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Uma Prisão De
Uma Prisão De Amor E Arame
Amor E Farpado
Arame
Farpado
Aquele estava sendo mais um dia típico. As obras na Marginal, ainda que
fossem para um bem maior, estavam conseguindo deixar pior o que parecia
impossível piorar. E, com o alagamento provocado pela ultima chuva, o
prognostico não era nada bom.
- Ai, moço, tô preocupada com meu irmãozinho. Ele é muito doente e só tem
a mim pra cuidar dele. E ele tem que tomar remédio, tá quase na hora...
- Não, moço, muito obrigada. Mas não tem como. Ele fica sozinho em casa,
depende completamente de mim...
- Nossa, mas não e perigoso alguém assim doente ficar sozinho assim?
- Ai, moço, perigoso é, mas somos pobres, preciso trabalhar e não tenho com
quem deixá-lo.
- É, a vida é dura!
- Ai, será que vai demorar muito? Ta quase na hora do remédio dele...
- Ih, dona! Ontem, que estava melhor, a gente levou uns quarenta e cinco
minutos só pra cruzar a ponte...
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Meia hora depois, como que protestando de não haver ninguém para ouvir o
bip ou ler os avisos no painel, o dosador automático deu um longo bip e
desligou-se.
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Por mais limpos e arrumados que sejam, quartos de hospital jamais são
aconchegantes. Não há nada que espante o vulto da doença, que vem
prenunciando a morte que há de chegar, cedo ou tarde.
- Finalmente! - foi a única coisa que Olívia se permitiu dizer, antes de fechar
novamente seu semblante e correr para a porta, para chamar a enfermeira.
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Desde que o pai morrera, depois de anos agonizando numa cama, Osvaldo
achava cada dia mais difícil tolerar as esquisitices da irmã. Filho temporão,
ele costumava creditar tudo isso a grande diferença de idade entre ele e a
irmã mais velha.
Havia sempre um novo bibelô, um novo livro, um novo cd, um novo objeto
para atulhar ainda mais o pequeno apartamento. Havia sempre mais uma
nova regra, mais alguma coisa que não podia, que não devia, que ela não
queria. Sem falar no controle: aonde ia, com quem ia, o que ia fazer. Nem a
falecida mãe, ou mesmo o pai - e olha que o pai era militar reformado, todo
controlador - tinham pegado tanto no seu pé.
Que ficasse bem claro: Osvaldo era muito grato à irmã, que cuidara dele
depois que os pais haviam falecido. Especialmente com todos os problemas
de saúde que ele havia sofrido: a bronquite tinha sido implacável na sua
infância, transformando um menino alegre e inteligente numa coisa magrela
que tossia e escarrava, que não agüentava fazer nada por causa da eterna
falta de ar.
Mas aquele tipo de atitude se tornava cada vez mais inapropriada. Já com
seus vinte e um anos de idade, a hora de começar a tocar a própria vida em
frente já havia passado há um bom tempo.
- Como assim, vai trabalhar e vai embora de casa? Vai me deixar sozinha, me
abandonar?
- Você tem que terminar seus estudos! Você prometeu pro papai, lembra?
- Não vou parar de estudar, Olívia! Já conclui o técnico, agora vou fazer
faculdade à noite...
Mas como sempre quando se sentia contrariada, ela não estava escutando:
começou a chorar e correu para o quarto, onde se trancou.
Ele sabia que não adiantava falar mais nada. Só que agora, ao contrário de
tantas outras vezes na vida, ele não ia recuar diante do choro absurdo da
irmã. Parte daquela situação era fruto da sua acomodação, ele tinha de
admitir. Mas a forma como Olívia o tratava, como se ele ainda fosse uma
criancinha desprotegida... bom, de muitas maneiras ele ainda era uma criança
desprotegida. Aquela coisa de ser criado pela irmã como se o fosse o
“menino da bolha” tinha lhe transformado numa pessoa mal preparada para a
vida. Não sabia lidar com gente. Mas tinha vontade de aprender. Ia ter de
aprender. Mas sabia que se estivesse por perto, a irmã seria sempre um
empecilho entre ele e o mundo.
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Osvaldo sabia bem que discutir qualquer coisa com a irmã era a mais pura
perda de tempo. Tinha uma entrevista de emprego agendada para aquela
manhã, não ia se desgastar à toa brigando com ela.
Foi tomado por uma estranha sensação de tontura, pouco antes de chegar ao
seu quarto.
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- Vinte e cinco.
- Nossa, vinte e cinco! Do jeito que a senhora fala, achei que era um bebê!
- Como assim?
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Alguém que não more em São Paulo pode achar absurdo ouvir que alguém
saiu do trabalho às cinco da tarde e só chegou em casa a uma da manhã por
causa de trânsito. Mas em São Paulo, isso faz sentido. Acontece de verdade.
Foi o que aconteceu com ela. Estava cansada, mas a preocupação era tanta
que não teve paciência de esperar o elevador. Subiu até o quinto andar pelas
escadas, correndo.
Acendeu a luz da sala e quase caiu dura quando o viu o rapaz sentado no
sofá, com um revólver nas mãos. Revólver que ela reconheceu
imediatamente como sendo do falecido pai.
O rapaz disparou. Com os olhos sensíveis pela súbita luminosidade, ele errou
o primeiro tiro. Mas o segundo e o terceiro foram certeiros.
Olívia jazia morta, caída sobre uma pilha de revistas de decoração, que ela
tanto adorava.
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