi
Sem dormir e sem co-
engordando e se tornan-
mer direito, fui emagre-
do meu amigo, até que
cendo e empalidecendo
uma noite eu, não aguen-
a olhos vistos, até ficar
tando mais de sede, atraí
branca como o papel,
o pobre coitado até o
com olheiras pretas sob
meu quarto e, com von-
os olhos. Não tinha fome,
tade, cravei os dentes em
mas ardia de sede. Água,
seu pescoço...
refrigerantes e até mesmo
bebidas alcoólicas, no en-
http://www.flickr.com/photos/tawheedmanzoor/2309847575/sizes/o/

tanto, não me satisfaziam.


(continua no próximo
Aos poucos, fui perce-
mês...)
bendo o que eu queria:
sangue.

O meu desespero che-


gou a tal ponto que im-
plorei a minha mãe que
me trancasse no quarto
e escondesse a chave. Ela,
é claro, não quis con-
cordar, mas eu disse que
ficina
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Contos

Sobreviventes e viajantes

Dênis Moura

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38 SAMIZDAT maio de 2010
Corro ansioso em sua Tem a aparência huma- completo exaurimento tem
direção. na, roupas brancas coladas sido muito árduo. – Medito.
Com péssima visibilida- ao atlético corpo, mas pelo – Mas entre o medo e uma
de, aciono com dificulda- rosto vejo que possui a pele possibilidade melhor... Esta
de o dispositivo de vi­são acinzentada. É um pou- alternativa se soma à minha
noturna do meu surrado co maior que eu. Tenho a curiosidade. Minha intuição
capacete. Vejo os contornos impressão de já tê-lo visto é im­pelida por cintilos de
acidentados: vales de rios e alguma vez. Talvez num so- memória e eu, finalmente,
canais secos além de mon- nho. Ele para a três metros aceito.
tes de ruínas urbanas a se- de mim, mostra a palma da Com um aperto de mãos
rem ainda transpostos para mão e me fala numa língua ela me leva até o disco pra-
chegar ao misterioso objeto. que des­conheço, mas que teado. Mergulhamos velozes
Pelo sensor infravermelho, de alguma forma a ideia me na parede da imensa Lua
vejo que não sou o único a chega à mente: metálica.
correr naquela direção. Mas – Olá, Humano. Sou Ate- Atenísia pousa no centro
não muitos, somos pou- nísia. Estejamos em paz. de uma vasta sala ilumina-
cos os que sobrevivem na – Olá! – Respondo, trê- da. No vazio daquele lugar,
região. Com meu binóculo mulo e ofegante. – Paz sou deixado sozinho. Con-
sensor, vejo dis­tante muitos também. Chamo-me John firo a qualidade do ar e re-
destroços ardentes abaixo Calderas. Mas quem são tiro o capacete. Meu corpo
do bojo ileso. O ar cheira vocês e o que fazem aqui começa a flutuar e gira até
a lixo, aço e concreto quei- na Terra? parar na horizontal. Deita-
mados. do no ar, minhas pálpebras
John, somos cientistas.
Ofegante de tanto correr, Temos observado como pesam, meu corpo vibra
vejo a parte da esfera que seus planetas estão sen- como nunca e eu sinto
toca o solo ainda muito sen­do devastados e apenas crescer e entrar numa escu-
distante, mas acima de mim uma minoria de humanos ridão total. Quando abro os
a sua curva metálica se per- vivem num meio adequado olhos, flutuo sem conseguir
de num hori­zonte vertical. à evolução. A vossa auto- ver meu próprio corpo. Ob-
Se eu fosse um primitivo, extinção será inevitável. servo, logo abaixo de mim,
acharia que a própria Lua Ajude-nos a ajudá-los. no topo de um edifício, um
havia caído na Terra. hu­manoide com olhar va-
– Por que vocês se inte- gando na escuridão do céu.
Espaçadas centenas de ressam por nós?
metros um do outro, meus Suas feições são familiares.
amigos param ante a esfera – Conheça-nos e você O nome Smelson vem à mi-
a distâncias similares um entenderá. Sei que você nha mente. Posso ouvir seus
do outro, formando um lembrará. pensamentos...
grande círculo e observam. Fico estático, olhando nos
Saem de dentro da esfera, cinzentos olhos daquele ser. Trecho do Romance:
como se as suas paredes – Venha conosco. Não “Retorno ao Big Bang Mi-
não fossem sólidas, vários tenha medo. O medo é crocósmico”
humanoides planando sobre o filho do desconhecido. http://bigbangmicrocos-
discos metálicos. Um deles Conheça-nos. mico.blogspot.com/
voa em minha direção. Fico
estático, entre o medo e a
curiosidade. Sobreviver abandonado
na velha Terra após seu

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Tradução

Molloy Samuel Beckett


trad.: Henry Alfred Bugalho

40 SAMIZDAT maio de 2010


Minha mãe nunca se escarafunchando agora, quero boca. Quanta ingenuidade
recusou a me ver, isto é, ela dizer a questão se chamá-la minha! Pois ela aparentava
nunca se recusou a me rece- de Ma, Mag ou de Condessa ter perdido, se não absoluta-
ber, pois fazia muito tempo Caca, ela ser por incontáveis mente toda noção de men-
que ela não enxergava coisa anos surda como uma porta. suração, pelo menos a facul-
alguma. Vou tentar e falar Acho que ela era um tanto dade de contar além de dois.
calmamente. Nós éramos tão incontinente, tanto de fezes Era demais para ela, sim, a
velhos, ela e eu, ela havia me quanto mijo, mas uma es- distância era grande demais,
tido tão jovem, que éramos pécie de pudor faz com que de um até quatro. Ao chegar
como um casal de velhos evitemos o assunto ao nos à quarta batida, ela imagina-
companheiros, assexuados, encontrarmos, e eu nunca va que era apenas a segunda,
sem parentesco, com as mes- pude me certificar disto. Em tendo sido as duas primeiras
mas memórias, os mesmos qualquer caso, não devia ser apagadas da memória dela
rancores, as mesmas expecta- grande quantidade, alguns tão completamente como
tivas. Ela nunca me chamava esparsos cocos de cabrito se nunca as houvesse senti-
de filho, felizmente, eu não molhados a cada dois ou três do, apesar de eu não saber
suportaria isto, mas de Dan, dias. O quarto cheirava amô- exatamente como algo nunca
não sei porque, meu nome nia, mas não apenas amônia, sentido pode ser apagado da
não é Dan. Dan era o nome mas amônia, amônia. Ela memória, mesmo assim esta
de meu pai talvez, sim, talvez sabia que era eu, pelo chei- é uma ocorrência comum.
ela me tivesse por meu pai. ro. Sua contraída velha cara Ela deve ter pensado que eu
Eu a tinha por minha mãe peluda se iluminava, ela es- dizia não para ela o tempo
e ela me tinha por meu pai. tava feliz em me cheirar. Ela todo, enquanto que nada
Dan, você se lembra do dia balbuciava com batidelas de estaria mais longe do meu
em que eu salvei a andori- dentadura e, na maioria das propósito. Iluminado por
nha. Dan, você se lembra do vezes, não captava o que ela estas considerações, procu-
dia em que você enterrou o estava dizendo. Qualquer ou- rei e, finalmente, encontrei
anel. Eu lembrava, eu lembra- tro além de mim se perderia um meio mais eficiente para
va, quer dizer, eu sabia mais nestas balbuciantes batidelas, pôr a ideia de dinheiro em
ou menos do que ela estava as quais apenas cessavam sua cabeça. Isto consistia em
falando, e se eu nem sempre durante seus breves instantes substituir a quatro batidas
houvesse tomado parte pes- de inconsciência. No meu com o nó do dedo indicador
soalmente nas cenas por ela caso, eu não havia vindo para por uma, ou mais (de acordo
evocadas, era o mesmo como ouvi-la. Eu me comunicava com minhas necessidades)
se houvesse. Eu a chamava com ela batendo-lhe em seu cacetadas com o punho, no
de Mag, quando eu tinha de crânio. Uma batida significa- crânio dela. Isto ela enten-
chamá-la de alguma coi- va sim, duas não, três eu não deu. De qualquer modo, eu
http://www.flickr.com/photos/jalex_photo/935667352/sizes/o/

sa. E eu a chamava de Mag sei, quatro dinheiro, cinco não vinha pelo dinheiro. Eu
porque, para mim, sem eu tchau. Foi difícil socar este pegava o dinheiro dela, mas
saber porque, a letra g abolia código pra dentro da arrui- eu não vinha por causa disto.
a sílaba Ma, e era como se nada e frenética compreen- Minha mãe. Eu não guardo
cuspisse nela, melhor do que são dela, mas eu consegui, tanto rancor dela.
qualquer outra letra teria no fim. Que ela confundisse
feito. E, ao mesmo tempo, eu sim, não, eu não sei e tchau, Excerto de “Molloy”, Grove
satisfazia uma profunda e dava na mesma para mim, Weinfeld, 1958.
indubitável necessidade não eu mesmo me confundia.
reconhecida, a necessidade de Mas que ela associasse as
ter uma Ma, isto é, uma mãe, quatro batidas com alguma
e de proclamar isto, audi- outra coisa além de dinheiro
velmente. Pois antes de você era algo a ser evitado a todo
dizer mag, você diz ma, ine- o custo. Assim, durante o
vitavelmente. E pa, na minha período de treinamento, ao
parte do mundo, quer dizer mesmo tempo em que eu ad-
pai. Além disto, para mim ministrava as quatro batidas
a questão não se levanta, no crânio dela, eu enfiava
no momento em que estou uma cédula em seu nariz ou

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Samuel Beckett nasceu numa pois, devido ao falecimento enfisema pulmonar, contra o
família burguesa e protes- de seu pai, encarrega-se de qual já lutava havia três anos.
tante, e em 1923 ingressa no cuidar de sua mãe. Retorna Foi enterrado no cemitério de
Trinity College de Dublin, a Paris em 1938, quando é Montparnasse.
para se formar em Literatura marcado por dois aconteci-
Moderna, especializando-se mentos de grande importân-
em francês e italiano. Em cia: fica gravemente ferido ao A produção beckettiana foi um
1928, meses após sua mudan- ser agredido por um estranho, dos principais ícones do Te-
ça para Paris, conhece James que lhe desferiu uma facada atro do Absurdo que faz uma
Joyce, apresentado por um no peito, e conhece Suzanne intensa crítica à modernidade.
amigo em comum. Torna-se Deschevaux-Dusmenoil, com Recebeu o Nobel de Literatu-
grande admirador do escritor, quem viveria o resto da vida e ra de 1969.
e sua obra posterior é forte- se casaria em 1961.
mente influenciada por ele. Fonte: Wikipédia
Depois da eclosão da Segun-
Após lecionar durante o ano da Grande Guerra, vincula-se
de 1930 na Irlanda, Beckett à resistência francesa, na oca-
volta no ano seguinte para sião da invasão de Paris pelo
Paris, fixando residência na exército nazista, em 1941,
cidade, e escreve sua primei- juntamente com sua esposa.
ra novela, “Dream of Fair Afasta-se da resistência em
to Middling Women” (publi- 1942, quando ambos foram
cada após a morte do autor, obrigados a fugir da França.
em 1993) Em 1933, Beckett Morre em 1989, cinco me-
retorna novamente a Dublin, ses depois de sua esposa, de

42 SAMIZDAT maio de 2010


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
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www.oficinaeditora.com
Beckett
Teoria Literária

e a desconstrução do humano
Henry Alfred Bugalho

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44 SAMIZDAT maio de 2010
O século XX representou nos círculos literários, mas totalidade, Beckett teria de se
a quebra de todos os para- a publicação deste romance contentar com o nada.
digmas, todos os ídolos, todas propagaria seu nome pela
as tradições. Europa e o incluiria na gale-
Apesar de este processo ria dos grandes escritores do A Trilogia
de transformações estar pre- mundo.
sente de maneira bastante ní- Graças a “Ulisses”, James Beckett inicia uma trilogia
tida durante toda a História Joyce chegou a ser cogitado romanesca em 1951. O pri-
da Humanidade, em nenhum para o Prêmio Nobel de Lite- meiro dos livros é “Molloy”,
outro momento a ruptura se ratura, o que, contudo, jamais a história de um jovem
tornou tão evidente e teve ocorreria. Nesta obra, Joyce homônimo que vaga pelas
por objetivo a própria rup- inaugurava, quase simulta- ruas de uma cidade, primeiro
tura. neamente a alguns poucos com sua bicicleta, depois se
autores, uma nova técnica de arrastando. Na segunda parte,
Marx, Nietzsche e Darwin
escrita — o fluxo de cons- o detetive Moran e seu filho
foram os primeiros a vislum-
ciência. Do mundo exterior, são incumbidos de encontrar
brarem este novo mundo,
o foco da escrita passou ao Molloy e, de uma maneira
ainda no século anterior.
complexo e fugaz mundo um tanto mais coerentes, os
Semearam as bases para a
interior. eventos ocorridos a Molloy
modernidade e instauraram,
se repetem com Moran. Crí-
ou detectaram, a ânsia por Alguns anos depois, James
ticos sugerem que o prota-
mudanças. Joyce e Samuel Beckett se
gonista da obra é um esqui-
Logo no início do século conheceram. Ambos eram
zofrênico, Moran e Molloy
XX, o cenário social, intelec- irlandeses, ambos eram auto-
seriam personalidades de
tual e cultural estava atribu- exilados, ambos estavam
uma única pessoa.
lado. Freud apresentava uma imbuídos da missão literária
de desvendar as profundezas Desta trilogia, este é o
nova visão sobre as patolo-
humanas. único romance que ainda
gias mentais e, por extensão,
traz resíduos de enredo e co-
sobre o próprio ser humano; Joyce buscava a plenitude,
erência. Beckett já demonstra
na Rússia, Lênin conduzia a recriar e englobar o mundo
o antagonismo temático a
maior e mais decisiva re- inteiro em sua escrita. “Ulis-
Joyce, apesar de apresentar-se
volução política da Europa; ses” é um desfile pelo univer-
sob a mesma vestimenta téc-
enquanto em Paris, pintores, so da Literatura, onde várias
nica, o fluxo de consciência
escritores, músicos e esculto- formas, vários estilos, vários
http://farm4.static.flickr.com/3022/2551618539_ffdab52be5_o.jpg

e o mergulho na essência do
res abriam as portas para a pontos de vista, vários perso-
ser humano. No entanto, para
modernidade, abandonando nagens são apresentados. Era
Beckett, a essência é o vazio,
a linguagem academicista e um prenúncio para o maior
o nada, o ser rastejante e sem
estabelecendo novas formas experimento literário de
sentido que somos, o extre-
de expressão — Stravinsky, Joyce, “Finnegans Wake”, uma
mo oposto do homem total e
Picasso, Proust, Joyce, Rodin, obra sem começo nem fim,
universal de Joyce.
Kandinsky, Miró, entre ou- que reunia algumas dezenas
tros, estiveram na vanguarda de idiomas para construir No segundo romance,
destes novos tempos. uma nova linguagem, híbrida “Malone Morre”, Beckett nar-
e polissêmica. Beckett foi um ra os últimos dias de Malone
dos colaboradores de Joyce em seu leito de morte. O
O mentor e o discípulo durante a pesquisa para romance se limita a descre-
“Finnegans Wake” e, diante ver as impressões e algumas
“Ulisses”, considerado do processo criativo e da rememorações fragmentárias
como um dos mais impor- genialidade de Joyce, Beckett do narrador-protagonista.
tantes romances do século percebeu que esta era uma Alguns temas de “Molloy”
XX, foi publicado em 1922. trilha que ele jamais poderia ressurgem, como o ser raste-
Até então, James Joyce era trilhar. jante, a falta de memória, as
conhecido apenas em peque- recordações equivocadas ou
Se Joyce ansiava pela

www.revistasamizdat.com 45
incompletas, a falta de víncu- peça na qual nada ocorre miação que projetou inter-
los entre as pessoas, o nada, duas vezes”, pois todo o en- nacionalmente a carreira de
nossa impotência diante da redo se resume a dois perso- ambos. Em 1969, Beckett se
vida, nossa servitude. nagens, Vladimir e Estragon, tornou o terceiro irlandês a
No entanto, apenas em aguardando Godot, que não ganhar o Prêmio Nobel de
“O Inominável” que Beckett aparece. Literatura, depois de Yeats e
parece concretizar toda sua Afirmar que nada acon- Bernard Shaw.
cosmovisão da escrita, um tece é exagerado, pois certos Todavia, assim como Joyce,
romance sem protagonista, eventos transcorrem durante Beckett terminou por se tor-
sem enredo, sem coerên- esta espera, no entanto, tanto nar um daqueles autores ido-
cia, um nada verbal que no primeiro ato quanto no latrados, admirados, temidos,
se prolonga por centenas segundo ato, que é uma espé- imitados, mas pouco lidos.
de páginas. Um verdadeiro cie de paródia do primeiro, o Numa carta, Frank, irmão
monumento ao esvaziamento que insufla os protagonistas de Samuel Beckett, indagou-
do sentido, a obra-prima da é a angústia do evento que lhe: “Por que não consegues
desconstrução do humano e há de se suceder, mas que escrever do jeito que as pes-
da identidade. não se realiza. soas gostariam?”.
Toda a trilogia foi escrita As interpretações do sen- Talvez uma resposta que
diretamente em francês, ao tido da peça são múltiplas, Beckett poderia ter dado é
invés da língua nativa de alguns sugerem que Godot é que desvendar o ser humano
Beckett, o inglês. O autor jus- um símbolo de Deus (God), não é a tarefa das mais agra-
tifica esta escolha afirmando mas Beckett logo rejeitou dáveis de se ver, tampouco
que em francês era mais fácil esta hipótese — “se eu qui- pode ser expressa de maneira
para ele escrever sem estilo. sesse ter dito Deus, teria dito simplória.
Novamente, o fantasma do Deus e não Godot”.
mentor Joyce pairava sobre O anti-homem da escrita
No fundo, “Esperando Go- de Beckett não poderia estar
Beckett, onde aquele era dot” é apenas uma reasserção
pleno e perfeito, este tinha de mais próximo de nós, pois
da descoberta feita por Be- está em nosso interior.
ser falho e incompleto, sem ckett na trilogia romanesca:
estilo, menor. não somos nada a não ser a
eterna projeção sem sentido
de nós mesmos para o fim.
Esperando Godot Dia após dia, os personagens
de Beckett, incrivelmente
Apesar do prosador es- semelhantes à maioria de
tupendo, foi no teatro que a nós, movem-se (ou se arras-
carreira de Samuel Beckett tam) para o fim, sem lógica,
se consolidou. Aliás, foi logo sem razão, sem compreensão,
com uma de suas primeiras aprisionados à inexorável
peças, “Esperando Godot”, que marcha do tempo.
ele se consagraria no cenário
dramatúrgico.
Uma crítica de teatro Conclusão
afirmou que Beckett “havia
obtido uma impossibilidade Beckett foi um herdeiro
teórica — uma peça na qual literário direto de Joyce. Esti-
nada ocorre, e que mesmo listicamente, fracassou onde
assim mantém a plateia Joyce prevaleceu, porém, Be-
grudada no assento. Mais do ckett venceu onde Joyce foi
que isto, sendo o segundo derrotado. Em 1961, Beckett
ato uma sutil repetição do dividiu o Prix Formentor
primeiro, ele escreveu uma com Jorge Luis Borges, pre-

46 SAMIZDAT maio de 2010


www.revistasamizdat.com 47
Recomendação de Leitura
Orgulho e Preconceito contra
Zumbis
Ana Cristina Rodrigues

48 SAMIZDAT maio de 2010


Publicado originalmente no guerra’ com os conselhos que dos livros paradidáticos, apa-
FC e Afins todo o fofinho já escutou de rece no final.
seu endócrino ou nutricionis- A trama principal é a que
ta que mudou os rumos da foi escrita por Jane Austen
Um dos maiores chavões sua casa editorial.
que eu conheço – olha que em 1813, uma crônica ácida
são muitos – é o velho ‘a Resolveu pegar clássicos e divertida dos costumes do
escola mata o gosto pela da literatura que já tivessem inicio do século XIX vistos
leitura ao obrigar os alunos caído em domínio publico e por uma mulher. As irmãs
a ler os clássicos’. Apesar de fazer uma mistura com ele- Bennet estão na idade de ca-
acreditar que muito disso se mentos dos livros que a rapa- sar e essa se torna a princi-
deve mais a obrigatoriedade ziada curte: vampiros, fantas- pal preocupação de sua mãe,
do que aos clássicos em si, mas, lobisomens, andróides, uma senhora praticamente
não podemos desconsiderar zumbis, monstros marinhos, insuportável. A vida das
que em tempos de ‘Resident ninjas… Contatou o es- cinco moças gira em torno
Evil’ e ‘God of War’, ‘O mor- critor pouco conhecido Seth dessa obsessão por casa-
ro dos ventos uivantes’ e ‘A Grahame-Smith, dizendo que mento, inclusive Elizabeth, a
Odisseia’ saem perdendo no tinha uma ideia, um título e segunda mais velha e a mais
quesito atratividade. só. O autor disse depois que ousada, que é a protagonista
este título ‘era a coisa mais da história.
Afinal, entre ler sobre genial que já tinha ouvido’:
monstros e matá-los para Eu disse que a vida delas
‘Pride and Prejudice and gira em torno de casamentos?
se tornar um deus qualquer Zombies‘.
pessoa com menos de 30 Bem, isso na versão original.
anos vai escolher o caminho Cá entre nós, se não é a No livro da Quirk Clas-
mais divertido e sangrento. coisa mais genial que EU já sics, tem um probleminha
Oras, por vezes até eu mes- ouvi, está no top 100 com distraindo as mentes das
ma escolho. Então, fica difícil certeza. jovens desse objetivo. Uma
alguém conseguir manter a O livro obviamente inco- estranha praga assola a In-
atenção nos intermináveis modou muitos acadêmicos. glaterra, fazendo com que os
saraus e reuniões sociais de Mas como todos nós sabe- mortos levantem dos túmu-
‘A moreninha’ e ‘Senhora’ em mos, o público em geral não los atrás de carne humana.
tempos de ‘The Sims’, twitter dá muita bola para ranzin- Como nos bons filmes e li-
e MSN. zices mofadas e adorou a vros do gênero, uma mordida
E até onde posso perceber, ideia, fazendo do mashup do e o pobre infeliz também irá
o problema é universal. Ou livro de Jane Austen um dos contrair a moléstia. E é por
http://www.flickr.com/photos/pagedooley/3823292526/sizes/l/

melhor dizendo, mundial. grande sucessos editoriais do isso que o pai, o Sr. Bennet,
As crianças vulcanas devem ano passado. A Intrinseca, tem outros pensamentos em
adorar ler os ensinamentos mostrando mais uma vez que relação ao futuro de suas
de Surak. é antenada com o que chei- filhas. As irmãs são treina-
ra a sucesso (é a editora das das exaustivamente em artes
Mas aqui na 3ª pedra a séries ‘Crepúsculo’ e ‘Percy marciais para poderem se
partir do Sol, o negócio é Jackson’ no Brasil), lançou a defender e ajudar na defesa
bem mais complicado. versão brasileira do livro no de seu país contra as hordas
Até que um dia, lá fora – começo de 2010. de mortos-vivos.
claro, o editor Jason Rekulak Manteve-se fiel ao espírito Aí está a receita. O livro
da Quirk Classics achou o da edição original: a capa é a mantém o humor ácido e
‘ovo de Colombo’ dessa histó- mesma, o título é a tradução inteligente de Austen, in-
ria. Foi inspirado pelo exem- literal, as ilustrações – uma clusive com os diálogos
plo de um livro de auto-aju- boa emulação dos originais marcantes entre Elizabeth
da para pessoas… ah, fofas da época de Austen – tam- Bennet e o arrogante Mr.
em excesso assim como eu, bém estão lá. Inclusive a Darcy, Lady Catherine con-
que misturava os ensinamen- ‘ficha de leitura’, que tira um tinua sendo preconceituosa,
tos do Sun Tzu em ‘A arte da grande sarro das perguntas a pobre Charlotte ainda tem

www.revistasamizdat.com 49
o seu destino trágico… da o mínimo de legislação
porém tudo fica mais diver- autoral sabe que a partir do E mesmo no Brasil, essa
tido com zumbis. A cena do momento em que a obra cai mania pode pegar. O assun-
jantar, logo no começo do em domínio público, ela é de to já apareceu na Veja e na
livro, perde seu ar de sarau livre utilização, por qualquer Época, foi capa do suplemen-
e transforma-se em uma pessoa, incluindo autores. E to Megazine de 20/04/2010,
batalha campal em um dos só seria antiético se o nome com brasileiros dando
muitos momentos divertidos de Jane Austen fosse deixado exemplos de obras nacio-
da história. de lado – o que não acontece, nais ‘remixadas’, a Intrinseca
O autor não perde mui- muito pelo contrário. já anunciou o lançamento
to tempo explicando o que E é curioso que digam de ‘Razão e Sensibilidade
aconteceu ou como os zum- que é um desrespeito e e Monstros Marinhos’ e
bis apareceram. Mal e mal uma afronta. Jane Austen ‘Abraham Lincoln: matador
nos deixa saber que estão enfrentou esse mesmo tipo de vampiros’ para 2010…
procurando uma cura. Nos de comentário por ser uma
15% do livro que lhe coube- mulher que se atrevia a fazer
ram – já que manteve 85% literatura. Poucas na época E a Desiderata anuciou
do texto original – ele se ousavam, muito menos o que no final desse ano irá
preocupa muito mais em sucesso e o reconhecimento lançar “Memórias Pós-túmu-
inserir cenas de ação, como a da inglesa. lo de Brás Cubas’ no final do
disputa de Elizabeth com os ano. O autor ainda não foi
Pode ser que artisticamen- anunciado. Mas já prevejo
ninjas de Lady Catherine, ela te, ‘Orgulho e Preconceito e
mesma uma eximia lutadora que ele irá apanhar bastante.
Zumbis’ não revolucione a Da crítica. O público, porém,
que teve tempos de glória no literatura. Porém, já trouxe
combate aos atingidos pela tem muita chance de gostar
uma pequena revolução no do que vai ler!
praga. mercado. A Quirck Classics
Porém, isso não faz muita já lançou ‘Sense and sensibi-
diferença. O toque de mestre lity and sea monsters’ e agen-
ali foi saber onde inserir na dou o lançamento de ‘An-
narrativa os momentos de droid Karenina’ para outubro
quebra – como leitora dos deste ano. Grahame-Smith é
dois livros, com e sem zum- o autor de ‘Abraham Lin-
bis, deu para perceber que coln: vampire slayer’. Outros
ele escolheu bem. Sempre autores e editores começam
que a trama de Jane Austen a apostar no filão: Amanda
podia afastar jovens leitores, Grange lançou ‘Mr. Darcy,
há zumbis, ninjas e lutas Vampyre’ pela SourceBooks.
para trazê-los de volta.
Claro que aqueles que E claro que isso não ia
levam a literatura a sério parar nos livros. ‘Pride and
demais bradam que é um prejudice and Zombies‘ vai
sacrilégio, uma afronta, um virar filme e graphic novel.
desrespeito, antiético e até Uma produtora cinematográ-
criminoso que o autor ganhe fica inglesa já anunciou que
dinheiro dessa forma. Nunca pretende filmar uma invasão
vi, no entanto, esses mes- alienígena à cidade fictícia
mo críticos refletiram que de Meryton, onde se passa o
as editoras ganham muito livro de Jane Austen, intitu-
dinheiro reeditando clássicos lada ‘Pride and Predator’. Um
em domínio público para jogo para Ipod e Iphone será
servirem como paradidáticos. lançado em breve.
Qualquer pessoa que enten-

50 SAMIZDAT maio de 2010


Ele tinha
nome dediante
“O Cantode
da si sua
lado visão ao concertista.
vampiresco, noturno,
aventureiro – enfim, o meu
chão
diante.a partitura do final
Sereia
SAMIZDATde Bach”, já que a
— Giulia Aquela mesma figura ca- de uma recente compo-
a mais difícil das missões:
Moon é, segundo fontes eu que passava as noites
bela melodia sempre se davérica, que levara tan- sição
SAMIZDATsua – a—primeira
Com tan-a

ficina
seguras (rsrs) um nome teclando com amigos so-
mostrava como um fatal tos a sucumbir,
turnos e escrevendo apontava-
contos tos autores,
lembrar quenacionais
estava eme
artístico. Como é o seu
cumprir a vontade de Deus
enome
irresistível convite ao
de batismo, e por
lhe seus
cruéis na terríveis olhos
Tinta Rubra. estrangeiros,
harmonia comabordando
a música
o vampirismo, é possível
além-túmulo.
que a opção pela adoção ausentes. E como todos os inacabada de Bach. Ter-
fugir de certos clichês
deQuase
um pseudônimo? Você
um ano após o outros,
SAMIZDAT também— OsMozart
vampi- minando,
do gênero,viu ou que a perna
ao fazê-lo
publica textos como “você paralisou-se.
ros são um dos Junto à ima-
temas
www.oficinaeditora.com
que, já estava olivre.
corre-se riscoCorreu
de desca-o
início das mortes, passava
mesma”, diferentes dos de tempos em sentiu
tempos,o racterizar o tema?
pela região umcomo
viajante gem macabra, mais rápido que pôde,
textos escritos Giu- voltam a ser moda. A que
austríaco,
lia Moon? excepcional cheiro da putrefação. As sem
GIULIA olhar paranão
— Bem, trás.existe
O
você atribui este fascínio

http://www.flickr.com/photos/erzs/1357413280/sizes/o/
náuseas dominaram-no, uma lei que diga
som de sua composição que tais
estudante
GIULIA — de música,
O meu nome que temos por estas cria- e tais características são
real é SueliWolfgang
chamado Tsumori. “Giu-Ama- o que o fez libertar-se da servia de trilha sonora
turas? obrigatórias para um perso-
lia Moon”
deus é umQuando
Mozart. nickname paralisia, caindo
GIULIA — Acho que as de joe- para
nagema vampiro.
fuga, enquanto
Acho que
que adotei quando entrei lhos a largos
pessoas gostamvômitos. Em ele
de vampiros pensava
depende como,
do bom até de
senso o
soube da maldição, não
na Tinta Rubra. Ao in- porquea são, em primeiro cada autor. aquela
Um bom senso
se meio engasgos, tosses e momento, música
vésalarmou, disse
de escolher, comoapenas
os lugar, vilões com um bom que o faça reconhecer que,
que gostaria de
outros, um nome romenoouvir o ânsias, ouviu a frase mor- nunca havia lhe parecido
layout. São parecidos com sem algumas características
vampiresco
tal concertocom títulose de
fúnebre de tal: “Termine a música”. tão viva e tão mórbida.
os seres humanos, têm as básicas, o seu personagem
nobreza como “condessa”
conhecer o seu autor. Foi Confuso,
vantagens dadesnorte-
juventude Prometeu não mais
não é um vampiro, mastocá-
e “lady”, reuni dois nomes eterna, imortalidade, la.
alertado de que a história
curtos que tivessem algum
ado, Mozart tentou dons
se alguma outra criatura. Os
psíquicos, força física. É vampiros do meu livro
era
tipo verdadeira,
de significado de para
que as levantar apoiando-se No dia seguinte, o
um monstro que tem um Kaori são os vampiros clás-
pessoas
mim. Eu já não queriam
sempre gostei do no órgão,
arsenal de que
armas sua mão
variado: jovem Mozart já bebem
sicos: predadores, não se
mais estudar música,soava
nome “Giulia”, porque e atravessou
a força, o poder como se nadaa
psíquico, encontrava
sangue (e só pela cidade.
sangue), não
sensual, gracioso e fácil de sedução, a esperteza. Pode andamum a luz do dia,pelo
têm
ele poderia ser o próxi- ali estivesse. Caiu sobre “Mais levado
ser pronunciado. E “Moon”,
mo,
porquee osou
diaumafatalapaixo-
estava o vômito, começando a ou
agir com a “mão pesada” Canto da Sereia de Bach”,de
muita força e capacidade
com sutileza, dependendo se regenerar de ferimentos.
se
nadaaproximando...
pela lua, adoroNada ficar recobrar a razão e ten- diziam. Contudo, soube-
da situação. Mas também Mas já escrevi contos em
devaneando
disso sob uma lua
o espantou. tando
pode ser afastar-se
sentimental, daquele
frágil, se
quenaoshospedaria
vampiros são que ele
seres
cheia ou ler histórias que prenúncio
enfim, pode da
ter morte.
todas as fra- havia partido durante
microscópicos, por exem- a
Dia vinte
envolvam e oito,
noites “Toca-
de luar – quezas
De da mente
bruços sobrehumana,
a terra, plo. Os clichês
madrugada, ruins
são são
e salvo,
ta e Fuga
além em Ré
de achar Menor”,
a grafia de pois já foram humanos um apenas aqueles que são mal
tudo
“moon” como
muitohaviam dito,os sentiu
legal, com algo prendendo-o
dia. Para o autor, é um per-
após o sinistro concerto.
trabalhados pelo autor.
e“o”s
lá lado a lado,
estava lembrando
Mozart pelo
den-Bugalho
sonagempé. Não
muitoteve cora-
estimulante, No cemitério, ao invés do
Henry Alfred
dois olhos arregalados de
tro do cemitério. Com os gem http://www.lostseed.com/extras/free-graphics/images/jesus-pictures/jesus-crucified.jpg
e issodefazolhar
com que parao ver o
produ- esperado músico morto,

O Rei dos
espanto. Quando lancei o SAMIZDAT — Muitos
olhos fechados, deixava-se que
to daera. E novamente
criação a
tenha grandes foi encontrada apenas
primeiro livro, não havia chances de suplicou:
ficar bom.“Ter-E, autores da nova geração
extasiar
razão para com as compo-
assinar de outra
voz suave uma inscrição com
encantaram-se na terra,
os
para o leitor, é aquele vilão
forma, já
sições deque a maioria
Johann Sebas-dos mine a música”. Fazendo parecida
vampiros com o trecho
por causa dos de

Judeus
(ou vilã) bonitão, sacana
meusBach,
tian leitores
numme estado
conhe- uma desesperada
e malvado que adoramosoração jogos departitura.
alguma RPG, especial-
Desde
cia como “Giulia Moon”. E mental, tateou
odiar. Vilões o solo
assim até
sempre mente “Vampiro: a Más-
então, não se noticiou
de euforia sobrenatural. cara” (publicado no Brasil
assim ficou. Nunca publi- fizeram sucesso,
Subitamente, o som encontrar uma pois pedraadora- mais vítimas do “Canto
quei nada como Sueli,se
pois mos esses contrastes: beleza pela Devir). Você perten-
extinguiu. O jovem
Giulia continua sendo,des-
pelo pontiaguda. Com ela, da
ce aSereia de Bach”.
este grupo ou seu
com maldade, delicadeza
menos para
pertou mim, oemeu
do transe dirigiu começou a desenhar no
com crueldade, e assim por interesse é anterior? Qual

do www.revistasamizdat.com 51
w
gr nl
át
oa
is d
Recomendação de Leitura

Giselle Sato

Lua nova
Assisti a película três ve- aos humanos. pessoa, sugere uma cumpli-
zes, gostei demais dos efeitos, E, é claro, os Volturi, cidade capaz de provocar no
da direção e da fotografia. A vampiros de longa linhagem, leitor,as mesmas emoções da
continuação da Saga Twilight que compõe uma espécie de personagem. Afinal, é pura
, Lua Nova, tem apelos fortís- conselho dos vampiros. fantasia, os amantes do gê-
simos, novas tramas, muita nero literalmente viajam na
ação e um núcleo que certa- Eles vivem na Itália, pos- magia e não estão preocupa-
mente agradará aos amigos suem habilidade paranormal dos se é apelo ou não. É bom,
dos seres da noite. e terão importante participa- diverte e prende a atenção, e
ção no desfecho desta etapa. no momento da leitura ou do
Desta vez, temos clãs de Ao longo da Saga, voltarão
lobos e de vampiros. Contra- filme,é o que basta.
a aparecer para mostrar
riando a ideia que todos são o quanto são poderosos e Li todos os volumes, cada
iguais aos Cullen, Bella co- temidos. vez que iniciava um, achava
nhecerá vampiros assassinos que era melhor que o ante-
e desgarrados, que caçam por rior e não conseguia parar
prazer e vivem sem qualquer Não há como discordar até o final.
preocupação em se misturar que a leitura, em primeira

52 SAMIZDAT maio de 2010


A impressão que tenho ama tanto que está dispos- Depois, conhecemos Jacob
é que a Stephenie Meyer, ta a abrir mão de sua vida, Black, um super charmoso
autora, começou timidamen- ele teme perder o controle índio que transforma-se em
te em Crepúsculo, depois e beber o que mais preza. lobo, e é apaixonado por
foi ganhando segurança em Um conflito clichê, mas que Bella, fazendo tudo para
Lua Nova. No entanto, o empolga, principalmente conquistar e ajudar a moça.
sofrimento de Bella , nesta quando mexe com extremos. A família Cullen, em especial
continuação, ficou pesado Tudo neles é intenso, um Alice, tem papel importante,
demais, arrastou-se infinita- amor impossível, entre seres com suas visões e tempera-
http://www.washingtoncitypaper.com/blogs/citydesk/files/2009/04/new-moon-wolf-pack.jpg

mente e quase terminou em incompatíveis, dá margem a mento impetuoso.


tragédia. A personagem em atitudes incomuns. A fotografia do filme é
questão tem apenas dezessete Entra em cena um terceiro linda, em tons escuros, favo-
anos. Considerei a mensagem personagem, que não é total- recendo o clima nublado de
negativa e obsessiva para o mente humano, mas que está Forks, a cidade onde vivem
público alvo. mais próximo, pois não é um os personagens, e a maior
Nossa querida Bella Swan, monstro o tempo inteiro. O parte da trama acontece. Aos
tem a fragilidade e determi- mitológico lobisomem que, poucos percebemos a sutil
nação dos apaixonados. Ela nesta história, não segue as claridade entrando, à medi-
é cega em seu amor, quase regras conhecidas. Aliás, todo da que a vida da mocinha
entra em transe cada vez o universo sobrenatural so- melhora e ela se fortalece.
que encontra Edward Cul- freu alterações, e não causou A produção é cuidadosa e
len, agora namorado oficial. danos maiores nas crenças ganha força da metade do
Neste encantamento, Bella dos puristas. filme em diante,terminando
está sempre elogiando e Até agora, nossa família de forma surpreendente.
comparando a perfeição do vampira ‘’vegetariana’’ e os Sempre digo que vale a
vampiro e sua condição des- índios lobos foram ingeridos, pena assistir adaptações, ler
prezível de simples mortal. sem maiores alardes. Para o livro sempre, antes ou de-
Bella se menospreza ao ponto quem não assistiu Crepúscu- pois, não altera o resultado.
de questionar, o interesse de lo, vale ressaltar que Edward Ver na tela, os personagens
um ser tão incrível como e os seus bebem sangue de ganhando vida e a historia
Edward, sempre descrito animais e jamais matam ser contada, atingindo mi-
com adjetivos e exclamações humanos. lhões de pessoas, deve ser
exageradas. Bella é a imagem fantástico para o autor.
da insegurança típica de toda E os lobos, não transfor-
adolescente. mam-se a cada lua cheia, eles A intensidade da relação
nascem da necessidade de dos personagens principais
Algumas pessoas proteger a reserva indígena, é testada: amor, decisões e
enxergam,neste comporta- fazem parte dos ritos e cren- conseqüências são apresenta-
mento, a completa submissão ças dentro de uma reserva das em crescente. A decisão
da personagem, uma atitude de índios que conhecem o de embarcar nesta aventura
fraca e extremamente ma- segredo dos vampiros. Nem é pessoal, mas como sempre,
chista. Prefiro acreditar que morrem com balas de prata, tem um apelo irresistível.
é neste embate: Bella e sua eles sabem controlar suas
baixo auto-estima versus transformações e formam
Edward que a valoriza por um bando coeso.
tudo que Bella considera
comum, um dos pontos mais Interessante. Muito. Neste
fortes de toda a obra. filme, e também no livro, em
maiores detalhes, sofremos
Edward venera as sensa- com Bella, abandonada por
ções físicas e emocionais de Edward, chegando ao fundo
Bella.Para ele, transformar do poço, imersa em dor, soli-
a menina em um vampiro dão e saudades.
é uma atitude egoísta. Ela o

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Artigo

Fátima Romani

Manifestos Modernistas

54 SAMIZDAT maio de 2010


Em seu “Manifesto da Po- Nenhuma fórmula para a tístico, contrários ao acade-
esia Pau Brasil” Oswald de contemporânea expressão do mismo, ao que se realizava
Andrade questiona os valo- mundo. Ver com olhos livres. em termos de arte no Brasil.
res ditos eruditos e afirma: Oswald de Andrade
O outro Manifesto, o sintetizou, nestes dois textos,
Eruditamos tudo Antropófago, que dizem o pensamento modernis-
inspirado inicialmente na ta, que se contrapunha ao
tela Abaporu (antropófa- já estabelecido. Ele queria
Além de “eruditarmos”, go, em tupi), de Tarsila do mostrar o que existia além
antes da Semana de Arte Amaral, é, na realidade, o das fronteiras da arte aca-
Moderna, importávamos desenvolvimento das ideias dêmica brasileira e que se
a técnica, os modelos, a do Manifesto da Poesia Pau podia encontrar real valor
linguagem, copiando princi- Brasil, já com inspiração artístico fora dos padrões
palmente o academismo. filosófica (Montaigne, Marx que a elite exaltava.
e Nietzsche). A antropofagia
Poesia de importação significa, nas tribos em que
era praticada, absorver as Bibliografia:
qualidades daquele que é
Importávamos tudo, os devorado. Assim, ao comer ANDRADE, Oswald de
velhos colonialismo e impe- a carne de um guerreiro - Manifesto da Poesia Pau
rialismo se mantendo ainda muito valente, estar-se-ia Brasil in Correio da Manhã,
em plagas brasileiras, se não adquirindo a valentia, a 18 de março de 1924
politicamente, pelo menos coragem e outros atributos - Manifesto Antropófago
culturalmente. Em arte, dele. in Revista de Antropofagia,
opondo-se a isso: Neste caso, significa a São Paulo, 1º de maio de
devoração cultural das téc- 1928
A Poesia Pau Brasil, de nicas importadas dos países GRANDE ENCICLOPÉ-
exportação. desenvolvidos para reela- DIA LAROUSSE CULTU-
borá-las com autonomia, RAL, Círculo do Livro, São
convertendo-as em produto Paulo, 1993
O modernismo veio para de exportação.
http://www.educacaoadventista.org.br/blog/EADCAL6/images/70/ABAPURU%20001.jpg

quebrar os velhos padrões,


romper com as regras pré-
estabelecidas, apresentar Só a antropofagia nos une.
uma nova visão do mundo, Socialmente. Economicament.
da arte. No Manifesto Pau Filosoficamente.
Brasil encontramos também Só me interessa o que não
comparações, metáforas, é meu. Lei do homem. Lei do
análise do pré-existente, da antropófago.
erudição. Propõe a reação
ao status quo, para estabele-
cer uma nova ordem geral. Estes dois Manifestos,
Este Manifesto traz, em seu cada um a seu tempo,
bojo, tanto a crítica como apresentaram ideias revolu-
as novas normas (isto é, sem cionárias, então novas, que
normas), buscavam mostrar, princi-
palmente à elite cultural da
época, que existiam novos
contra a cópia, pela inven- estilos, novas maneiras, nova
ção e pela surpresa linguagem, novo fazer ar-

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Crônica

Quando a natureza precisa intervir,


quem são os culpados?
Giselle Sato

56 SAMIZDAT maio de 2010


O lugar onde
Tanta dor, a tristeza se funde Porque obras foram realiza- a boa Literatura
ao cinza que cobre a cidade, an- das, ruas abertas, estimulando
tes azul, amarela, verde em aqua- novos moradores? São tantas
é fabricada
rela. Hoje não estamos sorrindo perguntas no vazio.

http://guisalla.files.wordpress.com/2008/09/machado1.jpg
como antes, em cada coração,
As águas, o vento, a natureza
perdas e solidariedade.
enfim, mostrou ao homem, os
O Rio de Janeiro, boêmio danos que ele mesmo causou. É
e despreocupado, descarta a hora de atitudes, de estender a
imagem preguiçosa, arregaça as mão e tratar com respeito quem
mangas e segue adiante: Cobra não tem mais onde morar.
respostas, busca a verdade sem
Não serão paliativos que
medo, aponta o dedo e acusa.
mudarão a vida desta gente.
Sabe que a ameaça paira do
Precisamos de compromisso, é
nosso lado, o cenário é quase
um direito mínimo ter moradia,
idêntico, basta olhar nossos
alimento, educação e saúde.
morros. Há perigo nas encostas,

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
existem pessoas morando nas Mas nem todos conseguem,
casinhas penduradas, são vidas não há emprego, oportunidade,
sem opção. o caminho de cada um é muito
diferente. Meu manifesto é a
Como todo carioca, sinto
palavra, as únicas armas que
Niterói como a irmã que a gente
possuo estão aqui, e é através
implica, mas ama tanto, tanto,
da mensagem que deposito a
que sofremos juntos, queremos
esperança.
proteger e não existimos sem ela.
Rio, Niterói e outras cidades da Eu quero um mundo melhor
família Brasil, tiveram as feridas e mais justo e creio que o ser
expostas. humano é capaz. Se perder a
fé nestes valores, não haverá o
O lixo foi revirado e as
http://www.flickr.com/photos/luizbaltar/4569643983/sizes/l/

menor sentido em existir e vou


imagens, que o mundo assistiu,
sucumbir no desespero.
foram no mínimo vergonhosa.
Ao admitir, nem digo permitir, a Mas sou antes de tudo, brasi-
construção de moradias em cima leira, e mesmo à deriva, o porto
de um lixão, quem escondeu as que busco existe. Eu sei, faço
doenças causadas pelo churume, desta certeza o alicerce e é lá
escorrendo pelas calçadas? E fo- que espero aportar, neste imenso

ficina
ram apresentados tantos estudos, navio-nação. Um dia.
o perigo foi apontado, e nada foi
feito.

www.oficinaeditora.org

57
Crônica

Quando o mundo cai


Ana Cristina Rodrigues

58
58 SAMIZDAT maio de 2010
Eu achei que todos os eu conheci, durante 18 não foram feitas por
meus desabafos sobre a anos, vivem nas comuni- serem caras. Muito mais
tragédia que se abateu dades atingidas: Morro barato seria remover as
sobre Niterói tinham sido 340, Morro do Castro, pessoas que ali residem.
suficientes. Achei que Morro do Estado, Beltrão, Só que estas estão sendo
meus gritos no twitter e Cafubá, Cantagalo, Ma- retiradas em sacos plásti-
a postagem no meu blog ceio, Cubango… e mes- cos que fazem às vezes de
já tivessem sido o sufi- mo no morro do Bumba. mortalhas. Ao invés de
ciente. Lá eu esbravejei Eu morei durante o meu um conjunto habitacio-
contra o Poder Público, primeiro ano de casada nal, o novo endereço que
principalmente contra a na Travessa Beltrão, onde a prefeitura está conce-
Prefeitura de Niterói, na oito pessoas morreram dendo a eles é o cemité-
figura do atual Prefeito, soterradas. rio do Maruí.
Jorge Roberto Silveira, E me revoltei porque O dinheiro é pouco?
e do seu grupo político, apontaram a culpa como Então, como Niterói tem
que se reveza no poder sendo das vítimas, como vários projetos com a
há duas décadas. Gritei não bastassem terem assinatura (cara) de Oscar
que os rostos que passa- perdido tudo. Perderam a Niemeyer? Um museu
ram no Jornal Nacional, casa, a familia, documen- de arte contemporânea –
essas caras chorosas que tos, a sua própria história que pouco contribui para
perderam tudo não são e a sua memória, enter- a sociedade – que cus-
pobres coitados. São pes- radas em montanhas de tou 1 bilhão de doláres?
soas. Pessoas que sonham, lixo e lama. Só que essas Longe de mim, enquanto
que batalham, que tentam pessoas não são lixo. E escritora e funcionária
ter vidas dignas e dar não são burras. Elas não do Ministério da Cultura,
um futuro aos seus fi- moram em encostas e lu- desmerecer qualquer coi-
lhos. Gente que tem suas gares de risco por gosto e sa na área, mas fica aqui
pequenas ambições, fazer escolha. Eles não colocam a pergunta: quantas vidas
uma festa de 15 anos a sua vida e a dos filhos valem um museu?
para a filha, comprar um em risco por opção. É ao
carrinho melhor, conse- Ou então, de que
contrário. Eles fazem isso adianta expor nossa
guir viajar pra Cabo Frio por falta dela.
nas férias, colocar os fi- memória e nossa arte se
lhos na faculdade, mesmo Não foi o bastante. matamos – ou deixamos
na particular. Mesmo que Ainda dói. A ferida na morrer - quem mais teria
cidade ainda está aberta, necessidade de conhecê-
http://www.flickr.com/photos/weimiweim/2346384858/sizes/l/

custe muito.
ainda sangra. la para ter orgulho de si
Chorei em público e entender de onde veio?
porque os conheço. Con- Ainda tem corpos em-
vivi com eles boa parte baixo do lixo. Ainda tem
da minha vida. Já as aten- pessoas sem casa.
di na padaria, já traba- E ainda tempos que
lhei com elas atrás de escutar os poderosos se
um balcão. Fui a festas, eximindo de culpa, exi-
a churrascos, vi as fotos, gindo apoio nesse mo-
ajudei em matéria de es- mento tão difícil, como
cola dos filhos, emprestei se não fossem eles os
livros – dei alguns tam- responsáveis. Dizendo
bém. Muitos desses que que obras de contenção

www.revistasamizdat.com 59
Poesia

Inspirando
Ju Blasina

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60 SAMIZDAT maio de 2010
Augusto morreu tanto e tanto
Antes de morrer de fato
Morreu bem morrido
Moribundo inato

A prática leva à perfeição!

Manuel brincou de moscas


Fingiu-se rio, pedra e árvore
Manuel sabe das cousas
E das não-cousas também
Manuel é tão coisado

Que gozado:
Quero crescer pra Manuel!

Fernando não soube ser um ser


Foi multidão
Bando de gente dentro de si
Tão diferente
Fernando é triste e contente
Fernando é tão pessoa

Fernando me soa!

Não sou assim nem assado

http://www.flickr.com/photos/samyra_serin/503759458/sizes/o/
Prefiro o escrito ao falado
O bem doído ao mal amado
O perdido ao achado
O nunca ao passado
O estranho
Ao bonito

O coisado!

Às vezes sou tão Augusta


Que me sinto Pessoa
Já me pintaram Rodrigues

Queria ser Manuel!

www.revistasamizdat.com 61
Poesia

À la Khlebnikov
Caio Rudá de Oliveira

CID 10: F42

toc, toc
tem alguém à minha porta
toc, toc
tem alguém à minha porta
toc, toc
tem alguém à minha porta
[...]
toc, toc
tem alguém à minha porta
toc, toc
tem alguém à minha porta
toc, toc
tem alguém à minha porta
[...]

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62 SAMIZDAT maio de 2010
poème avec fromage

c’est moi o coentro

http://www.flickr.com/photos/aenimation/2428527304/sizes/o/
no centro, cento e tantos
moi de coentro
e um citroën

vida de cida de grande

cida de cida
de cidade para o campo foi
abriu uma (si[dra)maticamente]
um drama
matematicamente
um tema
um mate, por favor
mate!
não me mate, por favor
um favor do velho jagunço
e favorecida foi cida de cida
de uma cilada escapou
e favor e cida foi cida de cida
de, campo, sidra, drama, grama
gramática e cida: gramaticida
para os piolhos do texto.

www.revistasamizdat.com 63
Poesia

Efemeridades memoráveis dela

Wellington Souza

Quer, mas não muito...


– muitos
por pouco tempo.

Breve,
ali
e pronto:
sem contágios
contratos
ou outras trocas
além da de fluidos.

Depois,
em casa,
quererá
por muito tempo
um pouco
que seja
daquilo que foi muito
e pouco.

... daquilo que se foi.

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64 SAMIZDAT maio de 2010
Concisos
Wellington Souza

PRECE ...OUTROS

Tudo posso Não é que eu goste de ser

http://www.flickr.com/photos/jamesjordan/2937233637/sizes/o/
quando Ele assim;
não me enfraquece. apenas não sei ser...

DÈMODÈ CAEM

O Amor está desbotado O cais, na cidade do Porto.


mas pode-se A barca muda
ainda almas de infernos:
contemplá-lo. pessoas se desvanecem na morte.

www.revistasamizdat.com 65
Poesia

Tempestade
Ana Cristina Rodrigues

Pelas chuvas que arrasaram Niterói

Apesar do azul do céu,


Você a vê chegando.
Sabe que vai acontecer.
Sente na pele.

É previsível.

Mesmo que o dia pareça ensolarado.


Mesmo que os pássaros cantem.
A tempestade se anuncia.
O vento corre nas árvores.

Você finge que não vê.


Pois não quer.
Quer aproveitar as suas ilusões
Que o dia ainda está bonito.
Que vai ver um belo pôr-do-sol.

Ignora o vento, os trovões...

Até que o nascimento da tempestade lhe surpreende.

E enquanto o céu desaba,

http://www.flickr.com/photos/foreversouls/3612227789/sizes/o/
A água escorre pelo seu rosto.

Você...
Estática.
Parada.
Surpresa.
Muda.

Como se não tivesse visto os sinais...

No seu rosto...

Chuva ou lágrimas?

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66 SAMIZDAT maio de 2010
Passado
Polyana de Almeida

http://www.flickr.com/photos/phack/4236789914/sizes/l/
Pedaçosm ea u s
g a
r i
ã e
o r
s de a
em
fio,
rio
em
devir:
amanhã não
serei como ontem.
Só na alma,
a ferida sangue mar
e s c o a dor.
urdidura do tempo arde
em desenho, indelével arte,
c i c a t r i z:
meu ontem no amanhã.

www.revistasamizdat.com 67
Poesia

José Guilherme Vereza

O homem só
68
68 SAMIZDAT maio de 2010
O homem só não liga por ser só. Acostumou.
Casa vazia, cama vazia, peito vazio.
Não por falta de tentativas ou de oportunidades. Até teve.
Marias e Tânias, Beatrizes e Lucianes, Glórias e Janaínas.
Não se ajeitou com nenhuma.
Todas um chiclete: deliciosas no início, sem graça no fim.
Foi cuspindo uma a uma.

O homem só sempre foi só. Menino só.


Adolesceu e madurou só.Não que não tivesse tido amigos.
Até teve. Geraldinhos e Pingos, Xandes e Inácios,
Claudios e Marquinhos, Moreiras e Almeidas.
Não plantou amizade com nenhum deles.
Todos um porre: divertidos no início, enjoados no fim.
Foi vomitando um a um.

O homem só tem manias que só ele.


Não dorme de luz apagada, se enxuga com toalha molhada,
esquece a televisão ligada, não atende telefone por nada.
Deixa o celular morrer de tocar. Muitas vezes nem responde a ligação.
Pra quê? Para quem?
Só se fala ao homem só somente o indispensável.

O homem só se vira sempre só.


Não tem nojo de pia, de cueca usada, de pijama amarelado.
Cata farelo do chão, passa pano nas coisas, tira teia dos cantos.
Lava roupa, lava louça, limpa ralo, janela e panela.
Espana a vida sozinho. Não vê do que se queixar.

O homem só tem dois horrores: gente e cebola.


A faca que corta a laranja não pode cortar cebola.
Fica o gosto e o desgosto.
Lembra da mãe desatenta, da avó sem cuidados,
http://www.flickr.com/photos/kikasz/3984435223/sizes/o/

do pai caladão.

O homem só trabalha só.


Escreve por encomenda, redige por intuição.
Ao som de um piano ao longe, inventa um mundo de gente e gente de todo mundo.
Conversa com Joões, conta casos para Marias, discursa para multidões,
enche a cara com Gustavos, namora Desirées, tem filhos com Rosanas.
Vive instantes intensos rodeado de vidas geradas por palavras e expressões.
É amigo e ouvidor, conselheiro e fiador, companheiro e porta-voz,
inimigo e desafeto de infinitas criaturas.

www.revistasamizdat.com 69
Assim como as cria, mata todas numa teclada só.
Quando o tempo acaba, o saco enche, o piano cansa.
Aos primeiros acordes ao longe, ressuscita um a um com o elixir da imaginação.
Quando o abstrato se dissipa e a concretude emerge esfregando a verdade no seu nariz,
o homem só volta a ser só.
Tão absolutamente só que não se dá conta que não é tão somente só no mundo.

O homem só tem uma vizinha. Que também é só.


Que não liga por ser só. Acostumou.
Casa vazia, cama vazia, peito vazio.
Não por falta de tentativa. Até quis Maurícios e Joaquins,
Pablos e Melquiades, Reinaldos e Beneditos.
Mas as tintas do destino também a pintaram só.
E só vive a fazer a vida longe da rua,
longe de gente, longe de tudo.
Tal e qual seu vizinho, o homem só.

A vizinha só não escreve. Toca piano.


Pelas mãos que passeiam a bailar, viaja porta afora.
Conversa com Marias, conta casos para Joões, encanta platéias distintas,
toma chás com Enedinas, namora Adamastores, tem filhos com Rafael,
vive instantes intensos inebriada de vidas geradas por notas musicais.
É amiga e ouvidora, conselheira e faladeira, companheira e porta-voz.
Inimiga e desafeto de infinitas criaturas.
Quando a música chega ao fim, de duas uma:
ou busca outra no ar, para encher a vida de tantas vidas,
ou fecha o piano.
É neste exato silêncio que a verdade grita.
E a vizinha só volta a ser só.
Tão absolutamente só que não se dá conta
que não é tão somente só no mundo.

Quando pisca duas vezes a luz na varanda ao lado,


iluminando a copa do oitizeiro da calçada,
as folhas sombreadas dizem que está na hora.
O homem só e a vizinha só, sós como são, a sós se dão.

Não se denominam, mas se desejam.


Não se exclamam, mas se beijam.
Não se perguntam, mas se tocam.
Não se falam, mas se despem.
Não se dizem, mas se apertam.
Não se pronunciam, mas se sugam.

70 SAMIZDAT maio de 2010


Não se anunciam, mas se invadem.
E se contraem, e se mexem. E se viram, e se desviram.
E se sobem, e se descem. E se ondulam, e se tremem.
Até que ela emite um aviso gutural crescente
e ele responde com uma respiração ofegante, libidinosa, satisfeita.

Chegam onde querem chegar quase que ao mesmo tempo.


Explosões silenciosas, jorros secretos, acelerações, desacelerações.
Altas e baixas de pressões.

Restauram-se os dois, pós-gulosos que são.


Aceitam-se num carinho breve e infinito,
saboreiam um torpor como uma sobremesa dos deuses.
Até que se vão. Cada um pro seu canto, cada um para o seu mundo.
Sem uma palavra, sem um “durma bem, meu bem”,
sem um sorriso só.

Bem, assim era como acontecia.

Mas como tudo que acontece na vida, desaconteceu.


Um dia, a luz ao lado parou de piscar duas vezes.
As sombras das folhas do oitizeiro emudeceram de vez.
Foi o sinal derradeiro. Ninguém mais se apareceu.

Sem o alento do piano ao longe, cansado de tanto não escrever,


tomado por uma inquietude curiosa, o homem só debruçou-se na varanda contígua,
pescoço de girafa à procura aflita
de suas razões e emoções de viver.
Antes que despencasse no jardim, caiu num pranto só.

Viu nada, nada, nada.


Só uma sala vazia, vazia, vazia.
Sem vida, sem vizinha, sem coisas, nem o piano.
Pela primeira vez, o homem só sentiu a falta de companhia.
E sucumbiu de sua verdadeira solidão.

www.revistasamizdat.com 71
Poesia

manifesto Marcia Szajnbok

72 SAMIZDAT maio de 2010


avanti populi!
ressuscitemos a subversão!
chega de estar acomodado, reconfortado e redondo
de tanta correção política!
façamos algo!
revolucionemos!
ou, se tanto não for possível, ao menos tentemos surpreender...
não será com bandeiras vermelhas,
pois Che desbota em camisetas, Marx está morto e também o chairman Mao...
não temos mais como sair à rua loucos e soltos,
envolvendo em fumaça canábica murchas flowers in our hair...
um tiro matou a possibilidade de fazer amor livre nas praças...
foi-se o tempo dos gurus
dêem vivas aos guidelines:
como tratar o diabetes
como enfrentar a depressão
como ficar magro ganhando músculos em dez lições
como criar schnautzer de pelo amarelo
como... como...
basta!
fechemos a boca e os olhos!
recusemos!
gritemos contra!
sejamos o avesso, o anti, o não!
não nos alinhemos!
e nunca, nunca nos alienemos...
ah...
mundo cansativo, este...
tanto por fazer, tanto por criar...
http://www.flickr.com/photos/pwkpwkpwk/4536268055/sizes/l/

era preciso um tempo vazio


um tempo oco, um tempo de nada
era preciso um protesto mudo
era bom que ficássemos todos quietos
apenas sentados diante do mar num final de tarde
e assim, calmos e plácidos, nos deixássemos
nus
observar pelas águas

www.revistasamizdat.com 73
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor
de quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores
da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia
Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em
Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-
rinha.
henrybugalho@gmail.com
www.maosdevaca.com

Revisão
Maria de Fátima Brisola Romani
Nasceu em SP em 1957 mas mudou-se para Salvador
em 1984 onde reside até hoje. É arquiteta e artista plás-
tica, além de tradutora (inglês e italiano) e revisora de
textos. Escreve poesias esporadicamente desde adoles-
cente e há cerca de um ano começou a escrever contos.
Pretende concorrer ao mestrado em Artes Cênicas na
Escola de Teatro da Ufba.

74
74 SAMIZDAT maio de 2010
Colaboração

http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Maria de Fátima Santos
Nasceu em Lagos, Algarve, Portugla em 1948. Vi-
veu a adolescência em Angola e reside em Lagos.
Licenciada em Física, é aposentada de professora do
Ensino Secundário. Já participou na SAMIZDAT e por
afazeres de vida afastou-se. Tem poemas em diversas
antologias, e publicou em Janeiro de 2009 um livri-
nho com pequenas histórias, aquelas que lhe voam
no teclado: Papoilas de Janeiro é o título, com ilus-
trações de TCA do blogue http://abstractoconcreto.
blogspot.com/ Muito material está publicado nos
blogues e www.intervalos.blogspot.com e http://tris-
teabsurda.blogspot.com/ Escreve pelo gosto de deixar
que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu
a ler. Escreve principalmente nos contos nos gêneros
mistério, suspense e terror, além de crônicas. Man-
tém ainda o blog Palavra Escrita, sobre livros e litera-
tura (www.pioneiro.com/palavraescrita).

Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

www.revistasamizdat.com 75
Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.

Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.

Leandro da Silva
Pampeano, gaúcho das tecnologias “rústicas” dos
ancestrais indígenas. Estudante de espanhol. Escreve
para complementar a realidade, crendo que todos
podem escrever e, que isso não é profissão e sim,
humanização. Relacionando sociedade, ideologia e
memória coletiva, principalmente. Sobre o pampa,
literatura de ficção científica e africanismo, unindo-
os ou não,.

76
76 SAMIZDAT maio de 2010
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor ama-
dor, licenciado recente em História da Arte, experi-
menta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

episcopum@hotmail.com

José Guilherme Vereza


Publicitário, redator, executivo, professor, aluno, marido,
pai, filho, cunhado, tio, sobrinho, genro, sogro, amigo, bota-
foguense, tijucano, lebloniano, neopaulistano, escritor, leitor,
eleitor, metido a cozinheiro, guloso, nem gordo nem magro,
motorista categoria B, pedestre, caminhante, viajante, seden-
tário, telespectador, pilhado, zen, carnívoro, beatlemaníaco,
cinemeiro, desafinado, sinfônico, acústico, capricorniano,
calorento, alérgico a ditaduras, sonhador, delirante, insone,
objetivo, subjetivo, pragmático, enérgico, banana, introspec-
tivo, extrovertido, goleiro, blogueiro, colunista do Bolsa de
Mulher, colaborador do Mundo Mundano, tem livro publi-
cado, conto premiado, teve texto encenado no teatro, fez ro-
teiros para televisão, criou uma infinidade de comerciais e
aprendeu que aproveitar a vida intensamente é ser de tudo
um muito. Samizdat é seu mais recente energético..

Caio Rudá
Bahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda
Psicologia na Universidade Federal da Bahia e espera
um dia entender o ser humano. Enquanto isso não
acontece, vai escrevendo a vida, decodificando o enig-
ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,
reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mas
como consolo, um potencial asseverado pela mãe.

www.revistasamizdat.com 77
Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de es-
crever de vez em quando. Paulistana convicta, vive
desde sempre em São Paulo.

Wellington Souza
Paulistano, mas morou também em Ribeirão
Preto, onde cursou economia na Universidade de São
Paulo. Hoje, reside novamente no bairro em que nas-
ceu. Participou das antologias do concurso Nacional
de Contos da Cidade de Porto Seguro e do Poetas
de Gaveta/USP. Escreve poemas, contos, crônicas e
ensaios literáios em um blog (Hiper-link), na revista
digital SAMIZDAT e no portal Sociedade Literária.
“Escrever é um modo de ser outro ser”.

Cirilo S. Lemos
Nasceu em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense,
em 1982, nove anos antes do antológico Ten, do
Pearl Jam. Foi ajudante de marceneiro, de pedreiro,
de sorveteiro, de marmorista e mais um monte de
coisas. Fritou hambúrgueres, vendeu flores, criou
peixes briguentos. Chorou pela avó, chorou por seus
cachorros. Então cansou dessa vida e foi estudar
História. Desde então se dedica a escrever, trabalhar
como voluntário numa escola municipal e fazer feliz
a moça ingênua que aceitou ser mãe dos seus filhos.

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78 SAMIZDAT maio de 2010
Polyana de Almeida
Paulistana, 28 anos. Escritora, publicitária, mestre
em Literatura Russa, sonhadora, amante do passado,
apologista da nostalgia. Entre os afazeres da escrita

http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
e do cotidiano, contempla o mundo e questiona: “há
vida sem arte?” No meio do caminho, trôpega, em
desalinho, ela vai se perdendo, caindo, decaindo, a
responder: “sem arte, para mim, vida não há.” E le-
vanta: palavras, palavras, palavras. Corpo. E o sangue
a pulsar.
SAMIZDAT fevereiro de 2010

Ana Cristina Rodrigues


Historiadora e escritora lusocarioca, fascinada
pela exploração de novos mundos: seja no passa-
do, no futuro ou em tempos que ainda não existi-
ram. Uma contista que se esforça arduamente para
tornar-se romancista um dia, além disso coordena
antologias, comunidades e coletivos de escritores.
Publicou contos em vários zines e antologias no Bra-
sil e no exterior, além do livro ‘AnaCrônicas’, uma
coletânea de contos curtos.

www.revistasamizdat.com 79
Também nesta edição, textos de

Ana Cristina Rodrigues Jú Blasina

Caio Rudá Leandro da Silva

Cirilo S. Lemos Léo Borges


http://www.3gatti.com/Francesco-Gatti/godot-scenography/waiting-godot.jpg

Dênis Moura Marcia Szajnbok

Giselle Natsu Sato Maria de Fátima Santos

Henry Alfred Bugalho Maristela Deves

Joaquim Bispo Polyana de Almeida

José Guilherme Vereza Wellington Souza

80 SAMIZDAT maio de 2010

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