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Ida Ferreira Alves Marcia Manir Miguel Feitosa (Organizadoras) LITERATURA E PAISAGEM perspectivas e dialogos uy Editora da UFF COLEGAO ENSAIOS - N° 33 ste livro resulta da reuniao de diferentes perspectivas e didlogos sobre literatura e paisagem. Com 0 desenvolvimento de nossas pesquisas académicas sobre as configuragdes e desfiguragdes da paisagem num conjunto de textos literérios de lingua portuguesa produzidos nas iiltimas dé- cadas do século XX, temos tido a possibilidade de didlogo com pesquisadores de diferentes areas e universidades brasileiras e estrangeiras, cujos trabalhos apresentam interesses e indagagdes comuns. Assim, em decorréncia dessa par- tilha de propostas e de questionamentos em torno da vivéncia e formulagées da paisagem, houve o estimulo de um projeto comum: divulgar um conjunto de ensaios produzidos por professores ¢ pesquisadores brasileiros, e também por um pesquisador francés, os quais, atuando seja na area de Letras, seja da Geografia Cultural, estdio preocupados em discutir e demonstrar como a ques- to da paisagem é um tema miltiplo e instigante para a reflexio critica sobre as tensdes que enfrentamos neste inicio do século XXI. IN 852280! HHI Universidade d 4 Ww Federal Fluminense Editora da UFF | Be een es Sere M gntaied ere ER aC CRE rented Presta tt Perr ret ors Pe Men eee mre ae ok ok ek eZ ORM TOM ese ener Oo uE MO m nan Tee ae Wars Bee ectan Tcicd viajantes e andarilhos. CLM teu) Preeti Se Rent a occ eens ts Tee i rer ere tae Mager See em moderna Tae Oe ROEM in Orr PUI eeare td POUR eG Emenee ene F Pe eae ted colhendo trigo. Em todas essas ete nee ae te Peper erica ew encom tenet do lago: “O ete snc voo”); do infinito (Leopard Reece cece) Segundo Antonio Car ets SES On ra TEC Sat Rano} EERE oe nt nee en e seus infernos de dor e delirio. Ao PR en maa transporte e os novos dispositivo: ético-sonoros (segunda metade Reece ORM er une Pee nent ee ee Por Om Sat pee enn OR eoned Re CuO once rece Gea eg actin Ne Me eet eed eRe ERR CeCe eas ler (“A carne é triste, e li todos o: Nee MeO Once 20 alcance dos olhos (e dos ¢ seria a poesia, entdo, o ultimo fiigio das paisagens que ainda esta mos por ver, tocar, sentir? Em tem Pt Cree eee eco eere mee ae mrn eee cor) PA eeu emer eo Cran eee eet eae eT Cte em enum a) Cenc cca me mCi Cee eee a eR) Cee at ee ony Pm) CSET On 0 Poem Oe Ct) Ceres marae onion eae eRe een tate Pers een Cee ae ener tees omer ta PRISE See CRC Sec aeons TOm ome eo eRe em eco DOE erect TE ae ee ent ne Profe: teratura ¢ ernonry - UFF Ida Ferreira Aves Marcia Manir Miguel Feitosa (Organizadoras) LITERATURA E PAISAGEM perspectivas e dialogos Editora da UF Niteréi, Ru - 2010 Copyright © 2010by Ida Ferreira Alves e Marcia Manis Miguel Feios (organizadoras) Dircitos desta ediio reservados 8 EAUFF - Editors da Universidade Federal Fluminen se Rus Miguel de Frias, 9 - anexo- sobrloja-Icarai- Niter6i- RJ - CEP 24220.900 ‘Tel: (21) 2629-5287 - Telefax: (21) 2629-5288. hup://www.editora.uff.br E-mail: secretaria@editora.uft br proibid sreprodugo tal ou parcial desta obra sem autoizacdosxpressa da Bdtora Capa e editragdo letrOnica: José Luiz Stlleiken Marts ‘Revsdo: Ila Freisiaho eTaiane de Andrade Braga Supervisdogrdficc Kithia M. P Macedo Dados Internacionals de Catalogacio na Publicasio (CIP) ‘A472 Alves, Ida Ferreira; Feitos, Marcia Manir Miguel Litralua e pakagem: perspectvas edislogos/ Ida Ferra Alves, Marc “Maria MiguctFitosa (organizadoras) Neri: Editors da Jniversidade Federal Fuminense, 2010. 224 p.s2lem. — (Colegio Ensaios, 33) Incl bibliog ISBN 978-85-208.0541-9, 1. Literatura. 2 Petia 1 Titulo. Séte cpp so7 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Roberto de Souza Salles Vice-Retor: Emmanuel Paiva de Andrade Pré-Reitor de Pesquisa ePés-Graduagdo: Humberto Fetpandes Machado Dinetor da EAUFE: Mauro Romero Leal Passos Dieta da Divisio de Editoracto ¢ Produgdo: Ricardo Borges Diretora ta Divisio de Desenvolvimento e Mercado: Lucene P de Moracs “Assessora de Comunicagdo e Eventos: Ana Paula Campos ‘Maridngela Rios de Oliveira Silvia Maria Baeta Cavalcanti Vi Gira Slam Lopes SUMARIO Apresentacio.. Paisagem, Toda a Terra: sobre a poesia de Ruy Belo... Antonio Andrade © conhecimento e a experiéncia como condicao fundamental para a percepcao da paisagem......e.unennnnnn BL Antonio Cordeiro Feitosa Paisagem em trés ligoes - Carmem Liicia Negreiras de Figueiredo A poesia de Marcos Siscar e a transitividade da paisagem. Célia Pedrosa Um bairro: paisagens e experiéncias do olhar Franklin Alves Dassie Paisagens mediterraneas na poesia portuguesa contemporiinea: Sophia de M.B. Andresen e Nuno Jadice...... 81 Ida Ferreira Alves Um transito por fronteiras. Laura Cavalcante Paditha Geografia errant. Leonardo Gandolfi Caminhos geogréficos para a literatura.. Livia de Oliveira e Eduardo Marandola Jr 121 “Rio” ~ Araguaia! Pela perspectiva éa geopoética 139 Liicia Helena Batista Gratao A percepgao da paisagem na literatura africana de lingua portuguesa: romance Terra Sondmbula, de Mia COU0 sneer 163 Marcia Manir Miguel Feitosa Pelas ravinas sinuosas: paisagens na poesia brasileira contemporinea.. Masé Lemos 175 De horizon du paysage a lhorizon des pottes (Do horizonte da paisagem ao horizonte dos poctas) ‘Michel Collot | traducao de Eva Nunes Chatel 191 A miisica e a percepgao do lugar: Sao Luts, uma “Ilha Encantada”.. Zulimar Maria Ribeiro Rodrigues 219 APRESENTACAO Este livro resulta da ceuniao de diferentes perspectivas e didlogos sobre literatura e paisagem. Com 0 desenvolvimento de nossas pes- quisas académicas sobre as configuragdes e desfiguragées da paisagem ‘num conjunto de textos literérios de lingua portuguesa produzidos nas {ltimas décadas do século XX, temos tido a possibilidade de didlogo com pesquisadores de diferentes dreas ¢ universidades brasileiras € estrangeiras, cujos trabalhos apresentam interesses © indagacdes comuns. Assim, em decorréncia dessa partilha de propostas e de questionamentos em torno da vivéncia ¢ formulagdes da paisagem, houve o estimulo de am projeto comum: divulgar um conjunto de ensaios produzidos por professores e pesquisadores brasileiros, © também por um pesquisador francés, os quais, atuando seja na rea de Letras, seja na da Geografia Cultural, esto preocupados em dis- cutir e demonstrar como a questao da paisagem é um tema miiltiplo ¢ instigante para a reflexao critica sobre as tensoes que enfrentamos neste inicio do século XI. Na atualidade, muito se tem discutido sobre as ages humanas que vvém causando graves problemas aos ambientes naturais, destruindo-os ou desfigurando-os, com sérias consequéncias para nossa existéncia. Entretanto, a discussao vem ja das primeiras décadas do século pas- sado, fomentando progressivamente a geografia cultural. Podemos evidenciar os anos 1970 como perfodo em que se desenvolvem novas abordagens ¢ trajetos que vao possibilitar a geografia cultural maior abertura de reflexdo, com importantes estudos sobre a aco do homem ‘no espago natural e relagées com outras éreas do saber, como pode- mos ler nos estudos de gedgrafos renomados como Denis Cosgrove, Paul Claval, Augustin Berque, entre outros pensadores estrangeiros, além do brasileiro Milton Santos. Em consequéncia, a nocao de pai- sagem foi retomada também sob nova perspectiva e em didlogo com outras reas de conhecimento como a hist6ria da arte, a semiologia, a arquitetura, a sociologia, a psicologia, a antropologia, a histéria ¢ filosofia, em diferente niveis de anélise: morfolégico, funcional e simbélico. Ainda que sob perspectivas e pressupostos diversos, ha um ponto de encontro importante: a paisagem é compreendida como uma construcdo, envolvendo percepgao, concepcao ¢ ago, para constituir ‘uma estrutura de sentidos, uma formulagio cultural, como discutem em suas diferentes obras estudiosos como Augustin Berque, Alzin Corbin, Simon Schama, Alain Roger, John Berger e Yi-Fu Tuan, entre ‘outras importantes referéncias. No entanto, no ambito dos estudos literérios de Lingua portuguesa, ainda nao hi produgao constante ¢ ampla sobre o tema, como vem ‘ocorrendo nos contextos de lingua inglesa e francesa em que se regi tram diversas abordagens e grupos de pesquisa que buscam discutir, no texto literdrio, a percepgao da paisagem como percepgio sobre 0 estar no mundo ¢ 0 estar na escrita, lugares de habitagio ¢ reflexio cultural, social e estética. Esse movimento de investigagio nao se reduz, entretanto, & mera aplicacdo aos textos literdrios de esquemas e estruturas explicativas, mas da provlematizacio continua da paisagem como um proceso cultural, como efeito de um modo de ver, fixar ou deslocar identi- dades e confrontar subjetividades, na tens4o continua entre dentro ¢ fora, ipscidade e alteridade, visivel e invisfvel. No tecido literdrio contemporiineo, tio marcado pela visualidade, a presenga ou ausén- cia da paisagem revela fortemente leituras criticas do mundo, da linguagem e do sujeito, e os estudos decorrentes buscam examinar a relagdo complexa entre natureza e cultura, expondo experiéncias de perda, de destocamento ou, por outro, de reconhecimento de sin- gularidades culturais num tempo de massificacio ¢ indiferenciagio identitarias. E sobretudo esse questionamento que os estudos aqui reunidos buscam acompanhar, sob diferentes perspectivas e a pattir de diversos objetos de anélise. O leitor interessado encontraré, portanto, nos ensaios que se seguem, alguns caminhos ¢ estratégias de andlise sobre a interagio entre 0 cespaco geogrifico, 0 espaco narrativo e poético e sobre a teoria da percepcao cue busca, dentre outras coisas, o desvelamento da paisa- ‘gem no contexto do conhecimento ¢ da experiéncia. Constituem-se como abordagens tedrico-criticas interdisciplinares que privilegiam a observagio de alguma produgio literéria moderno-contemporanea de lingua portuguesa, Sobre escrita literdria brasileira, os estudos de Carmem Léicia Ne- greiros de Figueiredo, Célia Pedrosa ¢ Masé Lemos, abordando principalmente poesia, tratam da relagio entre identidade cultural ¢ construcao paisagistica, além de focalizarem a experiéncia do espaco urbano a ago estética com 0 deslocamento da ideia de representa- (40 para a de intervencio no mundo. Buscam a articulagio do texto literdrio com outras artes ¢ saberes com a exigéncia de nova visio feflexiva sobre a relazao literatura ¢ paisagem. Sobre textos literdrios ortugueses, Franklin Alves Dassie, Antonio Andrade, Leonardo Gandolfi ¢ Ida Ferreira Alves discutem as experiéncias do olhar e a percepcio da paisagem, a figuracao da paisagem como lugar da co- Munidade, os modos de presenca ¢ auséncia da paisagem na produgio poética modema e contemporsinea, apontando tensdes ¢ questées sobre @ cultura portuguesa atual. Também a narrativa africana de lingua portuguesa é objeto de atenta analise nos trabalhos de Laura Caval- ‘ante Padilha ¢ de Mircia Manir Miguel Feitosa, que problematizam A categoria de espaco, a ideia de fronteiras e identidades culturais a partir da escrita e da meméria. Da érea da geografia cultural, Livia de Oliveira e Eduardo Marandola Jt, Liicia Helena Batista Gratio, Zulimar Marita Ribeiro Rodrigues € Antonio Cordeiro Feitosa apresentam estudos que cruzam inte- Fessantes perspectivas sobre literatura, geografia e paisagem, com a demonstracio da necessidade do didlogo e discussio das possiveis ‘consequéncias dessa abordagem multid sciplinar, diminuindo a tradi- ional distincia entre ciéncia ¢ arte. Questdes como a relacao afetiva ‘com o meio ambiente, uma sopofilia, a necessidade do conhecimento ¢ da experiéncia na construcdo de atiudes e valores em torno do espaco ¢ do lugar, a proposta de uma geopoética ou de uma imag nagio geogréfica, a permeabilidade e aproximagio entre diferentes saberes e a constituicio de novas cartografias vém contribuir para um didlogo mais amplo sobre a questo fundamental aqui: como escrever ‘a paisagem e por qué? A essa pergunta, 0 ensaista Michel Collot, professor de literatura francesa, coordenador do grupo de pesquisa Ecritures da la Modernité ‘na Université Sorborne Nouvelle — Paris Ill, associado ao CNRS, presidente também da Association Horizon Paysage, e autor de livros ‘artigos jé referenciais sobre paisagem e literatura, paisagem e poe- sia, responde com seu ensaio sobre a relacio paisagem, horizonte € poesia, apresentando ao leitor brasileiro alguns pontos fortes de sua abordagem te6rico-critica sobre o tema que nos une aqui. Unica e sig- nificativa contribuigéo estrangeira, ainda pouco conhecida no Brasil, ‘optamos por apresentar, ao lado do texto original, a versio traduzida ara 0 portugués, ampliando 0 acesso ais suas ideias e reflexdes. Este livro pretende, portanto, ser igualmente uma paisagem miltipla de abordagens, de discussées, de estratégias de anilise reflexio sobre os cruzamentos possiveis entre 0 espago literirio ¢ 0 espaco gcogréfico, sobre vivéncia da natureza e construgdes culturais, sobre grafias da terra e do homem, contribuindo e incentivando também para o desenvolvimento de pesquisas mais amplas sobre esse tema que continua a provocar, de forma cada vez mais necesséria, nosso olhar, afeto ¢ inteligéncia: viver e escrever a paisagem hoje. as organizadoras 10 0 CONHECIMENTO E A EXPERIENCIA COMO CONDICAO FUNDAMENTAL PARA A PERCEPCAO DA PAISAGEM Antonio Cordeiro Feitosa' Introdugio A percepgio do ambiente é uma caracteristica marcante no compor- tamento dos seres superiores do mundo animal, na medida em que a necessidade de locomogio em busca de alimento e abrigo ou fuga de predadores potenciais exigem estraiégias de aco que implicam observagio de condigies e solucao de problemas incluindo-se escolha de rotas, itinerdrios, estratégias de sobrevivéncia, entre outros. Entre os seres humanos, 0 desenvolvimento intelectual possibilitou diferentes niveis de percepcao ambieatal ao longo dos processos de civilizacio, conferme as relagdes dos grupos entre si ¢ com a natureza. Nos agrupamentos primitivos, as evidéncias dessa pritica foram manifestadas através de estratégias para enfrentar os proble- mas cotidianos, representadas nas pinturas rupestres de animais ¢ de outros elementos da paisagem como humanos, em corpo inteiro ¢ em partes, ¢ seres do imaginério, como registro da incompreensio ou da incapacidade de cont-ole e domini A evolugio dos processos de organizagéo dos grupos humanos pos- sibilitou novas estratégias de acdo na telacéo com o ambiente e a consequente incorporacao de novas técnicas em substituicio total ou parcial as anteriormente dominadas. Com isso, a presungio de controle da natureza possibilitou a interferéncia do homem na estrutura e na dinamica de alguns componentes do ambiente para satisfazer suas necessidades e atender suas expectatives de poder. Profesor doutor em geografia do Departamento de Geociéncias da UFMA ¢ coordenador lo Nicieo de Estudos e Pesquisas Ambiental (NEPA-UPMA) 31 Da imersio na busca da sobrevivéncia, a acumulagio de bens possi bilitou z apropriacio co dominio da natureza, podendo atribuit a esta as formas desejadas. O conceito de paisagem, de modo semelhante ao de natureza ¢ de ambiente, produto cessa apropriagio e esta condicionado & concepcéo de mundo adotada por um determinado grupo. Sob tal concepcio, enfrentamento dos problemas cotidianos ganha configuracéo bidimensional: diacronica e diatépica. Numa perspectiva hist6rica, a andlise da evolucdo da humanidade permite a identificagao da coexisténcia diacrinica e diat6pica na boragio de formas particulares e altamente diferenciadas das relagées do homem com o ambiente. Tais formas sio diretamente vinculadas a0 tipo de recurso oferecido pela natureza e ao grau de dificuldade ‘encontrado para sua apropriagio e processamento. Accoexisténcia diacrdnica salienta processos continuos de reformula- ‘Gao dos modos de intervenco do homem para organizar 0 ectimeno, tendo como base os pequenos e distantes grupos e, como expresso ‘maxima, ocoletivo social, sintetizado na aldeia global manifestacomo expresso do emprego macico de aparatos tecnol6gicos modernos. Neste escopo, perpassam estigios diferenciados de visio de mundo de apropriacéo ¢ emprego da técnica e da tecnologia. A perspectiva diat6pica permite compreender a diferenciacio apartir do isolamento que caracterizou 0 modo de vida de alguns grupos que, na atualidade, ainda permanecem marcados pelo isolamento em ter- ‘mos culturais, embora habitando um mesmo bloco continental, epesar do acesso a determinados meios de informagéo, notadamente o rédio. Em qualquer dimensao, e sob qualquer nogao de valor, o homem é a ‘um s6 tempo: sujeito e objeto, beneficisrio e vitima das modificagées introduzidas em suas relagdes com a natureza e de sua “superior” condicao em relacio a todos 0s outros elementos do ambiente. Em algumas comunidades, tal fato fortaleceu seu vinculo com a natureza, aesséncia de sua origem e tinico suporte de seu futuro no Planeta; em outras, alimentou seu sentimento de dominioe motivou a exploracio irracional dessa mesma fonte, comprometendo o suporte de seu futuro. A percepcio da paisagem é uma ferramenta que permite o recorhe mento das potencialidades ¢ das fragilidades do ambiente, assim como das capacidades humanas e dos esforcos a seem empreendidos para 32 ‘que a comunidade possa suprir suas necessidades e garantir o suporte ambiental sustentavel para as geragdes futuras; condigéo somente valorizada apés a percepcao do caréter finito dos recursos naturais. Neste estudo so apresentados os fundamentos da percepeio da paisagem, focados nos conceitos de conhecimento e de experiéncia, ‘com base na literatura geogréfica, de forma a subsidiar idéntico pro- cedimento nas dreas do conhecimento que se detém na investigacio ‘candlise espacial e através da literature de ficgao, tematica que ganha importincia na atividade de profissionais de geografia e de letras, ratificando a interdisciplinaridade recorrente e desejavel na pritics cientifica da atualidede. ‘Conhecimento, experiéncia e percepcio da paisagem Concepedes sobre a paisagem termo “paisagem” € produto da elaboragao do homem e € referido ‘em diversas reas do conhecimento como manifestagao da condicao humana que motiva a visio de mundo de individuos e de grupos ¢ ‘0s processos norteadores das relagGes dos homens com os diferentes ambientes, & luz da técnica e da tecnologia disponivel. Segundo Passos (2003), 0 termo “paisigem” procede da linguagem comum, tanto do Oriente quanto do Ccidente, Nas linguas romini- cas, tem origem no -atim pagus, com significado de pais ¢ acepcio de lugar, sentido de territério, tendo como derivadas formas como: paisaje (espanhol), paisage (francés) ¢ paesaggio (italiano), € nas linguas germénicas apresenta nitido paralelismo, a partir da origem and, dele derivando-se formas como: landschaft (alemao), landscape (inglés) e landschap (holandés). Conforme Soromenio-Marques (2001, p. 149), “as caracteristicas fundamentais da meditagdo sobre a paisagem sao insepardveis do processo de constituigéo do sistema de valores, saberes ¢ instituicoes da sociedade tecnocientifica”. Com igual propriedade, tais qualidades podem ser atribudas aos individuos de quaisquer sociedades em fun- io do grau de incorporagao do sistema de valores, da técnica e da tecnologia aos scus processos produtives, numa perspectiva hist6rica. 33 wiras referéncias conhecidas sobre a paisagem, assim en- tendidos os espacos produzidos pelo homem, constam dos registros biblicos de cerca de 1.000 anos a.C. quando o rei Davi cantava as belezas dos templos, dos castelos e dos palicios construfdos com grande suntuosidade para abrigar a classe dominante. Sio relatos em que 0 elemento dominante repousa na estética e se apoiam em bases que expiem a pujanga do poder material Em fungio da condigéo de uma comunidade ou de um individuo, do cardter objetivo ou subjetivo do enfoque que se deseja salientar ou do Prop6sito que se deseja alcanear nas relagdes com e nas abordagens sobre o ambiente, a paisagem pode assumir diferentes significados cujos metizes variam desde a natureza “intocada” até os ambientes totalmente modificados nos seus aspectos tangiveis e nos fluxos de energia responséveis pela qualidade e 0 equilbrio das relagdes entre 05 elementos. Nas artes, dentre os registros mais antigos sobre a paisagem do O dente, encontram-se as representagdes inspiradas de poctas romanos do século 1 a.C,, cujas descrigdes enalteciam as belezas do campo, motivando pintores a concentrarem stias atengGes na represeniagio das paisagens, Sobre a condicao atual, as paisagens sio objetos de abordagem dos mais diversos ramos da arte ¢ Passos (2003) registra 4 representagio de contetidos ambientais nas artes gritficas, de for- ma subjetiva e com cardter diat6pico e diactOnico. Para o artista, a paisagem € a representacio de um determinado panorama, de uma experiéneia vivida, ‘Uma concepcdo mais aplicada da paisagem, que perpassa pelos povos otientais e pelos ocidentais, é a modelagem dos Jardins. Externa- lizados como eriagées artisticas, tais espacos constituem modelos representativos de segmentos do espaco cuja expressio evidencia a intervencio esmerada do homem, paisagem técnica, embora contem- ple as relagdes comuns dos elementos do meio natural. Na literatura, a evocagio das paisagens aparece antes do século XVIII, quando a poesia ¢ 0 teatro, tanto do Ociderte quanto do Oriente, apelavam para a decoracao artificial, simbélica, mistica ou alegérica (PASSOS, 2003). O romancista descreve a paisagem através da ex- 34 periéncia vivida por seus personagense, muitas vezes, um elemento natural se sobrepde aos elementos humanos na narrativa. Numa evocacio mais subjetiva, sensazionista, Pessoa (1986, p. 35) advoga 0 duplo fenmeno da percepgio e, com tal sincronia, assu- me a percepgio do “estado da alma” ¢ das impresses do mundo exterior como representaveis, portanto, paisagens que “fundem-se, interpenetram-se, de modo que 0 nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo”, Entre os filésofos, a paisagem tem sido abordada numa perspectiva mais transcendente, concebida como alimento para 0 corpo € 0 es- pirito. Conforme Simmel (1996), a paisagem parece ser um ato do espitito, resultante da modelagem de um grupo de fendmenos da natureza integrados a esta categoria, percebida como unidade que se basta a cla mesma, embora conec:ada a uma extensio ¢ a um movimento infinitamente mais vastos, mas aprisionada em limites inexistentes para 0 sentimento, alojada em um nivel subjacente do Um na sua divindade, do Todo na natureza. ‘Acerca da insergio des abordagens sobre a paisagem no contexto da Hist6ria, Soromenhc-Marques (2001, p. 154) acentua a importancia dos fatores ¢ elementos geogréficos estruturantes da paisagem, numa dimensio temporal, para valorizar “os contomos essenciais dessa reflexdo”, apoiando-se nas singularidaces das relagdes desenvolvidas por Portugal e Espanha com o mare a terra firme, descritas por Hegel (1968) para justificaro carater subjetivo da paisagem, apoiado no que denominou de “espitito dos povos”. No seio da comunidade geografica, o conceito de paisagem evoluiu de ‘um panorama visto de um determinado ponto de observagio, repre- sentando a expresso genérica de um lugar, para a consideragio de um sistema mais complexo no qual se procara estabelecer os elementos € 6 fluxos da visio sistémica, inclusive com as influéncias psicol6gicas. Bertrand e Bertrand (2007, p. 7) afirmam que “paisagem é um termo pouco usado ¢ impreciso e, por isto mesmo, cémodo, que cada um iza a seu bel prazer, na maior parte das vezes anexando um quali- ficativo de restricao que altera seu sentido”, citando, como exemplo, paisagem vegetal 35 A paisagem nio envolve apenas os elementos geogrificos dispostos no espago, pois, numa determinada porcéc do espago, néo 14 um 86 conjunto de elementos que Ihe dio forma, mas o resultado da combinacio dinamica de elementos fisicos, biolégicos e humanos, interagindo dialeticamente numa paisagem tnica e indissociavel, em erpétua evolugio (BERTRAND e BERTRAND, 2007). ‘Com acepeao préxima daquela pautada pela comunidade geogréfica, 4 paisagzm foi entendida, inicialmente, pelos estudiosos da ecologia € de areas afins como “cenério”, Posteriormente, esta compreensio evoluiu para uma aproximacio com 0 Ecossistema, buscando-se 0 conhecimento de sua estrutura e funcionalidade, sendo estendido para a abordagem desses elementos sob efeito da intervencao humana, ‘Na Arquitetura, as abordagens do termo “‘paisagem” remetem quase exclusivamente aos espagos modelados pelo homem sob o enfoque da ambientagdo, com emprego de recursos tecnolégicos e como fim especifico de adequar as estruturas ambientais para usufruto deste, pela ocupacio e pela estética. Nas paisagens modeladas com emprego macigo de tecnologia (RA- POSO, 2006), paisagens tecnolégicas, os elementos do meio natural figuram como potencialidades, aproveitados apenas mediante crité- rios preestabelecidos através dos quais 0 conhecimento proporciona subsidios inestimaveis & garantia da melhoria da qualidade de vida em uso direto, pela atividade, ¢ indireto, pela estética. A percepedo da paisagem A percepeio € a primeira manifestacao dos animais como respesta a estimulos externos produzidos por um objeto e captados por um ou mais sentidos. No caso dos seres humanos, tal manifestagao se reveste de caracteristicas particulares, em face dos atributos e da intencio- nalidade do perceptor, podendo se constituir em um simples registro ou implicar desdobramentos sucessivos pelas relagées suscitadas, Com referéncia a percepcio da paisagem, em todos os seus matizes, 4 complexidade do objeto remete a reflexes importantes sobre 0 ato de perceber ¢ 0s requisitos para 0 exercicio da percepcao com maior Propriedade. Outro aspecto importante a considerar é a qualificagio dos sujeitos da percepgiio, o que inclui conhecimento e experiéncia, 36 Com efeito, para qualquer concepgio de paisagem, exige-se do perceptor certos requisitos que ultrapassam a condicao de simples resposta a estimulos ¢ inclui a capacidade de estabelecer niveis de relages entre os fendmenos percebidos, condigo que requer, alm do conhecimento e da experiéncia, maturidade e sensibilidade. Para estas reflexes, ndo esto postas profuundas consideragdes sobre o conhecimento e a experiéncia, mas apenas os elementos que facultam ‘© reconhecimento dz base conceitual para o exercicio da percepcao «la paisagem. O conhecimento © conhecimento € 0 produto intencional derivado de uma relagio particular entre um sujeito € um objeto, que resulta na formagao de tuma imagem configurada a partir da otservacio simples ou sistema- fica, com emprego ée instrumentos para a obtencao de dados e de informagées em diferentes niveis de detalhe do objeto Através da hist6ria da humanidade, muitas sociedades alcangaram niveis tecnicamente mais avangados em relacdo a outras e o uso da tecnica evoluiu para processos de tecnologia cada vez mais sofis- ticados que motivaram novos padroes de relacionamento entre os individuos ¢ destes para com a natureza, resultando em alteragbes correspondentes na riorfologia da paisgem. Visdes ilustrativas sobre a influéncia douso da técnica na modificagio «tu estrutura da sociedade ¢ da morfologia da paisagem podem ser perecbidas, conforme Soja (1993) e Geiger (2003), no conceito de Nuidez do espaco, e nas revolugdes da comunicacao apresentadas por Pessoa Neto (2003) ¢ Benjamim et al. (1983). ‘Consoante 0 emprego da técnica ou da tecnologia, definem-se niveis de conhecimento que nomeiam situacdes particulares na intenciona- lidkude do universo das praticas humanas, discriminando-se dois tipos bnisicos: o empirico ¢ 0 cientifico, além de outros como 0 teol6gico co literério. do conhecimento cientifico derivam tedos os outros tipos em que 0 homem emprega a racionalidade, como: 0 ambiental, 0 ecolégico, 1 filoséfico, © geogrifico, 0 hist6rico, 0 juridico, 0 sociolégico. O 37 conhecimento que se deseja obter em relagéo a determinado objeto orienta o emprego de métodos, técnicas e instrumentos para a obten- ao de dados e de informagées mais confidveis ¢ maior seguranca nas anilises. No estigio atual de desenvolvimento das sociedades, ocorrem muitos arranjos € combinagées na distribuicao espacial dos aglomerados humanos e grande diversidade de apropriagio e emprego da técnica e da tecnologia, com muitos grupos coexistindo em espagos contiguos ou préximos, mas muito distantes em termos de tecnologia. Do ponto de vista da espacialidade, mesmo em pequena escala, podem ser encontrados grupos muito distaates tecnicamente, pois o uso deste tipo de recurso esta vinculado a requisitos como: desenvol- vimento intelectual, condigéo socioecononiica e nivel de acsitagao as inovagdes. Tais requisitos afiguram-se excludentes, uma vez que ‘muitas pessoas de boa condicdo financeira ou de alto nivel de desen- volvimento sao resistentes a incorporacio de processos da tecnologia viva (RAPOSO, 2006). A experiéneia A experiéncia pode ser entendida do ponto de vista cientifice ou do empirismo. No primeiro caso, consiste na producio do conhecimento partir da experimentagio sob certas condigées de controle, seguindo orientacio metodol6gica e com uso da técnica ou da tecnologia; no segundo, € baseada na valorizacao do senso comum através da expe- rigncia objetiva, tangivel, ou subjetiva, com um objeto. Segundo Tuan (1983, p. 9), a experiéncia compreende as “diferentes ‘maneiras através das quais uma pessoa conhece e constr6i a realida- de”. O produto dessa construcao envolve a sensacdo e a percepeio carregadas de referéncias da hist6ria de vida do sujeito, heranca biolégica, sua origem, cultura, condicao socioeconomica, formacao religiosa, qualidade da educagio, acuidade dos sentidos e concuistas € realizacOes pessoais no seio da familia e da comunidade. Em todas as concepeses de paisagem, a complexidade inerente aos elementos da natureza assume papel proeminente para a compreensio da realicade, impossibilitando a experimentacio como fonte de pro- dugéo do conhecimento cientifico. Relativamente & experiéncia com 38 ‘t paisagem enquanto objeto de observacdo e de admiragao, pode-se arguir seu papel transcendente, considerando-se os registros produ- zidos as manifestegbes expressas nos diferentes planos. Dentre tantas definigdes de experiencia, Hekkert (2001) oferece uma das que implicam maior relagio com as manifestacdes subjetivas dos individuos mediante a observagio da paisagem enquanto fendmeno, aadvogando ser 0 conjunto de reagbes cfetivas, emocionais ¢ estéticas que as pessoas experimentam quando veem ou interagem com um produto. O mesmo pode acontecer com referencia a visio de um segmento do espago, produto de infimeras interagoes de forgas da natureza ao longo do tempo. Quando 0 produto observado € uma obra da natureza, cuja estética impressiona positivamente os sentidos de um determinado sujeito, a reagdo expressa manifestacdes de atributos inatos deste, como afeti- vidade ¢ emogio, que néo se vinculam aos niveis do conhecimento cognitivo, as condigées econdmicas e & aceitagao das inovacées, porque constitu manifestacdo atribuida ao espirito, comportando, ‘antes, uma relagao com a Divindade. Acxperiéncia 6, intensivamente, auxiliada pela acuidade dos sentidos (TUAN, 1980) e por algumas habilicades inatas ¢ adquiridas pelo individuo com o conhecimento, tais como: a cognicao, 0 espirito investigativo, a argumentacio, 0 rigor dos processos de observacéo, « orientagio, a diregio e a capacidade de representagio. Machado (1996, p. 97) registra a experiéncia da percepgfo através dos sentidos comuns: a visio, a audigio, 0 tato, o olfato, o paladar, ‘ou especiais, como 0 sentido das formas, da harmonia, de equilibrio, de espago e de lugar, que tém recebido, historicamente, significativo wuxilio da técnica e da tecnologia para compreender a dinfimica da paisagem, por meio de instrumentos como sensores remotos ¢ sistemas de processamento de dados e de imagens que denotam a qualidade, a seguranga e precisio das representacOes. © conhecimento ¢ a experiéncia so elementos complementares a0 processo de percepcio da paisagem, cue depende da capacidade do individuo em articu.ar o raciocinio e estruturar os dados e as infor- 'mag6es espaciais. Segundo Spésito (2004, p. 74), “cada ser humano tom sua maneira particular de processar as informagoes as quais tem 39 acesso”. Antes dessa assertiva, é razoavel considerar que todos os animaistém suas formas peculiares de acessar os dados e informacées. Enire 0s humanos, mods particulares de percepeao da paisagem valorizam apenas o empirismo ou aliam téznicas e tecnologias para prover de meios avancados tais procedimentos, pois, segundo Szamési (1986, p. 46), estes “ndo apenas percebem objetos no espaco ¢ no fempo, mas também criam simbolos para ‘objetos’, para ‘espaco" ¢ Para “tempo”, organizados em um modelo cocrente de representacdo desses elementos. Focalizando as aitudes ambientais em face da percepedo, Tuan (1980) salientaas influéncias representadas pela cultura e pela experiéncia em diferentes povos, destacando as influéncias representadas pelos sexos, concepcoes de visitantes ¢ de nativos, indios e anglo-americanos no centro-sul da América do Norte, além das situagées em que o am- biemte age de forma inversa, estimulando mudancas de percepcao de comportamento, como no caso da floresta e da montanha, Conelus A percepcio do ambiente constitui uma prética comum ao homem desde que este iniciou a busca consciente pela sobrevivéncia tendo ue elaborar estratégias para superar os obstéculos representados por diferentes elementos da naturcza, pela competicao ou enfrentamento dos semelhantes ou para melhorar sua condicao de vida. Durante séculos, a incipiente atividade técnica do homem manteve-o sob o determinismo ambiental até que os primeiros grupos exercitaram 8 capacidade de construr instrumentos e de manifestar estratégias rogressivamente mais elaboradas para intervir na organizagio natural do espaco, modelando as primeiras paisagens. Modificagoes mais expressivas na natureza foram possiveis com a consolidagéo da experiéncia ¢ a sofisticacéo gradativa dos instru mentos e das técnicas de emprego destes, oblidas pela cumulagio de novas descobertas ¢ de novas invencées do ecimeno, A natureza passou a evidenciar os atributos dos grupos humanos que detinham ‘sua ocupacao, exploracao e beneficiamento dos recursos que oferecia, 40 ‘Ao longo do tempo, a experiéncia e « técnica possibilitaram 0 co- nhecimento ¢ a dominagio da natureza pelos grupos humanos que ppassaram a se aglomerar e a modelar paisagens sucessivamente mais complexas, desequilibradas ¢ artficilizadas, exigindo, pari passu, ‘ulaplagSes progressivas dos mesmos homens para continuarem a bhusca consciente da sobrevivencia de acordo com os novos arranjos espaciais. ‘\ pereepeo das paisagens constitu a estratégia humana mais an- tiga € que retine dois de seus maiores atributos: a exper co conhecimento, cujo carter cumulative continua alimentando suas expectativas de sobrevivencia e de melhoria da qualidade de vida e tctroalimentando todos os processos humanos. 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Os estudos sobre faisagem encontram-se na delicada fronteira centre geografia, arte e cultura para pensar novos conceitos e bases de interpretagio. Poderia um poema envolver-se nessas reflexes & sugerir ligdes para abordagem da paisegem em suas conexdes com a identidade, a meméria e 0 imaginario? © poema em questao apresenta no titulo a marca de énfase que sugere 1 intengio, quase didatica, de explicat, expor argumentos sobre um tema, como indicam os dois pontos que complementam o titulo. Trata- se de “Paisagem: como se faz”, de Carlos Drummond de Andrade ¢ que integra o livro As impurezas do branco, de 1973. Pode-se dizer que 0 poema traz.trés momentos, ou ligdes, sobre a cconstituigdo da paisagem. A primeira ensina-nos que a paisagem é uma vivéncia, sedimentada pela meméria; a segunda indica o importante papel da paisagem na s identidade cultural; a terceira confere & paisagem o poder de revidar 0 olhar, redimensionando o lugar do observador e da condigao humana nna natureza. Ligio um ou “a paisagem vai ser.” No primeiro movimento de suas ligdes,o poeta propde que os olhos do Icitor desnaturalizem a natureza, com z provocacao de inicio, grafada em maitisculas: “ESTA PAISAGEM? Nao existe.” (1983, p. 451) Para tanto € preciso realizar um deslocamento do olhar, contaminado de valores, crencas, maximas, convengées, ret6ricas, rotinas que formam « realidade convencional, através de “um olhar que nio ve”. Propor ao leitor um “olhar que nao vé", um olhar inocente nao signi- fica torné-lo cego, isto é, adotar a perspectiva ingénua de que hé fatos \ Professoraadjunta de Tris da Literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (WERD). 43 imediatos, ou realidade objetiva, sobre os quais podemos ver, livres dos revestimentos culturais ¢ hist6ricos que os constituem, Se a visio €, em si mesma, produto da experiéncia ¢ acul (MITCHELL, 1987), sugerir olhos que nto veem significa Eat -Ihes es efeitos de ilusao ou do habito, criados pela cultura, através do strantamento, um recurso para superar asaparéncias e aleangar uma compreensio mais profunda da realidade (GINZBURG, 2001p. 38), Por consequéncia do olhar desautomatizado, pelo estranhamento, as cenas da natureza apresentam-se num estigio de apreensio sensivel & # paisagem 6 passa a ser, a existr, a pani da reuniao de imagens cla superficie das coisas captadas pelo olhar que, a principio, reco, Ihe sensacdes e impresses. Caberd & memoria fixar as impressdes conferindo-thes um significado e existéncia. “A paisagem vei ser” liz © poeta, porque “o ver ni ve, o ver recolhe fibrilhas de caminho, de horizont ...] para um dia tecer tapecarins que sio fotogrefias de impercebida terra visitada” (ANDRADE, 1983, p. 451). Assim, a Pedra “s6 € pedra no amadurecer longnquo” e a “Agua é um projeto de viver” (ANDRADE, 1983, p. 451). E a estrutura da sensibilidade, aliada @ memoria e experineia, que instaura o conceito, a nogaio de paisagem. Se é certo que a natureza selvagem no demarca a si mesma, objetiva- ‘mente, no entanto, hé a atuagio de varios ecossistemas que sustentam a vida no planeta, independentemente da interferéncia humana, no dizer de Simon Shama (1998). Em nossos dias, com os olhos auto, ‘matizados, parece-nos inconcebivel nao considerar a paisagem como obra da mente, composta tanto de camadas ée lembrancas quanto de estratos de rochas (SHAMA, 1998, p. 17) Naperspectiva de gedgrafos, como Milton Santos, o espago hurrano é econhecido como espago de producio que supe uma intermediagao entre o homem e a natureza. Produzir e produziro espaco sio dois tos indissocidveis, Pela pro- \ducio © homem modifica a Natureza Primeira, a natureza beta, a natureza natural [..] E por essa forma que 0 espaco é eriado como "Natureza Segunda, natureza transformada, natureza social ou so- . 36) Todo 0 cenério resine uma harmonia grave e melancélica, que silencia © homem no paraiso. Ora, num periodo em que a visio romintica de mundo indicava a sensibilidade e a clarividéncia histéricas como fundamentais para a naturcza das instituigies politicas da lei, da Tinguagem, da religido e da arte, como articular esse didlogo com a tradicio, na auséncia de um quadro estével de meméria nacional? A saudade,ou lembranca da patria, ea nostalgia, lembranga do passado, Serdo reinterpretadas pelo escritor brasileiro como uma necesséria nostalgia de uma criagio do intelecto, de algo lido, nao vivido, nos- 46 ja de uma criacao literéria. A pretexto de referir-se criticamente ‘49 poema Confederacdo dos Tamoios, de Goncalves de Magalhaes, 0 romiaintico José de Alencar explica o teor ¢ a fonte dessa saudade dle algo lido: as imagens criadas por Chateaubriand, os relatos de viajantes. Apenas ccnclut primeiro canto, veio-me uma vaga reminiscéneia de uns quadros da vida selvagem, dessa vida poética dos indies, que em outros tempos tanto me impressionaram, Era uma saudade de alguma coisa que havia pensado. ou que tinhalido outeora, (ALEN- CCAR, 1969, p. 869) ‘Ainda que tenham por inspiracio os elementos estéticos da cultura e hist6ria europeias, as escritores e poetas torna-se necessério extrair poesia do fruto mais prosaico, a poesia da bananeira, planta de origem asiitica, assumida como brasileira. Agio necessiria para educar 0 olhar do homem brasileiro, criando lagos de conacionalidade. Ea propio lembro-me que pats ns flhos desta tera no vore talvez mais prosaica do que a benancira que exesce ordinaviamente entre monées de cisco em qualquer guintal da cidade, e exjo frto nos desperta aida grotesea de um homem apalermado ou der alarve, Pis bem, meu amigo, ecorde-se de Paulo Virginia, © ddaquelastaranciras que cresciam pero da choupan, abindo seus leques verdes is auras da tarde, eveja como Berardi de Saint- -Pietre soube dar poesia a uma cousa que nds consideramos tio vulgar. (ALENCAR, 1960, p. 886) Enquanto arte e ciéneia, a palavra literiria realiza uma interessante ‘confluéneia: de um lado, a concepeao herderiana de “unidade organica tle cada personalidade com a forma de vida que Ihe corresponde” (NUNES, 1993), unidade expressiva que se manifesta no nacionalismo vmiintico; de outro, z forma humboldtiana de apreender os tr6picos com sensibilidade estética, cabendo ao artista a tarefa de por em evidencia o espetdculo magnifico que a natureza oferece. Paisagem, nesse processo, é um sistema que contém um lugar real e seu simulacro, um espago representado ¢,simultaneamente, um espaco presente (MITCHELL, 1994), 0 olhar do brasileiro habituou-se a ver 1 paisagem exuberante, de terra farta e rios caudalosos, apesar dos 7 efeitos perversos da colonizagio predatéria e dos recursos naturais nem sempre tio prodigiosos. Na literatura brasileira, a paisagem formou um sistema também no sentido que Antonio Candido (1981) dé ao fermo. O que quer dizer uma continuidade ininterrupta de obras ¢ autores cientes de que a paisagem representa um legado de identidade cultural, construido pela literatura. Depois do Romantismo, o Naturalismo ~ e seus ainda fortes tons de pitoresco mesclados ao viés determinista — iniciou um dilogo que se torna tenso, motivo de critica nas obras de escritores como Lima Barreto 2 Euclides da Cunha. Autores que questionaram profunda- mente o lugar da paisagem na formacio da identidade brasileira, a situacao do intelectual ¢ os impasses da literatura nesse processo. De Lima Barreto sio conhecidas as peripécias da viagem de seu per- sonagem mais famoso, “Policarpo Quaresma’, em direcdo & paisagem brasileira, num doloroso confronto entre as paginas da literatura e da hist6ria cultural e a vivéncia no cultivo da terra, Em seu furor autodi- data, “Quaresma” lera muitos romances e diversos historiadores com os quais apreendera que “a nossa terra tem os terrenos mais férteis do mundo"(LIMA BARRETO, 1956 a, p.117) e possuia os olhos contaminados de “pensamento da paisagem”. O mais interessante esta no aprofundamento do olhar, realizado pelos seus personagens, gracas ao viés da meméria, Nesse aspecto, hi uma superagio da base cientificista de conhecimento sobre a natureza, heranga do século XIX, que se estruturou desde a sistematizagio de Lineu até as pesquisas de Darwin. No lugar da énfase para 0 espacial, os personagens de Lima Barreto projetam no olhar para a paisagem a énfase no tempo, o que thes permite inserir aspectos da meméria cultural, rompendo a linearidade na relacio entre natureza, ciéncia e humanidade. Os olhares de personagens como Isafas Caminha, Gonzaga de 4, Ricardo Coragéo dos Outros, e diversos mais, vem, na paisagem, ‘no espago passivo definido ou dominado, mas ruinas de natureza primeira, selvagem, numa interacdo tensa com as marcas de cultura, tornadas evidentes pelos lagos de meméria, O resultado esta na pai wgem que revela historia, numa interessante descontinuidade. Olhei aquelas encostas cobertas de érvores, de florestas que quase desciam por elas abaixo até as was da cidade cortadas de bondes clétricos. Quantas formas jé as cobriram — quantas vidas jé as no tinham pisado! Depois que a civilizagio viera, quantas vezes elas no tinhar sido despovoadas, e perdido o seu tapete de verdura!? E pelos séeulos,apesar dos catacismos, das evolugies geoldgicas, da agdo do homem, nem uma sé vee aquela terra deixara de fazer surgi plenamente, nas ramagens das drvores e nas plumagens do passaredo, a energia vital que estava nas suas entranhas! (LIMA BARRETO, 19566, p. 223) Nos seus textos, portanto, a incorporagio da meméria 4 paisagem auxilia na produgao de um distanciamento critico ou desautomati- vagao do olhar. O leitar pode, assim, vé-la desnuda ¢ talvez ouvir as suas est6rias. geral, porém, no ambito da cultura, o olhar brasileiro para a pai- sagem vé um espaco presente — florestas,rios, montanhas elementos ccontidos no espaco geogrfico; tais elementos sio, simultaneamente, moldados, desenhades e coloridos pelo “pensamento da paisagem” que 0s torna repletos de palmeiras majestosas, sabids, céu cor de inil,luar do sertdo, verdes matas, terra boa, de fontes murmurantes. Paisagem como especo presente que &, a0 mesmo tempo, espaco representado cujas imagens contaminam o olhar ¢ povoam nosso imagindrio; imagens a serem repetidas nas cang6es semelhantes & Aquarela do Brasil, 3s letras da Tropicdlia, nos manifestos moder- nistas € nos versos ce Drummond, tais como aqueles de “Europa, Franca ¢ Bahia”, do livro Alguma Poesia, de 1930. ‘Meus olhas brasileiros se fecham saudosos. ngio do exo”. Como era mesmo a “Cangio do exilio” Eu tio esquecido de minha tera Ai terra que tem palmeiras Onde canta o sabi! (ANDRADE, 1983, p.74) Minba boza procura a 49 Nesse ponto, a segunda ligo sugerida em “Paisagem: como se faz” 6a de que montanhas, rios florestas projetam, no Brasil, nossos rostos ¢ Sonhes, historia e dores, memoria e identidade cultural. Ditode outra forma, o pensamento da paisagem desenha um pais, Ligho trés ou “somos a paisagem da paisagem.” Sc, para o poeta, na “criativa distancia espacitempo” faz-se 0 pats, ‘na mesma proporcio “as coisas existem com violéneia, mais do que existimos”, Por isso fnaliza contundente: “contemplados,submissos, delas somos pasto, somos a paisagem da paisagem.” (ANDRADE, 1983, p. 452) O Ieitor agora € projetado para uma outra perspectiva: desta feita Somos contemplados pela paisagem. O poeta sugere is coisas o poder de revidar 0 olhar e confere a condicéo humana um lugar menor ¢ submisso na natureza, Produz-se, aqui, novo estranhamento porque esvazia-se o sentido de (nipoténcia e grandeza da razao e da técnica; expde nossa fragilidade, Finitudee saber ainda precério ante anatureza, sobre a qual projetamos ilus6es de estabilidade, grandeza, poder, Muito além da finalidade cognitiva que o titulo parecia anunciar, 0 Poeta reencontra a similitude subterrinea entre as coisas: tomamo. Ros paisagem, apesar da pretensdo humana de julgar ver, de todos os lados, 05 olhares do universo. Ao fim cessas ligées, parece restar a0 letoro siléncio, construido pelo inesperado. final, para ficarmos coma reflexio de W. Benjamin, “por ‘ermo a natureza na moldura de imagens evanescentes (bosques, mar € montanhas como massas iméveis e mudas)é 0 prazer do sonhador, Conjurisla sob uma nova chamads, o dom do poeta” (1987, p. 266). Referén ALENCAR, J. de, Cartas sobre a Confederagdo dos ‘Tamoios. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, Lida., 1960, vol 4 ANDRADE, Carlos Drummond de, urezas do branco. In: Poesia e prosa, Ri isagem: como se faz. As im- de Janeiro: Aguilar, 1983, 50 ANDRADE, Carlos Drummond de. Europa, Franga e Bahia, Alguma Poesia. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1983. : do tinica. Trad, Ru- BENIAMIN, W. Obras escothidas Il: Rua de mao tinica. V : bens Rodrigues Torres Filho e José Carlos M. Barbosa. Sao Paulo: Brasiliense, 1987. 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Boaventura de Sousa Santos ‘A tera tem suas pdginas: os caminhos. ‘Mia Couto Via de regra se pensa 0 acontecimento da reafticanizacao literdria acoplado ao da descclonizagao, ou seja, como um proceso que se da, no presente caso, e como desejo, a partir dos anos 1940, nos espagos geopoliticos dominados por Portugal até 1973/1975. No entanto, seus ‘caminhos, como as piginas da terra, na bela metiifora do mogambicano ‘Mia Couto, nos levam para mais longe, a0 fim do XIX. E entéo, como insisto em repetir, que 0 proprio cultural africano —conceito deserito, entre outros, por Honorat Aguessy (1980); Alassane Ndaw (1983) ¢ Kwame Anthony Appiah (1997) -, em varias de suas verses, toma ugar no espago da textualidade, o que faz emergirem tragos e gestos, até entio, ou elididos no conjunto representativo, ou apresentados de forma eticamente conflitiva na chamada literatura colonial. Basta que se leiam poemas como “Kicéla!” (1888) ¢ “Uma quissa- ‘ma’ (1891) do angclano Cordeiro da Matta ou mesmo a novela Nga Mutiri (1882) do portugués Alfredo Troni, radicado em Angola, ‘mais propriamente em Luanda. Perce2e-se, nesses trés titulos, a en~ cenagao da fecunda presenca da outra Lingua, sempre algaravia e no ccédigo linguistico, no olhar redutor do outro. Ela toma acento nas dobras do panejamento textual, possibilitando-The novos movimen- tos e propondo uma também nova espécie de vestimenta cultural. O 99 procedimento abre uma fenda no hegeménico edificio da lingua por- tuguesa, “assinalando-o” ou nele provocando jé algumas rachaduras pelo manejo estiletado do conhecimento em diferenca dos produtores de bens simbslicos. De outra parte, deve-se apontar que, se provoca um estranhamento, também, quando grafada, a lingua desconhecida se iorna familiar, pois 0s sinais e ruidos dissonantes na fala tomam a forma cursiva de letras secularmente reconhectveis; de uma pontuacio confortivel e, em se tratando dos poemas, de versos que se fazem jogos grafémicos palataveis, com métrica e rima que igualmente so velhas conhecidas dos usuéirios letrados. Comeca, ja por ai, 0 trénsito pelas fronteiras que separam o Ocidente do nao Ocidente; o préprio do outro; a lingua transplantada das nacionais; a tradicao da voz da transformagio da letra etc, Os acidentes geogréficos, projetados no antigo mapa cultural tragado pela colonialidade, comegam a perder os rigidos contomos, a embara- Ihar-se por esse confronto de conhecimento/desconhecimento que nao se restringe apenas ao aspecto linguistico. O resultado de tal embate a confusio dos até entdo intransponiveis limites e inquestionaveis escalas. Outros valores “se alevantam”, tendo como fundamentos 0 corpo ético e as memérias dos povos de origem. (© quadro explica por que a mulher flagrada, no poema de 1888 pelo olhar do eu-litico e, consequentemente por seu desejo, responde aos galanteios sempre em quimbundo, finalizando por exclamar'*Kicéla!”, isto é, “Néo pode ser!” Ao traduzir a voz da “donzela”, no proprio jogo discursivo, o sujeito se mostra como um passante como a prépria mulher por ele flagrada. No entanto, enquanto ela atravessa a rua da pequena cidade, ele cruza os dois mundos, razio por que se torna capaz. de ficar de “um e outro lado das palavras”, voltando ao romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002, p.65), de Mia ‘Couto. Ainda com a voz do romance, eu completaria: a mulher traz a fala da terra ¢ 0 eu-lirico a traduz.na outra lingua transplantada, em forma de letra, ou repetindo 0 avo Mariano, em uma desuas cartas a0 personagem-narrador: “Eu dou as vozes, vocé dé a escritura” (idem). AA fronteira, antes rfgida, se faz poroso ponto de passagem. Areja-se a casa, pelo abrir de suas miltiplas janelas. Os lugares se invadem 100 ‘como to bem formulard o poeta Ruy Duarte de Carvalho, cem exatos anos depois da publicagio de “Kicéla.” — Hii um lugar {que invade outro lugar ceeste lugar staré presente noutro, (2988, p12) Desde os seus primérdios nos Oitocentos, portanto no comego dos ca- minhos, a reafricanizacao literdria nose permite pensar como rasura ‘0u total forma de apagamento do outro ocidental, a partir mesmo da Jingua por que ganha seus “méximos sinais”, aqui parodiando a fala de Joao Vencio, personagem paradigmético de Luandino Vieira (1987). ‘A teafricanizagao sz da dentro da ordem do suplemento (Jacques Derrida, 1967), trazendo um a-mais que necessariamente perturba © cAlculo, j4 agora rensando com Homi Bhabha (1998). Buscam-se novos processos significativos pelos quais também novos sentidos se podem produzir e as memérias tenham como retroalimentar-se ‘mutuamente, para que se venha a “reconstruir projetiva e retrospecti- vamente outra representacio do real”, n0 sentido trabathado por Rail Antelo, ao analisar a“Memsria sobre « conveniéncia e objetos de um. Congreso Geral Americano” de Juan Bautista Alberdi (1998, p. 25). E claro que, no calor do enfrentamento representado pela pulsio descolonizante € cujo alvo era a libettacdo do proprio espaco geo- politico e, consequentemente cultural, muitas vezes a afticanidade representa-se como diferenca absolute, nao passivel de contestacao. A obra Sangue negro de Noémia de Sousa, escrita entre 1948 e 1951, mas sintomaticamerte $6 publicada em 2001, a um ano de sua morte, pois, € disso um dtimo exemplo, quando a poetisa tenta, pela voz do eu litico, reforca’ a espessura de seu proprio tracado identitério: ‘Se quiseres compreender-me vem debrucar-te sobre minha cima de Attica, ‘nos gem dos dos negros no cais ‘nos batuyues frenéticos dos machopes 1a rebeldia dos machanganas na estranha melancolia se evolanda 101 dduma cangio nativa, noite dentro, (2001, p30) ‘Tal momento de teafirmagio de uma quase esséncia vai sendo paula- tinamente substitufdo, mesmo no tempo da luta, pela consciéncia do atravessamento da memdria e das vérias matrizes; pela certeza dos lugares invadidos, voltando a Ruy Duarte. Outro angolano, Manuel Rui Monteiro, fala dessa “semantica nova”, marcada pelo pluri — ¢ pelo multi, muito antes que os colonizadores chegassem ¢ tomassem posse de terras e de homens. Nao é apenas com relacio ao que veio como legado de fora, mas ao que havia dentro, que essa memria se transversaliza. Manuel Rui: “Ser pétria assim multilinguistica e mul- ticultural € ser-se mais rico para a criatividade contra o nacionalismo tacanho, chauvinista, bascado s6 na raga e na lingua” (1981, p.29). Parece-me que a “mundialidade”, tal como a refere Said, foi, no que diz respeito 4 Africa, por muito tempo pensada como uma forma de se apreciarem as “terras do fim do mundo” ou os “mintisculos [e ‘inexpressivos’] confins”. Era uma quase concessdo do “peito herdi- co” branco-europeu. Mesmo hoje os chamados novos senhores dos impérios nao reverteram a sua miopia. Infelizmente, muitas vezes, intelectuais que se dizem progressistas ¢ acreditar na forca da des- construgao parecem retroceder, quando se trata da Africa, mesmo que disso nao tenham consciéncia. Vale a pena retornar a Said, pedindo desculpas pela longa, mas necessétia citaga 1 Aca pode sr toler enquanto€ vst posivament como uma regio que se beefcio da modernizaciocvilizadora proporcionada pelo coloialismo histrico, mes, se for vista pes afticanos como sins itm dss consequincias do legado do imperialism, entéo devesser posta em seu lugar, revelada como essencialmente inferior ‘© em constante retrocesso desde que © homem branco foi embora. (2008, p.125) © que a moderna construcdo literdria africana faz, a exemplo do que acontecia no préprio tempo do exilio imposto pelo outro, é tentar reverter o sentido do “beneficio da modernizacao civilizadora”, Para tanto, contrapoe a forga da ancestralidade, traco cultural por excelén- cia das culturas africanas, projetando-a no corpo textual de muitas 102 formas possiveis, sempre no jogo da meméria ou da reminiscéncia, pensando com Walter Benjamin: ‘A reminiscéncia funda a cadcic da tradigéo, que transmite 0s acon- tecimentos de geracio.em geracio, Fla correspond 8 musa épica no seatido mais amplo, Ela inclu todas as variedades da forma épica, (1994, 211) A recuperagio da “cadeia da tradi¢ao” pela reminiscéncia se torna uma das marcas mais fecundas das lijeraturas afticanas em lingua portuguesa e, no coajunto, de modo muito especial, da ficgio nar- rativa. Vé-se com clareza que ha ume espécie de reconvocacio do passado, percebido pelo imaginério como 0 tempo, ainda Benjamin, que guarda “a imagem da felicidade [..] indissoluvelmente ligada & da salvagao” (idem, p.223). Assim, seja no momento das euféricas certezas emergidas antes, mas ratificadas fortemente no calor da luta ou nos anos sutsequentes as independéncias, seja no momento disférico hoje vivico, 0 passado permanece sendo africanamente reconvocado e, com ele, a possibilidade da esperanca que, embora abalada, nao se quer deixar morrer. Isso justifica por que os modernos ficcionistas insistem em re(a)presentar com frequéncia a tradigio ancestral, sempre tendo como ponto ce apoio o legado antigo, para conseguirem com ou por ele 0 efeito de transformacio do nove. Hi ‘um movimento consentido de reanimar mitos ¢ ritos préprios, fazendo ‘com que 0 local da cultura se projete imagisticamente na brancura do papel, incandescendo-se. Em uma das miltiplas epigrafes que abrem os capitulos co romance e sio, i excegio de poucas, falas dos personagens da trama ¢ da terra, Mia Couto diz, pela voz narradora que reeupera a vor outra Eis 0 que eu aprendi nesses vales ‘onde se afundam os poentes: final, tudo sio luzes cea gente se acende & nos outs. A vida €um fogo, ngs somos suas breves incandese&ncias. (Fala de Jodo Celestioso 20 regressar do out lado da montanha) (2002, p241) 103 ‘Também em seu iltimo romance, Niketche: uma historia de poliga- ‘mia, outra mocambicana, Paulina Chiziane, mostra « forca do mundo antigo e a cartografia simblica em que se alicerga: Nortenhos ou sulistas, cada um quer ser mais allo e chegar primeiro 40 umbigo do e6u. Cada um quer ser garca,faledo,albatroz, para alcangar mais depressa o alto do monte onde ainda pende um cecho ddebanana e uma galinha assada no braseiro do undo. (2002, p.209) O regresso “do outro lado da montanha” ou o desejo de “chegar pri- meiro ao umbigo do céu” consolidam a ideia de um movimento para o alto, sempre pensado como o lugar onde se guarda a luz ou o fogo. Revela-se, com 0 procedimento de dar corpo aos mitos, a tentativa de ecuperat 0 que nao esta ao alcance do saber comum — permito-me pensé-lo como ocidental em sua base letrada —para assim, pelo reforgo do ancestral legado, propor-se um outro relato desestabilizador pelo qual se estabelecem novas negociagoes de sentido que acabam por balizar a moderna fala literéria africana. Para reforgi-la, convocam- se varios niveis de espacio-temporalidades que contribuem para que a meméria se acenda no outro da ancestralidade, umbigo dos mitos identitérios, jamais fixos, pois sempre secularmente transmitidos nas malhas da oralidade, essa mutante por exceléncia. Ha uma espécie de necessidade de retorno aos lugares ¢ tempos que significam, que nao pode ser tomado como sindnimo de um de- sejo de volta as origens. Admiti-lo seria pactuar com uma qualquer espécie de tolice hist6rica, pois aquelas origens ja se confundiram no prdprio mata-bortio do tempo. A busca é pela seguranga que 0 sentido de pertenga identitéria confere aos agentes sociais, sempre em “uta desesperada pela sobrevivéncia enquanto comunidade-de-ser” (Ramalho ¢ Ribeiro, 2001 p.13), dato reforco das préprias imagens espaciais de ordem fisica ou cultural. ‘Um desses lugares privilegiados na cartografia textual, sem sombra de diivida e por exemplo, se chama Luanda, espécie de sintese simbilica, no caso angolano, ¢ presenca quase hegeménica na geografia dos tem- pos da luta e nos que imediatamente Ihes sucederam. Penso, porém, que, nos anos 1990 e neste inicio de século, se refaz uma espécie de trajeto igualmente simb6lico por espagos fisicos fora do eixo urbano do litoral, que foi o lugar por exceléncia de implantagdo das cidades 104 colonizadas. Aparecem, entio, convites para que se percorram ilhas —Mia Couto, no romance citado, ou Manuel Rui em Rioseco (1997), por exemplo ~ ou ainda se visitem aldzias, quimbos, savanas, mon- tanhas etc. — conforme Pepetela, Pardbola do cdgado velho (1996); Boaventura Cardoso, Maio, més de Maria (1997); Arnaldo Santos, ‘A casa velha das margens (1999); Aseéncio de Freitas, O canto da sangardata (2000); Ruy Duarte de Carvalho, Vou [é visitar pastores (2000) etc. Como exemplo dessa “geografia imaginativa”, aqui re- tomando uma expressio de Said (2008), pode-se citar a instalagio da narrativa Vou ld visitar pastores de Ruy Duarte, obra considerada por muitos um no romance do ponto de vista estritamente candnico, com 0 que, alias, nao concordo. Bis a abertura textual: Hei-de mostear-te depois um ma dos terrenos que vais explorar. ‘Corresponde a uma vista agrea que abrangeria todo o teritirio kuval, Desenhe-o assim porque foi essa a imagem que colbi um dia, ou retive, a voar a baixa altitude do Namibe para Luands[..] Abrangia assim, numa panorimica, os nicleos de concentragio kuvale & das suas perierias, zonas de transigo com tervt6ris tylengue, mwila, gambwe, himba, utbano, O seatido da colocagio geogrifica, pois, para fazer sentido. (2000, p-13i O tu garante a presenga oralizante da encenagio da fala direta com ‘um interlocutor que nunca chega ¢ que, no plano da representagio, se faz 0 motivo do contar. Em iiltima instancia, ele é a metonimia do pr6prio leitor, o grande convidado para, em companhia do narrador, tum sujeito do conhecimento e espécie de guia local, encetar uma viagem rumo ao universo pastoril dos kuvale. © mapa se abre © se procura “o sentido da colocacio geografica [...] para fazer sentido”. Exploragao antropcldgica, etnografica, histérica, tudo ganhando corpo nas linhas do desenho ficcional camutflado, ou em seu coracio, para usar a metéfora que tio bem expressa 0 lugar dos povos kuvale, quando se pensa em Angola. Recupera-se, assim, para além da geografia fisica, a face etnocultural ddos povos aserem “visitados" — kuvale, mwila, himba etc. ~ seus mo- dos de vida autojustificativos. Surpreerdem-se, no desenho narrativo, 0 tracos de sua policromia cultural, que se afirmam como diferenca ena clave do afeto. Um outro romance, mogambicano, O canto da sangardata de Ascéncio de Freitas (2000), se deixa ler também como 105 uma variante desse procedimento de resgate do olhar. Nele, hé um certo gozo do narrador, quando projeta o universo tradicional rural de ovos que vivem da caca. Tal universo nao é originalmente o seu, que, sendo um cacador branco, nao obedece as negras leis ancestrai De qualquer modo, ele veste uma espécie de segunda pele, como nos ritos, ¢ pactua com aquelas leis, sempre se recusando a imprimir no que conta qualquer marca de estereotipia. Cito uma passagem da obra que funciona como resgate ¢ modo de reconstruir, pela palavra, a face identitéria do grupo com que o narrador interage e ao qual passara, pelo casamento, a pertencer: Enessa noite forte batucada se ouviu traspassendo ares até a0 mais fardo das suas funduras, as distincas. E farinha me puseramm na ‘cabeca em cantorias, cantando as minhas famis, nos costumes da 4quele povo. E na costumada ceriménia da boa sorte com 0 régulo, tive que aprazer de comer do figado ¢ do coragid do elefante maior dos tes. (2000, p.95) Ao contrério do que se dava nas malhas da chamada literatura colonial, produzida por imagindrios europeus, a ficcdo africana moderna ence- na a identidade pés-colonial, no sentido trabalhado por Boaventura de Sousa Santos. Tal identidade se constréi, como afirma o ensaista, “nas margens das representacdes e através de um movimento que vai das margens para 0 centro”. E ele continua: “E neste espago que é construida ¢ negociada a diferenga cultural” (2001, p.33). Essas novas negociagées de sentido explicam 0 convite para que “se visite” o que as culturas hegemonicas locais e imperiais insistem em continuar a encobrir com um manto de siléncio: os povos pastoris; os das florestas; os cacadores; os montanheses; os lavradores; os ilhé etc. A sua diferenca é usada, no plano da representaco, como forma de subverter qualquer pulsio homogeneizante. Atualizam-se, no corpo ficcional, “conceitos de sentidos ancestrais como o terrtério eo lugar, aetnia ¢o parentesco”, repetindo Ramalho e Ribeiro (2001, p.13).O produtor textual transita ele préprio por espagos que lhe asseguram 0 sentido identitério, nos termos postos por Ruy Duarte, na abertura de seu texto, Volto a Boaventura: “Trata-se de um espago de fronteiras, de extremidade ou de linha da frente onde 6 é possivel a experiéncia da proximidade da diferenga” (2001, p. 33). 106 Esse transito é uma forma, em iiltima instincia, de “subverter a su- balternidade”, ainda Boaventura de Sousa Santos, em didlogo com Gayatri Spivak (idem, 9.31), sempre buscando traduzir antagonismos € contradigdes. Convém lembrar que a tentativa de subversio é tam- bém uma caracteristica da critica de tais literaturas, pois ~ e volto com prazer as reflexdes de Boaventura desta vez em didlogo com Homi Bhabha ~ © ugar do extico pés-colonial tem de ser consirufdo de modo a «que possa interromper eficazmente os discursos hegemsnicos que, através do dscurso da modemidade,racionalizaram ov normalizaram 0 desenvolvimento desigual e diferencial das histéras, das nagbes, acas, comunidades ou povos. (Bhabha, 1991: 171) (2001, p.3:) ‘Tal critica p6s-colonial vem sendo exercida, de modo cada vez mai organizado e coerente, por africanos € em varias linguas. Cité-los a todos seria tarcfa impossivel. Lembre apenas nomes como os de Inocéncia Mata; Luis Kandjimbo; Francisco Noa; Lourengo do Ro- sério; Alassane Ndaw; Kwame Anthony Appiah; Makhily Gassama; Tidjani Serpos; Georges Ngal; Honorat Aguessy; Isidore Okpewho; Makouta Mboukou; Boubacar Barry etc. Alguns falam a partir de su proprias comunidades-de-ser, embora tenham buscado sua formacéo em centros hegemdnicos, ou quase. Outros falam do préprio centro, onde se radicaram. De um modo ou de outro, vao na contracorrente € suas falas, ao conttério do siléncio antigo, tentam “subverter a subalternidade”. O mesmo se dé com certos criticos brasileiros; latino-americanos e mesmo portugueses; ingleses; norte-americanos; franceses, empenhados todos em um mesmo ritual antropofiigico a «que se refere Silviano Santiago em seu jé classico Uma literatura nos trépicos, em especial no ensaio seminal “O entre-lugar do di latino-americano”, datado de 1971. Tal ritual se dé “entre o sacrificio € 0 jogo, entre a prisic e a transgressao, entre a submissao ao cédigo © a agressio, entre a obediéncia c a rebeliao, entre a assimilagao ea expresso” (1977, p. 28). A que eu aduzo: assim nas literaturas afti- canas como na teia critica a partir de seus préprios fios entretecida. ‘Tomna-se necessério, portanto, que se pense, no bojo dessa mudanga de rumo, um deslocamen‘o do prdprio sentido da critica que deve buscar 107 4 problematizacao que a obra estabelece na cultura. Hé que se levar em conta tanto a recepcao das obras quanto seu grau de representati vidade, questionando-se sistemas tradicionais de institucionalizagio da literatura e relativizando-os por outros vetores como os de etnia, de género, de classe social etc., sem jamais, obviamente, minimizar sua fungio estética. Se antes, como criticos das literaturas africanas, observaivamos, prin- cipalmente, as estratégias de resisténcia produzidas no texto literdrio para reiterar a forga do Estado-nacio, jé construfde ou por construir, devemos agora inquirir 0 que ocorre no espago literario quando as forcas econémico-culturais impostas pela globalizacéo entram em rota de colisio com a propria ideia que sustentava a utopia da auto- determinagao ¢ soberania do Estado-nagao. E nossa tarefa considerar outros elementos que se impSem no plano simbélico e que insistem em combater a subalternidade, reiterando 0 necessério embate pelo qual se intensifica o movimento nas fronteiras e se marcam 0s fluxos que as atravessam, Para concluir: é, portanto, nesse lugar entre, lugar de trnsito, que a diferenca cultural africana e a critica sobre ela devem procurar seus caminhos, pois 0 contato com tais produgées literirias comprova, como afirma Benjamin Abdala Jinior, que “cada vez 0 mundo torna-se uma realidade de fronteiras miiltiplas, internas ou externas, ‘Sao fronteiras que podem se abrir ou fechar, conforme a natureza da conexio desejada” (2002, p. 125). Penso ser este o papel da critica e de nés prprios que a exercemos: ccriar a conexao por nés desejada. Referéncias ABDALA JUNIOR, Benjamin. Fronteiras miiltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mesticagem e hibridismo cultural. Sio Paulo: SENAC, 2002. AGUESSY, Honorat. Visées ¢ percepgdes tradicionais. 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Do canto de participacio ¢ intervencio social da palavra poética caligrafia silenciosa e resignada do seu trabalho, Por assim dizer, oficinal que parece ter como fim uma aceitagio nfo s6 desencantada como produtiva da diferenga inevitével entre @ natureza (0 natural, a physis) e a sua representagao (0 cultural, a escrita). A vontade de stica do poema o levou tanto a0 neorrealismo quanto ao seu desencantamento, literal, com o movimento. O texto de Carlos de Oliveira até mais ou menos 1950 foi francamente ético, ‘0 que acabou Ihe custardo caro: “Acusam-me de magoa e desalento” (OLIVEIRA, 1982, p. 20). Divida que comeca a ser paga a partir da década de 1960, com a re-escritura. E nesse perfodo que o problema que era s6 dele, poeta, comeca a ser nosso também. O poema, que jé desconfiava de si, assume-se como forma precéria. E aquilo que, de modo bem-intencionado, nos dava a ver oético nao o pode mais fazer. Pelo menos, no em um primeiro plano. “A minha voz de morte a ‘yor da luta” (Idem, p. 21), cantava. Eagera escreve: “Rudes e breves as palavras pesam/ ma's do que as lajes cu a vida [..]” (Idem, p. 80). Se tratéssemos 0 assunto como tdbula rasa, diriamos apressadamente: ‘0 poema agora privilegia o estético, deixando pouco para o ético. Mas sabemos que nao é bem assim. “Esta coluna/ de silabas mais firmes,/ esta chama/ no vértice das dunas/ fulgurando/ apenas um momento,’ este equilibrio/ tao petto da beleza, este poema/ anterior/ a0 vento” (Idem, p. 90). Michae] Hamburguer, em uma direcéo parecida, diz: “Tampouco € preciso ser marxista para reconhecer que toda poesia ‘ Doutoraado em Literatura Compara da UFF com bolsa CAPES/MEC. Atwou como professor substiuto de litentura portuguesa na Unversdade Federal do Rio de Janeiro (2006-2007). i tem implicacoes politicas, sociais e morais, independentemente de a intengio por tras dela ser didética ¢ “ativista’ ou ro” (HAMBUR- GER, 2008, p. 58). Joao Cabral em 1950 publicava um poema, O edo sem plumas, que ‘comeca assim: “A cidade € passada pelo rio/ como uma rua/ € pas- sada por um cachorro;/ uma fruta por uma espad” (NETO, 2003, P. 105), Trata-se de um texto da “Paisagem do Capibaribe”, como nos avisa 0 préprio poema, rio que nasce na Serra de Jacarard no municipio de Pogdes (PE) ¢ desdgua no Oceano Atlantico no centro a capital do estado, Recife. O poema nio nos da essas informagées, 4que foram retiradas de um livro de geografia, mas poderia pedir que © fizéssemos, isso no caso, como pode acontecer, de munca termos visto o Capibaribe, “[...] espesso e real” (Idem, p. 115). Conhecendo ou nao conhecendo o rio, lemos no poema: “A cidade é passada pelo rio/ como uma rua/ € passada por um cachorro:/ uma fruta por uma espada” (Idem, p. 105). A cidade é cortada pelo rio assim como uma fruta € cortada por uma espada. Nao se trata apenas de uma compa- aco, mas uma justaposicéo: a cidade € a fruta que € a cidade, o rio € a espada que € 0 rio, “Rose is a rose is a rose is a rose”, leriamos em um famoso trecho do século XX. O cdo sem plumas nos dé a ver um Capibatibe através de uma operagdo de linguagem que, com certeza, tem mais a ver com 0 famoso verso de Gertrude Stein que ‘com um determinado e reconhecido uso da linguagem descritiva. O poema de Joao Cabral faz uma referéncia a0 Capiberibe, ou seja, ele representa, transpée 0 rio no texto. Ao fim do poema, uma coisa € certa: vimos ¢ nio vimos, estivemos ¢ nao estivemos no Capibaribe. “Espesso] como uma maca € espessa./Como uma maci/ é muito mais, ‘espessa/ se um homem a come/ do que se um homem a vé./ Como € ainda mais espessa se a fome 0 come./ Como é ainda muito mais, espessa/ se néio a pode comer/ a fome que a vé” (Idem, p. 115). A prop6sito, Artaud disse certa vez que a arte nunca tiaha salvado nem poderia salvar ninguém de ter fome, 0 méximo que poderia fazer seria proporcionar em quem nao sente fome uma experiéncia andloga ade fome (ARTAUD, 1999, p. 1). 12 O verso “Errei todo ¢ discurso dos meus anos” pode funcionar como uma espécie de operador de leitura da poesia portuguesa por algumas razGes. Entre elas, a de que hé no decurso dessa tradigao, a contra- gosto ou nao, uma prioridade daquilo que hesita, nao se fixa, enfim, daquilo que erra, Em outras palavras, no que se refere ao sujeito, ha com certa frequéncia na lirica portuguesa uma tendéncia poeticamente muito saudavel para a instabilidade, para a mudanca. A isso jé se chamou desconcerto e nos acompanha pelo menos desde Joao Aires de Santiago e sua cantiga “Todalas cousas eu vejo partir/ do mod’en como sofam seer” (TORRES, 1977, p. 449) que tem como principal deslocador o “eu vejo”. Passando pelas tensdes entre 0 sujeito e sua imagem em Bernard:m Ribeiro e Sa de Miranda, por exemplo, para chegar a0 momento-chave que é a poesia de Cam@es € seu citado “Brrei todo o discurso dos meus anos” (CAMOES, 1980, p. 341), simula de toda uma vida, literal, de mudancas simbélicas, porque _geogrificas; de deslocamentos geogréficos, porque simbélicos. Nessa mesma trilha, poderiamos ouvir, anos mais tarde, com outros ares, é claro, o mesmo decurso, a mesma hesitagdo entre imobilidade € errincia do sujeito: “Imagens que passais pelas retinas / dos meus ‘olhos, por que néo vas fixais?” (PESSANHA, 1956, p. 77). E nesse ponto que a poesia de Carlos de Oliveira surge: nao como préximo passo nessa gencalogia de eleitos ¢ sim, conforme aprendemos com Fiama, como mutabilidade e progressio de uma linha de forga decisiva para a lirica portuguesa do século XX (BRANDAO, 2006, p. 171). A situacdo é a seguinte: hd uma distincie fatal e fecunda entre mundo € nomeagao do mundo, mundo e sujeito; € todos os poetas e poemas ‘enumerados acima nao s6 sabem, como também se aproveitam disso. Assim podemos ler em Cambées ¢ Pessanha (também no Garret de Viagens na minha Terra), essa distancia da ordem da representacio € simbolizada, sobretudo, por deslocamentos geograficos: percurso que, por seu turno, marcou para sempre um modo de estar da cultura portuguesa: o da errincia, “Que a palevra te redima do erro. Que a palavra seja 0 erro. / Deslizas sobre a terra. Deslizas sobre as diguas.” (QUINTAIS, 1999, p. 16). 13 Olivier Dollfus escreve: “A paisagem & um conceito impreciso ¢ deve permanecé-lo” (BERQUE, 2004, p. 89). Essa afirmacdo, num comentirio a um importante texto de Augustin Berque, circunscreve com eficécia, parece, 0 campo de agio oscilante do termo. O proprio texto de Berque, embora a partir de outros recursos, caminha em di- io parecida quando esboca os conceitos, questionados por Dollfus na citacio acima, de paisagem-marca e paisagem-matriz. O esforgo dde Berque (¢ Dollfus também), dentro da geografia, é de certa forma Merleau-Pony. Piénoménologie dela perception. Bibliotheque des es, Gallimard, 1045, pall 206 pelo meu raio visual. A tal ponto que. as vezes, tenho a impressio de poder tocar 0 horizonte com um gesto da mao, (a0 facilmente que 0 abarco com o olhar. A paisagem é sentida como um prolongamento do espago pessoal, sua amplidao é dotamanho da envergadura de um corpo préprio aumentado até os limites do horizonte. Esta conivéncia do olhar e do corpo ‘nteiro com a paisagem explica que podem investir nesta quaisquer tipos de contetidos psicol6gicos. ‘Uma vez que a paisagem esté ligada a um ponto de vista essencialmen- te subjetivo, ela serve de espelho a afetividade, refletindo os “estados da alma”. * A paisagem nao esté apenas habitada, ela é vivida. A busca ou aeleigio de um horizonte privilegiado pode tornar-se, assim, uma forma de busca de si mesmo. Entdo, 0 fora testemunha para o dentro. Mas é precisamente esta distincao que vacila na experiéncia da pai- sagem: se 0 exterior pode ser tomado pela imagem do dentro, é que 1io existe interioridade absoluta, ¢ que o interior ja esté sempre aberto para um fora. Dizer que a paisagem € meu horizonte, ou seja, que ela nao é nada sem mim, mas também que eu néo sou nada sem ela. Por que preciso de uma paisagem qusndo procuro reapoderar-me de ‘minha propria identidade? Se nao é porque, toda consciéncia sendo consciéncia de... , cla pode definir-se apenas pelo seu horizonte. Extensio Logo, se a paisagem s6 toma consisténcia ao olhar de um sujeito, este 86 possui existéncia através de um espaco oferecido ao desdobramen- to de seus poderes, ele ¢ insepardvel de seus redores. A paisagem, gragas a sua extensio, permite-Ihe dar livre curso a esse movimento propriamente ex-titico, que o define como ek-xistente sempre & dis- tincia de si, A presenca de si que ela favorece nao deve ser entendida como coincidéncia com uma identidede jé definida e perfeitamente fechada sobre cla mesma, mas antes como prae-sentia, como uma maneira de set “perto de si do outro ledo de si, em uma proximidade inaproximével”: o Lorizonte abre a “distancia interior” gracas & qual pode “recolher-se a partir de seus extremos longinquos”.” * “Qualguerpaisagem é um estado de alma’ escreve Amiel (Journal Intime, 31 octobre 182: «igo intel sob dro de B.Cagncbin ETP. M Monner,’Age Homme, Lausanne, volume I, 1978, p295), 7 Henri Maldiney, "Les bancs André du Bouchit”, Art et existence, Klinesieck, 1985. 207 A distincia que me une ao horizonte ao mesmo tempo em que cla dele me separa corresponde a prépria estrutura da subjetividade, cujo destino € ter que encontrar-se para além de uma distancia sempre mantida de si para si. A dialética do préximo e do longinquo rege tanto a paisagem como a existéncia; ela possui um significado indis- sociavelmente espacial ¢ temporal. O horizonte é imediatamente a imagem do futuro, meu olhar vai em direcao a ele como minha vida arrebata-se rumo ao futuro. O movimento cumpre a sintese dessas duas dimensées: /d, é daqui a pouco ou amanha, visto que ld estar apés ter progrecido em meu percurso no espaco. ‘A jungao da terra e do céu representa a passagem do real ao possivel, © horizonte parece recobrir a inesgotivel reserva das virtualidades inexploradas. A menos que a distincia que dele me separa me traga de ‘volta nostalgicamente a consideracao do meu passado. E todo o campo de minha existéncia que assim se oferece a meu olhar, devolvido a seus horizontes esquecidos ou imprevisiveis. A “profunceza do espaco”, “alegoria da profundeza do tempo” restitui-me o sentimento de uma duragao vibrante, em que meu presente nao para de ser transbordado por seus longinquos; ela é a prOpria imagem da “amplidao de vida” indispensivel ao livre desabrochar de minha existéncia. Parte E aestatura de meu corpo, levantado no espago, que dé a meu olhar 0 recuo necessério ao desdobramento de um horizonte, ¢ esta “altura de visio” que permite aliar a imensidio celeste & extensio terrestre. Entretanto, esta propria verticalidade tem seus limites, que confere os seus & paisagem. Esta limitagao prende-se & insisténcia de meu corpo na paisagem. Enquanto eu conservat “os pés na terra”, por mais, elevada que seja a posicdo que ocupe, eu faco parte da paisagem, ¢ € por isso que vejo apenas uma parte dela. O horizonte, o qual abre meu territ6rio perceptivo rumo ao longinquo, circunscreve-o ao in- terior de uma fronteira intranspontvel: horizonte significa em grego “aquilo que delimita”. Meu olhar abraca 0 horizonte, mas continua envolvido por ele. Eu nao me “represento” a paisagem de fora, estou ‘Baudelar. “Le potme du haschich". Les Paras aries * Ludwig Binswanger “Réve et existence" Iioduction & Vanalye existent, 6d. de Minuit, 1971 208 eu mesmo nela presente; s6 tenho uma tomada de posigao sobre ela porque estou preso em suas dobras. Nao sou um puro espftito, capaz de sobrevoar 0 mundo em uma visio perfeitamente panordmica. Meu corpo me designa um lugar no proprio centro da paisagem que olho. E gracas a cle que posso apreender “o campo”, modificar meu ponto de vista. No entanto, é cle também que me liga ao aqui, impedindo-me de ver mais longe que ld. Pois seu peso impede de decolar completamente do chao, ¢ 0 mantém prisionciro dos relevos. E ele néo possui o dom da ubiquidade: ele 86 pode descobrir de uma s6 vez. um “tinico aspecto” da paisagem. ‘Todo ponto de vista é também um ponto de nao visio, toda perspectiva exclui as outras: a paisagem € parcial porque é parcial. Meu corpo s6 ‘me abre ao visivel retirando-me uma parte dele. Meu campo visual € cercado por um cinturio de invisibilidade: aquém de meu olhar, pela mancha cega do corpo, além, pela linha do horizonte. E estas duas “éreas de sombra” deslocam-se simultaneamente; por mais que eu mude de ponto de vista, continuzrei refém deste duplo invisivel. O horizonte me segue como uma sombra; ndo posso separar-me um pouco mais dele do que 0 volume obscuro de meu proprio corpo. Eles So indissociaveis, um e outro testemunhando meu enraizamento na cespessura do mundo, de minha encamacio. Tenho um horizonte por- {que possuo um corpo; um e outro tragam os limites de minha finitude. Esta dialética do visivel e do invisivel verifica-se néo apenas na periferia da paisagem, como também, na maioria dos casos, em seu proprio seio. O espaco que ele propée ao olhar é rodeado por uma linha além da qual nada mais é visivel, e que se pode chamar seu horizonte externo, Mas, no interior do campo de visibilidade assim delimitado, certas artes da paisagem podem (estar) mascaradas pelos acidentes do relevo ou pelas construgdes humanas. Esse jogo de telas constitu: © horizonte interno da paisagem, ¢ o distingue radicalmente de um. espago objetivado : desencarnado camo o do mapa; este “representa efetivamente uma porcio de espago em sua totalidade, enquanto uma Paisagem caracteriza-se necessariamente por espagos que néo sio visiveis, de um certo ponto de vista”."” Porque nela 0 invisivel junta-se ao visivel, a paisagem € horizonte, endo panorama. Ele ndo dé tudo a ser visto. Mas essa restrigdo esti > Yes Lacose, i quoi et le paysape?”. Hérodote a 7, jul septembre, 1977 209 longe de ser puramente negativa. Pois ela esté, antes de tudo, ligada 8 pluridimensionalidade do espaco. Se a paisagem tiver partes es- condidas, é porque comporta um relevo, ¢ organiza-se segundo uma escala de pontos sucessivos que Se mascaram uns aos outros. Essa verticalidade e essa profundidade constitutivas da paisagem escapam 20 olhar panorimico. Substituindo a perspectiva horizontal por uma grea, tenho acesso a visio das partes ocultas, liberto-me do horizonte, ‘mas 0 prego € o esmagamento do relevo e de uma neutralizagdo das distincias: tudo iguala-se em uma percepeao plana esimulténea. Sai da paisagem, a qual contemplo do alto € do exterior. O panorama & ‘um espaco visto em sua totalidade, mas ele ndo é mais, diferentemente da paisagem, habitado nem vivido. Por outro lado, essa limitacao da visibilidade faz da paisagem uma “estrutura de apelo”: incompleta, ela pede para ser completada por uma intervencdo ativa do sujeito, 0 qual deverd esforgar-se para pre- encher as lacunas da paisagem gracas a imaginacio, a palavra ou ao ‘movimento. O horizonte da paisagem é apenas um caso particular da estrutura de horizonte" que rege nossa percepgao do espago. Toda coisa vista possui uma face oculta, a qual, se nao estiver presente em ‘meu campo visusl, nem por isso esté pura e simplesmente ausente. Fla esti integrada ao significado da coisa pela inteligéncia perceptiva, que completa os dados sensoriais por uma re-presentagio, ou melhor, por uma a-presentacio do que foge aos sentidos. O horizonte subtrai ao olhar e abre-se ao olho da mente. Limite dos sentidos, ele é, também, apelo de sentido, O invistvel solicita a imagem. A paisagem visivel é apenas um esbogo, prolongado pelo trabalho da imaginacao. Suas partes mascaradas devem ser adivinhadas. E esse ato de adivinhacao se produz subconscientemente em toda uma percepcao gragas & nossa experiéncia das diversas figuras da terra, los, pressentimos 0 rio por tras da cerca viva de Alamos, o cemitério por tras dos muros, e sabemos pelo menos que por detras do horizonte 0 mundo continua, que nao temos sob os olhos um pedaco de planeta isolado no vazio, mas um “parte” de um pais mais vasto. Assim sendo, pelas falhas do visivel, insinuam-se linguagem e imagens. A paisagem percebida continua ‘T"Fa mal quem piso dfn elaborouess nog, qual epresenta um pepe apt 1a fenomenologiad percep eda consiéncia intima do tempo (vr, em meu ensaio La sie moderne ea structure d'hoizon, “Eztitute™, PUL, 1989) 210 J dublé de uma paisagem imaginéria, Todo horizonte € fabulos vazios da mensagem sensorial obrigam a inventar a fébula do mundo. Se pudéssemos ver tudo da paisagem, nao haveria nada a dizer sobre cla. “O horizonte é poético porque é um convite perpétuo para recriar paisagem, porque ele abre nesta uma dimensio de alteridade: quando digo que uma paisagem & postica, no & que diame desse epeticulo cu esta transportado, esas casas que vejo, ov as ondss, eu a ultrpasso, las propria obrigam-me a deixss,fazem surgi para mim outs tpos de ‘margens, que este lugar contém uma infnidade de otras margens, que ele no permanece ts qual ele & nioestéfechado ele mesmo." Oencaixe dos horizontes, efetivamente, funda um espago “gigogne”:"® atrés de toda paisagem esconde-se uma outra paisagem a ser descober- ta. Desde que uma parte oculta torne-se visivel, uma outra subtrai-se. ‘Todo horizonte transposto desemboca 2m outro horizonte. Esse recuo do horizonte dé a paisagem uma profundidade infinita, e também a espessura do real, pois ela revela-se sempre uma outra diferente do que se havia pensado. Essa alteridade, nés ja vimos, reveste um significado ultrassubjetivo: ela mobiliza em mim as poténcias da lembranca e da imaginagio, faz-me escapar dos limites de uma identidade facticia, lembra-me minha transcendéneia, No entanto, ela possui também uma dimensio intersubjetiva. O que nao vejo da paisagem € 0 que outros, no mesmo momento, podem ver. A terceita dimensio marca o lugar reservado a0 ponto de vista de outro. Ela me proibe de considerar a paisagem ‘como uma propriedede privada, em tomo da qual eu poderia dar uma volta; cla inscreve na paisagem a presenca incontornavel de outrem. Sabe-se que a perspectiva s6 aparece nos desenhos da crianga a partir do momento em que esta ¢ capaz de diferenciar seu proprio ponto de vista do ponto de vista dos outros, de admitir que ele no ve tudo Porque ele niio é0 tinico a ver." L'idios casmos torna-se, assim, Koinos cosmos, a paisagem, um lugar comum, estruturado pela conivéncia dos olhares. O horizonte define a pzisagem como meu territéri perceptivo, tomado pelo circulo de meu olhar ¢ de meus atos, feito * Michel Bator “Le roman tla poésie" Exsis sr le roman, “Ides, Gllimstd, 196. NN. do T “un espuce“gigngne™. Thta-se da traciona boneca ruta ma sua evtutra de _encaites“espago encaxado. Ver Piaget Inhelde. La eprésenation de V'espase che enfant. RUF, 1948, 2u1 ‘em fungao de meu ponto de vista, mas ele articula também este meu espago a uma irredutivel alteridade: limite proprio, é verdade, mas que, por outro lado, me desapropria de uma drea estranha, proibida a minha visdo. Nas fronteiras do que acredito ser meu dominio reser- vado, 0 Outro vem inscrever-se. S6 posso identificar-me & paisagem se aceitar alterar-me; 0 Mesmo nao vai sem o Outro. Assim pode nascer 0 “desejo do horizonte”."S Sendo o lugar do Outro, © horizonte torna-se objeto de desejo. Eis-me curioso para ver 0 que vem os outros, para saber o que se esconde atrés do horizonte. A Jinha que fecha a paisagem abre-a, na verdade, para outro lugar, outro mundo. Bis porque nao posso me satisfazer com uma contemplacio imével: falta algo ao meu olhar, ¢ esta falta me leva a explorar mais, adiante a paisagem. Movimento a principio infinito, uma vez que seu objetivo & inacessivel: 0 horizonte recua & medida que avango em ditegao a ele. Certamente descobrirei novos horizontes, mas nao saberia atingir 0 proprio horizonte. Sempre me escapard algo da pai sagem, que Seré atributo de um outro olhar. A viagem permitiré que ‘eu conheca outros paises, mas nao o interior do pais cesconhecido que se esconde no horizonte de toda paisagem, e do qual alteridade é tio inesgotével quanto a de outrem. O desejo do horizonte nao saberia satisfazer-se de um novo aqui: 0 exotismo nao € a transcendéncia. Nao & proprio desta iltima ficar sempre distante, transgredindo as leis constitutivas de nossa espacialidade? Pois se 0 espaco de nossa vida é 0 que descreve, por exemplo, Heidegger, no qual todo objeto distante pode ser reaproximado gracas a nossa acdo, 0 horizonte, do, qual & impossivel aproximar-se, nao é um objeto espacial. Ele contesta a solidariedade do ver e do mover-se, a correlagio entre tomada e percepcao. Para dizer a verdade, ele nao é um luger: € por isso que ele nao se inscreve em nenhuma geografia, nem pode ser transferido para nenhum mapa, Lugar que € nao lugar, utopia do desejo, que nenhum deslocamento no espago permite alcancar. E talvez por ser ele para 0 movimento um objetivo inacessivel que ele torna-se para a fala um objeto privilegiado: na falta de poder transportar-se até ele, © poeta tentard aproximd-lo por metéforas. ‘S"Temo empresiaa esa expresso de Claudel, que a emprega em Musto de Tole er de Sarah 212 Conjunto No entanto, este nao lugar que € 0 horizonte funda a coesio do lugar, faz dele uma paisagem, ou seja, um conjunto homogéneo. E justa- mente por nio deixar ver tudo que a paisagem pode ser abarcada como uma fofalidad: coerente. Ela forma uma unidade que pode ser percebida com um golpe de vista, porque joga para a periferia toda uma massa de informagdes que o olher nao poderia assimilar. Todo conjunto define-se pela exclusio de um certo niimero de elementos heterogéneos. Impondo um limite a0 caos sensorial, 0 horizonte circunscreve um espaco unitério, no qual, como escreve Fontenelle, citado no Littré, “todos os objetos dispersados anteriormente se ret nem”. Assim, a linhado horizonte assume esta fungi de fechamento que, para a Gestalttheorie, é indispensivel & constituicao de uma “boa forma”, Bla cetca a paisagem com um “quadro” que a isola de qualquer ambiente suscetivel de impedir a percepgao de sua unidade interna. No interior deste quadro, 0 olhar s6 tem de relacionar um mimero limitado de formas e de cores: o olho torna-se artista, ¢ a paisagem “faz 0 quairo”. A parte da paisagem mais proxima do horizonte goza, por outro lado, de um inegivel privilégio estético. A principio, isto se deve ao fato di que o olho dispée do recuo necessério para uma “visio de conjunto em relacio a ela, Se nao ha paisagem sem distincia, é que apenas 0 distanciamento permite aos objetos rezgruparem-se sob o olhar. No entanto, para que a paisagem tenha “rosto”, € necessério também, conforme a outra lei perceptiva, que ela se transporte sobre um fundo. ‘Trata-se ainda de uma outra funcao do horizonte fornecer tal fundo, constitufdo pela extensio vazia do céa. As coisas que me cercam também destacam-se em um segunda plano; mas este é formado por outros objetos suscetiveis de tomarem-se, por sua vez, figuras. Hé, pois, em meu ambiente préximo, uma concorréncia permanente entre as coisas do primeiro plano e as do segundo, 0 que faz com que nenhuma se imponha definitivamente a meu olhar. Entretanto, a paisagem longinqua cestaca-se sobre um fundo mais ou menos neutro e, em todo caso, vazio de objetos: 0 céu que desce até o horizonte. Esse fundo celeste, ele proprio podendo ser reconvertido em figura, 44 uma visibilidade eminente e uma configuracdo excepcionalmente estavel aos objetos que nele se projetam; mas, ao mesmo tempo, ele 213 ‘08 coloca em relagao com o invisivel. Entao a paisagem anima-se da tensiio essencial aqualquer descoberta de arte, entre o advento de uma forma e sua abertura a um fundo abissal; ela forma um fodo, porque no hé nada a ser visto atrés dela, ‘A paisagem apresenta-se, assim, como unidade perceptiva.e estética, ‘mas também como unidade aberta de sentido. Se dizemos volunta~ riamente que a paisagem nos “fala”, néo é apenas porque o horizonte estabelece entre ela e nds, no modo de uma proximidace distante, uma {al intimidade que podemos projetar nele as grandes diregées signifi- cativas de nossa existéncia, é também porque ela propria parece fazer ssinal, ou se fazer sinal. Nao que ela constitua um sisiema semiético acabado e fechado nele mesmo, mas ela se organiza segundo certas estruturas que so também apelos de sentido, ¢ que a tornam apta a ser falada. Em particular, a linha de horizonte articula uma organi- zago da paisagem em torno de algumas grandes oposicdes binsrias, ‘compariveis aos pares antitéticos que estruturam o espaco semiintico da lingua, A mais evidente dessas articulagdes funcadoras é a que une o céu € a terra, mas diferenciando-os. E sendo confrontando-os ‘uma ao outro, de uma parte e de outra do horizonte, que essas duas extensGes amorfas tomam forma e sentido: a terra torna-se wma terra, ssa plenitude circunscrita ofertada a estada dos mortais, ¢ 0 ¢éu um ccéu, essa reserva de vazio e de imensidio que lhes é necessiria para aceitar os limites de seu territério e o excedente da realidade. A terra dé um rosto ao céu, 0 qual areja a composicao da paisagem. ‘Uma outta dessas disjungdes conjuntivas essenciais & elaboracio de tum sentido é sem dtivida a que opde o aqui da paisagem ao alhures do horizonte: “um lugar qualquer s6 pode ser abarcado se fixado em relago a um outro lugar [.... A apropriagéo de uma topia s6 é possivel postulando-se uma heterotopia”."° Esta antitese, levada & posi¢io do proprio corpo na paisagem, toma-se proxima ¢ longin- qua; e esta oposi¢ao espacial traduz-se imediatamente em termos temporais como dialética do presente e do porvir, e, na linguagem da intersubjetividade, como relagdo do Eu ao Outro, A relagio do corpo no horizonte constitui o eixo de uma verdadeira organizacio semantica do espaco, que repousa por sua vez em outras jungoes Re J Greimas. “Pour une sémotque topologique, dans Sémioriqe et Sciences sociales. Le Seu, 1976. 214 categoriais, como do vertical do hotizontal, do dentro e do fora, do englobado e do englobante. Enfim, todas essa redes de significados 86 se tornam possfveis pela relacio do conjunto assim criado em uma ‘margem que é da ondem do nao sentido; a paisagem constitui-se como totalidade significante apenas gracas a um elemento nao totalizével ¢ in-significante. Com efeito, 0 horizonte opde-se & paisagem como 0 negativo necessérioa emergéncia do positivo, como o fundo a figura, © invisivel ao visivel, o infinito ao finito Este censo, ineompleto, das categorias colocadas pela inscrigao no espaco de um horizonte basta para compreender-se que este nao se trata de um simples componente entre outros da paisagem, mas uma verdadeira estrutura, que condiciona aemergéncia de um “sentido dos sentidos”."” Essa “estrutura de horizonte” faz da paisagem um conjun- to pré-simbélico. Ohorizonte ¢ fabuleso na medida em que, para ele, © espaco é “poeticamente disposto” como “fabula dele mesmo”,"* ¢ presta-se a fabulagéo poética. Ele permite que se esboce, na propria paisagem, um sentido, todavia impede que esta se petrifique em um sistema fechado de significados. Ele nao constitui um “texto”, que bastaria decifrar, mas uma “fabula”, um enigma a ser interpretado. Essa interpretacao sera a principio um questionamento, pois os sig- nificados ligados aos fendmenos de horizonte sao essencialmente ambiguos assim que escapa de nossas andlises. Com efeito, para nés © horizonte surgiu como uma realidede eminentemente paradoxal, que transgride a maior parte das clivagens categoriais. Ele nfo é nem interno nem exteno. Ele nao pode estar localizado em nenhum ponto do espaco objetivo, no entanto, nao & uma ilusio de dtica puramente subjetiva: seu tragado depende ao mesmo tempo do ponto de vista do observador e do relevo da regio observada. Logo, o horizonte define ‘a paisagem como um lugar de troca eatre objeto e sujeito, como um espaco transit6rio, na articulagéo do dentro e do fora, mas também do Eu e do Outro. Efetivamente, ele pode ser vivido como 0 ultimo prolongamento de meu corpo; entretanto ele demarca o limite absoluto de seus poderes. Ele circunscreve um territério ao qual esto presos meus sentidos e movimentos, no entanto, continuando cle mesmo invisivel e inacessivel, introduz uma brecha incurével em minha soberania, Inscrevendo em meu ambiente a marca da alteridade, ele Ver in Straus, Vom Sinn der Sine. Salion Springer, eslin, 1935. ™ Michel Deguy. Acres: Gallimard, 1956.45 215 me despoja daquilo que, gracas a ele, eu acreditava possuir sozinho. Assim sendo, ele me arranca da ilusio de um espaco autarquico e da tirania do real, para abrit-me & dimensao do desejo e do possivel. No entanto, 0 recuo do horizonte, se ele funda a possibilidade de descobertas sempre novas, significa também a impossibilidade para o desejo de coincidirum dia com seu objeto. Principio deuma abertura infinita, ele é igualmente o selo de nosso fim. Assim, cle desposa 0 movimento de nossa existéncia, 0 qual é o de uma totalizacao nunca acabada. Ele faz de propria paisagem uma totalidade ineompleta: ele ‘a encerra na perfeicao de uma figura eminentemente visivel e legivel, mas esti & beira do invisivel e do ilimitado. ‘This sio as possibilidades de sentido inscritas na estrutura do fen6- meno. Seria também preciso que elas fossem cuidadas por todo um trabalho da lingua, para que o horizonte pudesse tornar-se um tema literdrio e, mais precisamente, poético. Ao longo de sua histéria, a lingua francesa tem explorado sucessivamente todas as virtualidades ambiguidades do horizonte. A palavra horizonte significava, ori ginalmente, a linha “que encerra nossa vista”®; progressivamente, 0 horizonte veio designar também o espaco visfvel que se estende aquém € 0 espaco invisivel que se esconde além. Esta extensio de sentido por metonimia € acompanhada de uma modificacao de suas conotacées. Esqueceu-se seu sentido etimol6gico, que o relaciona estreitamente & ideia de limite, ¢ associou-se cada vez mais frequentemente, a partir do século XVIII, & nocdo de infinito; aliangas de palavras tais como “horizonte sem limites” puderam surgir nos dicionérios, para grande desespero dos puristas. Por outro lado, desde que o horizonte tendes- se a confundir-se com o campo visual do sujeito, podia tornar-se a imagem do espaco oferecido 2 sua inteligéncia e & sue existéncia; ¢ em toda uma série de metéforas de uso comum, a palavra horizonte adquiriu um significado mais abstrato que concreto, mais temporal que espacial. Essa evolugio lexical surge fixa em suas grandes linhas por volta da metace do século XIX. O interesse erescente que, desde 0 romantismo, os poetas nio cessam de manifestar por esta palavra e por este motivo tio rico de sentidos miltiplos ¢ contreditérios parece-me testemunhar uma tomada de consciéncia cada vez mais nitida da solidariedade que une 0 sujeito 1 Ver, porexemplo, Richelet, Nowe ditionnaire francais, 1680, 216 a0 mundo, o espritual a0 corporal, 0 tempo ao espaco, o invisivel ao visivel. O horizonte simboliza a relagdo paradoxal que a poesia mantém com o sensivel, a ele abrindo-se para ultrapassé-lo e mudé- lo de lugar. Durante muito tempo. ele representou para os poetas rominticos 0 limiar de um Outro mundo, a imagem de um absoluto. ‘Todavia, atravessando a movimentada hist6ria do século XIX, a pa- lavra e 0 motivo foram pouco a pouco despojados de suas conotagdes sublimes. Para a consciéncia modema, confrontada com a morte de Deus e dos ideais, o horizonte passa a ser vazio. No entanto, cle continua fascinando, pois ¢ fabuloso: transbordanda toda representagio adquirida, inscrevendo o invisivel no visivel, ele Girige um apelo itresistivel & imaginacio e & escrita. O que os poetas modernos pedem ao horizonte quase nao é mais 0 acesso a um Outro mundo, mas a revelagio de que nosso mundo é diferente do que se cxé, pois ele recebe uma reserva inesgotavel de novas perspectivas; ‘do é mais a imagem semelhante de uma identidade propria, mas a distancia interior de uma intima alteridade. O poeta também encontra esse fundo insondiivel em sua travessia pela linguagem, que o remete de palavras em palavras, sem que nenhuma jamais coincida exata- mente com o que ele queria dizer. A fuga do horizonte expressa esta negatividade coma qual a linguagem poética encontra-se confrontada desde que nenhuma caugao teol6gica ou metatisica nao garanta mais a adequacao das palavras as coisas. Porque ela tornou-se “experiéncia dos limites”, aventura da linguagem arriscada aos confins do siléncio, ‘poesia moderna reconhece um parentesco secreto entre sua ambigao e esse horizonte que parece tracar, abeira do invisivel e do indizivel, uma primeira linha de eseri 217

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