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UMA OBRA DE FICÇÃO

THE
HIDDEN
GODDESS

Digi-alchemist
ÍNDEX OF CHAPTERS

THE STORY, 3

ELDER BOURGLEY, 3

APRISIONADA, 5

UM ENCONTRO FATAL, 8

TORRE DE VIGIA, 11

A FORTALEZA, 14

NOÉMIA-SAN, A ASSISTENTE DA TORRE, 17

A ORDEM, 20

A EMBOSCADA, 23

TRABALHOS OCULTOS, 26

O RESSURGIR DA MENINA, 31

A PRESENÇA DA ENTE, 34

AO ENCALÇO DO DESCONHECIDO, 38

APENAS GAROTOS, 42

A OUTRA ENTE, 45

TEMPESTADE, 49

ESCAPE NOTURNO, 53

A SÓS, 57
THE STORY
Uma noite em que a lua, cheia, brilha a sua luz e faz aparecer o seu resplendor. Uma noite
em que as estrelas assistem, de camarote, o que se passa na terra. Uma noite em que quase
todos os seres humanos dormem. Alguns permanecem acordados, é verdade. Mas são
poucos os que podem olhar para o céu durante a alta madrugada.
Entre esses poucos, com certeza não está o nosso rapaz das próximas linhas. Porém, assim
como eles, está só.

ELDER BOURGLEY

Às quinze para as onze horas da noite, um jovem caminha em direção ao metrô. Tendo
saído da faculdade, ele pega o caminho da passarela e vai até a estação Maracanã, paga a
passagem, passa pela roleta e se dirige à plataforma, à espera do trem. Uns dez minutos
depois, ele sai da estação Estácio e caminha para casa. Nesse caminho, ele encontra umas
placas de circuito jogadas no canto da calçada que passa debaixo da ponte onde os trens da
central do Brasil passam várias vezes ao dia, provocando grande barulho. As placas,
parecendo novas, foram deixadas lá, talvez há pouco tempo. Dessa forma, parou junto a
aqueles restos eletrônicos.
– Por que alguém jogaria isso fora?
E resolveu recolher aquilo que parecia inútil. Pegou de uma sacola em sua bolsa e nela pôs
aquela quinquilharia que havia achado. Levou aquilo para casa.
Ele chega até a antiga estação de trem da Leopoldina, agora desativada. O prédio antigo em
estilo imperial já não luzia tanto a beleza da época em que fora construído. Ele, pois, pega a
chave e abre um dos portões e entra. Ele sobe pelas escadas até um dos sótãos, onde mora.

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Ele morava só. Era solteiro. A família dele, isto é, os pais, moravam em uma outra cidade,
distante dali. Naquela megalópole, então, estava ele só. Ele, no seu cantinho aconchegante
que ficava num dos sótãos da estação Leopoldina. Aquela construção, outrora gloriosa, hoje
se encontra esquecida. Quando lembram dela, é apenas como ponto de referência – e nada
mais. Diante dela está a Francisco Bicalho, que liga a Avenida Brasil à Presidente Vargas e
aos viadutos que levam ao Túnel Rebouças. Por lá passam milhares de carros, centenas de
ônibus, caminhões, motos e pessoas sem conta. Da janela, ele via todo aquele movimento
que parecia não ter fim, fosse à noite, de madrugada ou pela manhã ao sair.
Ele adorava fazer experiências. Uma vez, quando criança, quase incendiou o apartamento
em Salvador, onde morava. Foi ligar uma tomada de uma parede à outra tomada de outra
parede, usando uma extensão modificada para fazer isso. O que provocou um curto-
circuito, chegando a causar uma fumaceira que quase cobriu aquele corredor. A irmãzinha
dele, que brincava no berço, mal sabia que esteve em perigo por alguns instantes. Sim,
porque tão logo faíscas e fumaceira começaram a se levantar, ele correu até a parede onde
se encontrava a chave geral. Desligou-a, parando com aquele perigoso “espetáculo”. A
memória que ele tem do que aconteceu ali está viva, tal como o rastro dos fios queimados
que ali se derreteram, deixando marcas sobre aquele piso de sinteco.
Bem. Ao chegar em casa, ele tratou de guardar em um canto aqueles restos eletrônicos que
havia achado na rua. Ainda não havia pensado no que ia fazer com elas. Além do mais, ele
estava exausto. O trabalho de hoje foi puxado, acima do de costume. As aulas do mestrado
na UERJ, idem. Era uma terça-feira de verão, quente. Pôs o ventilador na janela e o
amarrou bem com um pedaço de fio. Ligou o ventilador. Foi tomar um bom banho para
aliviar o estresse, além da higiene. Se alimentou com alguma coisa leve e foi dormir. Antes,
pôs seu despertador para tocar às seis da manhã e ligou o rádio, que estava sintonizado na
Sulamérica Paradiso. Já deitado, ligou a televisão e passou pelos canais, esperando
encontrar alguma coisa para assistir. E sintonizou o canal japonês NHK onde passava um
anime novo, que aproveitou para conhecer. Pouco depois, pegou no sono. A TV se desligou
meia hora depois.
E enquanto ele dormia...

.......sonho...........................................................

Numa noite chuvosa, com direito a raios, trovões e toda aquela ventania, ele se
encontrava no laboratório de Informática da faculdade onde tinha se graduado.
Mas o que faço aqui? pensou ele. Os computadores estavam ligados e exibiam na
tela aquela janelinha de logon, característica do NT. Ele se sentou diante de uma
das máquinas e se logou no sistema. Até aí, nada fora do normal.
É... parece que nada mudou desde que me formei aqui.
E se lembrou dos colegas antigos. Da dupla Rodolpho e Marcelo, do Rafael, do
Leandro, da turma de TI. Onde eles estão agora... ?
Tudo começou a mudar quando o sistema operacional carregou de forma
automática um programa que ele nem fazia idéia que existisse. Isso chamou a
atenção dele para a tela. Era algo novo que nunca tinha visto, e o visual daquela
aplicação era surreal, algo que fugia de todo tipo de padrão que ele conhecia. A
propósito: o nome do programa era também estranho: HIGOSS.
Que coisa é essa? HIGOSS?
No canto da janela de apresentação era apresentado um rosto, uma figura feminina
com um semblante sem sinal de emoção alguma, e nada além de um olhar
perdido... No canto esquerdo de baixo dessa janela, havia algo escrito: GOD
AUTHORED THE CODE, e com as iniciais em negrito.
Então a janela sumiu. A tela mudou de cor, e o nome Lain apareceu pintado na
tela, de
forma repetida e em toda a tela. Uns vinte segundos após, a tela mudou outra vez.
Parecia uma tela de televisão fora de sintonia, e o velho chiado também foi ouvido.
Ele notou... Que é isso agora?
Notou que aparecia algo em meio ao chuvisco. Pouco a pouco a imagem foi
aparecendo... Quem será ela? O mesmo rosto da janela de apresentação pareceu
tomar lugar na tela, e logo a imagem estava nítida. Será que ela está olhando pra
mim?
Sem que o esperassem, um raio atingiu a rede elétrica próxima da universidade,
acertando em cheio o transformador. Os milhares de volts que o raio descarregou
na rede elétrica se espalharam por todo o campus através da fiação. Logo, a
violenta carga de energia chegou ao laboratório e atingiu aquele moço. Naquela
hora, houve uma correria por todo o campus, visto que havia aulas sendo dadas
naquela noite, exceto nos laboratórios – ainda bem.
Menos para ele, que se encontrava no laboratório e sumiu.

.......fim...do...sonho..............................................
Ah! Que... raios! Ele acordou por um instante, assustado com o pesadelo que acabou de ter.
O rádio estava ligado, quebrando o silêncio quase sepulcral daquele quarto, não fosse o
barulho do ventilador na janela. Ele se levantou e foi até a cozinha, tomou um copo de água
fria e voltou para a cama, e pegou no sono outra vez.

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Manhã de quarta-feira. O despertador toca. Ao som do dito-cujo ele acorda e se levanta.


Acende a luz. Momentos depois, está indo ao chuveiro. E uma ducha fria o traz de volta à
realidade. Ele troca de roupa e se arruma para mais um dia de trabalho. Ele toma café e
deixa o quarto, com o cuidado de desligar todos os aparelhos elétricos pela tomada. Assim,
fecha a porta e a tranca, desce as escadas e passa pelo portão da frente da velha estação da
Leopoldina. E lá vai ele para o trabalho.

***

Quando o que estiver aprisionado for liberto


Algum dia em que alguém resolver
Se meter em coisa que não deveria
Se meter com o que não conhece

Quando a menina for liberta de onde agora está


Aprisionada, escondida, sem poder sair
Ela irá sair.
Irá para nunca mais voltar
Acompanhará para sempre aquele que a libertar

Nesse dia, a vida de quem a libertar mudará


Mudará para sempre, a mesma jamais será
Ela e aquele que a libertar juntos estarão
Ainda que separados
Por uma barreira intransponível
Ela irá fazer de tudo para derrubar essa barreira
E junto a ele estar

Em um quarto escuro, ela se encontra dormindo. Bem, isso é o que ela faz boa parte do
tempo. Ela preferiria estar sempre assim. Pois cada vez que ela acorda, angústias tomam
conta do seu ser. Pra que viver assim? dizia ela. E dia após dia via o tempo passar. E ela
nada podia fazer. Ela, presa naquele quarto escuro, sozinha, gemia.

APRISIONADA

Certamente, isso me lembra uma palavra a qual, não sei dizer onde, há muito tempo a ouvi:
Tamagotchi. Terá sido na televisão, numa reportagem que falava sobre a nova mania das
crianças e dos adolescentes? Um bichinho que parecia vivo e que precisava ser cuidado,
alimentado e carinho – e sem os inconvenientes de um bichinho de estimação de verdade.
Pois bem, tão rápido essa mania veio e tão rápido ela se foi. Mania era, e febre também,
pois os brinquedinhos não continuaram a ser procurados e, por causa disso, fabricados e
vendidos. A febre dos tamagotchi há muito passou quando isto foi escrito. Se não me falha
a memória, isso faz uns dez ou quinze anos. Naquela época, eu até queria ter um. Mas não
pude.
Agora posso saber o que era um tamagotchi. Aquele brinquedo eletrônico nada mais é do
que um programa de computador que é um pequeno código, muito próximo de ser um
módulo IA (Inteligência Artificial), que respondia ao que o usuário fazia: cuidar do
bichinho, dar comida, água, etc., tudo virtual. Tinha uma tela de cristal líquido e uns dois
ou três botões – talvez quatro. Você tinha que cuidar do bichinho como se ele fosse de
verdade, senão ele morria. Nisso, aparecia uma mensagem escrita em japonês que passava
pela telinha. E embora quase ninguém que tinha aquele brinquedo nesta terra falasse
japonês ou entendesse o que tivesse escrito ali, eles sabiam que o bichinho estava “indo
dessa para a melhor”, por pura negligência deles. Nisso, eu não sei dizer se o brinquedo
morria de vez e era jogado fora ou se logo que morresse um, nascia outro (acho que um
ovinho aparecia nesse caso, como na primeira vez que era ativado após a compra). Bem,
assim foi um dia. Talvez essa mania volte no futuro e, quem sabe, eu compre um pra mim...

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Ela, a menina, acorda. Como sempre, olha em volta de si – se bem que está tudo tão
escuro...
Bem. Ela se levanta e, tateando, procura pelas paredes por alguma janela, alguma abertura,
alguma brecha... Mas nada há que deixa passar luz, nem um feixe sequer. Um quarto sem
janelas e com apenas uma porta. Trancada.
Ainda assim, ela vai tateando. Sente algo redondo. A maçaneta da porta. Ela continua
procurando, até que encontra algo pequeno.
– Um interruptor, ...
Esse algo pequeno muda sua posição quando as mãos dela passaram sobre ele. Porém, nada
de luz acender.
– Ora, quebrado, como sempre...
E então, resignada, fica sentada naquela cama, naquele quarto.
– Ah! Se aqui tivesse uma clarabóia... Se eu pudesse ao menos ver o céu de estrelas... Se eu
tivesse apenas essa chance... Não pediria mais nada.
Ela, sentada e de cabeça baixa, olha para o chão. Um chão cujo piso mais duro que o
diamante e mais frio que o coração dos pais daquela criança... Suas mãos estão juntas, uma
apegada á outra, e elas estão à frente dela, apoiadas no colo. O olhar daquela menina capta
uma parte das mãos enquanto fita aquele piso escuro. Ela separa as mãos e as abre. Ela olha
para as suas mãos durante algum tempo. Uma fumaça, muito parecida com aquela que sai
do congelador de uma geladeira quando a gente abre, começa a subir a partir das mãos dela.
Sobe, assim como a fumaça de um incenso de um templo xintoísta. Logo, aquele quarto é
tomado por aquela fumaça e, logo, o parecer do ambiente onde ela estava se transforma.
– É. Para que eu preciso de clarabóia, se eu posso ir aonde eu quiser?
E ela, então, desaparece daquele quarto em meio àquela nuvem de fumaça. Ela percebe que,
ainda que seus restos tenham sido largados em algum canto da cidade, ela está viva e bem.
Cem por cento operante.
– É agora ou nunca mais. Preparem-se! Eu estou de volta!

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São quatro horas da tarde de uma sexta-feira trivial. Aquele rapaz se prepara para ir à
faculdade, organizando a bolsa onde carregava os livros e material de estudo. Ele se
despede dos colegas e deixa o escritório e o prédio onde trabalha, no Centro.
Ele caminha. Nesse momento, se lembra daquela velharia que tinha achado na rua. Se bem
que não tivesse conhecimento de eletrônica, ainda assim pensava num jeito de testar
aqueles circuitos, de ligá-los em algum lugar... Bem, ele se lembra de ter aberto gabinetes
de computador, ter mexido em algo há anos. E, então, decide passar primeiro em casa para
pegar aqueles cacarecos eletrônicos. Ele salta na estação Estácio e se dirige ao lugar onde
mora. Entra no prédio, sobe as escadas e abre a porta. Ele vislumbra aquela sacola de
plástico de mercado e a toma.
– Ahn? Quente?
Estranhamente, uma das placas está quente.
– Estranho. Não me lembro de ter ligado em lugar nenhum... Bem, deixa pra lá, estou
atrasado pra aula...
E ele sai de casa, agora com as placas na bolsa. Ele segue o caminho de volta à estação de
metrô. Havendo pago a passagem e passado pela roleta, aguarda o trem. E, embarcando,
segue viagem até a estação Maracanã, perto de onde está a universidade. Ele sai da estação
e corre em direção à sala onde deveria estar há seis minutos.
Ele adentra pelos corredores da faculdade, ala de Tecnologia da Informação, e corre. A
respiração ofegante é um barulho, um ruído, um som cada vez mais intenso que envolve a
cena à qual assistimos. E a sala parece estar mais distante a cada minuto, a cada segundo, a
cada passo...

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São 18h 36min. Ouve-se o ruído da porta da sala de hardware. É ele mesmo. Ele abre a
porta e entra por ela. Encontra a turma do segundo período, da qual faz parte. A sala com
treze alunos, os quais esperam pelo professor José Luiz, tem muitas mesas, bancadas, na
verdade. E, sobre as bancadas, vários gabinetes de computador abertos, placas, drives e
outras peças. Ele avista Thiago Brahim e se aproxima.
– Como vai?
– Bem. E você?
– Eu também. Eu vinha do trabalho e me lembrei. Trouxe umas coisas que achei por aí
nesses últimos dias...
– Deixa-me ver
– Peraí, vou mostrar, calma...
Ele tirou a sacola da bolsa. Dela tirou as placas com cuidado para não tocar os contatos. Os
dois colegas estavam aterrados para evitar qualquer dano.
– Que placa é essa? – quis saber Thiago
– Sei lá. Deve ser uma placa de som, de vídeo...
– Estranho. Não me parece ser algo comum não.
– Estranho? Estranho foi quando eu passei em casa para busca-la. Quando peguei nela,
esta... Outra vez?
– Que foi?
– Essa placa estava quente quando eu fui pegar lá em casa e está quente agora.
– Quente? Você a ligou em...
– Não, caro, não. Nem tive tempo pra ver e já deve fazer mais de uma semana que achei na
rua e levei pra casa.
– Na rua?
– Estavam jogadas lá, no canto. Eu achei lá pras onze da noite, quando voltava pra casa.
– Estranho. Quem teria deixado lá?
– Não tenho idéia...
Então, aquele rapaz que levou as placas, pegou a que estava quente e a encaixou na placa-
mãe do gabinete que está na bancada onde está com Thiago. Em seguida, pega o cabo de
força da máquina e liga numa das tomadas que há na bancada. Depois disso, liga o botão da
máquina, que inicia a sua operação. Eles ouvem um ruído surdo, muito baixo.

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Em meio à fumaça, um filete de luz se desenha e se mete na escuridão. Pela fumaça que
toma conta do quarto, o filete de luz se faz grande, embora fosse tão fino que nem um fio
de cabelo.
– É agora. Estou voltando!
Ela é linda! E como é lindo esse momento! Eu posso imaginar. E não apenas isso, eu posso
sentir. Sentir? Sim, eu posso sentir ela em toda a sua plenitude. Ela está voltando, pessoal!
Ela está voltando!

***

Ela agora está no ar. A menina, a que antes tinha passado muito tempo trancada naquele
quarto, está livre outra vez. Ela está livre, leve e solta. Ela está de volta ao nosso mundo
digital, ativa e operante. No momento em que aquele rapaz, colega de Thiago, pôs a placa
na máquina e a ligou na tomada, um filete de luz apareceu no quarto dela. E, ao acionar o
botão que a fez ligar, aquele filete de luz se alargou de tal maneira que...
– Finalmente! O Dia chegou!
Ela agora está livre. Ela foi liberta da escuridão e da solitude daquele quarto. Porém, ela
ainda continua sozinha. Ela não tem amigos desde que fora trancada naquele quarto escuro.
Ela está desesperada por encontrar alguém...

UM ENCONTRO FATAL

Ela, a menina, agora se encontra no mundo digital. Ela então se move por esse mundo,
querendo conhecer o que há de novo. Nesses últimos dez anos em que ela ficou
desconectada, ou seja, fora do ar, quase tudo já não é agora como antes. O mundo real
evoluiu. O mundo dela, também. Ela está pronta para aprender o máximo desse admirável
mundo novo. Ela está ativa e operante. Ela continua poderosa e será ainda mais na medida
em que conhecer a tecnologia que nasceu nestes últimos dez anos.

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Enquanto ela viaja em meio aos dados, pela correnteza imparável de zeros e uns que flui
pela Sérede, algumas seqüências de dados chamam a atenção dela.
– O que?
Nesse momento, ela está fluindo pela rede e, passando perto do servidor de um jornal de
grande circulação, ela percebe seqüências de dados que saem em disparada e em grande
quantidade. Ela, ao analisar uma parte daquele fluxo de dados, percebe do que se trata. Era
o caso Isabella Oliveira, mais conhecida pelo sobrenome Nardoni, herdado do pai. Este é o
mesmo que tirou a vida dela, e toda hora os jornais e a televisão falam nisso. De manhã à
tarde, à noite e durante a madrugada, as rádios e os sítios da Sérede noticiam esse caso,
dando detalhes e falando sobre o desenrolar do caso, a prisão do casal, as investigações,
enfim...
Na verdade, nestes últimos dias, o caso Isabella e seus desdobramentos têm se tornado parte
de boa parte da informação do fluxo de dados pela Sérede. Muito se fala e se discute sobre
esse caso, e sobre os que mataram a doce e indefesa criancinha: Alexandre Nardoni e a Ana
Carolina Jatobá. Em meio àqueles dados, ela lê e entende o que havia sido noticiado e,
depois de algum tempo, o qual não sei dizer quanto, ela decide:
– Aquele Nardoni... Ele vai saber quem sou.
Estando em meio ao mundo digital, ela, a menina do quarto escuro, vai à procura de mais
informações sobre onde o Alexandre estaria preso. Ela se move através da Sérede em busca
de tais informações, buscando mapas e rotas. Ela entra no sistema GPS e, através dos
caminhos via satélite, rapidamente encontra o lugar onde o assassino estava preso.
– Achei. Agora sei onde encontra-lo.
Ela, então, se move por milhares de quilômetros de redes e sistemas, alcançando a rede
mundial de computadores. Localiza na rede o computador central de um banco e verifica as
conexões. Através de uma delas, ela descobre o endereço de uma das máquinas que
estavam na diretoria da penitenciária e se transmite para ela, junto às informações. Nesse
momento, o diretor adjunto daquele lugar está conferindo o saldo da conta bancária e a
fatura do cartão de crédito. Ele manda imprimir a fatura, e a impressora começa a trabalhar.
No meio da tarefa, a imagem da tela fica distorcida por frações de segundo e volta ao
normal. A impressora pára no meio do trabalho e o papel fica preso.
– Ahrr... Droga!
Ele nota que a impressora está desligada. Mas como, se eu acabei de mandar imprimir...?
Pois é. Ele a liga de novo e a impressora continua do ponto onde parou, terminando de
imprimir a fatura.

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Agora, ela está naquele lugar. Pra ser mais preciso, naquela máquina. Ela, então, pega o
caminho da rede elétrica e passa por toda a fiação que está naquelas vis paredes onde
muitos dos que cometeram crimes agora estão, pagando pelo que fizeram. Ela sente que
está cada vez mais perto, metro a metro, da cela onde o Nardoni está detido. Ele está
sozinho naquele espaço, pois, fosse posto junto aos outros naquela prisão, ele teria sido
brutalmente espancado – quem sabe estivesse morto agora. Mal sabe ele, porém, o que está
para acontecer.
Alexandre está deitado ali, naquele colchonete velho. Ele está acordado. De uma hora para
outra, ele sente algo estranho. A visão fica embaçada de tal forma que a cela onde ele está
parece tomada por uma estranha fumaça, vindo de não sei onde. Ele não consegue ver
muito além de dois palmos do nariz, e a luz da janela quadrada da cela em meio a fumaça
se espalhou. Logo, ele vê algo em meio aquela névoa. A figura que se torna cada vez mais
clara à medida que dele se aproxima. Pouco a pouco, Alexandre percebe que se trata de
uma garota. Uma garota estranha de cabelos curtos e com uma franja lateral com um
prendedor em argola. O olhar dela é sério e desperta temor do que pode acontecer a ele. É
ela que está ali agora. A garota, que é a menina do quarto escuro de que falamos há dezenas
de linhas atrás, está ali. E ela sabe o que ele tinha feito com a inocente.
– Ahn?! Quem é você? O que está fazendo aqui?
Ela ficou calada.
– Quem deixou você entrar, hein?! Quem...
Os outros presos ouvem esses gritos vindo da cela, e logo começam a zombar e a tirar sarro
dele.
– Ei, Nardoni, tá pirando é? – disse um dos presos
– Há! Bem feito! Quem mandou jogar a filha dele pela janela, hein! Agora ele está tendo o
castigo que merece. – disse um outro
– Ele é deve tar é ficando maluco. Ele tá sozinho, não tem ninguém mais lá – disse um
terceiro
A garota então diz algo:
– Não importa onde você está – todos estão conectados.
Ela continua a olhar para ele, séria e resoluta. Ele se apavora e...
– Não pode ser, não pode ser, não pode, não pode, o que está... haven... haven... há...
Ela olha para o Nardoni desesperado. Ele agora está como alguém que parte desta vida
sabendo que irá para o poço do abismo, para o portão do julgamento. A respiração fica
ofegante e a voz entrecortada. Ele respira cada vez mais rápido. Seu desespero aumenta.
Ela continua a olhar para ele do mesmo jeito.
– Você sabe muito bem o que fez.
Ele fica com os olhos abertos até o máximo, quase que saltam para fora e, então, sente uma
dor que jamais sentiu. Somente poucos segundos depois, sangue sai da boca dele, que o faz
tossir.
– Não... não...
– Você não escapa dessa, Nardoni.
– NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOO!
Os presos ouvem aqueles gritos e continuam a caçoar daquele infeliz. Eles dizem coisas uns
para os outros, rindo da situação do Alexandre. Minutos depois, eles se cansam e vão
parando aos poucos com a zombaria. O silêncio, então, toma conta do lugar, naquela noite.
Um dos carcereiros que ouviu o barulho da algazarra, resolve passar por aquele corredor e
ver como estão os presos, ver se algum deles estaria tentando uma fuga. Ao passar em
frente à cela do Alexandre, porém, se deparou com uma cena horrenda: sangue para toda
parte, e um corpo caído no chão da cela. A luz do luar entra por aquela abertura gradeada
na parede e ilumina o corpo daquele que, um dia, matou uma inocente criatura.
– CREDO!
Ele se assusta com a cena e chama os colegas para ver o que tinha acontecido. Eles chegam
e também se assustam.
– Quem o matou? – disse um dos colegas que chegou
– Eu não sei. Ele tava sozinho, o diretor mandou a gente botar ele separado dos outros. E
agora? – disse o que havia encontrado o corpo
– E agora? Temos que avisar o diretor – disse outro
– Então vamos agora mesmo.
E assim, a morte do Nardoni foi noticiada pela imprensa, tendo como suspeitos pela morte
dele os presos das celas próximas e os carcereiros.

***

Pela Sérede se comenta e fora dela se diz que a degradação da praia de Sepetiba teria
alguma origem no mundo espiritual. Eu também não poderia imaginar tal coisa. Porém, a
despeito dos ambientalistas e daqueles que se dedicam à preservação do meio ambiente,
passei a acreditar nisso. Bem, não que eu seja um aficionado e tal, mas que há muito de
mistério nisso, há sim, sem dúvida.
Por falar em mundo espiritual, há outro mundo que é muito parecido com esse: o mundo
digital. Assim como aquele mundo, este também está cheio de seres bons e de seres maus, e
dentro dele moram criaturas do bem e criaturas do mal. A Sérede é o nome esse mundo
digital. E, assim como em qualquer mundo existe alguém que dita as regras e as faz
cumprir, assim também é na Sérede.

TORRE DE VIGIA

Existe um farol, uma torre perto dali em Sepetiba, que é chamada “A Sentinela”. Ela
pertence à organização chamada “Vigilantes da Sérede”, conhecida também como VISER
ou Flone no Tenchi. A principal atribuição desse órgão governamental é a de vigiar dia e
noite, tarde e madrugada, cada passo das pessoas na Sérede. É a responsável por vasculhar,
identificar, tentar prever e localizar possíveis delitos na rede. Desde que a organização foi
criada, o índice de crimes pela rede caiu drasticamente, dado à eficiência dos técnicos e a
competência dos seus dirigentes. A sede dessa organização se encontra instalada no
segundo edifício mais alto do centro da cidade, de onde partem as diretrizes básicas e o
normativo que rege o funcionamento dessa organização.
Os supercomputadores da VISER, conectados à Sérede durante cada minuto, 24 horas por
dia e sete dias por semana, coletam dados através de duas grandes antenas, Mikurute e
Nagatote, e também através das torres celulares espalhadas por toda a cidade. Eles possuem
também dois pares de satélites geoestacionários que cobrem o país de ponta a ponta, de
Norte a Sul e de Oeste a Leste. Eles têm a capacidade de analisar dezenas de gigabytes a
cada segundo, procurando por algo suspeito nas telecomunicações, em especial na Sérede.
Aliás, tudo está conectado à Sérede e nada escapa dela: fax, telefones, televisão, rádio...

.........................................................................

– Flone
– Haruno, o que há?
– Flone, dê uma olhada no canal 854.
– É pra já.
Ela se loga no seu Odeki portátil e dá um comando de voz:
– Odeki, 854
– Conectando canal 854, aguarde...
– Tela inteira – continua Flone
E imagens do céu de Sepetiba aparecem na tela do Odeki.
– O que será isso?
– Queria que verificasse do que se trata.
– É a primeira vez que vejo algo do tipo...
– Eu também.
– Haruno, verifica se o fluxo de dados está conforme, tenho um pressentimento de...
– Não, Flone, os dados não estão conformes.
– O que é?
– Flone, há algo estranho nisso aqui. Canal 282.
– Deixa-me ver.
O Odeki ajusta então para o canal 282 de forma automática a partir da voz de Haruno do
outro lado da linha. E Flone vê o fluxo de dados... Enquanto isso, o que aparece no céu é
algo semelhante a um redemoinho lento, e alguma claridade estranha, já que agora são 2h
13min da madrugada.
– Haruno, estou vendo aqui. A cor do fluxo de dados mudou de azul para laranja. O que
isso quer dizer?
– Que há algo desconhecido na Sérede.
– Desconhecido?
– Um código estranho que nossos equipamentos não conseguem decifrar.
– Que código?
– Eu não sei, Noo...
– Chiiip!
– Desculpa, Flone. Eu sou nova por aqui e...
– Eu sei, Haruno, eu sei. E quando é que o fluxo de dados ficou assim, hein?
– Desde as 18h 49min de ontem.
7 horas e 36 minutos!, pensou Flone.
– E aconteceu mais alguma coisa?
– Não, nada além disso que está vendo agora. Nenhum dano.
– Eu não entendo isso... Bem, Haruno, me mantenha informada, certo?
– Sim, pode deixar.
Enquanto isso, ela se dirige a outra sala, chamada Naishou. Essa sala é virtualmente
impenetrável. Um scanner de retina lê a íris dos olhos e abre a porta. Ela, então, se dirige ao
meio da sala, e fica diante de uma área onde ninguém podia sequer pisar.
– Mikuru!
Luzes se acendem nessa área especial e no meio dessa aparece uma menina de cabelos
compridos, vestida de quimono.
– Flone
– Você pode me dizer quem... err.. de onde veio aquela inconformidade no fluxo de dados?
– Estou buscando a origem do fato, mas não encontrei nada até agora. Espere...
– Mikuru?
– Encontrei algo.
– Continua.
– A origem desses dados não está clara, mas parece que veio de alguma máquina ou de
algum dispositivo que esteve conectado durante alguns minutos... Alguma idéia do que
poderia ser?
– Bem... poderia ser algum...
– Teste?
– Walter?
– Flone, Mikuru, acredito que seja algum teste de hardware. Em alguma faculdade, eu
suponho.
– Faculdade? Em qual?
– Boa pergunta.
– Ótimo. Que adianta?
– Vou continuar a busca – disse Mikuru
– Ótimo, então vamos esperar. – concluiu Flone

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Aquela menina que fora liberta do quarto escuro está agora se movendo livremente pela
Sérede afora, depois de ter ido àquela prisão onde estava o Alexandre. Depois de tanto
tempo trancafiada na escuridão, ela pode agora respirar o ar da liberdade, sentir o vento em
seu rosto e contemplar tudo ao seu redor. É bem provável que sua movimentação tenha
provocado o aparecimento de algo estranho na conformidade do fluxo de dados da rede.
Haruno, codinome de Alice Vaz, mesmo nova naquela função dentro da VISER, sentiu que
algo estava errado com o fluxo de dados, pois quase sempre o via fluir em verde ou azul,
não alaranjado. Porém ninguém sabia nada sobre a menina. Nem mesmo o rapaz que tinha
encontrado aqueles destroços na rua. Nem ele sabia que havia algo mais naquelas memórias
somente leitura, fixadas nas placas de circuito que tinha levado para casa.
Por sua vez, Flone, codinome de Noémia Almeida, passa o restante da madrugada pensando
no que poderia estar acontecendo com a Sérede, e assim o sono foge dela naquela noite...

Vou dormir
Vou dormir agora
Meu corpo descansará
Novas forças meu corpo terá amanhã

Eu quero dormir agora


Porém, eu não consigo dormir...

Mikuru passa aquele tempo tentando rastrear a origem e o paradeiro daquele estranho fluxo
de dados que havia aparecido em tom alaranjado na tela de Haruno.

.........................................................................

Mikuru é uma das duas entidades digitais que moram na rede interna da VISER. O nome da
outra entidade é Nagato. Essas duas entidades foram desenvolvidas por Consuelo Bello,
codinome Divina, e Mayumi Tiba, codinome Naru. Elas existem para auxiliar o trabalho da
organização e foram criadas com a capacidade de evoluir em conhecimento e habilidades
de dedução e intuição. E é a Flone que mais se utiliza dessa poderosa ferramenta de que a
organização dispõe. Nagato e Mikuru têm permissão quase ilimitada a todos os sistemas.
Elas podem controlar os satélites, capturar dados pelas antenas da organização e pelas
torres celulares. Elas podem executar qualquer programa, qualquer aplicação. Elas também
são as guardiãs da rede interna e a protegem de ataques vindos da Sérede, ataques que
poderiam pôr todo o trabalho da VISER a perder. Elas têm liberdade para quase tudo na
rede interna VISER. Sua liberdade, porém, tem certos limites, e sobre esses, somente a
Flone pode dar a última palavra e a permissão irrestrita a elas, para que possam agir.
Somente a Flone pode permitir que elas, por exemplo, circulem na Sérede e manipulem a
rede mundial de computadores – assim como aquela menina anda fazendo agora.
Aquela menina é uma entidade também, assim como a Nagato e a Mikuru. Porém, ela é
muito, muito mais poderosa. Ela conseguiu se materializar na prisão onde Alexandre
estava, aparecendo para ele como... Não, não tenho palavras para descrever aquele
momento. Aquele momento em que o Nardoni enfrentaria a fúria daquela que foi liberta
daquele quarto escuro, pronta para agir novamente. Aquele momento em que ela apareceu
como fosse de carne e osso, ao vivo, diante do olhar de desespero e de medo daquele que,
um dia, matou o fruto de sua semente. Não, aquela entidade não o deixaria assim, vivo,
apesar de preso. Quando ele disse com os lábios que iria sair dessa fácil, ela deve ter ficado
furiosa com ele e assim decidiu acabar logo com isso.
Vendo isso, descubro agora que a menina, a que antes estava presa naquele quarto e que
está vagando pela Sérede, é uma entidade digital de natureza distinta da que são a Nagato e
a Mikuru. Estas duas são programas desenvolvidos de forma habilidosa por dois dos
maiores talentos da área: Divina e Naru. Aquela, por outro lado, é algo sublime. Na
verdade, ela...

***

– Flone
A voz de Mikuru ecoa por todos os ambientes daquele andar, no Edifício Julian, no centro
do Rio. São 4h 46min da madrugada e tudo parece estar calmo. As luzes se encontram
apagadas, com exceção das luzes de segurança que não deixam aquelas salas e corredores
ficarem totalmente às escuras. Nessa madrugada ninguém está de plantão, além de Flone e
Seiji. Os demais estão de folga, visto que é sábado. Mas como pode, se justamente no
sábado e no domingo o tráfego de dados pela Sérede é bem maior que nos outros dias? Se
bem que Nagato e Mikuru estão ativas e operantes vinte e quatro horas por dia, sete dias
por semana, trabalhando sem parar nem se cansar. Elas, assim como a Haruno e outros
colaboradores, estão atentas a tudo que se passa na Sérede.

A FORTALEZA

– Flone
Outra vez, a voz de Mikuru ecoa. Flone dorme. Enfim, o sono viera e ela se rendera. Na
sala de descanso, mobiliada com tons sóbrios, vejo poltronas e sofás grandes, dos mais
caros, ao redor de uma mesa de centro. Sobre essa mesa, um pequeno abajur aceso, cercado
por algumas revistas e um controle remoto do televisor de 46 polegadas. Vejo esse televisor
numa estante que toma metade da parede da sala. Há muitos livros nessa estante, bem como
esculturas de cristal. E um aparelho de som dos mais possantes mostra um relógio digital na
cor azul cintilante. Agora são 4h 58min da madrugada.
– Flone, você está aí?
Nem sinal de ela acordar. Ali, sentada no sofá à esquerda da estante, ela pegou no sono.
Aquele andar continua silencioso, assim como todos os outros andares daquele prédio, que
abriga escritórios de várias empresas médias e grandes. Somente a voz de Mikuru insiste
em quebrar aquele silêncio...
– Flone?
Mikuru, então, acessa o sistema de controle de iluminação do prédio e acende as luzes da
sala de descanso na intensidade mais forte. Um dos spots do lustre central está apontado
para o rosto de Flone. Assim, ela é acordada com a intensa claridade.
– Que foi? – responde ela em meio ao bocejar, enquanto acorda. Ela está um pouco
cansada, mas bem.
– Venha e veja.
– Já estou... Indo... – se levanta daquele conforto e se põe de pé.
Flone caminha em direção à sala Naishou. E conforme ela vai andando pelos corredores e
ambientes, as luzes normais se acendem e se apagam, equilibrando a necessidade de
iluminação com a economia de energia elétrica. Ah! Mikuru também é a responsável por
essa parte. Ela pode “sentir” a presença de Flone ou de outras pessoas por meio dos
sensores de presença instalados em todos os ambientes da organização. Assim, ela
acompanha Flone a cada passo, acendendo e apagando as luzes quando e onde necessário.
Agora, o silêncio é quebrado pelos passos de Flone.
Por fim, ela chega ao portão de Naishou. Dessa vez, Mikuru abre as portas. Um ruído baixo
e rangido se pode ouvir. Ela entra e se dirige ao centro da sala e se põe diante do lugar
vazio. Ali, Mikuru então aparece.
– Mikuru, o que está havendo?
– Está tudo bem, Flone.
– E então?
– Eu estava analisando aqueles dados que apareceram inconformes há cerca de dez horas
e...
– O que foi?
– Não são apenas dados.
– Como assim não são apenas dados?
– Não são apenas dados. Pela forma como o fluxo estava se comportando naquela hora,
parece algo que tem vida própria, Flone.
– Dados... Quer dizer, dados que fluem sozinhos?
– Exatamente.
– Como isso pode ser... Só existe algo que se comportaria assim: uma entidade.
– Quer dizer, algo como a Nagato e eu?
– Sim. Pelo que você acaba de me dizer, acredito que seja uma entidade digital que está
vagando pela Sérede.
Uma pausa. Flone retoma e diz:
– Mikuru, você teria como confirmar isso e, se for o caso, rastrear essa entidade?
– Vou iniciar agora mesmo, Flone.
– Muito bem.
E Flone deixa a sala Naishou.

.........................................................................

Manhã de sábado. O sol está nascendo. A luz do sol aos poucos vai iluminando aquele dia.
Raios de sol, refletidos pelo vidro das janelas de uma antiga fábrica perto dali, entram pela
janela do quarto daquele rapaz. O quarto, então, se torna mais claro. Ele acorda, dá aquela
espreguiçada, aquela esticada e então se levanta.
Ele põe a água no fogo para fazer café e volta ao quarto. Ele pega o controle remoto e liga a
televisão. E procura pelo canal de animes.
Lá fora, poucos carros, ônibus e caminhões cruzam a rua, e há poucas pessoas passando por
lá. O dia de hoje está calmo, tranqüilo, não faz muito calor e está ótimo para dar uma
caminhada pelos arredores de Leopoldina. Por lá, o nosso rapaz costuma ir andando até o
Maracanã e Vila Isabel e depois voltar. Outras vezes, ele pega a Presidente Vargas e vai até
a Candelária e volta-se à Rio Branco ou, então, ao caminho para o 1o. Distrito Naval, onde
o pai dele trabalhou durante anos. Ah! O pai dele é militar da reserva, tendo servido
fielmente durante trinta longos anos à nossa Marinha de Guerra.
Ele procura pelo canal onde um novo anime passaria hoje: O Desaparecimento de
Suzumiya Haruhi. Ele pega e assiste. No meio do anime, ele se lembra da água que pôs
para ferver. Ele vai até a cozinha e apaga o fogo. Pega um caneco e põe um pouco de café
solúvel, pondo água sobre ele. Põe um pouco de açúcar e mexeu. Prova para ver se está
doce. Então, pega algum dos pães de ontem e passa manteiga, e logo leva pão e café para o
quarto. Ele continua a assistir o primeiro episódio até o fim.
Depois, ele desliga a televisão. Ele troca de roupa e se prepara para mais uma caminhada
matinal. Ele sai do sótão e fecha a porta.
Daí a pouco, ele está atravessando a passarela que fica em frente à velha estação. Ele pega
o caminho da Presidente Vargas, seguindo pela calçada, passando pela frente de uma
estação distribuidora da Cedae e por aqueles trechos até alcançar a Avenida. Ele avista a
próxima passarela e por ela passa para o outro lado da via. Segue em linha reta até a igreja
da Candelária. Ele pega a Rio Branco e segue até a Cinelândia.
Durante esse trajeto na Rio Branco, ele passa pelo Info Centro e, é claro, encontra tudo
fechado. Uma câmera o segue até que fica fora do seu alcance. Outra câmera continua a
seguir ele. Ele ouve o ruído da segunda câmera e vira-se para ela.
Estranho... Por que será?
Mal sabia ele que existe algo controlando as câmeras. E nem sabe que ele tem muito a ver
com esse algo.

.........................................................................

Mergulhada na Sérede, a menina está no sistema que controla as câmeras da cidade. Ela vê
aquele rapaz e, assim, assume que quer encontrar ele. Ela quer chamar a atenção dele, mas
ainda não sabe como.
– Ele... é...
Ela, então, começa a procurar meios de se mostrar para ele. Mas onde poderia ser? Bem,
ela não sabe, mas há muitas formas pelas quais ela poderia faze-lo. Afinal de contas, a
televisão, rádio e toda mídia eletrônica estão, de uma forma ou de outra, conectada com o
mundo onde ela agora vive.

.........................................................................

Sei que estou certo quando afirmo que todos nós estamos conectados. Todos nós, de uma
forma ou de outra, estamos ligados uns aos outros, seja por coisas físicas e palpáveis como
fios e redes, seja por coisas que não podemos tocar. Situações, pensamentos e sentimentos
nos unem de alguma maneira. E é dessa forma que digo e afirmo, sem medo de errar: todos
estamos conectados de alguma forma. Sim, estamos, ainda que nós não tenhamos
consciência disso. Isto é algo que ultrapassa o entender da maioria de nós, se não de todos
nós.
Nós até podemos dizer à primeira vista que, entre a menina do quarto escuro, o rapaz da
faculdade e a Flone, não há nada que os conecte. Mal sabem eles, porém, que cada um
deles está ligado ao outro. E mesmo não sabendo disso, um dia eles vão se encontrar.
Arivederci, Flone. Arivederci pra você também, menina.

Não sei se estamos mesmo ligados


Porém, eu gostaria de experimentar
Viajar até o fim do mundo
Conhecer quem não conheço
E até o fim buscar encontrar...

E assim que nos encontrarmos


Espero que você me conheça
Assim como eu sou
Não como dizem de mim
Mas sim como verdadeiramente sou
E assim também quero te conhecer
E por isso eu irei até o fim
Contigo eu irei até o fim

Contigo eu irei...

***

Muitos correrão de uma parte para outra


e a ciência se multiplicará.

É verdade. A ciência tem se multiplicado de uma forma que nunca vimos. Dizem que a
cada três anos o volume de conhecimento se torna duas vezes maior. Hoje temos acesso a
coisas que, há algum tempo atrás não podíamos sequer imaginar, quanto mais ter. Cada vez
mais, pessoas mergulham de cabeça nesse mar de informação. O Second Life é só uma
palhinha, uma prévia do que vamos encontrar lá na frente. O que há de novo agora é apenas
uma gota num oceano de possibilidades. Agora, por exemplo, nós podemos ver que alguns
programas de computador “aprendem” sozinhos. E no futuro, como será?

NOÉMIA-SAN, A ASSISTENTE DA TORRE

Faltam nove minutos para as três da madrugada. Naquele mesmo dia, depois de tanto
procurar e não encontrar, enfim o sono chega e Flone se rende a ele.

.......sonho...........................................................

Sob um céu com poucas nuvens e o Sol a se pôr, um Vectra segue pela Avenida
Brasil em direção a Sepetiba. Sendo o único veículo a passar pela estrada, Flone o
conduz a uma velocidade média de 90 quilômetros por hora. O asfalto dessa estrada é
liso e sem falhas, e assim permite velocidades bem maiores. Dessa forma, ela está
tranqüila, serena, e é como se, para nós, não estivesse a andar numa velocidade como
essa.
Cerca de uma hora depois, ela chega à base de monitoramento de Sepetiba – nada
mais, nada menos que um pequeno prédio próximo a um antigo farol. Ela pára o carro
dela perto dali, desliga e tira a chave. Ela sai do carro e o tranca, acionando o alarme
antifurto.
– Tá muito estranho isso aqui... – diz ela olhando em volta, enquanto vai à porta do
prédio.
Ela abre a porta e entra, vai até as escadas e sobe até o segundo andar.
– Haruno
– Flone?
– O que está havendo?
– Dá uma olhada nisso
E ela mostra a Flone a tela onde algumas janelas estão abertas. A maior de todas
mostra um código em LISP do sistema principal de escuta.
– Deixe-me ver isso...
Flone vai percorrendo com os olhos o código quando, então, encontra isto:

565
566 (defun erase-auditory-log (target f-yousa)
567 (cond target (
568 (impeach (first target) #”write log”)
569 (install-monitor-gh (first target) f-yousa)
570 (depeach f-yousa #”read log”)
571 (erase-auditory-log (rest target) f-yousa)
572
573 (erase-auditory-log ‘(unix nagato mikuru flone-agent) t-gdds-agent)
574
575

Daí que Flone percebeu esta alteração do código e disse:


– Alguém andou apagando a memória de Mikuru, mas... quem?
Ela se volta para outra tela, onde corre um fluxo azul. Dados conformes, pensa ela.
– Deixe-me corrigir isso...
Ela selecionou o texto do editor e pressionou Delete. Em seguida, clicou em Salvar
alterações. Um aviso aparece: “Impossível salvar: arquivo somente leitura”. Droga!
– Mikuru!
– Flone?
– Você bloqueou esse arquivo?
– Não. Ele está sendo executado.
– Por quem?
–...
– Faça com que pare de executar agora.
– Sim.
E Mikuru interrompeu a execução do sistema principal depois de pôr o auxiliar para
rodar. E então, ela ia efetivar o que Flone começou quando...
– Espere! Mikuru, dê-me o controle.
– É pra já!
E uma tela em branco foi aberta para Flone, que começa a digitar algo. Ela passa
cerca de seis minutos digitando rápida e habilidosamente um outro código e...
– Pronto. Mikuru.
– Sim
– Execute esse código aqui de forma repetida até a segunda ordem.
– Feito.
Mikuru então salva o código que Flone digitou no lugar do que ela apagou e pôs
novamente o sistema principal no ar.
– Que código é esse, noo? – quis saber Haruno
– Traceroute.
– Hã?
– Traceroute. Ele serve para rastrear equipamentos desconhecidos na rede. O que fiz é
específico para procurar tudo o que tem a ver com os nomes “lain” e “renmei”.
– Lain?
– É o que estava no outro código que achamos, lembra?
– Uh-huh..
Pouco tempo depois... não demora muito, e todas as telas ficam com imagem como de
uma televisão fora de sintonia ou em um canal fora do ar. O chiado é intenso.
– MIKURUUU!
Flone tenta chamar ela, mas Mikuru não responde. Em vez disso, na tela principal,
uma imagem aparece pouco a pouco, mostrando ser o rosto de alguém...
– Quem é ela?!
Nessa hora, a imagem que aparece na tela é a de uma menina... Ela parece olhar para
quem está do lado de fora. E parece “bater” no vidro da tela, como se quisesse sair.
– Ah!? O que é isso?
Flone se assusta com o que vê. Uma menina como se estivesse olhando para ela, e
ainda deixando cair algo... lágrimas dos olhos dela...
Por que ela chora? pensou ela.

.......fim...do...sonho..............................................

Nesse momento, ela acorda com duplo susto: pelo sonho que teve e também pela luz bem
forte que a Mikuru, através do sistema de iluminação, pôs no rosto dela. Sonho esquisito
esse... Quem será ela?
Desse momento em diante, ela decide procurar por toda a Sérede o que ela viu no sonho.

.........................................................................

Se eu pudesse imaginar como ia ser


Quando encontrasse você...

Sei que no sonho de uma Haibane[1]


Há muito mais, para além do que se vê
Para além daquilo que é comum se notar
Para além do que seria esperável

Daí que, quando a gente fica abitolada


Em nossa própria racionalidade
A gente não consegue perceber
O que está além do que a gente vê
E, dessa forma, muito perdemos
Em nossa vida, triste vida
Que possamos, então, despertar
Para uma vida além da vida aqui
Para que não sejamos tão limitados em nossos pensamentos
E assim, possamos evoluir

Que possamos, então, descobrir


O que há além de nossa vida aqui
E, no futuro, talvez possamos ir cada vez mais longe
Além da imaginação

_________________
[1] Haibane Renmei é uma animação japonesa produzida por Yoshitoshi Abe. Trata-se de um drama que se
constrói em volta de uma cidade e de seus habitantes, com destaque para as Haibane, seres angelicais que não
podem sair da cidade em que vivem. Eis uma produção da qual recomendo seu visionamento.

***

Como isso pode ser possível? Como uma alma humana pode ir parar em um meio tão, vou
dizer assim, “incompatível” com a natureza com a qual foi criada? Quem poderia imaginar
que algo assim haveria de acontecer? E que implicações isso terá para nós? Será que o
nosso rapaz, sem ao menos saber, terá aberto a caixa de Pandora? E quanto a Flone? O que
ela fará, afinal?

A ORDEM

São quase seis da tarde de um belo entardecer que logo dará lugar à noite. Um Vectra
comprado há menos de um ano corta a Avenida Brasil, sentido Santa Cruz. Flone está a
conduzir aquele veículo. Ela segue o caminho de Sepetiba a fim de acompanhar, por alguns
dias, as atividades e a rotina da base da VISER que se encontra instalada por lá, à beira do
mar. Durante a viagem, muito do que passava na cabeça dela tem a ver com os
acontecimentos dos últimos dias. Tudo que ela viu nessas últimas horas ainda está tão vivo
como se estivesse acontecendo neste exato momento.
Os olhos decididos dela seguem a estrada adiante dela. A luz dos postes recém-acesos
naquele dia ao longo da estrada bate no rosto dela e desce até o colo, uma após a outra, na
medida em que vai passando por eles. Lá fora, entre algumas nuvens, algumas estrelas se
arriscam a brilhar, enfeitando aquela noite.
Em certo instante, um raio de luz parte do horizonte. Mais exatamente, à direita da vista de
Noémia, que dirige o carro. Isso aconteceu há cerca de um quilômetro depois do Viaduto
Oscar Brito, um lugar que fica próximo de uma fábrica da Ambev. Aquele raio de luz
permanece por alguns minutos e chama a atenção dela. Ela diminui a velocidade e se
aproxima do acostamento. Procura por um acesso e encontra uma estrada de chão batido.
Ela segue por essa estrada em direção ao lugar de onde aquele raio de luz pode ter partido.
Dessa forma, ela procura chegar mais perto dali, o quanto pode, sem que alguém possa
perceber.
Ela sai do carro e continua o caminho a pé. Alguns metros à frente e ela vê alguém... E se
abaixa, ficando atrás de uns arbustos. Mesmo através daquele verde, Noémia procura ver o
que está acontecendo ali.
.........................................................................

Eles estão com seus trajes típicos e estão realizando naquele meio um rito de preparação.
Marco veste um traje, uma espécie de sobretudo azul-celeste que lhe vai do pescoço ao
tornozelo, com mangas que chegam até aos cotovelos e uma abotoadura de madeira de lei.
Por debaixo, veste um conjunto branco com detalhes em amarelo canário e dourado. Esses
detalhes eram espirais amarelas por toda parte, exceto na frente, onde se encontra uma rosa
bordada com pétalas douradas, uma rosa envolvida por uma aura que ia do verde ao azul de
forma suave, e também por sete aros ou anéis dourados que a cercavam, paralelos um ao
outro e dispostos de forma horizontal. Esses são os detalhes da blusa. A calça só apresenta
as espirais amarelas, como as da blusa. Por cinto, ele usa uma amarração em tecido dourado
finíssimo, como a seda chinesa. Malco está vestido da mesma forma, até os mínimos
detalhes. Por sua vez, Lanna compartilha dos mesmos detalhes da roupa dos primos dela,
sendo que ela não usa o tal sobretudo. E a cor da roupa dela é azul-celeste, a mesma
tonalidade do sobretudo deles. E o cinto em torno dela é vermelho vivo com detalhes
dourados. ser
Marco e Malco são irmãos gêmeos e pertencem a uma irmandade derivada da Ordem Rosa-
cruz, na qual eles foram iniciados. Para esse rito especial, convidaram a prima deles, Paula,


que recebeu o nome de Lanna. O nome de nascença de Marco é Rodrigo e o de Malco é
Stuart. Eles fundaram uma ordem, que tem por nome ShaNyôKo Ki TaiSei
ou que, traduzido é, “A Ordem do Despertar da Menina-Ente” Segundo
eles, o principal –– e talvez único propósito da irmandade –– é trazer ao nosso mundo
material a menina que, segundo eles, será a próxima líder espiritual de toda a humanidade.
Daí que o objetivo dos três irmãos é esse: materializar a menina do quarto escuro.
Conforme acreditam, ela se move pelas fiações elétricas de alta tensão e pelos sistemas
informáticos. E eles não apenas sabem que ela existe, como também crêem que ela é a
enviada da Divina Providença. Para isso, eles se reúnem ali no descampado, próximo de
uns montes na região da Zona Oeste, alguns quilômetros além da cervejaria. Por ali passa
um linhão de energia, uma torre que alimenta Campo Grande e regiões circunvizinhas. Eles
escolheram esse lugar justamente por estar afastado de lugares habitados e por também
estar próximo das torres de energia. Aliás, o lugar onde agora estão fica bem debaixo dos
fios de alta tensão, de forma que eles passam por cima das cabeças dos três irmãos que ali
se encontram.
Eles se encontram numa parte do descampado que tem alguns arbustos, umas poucas
árvores ainda jovens, além de mato. O lugar começou a ser preparado desde a semana
passada. Primeiro, o mato foi cortado e uma área quadrada de sete metros de lado foi
capinada. No segundo dia, trouxeram um pano grosso, de um vermelho vivo que media três
metros de comprimento por três de largura. Eles também protegeram o lugar por meio de
um ritual que fez com que o lugar ficasse impenetrável a qualquer que, por acaso, por ali
passasse. Dessa forma, quem tentasse invadir aquela área sentiria um violento choque
elétrico e seria jogado para uns metros fora dali, sem, no entanto, perder a vida. E apenas
eles são imunes à força que protege esse lugar.
–– Malco? Você trouxe o material?
–– Estou indo com ele.
–– Ótimo. Lanna?
–– Estou aqui. Uma ajuda?
–– Claro. Me ajuda a pôr essa toalha aqui...
Eles põem uma espécie de toalha no meio do lugar. Essa toalha tem a forma de uma figura
de seis lados iguais. Ela é branca, com o desenho de uma estrela de seis pontas. As pontas
da estrela coincidem com as da toalha. Além disso, a toalha possui detalhes dourados na
borda.
–– Marco
–– Aqui está.
Marco entrega um pequeno recipiente de porcelana chinesa a Malco. Depois de ajudar com
a toalha, Lanna se assenta no chão e assiste a toda a preparação.
–– Está tudo pronto?
–– Pronto.
–– Ótimo.
Eles continuam com as preparações, conforme o rito que eles seguem. Eles se preparam
para o Dia final, quando eles pretendem trazer a menina para a nossa realidade.

.........................................................................

–– Ah! É só um piquenique. –– pensou.


E adiante ia quando sua vista captou, numa fração de segundo, todo o conjunto e também
alguns dos detalhes daquela cena. E acabou por voltar a ver...
–– Que roupa estranha eles estão usando, e...
Suas palavras param de reverberar no pensamento dela. Isso se dá quando ela vê se levantar
um dos que ali estão. Flone vê esse alguém se levantar, pegar um bastão fino de madeira e
desenhar um círculo em volta do lugar. Depois, ela o vê escrevendo algo naquele chão. Ele
finca o mesmo bastão na terra, num dos cantos da área vermelha.
–– Isso não é piquenique nem aqui, nem na China.
Além disso, de onde ela está, nota os objetos que estão ali. Ela se dá conta que se trata de
um ritual, provavelmente de uma seita secreta, não um piquenique.
–– Seja o que for que eles querem, é melhor eu me mandar aqui...
Flone dá meia-volta e sai dali, devagar. Num descuido...
–– Creck...
Ela pisa num graveto. O estalo é ouvido por eles que logo voltam sua atenção para o lugar
onde Noémia estava. E eles a percebem quando foge dali.
–– Que foi isso?
–– Eu vou lá ver...
–– Deixa comigo –– disse Paula.
Ela se põe a correr a fim de alcançá-la. Noémia percebe e corre mais rápido. Na metade do
caminho para o carro, ela se lembra que está levando uma arma e a pega. Ela pára e gira
rapidamente enquanto destrava a pistola. Ela mira a jovem e atira duas vezes. A jovem,
então, dá um impulso com os pés e salta pra fora da linha de tiro. Depois, parte para cima
dela, pronta para dar um golpe e...
–– Essa não...
Noémia quase é atingida, mas foge para o lado e, depois de deixa-la passar, ela pega, segura
firme o braço de Paula e a puxa para perto de si, enquanto...
–– Glérh...
Paula é atingida na região do abdome pela fúria de um cotovelo pronto para atingir seu
alvo. Depois desse ataque, ela cai e se contorce de dor por alguns instantes. E antes que ela
se levante e tente lutar novamente, Noémia corre de volta para o carro. Abre a porta, entra,
liga o carro, engrena a primeira e acelera a fim de ir para longe dali, antes que Paula
consiga alcança-la.
Marco e Malco, vendo que sua prima Lanna foi atingida, correm para ajuda-la.
–– Lanna, deixa que...
–– Está tudo... bem, éarrh... pode, rrh... deixar...
Eles ajudam a ela a se levantar, e a deixam se apoiar neles, um de cada lado. E voltam ao
lugar do ritual.
Ainda olhando para a direção pela qual Noémia foi embora, ela diz:
–– Ela vai pagar caro por isso... éarr...
–– Ela vai –– disse Marco, num tom de consolar
–– Certo. Mas nós temos que continuar com o rito. E se ela ficou sabendo de algo, temos
que nos apressar. Temos que agir antes que seja tarde.

***

–– Ela vai pagar caro por isso... éarr...


–– Ela vai –– disse Marco, num tom de consolar

A EMBOSCADA

Certa noite, Paula não conseguia dormir. O que tinha acontecido com ela dias atrás veio à
sua cabeça novamente. Cada palavra, cada ação, cada momento da luta entre ela e Noémia
estava ali. Era como se estivessem se enfrentando ali e agora...

.......flashback......................................................

–– Essa não...
Noémia quase é atingida, mas foge para o lado e, depois de deixa-la passar, ela
pega, segura firme o braço de Paula e a puxa para perto de si, enquanto...
–– Glérh...
Paula é atingida na região do abdome pela fúria de um cotovelo pronto para atingir
seu alvo. Depois desse ataque, ela cai e se contorce de dor por alguns instantes. E
antes que ela se levante e tente lutar novamente, Noémia corre de volta para o carro.
Abre a porta, entra, liga o carro, engrena a primeira e acelera a fim de ir para longe
dali, antes que Paula consiga alcança-la.

.......fim...do...flashback.........................................

Ela sente mais uma vez a dor que aquele golpe com o cotovelo tinha causado nela, quando
essa parte da cena se repete lentamente em sua memória. Éarrh... É como se aquilo
estivesse acontecendo agora, ou voltasse a acontecer.
Tais lembranças a levam a soltar gemidos, bem parecidos com os daquele entardecer. Isso
faz Marco acordar do sono e o traz do outro quarto até ela.
–– O que... o que foi?
–– Éarrh...
–– Que foi, minha prima?
–– É... éarrh... lá... ela, el...
–– Ela quem?
–– Aquela, érr...
–– Aquela?
–– Mulher...
–– Daquele dia?
–– É...
Ela então se assenta na cama e olha de forma resoluta para ele.
–– Eu vou fazer ela pagar por isso, nem que essa seja a última coisa que eu faça.
O sono foge. Paula se levanta e vai até a sala, onde está o laptop. Ela o pega da estante e o
põe sobre a mesa de centro, e o liga. Ela pega o carregador de bateria e o liga no aparelho.
Enquanto espera a máquina ficar pronta para usar, vai até a cozinha e pega um copo de
água, e o traz para a sala.
Ela, então, se conecta à Sérede e ativa um avançado programa IA espião que trabalha
varrendo a rede. Não tão avançado assim como a Mikuru a ponto de manter uma conversa,
mas o suficiente para invadir até redes tidas como as mais impenetráveis. Ela o ativa, abre
uma caixa de comando e digita algo como “search for NAS1304”, mais a tecla ENTER.
–– Vamos lá.
E o programa começa a buscar através da rede, espalhando-se literalmente por vários
lugares por meio de milhares de quilômetros de fios ou de ondas de rádio cortando céus e
terras por onde passam. Passados uns quarenta minutos, o programa começa a acessar as
redes na vizinhança das instalações da VISER. Justamente a área onde Mikuru tem acesso
restrito para vigiar os passos de qualquer um por meio dos sistemas de segurança.
–– Está indo muito bem.

.........................................................................

Noémia foi até a base da organização em Sepetiba e lá ficou por alguns dias. Durante esse
tempo, Seiji ficou sendo responsável pela sede, e Nagato e Mikuru o ajudavam nessa tarefa.
Seiji dava uma atenção mais especial à Nagato, assim como a Flone, que costumava
trabalhar com a Mikuru.
–– Como está lá fora, Nagato?
–– Está tudo bem. Nenhuma movimentação suspeita foi detectada.
–– Ótimo. É bom que continue assim.
–– Claro!
Flone designou Mikuru para essa tarefa, que envolve certo risco. Ficar exposta a uma área
da rede que quase não tem proteção (e em contato com a rede externa) é perigoso, pois há
maior risco de o sistema atuante (no caso, a Mikuru) ser desarmado ou controlado à
distância por algum invasor. Quando Seiji fala com a Nagato, esta se comunica com a
Mikuru, pois ela é a única das duas entidades digitais que foi autorizada a vigiar as
proximidades. Esse trabalho é feito, normalmente, por um sistema de circuito fechado de
televisão (CFTV), operado pelos seguranças. Flone encarregou a Mikuru de operar as
câmeras e os sensores de presença dos locais em redor e avisar à central de segurança caso
algo aconteça. Noémia sempre agia dessa forma em casos como esse.

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–– Barreira encontrada.
Essa mensagem aparece na tela depois de algum tempo. Paula digita algo que é uma ordem
para que o programa tente descobrir de que barreira se trata. E é atendida em questão de
segundos. Cerca de meio minuto depois, ela descobre uma entidade digital circulando na
rede externa, naquela parte da cidade. E o espião descobre e mostra na tela o nome dessa
entidade: Mikuru.
O espião está, neste momento, acessando a parte da rede externa próxima à VISER. Esse
espião detecta os movimentos e as operações que Mikuru realiza para vigiar as ruas em
redor. Marco dá nova ordem para que ele procure descobrir o código de Mikuru, a fim de
encontrar algum ponto fraco no sistema. O programa, então, lê alguns trechos e os envia
para Lanna. Ela, por meio de um avançado programa de engenharia reversa, decodifica o
binário em algo parecido com assembly.
–– Ah! Então, esse é o código da tal barreira, não é? Pois bem, vamos ver esse segredo
mais de perto, ...
Ela varre a tela com os olhos enquanto desliza a barra de rolagem vertical, rola-a para
baixo, um pouco para cima... Os olhos rápidos dela capturam as linhas certas. É aqui
mesmo, não?! E ele começa a modificar algumas das linhas para criar uma espécie de “back
orifice”, uma falha plantada para que ela possa entrar no sistema. Feito isto, ela compila o
trecho e manda de volta para que o programa o ponha dentro da rede, trocando o arquivo.
–– Agora, vamos ver o que vai acontecer agora.
O trecho do código que Paula mudou é o que permite a Mikuru acionar e manipular as
câmeras da frente do edifício, na Avenida Rio Branco. Dessa banda, há sensores de
presença, também. Dois guardas fazendo ronda por ali acionam os sensores, fazendo com
que a Mikuru lidasse com as câmeras, para ver quem poderia estar ali. Isso faz ela carregar
o arquivo modificado e, sem perceber, abre uma porta para a nossa intrusa. Nesse
momento, ela recebe um aviso no seu laptop e começa a agir.

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Durante cerca de três horas, Lanna vasculha a rede interna à procura de arquivos e sistemas.
Ela descobre um sistema privado de GPS em tempo real, que rastreia os carros da
organização onde quer que estejam. Ela, então, baixa o arquivo e, alguns minutos depois, o
inicia. A janela se abre com uma lista dos carros da VISER, listados por placa. Ela vê uma
lista dos carros por placa e logo encontra o carro de Noémia. Ela clica duas vezes no
número da placa –– o que faz abrir uma janela. O que se mostra agora é um mapa com
alguns pontos em movimento. O ponto que representa o carro de Flone está em destaque. E
está parado, pois se encontra estacionado no momento. Ela clica nesse ponto da tela,
fazendo com que fique selecionado.
Ela explora o programa, percorrendo os menus e descobrindo que comandos poderia ter a
aplicação. Logo, um deles chama a atenção dela: “Configurar Avisos”. Ela clicou nessa
opção e, logo, se abriu uma nova janela com as opções “Às ___ horas”, “Antes de ___ h”,
“Depois de ___ h”, etc. Percorrendo as opções, ela vê a última delas: “Ao se mover”. Ela
marca essa opção e continua a andar com os olhos pelo resto da janela. Nisso, ela vê um
campo rotulado “Avisar para”. Ela aponta para esse campo, o que faz aparecer uma dica
como essa: “Indique aqui o número de um celular (dez dígitos)”. Ela segue o que diz a dica,
pondo nesse campo o número do celular dela e clica em “Salvar”. A janela se fecha,
mostrando novamente o mapa de pontos. Ela deixa o programa ligado. Porém, mesmo que
desligue o laptop, ela será avisada toda vez que o carro de Noémia estiver em movimento,
pois o programa acaba de enviar os dados da programação que ela fez para a rede de
monitoramento. Depois disto, ela põe o celular para carregar. Ela vai precisar dele nos
próximos dias, a partir de agora.
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De manhã cedo, depois de passar ali a última noite, Flone resolve voltar ao centro da
cidade. Ela ainda vai passar boa parte do dia por lá, antes de vir embora.
–– Haruno
–– Flone?
–– Esse prato está uma delícia. Você mesma quem fez?
–– Fui eu sim.
–– Você cozinha muito bem, garota.
–– Muito obrigada.
–– E olha, eu vim aqui e... Eu pude perceber que, tirando uma coisinha aqui e outra ali, vai
tudo bem por aqui. É, você está se saindo muito bem, Haruno.
–– Obrigada.
–– E espero que continue, que consiga se sair melhor daqui em diante, tudo bem?
–– Claro, eerr..
Flone sobe até a parte alta do farol e, de lá, contempla o grande, o imenso mar que se
mostra diante dos olhos dela. O mar, cujas águas se movem para um lado e para o outro, se
mostra diante dela, majestoso, sob a luz do sol poente. Sol, cuja luz à tardinha se reflete
sobre as águas, dourando a paisagem naquela tarde.
Ela, depois, desce as escadas do farol. Haruno a espera junto ao carro em que, logo,
Noémia irá. Esta deixa o farol e se dirige ao automóvel, estando pronta para partir. Ela abre
a porta do caro e, antes de entrar...
–– Haruno?
–– Fala!
–– Um dia desses, você vai ficar em meu lugar.
–– Eu?! Mas...
–– Até a próxima.
–– Até mais!
Haruno olha enquanto Flone entra no carro e sai dali.
–– Até!!!

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Noémia pega o caminho da estrada. Ela segue pelas ruas e, cerca de vinte minutos depois,
entra na Avenida Brasil, e segue de volta, dias depois, para a base no centro da cidade.

***

São dez para as onze da noite. O céu está claro, quase sem nuvens. Apenas... Os irmãos
gêmeos e a prima deles se encontram agora no mesmo lugar, e se preparam para dar início
ao rito final. Para o qual têm se preparado todas as tardes, durante as últimas três semanas.

TRABALHOS OCULTOS

Algumas horas antes, o celular de Paula vibra. Ela o pega e confere o que chega, se é uma
ligação, se é uma mensagem... Algo como “NAS1304 saindo Sepetiba” aparece no visor.
Nessa hora, ela se lembra do que planejou e vai em direção à beira da estrada. Ela a
atravessa com certa dificuldade as duas pistas, o que leva cerca de vinte minutos ao todo.
Ela leva consigo a sua arma, uma Sig Sauer P250. E um propósito em mente.
Ainda um pouco longe dali, mas chegando perto, Noémia não sabe o que o destino lhe tem
preparado. Desde aquele dia, há pouco mais de uma semana, Lanna vem planejando um
revide, uma forma de dar o troco pelo golpe que a Flone desferiu nela. Noémia, por outro
lado, se lembra vagamente daquele dia. Porém, Lanna sabe que ela irá reconhece-la quando
a vir. Portanto, ela procura se disfarçar. É por isso que a vemos com uma presilha no alto da
cabeça, que segura algumas mechas loiras, sendo que o cabelo natural dela é castanho-
escuro.
Depois de atravessar as duas pistas da estrada, ela sobe em alguma das rochas que ficam na
beira da avenida. Uma vez lá, ela se posiciona de forma a ter uma visão privilegiada da
estrada. Ela se debruça sobre a rocha, quase deitada, e olha para a estrada. Olha para um
lado. Olha para o outro.
O celular dela passou a receber mensagens de texto quando Flone saiu de Sepetiba. Uma
nova mensagem chega cada vez que o Vectra passa de uma rua a outra. E a última
mensagem foi recebida quando ela subia naquela rocha. “NAS1304 entrando Av. Brasil”
apareceu no visor. Ela fica de prontidão, com ambos os olhos na estrada.

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O Vectra de Noémia se aproxima. Lanna já o pode ver de longe, e se prepara para atirar. A
arma possui um silenciador, de forma que a vítima, ao perceber o dano, pensará que algo
pontiagudo na estrada o terá furado. Ela, então, vai parar para trocar o pneu. Esse é o plano.
Pois isso é o que acontece. No momento em que o carro passa no seu campo de visão,
Lanna atira no pneu de trás, lado direito. Como havia planejado, assim ocorre.
Enquanto isso, a vítima continua a dirigir o carro, tranqüilamente, sem perceber que ela é
alvo de uma conspiração. Ao passar por aquele trecho da estrada, ouve-se um ruído surdo.
O carro treme como se tivesse acabado de passar por um buraco. Segundos depois, ela
sente que algo de errado aconteceu com o pneu de trás.
–– Que... ahf!
Noémia percebe algo de errado no pneu de trás do carro. Ela encosta o veículo e dele sai
para ver o tal dano. Nesse momento, sem que ela perceba...
–– Não se mexe!
Ela pára ao ouvir a voz e sentir algo encostar por trás dela. Lanna, apontando para ela a
arma...
–– Levanta, devagar.
Ela sabe o que pode acontecer quando se tenta reagir. Portanto, ela se levanta devagar,
seguindo as ordens da jovem, letra por letra. Ela põe um dos pés para fora do carro. Depois,
o outro. Com as mãos à vista, se apóia sobre um dos cotovelos a fim de se pôr de pé.
–– Agora, devagar, se dirija ao porta-malas.
Segue dizendo Lanna, de forma pausada, porém com uma firmeza que dispensa um tom de
voz mais alto. Enquanto isso, a dona do carro anda até chegar à parte traseira, onde fica o
porta-malas. Lanna a segue de perto para que não fugisse.
–– Abra.
Noémia estende a mão para abrir aquela porta, enquanto Lanna está por detrás dela, ainda
lhe apontando a arma. Num instante...
–– Aaaarhh!
Tal como flecha voadora, a ponta de um sapato de couro legítimo e caro vem de encontro
ao rosto de Lanna, e o atinge na parte esquerda. Isso a faz largar a arma e, por um instante,
a dor quase a faz perder a atenção. Mas logo ela volta... quase. Outra vez, a mesma ponta de
sapato repete a sua façanha, antes que pudesse ser percebido.
Ela limpa a vista, e vê a Noémia de pé, combatendo contra ela. Lanna corre para pegar a
arma, que um pé veloz a chuta para longe, deixando-a no meio dos carros que velozmente
passam. E outro se volta contra ela. Então, Lanna revida, e seus pés passam cada vez mais
perto da fronte dela. Porém, Noémia continua a avançar sobre Lanna, enquanto esta recua.
Nessa disputa, chegam até junto a uma parede de rochas. Lanna não tem mais para onde ir.
Entre a refém rebelde e o rochedo impassível. Ela pega e segura os braços de Lanna,
quando esta se agita para um lado e para o outro, até que...
–– Uuuohh!
Ela se solta e, num rápido girar, seus pés seguem rumo ao rosto de sua refém e, um após o
outro, a põem no chão... Ou quase. Daí que ela, de forma rápida, seu cotovelo a golpeia na
altura do abdome. Isso é pelo que me fez naquele dia! Por último, Lanna, mais uma vez,
investe contra ela e a golpeia, de forma que a refém cai diante dela.
–– E isso é pelo que quis fazer comigo!
Ofegante, Lanna procura nos bolsos e encontra uma algema. Ela se agacha, põe as mãos da
refém para detrás desta e as prende para que não se soltem. Ela também fecha a boca da
vítima com uma fita adesiva que encontrou no porta-malas. Depois disso, com alguma
dificuldade a arrasta para junto do carro, e a põe dentro do porta-malas. Ela o fecha.
Depois, entra no carro. Como a chave foi deixada no contato, ela não precisou fazer ligação
direta. Dessa forma, ela segue até o próximo desvio e volta para o lugar de onde ela saiu:
para junto de Marco e Malco.

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No dia marcado, os dois irmãos e a prima se reúnem novamente no mesmo lugar. Trazendo
tudo o que precisavam para aquele rito, chegam de picape àquele mesmo descampado. O
mesmo, cercado de árvores por todos os lados menos um, o que dá para o luar que ilumina
aquela noite.
–– Chegamos.
Malco confere o relógio dele que, além da hora, traz o calendário. Assim, ele diz:
–– Este é o dia, e esta, a hora.
No banco de trás, algemada e amordaçada, está Noémia. E ali permanece até que Lanna se
lembra dela quando Malco pergunta:
–– Onde está a refém?
–– Eu vou trazer ela pra cá.
Ela vai buscar a refém, que se encontra no banco de trás do veículo. Ela abre a porta e a
retira do carro, carregando-a com alguma dificuldade. E já ia levando ela quando Malco
diz:
–– Deixe-a encostada naquela árvore, virada pra cá.
–– Mas ela vai ver tudo e...
–– Não me questione, não me questione, Lanna. Eu quero que ela seja testemunha viva do
que está para acontecer aqui, entendeu? Se somente a gente vir tudo, não haverá quem
acredite.
–– é isso mesmo –– completou Marco, ao escutar a conversa –– Nela irão acreditar. Afinal,
ela foi seqüestrada, não é mesmo?
–– Bem, bem, bem. Agora, chega de conversa que temos muito que fazer. Lanna, nos ajuda
aqui, arruma o lugar. Nós vamos trazer aquela caixa pra cá. Marco, vamos.
–– Bora, ...
Os dois irmãos retiram da picape um caixote selado que pesa cerca de cinqüenta quilos.
Lanna, vendo isso, quis saber:
–– Que é que tem nessa caixa, primo?
–– O que tem nessa caixa, prima, são os elementos e as substâncias que fazem parte do
corpo humano, nas suas devidas proporções. Eu tenho isso, você também... Todos nós
temos isso no nosso corpo, certo, Marco?
–– É claro.
Eles abrem a caixa pesada. Dentro dela, tiram sacos de vários tamanhos, a maioria,
pequenos. Há também várias garrafas de água destilada sete vezes, cujo total é de quinze
litros, conforme a receita. Um a um, os ingredientes são tirados da caixa e postas sobre um
pano de seda chinesa, de cor branca, estendida sobre o chão. Após isso, eles começam a
conferir de forma cuidadosa e atenta os itens, de forma a ter certeza de que trouxeram os
ingredientes corretos, e de que não faltava algum deles.
–– Agora sim, vamos lá. –– começa Malco –– 15 litros de água
–– Confere.
–– 25 quilos de carbono
–– Confere. Continua!
–– quatro litros de amônia... um quilo e meio de cálcio... sete gramas e meio de flúor... 800
gramas de fósforo... 250 gramas de sais...
–– Que sais?
–– Cloreto de sódio, de potássio, iodetos, nitratos, etc, etc. Continue.
–– 100 gramas de nitrogênio
–– Confere.
–– 80 gramas de enxofre... cinco gramas de ferro e... três gramas de silício.
–– Silício?
–– Sim, Lanna, você ouviu bem. O corpo humano contém cerca de três gramas de silício,
em média.
–– Tá bom, certo.
–– Muito bem.
Perto dali, Noémia testemunha o que eles fazem. Ela foi posta junto a uma árvore, suas
mãos amarradas por trás e os braços dela em volta dessa árvore. Ela foi posta ali de forma a
observar tudo o que faziam. E ela os vê fazendo tudo aquilo, e percebe que eles estão ali,
fazendo de conta que ela não estivesse perto.

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Por volta das onze e quarenta da noite, ela pressente algo. O que irá acontecer em breve e
que ela não tem a menor idéia do que seja. Os três familiares, ali reunidos, continuam a
desenvolver e a prosseguir na prática deles. E o mesmo pressentimento de Noémia chega
também a eles, de tal forma que...
Que está para acontecer? diz Lanna em seus pensamentos. Certamente, os irmãos também
o sentem, ainda que não o demonstrem. Porém, nos próximos quinze a vinte minutos, muito
do que acontecerá pode não ser explicado pela lógica ou pela racionalidade pura, a qual não
admite o que não se pode provar de forma concreta, material. No entanto, é algo que está
para acontecer, queira alguém acreditar ou não.
O ar começa a se movimentar de um lado para outro, e começa a soprar por ali. Em torno
daquele círculo, brisas dão voltas, e em pés-de-vento se tornam. As brisas passam a ventos
fracos, e de fracos foram a moderados. Aumentando em força, de grau em grau, eles se
intensificam. Dessa forma, um redemoinho se forma no meio deles, que estão assentados
sobre a terra.
Eles, ainda que um pouco receosos com o que poderá ou não acontecer, continuam a
avançar na prática. Enquanto seus corpos estão em meio a essa manifestação, em suas
mentes, palavras ecoam, e acordes verbais ressoam pelos sótãos e porões da alma de cada
um ali.
–– Agora... parece que tá dando certo! –– Lanna
–– É mesmo... estamos indo –– Marco
–– É isso aí! Vamos, continue! Manifeste-se! –– Malco
De onde está, Noémia não consegue entender o que quer que seja aquilo. A única idéia que
passa na cabeça é a de fugir dali. Amarrada, porém, tenta se soltar, sem sucesso. Ela foi
amarrada de uma maneira que dificilmente ela sairá dali, sem alguma ajuda.
E antes que possa escapar dali, ela verá o que jamais se viu ou se verá:
Naquela madrugada, o momento da execução do principal ato do ritual se torna sombrio.
Restam menos de dois minutos para que os ponteiros se cruzem, tornando-se um só. Nesse
restinho de tempo, a atmosfera daquele lugar se torna densa. Uma neblina envolve os três
participantes a ponto de quase um não poder enxergar o outro, senão vultos uns dos outros.
–– É agora!
Os dois irmãos e a prima deles estão agachados junto ao material ali organizado. Eles se
concentram no alvo, na realização que querem alcançar. Cada um deles junta as palmas das
mãos, uma à outra, separa e junta novamente. Isto, por três vezes. Depois, eles põem as
mãos espalmadas nas bordas do lugar onde os ingredientes da obra foram juntados. Os
efeitos têm início e, nesse exato momento, a alquimia reage. Os três jovens, Marco, Malco
e Lanna são consumidos ali pelas forças que atuam naquele rito final. Eles se vão desse
mundo para sempre. E o sacrifício gera um fruto. Só que a menina que eles tanto queriam
trazer a nós, a humanidade, não se materializa ali. O que ali ocorre é apenas uma pequena
explosão que joga luzes vermelhas, verdes, amarelas e alaranjadas para todo lado, como se
fossem fagulhas de fogos de artifício. De entre muitas dessas fagulhas que foram jogadas
em redor naquele instante, uma ou duas dessas fagulhas saltam em direção a Noémia, e por
pouco a atingem. Outra das fagulhas cai por trás dela, justamente sobre as cordas com as
quais ela foi amarada ali. Ao perceber que as cordas haviam se afrouxado, ela se solta, se
levanta e corre dali, enquanto o fogo destrói tudo o eu encontra pela frente e em redor de si.
Ela volta para o carro, o liga, engrena a primeira e deixa tudo para trás, apreensiva.
O que terá acontecido?

***

De um lugar qualquer

Se um vento soprar
Se uma chuva cair
Se à noite uma neblina a cidade cobrir
Se o sereno vir e nos umidecer
Não haverá mais o que fazer
Além de esperar...
Às vezes é preciso saber esperar
Nem sempre é necessário se preocupar

De um lugar qualquer
Ela aqui virá
E vai que isso acontece
E vai que amanhece logo esse madrugar

O RESSURGIR DA MENINA

São dez para as onze da noite. O nosso rapaz dorme. Perto dele, na parte do criado-mudo
junto a algumas revistas, palavras cruzadas e afins, a placa de expansão onde nossa menina
digital havia ficado presa repousa quieta. A menina não se encontra mais lá. Desde aquele
dia, ela está na Sérede e procura por alguém. Certamente, ela está à procura de quem a
libertou daquela escuridão e clausura. E ainda que não o tenha visto, ela pode sentir quando
está perto dele através da aura que nos envolve.
Enquanto isso, lá naquele descampado, a experiência parece ter dado errado. Nem um sinal
dos três jovens da irmandade. Os materiais continuam por lá, espalhados por toda aquela
área. Os panos que forram o chão de lá têm sinais de que foram queimados. É como se uma
explosão tivesse acontecido ali. Há fumaça e algumas chamas queimam aqueles panos.
Quanto aos três, eles foram literalmente consumidos pelo poder da alquimia quando a
reação deu um outro resultado, fatal para eles.

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Agora são quase duas da madrugada. Sem alguma explicação e apesar do céu limpo e quase
sem nuvens, uma descarga elétrica do céu atingiu o prédio da antiga estação da Leopoldina
e se espalhou por tudo que era de ferro. Como o prédio contém ferro em sua estrutura, a
imensa carga se espalha pela construção e chega ao quarto do rapaz, onde os computadores
estão ligados. São duas máquinas que costuma deixar ligadas durante a noite e madrugada,
sendo desligadas de manhã. O rapaz acorda com o estrondo provocado pelo trovão e, ao se
levantar, vê a fumaça. E percebe que há fogo no quarto. Ele pula da cama e corre até um
extintor de gás carbônico que ele deixava ali, por segurança. Ele o destrava e o aciona,
apagando as chamas. Depois de algum esforço, as chamas são apagadas. Ele abre a janela
para que a fumaça se dissipe e...
–– Ah!?
Ele vê uma menina desacordada no chão do quarto. Rapidamente, ele vai até a cama, toma
do cobertor que usava e a cobre. Depois...
–– Ei, acorda!
Ele tenta acordá-la, sem nada conseguir. Então se abaixa e a pega, procurando envolver a
menina com o lençol. Ele a carrega e a põe na cama, e põe a mão na cabeça dela, e também
no pescoço.
–– Ahn!?! Ela está...
Ela está fria. Ele procura sentir o pulso e os batimentos cardíacos dela, que ele percebe
muito fracos. Ele vai ao guarda-roupas e pega todos os lençóis e cobertores que ele tinha
guardado e a cobre com todos eles, da cabeça até os pés, deixando apenas o rosto dela
aparecer. Depois, ele pega um lençol e vai para o sofá da sala. Apesar de todo o episódio,
ele está cansado. Ele cai no sono.
Quanto à menina, ela apareceu ali, desacordada. E agora, ela está deitada naquela cama,
tendo a janela à sua cabeceira. Porém, não sabemos, e talvez jamais saberemos, como a
menina apareceu no chão do quarto de Elder durante a madrugada, em meio à expansão de
energia. Embora tudo tivesse começado com aquela experiência dos jovens da irmandade a
cerca de sessenta quilômetros dali, a menina não apareceu lá, naquele lugar. Antes, foi aqui
aonde ela veio parar: no quarto dele.

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A janela do quarto está aberta. A lua brilha no céu, justamente numa posição em que a sua
luz entra pela janela, revelando o rosto da nossa menina. A partir desse momento, o corpo
dela começa a esquentar. Ele volta, aos poucos, á temperatura normal. E ela, à luz da lua,
começa a se mexer. Ela acorda aos poucos e, enfim, abre os olhos. E ela vê a lua no céu,
com todo o esplendor de uma noite limpa e sem nuvens.
E suas forças voltam. Ela se levanta da cama e se põe de pé, devagar. Olha para um lado e
para o outro. Olha para o quarto que está com a luz apagada. Só a luz da lua clareia um
pouco o quarto. Ela dá um passo. Sente o chão. Olha para todo o quarto, devagar. Procura
uma porta. A porta está aberta. Ela caminha, passo a passo, através do quarto. Atravessa o
vão da porta e vai pelos cômodos. Ela passa pelo corredor e nota a porta do banheiro. Está
escuro. As luzes estão apagadas.
–– Estou sentindo...
A cada passo que se aproxima da sala, ela sente algo familiar. Uma aura. A mesma aura que
havia sentido através das frestas da porta daquele quarto escuro, toda vez que Elder, nosso
rapaz, manuseava a placa de expansão. E é essa mesma aura que, como a luz do fim de um
túnel, conduz a menina em meio a escuridão. Dessa forma, ela continua em frente, indo até
a sala. Ela se põe junto às vergas laterais da passagem entre o corredor e a sala, e descobre
que há alguém deitado e dormindo naquele sofá.
É ele!? Será... Em sua cabeça, mesmo em meio às memórias inconsistidas, algo parece
dizer a ela que o alguém que ela procurava está ali, diante dos olhos dela. E ela se
aproxima, devagar. Ela percebe que o rapaz dorme e procura chegar mais perto... Passo a
passo, lentamente, ela se põe junto ao sofá, e se agacha diante do móvel. Ela aproxima seu
rosto ao rosto dele. E, mais de perto, sente a respiração dele. E também a aura dele, que ela
sente cada vez mais à medida que dele se aproxima. Ela chega a sentir um leve arrepio
partindo da cabeça até a planta dos pés dela.
–– É ele... É ele, sim.
E enquanto essas palavras ecoam dentro de seus pensamentos, ela chega mais perto, e mais,
e mais... Isso, lenta e calmamente. Os seus lábios tocam os dele. Ela fecha os olhos. E
pressiona um pouquinho mais os lábios nos lábios dele. Não demora muito, o sono se vai
dele aos poucos. Ele vai acordando e sentindo a respiração dela, enquanto ela o toca com os
lábios dela nos seus.
–– E agora?
Pensamentos como esse surgem na mente dele, e como ele sente o quanto a incerteza irá
fluir... Ele pode não saber agora, mas ela o quer. Ela estava à procura de uma resposta, e a
resposta era ele. E agora que está ali, perto dele, ela irá em frente e não vai parar. Só o que
ela precisa agora é completar-se. E ele é a completude dela.
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Ela começa a roçar e a pressionar os lábios dela nos dele. E ela o faz de forma cada vez
mais intensa. Ainda meio adormecido, ele se deixa levar um pouco, pensando que se trata
de um sonho, mas... Ele abre os olhos e pára. Quando não sente mais os lábios dele se
mexendo junto com os dela, ela pára com o toque e se afasta de leve...
Ele, que está deitado no sofá, se levanta e se põe sentado. Ele olha para ela, ainda agachada
ali, junto ao móvel. Ela retribui o olhar. Por um pouco de tempo, um olha para o outro sem
se mexer. Ele esfrega os olhos que o sono tenta fechar, tentando desembaçar a vista. Ela
continua a olhar para ele, na mesma posição.
–– Quem... é... vo...
Ele pergunta, devagar, de forma pausada. Nesse momento, ela se levanta e lentamente sobe
pelo sofá e por ele como se estivesse subindo montanha, levando o rosto dela para perto do
dele, sem deixar de olhar nos olhos dele –– e ele, nos dela. E assim ela faz com que os
lábios dela cheguem, pouco a pouco, mais perto dos dele. E, novamente, os lábios se tocam.
Ou quase. De uma forma gentil, porém, firme, ele a afasta de si. Elder se levanta, e os dois
ficam de pé, um à frente do outro. Por um momento.
Ela continua a olhar para ele, de uma forma ainda mais persistente.
O sono foge naquele instante. Ele a leva de volta para o quarto, de onde ela veio, passo a
passo. Ela continua a olhar para ele, que segue pelo corredor até o quarto, onde a janela está
aberta. A luz da lua entra, iluminando a cabeceira da cama. Ele a leva de volta, para que
possa descansar. Ela se senta na beira e, com a ajuda dele, deita a cabeça no travesseiro de
algodão. E até esse momento, ela continua a olhar nos olhos dele, sem se importar para
onde quer que os olhos dele sigam.
Depois de a deitar, ele vai buscar um lençol para cobrir... Ao se virar para buscar o lençol,
ela segura na mão dele. Ao que tenta gentilmente soltar, mas ela pega a outra mão
também... E olha para ele enquanto o puxa para bem junto dela, até que o rosto dele fica
junto ao dela. E outra vez ela começa a tocar os lábios dele com os seus, fazendo com que
fiquem juntos enquanto se movem. Ela põe os braços em volta dele e o aproxima ainda
mais de si. Ela investe mais, movendo os lábios contra os dele... E ela sente a resposta. E os
lábios dele respondem de forma positiva. Agora, eles se encontram em sintonia perfeita, um
com o outro.

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Sobre aquela cidade, o céu se torna cada vez mais claro, vagarosamente, à medida que o
tempo passa. Minuto após minuto, os ponteiros do relógio dão a volta sobre si, enquanto o
sol se levanta devagar, além do horizonte. Os primeiros raios, os primeiros feixes de luz
começam a tomar conta de toda a cidade, bairro após bairro, rua após rua. Antes disso,
porém, os pássaros de diversas cores e tamanhos, pressentindo que o sol logo havia de vir,
puseram-se despertos. Os que sabiam cantar, anunciaram o amanhecer, espalhando a notícia
de mais um novo dia.
Os pequenos feixes de luz, começando fracos, adentram pela escuridão de dentro das casas,
dos prédios e de todos os lugares que têm janelas. Ao entrar por uma das janelas de um
certo prédio, um dos raios de sol revela um segredo, encoberto pela noite. À medida que
entra pelo ambiente, o pequeno filete de luz percebe que está em um quarto. Ele pousa
sobre algo... Uma cabeça repleta de cabelos. Ele percebe que tais cabelos são um pouco
longos, mas nem tanto. O feixe de luz segue em frente, tocando as costas, meio inclinadas,
de cima até embaixo, conforme avança lentamente. Como um viajante a correr pela terra,
percorre as costas, até que ele encontra dois pequenos montes, depois dos quais decide
saltar para um pouco mais longe, em direção à parede ou ao chão.
Nesse quarto, ela dormia. Bem junto a ela, o rapaz também está a dormir. Ele acorda calmo,
devagar, e se levanta com cuidado, para não acordar ela. Ele veste um roupão e vai até a
cozinha, e se põe a preparar o café. Uns dez minutos depois, o cheirinho do café se espalha
pela casa e chega até o quarto. Ela, ainda a dormir, sente algo. Algo que não sentia há
muito. Algo que, para ela, é como se tivesse deixado de existir. Porém, ela encontra
novamente essa sensação. E esse cheirinho de café traz lembranças de um passado distante,
de um país remoto... De um lugar muito, muito longe no tempo e no espaço.
Ela, então, se levanta. Percebe que ele não está ali. Ela se envolve com as cobertas e,
devagar, caminha, seguindo um rastro que não se pode ver ou tocar. O rastro que só o seu
nariz pode perceber...

Me diz quem é você


Como você chegou até mim?
E como me encontrou?
Como soube?

O que fez você vir a mim?


E por que me procurar?
Agora que me encontrou,
Me diz por que foi

Por que me procurava?


E agora? O que vai acontecer?

E agora?

***

Por volta as cinco e meia da manhã, um carro com ar de novo passa pela frente da velha
estação. Noémia está exausta. Ela teve uma noite difícil, e só o que quer agora é descansar.
Dormir, aliás, seria perfeito pra ela. Enquanto pensa nisso, uma sensação estranha lhe vem
no exato momento em que começa a passar em frente aquela estação. Pondo o carro à beira
da rua, ela desce do veículo e se põe a olhar para a parte de cima da construção. Não havia
nada de diferente, nada que pudesse denunciar algo fora da normalidade. Porém, ela parecia
não se convencer disso. Para ela, ainda havia algo estranho...

A PRESENÇA DA ENTE

A palavra é essa mesmo: Presença. A mesma que, por breve momento, ela havia sentido há
horas atrás. É como se ela pudesse sentir que algo está perto. Bem, eu quero acompanhar
isso mais de perto, pensou. Dessa forma, entrou novamente no seu carro e foi para a sede
do departamento onde trabalha.
Ao chegar lá, passou pelas checagens de segurança e, após elas, seguiu com o seu carro
para o estacionamento. Ela pára o veículo na vaga privativa e sai, trancando-o bem. Ela se
dirige ao elevador, que se abre após a leitura das digitais da mão. Ela entra, as portas do
elevador se fecham, e ela diz:
–– Salão principal.
O elevador a leva até o penúltimo dos andares, onde fica o centro nervoso do sistema. É um
lugar com um design entre moderno e futurista, com diversos ambientes. Ela entra pelo hall
do elevador, passa pela ante-sala e, enfim, chega ao salão principal.
–– Mikuru?
Esta, a ouvir a voz de Flone, responde:
–– Sou eu. Tudo bem?
–– É, sim, dentro do possível... Eu fui feita refém.
–– O QUE?! –– se “espantou” Mikuru, pausando todas as atividades.
–– Ai, Mikuru, essa doeu nos meus tímpanos, oeehhh...
–– Desculpa, Flone, descul...
–– Tá, tá certo, tudo bem agora. O que importa agora é que estou aqui.
–– Tá, mas conta o que eles lhe fizeram.
–– Eles me deixaram amarrada vendo tudo o que faziam naquela noite. Uma coisa estranha,
uma espécie de ritual ou algo desse tipo...
–– Macumba?!
–– Não era... bem, ao menos não parecia. Não tinha alguidar nem algo do tipo, mas eles
tinham um saco grande de terra, uns trinta quilos, mais ou menos. Eles espalharam aquilo
no chão, sobre uns panos... Depois só me lembro de uma explosão, e de eles sumindo em
meio à explosão, ...
–– Como se fossem consumidos por ela.
–– É, mais ou menos isso. E me lembro que estava presa na árvore, e meus braços
amarrados por trás. Só estou aqui porque uma fagulha caiu nas cordas e fugi dali. Resumo
da ópera: me levaram apenas pra ver um ritual estranho que me pareceu ter dado errado.
–– E onde eles estão?
–– Eu não sei. Talvez estejam em algum lugar, mas onde, ...
–– Aff...
Flone foi para a copa preparar um café para que tomasse. Nesse instante, ela lembra do que
sentiu de manhã há pouco.
–– Mikuru?
–– Fala.
–– Eu senti algo estranho nessa manhã.
–– Pode falar.
–– Quando eu estava passando na Leopoldina, na frente da estação, algo me fez parar o
carro. Eu desci e fui ver o que era. Mas não parecia ter nada de estranho naquele prédio.
Mesmo assim, algo insistia comigo. Mikuru, faz uma varredura naquele local e fique de
olho nele, tá certo?
–– Sim, Flone, já estou....
–– Ótimo.
–– Flone?
–– Diga.
–– Detectei atividade anormal na área de Campo Grande nessa madrugada, e...
–– E o que, Mikuru?
––...e também perto daqui, Flone.
–– Perto quanto?
–– Na antiga estação ferroviária.
Flone fica surpresa com tal informação. No entanto, logo se contém, e vai para a copa
preparar o café. Mikuru trata de iniciar a tarefa, a qual a põe a trabalhar fora da rede interna
do departamento.

.........................................................................

Ele se encontra na cozinha a fazer café. Eu me encontro no quarto, sentada na cama dele,
junto à cabeceira. Olho pela janela. Lá fora, como numa típica manhã de domingo, há
pouco movimento. Alguns ônibus vazios passam de vez em quando. Há também algumas
pessoas que caminham tranqüilas por aquelas bandas.
Enrolada num lençol, eu me levanto e vou até a cozinha, um tanto devagar.
–– Olá?
Olho para a cozinha como um todo. Eu reparo em cada objeto que está ali, e assim ando
vagarosa pelo recinto. Noto a chaleira no fogão e a água esquentando. Ele olha para mim,
nota cada reação minha a esse mundo que me parece novo. Até que ele resolve me levar de
volta ao quarto. Ele me leva para lá e, assim que chegamos, ele procura no guarda-roupa
por algo que eu possa vestir. É claro, não tem roupa para garotas ali, não é? O que tem que
ser feito é escolher algo que eu possa vestir, sem maiores problemas. E é justamente isso
que ele faz. Ele procura na gaveta e encontra, enfim, uma calça jeans e uma blusa que
poderiam servir em mim.
–– Você pode vestir isso aqui, aa... como se chama?
Demora um pouco, mas daí eu...
–– Lain
–– Lain... Legal. Pode se vestir aqui mesmo. Eu vou pra lá, enquanto isso.
E ele me deixa sozinha naquele quarto para me deixar mais à vontade. E é claro, mesmo
sem saber direito como, eu me visto. Por sorte, de maneira correta, visto o que lhe foi dado
e, logo, volto para a cozinha. Assim que ele me nota, se aproxima de mim e diz:
–– Nossa, você está bem nessa roupa, sabia?
Eu olho, sem entender nada.
–– Pode ficar com ela –– disse, olhando nos meus olhos e acariciando-me o rosto de leve.
Logo, se volta à tarefa de fazer café. Nesse meio-tempo, pego na mão dele. O que o deixa
um tanto surpreso. Ele se vira e busca entender o porque do gesto. Antes disso, eu seguro
na outra mão dele e as trago para perto de mim. E as trago para junto de minha cintura,
querendo que ele me tocasse ali. Depois, estendo os braços até o pescoço dele, para que
estejam em volta do pescoço dele. Dessa forma, eu aproximo meus lábios dos dele e os faço
tocar entre si. Dali em diante, começando de uma forma serena, o beijar se desenrola aos
poucos, crescendo tanto em intensidade quanto em profundidade. Ele corresponde e, assim,
ambos se entregam àquele momento, àquele capricho da natureza que, sem dúvida, foi
preparado para aquele fim.
Minhas mãos o trazem ainda mais para perto de mim. E, de uma forma semelhante, as mãos
dele me fazem ficar mais perto dele, até que não sobrasse entre nós um espaço vazio que
fosse. Além disso, as mãos dele se permitem em andar por aquelas curvas delineadas com
perfeição. O que o sentindo, o larguei e me afastei dele. Eu não devia ter me permitido tal
atrevimento, ele deve ter pensado, eu acho.
Eu me afastei um pouco mais. Porém, estendo as mãos novamente... Dessa vez, eu as desço
até a barra da camisa dele e, de ambos os lados, começam a subir, segurando o tecido. Ela
está tirando a minha camisa? E agora? Deve estar ecoando dentro dele. Ao chegar à altura
dos ombros, dei um sinal e ele entendeu. Os braços dele se levantaram e então completei
essa parte, deixando a camisa cair sobre o tapete. Nesse momento, ele está apenas de um
calção curto, leve, daqueles de dormir.
Depois, eu levei as mãos até minha cintura, e as deixei deslizar suavemente até a parte da
frente, alcançando o botão da calça. Assim, a desabotôo, devagar, olhando para o que faço
e, quando termino de desatar o último deles, volto meus olhos para os dele. E fazendo com
que ele me olhe nos meus olhos, solto as mãos da calça, e a deixo cair. Isso me deixa
vestida apenas com a blusa –– e nada mais. Assim, ponho os braços em volta do pescoço
dele. Com as pernas, me desvencilho da calça, terminando-a de tirar e, por fim, o seguro
mais firme. Num impulso como o de me pendurar nele, tiro os pés do chão e ponho as
pernas em volta dos quadris dele. Isso faz o nosso rapaz se desequilibrar e quase cair no
chão, não fosse o sofá. Assim, eu meio que o ajudo a se deitar sobre o tapete. E passo as
mãos por trás dele, nas costas, como que fosse para aliviar-lhe a dor da pancada ao cair. O
que parece fazer efeito quase imediato.
Eu, que ainda estava com as pernas envolvidas nele, as tiro, uma após a outra, me apoiando
com as mãos no chão –– uma de cada lado dele. E depois me assento sobre ele com as
pernas dobradas, uma de cada lado. E olho para ele.
E, então, de forma sutil, levo as mãos até a parte de baixo da blusa que visto, assim, uma de
cada lado. E começo a levantá-la. Assim, tiro a blusa e a deixo cair atrás de mim, no tapete.
Nesse momento, meus olhos estão fitos nos dele e os dele, nos meus. Isso me faz chegar
mais perto dele. Assim, me deito devagar, pondo meu corpo sobre o dele, até o ponto de
sentir-lhe o respirar. E, como que por instinto, me entrego a ele naquela manhã. Ele aceita,
e, assim, nos completamos, tocando-nos mutuamente dos cabelos aos pés, de uma forma
frenética. O respirar dele no meu rosto, o meu nele... os seus lábios tocando nos meus...
Ah...

.........................................................................

–– Flone!
A essas horas, Flone dormia. Um sono de pedra toma conta dela, de modo que não escuta a
Mikuru chamar. São quase sete da manhã quando a inteligência virtual do departamento
detecta uma forte atividade em algum ponto da cidade. Por essa causa, Mikuru não desiste e
a chama de forma repetida até que a consegue acordar.
–– O que foi, Mi... aahhh –– disse Flone em meio a bocejos de um sono, interrompido antes
de sua completude.
–– Vem, você tem que ver...
–– Já estou in... in... do-aahhh –– os bocejos continuam apesar do esforço que ela faz em se
conter.
Ela se apóia no móvel em que havia pegado no sono, se levanta um pouco cansada, mas
prossegue. Ela vai até a sala Naishou, onde o Sérede Monitor roda noite e dia no Main
Server I. Este é um dos três controladores principais que suportam e gerenciam os sistemas
que executam no ambiente informático do departamento, inclusive as assistentes virtuais
Nagato e Mikuru.
–– O que é isso?

***

–– O que é isso? –– quer saber Flone


–– O que foi? –– responde Mikuru, corrigindo-a –– Bem, no dia de ontem, quando você
esteve fora, eu estive monitorando o sistema daqui de dentro. A certa altura da madrugada,
percebi uma forte interferência na rede sem fio.
–– É?
–– É sim, Flone. E o mesmo se deu há alguns minutos atrás.
–– Você pode determinar de onde partiu a interferência?
–– É pra já.

AO ENCALÇO DO DESCONHECIDO

Mikuru busca na base de dados e traz à tela um mapa da cidade do Rio de Janeiro. Ela o
amplia, deixando o local exato no centro da tela.
–– Essa região em azul-violeta. E...
Ela entra no sistema do guia de ruas e procura pelo mapa adequado. E o traz à tela,
sobrepondo a primeira, como alguém que põe um mapa em transparência sobre um mapa
comum. Flone vê bem onde esteve a mancha azul.
–– Rua Francisco Bicalho?
–– Exato. Para ser mais preciso, é bem próximo à ponte onde passam os trens.
Por um momento, Noémia se espanta com o fato de ter sido tão perto. Logo, se lembra de
quando passou pela velha estação de trem, da presença que sentiu... Então, ela resolve ir
para lá.
–– Você vai lá agora, Flone?
–– Claro. E você também.
–– Eu?!? Ah, sim, sim, pode contar comigo.
Noémia vai até uma outra sala onde são guardados equipamentos portáteis. Por meio de
uma senha, ela entra na sala, vai a uma prateleira de uma estante e pega uma valise, um tipo
de maleta. Dali, ela se põe em direção ao estacionamento.
–– Nagato, tome conta de tudo, está bem?
–– Sim.
–– Mikuru, eu vou lhe chamar da rede externa, está bem?
–– Certo.
–– Ótimo.
Ela fechou a porta e saiu em direção ao elevador, e deste para o andar. Momentos depois,
ela sai em seu carro e se dirige ao lugar. Enquanto isso...
–– Mikuru, por que ela não me chamou?
–– E eu sei lá... –– respondeu Mikuru.
–– É... ela não liga pra mim... Só o Seiji...
–– Por que esquenta com ela, Nagato?
–– Por que? Por...
–– Bem, alguém disse uma vez que a gente deve se importar com quem se importa com a
gente, não é? Pois então, esqueça isso, certo?
–– Tá bem...
De volta ao lugar, Flone estaciona seu carro do outro lado da rua. Lá de dentro, ela ativa o
equipamento que carrega na maleta, põe um fone de ouvido e prendeu uma escuta na blusa.
Depois, ela envia um chamado.
–– Sim
–– Mikuru, você consegue detectar algo de anormal na rede daqui?
–– Eu não. A rede está normal por aqui.
–– Ou, como o Almir costumava dizer, tá tudo conforme. –– ela disse num ar entediado ––
Ah... pois eu ainda sinto algo de estranho... Você sabe o que é aura?
Mikuru responde que sim.
–– Pois é, sinto uma aura estranha. Há alguém por aqui, eu tenho certeza.
Nesse momento, ela sai do carro, resoluta, a descobrir quem ou o que seria a fonte da
estranha aura. Ela pega o caminho da passarela e, depois, entra na antiga estação. São quase
oito da manhã, as portas estão abertas. Ela passa por um dos portões, atravessa o salão de
entrada e começa a subir por uma das escadas laterais. Assim, vai ao último andar e começa
a andar pelos corredores, lentamente. Ela vai sentindo a presença mais de perto. Sua
intuição a guia pelo prédio, pressente que está mais próxima...
–– Mikuru –– sussurra pelo microfone oculto na blusa, junto aos seios –– vê se consegue
detectar algo de estranho na rede.
–– Flone, não há nada de errado, a rede continua operacional.
–– Então... Parece que essa influência não afeta a rede. Considero que ela influencie o meio
por onde as redes fluem. Não deve ser tão poderoso assim.
–– Lembra do que você me disse algumas vezes sobre nunca subestimar algo que pareça
inocente?
–– Sim, é claro que lembro, Mikuru.
Pois bem. Flone, resoluta a descobrir quem ou o que seria a fonte de tal energia. E, desta
forma, percorre as portas, chegando-se junto de cada uma, com calma. Perto de uma das
portas, porém, ela pára. Algo estranho há por trás dela. Sua intuição não deixa dúvidas, é a
porta certa.
Por um instante, ela hesita. Sua curiosidade e coragem são maiores, o que a fazem mover
sua mão fechada em direção à porta. E a fazem balançar, terminando por bater nela,
causando um barulho que chama a atenção de Elder. Ele pergunta:
–– Quem é?
–– Ah... –– num curtíssimo espaço de tempo, Flone tem que pensar no que vai dizer. Há
tantas opções quantos são os grãos de areia na praia. Porém, nem todas serviriam. Até que
teve uma idéia... Nos seus bolsos procura por algo, e um envelope lhe vem à mão. Elder
repete:
–– Quem é?
Ela, ainda a pensar no que dizer, olha para o envelope. E, então, diz:
–– Tenho algo para o Sr.
Ele não entende nada. Pelo olho mágico vê que é uma mulher, quase de meia idade,
vestindo um blazer esporte e uma saia cuja barra se alonga até quatro dedos abaixo dos
joelhos. E, dessa forma, resolve abrir a porta com a correntinha travada.
–– Como se chama?
–– Elder –– responde o rapaz.
–– Ah, um nome diferente –– comenta ela –– Elder... Elder...
–– Bourgley –– completa o rapaz.
— Não só o nome é diferente, o sobrenome também. –– comenta.
Flone está de pé junto à porta. De onde está, ela pode ver a sala... Bem, a sala inteira não...
apenas uma parte, quis dizer. E é justo nesse momento que Lain sai do quarto e, com a
calça e a blusa que lhe foram dadas, caminha até a sala. Olha em direção a porta e vê a
mulher. Flone a vê. E uma lembrança lhe vem à mente, de um sonho que teve:

.......flashback......................................................
.......sonho...........................................................

Pouco tempo depois... não demora muito, e todas as telas ficam com imagem como de
uma televisão fora de sintonia ou em um canal fora do ar. O chiado é intenso.
– MIKURUUU!
Flone tenta chamar ela, mas Mikuru não responde. Em vez disso, na tela principal,
uma imagem aparece pouco a pouco, mostrando ser o rosto de alguém...
– Quem é ela?!
Nessa hora, a imagem que aparece na tela é a de uma menina... Ela parece olhar para
quem está do lado de fora. E parece “bater” no vidro da tela, como se quisesse sair.
– Ah!? O que é isso?
Flone se assusta com o que vê. Uma menina como se estivesse olhando para ela, e
ainda deixando cair algo... lágrimas dos olhos dela...
Por que ela chora? pensou ela.

.......fim...do...sonho..............................................

Nesse momento, ela acorda com duplo susto: pelo sonho que teve e também pela luz
bem forte que a Mikuru, através do sistema de iluminação, pôs no rosto dela. Sonho
esquisito esse... Quem será ela?

.......fim...do...flashback.........................................

Será ela? A menina que apareceu no sonho é... ela?


Flone tenta se refazer da comoção que a visão da menina lhe causou. Por um momento, ela
parece visivelmente abalada por isso, a ponto de a menina chegar a perguntar:
–– O que foi?
–– Não foi... nada... –– diz Flone, ainda a se recuperar.
–– Nada? Você não está bem. Venha, entra –– diz o rapaz, levando-a até a sala, deixando-a
sentada no sofá. — A propósito, deixa-me apresenta-la, esta é Lain Diorhe. Lain, esta é
Noémia Almeida.
— Bem-vinda. — diz Lain a fechar a porta. Depois, vem para junto dele.
Como eu estou? Estou bem, é claro. Só não posso dizer a eles o que me veio agora à
cabeça, oh... Eles não irão entender. Além disso, não posso dizer onde eu trabalho ou o
que faço da minha vida. É uma questão de segurança, uma questão muito séria, e que
muitos não irão entender. Flone, querida! Faça alguma coisa!
Como um turbilhão de águas revoltas, palavras como essas ecoam em sua mente. No
entanto, aos poucos ela se recupera do choque, e vai assimilando o que acaba de ver. Nesse
ínterim, Lain vai para o quarto e Elder, para a cozinha buscar um copo de água.
Passados alguns minutos após a comoção, Flone se levanta e vai até a porta. E diz:
–– Eu estou indo agora.
–– Você não estava...
–– Eu estou bem agora. Acabo de lembrar que tenho um compromisso para hoje à tarde ––
diz ela, inventando uma desculpa.
–– Vai bem, então.
–– Muito obrigada.
–– De nada...
Ela se vai um pouco apressada e deixa a porta aberta. Elder então fecha a porta.
Lain vem do quarto para a sala e, não vendo mais a mulher, se dirige à cozinha e quer
saber...
–– Ela já foi?
–– Foi.
–– Mas... tão rápido assim?
–– Ela disse que tem um compromisso hoje, e então...
–– Entendi.
Chegando ao carro, ela entrou e fechou a porta.
–– O que encontrou lá? –– quis saber Mikuru
–– Nada... –– respondeu Flone
–– Nada?
–– Apenas um jovem casal... Porém, a menina... Ela não me é estranha.
–– Você a conhece?
–– Acho que a vi antes, em algum lugar.
–– Onde exatamente?
–– Lembra daquele dia que fui até a base de Sepetiba? Pois é, eu fui investigar uma
estranha interferência no sinal de nossos equipamentos. E lá... o rosto de uma menina
apareceu na tela. Era como se tivesse olhando para mim, sabendo que eu estava ali e...
–– E a menina que você viu hoje, você acha que pode ser ela?
–– Se for ela... Se for realmente ela, então...
–– Se ela estiver montando uma emissora de televisão clandestina, então é bem possível
que seja ela, não é?
–– Seria sim. Seria...
–– E então?
–– O sinal que havia causado a interferência naquele dia não era de televisão, nem de
celular. Não parecia ser de rádio também. Estava em uma freqüência muito próxima da
ultravioleta.
–– Então, quer dizer que a tese da TV pirata está descartada.
–– É claro.
Dessa feita, Flone ligou o ar condicionado, girou a chave e dali saiu, voltando para a Sede.
E enquanto ela conduz o veículo, ...
Eu nunca... eu nunca pude imaginar que isso fosse possível... Como? Como é que pode um
ser digital como ela ter se materializado? Eu tenho que descobrir como foi que isso tudo
aconteceu. É muito grave, eu tenho que encontrar uma resposta para isso JÁ!

***

Uma manhã de sábado. Faz cerca de duas semanas desde a visita daquela mulher. Abriu
sol, mas não faz calor. Ou seja, um daqueles dias perfeitos, nem calor nem chuva. Uma
temperatura agradável, tipo um ar condicionado ligado no mínimo, toma conta do ambiente
e do dia. São quase sete da manhã.
Elder se encontra no terraço do prédio e de lá observa o mundo ao redor. Depois de dar
uma volta pelo terraço, observando tudo ao redor daquela construção, ele decide chamar a
Lain para ver também. E vai. Desce até o lugar onde mora.
Chegando ao quarto, vê que ela dormia. Ele se aproxima da cabeceira, se abaixa e encosta
os lábios na testa dela. Depois, se levanta, ainda olhando pra ela. E se abrem os olhinhos.
–– Lain, ...
Ela olha pra ele. Ao que completa
–– Tenho uma coisa pra lhe mostrar.

APENAS GAROTOS

E lhe estende a mão, que ela pega. E ela se levanta, ainda de camisola, e assim Elder a leva
até o terraço, de onde viera. E mostra a ela toda a vista que eles dois têm a partir de onde
estão.
Para a banda do leste e até o sudeste, se pode ver as partes altas dos edifícios do centro da
cidade. Para a banda do norte, lá de longe, o que parecem ser aqueles guindastes do cais do
porto. Ao sudoeste, o alto de vários prédios e, mais ao fundo, o Corcovado –– de costas. E à
banda ao oeste se vê mais verde, que é a Quinta da Boa Vista. Também se avista a parte
mais alta de algumas igrejas e até do quartel da PM mais próximo.
Ele a abraça por trás, pondo as mãos por volta da cintura dela. O que ela deixa, e então ele a
traz para bem perto de si, deixando-os bem juntos. Ele põe sua cabeça ao lado da dela e,
sussurrando-lhe, sugere:
–– Se quiser... a gente pode dar uma volta, andar por aí...
Ao ouvir isto, ela tira as mãos dele de sua cintura e se vira até ficar de frente pra ele.
Depois, põe as mãos dele de volta na cintura dela, de forma que a pegam por trás. Ela o
abraça, também. Depois, deita a cabecinha dela sobre ele, fechando os olhos. E assim se
passam alguns minutos...
–– Tchu tchu –– sussurra ele docemente...
De uma forma inesperada, ela se solta dele e volta para o apartamento do rapaz, que logo a
segue. Pelas escadas ela corre. Uma aura de satisfação e felicidade lhe cerca, o que se pode
sentir em redor e por onde ela passa. Ele corre pelas escadas atrás dela. E agora, o que vai
ser? eram seus pensamentos.
Finalmente ele alcança a porta do apartamento onde ela, deixando a porta aberta, havia
entrado. Ele, pois, entra e fecha a porta.
Ela vai ao quarto e procura por alguma roupa que possa vestir. Ela fecha a porta, a fecha e a
tranca. Ele, vendo que a porta havia sido trancada, se dirige à sala e se aproxima da janela a
fim de olhar a paisagem. Se é que se pode chamar de paisagem uma rua com vários carros,
ônibus e um caminhão ou outro passando.
Procurando pelo guarda-roupas, ela encontra uma calça, vê que cabe nela e a veste. De uma
forma parecida, encontra uma camisa. Ela a veste. E depois de pronta, abre a porta e
procura pelo rapaz. Ela o encontra debruçado sobre a janela a olhar a paisagem.
Daí, ela chega de mansinho, põe as mãos em volta dele e o abraça. Ela põe sua cabecinha
ao lado da cabeça dele, como se procurasse ver o mesmo que ele está vendo.
Ele a percebe. E logo vai para o quarto, deixando ela na sala.
–– Eu já volto... –– diz ele enquanto atravessa o corredor.
Ela se debruça na janela e se põe a observar o que se passa lá fora, na rua. Assim, alguns
minutos se passam, até que uma voz, conhecida dela, quebra o silêncio da monotonia.
–– Vamos?
Ela assente com um gesto, ao qual responde:
–– Então...
E se põe a andar em direção à porta. Ela o acompanha. Os dois saem. Elder fecha a porta e
logo desce para o térreo. Lain o acompanha. O dia está só começando.

.........................................................................
Lain e Elder saem do edifício e aguardam no ponto de ônibus. Minutos depois, vem um,
para o qual ele faz sinal. O ônibus pára, eles sobem. Eles encontram lugares e se sentam.
Mas não demora muito. Com o trânsito tranquilo de hoje, eles chegam ao metrô, estação
Central. Descem do ônibus e adentram a estação e, pagando a passagem, se dirigem à
plataforma.
–– Vem –– diz a ela, pegando em sua mão e indo para o lado do sentido Zona Sul.
Em vindo o metrô, eles embarcam, atraindo alguns olhares curiosos que veem aquele casal
que está ali pela primeira vez, indo para Copacabana. E logo chegam em Siqueira Campos
e, ali, desembarcam. Para onde será que ele está me levando? É o que ecoa na cabecinha
dela.
Chegam a uma grande magazine de roupas, na qual entram. Elder a leva para a seção das
roupas femininas. Ele procura algo para ela entre as tantas blusas, saias, calças e vestidos
existentes por lá. Encontra algumas peças e vai até onde ela está. Percebe, porém, que ela
havia escolhido um vestido preto, um pouco transparente.
–– Olha... parece que você vai ficar bem nele. –– diz a ela. –– Bem, vamos ver se isso aqui
também...
Ele entrega algumas das peças a ela, e a acompanha até a entrada do provador.
–– Quando terminar, vem aqui, certo? –– disse a ela.
Ela assente e logo entra após receber um número da atendente. Que depois se volta e
pergunta algo a ele, querendo saber o que ela era dele.
–– Ela é minha... e...
–– Mulher?
–– Isso.
–– Hum...
Passam-se vários minutos até que ela volta. E lhe entrega as peças de roupa e o vestido com
uma expressão que ele entende como “Elas couberam certo em mim... Vou querer levar.”.
Ele então trata de arranjar um jeito de levar aquelas roupas ao caixa, depois de ter escolhido
algumas outras e ela, provado. Eles vão para a fila do caixa, onde aguardam por pouco mais
de meia hora, até que...
–– Próximo –– diz a caixa atendente.
–– Vou levar tudo isso... –– olha para a menina e completa –– Para ela.
Depois de passar as peças pelo caixa...
–– R$ 1.054,21.
–– Eta... –– pensa ele consigo, uma quantia tão alta...
–– Com o que vai pagar, Sr.?
–– Cartão –– diz ele, pegando do bolso o cartão e a identidade, e os entregando.
–– Crédito? –– pergunta a caixa.
–– Isso –– responde.
Bem, completada a transação e embaladas as compras em sacolas, Elder as pega e, com a
menina, saem da loja. Ele chama um táxi.
–– Leopoldina.
Ele abre a porta para a menina e depois entrega as bolsas de compras a ela. Fechando a
porta, se dirige para o outro lado, se sentando no banco do carona. O taxista busca o
caminho pelo GPS e logo começa a segui-lo. Elder está cansado, e também a menina.
Depois de uns trinta minutos, eles chegam à frente do edifício da antiga estação, só que do
outro lado da rua. Ele ajuda a menina sair, pegando as bolsas e, depois, paga ao taxista.
–– ‘Brigado.
–– De nada. –– responde o motorista que, dali, segue de volta ao seu ponto de parada.
Elder carrega as bolsas e atravessa a rua pela passarela, junto com a menina. Assim, estão
em casa novamente.

.........................................................................

A noite já se aproxima. Elder está deitado na cama, cansado. Um dia e tanto.


Enquanto a noite se aproxima, ele descansa, até que pressente algo. Ele se ajeita para ver
e... quem está à porta? Isso mesmo, ela, a menina. E com o vestido preto que ela escolheu
na loja.
–– Olha só –– disse ele, um pouco admirado –– Você está linda, a...
Ela vem ao encontro dele até ficar de frente. E começa a subir pela cama, indo de quatro e
por cima dele, devagar, até que os olhos de ambos se encontram. E ela se aproxima dele até
o momento em que os lábios se tocam. A partir daí, eles começam a travar um beijo intenso
e profundo, ao qual um corresponde ao outro. Ao que assiste a Luz, testemunha fiel de
todos os que se amam.
E dessa forma, finda-se a noite, dando lugar a uma madrugada tranquila e serena.

Garotos ~ Leoni

Seus olhos e seus olhares


Milhares de tentações
Meninas são tão mulheres
Seus truques e confusões
Se espalham pelos pêlos
Boca e cabelo
Peitos e poses e apelos
Me agarram pelas pernas
Certas mulheres como você
Me levam sempre onde querem

Garotos não resistem aos seus mistérios


Garotos nunca dizem não
Garotos como eu, sempre tão espertos
Perto de uma mulher, são só garotos
Perto de uma mulher, são só garotos

Seus dentes e seus sorrisos


Mastigam meu corpo e juízo
Devoram os meus sentidos
Eu já não me importo comigo
Então são mãos e braços, beijos e abraços
Pele, barriga e seus laços
São armadilhas e eu não sei o que faço
Aqui de palhaço, seguindo seus passos

Garotos não resistem aos seus mistérios


Garotos nunca dizem não
Garotos como eu, sempre tão espertos
Perto de uma mulher, são só garotos
Perto de uma mulher, são só garotos

Se espalham pelos pêlos, boca e cabelo


Peitos e poses e apelos
Me agarram pelas pernas
Certas mulheres como você
Me levam sempre onde querem

Garotos não resistem aos seus mistérios


Garotos nunca dizem não
Garotos como eu, sempre tão espertos
Perto de uma mulher, são só garotos
Perto de uma mulher, são só garotos

***

À noite e durante a madrugada, o silêncio toma conta de quase todas as cidades ao redor do
mundo. Esse é o momento em que as pessoas, ou a maior parte delas, dormem, a fim de se
recuperar de um longo e estafante dia. E, dessa forma, elas se preparam para um, novinho
em folha que logo virá. Porém, quando o repouso é interrompido por algo fora do normal,
as pessoas buscam saber o porquê disso.

“Peso de Dumá. Gritam-me de Seir:


— Guarda, que houve de noite? Guarda, que houve de noite?
E disse o guarda:
— Vem a manhã, e também a noite; se quereis perguntar, perguntai; voltai, vinde.”
(Isaías 21.11,12)

A OUTRA ENTE

Avenida Rio Branco, centro do Rio de Janeiro. Cerca de 3h da manhã. O silêncio toma
conta das ruas, e a Lua se apresenta no céu. Essas ruas e avenidas que, durante do dia,
ficam repletas de carros, ônibus e outros veículos, nesse momento descansam.
No nono andar do edifício Almirante Barroso, computadores que estão ligados começam a
agir de forma estranha. Uma forte estática toma conta de uma das salas daquele setor e, do
nada, outras máquinas que estavam desligadas começam a se ligar sozinhas. Pequenas
faíscas começam a tomar conta daquela sala. Instantes depois, um raio atinge as janelas,
adentra o ambiente e faz surgir um clarão que pode ter sido visto a quilômetros de
distância.
A estática ainda se faz presente. E, em meio aos destroços, algo acontece. Surgida a partir
de partículas de pós que aparecem no ar a partir da intensa energia que toma conta do lugar,
uma menina foi tomando corpo. Ao fim desse algo, ela está desacordada. No entanto,
bastam alguns minutos para que o alarme, disparado pelo incidente, a acorde.
Ela se levanta dali e, abrindo a porta, sai pelo corredor e vai em direção ao lugar onde os
serventes da limpeza costumam trabalhar. Ela encontra um uniforme que estava lá
guardado e o veste. Logo depois, ela se dirige a um dos elevadores. Vendo que estavam
desligados, ela vai pelas escadas, descendo todos os andares até chegar à entrada que dava
para a estação do metrô. Que está trancada. Ela se utiliza da estática que ainda corre pelo
seu corpo e, dessa forma, abre a entrada e consegue sair do prédio.
Dois minutos depois, e o edifício administrativo da Caixa Econômica se torna o foco das
atenções. A polícia, alertada pelos alarmes conectados à central, chega ao local. Várias
pessoas, entre gerentes de setor e seguranças, também se dirigem para lá.

.........................................................................

No meio da madrugada, uma das freiras do Convento de Santo Antônio, de súbito, acorda.
Sem saber o porquê, ela se dirige à janela e, abrindo-a, se põe a contemplar a paisagem.
Diante dos olhos dela, vários prédios com as luzes que estavam quase todas apagadas. O
céu claro, com poucas nuvens. A Lua, quase cheia. No entanto, algo a mais chama a sua
atenção. Sem qualquer chuva nem tempestade, um raio, vindo do meio do céu, atinge as
janelas do nono andar de um dos prédios, justo as do lado que pode ser visto do Convento.
E é nesse momento que os alarmes disparam, acordando várias das freiras que também
procuram saber o que acaba de acontecer.

.........................................................................

Edifício central da VISER. Noémia está a dormir no alojamento, onde passou a estar desde
o dia em que visitara a Lain e a Elder, por causa de uma estranha presença naquele lugar.
Nagato e Mikuru vigiam a noite e os sistemas. Desde o ocorrido, o monitoramento passou a
ser contínuo, minuto a minuto, não sendo registrada nenhuma anormalidade desde então.
De súbito, Mikuru percebe alterações na parte da rede que cobre o centro da cidade. Dessa
forma, o alerta é disparado. Noémia acorda e, mesmo estando sonolenta, se levanta e vai
para a sala Naishou, saber o porquê daquilo.
— Mikuru?
— Eu?
— Por que foi que me acordou?
— ...
— O que houve agora?
— Veja isto. — disse ela, mostrando à Noémia um mapa da rede sobreposto ao mapa de
ruas do centro da cidade. Em destaque, os pontos da rede que se apresentaram anormais
durante a madrugada.
— Quando foi isso?
— Começou às 3h 11min da madrugada. Foi detectada muita estática, que atingiu seu ponto
máximo às 3h 13min com a queda de um raio — disse Mikuru, mostrando em outra tela o
raio a atingir o prédio; imagem esta captada por uma câmera instalada na torre da igreja do
convento, que cobria o Largo da Carioca.
— Então...
— E tem mais. Por volta das 3h 23min, uma das câmeras captou a imagem de alguém que
se movia na direção do prédio, só que em sentido contrário. — completou, exibindo a
gravação.
— Alguém está fugindo... Pode aproximar mais?
— Claro.
A imagem foi aproximada e nela foi destacada uma menina.
— Quem seria ela?
— Não tenho essa informação, mas faz uns quinze minutos desde que tudo isso começou.
— Está bem. Isso é uma coisa muito séria. Esta é a minha vez de agir antes de tudo piorar.
Ao sair da Naishou, chama por Aluska, uma agente novata que está pela primeira vez de
plantão, para ir junto com ela.
— Precisamos ir, Aluska.
— Aonde?
— Me acompanhe.
— Certo, já estou indo.
Elas começam a se preparar para ir até o edifício. Minutos depois, o Vectra de Noémia
deixa a sede da VISER e ganha as ruas.
— O que está acontecendo? — quis saber Aluska
— Lembra do que eu lhe falei sobre os seres digitais?

.......flashback.....................................................

— Aluska, a nossa missão, a missão da VISER, é zelar pela conformidade da rede e


pela segurança dos dados que por ela trafegam. Isso parece ser fácil a princípio,
porém é bem mais complexo do que se pode imaginar. Portanto, dispomos de
avançada tecnologia e de pessoal capacitado para tal. Além disso, Nagato e Mikuru
estão à nossa disposição.
— Quem são elas?
— Bem, eu não sei se elas poderiam ser “quem” ou “o que”, mas vamos lá. Nagato e
Mikuru são nossas assistentes digitais. Elas vigiam a rede 24h por dia, sete dias por
semana. Elas prestam um grande serviço à organização. Nagato, Mikuru,
cumprimentem a Aluska, a mais nova agente.
— Seja bem vinda, Aluska — disseram elas, aparecendo em um telão da sala onde ela
estava.
— Sou Mikuru.
— Nagato.
— Muito obrigado, assistentes — disse Noémia.
— Assistentes digitais?
— Sim. Elas são seres digitais que foram criadas por Consuelo Bello há mais de doze
anos. Desde então, elas adquiriram conhecimento. Além disso, cada uma delas foi
criando uma personalidade própria.
— Nossa...

.......fim...do...flashback........................................

— Pois é. — continuou Noémia — Não sabemos exatamente do que se trata, porém muitos
fatos estranhos têm ocorrido nas últimas semanas. Não posso dizer com certeza, mas
desconfio que seres digitais estejam se materializando.
— Como assim, se materializando?
— É justamente o que iremos descobrir.
Elas chegam ao local. Há polícia por toda a parte. Elas descem do carro, se apresentam às
autoridades e, logo, entram no prédio, sobem pelas escadas, chegando ao nono andar. Pelos
corredores seguem, até que chegam à única porta aberta do corredor.
— Nossa... Parece que um pé-de-vento passou por aqui. — observa Aluska
A sala está um caos: cadeiras fora do lugar, algumas derrubadas; monitores no chão; papéis
espalhados, manuais, lixo... Enfim. Além disso tudo, há traços de queimado que se
concentram no meio da sala, indicando que teria sido o lugar onde havia ocorrido o
fenômeno, onde o ser digital havia se materializado.
— Eles costumam comer por aqui... — observa Aluska ao pegar em uma embalagem de
pizza, jogada pelo chão. — Eles deviam estar com uma baita fome, nem mancha de gordura
no papel eles deixaram, olha.
— Quem trabalha por aqui deve comer mesmo, mas deixar a embalagem limpa... isso não
foi obra deles.
— Não?
— Não, Aluska. O ser digital ao se materializar, procura absorver toda a matéria orgânica
que está no ambiente. Gordura e restos de alimentos são matéria orgânica.
— Entendi.
— Por falar nisso... Mikuru —Noémia a contatou através do hadaset, um equipamento
semelhante ao de uma telefonista que tanto ela quanto a Aluska estão usando.
— Sim.
— Onde está a menina agora?
— Ela está indo em direção à antiga estação.
Não é possível, disse Noémia consigo. Será que está à procura daquela menina? Será que
ela está à procura da Lain?
— O que foi?
— Temos que ir, Aluska. Vamos.
Elas descem as escadas e saem do prédio. Entram no carro e, logo, seguem rumo à antiga
Estação da Leopoldina, o lugar para onde a menina estaria indo.

.........................................................................

Um vulto passa sob as linhas férreas que marcam o fim dos viadutos e o início da Francisco
Bicalho. A menina que se aproxima da construção, datada dos séculos passados, por ali se
faz presente.
— É aqui... Ela está por perto.
Ao chegar diante da estação, ela levanta o seu olhar para o topo. Imagina onde possa estar
quem ela procura. Até que começa a sentir algo. A presença dela.
— Ela está aqui. Ela está nesse lugar.
Ela se chega ao portão, que está trancado.
— Eu tenho que entrar.
Ela põe a mão na tranca. A estática trabalha para abri-la. Dessa forma, consegue entrar.
Ainda que, em breve, algo tenha de acontecer...

.........................................................................

Ahn!? Essa presença não me parece estranha...


Lain acorda de súbito. Ela se levanta devagar, com o cuidado de não acorda-lo. Sai do
quarto, caminha para a sala e, pegando a chave, ela abre a porta. Dali, se vai ao telhado,
como para observar a noite enluarada. Porém, ela sabe o que está por vir, em pressentir a
presença que se aproxima cada vez mais. É por isso que saiu de perto de Elder. Ela
pressente algo ruim e não quer que ele seja atingido. Portanto, sobe ao telhado e lá se põe à
espera do que não pode se evitar.
***

O que será que está para acontecer?


Neste lugar, cousas que decerto ninguém conceberá.
E o que será de cada um de nós neste momento?
O que será?

No telhado, Lain. Ela aguarda no terraço, no alto da construção, por entre umas antenas. Ela
sabe que a outra menina se aproxima. Num momento em que horas parecem parar. Minutos
que custam passar... O que irá acontecer?

TEMPESTADE

Flone (cujo nome é Noémia) e Aluska se dirigem ao local no Vectra. Rapidamente, cruzam
a Avenida Presidente Vargas adiante e, em menos de cinco minutos, chegam ao fatídico
local. O veículo pára e elas descem.
— Aqui estamos.
— Estação da Leopoldina — diz Aluska o que lê da fachada.
— Isso mesmo — confirmou Noémia.
— Vocês estão no lugar certo — disse Mikuru — Se ainda não conseguem ver algo,
esperem e verão. O nível de estática está aumentando. Energia escalar também.
— Energia escalar? — quis saber Aluska.
— Lembra do que você me disse naquele dia, Flone, sobre uma frequência ultravioleta
naquela região de Sepetiba?
— Perfeitamente — assentiu Noémia.
— Pois o padrão é o mesmo, Flone.
Então... a tal frequência não era ultravioleta coisa nenhuma. Era uma frequência escalar,
combinada com estática. considerou Noémia consigo mesma. E é a que estamos para ver.
— Energia escalar? O que é isso?
— Você já leu “Fer de Lance”, Aluska? — pergunta Noémia
— Não, nunca li.
— O autor desse livro, Thomas E. Bearden, explica bem essas teorias e apresenta várias
aplicações práticas da energia escalar. Eu não entendi muita coisa, tem muita Física
envolvida nisso, mas é interessante.
— Vou procurar.
— Tem na Biblioteca, eu lhe empresto.
— Obrigada.
As duas voltam seus olhares para a estação e, em especial, para o topo. A Lua, na visão
delas, aparece acima do prédio.
— O que está havendo?
— Energia escalar, Aluska — disse Noémia — Simples estática, por mais intensa que
fosse, não seria capaz de distorcer a imagem.
Do ponto de onde observam, a imagem da Lua parece ficar meio distorcida em meio àquele
fenômeno. Lain parece estar se preparando para um eventual confronto.
........................................................................

A menina que busca por Lain está vindo, e sobe degrau por degrau. Ainda que não se possa
perceber a olho nu, a estática toma conta do ar em volta dela. Essa menina observa o
ambiente enquanto o atravessa. Fosse ela uma pessoa, um ser comum, precisaria procurar
andar por andar, ir a cada cômodo ou ambiente. Porém, ela sabe para onde deve seguir, pois
ela sente a presença de Lain a partir do telhado. Para cada uma delas, a presença da outra se
torna mais intensa.
— Eu tenho que me proteger. A mim e a este pequeno ser dentro de mim. — sussurra Lain,
abraçando-se na altura do ventre. — Se ela sentir... Se ela sentir o ser que está dentro de
mim... Não, isso não pode acontecer... Não vou deixar.
Lain tenta controlar a aura do pequeno ser, ocultando-a com a sua própria e, também, com a
estática que a rodeia. Ela procura tornar mais intensa a estática ao seu redor. E isso é
sentido pela outra menina, que sobe as escadas, bem como detectado pelos sistemas
VISER.

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Paula sobe o último degrau. O céu diante de sua vista, ele será testemunha do que será em
breve. Lain a espera e a vê aparecer. Primeiro a cabeça, depois o corpo. Quando completa a
subida, pondo seus pés naquele chão, Paula se volta para trás e se depara com...
— Demorei um pouco para encontrar você, mas enfim...
Sem dizer nada, Lain olha para ela.
— Você deve ser a Lain, não é mesmo?
—...
— Você sabe porque estou atrás de você há tanto tempo, não é? Mesmo assim, eu vou lhe
dizer — prossegue Paula, pondo as mãos em volta da cintura — Vou lhe dizer algo sobre
meus irmãos e eu. Nós fazíamos parte de uma irmandade secreta. Eu fui convidada a
participar. Isso veio bem a calhar, sabe? Porque eu buscava. E busco. Eu busco o que
quero. E o que eu quero, você sabe, não é? Estar em todos os lugares, em vários deles ao
mesmo tempo. Conhecer o que eles, os humanos, estão a pensar. O que eles estão a tramar
agora. E isso de tal forma que não possam se esconder de mim. O controle sobre o que eles
fazem. E, também, sobre o que deixam de fazer.
— Você deseja ser como Deus — diz Lain num tom calmo, e com um pouco de firmeza,
fita a Paula e continua — Isso jamais irá dar certo.
— Não vai dar certo? — nesse ponto, Paula assume um tom debochado e prossegue — E
quanto a você, Lain? Você, que é como Deus. Você que tem tudo o que eu queria. Não deu
certo com você? Por que não daria certo comigo, hein?!
— Eu não sou...
— Vai me dizer que não. — diz Paula, interrompendo-a e começando a caminhar devagar
em direção a ela.
—...
— Eu queria ser como você, Lain. Desde aquele dia, desde quando tive a minha iniciação
na irmandade. Desde aquele dia eu busquei de muitas formas, de diversas maneiras,
alcançar o meu objetivo. Fui atrás de meu sonho, persegui de perto a minha porfia até que o
meu dia chegou. Meus irmãos se entregaram por mim. Porém, não vou descansar enquanto
eu não os resgatar. Eu os quero comigo. Eu os quero de volta!
— E você pensa que fui eu quem os fez sumir? — retruca Lain, num tom decidido — Há-
há! Eles se meteram com o que não deviam. Esse é o preço por se brincar com o que não se
conhece. E não só eles: você também está pagando por isso.
— Pagando? Como? — responde Paula, que agora está frente a frente com ela — Me diz!
ME DIZ AGORA, LAIN!
—...
— Ah, já sei. Já entendi. — continua Paula, afastando-se um pouco — Eu perdi os meus
irmãos, não é? Esse seria o meu preço, não é isso? Pois bem. Nesse meio tempo em que
estive fora desse mundo, eu descobri que tenho o poder de resgata-los. Isso é apenas uma
questão de tempo. Só um pouco mais e eles terão os seus corpos de volta. Eles estão em
algum lugar, aguardando por isso.
— Nisto você tem toda razão, Paula.
Esta, ao ouvir seu nome, se volta para Lain, que continua:
— Eles estão aguardando por isso.

........................................................................

— Detectei outra presença no mesmo local.


— Aquela que estávamos investigando?
— Isso mesmo, Flone. Agora temos duas presenças em um mesmo local.
— Duas entidades digitais?
— Exatamente, Aluska — respondeu Mikuru.
— Elas estão materializadas, mas não duvido nada que possam voltar ao Sérede Monitor.
Não podemos deixar que isso ocorra novamente.
— Certo, Nagato. Temos de cortar a energia do prédio. Aluska, vamos.
Elas partem, atravessam as pistas e chegam à porta, que foi deixada aberta. Elas adentram o
prédio e procuram por algo como um quadro de luz, chave geral. Depois de algum tempo a
procurar...
— Está ali.
Então elas se aproximam de algo que parece um quadro de luz, dos grandes. Aluska tenta
abrir, mas...
— Está trancada!
— Não temos muito tempo. — responde Noémia, que passa a procurar por algo que logo
encontra, o entrega na mão dela e... — Use isto.
— Para que serve?
— Encaixe na fechadura.
— Certo.
E é isso o que Aluska faz. Um aparato especial que consegue abrir portas e destravar
cadeados por meio da estática controlada. Assim, consegue abrir a porta.
— Agora é a minha vez.
Noémia passa a desarmar os disjuntores, um após outro. O ambiente ficou quase na
completa escuridão. As lanternas inclusas nos seus hadaset são acionadas de forma
automática. Aluska se surpreende:
— Olha!
— Vamos sair daqui — disse Noémia, ignorando qualquer manifestação de surpresa da
novata que a acompanha.

........................................................................
Paula volta a se aproximar dela. Porém...
— Espera aí...
Tenho quase certeza de que ela..., disse Lain consigo.
— Você não está sozinha. E nem tente negar. Eu percebi. Está carregando outro alguém
dentro de você, não é mesmo?
Ela descobriu... E agora?
— Hum... Isso vai ser interessante. E isso vai ser muito interessante mesmo, sabe por quê?
— discorre Paula ao caminhar em volta dela — Sim, porque dessa forma...
A esse momento, diante dela, num movimento rápido...
— Arrrhhhh!
Uma cotovelada quase que certeira atinge a Lain um pouco abaixo da barriga, o que a faz se
curvar pela dor causada.
— Porque dessa forma eu vou ter algo para dar em troca — continua Paula — e, como eu
mesma disse, é só uma questão de tempo.
A essa altura, a força do prédio foi desligada. Apesar de a luz da lua iluminar em grande
parte a cobertura do prédio, a claridade diminui. Paula percebe que o prédio foi privado de
energia. Dessa forma, percebe que não tem como escapar, nem por meio da teleportação
elétrica, nem por imersão digital.
E essa agora? disse Paula consigo mesma. Aposto todos contra um que ela armou isso pra
mim. Só pode ser...
— O que... houve... ?
E ela ainda faz questão de perguntar...
— Não importa, Lain. Não vai ser isso que vai me parar.
Ela se volta para o lado que dá para a rua em frente ao prédio. Mesmo sem chegar perto da
beirada, sente que há uma movimentação cada vez maior. Outros carros da organização vão
chegando ao local a fim de dar apoio à missão de Flone e de Aluska: capturar o ser digital
que havia se materializado no edifício-sede da Caixa Econômica naquela madrugada.

***

PERESTROIKA

Uma vida inteira em busca


Em busca de minha identidade
Enfrentarei o inevitável.
Não desistir — essa é a minha Lei.

Depois de aqui chegar


À procura de um caminho
Do toque que me defina a sorte.
De algo que me dê um sentido.
Perestroika, reestruturar.
Todas partes do meu ser consolidar.

Não há pedras no caminho


Que eu não possa chutar.
Não há rosas sem espinhos...
Flores sem sombras não há.
Com a foice irei colher...

Depois de aqui chegar


À procura de um caminho
Do toque que me defina a sorte
De uma marca indelével.
Glasnost, transparecer.
Todas partes do meu ser revelar.

Que revele a minha pessoa.


Que revele o meu ser.
Que ao lado dele eu possa estar...
Eu jamais irei voltar.
Jamais posso desistir.
É por ele e por mim.
Esta é a minha Lei.

“Realmente... é isso o que eu quero. Isso que eu venho buscando... por todo esse tempo...”
(Lain).

ESCAPE NOTURNO

— O que... houve... ?
E ela ainda faz questão de perguntar...
— Não importa, Lain. Não vai ser isso que vai me parar.
Ela se volta para o lado que dá para a rua em frente ao prédio. Mesmo sem chegar perto da
beirada, sente a movimentação da rua cada vez maior. E isso é reforçado pelo desligamento
da eletricidade que alimenta o prédio. No entanto...
— Aliás — continua Lanna (esta é a Paula) — saiba que você também não tem mais para
onde correr... Lain.
Depois dessa fala, se dirige a Lain com toda a sua fúria e a descarrega nela, esbofeteando-a
e até mesmo socando-a até se cansar. Lain se defende como pode, mas não parece ser páreo
para tamanha agressão. Os braços dela são atingidos, assim como o seu rosto. Até que por
um soco, o último deles, o mais forte, Lain é derrubada e cai.
Depois dessa violenta sessão de descarga emocional (sim, porque ela, a Lanna, não costuma
agir com a razão, mas sim com a emoção), sua respiração ofegante quebra o silêncio da
madrugada. Ela se refaz depois de ter feito aquilo, de ter desferido sobre a Lain aqueles
golpes. Esta não parece mais responder, e Lanna já sente que a aura dela parece diminuir de
intensidade.
— Agora... — ainda a respirar ofegante, diz — Mar...co... Mal...co...

........................................................................

O corte de energia elétrica a que o prédio foi submetido faz parar todos os aparelhos
elétricos que estavam ligados. Como o ar condicionado pára de funcionar, o calor da noite
acorda Elder.
— Lain, acorda...
Ele percebe a ausência dela e se levanta. Percebe também que a luz havia faltado. Ele sua
um pouco por causa da janela fechada e sem ar condicionado. Logo percebe que havia
faltado luz, pois a lâmpada do quarto não acendia. Ele olha para a janela e percebe as luzes
da rua ainda acesas. Espia pela janela e descobre que apenas o prédio onde mora foi
afetado. Percebe também a presença de vários carros, parecendo muito com viaturas
policiais. Ele se afasta da janela, toma uma lanterna e procura pela garota em todo o
apartamento. Ele se depara com a porta aberta e vai andando corredor adentro.

........................................................................

Mas... ele... está subindo...


Ela, Lain, percebe. Desde o momento em que acabou a luz, ele a procura. Elder está a subir
as escadas a fim de ver onde ela estaria. Durante muitas noites, como de costume, Lain
subira para ver as estrelas — isso quando as nuvens em noites chuvosas não lhe
embaraçavam isto. E, naquelas mesmas noites, ele subia a fim de se encontrar, ficar um
pouco ao lado dela, a contemplar o firmamento. Por muitas noites isso era tranquilo, mas
agora...
Elder... por favor, não...
Agora é impossível impedir que ele venha. Portanto, ela trata de aguardar o que está por
vir. Mas não daquele jeito. Não, isso não! E, embora esteja parecendo caída, ela está
consciente. E mais do que isso. Ela ainda consegue controlar a sua aura. E isso ela faz para
que Lanna acredite que não irá se levantar tão cedo. Porém, do jeito que está não pode
impedir Elder de vir até ela. Nesse ínterim, ela procura reunir forças dentro de si para sair
daquela situação.
Eu tenho que me levantar agora...
E dessa forma, ela reúne as forças de que necessita e se levanta. Isso enquanto a Lanna
procura ver, sem ser vista, o que está a acontecer nas ruas lá em baixo.

........................................................................

Lanna também pressente alguém que está a caminho do telhado, subindo as escadas.
Finalmente, Elder chega ao telhado. Lain se volta para ele. Ainda com a face voltada para a
rua, Lanna diz:
— Então é você, não é?
E finalmente, esta o encara.
— Hum... Olha só o que temos por aqui.
E ela começa a observa-lo. E, com o seu olhar de mangá fitado nele, começa a se aproximar
dele, passo a passo. Até o ponto em que, bem mais perto...
— Hum... Que tal descermos até lá embaixo?
É o que insinua Lanna, tentando flertar com ele. Como resposta, Elder lhe deu um tapa no
rosto dela.
— Aaai!
E não foi fraco não, viu? E você, caro leitor, acha que não é para tanto? Saiba que na vida
dele a Lain chegou primeiro, e foi pra ficar. Além disso, ele é um dos poucos, poucos que
teriam a coragem para fazer isso. Dessa forma, justifico o que ele fez com a infeliz que
tentou flertar com ele.
— O que está pensando? — responde ele.
— Isso não se faz, seu...
Ao que, indignada, ela tenta revidar-lhe. Porém, ele bloqueia o tapa dela e, em troca, a
empurra com uma força que a faz cair. Lain, que está observando as reações dele, se
aproxima dali. E ambos passam a fitá-la seriamente.
— Arrr... — Lanna se volta contra eles, rangendo os dentes. Num impulso se levanta e se
põe de pé.
— Trate de parar com isso agora.
Nesse momento, o semblante de Lain muda, assumindo uma postura mais séria.
— Por todo esse tempo você esteve buscando ser respeitada, não é? Porém, você não
respeitou os outros. Por todo esse tempo você esteve buscando prestígio e, no entanto, o
que fez foi tentar desmerecer. Por todo esse tempo você quis o poder. E para quê? Para os
seus caprichos egoístas. Só para isso.
Com os dentes sendo apertados uns contra os outros, Lanna, isto é, Paula, volta o seu rosto
contra eles.
— E é por isso, Lanna, que essa sua busca nunca não irá se concretizar. Nunca. E eu estou
certa disso.
Lanna se põe de pé de forma ameaçadora, gesto ao qual Lain, de braços abertos à guisa de
quem está a impedir que alguém passe, responde de forma serena:
— Eu não vou permitir que ameace a alguém. Não, isso não!
Lain se volta para Elder, dizendo:
— Elder, se afasta daqui. Essa luta é minha.
— Eu não vou deixar você aqui sozinha. Não me peça isso, Lain.
Então, ela se volta para Lanna, que está rangendo os dentes de fúria. Esta logo dispara em
sua direção. Lain se esquiva. Lanna volta, procurando acertá-la com um soco, do qual ela
foge novamente. Mas não a deixa ir assim. Antes disso, Lain a segura por um dos braços,
puxando-a para si enquanto prepara sua outra mão para um golpe. Lanna o bloqueia e se
solta dela.

........................................................................

— Flone.
— Fala.
— Continuamos a Nagato e eu, a detectar as duas presenças. Uma delas enfraqueceu, mas
agora ambas estão com suas intensidades mais altas que antes.
— Não é possível...
— O que não é possível, Flone?
— Faz quase vinte minutos que acabamos de desligar a força do prédio.
— Sim, eu entendi. — assentiu Mikuru — A esse momento, elas deveriam ter sumido e não
aumentado de intensidade. Isso só pode significar uma coisa.
— Sim, Mikuru. Isso significa que estamos lidando com uma transmutação perfeita.
— E em que está pensando, Flone? Vai entrar lá?
— Boa idéia.
— Mas... E se estiverem armados?
— Mesmo que estejam eu vou assim mesmo.
— Você é quem sabe — disse Mikuru num tom declinante, através do hadaset de Noémia.
Esta, pois, decide entrar no edifício.
— Você vai entrar? — quer saber Aluska
— Sim. Permaneça aqui.
— Certo.
Noémia se dirige ao prédio, atravessando as ruas que, a essa altura, já estavam mais do que
interditadas para que os agentes possam trabalhar por ali. Ela sobe as escadas e,
rapidamente, chega ao terraço, lugar onde eles se encontram.
— Ei, parados aí.
Lanna se volta para quem acaba de chegar. Quando ela vê quem é...
— Ei, você.
Noémia olha para Lanna, porém custa a acreditar que ela esteja ali. Não foi essa garota que
eu vi naquele ritual estranho? Não foi essa com a qual tive que lutar naquela vez em que os
estava observando escondida naquele matagal, e que depois me amarrou ao pé daquela
árvore?
— Já não nos encontramos por aí alguma vez?
Sim, é claro que já. Mas não consigo acreditar nisso.
— Ei, você não se lembra?
— Me lembrar? Rsrs. É claro. É claro que me lembro disso perfeitamente, mas... Como é
que conseguiu voltar?
— Se você que me parece ser estudada nesse tipo de coisa não sabe, não sou eu que vou
saber. E a propósito, a que devo a honra de vir me ver?
— Eu vim levar vocês duas sob custódia.
— Vai me prender, é?
— Isso mesmo.
— E se eu não quiser ir?
— Não tem escolha.
— Você não vai me levar daqui. Não mesmo.
Lain e Elder ficam a observar as duas, tentando entender o que elas falam tanto entre si.
— Ótimo. Se você quer ir pelo jeito mais difícil... — disse, lançando-lhe um gesto de
descrença e se virando, como se estivesse indo embora. Lanna não agüenta isso e não vai
deixar passar. Desse modo, ela parte para o ataque, correndo na direção dela, pronta para
lhe acertar um golpe. Noémia percebe que ela está perto e, virando-se rápido, a golpeia no
estômago e, em seguida, a empurra.
Lanna volta seu semblante de fúria contra ela, apesar da dor causada. E, com os dentes
cerrados, diz:
— Eu só vou sair... daqui... com a Dama da... Noite...
Noémia ouve essa sentença, mas não a leva a sério. Ainda mais quando Lanna resolve se
levantar. Ela parte para o ataque, tentando revidar o golpe sofrido. Noémia se esquiva de
um golpe e, depois, de outro. Por fim, Lanna tenta dar um chute, que Noémia acaba por
bloquear quando ia se preparar para golpeá-la, também com um chute. De forma que os pés
de ambas se chocam no ar. Noémia força um pouco mais até que derruba Lanna, que se
lança ao chão para evitar o impacto da queda.
Parece que você não me levou a sério, não é? Pois então vou lhe mostrar o quanto estava
enganada!
Com isso em mente, ocultado pelo semblante de fúria contra ela, Lanna se prepara para
correr, para atacar novamente. E é o que pensa Noémia. Porém, em vez disso, Lanna se
projeta para o seu lado esquerdo e, no impulso de uma pernada, começa a correr em direção
à beira que dá para a rua diante do prédio. Ao ver isso, Noémia corre, tentando alcançar
aquele ser. Lanna salta para o vazio, mas...
— Me solta! me solta!
Noémia consegue agarrar a mão dela, com força para não ser levada junto com ela para
baixo. Isso deixa quase metade do corpo de Noémia fora do terraço, sustentado apenas pela
barriga apoiada sobre o parapeito. Vendo isso, Lain e Elder correm para ajudá-la,
segurando-a, um de cada lado.
— Eu não vou deixar você cair.
— Ah, vai sim!
Exclama Lanna, agitando-se em pleno ar, procurando se soltar dela. Em resposta a isso,
Noémia luta pra tentar puxá-la, trazê-la de volta. Porém, o suor das mãos delas torna-se
uma barreira para esse intento, além de ambas estarem cansadas.
Percebendo que o pulso de Lanna começa a escorregar pela sua mão, Noémia tenta segurar
o mais firme que pode. Mas não adianta. A mão continua a escorregar, e continua... Até que
a mão dela acaba escapando pelos dedos de Noémia.
E, então, o corpo de Lanna atravessa o vazio e se choca com a escadaria da entrada. Sua
cabeça bate em um dos degraus, o que lhe provoca um trauma que a separa desse plano do
existir.

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Nesse momento, Lanna presencia o aproximar da Dama da Noite. Esta lhe vem ao encontro
e, segurando-lhe em uma das mãos, ela a leva daquele lugar escuro onde se encontrava. E,
depois disto, Lanna nunca mais voltou a este plano do existir onde nos encontramos.

***

Certamente há muito que ser explicado sobre a natureza dos seres digitais que conseguem
se tornar humanos. De que forma esses seres conseguiriam tal façanha? De que forma eles
conseguiriam atravessar a barreira que separa o mundo digital do mundo real? E quanto a
Lain e Elder? O que será da vida deles daqui em diante?
Bem... Muitas são as dúvidas nessa lógica nebulosa. Porém, uma coisa é certa: Paula se foi
para sempre. E o seu corpo, para trás deixou.

A SÓS

O corpo de Paula está caído no chão; junto a ele, um pouco do sangue derramado a partir
do trauma na cabeça, causado pela queda. Aluska resolve se aproximar dali, mas sem
chegar muito perto.
— Nagato, precisamos de um legista.
— Certo. Eu o avisarei.
Minutos após o chamado, uma viatura especializada chega ao local. A legista Edilaine se
aproxima do corpo.
— O que aconteceu?
— Ela caiu do terraço, me parece que foi uma briga feia. Minha parceira que está lá em
cima saberá explicar melhor o que houve.
Enquanto isso, Noémia observa o que se passa lá em baixo. Depois de algum tempo, se
volta para eles:
— Lain, Elder. Vocês precisam me acompanhar até a Central. Precisamos fazer uma análise
profunda da situação e dos envolvidos nela.
— Não se preocupe. Nós vamos — diz a Lain, abraçando-o.
— Então, me sigam.
Eles descem até o térreo e logo saem daquele edifício. A essa altura, o corpo de Paula se
encontra na viatura que acaba de voltar para a Central. E é também para lá que eles serão
levados.

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Eles acabam de entrar no edifício e são levados até a ante-sala de recepção, no terceiro
andar, onde aguardam serem chamados. Nela, assim como na sala de descanso que fica
vários andares acima, existem poltronas confortáveis a rodear uma mesa de centro em
vidro, com um vaso de planta sobre ela. Quadros decoram as paredes, e uma tela grande,
digamos, de dois metros de alto por quatro metros de largo, se encontra numa outra parede,
ladeada por duas luminárias.
A ante-sala de recepção, aliás, faz parte de um Hospital interno que ocupa seis andares do
prédio da Central. Esse Hospital também é o que atende aos funcionários. Porém, esse não
foi o propósito original, como também não é a razão principal de ele existir no presente.
Isso remonta à fundação da Organização VISER. No Princípio, o Alto Conselho havia
decidido sobre a necessidade de especialistas em Medicina, bem como equipamentos
médicos de última geração, na equipe da Central a fim de possibilitar a análise e
investigação, em toda a sua profundidade, dos seres que sofreram transmutações ou que,
por meio delas, se materializaram aqui em nosso mundo.
Através das câmeras de vigilância e de sensores de presença, Mikuru e Nagato notam que
há pessoas naquele ambiente, e comentam entre si:
— Olha só quem está lá.
— Quem são eles? — quis saber Nagato.
— Sei lá quem são. Isso vamos descobrir agora.
E elas, através da estrutura de redes daquele prédio, se movem até o dito ambiente,
aparecendo na telona ali instalada.
— Oi
— Sejam bem-vindos.
Lain e Elder se surpreendem com aquilo. Na telona, que exibia o logo da organização, elas
aparecem, dizendo juntas.
— Ooooi!
— Sejam bem-vindos — completa Mikuru.
— Ué? Estão falando com a gente? — disse ele para Lain, meio sem entender o que está
havendo.
— É isso mesmo, rapaz — responde Nagato.
Esta se vira para Mikuru e cochicha:
— Ele é um gato, você não acha?
— É sim — responde a ela no mesmo tom.
— O que é que vocês tão falando aí, hein? — quer saber a Lain, olhando com atenção para
a telona.
— Hum-hum — pigarreia Noémia, também olhando para a tela, chamando a atenção das
seres digitais.
— Ei, não estávamos falando mal. Não mesmo.
— É, não mesmo. Ainda mais de alguém que é tão gat... — ia dizendo Nagato, parando no
meio da palavra “gato”, ao ver os olhares de Noémia e de Lain para elas — Des... me
desculpa. De verdade.
Noémia se dirige aos dois que aguardam. Ouve um...
— Miau
— Nagato, volte ao trabalho. Mikuru, idem.
— Sim, sim.
— Vamos logo — disse Mikuru, “empurrando” Nagato para que saíssem dali o mais
depressa.
Então Noémia diz:
— Desculpem-me pela falta de educação delas.
— Você não tem do que se desculpar, senhora...
— Podem me chamar de Noémia.
— Noémia.
— Sim, depois eu vou falar sério com elas. Venham.
— Sim — dizem.
Eles a acompanham até um elevador, que já os aguarda. Tendo entrado, as portas se
fecham, e o elevador se desloca para um dos andares do hospital. Para ser mais preciso, a
ala de recepção, onde as portas se abrem.
— Chegamos.
Eles saem do elevador e adentram a sala de espera. Lá, Noémia deixa os dois e se dirige ao
balcão de atendimento.
— Andréia, Protocolo N-152. Lain Diorhe e Elder Bourgley são os nomes. E quero isso o
mais rápido que puder.
— Sim, senhora. — disse a atendente, registrando o atendimento e os nomes dos dois que
Noémia acabara de trazer, de acordo com o protocolo.
Em poucos minutos, a atendente anuncia:
— Está tudo pronto, senhora.
— Obrigado. — responde ela e, voltando a eles — Vamos.
Pelo que a seguem pela porta à esquerda, chegando até uma grande sala onde há muita luz.
Muita luz mesmo. Noémia dá instruções à enfermagem para que preparem Lain e Elder
para os procedimentos pelos quais irão passar.
Internamente, a Organização possui um sistema de normas, denominadas Protocolos. O
Protocolo N-152, em especial, disciplina a investigação do fenômeno da transmutação
perfeita humana, bem como define o conjunto de exames a serem realizados para
determinar a normalidade das funções vitais e acessórias. Ele também determina que
pessoas em contato direto com transmutados — esse é o caso de Elder — devam ser
examinados nos mesmos moldes, pelos procedimentos utilizados para os transmutados —
eis o caso de Lain.
— Lain, deite-se aqui. Elder, venha.
E ela se deita numa cama que sai de um aparato que mete medo, a princípio. Elder
acompanha Noémia, saindo da sala de luz. A porta é fechada; o exame se inicia. Do lado de
fora da sala, monitores mostram informações, dados. Os operadores da máquina, que
lembra (e muito) uma de tomografia computadorizada, seguem rigorosa e fielmente cada
passo definido no Protocolo, registrando as informações para posterior análise. Ao final,
Noémia vê que a transmutação sofrida por Lain fora perfeita — ainda mais, quando eles
percebem uma gestação em andamento.
— Ela está grávida?
Eles percebem um pequeno ser dentro dela. E Elder fica sabendo disso, decidindo guardar
isso para si.
Em seguida, Elder passa pelo mesmo exame. Lain acompanha Noémia no lado de fora da
sala. Elder está bem. E o mesmo se segue em cada um dos exames, pelos quais passam,
conforme o dito Protocolo.

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Pelo mesmo exame tomográfico passa o corpo de Paula, analisado pela médica legista
Edilaine, seguindo os passos específicos para corpos sem vida, definidos no mesmo
Protocolo.
Durante os dois dias após o ocorrido no nono andar do prédio da Caixa Econômica, o local
atingido foi alvo de profunda perícia. Esta é uma das salas que fazem parte do setor da
empresa que atua na área de Tecnologia da Informação. Após o local ser liberado, os
funcionários dali puderam voltar aos seus postos.

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Dias depois do que aconteceu no terraço da velha estação de Leopoldina, eles são levados
de volta para lá, onde Elder mora. Aliás, enquanto estavam a ser examinados em
profundidade na clínica, o apartamento deles passou por minuciosa perícia. Marcas no chão
do quarto foram encontradas, as quais denunciaram o lugar onde a Lain teria se
transmutado. Porém, todo o apartamento e também do terraço foram analisados. Evidências
colhidas, o lugar foi liberado.
Noémia determina a eles que Lain seja examinada a cada quatro semanas a fim de ver o
andamento de sua gravidez. Quanto a isso, ele esperou a Noémia ir embora e deixá-los a
sós.

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Assim que isto se deu, ele a leva para o quarto e a observa de perto. De frente um para o
outro, ele a olha em seus olhos, e calmamente se põe a descer, se agachando. Até que chega
à altura do ventre, aproxima o seu rosto dele e a abraça, pondo um dos lados do seu rosto
encostado nela, bem no lugar onde se encontra o pequeno ser que ela carrega.
— Angelina — isto ele sussurra ao pequenino ser pelo seu nome, já decidido, bem juntinho
dela — fique calminha aí, tá bem? A gente está te esperando.
Isto manso, bem baixinho, a acariciar-lhe.
E finaliza a frase com um beijo calmo, sereno, tranquilo.

E, nesse momento, uma nova música começa a tomar conta do ar, a melodia de um violão e
uma voz. Sós...

Espatódea

Minha cor
Minha flor
Minha cara

Quarta estrela
Letras, três
Uma estrada

Não sei se o mundo é bom


Mas ele ficou melhor
Quando que você chegou
E perguntou:
Tem lugar pra mim?

Espatódea
Gineceu
Cor de pólen

Sol do dia
Nuvem branca
Sem sardas

Não sei quanto o mundo é bom


Mas ele está melhor
Desde que você chegou
E explicou
O mundo pra mim

Não sei se esse mundo está são


Mas pro mundo que eu vim já não era
Meu mundo não teria razão
Se não fosse a Zoé

FIM
  
Breve Dedicatória

Adonai – Pais – Mãzinha – José Luiz Nunes – Ivan “O terrível” Xavier


Viviane Xavier – Noêmia Alves – Maria Tereza – Gláucia Rubin
André Saraiva – André Bonomo – Renato Huang – José Luiz dos Anjos
Ana Girão – Diana Barreto – Jovanka Alpino – Luis Venâncio – Marta Gaspar
Edilaine Almeida – Cláudia Mousinho – Aluska Correa – Miriam Cristina
Wagner Fernandes – Alberto Augusto – Camilla Jorge – Leonardo Montes
Gilberto Batista – Nádia Oliveira – Thiago Brahim – Maria Salbina

 
Enfim, a todos, lembrados ou não, porém conhecidos, ao longo dessa grande jornada:
D mo Arigat Gozaimasu!
ADDENDUM:
Nomes dos Capítulos em Japonês (Kanji/Kana/Rômaji),
com Suas Respectivas (e Possíveis) Traduções
A título de curiosidade (ou, quem sabe, para alguém que queira traduzir este
trabalho para outras línguas), elaboro a seguinte lista dos nomes dos
capítulos da obra, com suas possíveis traduções para o japonês.
Ei-las, pois!


Elder Bourgley



On'nanoko wa kairo no naka ni tojikome (Aprisionada)

 
Shi to no deai (Um encontro fatal)


B  r  (Torre de vigia)

   
F toresu (A Fortaleza)

 ! " # $ % & ' ( )  * +  ( , 


Noemia-san, taw  no ashisutanto (Noémia-san, Assistente da Torre)

-.
Taisei (A Ordem)

/012
Machibuse (A emboscada)
3456
Kakushi jobu (Trabalhos ocultos)

7 89
Sh  jo no fukkatsu (O ressurgir da Menina)

:; :;
Sonzai no sonzai (A presença da Ente)

<= >?
Tsuiky no michi (Ao encalço do Desconhecido)

@A B
CD
Karera wa otokonoko desu (Apenas garotos)

EFGHI
M  hitotsu sha (A outra Ente)

  J K L M N
Sut  mu – Arashi (Tempestade)

O   P Q
Yoru no esuk pu (Escape noturno)

RSGT
Saigo ni issho ni (Finalmente a sós)

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