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Entre os séculos XIX e XXI não se acreditava mais em Deus. A emancipação do homem seria
obra sua. E Victor Hugo, em Os Miseráveis, sob o império do otimismo científico, dava a
palavra ao estudante Enjolras: “Cidadãos, o século XIX é grande, mas o século XX será
feliz”. Falava-se no término da sociedade organizada em condições dolorosas de trabalho e,
com suas tecnologias, estava apta a passar “do socialismo científico ao socialismo utópico”.
Porém, os resultados anti-humanos da tecnologia – as catástrofes da energia nuclear civil, a
indústria bélica, a exploração produtivista da Natureza, a escassez de recursos morais para
“fazer dela o seu ‘órgão’” –, bem como a decepção diante dos gigantescos desenvolvimentos
da técnica não convirem ao aprofundamento das democracias políticas, questionaram a fé no
progresso. Mas a ele sucedeu a crença no destino – o fetichismo econômico. Com o que essa
época diluiu a questão existencial e metafísica das incertezas da vida e da história pelo elogio
da insegurança e do medo. Muitos consideravam a crise do futuro e sua heurística da
desesperança.
A atividade sem trégua do modo de produção capitalista tornou-a desmedida, não tolerando o
tempo livre, sequer o noturno de repouso, passividade ou contemplação. A economia exigiu a
extensão e a intensificação da atividade até os últimos limites físicos e biológicos dos
indivíduos. Prometia felicidade pelo consumo de bens materiais, mas frustrava a promessa
porque produzia artificialmente a escassez para manter o mercado em funcionamento.
O tempo era monótono e preenchido por esportes radicais, obesidade mórbida, anorexias,
bulimia, terrorismos e guerras. Essa “agitação permanente” era a expressão do
desencantamento psíquico e da cultura, da perda de significado da vida – de onde a
“desvalorização de todos os valores”, a incapacidade de criar ou reconhecer valores.
No século XX, nada era realmente proibido e, no entanto, nada era realmente possível porque
não havia laços estáveis em nada e a monotonia era tanto mais terrível quanto menos se
vislumbrava um futuro. Vivia-se pressionado por “urgências”. Por isso, um filósofo escrevera
que “as rugas em nosso rosto são as assinaturas das grandes paixões que nos estavam
destinadas, mas nós, os senhores, não estávamos em casa”. É claro que ninguém estava
obrigado a viver dessa maneira, mas as pessoas se habituaram a obedecer sem mesmo ser
necessário obrigá-las.
Mas, caro Arqueólogo do Futuro, houve momentos disruptivos que prenunciavam o porvir. O
ano de 1968 parisiense cunhou a divisa: “não mude de emprego, mude o emprego de sua
vida”. E ainda: “vivre sans temps morts, jouir sans entraves” (viver sem horas mortas, fruir
sem entraves). Em 2006, novamente, jovens franceses – que haviam descoberto sua força
social, intelectual e política – recusavam uma lei considerada humilhante sobre como
conseguir um “primeiro emprego”. Desfilaram, aos milhares, com toda a população da cidade,
partindo da Praça da Bastilha – onde começara a Revolução Francesa, em 1789 – e dirigiram-
se a Montmartre, onde hoje se encontra o Sacre Coeur. Aí foram fuzilados os communards e
as esperanças revolucionárias em 1871. Lá os estudantes ergueram a faixa com a inscrição:
“1789-2006”. Essa lei, caso tivesse sido aprovada, enterrava, definitivamente, a República
Francesa, sua paixão pela igualdade, pela liberdade, a douceur de vivre e o sentido do bem
comum.