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34 MIcHEL FOUCAULT PARA PENSAR O GENERO: SUJEITO E PODER a Michéle Riot-Sarcey! Os trabalhos de Michel Foucault, contemporineos dos movimentos feministas,influenciaram consideravelmente as tebricas do género. E para fanto, o trabalho do “historiador do pensamento”, como ele se autodefine, néo possui precisamente a relagéo de dominagio entre homens e mulheres Como objeto. Contudo, a area pela qual M. Foucault interessa-se, suas and- lises politicas da modernidade, seu olhar sobre os dispositivos de poderes, afastados das ideologias, abriram um caminho critico que numerosas pes. quisadoras usaram para trabalhar os conceitos foucaultianos. Sujeito/poder O essencial da reflexdo de M. Foucault consiste em “‘produzir uma historia dos diferentes modos de ‘subjetivagao do ser humano” (Foucault, 1984b, p.297) em um ambiente marcado pelas relagdes de poder entre os individuos ¢ pelos coletivos institucionais ou nao institucionais, Toda a dificuldade—e a invengao ~ do trabalho de M. Foucault encontra-se nessa ideia de subjetivacdo. O sujeito é apreendido em uma interago constante com a sociedade. “A constituicao de um sujeito nao é dada definitivamente, ' Este artigo, redigido paraa presente coleydoerespondendo i interpretacoanaitica comm ‘28s Propusemos, sri publcado, conforme o desej de sua autora simaltaneamente em une utra obra que la dirige.(N.O.) 554 MICHELE ROTSARCEY Nao é a partir dele que a verdade chega & histéria”; 0 sujeito “é, a cada instante, fundado e refundado pela histéria” (Foucault, 1994, p.540). Nao existe, efetivamente, sujeito neutro. Sabemos, com Frangois Guizot ¢, ‘mais ainda, com Karl Marx, que a historia é uma sucessio de relagées de forcas. M. Foucault, atento as diversas formas de alienagio e de servidio, preocupa-se em distinguir o modo como se perpetuam os diferentes dispo sitivos de hierarquia social. Ele procura, através de sua andlise das relages, de poder, decifrar um sistema de relagées, para além dos lagos estabelecidos entre o Estado ea sociedade. Em seu ponto de vista, 0 poder 6 um mundo de agio que se exerce sobre os individuos. Existe um conjunto de ages sobre as ages possiveis: ele opera sobre as possibilidades nas quais se inscreve o comportamento de sujeitos atuantes, Ele incita, ele induz, ele contorna, ele facilita ou dificulta, ele amplia ou limita, ele torna mais ou menos provavel. Ele pode até obrigar ou impedir totalmente, mas ele é sempre um modo de agir em um ou em varios sujeitos atuantes, e isso enquanto estiverem em condigdes de agir ou sao suscetiveis, deagir. Uma agao sobre aces (Foucault, 1984b, p.313). ‘Ao deslocar o olhar para as praticas de poder, lange do empirismo das ciéncias humanas, M. Foucault atualiza, nao a liberdade do sujeito sobe- ano, mas os “modos de objetivagdo que transformam os seres humanos em sujeitos” (Ibid., p.297). Sujeitos ao mesmo tempo submissos a0 outro e Jutando para uma nova subjetividade. Identidade/género Se, no modo de pensar de M. Foucault, as identidades eos papéis sociais sSo clasificados dentre as formagies histéricas, a construgdo da diferenca dos sexos nio aparece como dispositivo especifico da ordem social. Sujei- to e poder formam, contudo, o diptico essencial de sua andlise. Desde a Arqueologia do saber (1969) até O cuidado de si (1984a): eles foram obje- tos privilegiados para a compreensio da vida dos homens cuja maioria das agdes se desenrola “entre relagdes de poder e estratégias de afrontamento” (1984, p.319), © género permanece, porém, um cofceito estranho as anilises de M. Foucault. Estranho no campo das diferencas, mas estranhamente préximo . oe "MICHEL FOUCAULT PARA PENSAR 0 GENERO: SWETOEPODER 555 da problematica aberta pelo uso do conceito. Efetivamente, se considera- mos o género como uma ferramenta conceitual através da qual é possivel pensar as formas de poder que se exercem no modo de ser das mulheres, © laco manifesta-se patente. Principalmente porque o conceito ajuda a “desconstruix” a hierarquia social da qual um dos suportes se apoia nas identidades historicamente construidas feminino/masculino) que engendra [attacher] os individuos, mais frequentemente no duplo sentido do termo. O mundo modemo pelo qual M. Foucault interessa-se caracteriza-se, pri- ‘Meiramente, por regras penosas que se exercem sobre os individuos “livres” O paradoxo aparente torna-se inteligivel uz da historicidade de uma contradicio constitutiva das “democracias” contemporineas. Depois da Revolusao de 1789, poucos regimes foram capazes de questionar os princi- ios (liberdade, igualdade) que se tornaram a féferéncia do mundo modemno. Ora, a maioria dos governos confrenta-se com a desigualdade social cuja existéncia eles perpetuam através da construcéo das diferencas ditas naturals. Cida individuo é convidado a respeitar a identidade que o designa atribuindo-Ihe fungdes que comandam a ordem social. Assim consti- tuida, @ sociedade pode, entio, conciliar a igualdade dos principios com uma desigualdade concreta. Por essa razlo, a eficdcia do sistema se apoia, nao na contrariedade, mas no livre consentimento dos individuos que se introduzem no envelope identitério que lhes é imposto. O dispositive “classifica os individuos em categorias, designa-os por sua propria indi- vidualidade, amarrando-os em sua identidade, impondo-Ihes uma lei de verdade que eles devem conhecer e que os outros devem reconhecer nele” Para M.Foucault, “é uma forma de poder que transforma os individuos em sujeitos”, que se encontram, simultaneamente, submetidos ao outro e “amarrados a sua propria identidade” (Ibid., p.302-303). O grande mérito de M. Foucault foi ter esclarecido precisamente os modos de submissio dos individuos a regras de funcionamento que, a0 mesmo tempo, os ultrapassam e os limitam. Efetivamente, durante muito tempo, a lucidez de alguns se chocou ao muro do siléncio e da ineompreen- So. Sua resisténcia ndo podia ser percebida porque a situagéo e as pessoas apareciam como apropriadas as leis da “‘natureza”, em harmonia com as tradicdes, respeitosas da cultura e em adequagdo com as mentalidades, A distancia entre as palavras e as coisas era evidente quando a natureza ers ‘evocada para justificar a hierarquia entre os seres humanos. A referéncia 556 MICHELE RIOTSARCEY a determinaggo natural é ainda mais eficaz pelo fato de substituir-se, em nossa modernidade, a lei divina. Uma viséo singular do universal revela-se através de um uso reservado dos privilégios da liberdade, do qual so afas- tadas as categorias inferiorizadas, as mulheres em particular. Como nao aproximar os dizeres de M. Foucault sobre o proceso de identificagao dos individuos do modo de ver de Flora Tristan que, em sua época, deplora a “légica” de seus contemporineos: Nio conheso nada de tio poderoso quanto a lgica forgada, inevitavel, que desenrola-se de um principio instaurado ou da hipétese que o representa, ~ A inferioridade da mulher proclamada e estabelecida como principio, veiam que consequéncias desastrosa resultam disso para o bem universal de todos e de todas na humanidade (Tristan, 1842, p.191) Enunciado/discurso ‘Alémm da soberania dalei, M. Foucault apreendeu as estratégias do poder atuantes no centro das instituigées cuja utilidade publica impde-se incon- testavelmente: da escola a0 hospital, da prisio ao confessionério. Tentando distinguir a raridade dos enunciados para fazer surgir a “instancia do acon- tecimento anunciativo” (Foucault, 1969, p.41),0s individuos, sob controle, inclinam-se aos imperativos disciplinares conformando-se consciente- ‘mente ou nio, a um modo de ser, sem, portanto, submeterem-se a ordem social em vigor. M. Foucault descobre a “vontade da verdade como prodi- giosa maquinaria destinada a excluir” (Foucault, 1971, p.22). Ele atinge a ‘obra de um poder através das praticas discursivas eas ages concretas, pre- “ cisamente a partir do principio de verdade que se enuncia. “Todo sistema de educagéo (por exemplo) ¢ um modo politico de manuten¢io ou de modi- ficacéo da apropriagao dos discursos com os saberes e os poderes que eles levam consigo” (Ibid., p.46). ‘Os enunciados performativos transmitem-se naturalmente, como ‘uma heranca, aos individuos que se apropriam dos mesmos, no melhor } de suas capacidades. Eles impdem-se a todos e a cada um logicamente, e mais ninguém se preocupa em questiond-los. De tanto serem ditos e repe- \ ttidos, a injunséo, o principio, a fumgZo, o papel tornam-se realidades em MICHEL FOUCAULT PARA PENSAR 0 GENERO: SULEITOE PODER 557 si. Referimo-nos ao “dizem”. Retomado, transmitido pelos atores mais diversos, ele torna-se a verdade do momento. Por isso, cada um contribui com a construgao do verdadeiro social. Essa verdade, segundo M. Foucault, ‘tem como resultado uma relagio de fortas cujo centro nao € o Estado, masa associacao de uma competéncia em atgs no cotidiano das familias enas ins- tituigdes: um poder que se exerce em todos os niveis, em interagao com as formas de poder que emanam das autoridades. O poder suscita, combina, {guia e, acima de tudo, exerce-se antesde possiiir-se. Ele produz realidade e afirma-se somente ao efetuar-se, declara M. Foucault. O poder, percebido dessa forma, afeta o comportamento dos individuos. Dominagao/representagao Esse novo campo epistemologico foi amplamente explorado pelas pesquisadoras feministas para decifrar as relagdes de dominagao entre homens e mulheres. A contribuigao de M. Foucault aos estudos de género foi ter proposto uma visio das relagSes sociais cuja finalidade fugia as cléncias humanas. O movimento continuo e conflituoso no qual o poder ea resisténcia emaranham-se era acessivel as ditas ciéncias somente atra- ves das representagdes que ocultavam as construcées identitarias. Ora, 08 comportamentos individuais sd apenas os efeitos dessas construgdes. M. Foucault, ao dirigir sua atencéo as condigées de possibilidade das forma- ses contemporaneas da modernidade, interessou-se nao somente pelos comportamentos humanos, mas também pelo sistema que os comanda, pelo funcionamento do “homem vivo”. Pelo seu ponto de vista ‘A representasao nio é simplesmente um objeto para as ciéncias humanas, ela € propria érea das ciéncias humanas, em toda a sua extensio (..) diremos, entio, que a ciéneia humana existe (...) em todos os lugares onde a anlise, na dimensio especifica do inconsciente, das normas, das regras, dos conjuntos significantes que desvendam a consciéncia as condigdes de suas formas e de seus contetidos. Falar de ciéncias do homem em qualquer outro caso, é pura e simplesmente um termo inapropriado. (Foucault, 1966, p.376) 558 MicHeLeRIoTsaRceY Em outras palavras, M. Foucault pode desvendar o “império do signi- ficante” que recobria tradicionalmente as praticas reais de poderes. Ora, © significante impés-se as interpretagdes dos pesquisadores em ciéncias ) humanas. Sob sua sombra, 0 processo de produgdo dos papéis, fungdes e outras identidades, permanecia invisivel. Por exemplo, se transpomos 4 familia 0 que Vigiar e punir (1975) péde revelar sobre a prisio— verdadeira tecnologia através da qual a palavra remete, ndo a seu conteiido, o prisio- neiro, mas ao delinquente —, 0 conceito de familia, aparentemente neutro, recobriu durante muito tempo a funcao materna no centro da qual se encer- rou a mulher, individuo que se anula em beneficio da mie. Mie e mulher designam a mesma pessoa em fustio na mesma funcio familiar, 20 panto de as organizacdes que protegem a mie estarem convencidas de sustentar a mulher em seus direitos. Assim, as historiadoras, dando continuidade a diferentes organizacées de defesa dos interesses das farnilias que, na historia recente, haviam-se manifestado — das organizagdes cristas ao Partido Comu- nista , acreditaram falar das mulheres ao descreverem o destino das mies, ‘sem nunca questionar a submissio da mulher ao espago doméstico. Além do fato de as representagées terem sido muito frequentemente confundidas com uma realidade natural ou remetidas a um fendmeno de habitus, M. Foucault demonstrou os limites de uma anélise de um direito ou, methor ainda, a partir da aspiracio @ liberdade do cidadio soberano. Ora, a lei que com frequéncia concilia-se, como sabemos, com as ilegali- dades, é uma representacZo juridica supostamente do poder: ela esconde as relagées de forca, as estratégias, os agenciamentos diversos que obrigam os individuos a se conformarem com regras sociais. O exemplo da lei sobre a paridade & eloquente a esse respeito ; Desde 1946, a Constituiglo francesa inscreveu a igualdade de direito ‘no marmore dos principios. Uma segunda lei foi entio julgada necesséria para a aplicasio do direito. Ora, seus efeitos na realidade politica sdo ainda muito distantes do que foi enunciado pela lei! A soberania do cidadao livre acompanha-se de disciplina, de tecnologias que contribuem com a estru- turagio das relagées sociais. Nesse sentido, M. Foucault ofereceu uma perspectiva que a pesquisa feminista acompanhou abundantemente. Ao trabalhar, por exemplo, sobre as representacées do feminino, da materni- dade, da sexualidade, consideradas, até entio, como dados da histéria, as esquisadoras analisaram 0 processo histérico das construgées identitérias MICHEL FOUCAULT PARA PENSAR O GENERO: SUIETOE PODER 559 ¢ interpretaram as praticas de poder que resultaram disso. A historia tem. varios exemplos de formagées, de agenciamentos, de organizagies de rela- ‘es sociais sem uma ligacdo direta coma legislacdo. Fora da lei, com efei diferentes dispositivos constantemente renovados atribuem papéis sociais subalternos 2os grupos minorados cuja efetividade € frequentemente anulada pela manifestacio, em um mesmo movimento, dos discursos (- normativos que 08 valorizam. Desse po®tto de vista, as mulheres foram ao mesmo tempo objetos idolatrados e sujeitos submissos. va Soberania/género ‘A anélise de M. Foucault, em ruptura com a tradicao historicista e progressista, nio se preocupa em acompanhar a evolugao lenta do acesso a soberania cidada, mas esforga-se em compreender como os homens “governam” outros homens, inclusive no espago ptiblico democratico que ‘supunhacse ser 0 espaco onde exerce-se a soberania do povo. O conceito do aénero permitiu colocar a mesma questio do ponta de vista do governo das, “mulheres” por “homens”. Foi, inclusive, assim que o livro L’Histoive des femmes en Occident [A hist6ria das mulheres no Ocidente] foi introduzido por Michelle Perrot e Georges Duby: “No primeiro plano de suas preo- cupagies, ela situa o Gender, ou seja, as relagGes entre os sexos, ndo como , se estivessem inscritos na eternidade de uma natureza que no se pode | encontrar, mas como produtos de uma construcio social que deve ser des- { construida” (Duby e Perrot, 1991, v.1). \ Todos os comentadores concordam em afirmar que “a leitura de Fou- cault teve efeitos tedricos decisivos”. Geoff Elley foi um deles: Ela reorientou fundamentalmente a concepgao do poder, ao dissocia-la das _J concepgien tradicionais do governo edo Estado que privilegiam asinsttuigdes, assim como concepgbes sociologicas similares que dizem respeito a dominagio | declasse, em beneficio de uma concepcdo dispersa e descentrada do poder e de \\ sua "microfisica”. (Blley, 1992, p.171) Constatamos que a marca de M. Foucault perdura nos estudos de gé- nero norte-americanos, enquanto sua heranca diminui progressivamente 560 MICHELE ROFSARCEY na Franga. Devido, sem duivida, a um uso tardio do conceito de género na Franca, paradoxalmente, o conhecimento de M. Foucault passa pela inter- pretagdo de pesquisadoras como Judith Butler, a que beneficia, hoje, um vasto piblico gracas as excelentes tradugdes que a fizeram tornar-se co- nhecida além do mundo universitario. Impossivel citar todos os trabalhos nos quais a influéncia de M. Foucault desempenhou um papel, tanto pelo uso de conceitos como pelo método de anilise. Limitando-me as tradugbes francesas mais importantes, peguemos 0 artigo de Joan W. Scott, abundan. ‘temente citado, “Género, uma categoria titil na andlise histérica”: Precisamos substituir a nogéo de um poder social unificado, coerente & centralizado por algo que seja préximo do conceito de M. Foucault de poder, apreendido como constelagdes dispersas de relagbes desiguais, constituidas por um discurso nos “campos de forcas” sociais (...). O género é um primeiro modo de significarrelagdes de poder. (Scott, 1988, p.140-143) J. W. Scott, de fato, popularizou a referéncia de M. Foucault entre as historiadoras europeias, em particular com sua obra: La citoyenne para- doxale [A cidada paradoxal]. No preficio da edigéo francesa, sempre se referindo aos conceitos de M. Foucault, ela escreve: No que diz respeito ao “género”, pretendo reportar-me ao discurso da diferenga dos sexos. Ele nao refere-se simplesmente as ideias, mas também as instituigdes, as estruturas, as praticas cotidianas, como aos rituais, a tudo o que constitui as relagdes sociais. O discurso é um instrumento de organiza } io do mundo(...) O género €a organizagio social da diferenga sexual. (Scott, 1988, p.15) Mas foi sem davida Judith Butler que, melhor que ninguém, inspirou- -seno método do filésofo de quem ela teria, contudo, tirado a historicidade do seu pensamento. Em que medida as préticas reguladoras de formagdo e de divisao do género constituem a identidade, a coeréncia interna do sujeito e até mesmo a identi- dade da pessoa? Em que medida a identidade ¢ um ideal normativo e niio um fato descrtivo da experiéncia? E como as priticas reguladoras que governam 0 MICHEL FOUCAULT PARA PENSAR O GENERO: SWIETOE PODER 561 nero, governariam, também, a intligibilidade cultural das nogées de identi- dade? (Butler, 2005, p.84) O dilogo prossegue em sua obra sobre orelatode si: “A questo de Fou- cault continua sendo quem eu poderia ser, levando-se em conta o regime de verdade que determina minha ontologia? Contudo ele nao coloca a per- gunta especifica: quem € vocé?” (Butler, 2007, p.25). Em outras ‘palavras, Judith Butler tenta ultrapassar os limites de um determinismo ontolégico ‘social sobre o qual se teria encerrado o pensamento critico de M. Foucault. Ea questo permanece colocada: em funcao da viséo normativa do mundo, como conhecer-se a si mesmo sem o reconhecimento do outro? Além do questionamento, as ferramentas da andlise descritiva subsistem esfo dteis causa critica do género: do dispesitivo ao sistema, das estratégias a tecnologia. Sexualidade/género ‘A pesquisa feminista parece ter amplamente privilegiado seu livro Histé- ‘ria da sexualidade em detrimento de uma reflexio que a Arqueologia do saber ou As palavras e as coisas poderiam ter inspirado. E verdade que as mudan- ‘as introduzidas pelos movimentos feministas dos anos 1970 conduziam cespontaneamente ao exame dos trabalhos sobre a sexualidade, levando-se em conta os interesses do momento. O controle do corpo, a atengio dada asi mesmo, eram, de algum modo, o caminho para uma liberaéo, inédita até entao. O proprio M. Foucault ressalta a contribuigio e a novidade do feminismo nas lutas relativas a reapropriagio do corpo: “Pafece-me perfeita- mente normal que no movimento politico que tende & recuperagao do corpo, encontremos movimentos para a liberago da mulher, assim como para a | hhomossexualidade, masculina ou feminina” (1974, p.537). Citando apenas um exemplo, Teresa de Lauretis jhteressa-se pela tecnologia do género. Pensar o género como tecnologia do sexo, inspirando-se na teoria da sexualidade de Michel Foucault e colocar a proposta fue o género, como representaso e autorrepresentacéo, é também o produto de tecnologias sociais variadas como 0 cinema e os discursos institucionalizados, as epis- temologias eas priticas critcas, assim como as prticas da vida cotidiana, | podem constituir um ponto de partida (De Lauretis, 2007, p.40). } 562 mice morsancey A reflexéo conduz a um conjunto de andlises em torno das novas téc- nicas para maximizar a vida, “essas técnicas implicavam a elaboragio de discurso (encontramos a mesma definigdo do discurso retomada por J. W. Scott) referente & sexualizagdo das criancas, do corpo feminino, da proctia- sao..." (Ibid., p. 63). O iinteresse recorrente levado ao que se conveio chamar de “o segundo Foucault” ligado & preocupacio contempordnea da emergéncia de noves subjetividades. Mas o foco na questdo do corpo e da sexualidade sem di- Vida contribuiu em contornar a questio politica da experiéncia individual, sempre apreendida, segundo M. Foucault, nas relagdes de poder. Nesse sentido, € dificil conceber uma distancia entre resisténcia e poder, ape- nas 0 cuidade cansigo mesmo permite resistir aos cédigos e a outras regras que envolvem 9 sujeito. A luta pela subjetividade passa primeiramen- te pela apropriagao de sua propria sexualidade. Ela supée um movimento || Permnanentede reconhecimento para tomnar-se apta em questionar as repre- } sentagbes cujo ego é 0 objeto. Pois, “onde existe poder, existe resistencia e ®\(-) portanto, ou talvez por isso mesmo, essa tiltima nunca esteja em po- / sigdo de exterioridade em relagio ao poder” (Foucault, 1976, p.125-126), Ora, a existéncia do ‘Poder como sua reprodugio nao é 0 ‘apandgio das cate- gorias dominantes. Ao seguir a lgica de “La vie des hommes infimes” (A vida dos homens infames] como exemplo, “o poder investe os domina- dos, passa por eles e através deles, apoia-se neles, assim como eles prdprios em sua luta contra ele, apoiam-se, por sua vez, no dominio que ele exer- ce sobre eles” (Foucault, 1977, p.35). Solicitado por todos, inclusive pelos mais pobres, ele reproduz-se e estende-se incessantemente. A. integracio das formas de resisténcia participa do poder, a0 ponto dea ideia de emanci- ‘Paso parecer-Ihe um pouco estranha ao pensamento de Foucault. Experiéncias/estratégias/resisténcias As mais frequentes criticas formuladas ressaltam que o género, em sua construcdo normativa, pode apoiar-se nas elaboragées tedricas de M. Foucault, masa influéncia do historiador do pensamento parece parar nos 2 A wontade de saber (Foucault, 1976) a referénca privilegiada da autora [MICHEL FOUCAULT PARA PENSAR 0 GENERO: SWIETOE PODER 563 limites da experiéncia feminista individual. Algo muito duvidoso! Efeti- vamente, durante muito tempo M. Foucault interessou-se pelo processo de reproducao e de propagagao do discurso que o poder constréi, modela e reatualiza. Em um tipo de discursc{sobre o sexo, em um modo de extorsio da verdade ‘que surge historicamente orem lugares determinados (em torno do corpo da crianga, sobre o sexo da mulher, no momento das priticas de restrigdes dos nascimentos etc), quais #80 as relagdes de poder mais imediatas, mais locais ‘que ce encontram em acio™Como elas tornam possivel esses tipos de discurso «, inversamente, como esse discursos podem servir-Ihes de suporte? Como 0 {ogo dessas relagbes de poder encontra-se modificado (..., de tal mado que nao ‘ocorreu nenhum tipo de submissdo estavel, dada definitivamente? Como essas, relagbes de poder ligam-se umas is outras, segundo a logica de uma estratégia ‘global que assume respectivamente a forma de uma politica unitaria e volunta- rista do sexo? (Ibid., p.129) Essa reflexo 6 essencial para quem quiser compreender como e por que, apesar das resisténcias individuais e coletivas, a hierarquia de sexos perpetua-se renovando-se. Basta, por exemplo, ressaltar a importancia das ‘edges de livros sobre a educacdo das meninas — obra de mulheres -, livros que foram redigidos conforme as normas mais estritas, perfeitamente res- | Peitosas das identidades reservadas a cada sexo e sobre as quais se exerciam diversas influéncias, cujos textos de Jean-Jacques Rousseau sao alguns dos grandes exemplos. “Uma mulher, fora de sua casa, perde seu mais relu- | zente brilho; e despojada de seus verdadeiros ornamentos, ela mostra-se com indecéncia” (Rousseau, 1954 [1762], p.193). Essa ideia, incansavel- mente repetida no decorrer dos séculos XIX e XX, foi usada como suporte fundador do dispositive hierarquico. Expressdo de uma relagio de poder, ela foi retomada e transmitida por mulheres, elas préprias dominadas e, as veres até conscientes de sua dominagio. A anilise das contrariedades interiorizadas pelos sujeitos atuantes tem cconstituido 0 objeto dos mais inovadores estudos na pesquisa feminista ha varias décadas. Foi assim, por exemplo, que Nicole-Claude Mathieu pen- sou em 1985 sobre os “determinantes materiais e psiquicos da consciéncia 5": “Quando ceder nao é consentir” (Mathieu, 1991, dominada das mulheres’ 564 MICHELE ROTSARCEY p-131),elaafirma, mas se a resisténcia é mais estreitamente ligada ao poder, em cada érea social, ela pode assumir a forma de uma estratégia coletiva. © movimento ferninista dos anos 1970 é uma das manifestages mais concre- tas dessefato, Ora, desde 1976, M. Foucault constatava, em A vontade de saber: A vida, como objeto politico, foi, de alguma forma, tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que pretendia controlé-la. Foi a vida, mais ainda que © direito, que tornou-se o objeto de lutas politicas, mesmo se essas formulam- se através das afirmagies de direito. O “direito” a vida, ao corpo, a satide, a felicidade, a satisfagao das necessidades, o direito, além de todas as opressdes € “alieniagdes”, em encontrar o que somos e tudo o que podemos ser, esse direito, tao incompreensivel para o sistema juridico classico, foi a réplica politica a ‘todos os novos procedimentos de poder que também nao dependiam do direito tradicional da soberania (Foucault, 1976, p.191). { O que leva Gilles Deleuze, o maior conhecedor da obra de Foucault, a j afirmar: “A vida torna-se resisténcia ao poder quando o poder toma a vida como objeto” (Deleuze, 1986, p.86). Contudo, para analisar 0 processo de subjetivagio, 0 eixo da sexuali- dade que as pesquisadoras frequentemente privilegiam — eixo mais fecundo aparentemente —, é também um uso um pouco redutor da obra. Mesmo se admitimos que poder e sexualidade sao coextensivos. Segundo Judith Butler: Para Foucault, ser sexuado(a)¢ ser submisso(a)a um conjunto de regulagées , &fazer com que a lei que governa essas regulagfes constitua ao mesmo tempo o principio formador do sexo, do género, dos prazeres e dos desejos de ‘uma pessoa e 0 princfpio hermenéutico de interpretacdo de si. (Butler, 2005, | p.202) soci Nessa forma de submisslo, as condigdes de possibilidade de uma outra subjetividade, nao alienada, passa, sem duvida nenhuma, pelo controle da sexualidade, inclusive e sobretudo fora das normas impostas, n3o somente pela lei, mas também pela tradigio. As normas do género, os relatos que naturalizam o homem e @ mulher, a obrigagio da heterossexualidade sio, nto, desestabilizados. Em outras palavras, o modelo normativo perde sua eficacia e nfo tem mais razlo de existir. Mas se a sexualidade nao é a tinica "MICHEL FOUCAULT PARA PENSAR O GENERO: SUIEITO E PODER 565 forma de expresso da alienacdo, ela nao pode, como sabemos, ser a tnica saida possivel para a liberagdo do individuo. (Os tltimos textos de M. Foucault levam em conta as lutas que foram chamadas, em seu tempo, lutas de liberagio. Com efeito, o caminho da liberdade havia definitivamente transbordado a fronteira entre o privado €0 piblico, destruindo-a. A descoberta das condigies de possibilidades de uma liberdade real passava pela reconquista de si, no exterior das regras do politico que correspondiam a visio singular da universalidade. No se tratava mais de obter os mesmos direitos, mas dar-se as condigées de exercé-los ou, se preferirmos, o poder de exercé-los. Mas esse caminho, semeado de obsticulos, pode desaparecer, ser desviado para uma via sem sada ao adotar o ritmo da integragao das resisténcias ao poder. M. Foucault viu, contudo, nessas novas lutas, ndo uma oposicao frontal contra o poder de Estado ou das instituicées, mas uma reacio contra os “efeitos do poder” Trata-se de uma “série de oposigdes que se desenvolveram nestes tiltimos anos: a oposigao ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre seus filhos, da psiquiatria sobre seus doentes (...)”. Sao “Iutas transversais”, “imediatas”, que “questionam o estatuto do individuo”. Elas opéem-se a ‘uma “resisténcia” contra “os privilégios do saber”. Todas giram em torno da questdo “Quem somos?” e combatem tudo “o que liga o individuo a si ‘mesmo, assegurando, assim, sua submissio aos outros” (Foucault, 1984b, 301-303). Em vez de limitar-se a area da sexualidade, por mais alienante que seja, M. Foucault elucidava, desde As palavras e as coisas, 0 processo de sub. Jetivasio que, longe das lutas pelo principio de liberdade — cuja abstragio ocultava a distancia com a liberdade real - supunha questionat-se sobre 0 modo de ser no mundo. “Como seria possivel o homem pensar o que ele no Pensa?” (Foucault, 1966, p.334). A interrogacao prolonga-se sem a menor descontinuidade em suas aulas, ea obra de M. Foucault conduza essa refle- xo fundamental relativa a0 movimento de subjetivacio. A experiéncia individual, apreendida entre poder e resisténcia, nao lhe é suficiente, exceto uando se coloca constantemente & escuta do cuidado de si. Ao dar apalavra a Seneca, a quem haviam perguntado “O que é ser livre?” ele responde “ser livre é fugir da servidao, claro, mas servidio de qué? A servidio de si” (Foucault, 2001, p.260). M. Foucault demonstra, mais uma vez, a intera- ‘so entre poder ¢ resisténcia. Interagdo que cessa somente sob o controle 566 MICHELE ROTSARCEY do pensamento critico. Um pensamento atuante, além da experiéncia individual, quando a vida toma-se resistente ao poder. Como o ressalta Gilles Deleuze, “o pensamento pensa sua propria histéria (passada), mas para liberar-se do que ela pensa (presente) e poder, enfim, pensar diferen- temente”: um direito a “diferenca, a variago, & metamorfose” (Deleuze, 1986, p.127). E eu acrescentaria: a uma utopia possivel, a um outro mundo. Mas essa ideia ficou, sein davida, inacabada para M. Foucault. Referéncias bibliograticas BUTLER. J. Trouble dans le ggnre. Paris: La Découverte, 2005 (1990), Le rit de soi Paris: PUF, 2007 (2008). DELEUZE, G. Foucault, Paris: Minuit, 1986, [Ed. Bras.: Faucault. do Paulo: Brasi- Tiense, 2005.) DUBY, G.; PERROT, M. Ecrire l'histoire des femmes. In: SCHMITT-PANTEL, P. (dir). Histoire des femmes Vantiquité, Pars: Plon, v1, 1991, p. nfo numeradas. ELLEY, G. De I'histoire sociale au “tournant linguistique” dans l'historiographie anglo-américaine des années 1980. 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