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Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

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2009

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VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº15 ( Maio 2009 - ). - São Paulo: o Programa, 2009 -
semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo
Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária


do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
Coordenadores: Vera L. Michalany Chaia e Lúcia Maria Machado Bógus.

Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Aline Passos, Anamaria Salles, Andre Degenszajn,
Beatriz Scigliano Carneiro, Bruno Andreotti, Edson Passetti (coordenador),
Eliane Knorr de Carvalho, Guilherme C. Corrêa, Gustavo Ferreira Simões,
Gustavo Ramus, Klaus Peter Warkentin, Lúcia Soares da Silva, Luíza
Uehara, Mauricio Freitas, Natalia M. Montebello, Rogério H. Z. Nascimento,
Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos.

Conselho Editorial
Cecilia Coimbra (UFF e grupo Tortura Nunca Mais/RJ), Christina
Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM),
Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Margareth Rago (Unicamp), Rogério H.
Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José
Eduardo Azevedo (Unip), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade
Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam, Paulo-Edgar Almeida Resende
(PUC-SP), Robson Achiamé (Editor), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera
Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090

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verve
revista de atitudes. transita por limiares e ins-
tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberdade.
verve é uma labareda que lambe corpos, gestos,
movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita
liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.

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diagramação: mauricio freitas
diagramação poema pira: thiago rodrigues
ilustrações e capa: joão paulo sirimarco batista

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SUMÁRIO
Dossiê Louk Hulsman 13

Estamos todos presos


Edson Passetti e Acácio Augusto 75

Pira
Thiago Rodrigues 109

Carta aos artistas de Paris


Gustave Courbet 123

Os arquivistas
C.I.R.A. Brasil [1ª parte]
Pietro Ferrua 129

O (des)encontro do Brasil consigo mesmo:


ditos e escritos de Edgard Leuenroth
Christina Lopreato 201

Dois escritos da imprensa anarquista em São Paulo


Florentino de Carvalho 222

O inadmissível feito história


Gabriela Anahí Costanzo 229

Luis Andrés Edo (1925 – 2009),


um anarquista de verdade
Doris Ensinger 249

Tragédia e Comédia: uma peça cubista


“Estrutura da tragédia segundo Sófocles”
Paul Goodman 257

A ameaça do canibalismo
Eliane Knorr 273

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RESENHAS

Artaud e Nise, a loucura de viés


Salete Oliveira 293

O singular Maurício Tragtenberg


Lucia Soares 298

Política e a organização das ilegalidades contemporâneas


Edson Passetti 305

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verve 15. notas, notícias, carta, poesia, ar-
tigos, resenhas, aula-teatro, teatro, dossiê, ilustrações,
análise de documentos e arquivo sobre anarquias,
anarquistas e anárquicos.

um arquivo sobre a passagem do centre de recherches


sur l’anarchisme (cira) no brasil, preparado por
pietro ferrua. (aqui a primeira parte a ser completada no
próximo número. aqui o espaço para publicação de outros
arquivos). edgar leuenroth, pensador anarquista
do brasil. luiz andrés edo, pensador
anarquista na catalunha. florentino de
carvalho, pensador, militante-clandestino, editor,
escancarando anarquias, sem medos. o poder de
estado na argentina articulando prisões e deportações
de anarquistas no início do século 20. a salutar
presença canibal!

um dossiê louk hulsman, com nota, poesia e artigos


sobre o mais libertário dos abolicionistas penais, que nos
deixou no final de janeiro.

carta libertária de gustave courbet (séc. 19) da comu-


na de paris aos artistas. poesia-pira de
thiago rodrigues (séc. 21) das insurreições de estudantes
gregos...

mais uma aula-teatro do nu-sol: estamos todos


presos. e
uma breve peça cubista de paul goodman.

resenhas que nos levam a limiares da liberdade com


nise da silveira, antonin artaud e maurício
tragtenberg. os ilegalismos indispensáveis
à nova organização internacional da segurança com
blackwater, mcmáfia e camorra.

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verve 15. com ilustrações de joão paulo
sirimarco batista, onde o simples, o grafitti, a composi-
ção modificada eletronicamente habita o único do artista,
o múltiplo da reprodução e o único-múltiplo nas páginas
de verve 15.

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louk hulsman, abolicionista penal


(1923-2009)

“Do mesmo modo que foi preciso vencer a força da


gravidade para explorar o mundo exterior à Terra, é pre-
ciso sair da lógica do sistema penal para poder conceber
uma sociedade em que este tenha desaparecido.” (Louk
Hulsman)

Louk Hulsman, morreu em 28 de janeiro de 2009.

Louk Hulsman foi um abolicionista penal de mui-


tas palavras, gestos delicados, sorrisos tranquilos, fa-
las convincentes, presença surpreendente e de poucos
escritos.
Um pouco de seu jeito está no Nu-Sol, desde 1997,
quando realizamos em parceria com o Instituto Brasileiro
de Criminologia e a Pós-Graduação em Ciências Sociais
da PUC-SP as Conversações abolicionistas. O livro perma-
nece esgotado, mas a contundente exposição de Hulsman
foi reeditada na Revista Verve 3 http://www.nu-sol.org/
verve/verveview1.php?id=3 e ali se encontra na compa-
nhia de outros de seus escritos e entrevistas.

verve, 15: 14-72, 2009


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Dossiê Louk Hulsman

A presença de Louk Hulsman está relacionada à dis-


seminação de seu irreversível entusiasmo e precioso ri-
gor intelectual na luta incessante pelo fim das punições
e dos encarceramentos. Uma luta que se desenrola nas
universidades e nos movimentos sociais, e que conta
com os guerreiros defensores da liberdade sem castigo.
Para Hulsman, o abolicionismo penal é um estilo de
vida. Não é utopia; é para acontecer agora, no planeta e
em cada um. Para ele, o fim do castigo começa com sua
abolição em nós mesmos.
Hulsman foi o intelectual e ativista sempre em for-
mação, experimentando liberdades, por conversações,
atento às macabras negociações dos portavozes, dos
profetas, dos representantes, e daqueles que pretende-
rão falar em seu nome.
Louk Hulsman foi, também, Professor Emérito da
Universidade de Roterdã e muitas coisas mais. Foi, em
especial, um andarilho libertário atravessando e alte-
rando rotas previsíveis, tornando mais fácil e necessário
acabar com prisões e punições: tudo pode começar com
um simples QUERER.
Escreveu Penas perdidas, em 1982, em companhia
de Jacqueline Bernat de Célis, traduzido para o portu-
guês e que permanece esgotado.
Louk Hulsman afirmou o abolicionismo penal liber-
tário. Andamos com ele.

nu-sol

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To Louk Para Louk

That he will Ele


wake up acordará
just before daybreak antes do nascer do dia
pick up a book pegará um livro
some paper alguns papéis
and a pen e uma caneta
his glasses seus óculos
comb his hair penteará seus cabelos
and with his sandals e com suas sandálias
and short trousers e bermuda
armed with a camera, munido de uma câmera
opens the door, leaves abre a porta, sai
and touches his garden e alcança seu jardim
in a soft breeze numa leve brisa
greets the birds saúda os pássaros
lifts his leg over the side levanta sua perna para o lado
and his other leg e sua outra perna
in his vest no colete
sandwiches sanduíches
and a thermos of tea e uma térmica de chá
with his pocket-knife com seu canivete

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Dossiê Louk Hulsman

he cuts the lines ele corta as linhas


and takes off majestically. e parte magistralmente.
people become ants pessoas tornam-se formigas
cities, dots cidades, pontos
roads, hairs estradas, cabelos
and lakes, drops e lagos, cai
until he, so high, até que ele, tão alto,
higher than the birds, mais alto que os pássaros,
soaring in the vast sky planando no vasto céu
oversees assiste aos
how many miracles the world is muitos milagres que é o mundo
recognizes reconhece
where all his friends live onde moram todos os seus amigos
softly floating flutuando levemente
without any force and wind sem qualquer força ou vento
free and flowing livre e fluindo
on an unknown current numa corrente desconhecida
to gain new para adquirir novos
knowledge conhecimentos
new ways of knowing novas maneiras de conhecer

Jehanne Hulsman Poema de Jehanne Hulsman,


filha de Louk.

Tradução do inglês por Andre Degenszajn.

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a perspectiva abolicionista: apresentação


em dois tempos — qual abolição?1

louk hulsman

(...) Pré-seleção

Afinal, quem vai para a prisão? Se a mídia não se


dedicasse apenas ao sensacionalismo, se não se preo-
cupasse somente em dar repercussão a esses horríveis
processos dos tribunais que considera mais importan-
tes, poderíamos saber melhor o que se passa todos os
dias nas centenas de saletas, onde juízes têm compe-
tência para condenar as dezenas de milhares de pessoas
que povoam nossas prisões.
Numa determinada época, na França, um jornalista
do Liberátion teve a idéia de observar o que acontecia
diariamente na 23ª Câmara Correcional do Tribunal de
Paris, que julgava “flagrantes delitos”. Foi uma ótima
idéia. Representantes da imprensa deveriam estar pre-
sentes em todas as salas correcionais, o que, aliás, é
previsto: em todos os tribunais, há um lugar reservado
para jornalistas. Mas, normalmente, este lugar fica va-
zio. Os responsáveis pela mídia desprezam as sessões
banais, rotineiras, onde os burocratas desempenham
seus papéis sem convicção, onde todo mundo se abor-
rece. Se estes representantes da imprensa cumprissem
sua missão, ficaríamos sabendo que centenas de pessoas
são sumariamente julgadas todos os dias no país e que

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Dossiê Louk Hulsman

são sempre os mesmos que vão para a prisão: as camadas


mais frágeis da população, os despossuídos.
As crônicas de Christian Hennion2 foram reunidas
em um livro curto mas impressionante, onde se vê pas-
sar como um relâmpago a clientela habitual dos tribu-
nais correcionais: batedores de carteira, ladrõezinhos de
toca-fitas ou de mercadorias em lojas, estrangeiros que
infringem regulamentações específicas, pessoas acusa-
das de não pagar o táxi ou a conta do restaurante, de
ter quebrado uns copos num café, ou de ter desacatado
um agente da autoridade... Em suma, pessoas que têm
problemas com a lei e não têm ninguém a seu lado para
resolver as coisas amigavelmente... os marginalizados, os
“casos sociais”. O sistema penal visivelmente cria e reforça
desigualdades sociais.

Deixar pra lá

Quando você se contenta com as idéias que são trans-


mitidas sobre o sistema penal e as prisões; quando você dá
de ombros para certas notícias que, de todo modo, even-
tualmente aparecem nos jornais — notícias assombrosas
sobre problemas penitenciários, como encarceramento de
adolescente em celas de isolamento, suicídios de jovens,
motins, violências e mortes entre presos; quando aqueles
que acionam a máquina e conhecem seu horror se dizem
impotentes diante do mal causado e continuam em seus
postos; você e eles estão consentindo na prisão e no sis-
tema penal que a criou. Você realmente aceita estar com-
prometido com as atividades que levam a tais situações?

Distâncias siderais

Você acha a prisão um meio normal de castigar e


excluir alguns de seus semelhantes? Entretanto, evitar
o sofrimento alheio deve ser algo que ocupa um dos
primeiros lugares em sua escala de valores! Há aí uma

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contradição para a qual só posso encontrar uma expli-


cação: a distância psicológica criada entre você e aque-
les que o sistema encarcera.
Os diversos burocratas anônimos que decidem ou
contribuem para que seja ditada uma condenação à pri-
são têm poucos contatos sociológicos com os que irão
sofrê-la. Entre os que decidem, o policial, por sua edu-
cação, seus gostos, seus interesses provenientes de um
meio social análogo, talvez pudesse se sentir próximo
da pessoa presa. Mas, o sentimento de respeito devido
à sua autoridade cria entre ele e o preso a distância que
há entre o vencedor e o vencido. Além disso, o policial só
intervém no começo da linha, com um papel minúsculo e
dentro de um processo de divisão do trabalho, que impe-
de de avaliar a importância desta sua intervenção.
É evidente que os políticos, que fazem as leis, agem
no abstrato. Se, uma vez ou outra, visitaram a prisão,
foi como turistas. Certamente, foram bem escolhidos o
dia e o lugar, para que não tivessem uma impressão tão
má. Talvez tenha, até mesmo, sido organizada uma fes-
tinha no estabelecimento, com cânticos e um banquete.
Assim, quando estes políticos propõem ou votam uma
nova incriminação, sequer imaginam suas consequên-
cias na vida das pessoas.
Os juízes de carreira, tanto quanto os políticos, estão
psicologicamente distantes dos homens que condenam,
pois pertencem a uma camada social diversa daquela
da clientela normal dos tribunais repressivos. Não se
trata de má vontade da parte deles. Entre pessoas de
cultura, modo de vida, linguagem, modo de pensar dife-
rentes, naturalmente se cria uma espécie de incomuni-
cabilidade difícil de superar. De todo modo, o papel que
o sistema penal reserva ao juiz o impermeabiliza contra
qualquer aproximação humana. Dentro deste sistema,
a condenação à prisão é, para o juiz, um ato burocrá-
tico, uma ordem escrita a ser executada por terceiros e
que ele assina em alguns segundos. Quando o juiz vira
a cabeça para entregar os autos ao escrivão, o conde-

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Dossiê Louk Hulsman

nado, que minutos antes estava diante de seus olhos,


já foi levado e tirado de sua vista, passando-se então
para o próximo.
E para você que circula livremente, a prisão e o preso
são coisas ainda mais longínquas.

O jogo de propostas discordantes

Os agentes do sistema alimentam o monstro mesmo


sem querer. Algumas vezes estão conscientes e tentam
limitar seus danos. Nos Países-Baixos, por exemplo,
existe um Conselho Consultivo que é chamado a opi-
nar sobre os diferentes órgãos do sistema penal, encar-
regando-se de promover sua integração. Tal Conselho
tem três ramos, que se ocupam, respectivamente, das
prisões comuns e casas de detenção, dos serviços psi-
quiátricos das prisões e dos casos probation.3 O que se
constata — já fiz parte dos ramos da probation — é que
este Conselho reproduz a especialização dos serviços
oficiais que está encarregado de assistir, praticamen-
te condenando a coordenação de esforços ao fracasso.
Sua assembléia plenária, que aliás só se reúne uma vez
por ano, é a imagem viva da inoperância deste tipo de
encontros, onde cada um sempre fala de seu próprio
ponto de vista ou do de seu grupo, sem ouvir o que os
outros dizem.
Lembro-me especialmente de uma sessão desta as-
sembléia plenária, onde foi debatido o problema da
heroína. Eu expliquei o que os junkies me contaram
sobre suas experiências; como aqueles que usam hero-
ína entram num processo praticamente inexorável de
decadência social, de marginalização, por não serem
reconhecidos. Eles precisam de heroína, esta substân-
cia é muito cara, eles não podem pagar e a polícia está à
espera do momento em que irão roubar para consegui-
la. Há também a assistência médico-social, que alguns
temem mais do que a própria prisão. Lá, lhes fornecem

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substitutivos da heroína, mas desde que se submetam


a toda espécie de exames, de urina, de sangue, etc., o
que lhes parece uma imposição degradante. Eu disse
ao Conselho: os junkies entendem que é a política de
drogas que os joga nessa situação; seria interessante
dialogar com eles, pois têm a experiência da marginali-
zação provocada pelo sistema penal. Mas, cada um dos
presentes tomava a palavra sem levar em conta as ob-
servações do vizinho.
Um médico fez sua própria leitura. De seu ponto de
vista, as pessoas que usam heroína eram doentes que
precisavam ser curados da dependência. E se não era
possível colocar em prática a mudança ou enquanto ela
não se desse, se deveria persuadir os interessados a
substituir a substância ilegal da qual são dependentes
por uma substância legal pela qual não seriam incomo-
dados. Este médico propunha que se organizasse um
programa de ajuda para fornecer uma substância subs-
titutiva — a metadona — para aqueles que hoje são
perseguidos pelo consumo da heroína. Tal posição, é
preciso ressaltar, não resolve a situação, pois implicita-
mente aceita a criminalização da heroína e, além disso,
cria novos problemas. A metadona só é “legal” quando
ministrada sob receita médica. Substituir a heroína por
este produto só levaria a novas fraudes e novos tráficos.
Quando chegou sua vez de falar, um juiz de instrução,
colocando-se sob sua própria perspectiva, afirmou a seu
turno: “Poderíamos evitar a detenção, se eles realmente
aceitassem se tratar, mas eles jamais respeitam as con-
dições e, assim, não há outro jeito senão colocá-los na
prisão.”
Tentei retomar o ponto de vista dos consumidores:
“Os problemas de que vocês falam se devem à crimi-
nalização da heroína. Se esta droga não fosse crimina-
lizada, tais problemas não existiriam. É evidente que,
numa sociedade onde se produzem substâncias psico-
trópicas, determinadas pessoas terão problemas com
elas, como outras têm com o álcool ou com cigarros.

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A decisão de tornar tal comportamento punível é que


agrava a situação.”
Um psiquiatra amigo meu fazia a mesma análise.
Ele observava que não convinha tratar os casos indi-
vidualmente e que tampouco se deveria marginalizar
os junkies. Como médico e psiquiatra, ele via que os
problemas dos junkies derivam de picadas com agulhas
não esterilizadas e da ignorância da quantidade de do-
ses assimiláveis pelo organismo. Para ele também, a
melhor política seria a da descriminalização, ressaltando
que, não sendo a heroína, em si mesma, mais perigosa
que outras substâncias que não são legais, a descrimi-
nalização permitiria que se garantisse a distribuição de
agulhas esterilizadas, bem como uma maior difusão de
informações sobre todas essas substâncias.
Mas, cada um ficou preso à sua estreita visão profis-
sionalizada do problema. E, como de costume, não saiu
deste encontro qualquer decisão conjunta, qualquer
prática diferente: os serviços interessados continuariam
a desenvolver o mesmo trabalho compartimentalizado.
É assim que o sistema sempre se refaz.

A reinterpretação

Jamais conseguimos apreender o pensamento alheio.


O sentido pleno do que é dito nos escapa. Como, portan-
to, transmitir fielmente uma mensagem, sem ao menos
respeitar a materialidade das palavras ouvidas?
Em 14 de maio de 1981, o Papa João Paulo II foi
atingido no ventre por três tiros de revólver. No domin-
go seguinte, 17 de maio — dia de seu 61º aniversário —
da clínica onde se recuperava da operação, dirigiu aos
fiéis, que tinham ido rezar na Praça de São Pedro em
Roma, uma curta mensagem onde dizia: “Rezo pelo irmão
que me feriu e quem sinceramente perdoei.” Nem a im-
prensa escrita, nem as rádios reproduziram esses termos.
Podia-se ler e ouvir: o Santo-Padre perdoou seu agressor;

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João Paulo II perdoou o assassino... a palavra “irmão” era


muito estranha; chegava mesmo a ser inconveniente. Não
se emprega esta palavra em tal situação. Para classificar
o acontecimento, era preciso reencontrar o etiquetamento
que se formou habitual: foi uma tentativa de homicídio e
não se chama de irmão o criminoso que atirou em você.
Entretanto, foi esta a palavra escolhida pelo interes-
sado, evitando exatamente de se definir como uma
“vítima” diante de seu “agressor”, situando-se em um
universo distinto daquele da justiça criminal.

Os filtros

No sistema penal, não se escutam realmente as pessoas


envolvidas. Não se registra o que elas dizem com suas
próprias palavras. Neste sentido, a leitura dos inquéritos
policiais é reveladora.
Estes documentos recolhem declarações e testemu-
nhos de pessoas extremamente diferentes: operários,
estudantes, jovens e adultos, estrangeiros, militares, ho-
mens e mulheres. Mas, ali se encontram sempre as mes-
mas palavras, frases feitas do gênero “X declarou que é
francês, casado, com dois filhos, que tem instrução, que
prestou o serviço militar, que não foi condenado, que não
recebe pensão nem aposentadoria...”, “X reconhece os fa-
tos...”, “X foi objeto das verificações usuais e das medidas
de segurança previstas no Regulamento...” Na realidade,
são formulários que a polícia preenche. Tais formulários,
num tom invariável, monótono, impessoal, refletem os
critérios, a ideologia, os valores sociológicos deste corpo
que constitui uma das subculturas do sistema penal.
O mesmo se poderia dizer dos exames psicossociais e
das perícias psiquiátricas. Tais documentos — que, evi-
dentemente, utilizam toda uma outra linguagem — tam-
bém têm sua rigidez, refletindo decodificações igualmente
redutoras da realidade, profissionalizadas.

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Dossiê Louk Hulsman

Tome-se ao acaso, nos autos, estas “palavras peritos”.


Ali se encontrarão, constantemente repetidas, conclu-
sões assim formuladas: “X não se encontrava em estado
de demência no momento dos fatos; X não é perigoso e
sua internação num hospital psiquiátrico não se mostra
indispensável nem para seu próprio benefício, nem no
interesse da coletividade, pode se considerar que X tem
uma responsabilidade penal em parte atenuada; X é nor-
malmente sensível a uma sanção penal...”
Nos autos que chegam às mãos dos que vão proferir a
sentença há outros documentos semelhantes. São outros
tantos filtros que estereotipam o indivíduo, seu meio e o
ato que lhe é reprovado; e as visões assim manifestadas
— as visões míopes e rígidas do sistema — são outros tan-
tos etiquetamentos estabelecidos à margem do homem,
do que ele verdadeiramente é, do que vive, dos problemas
que apresenta.

O foco

Quando o sistema penal se interessa por um aconte-


cimento, o vê através de um espelho deformante que o
reduz a um momento, a um ato. De um ponto a outro do
procedimento, o sistema vai considerar o acontecimento
de que se apropriou sob o ângulo extremamente estreito
e totalmente artificial de um único gesto executado num
dado momento por um dos protagonistas.
Esta forma de focalizar o acontecimento torna-se ain-
da mais absurda quando os protagonistas se conhecem
e tinham um relacionamento anterior. Por exemplo, um
casal que já não se entende e que chega às vias de fato.
A mulher agredida denuncia o marido. O sistema registra
como “lesões corporais”. Ora, ao falar de lesões corporais
— que é a qualificação penal do fato — o sistema coloca
o acontecimento sob o ângulo extremamente limitado do
desforço físico, vendo apenas uma parte dele. Mas, para o
casal que viveu o fato, o que verdadeiramente importa —

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este desforço físico ou tudo aquilo que houve na sua vida


em comum?

À margem do assunto

O sistema penal rouba o conflito das pessoas di-


retamente envolvidas nele. Quando o problema cai
no aparelho judicial, deixa de pertencer àqueles que
o protagonizaram, etiquetados de uma vez por todas
como “o delinquente” e “a vítima”.
Tanto quanto o autor do fato punível, que, no desen-
rolar do processo, não encontra mais o sentido do gesto
que praticou, a pessoa atingida por este gesto tampouco
conserva o domínio do acontecimento que viveu.
A vítima não pode mais fazer parar a “ação pública”,
uma vez que esta “se pôs em movimento”; não lhe é per-
mitido oferecer ou aceitar um procedimento de concilia-
ção que poderia lhe assegurar uma reparação aceitável,
ou — o que, muitas vezes, é mais importante — lhe dar
a oportunidade de compreender e assimilar o que real-
mente se passou; ela não participa de nenhuma forma
da busca da medida que será tomada a respeito do “au-
tor”; ela não sabe em que condições a família dele estará
sobrevivendo; ela não faz nenhuma idéia das consequên-
cias reais que a experiência negativa da prisão trará para
a vida deste homem; ela ignora as rejeições que ele terá
que enfrentar ao sair da prisão.
Mas, foi “seu assunto” o que esteve na origem da
engrenagem do processo penal; e talvez ela não tivesse
desejado todo este mal. Talvez ainda, com o tempo, ela
pudesse passar a considerar o problema inicialmente vi-
vido de outra forma. Quem de nós não sentiu isso, ven-
do acontecimentos perderem importância e mudarem de
sentido, à medida que os revivemos no contexto sempre
renovado de nossa história?

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Dossiê Louk Hulsman

Quando o sistema penal se apropria de um “assunto”,


ele o congela, de modo que jamais seja interpretado de
forma diferente da que foi no início. O sistema penal
ignora totalmente o caráter evolutivo das experiências
interiores. Assim, o que se apresenta perante o tribunal,
no fundo, nada tem a ver com o que vivem e pensam os
protagonistas no dia do julgamento. Nesse sentido, pode-
se dizer que o sistema penal trata de problemas que não
existem.

Estereótipos

Frequentemente, a vítima desejaria ter um encontro


cara-a-cara com seu agressor, que poderia significar uma
libertação. Mesmo vítimas de violências, muitas vezes, gos-
tariam de ter oportunidades de falar com seus agressores,
compreender seus motivos, saber porque foram atacadas.
Mas, o agressor está na prisão e o encontro cara-a-cara
é impossível. De tanto se colocar a questão de “por que
isto me aconteceu?”, a vítima acaba por também se sentir
culpada; e, como jamais obtém uma resposta, se isola,
entrando, pouco a pouco, num processo de regressão...
A intervenção estereotipada do sistema penal age tanto
sobre a “vítima”, como sobre o “delinquente”. Todos são
tratados da mesma maneira. Supõe-se que todas as víti-
mas têm as mesmas reações, as mesmas necessidades.
O sistema não leva em conta as pessoas em sua singu-
laridade. Operando em abstrato, causa danos inclusive
àqueles que diz querer proteger.

Ficções

O sistema penal impõe um único tipo de reação aos


acontecimentos que entram em sua competência for-
mal: a reação punitiva. Entretanto, é muito mais raro
do que se pensa que a pessoa atingida realmente queira
punir alguém pelo acontecimento que sofreu.

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Num primeiro momento, podemos lembrar alguns


exemplos bastante simples para demonstrar como são
diversas as reações de cada um diante de um aconteci-
mento vitimizador. Quando alguém morre numa mesa
de operações, ouvimos algumas pessoas dizerem: “foi
um acidente”, ou “Deus o chamou”, enquanto outras
denunciam a falta de “responsabilidade profissional”.
Se alguém morre por uma dose excessiva de medica-
mentos, assistimos ao mesmo festival de interpretações
divergentes: alguns aceitam o que chamam de fatalida-
de — “tinha chegado sua hora”; outros lamentam que
o doente tivesse, segundo pensam, tomado por erro a
dose fatal; outros suspeitam que o interessado tenha
voluntariamente se matado, aprovando ou condenando
tal iniciativa. E, se se imagina que um parente ou amigo
ajudou o doente a acabar com sua vida, encontramos
algumas pessoas que irão acusar este parente ou amigo
de “auxílio ao suicídio”, de “omissão de socorro à pessoa
em perigo”, enquanto outras valorizarão o ato corajoso,
o supremo serviço prestado em nome da amizade.
Para tentar sistematizar este leque de interpretações
possíveis, integrando-o a uma reflexão sobre o sistema
penal, vamos pegar um exemplo extraído de um contex-
to de enfrentamento político-religioso, que poderá dar
uma visão panorâmica de todas estas interpretações e
das reações que a elas se seguem. Suponhamos que
uma bomba exploda em Belfast e que haja um ferido.
Ele pode atribuir seus ferimentos a uma infelicidade, a
que há que se conformar (primeira hipótese). Ele define
o que aconteceu como um acidente, construindo o “fato”
a partir de um marco de referência natural. Ele atribui
o que se passou à própria explosão, não se pergunta-
do como esta se produziu. Para ele, não faz nenhuma
diferença ser atingido por uma bomba ou por um raio.
O ferido pode, porém, ligar o acontecido a uma causa
sobrenatural (segunda hipótese): não ia à missa e Deus o
castigou. Finalmente, é possível que o interessado, pro-
curando o “porque” da bomba, não encontre a resposta
nem na ordem natural nem na sobrenatural, mas sim

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Dossiê Louk Hulsman

a partir de um marco de referência social. Nesta terceira


hipótese, restam ainda diversas vias interpretativas: o
ferido pode atribuir o que lhe aconteceu quer a uma
estrutura social, quer a uma pessoa (ou um grupo de
pessoas). Assim, pode considerar que o fato se deveu à
situação da Irlanda do Norte e à luta gerada por tal si-
tuação. Pode, por outro lado, responsabilizar pelo acon-
tecimento um determinado grupo social engajado nesta
luta, ou pretender atribuí-lo especificamente à pessoa
que colocou a bomba ou à que organizou o atentado.
Vamos voltar ao sistema penal. Se o sistema penal
pegar a pessoa que colocou a bomba, vai condená-la a
muitos anos de prisão. Isto corresponde à visão que o
ferido tem do acontecimento por ele vivido? A análise
que acabou de ser feita mostra que a intenção puni-
tiva só iria eventualmente surgir no espírito do ferido
em um único tipo de interpretação: a hipótese em que
ele considera como pessoalmente responsável por seus
ferimentos aquele que colocou a bomba. A reação pu-
nitiva é impensável nas duas primeiras interpretações
(marcos de referência natural e sobrenatural).
Mas, mesmo na terceira hipótese (marco de referên-
cia social), é preciso fazer uma distinção. No contexto
político-religioso em que nos situamos, é difícil imaginar
que a pessoa vitimizada quisesse cobrar o que sofreu de
um indivíduo em particular. Este contexto de enfrenta-
mento é vivido como uma situação de guerra, em que
cada um sente mais ou menos engajado de um lado ou
de outro das forças em ação. Assim, o sentimento do
ferido em relação à pessoa que colocou a bomba, prova-
velmente não seria diferente do que se experimenta em
relação ao soldado que descarrega a metralhadora num
campo de batalha. Suponhamos, porém, que o ferido
ponha a culpa num indivíduo em particular. Será que
vai querer puní-lo? Mesmo numa chave interpretativa
em que alguém é responsabilizado pelo acontecimento
vitimizador, o ferido pode sentir uma pulsão comple-
tamente diferente do desejo de punir. Ele pode querer

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tentar compreender. Pode perdoar. Eventualmente, é


verdade, sua reação, dentro deste quadro que acaba de
ser descrito, poderá se fixar em sentimentos retributi-
vos. Mas aí, o que ele vai querer que seja infligido àque-
le que vê como o responsável por sua dor é uma pena
real, uma pena relacionada com a emoção e o dano que
ele pessoalmente sofreu, e não uma pena burocrática, a
pena estereotipada do sistema penal!
Verifica-se, assim, também sob este aspecto, o quan-
to a justiça penal estatal opera fora da realidade, conde-
nando seres concretos a enormes sofrimentos por razões
impessoais fictícias.

A pena legítima

Falei algumas vezes em abolir a pena. Quero me re-


ferir à pena tal qual é concebida e aplicada pelo sistema
penal, ou seja, por uma organização estatal investida
do poder de produzir um mal sem que sejam ouvidas
as pessoas interessadas. Questionar o direito de punir
dado ao Estado não significa necessariamente rejeitar
qualquer medida coercitiva, nem tampouco suprimir to-
talmente a noção de responsabilidade pessoal. É preciso
pesquisar em que condições determinados constrangi-
mentos — como a internação, a residência obrigatória,
a obrigação de reparar e restituir, etc. — têm alguma
possibilidade de desempenhar um papel de reativação
pacífica do tecido social, fora do que constituem uma
intolerável violência na vida das pessoas.
A “pena”, tal como entendida em nossa civilização,
parece conter dois elementos: 1º- uma relação de po-
der entre aquele que pune e o que é responsável, etc. e
o outro aceitando que seu comportamento seja assim
condenado, porque reconhece a autoridade do primeiro;
2º- em determinados casos, a condenação é reforçada
por elemento de penitência e de sofrimento impostos e
aceitos em virtude daquela mesma relação de poder.

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Dossiê Louk Hulsman

Esta é a análise — e a linguagem — que estamos habi-


tuados a ouvir e que parece legitimar nosso direito de
punir. Em nosso contexto cultural, a verdadeira pena
pressupõe a concordância das duas partes.
Daí que, não havendo uma relação entre aquele que
pune e aquele que é punido, ou ausente o reconheci-
mento de autoridade, estaremos diante de situações em
que se torna extremamente difícil falar de legitimidade
da pena. Se a autoridade for plenamente aceita, pode-
remos falar de uma pena justa. Se, ao contrário, houver
uma total contestação da autoridade, não teremos mais
uma pena verdadeira, mas pura violência. Entre estes
dois extremos, podemos imaginar toda sorte de situa-
ções intermediárias.
O funcionamento burocrático do sistema penal não
permite um acordo satisfatório entre as partes. Nes-
te contexto, os riscos de uma punição desmedida são
extraordinariamente elevados. Um sistema que coloca
frente-a-frente, se é que se pode falar assim, a organiza-
ção estatal e um indivíduo, certamente, não irá produzir
uma pena “humana”. Para se convencer disso, basta
prestar atenção ao estilo de determinadas declarações
oficiais. O discurso estatal pode falar de quarenta mil
presos, como fala de milhões de mortos numa guerra:
sem qualquer problema.
Ao nível macro, estatal, as noções de pena e de res-
ponsabilidade individual resultam fictícias, infecun-
das, traumatizantes. Uma reflexão sobre “o direito” ou
“a necessidade” de punir, que pretenda se situar neste
nível, é, portanto, aberrante. Somente nos contextos
próximos, onde se podem atribuir significados concre-
tos às noções de responsabilidade individual e de “pu-
nição”, é que eventualmente será possível retomar tal
reflexão, seja ao nível mezzo das relações entre indiví-
duos e grupos ou instituições que lhes são próximos,
seja ao nível micro das relações interpessoais – lá, onde
é possível reencontrar o vivido pelas pessoas.
(...)

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Notas
1
Trecho extraído da segunda parte do livro Penas Perdidas: o sistema penal em
questão. Tradução de Maria Lúcia Karam. Niterói, LUAM, 1993. Seleção
de Salete Oliveira. A primeira parte, composta de duas entrevista de Louk
Hulsman à Jacqueline Bernat de Celis foram publicadas, respectivamente, na
Verve 1 e na Verve 2, em 2002.
2
Christian Hennion, Chronique dês flagrants délits, Paris, Stock, 1976. (N. A.)
3
O instituto da probation muitas vezes é igualado ao sursis (quando o acusado
responde o processo em liberdade), ou ainda à suspensão do processo.
Contudo, a probation procedendente da common law, ainda que se aproxime
de uma suspensão condicional do processo, tem as seguintes características
particulares: a prova é produzida, o julgamento é suspenso e a sentença não
chega a ser decretada, aproximando-se, assim, da advertência combinada a um
espaço e tempo de vigilância comunitária que pode estar associado à reparação
ou prestação de serviço à comunidade, colocando o acusado em “período
probatório” que deve responder a um “plano de conduta em liberdade”,
supervisionado pelos officers probation. (N.E.)

Indicado para publicação em 2 de fevereiro de 2009.

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Dossiê Louk Hulsman

o maior de todos os cronópios1

vera malaguti*

Para quem não sabe, Julio Cortázar dividia os homens


entre cronópios, famas e esperanças. Cronópios seriam
doces, divertidos, rebeldes, resistentes, singulares, des-
toados do coro dos contentes, anjos caídos, alegrias da
casa. Os famas: sisudos, caretas, racionalizadores, objeti-
vos, covardes, ressentidos, de uniforme gris, cartesianos,
assim seriam. É claro que os esperanças transitam entre
os dois mundos com fé no futuro, daí o nome.
Louk Houlsman: o maior de todos os cronópios. Para
a criminologia no mundo ele era um raio de sol, quase
folclórico de tão solar. O anti-teórico: não somos só o que
pensamos, somos jardineiros, cozinheiros e engraçados.
Louk estava sempre mais que rindo, gargalhoso. Era com
estilo, beleza, leveza que se desenvolvia pelos cenários do
mundo, sem levar-se a sério.
Mas não pensar que essa aura não era luta, potência.
É dele a mais genial descrição do direito penal: é a mesma
coisa que o direito canônico, sem paraíso. Sua gargalhosa
peleja contra a pena e a cultura do castigo vinha de uma
longa estrada da vida. Iñaki Anitua narra sua prisão pe-

* Doutora em Saúde Coletiva; Pesquisadora do Grupo Epos — Genealogia,


Subjetivações e Violência (IMS/UERJ); Professora no curso de Pós-Gradua-
ção em Criminologia e Direito Penal (Ministério Público/RJ); Secretária-Geral
do Instituto Carioca de Criminologia (ICC).

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los colaboracionistas em 1944, sua fuga do trem em que


seguia para a Alemanha e seu encontro com a resistên-
cia. Um pacifista como Louk, em sua militância contra
o poder da dor, forja um horror a tudo o que lembra o
nazismo, seus minúsculos detalhes, seus massacres do
dia-a-dia. Ele gostava de desconstruir tudo isso, o tempo
todo. Gestual anti-nazista, espalhafatoso, awkwardness,
o grande abolicionista das holandas gostava de tempe-
ros, e de outras fés, outras utopias. Louk viajou muito no
grande circo criminológico. O Nilo2 conta de uma tarde em
que Raúl3, Baratta4 e Lola del Zulia andavam pelas ruas
de Salvador, organizando esse grande circo místico. Pois
Louk era sua estrela máxima. Atravessou tempos ruins
nas nossas Américas, mas esteve sempre lá projetando
sua luz contra todos os desvãos da normatização do de-
lito. Não à ontologização, ao universalismo da lei: situ-
ações-problema. Ele conseguia propagar o seu discurso
rascante sendo leve, doce, bonito e alegre.
Dos anos setenta em diante no Brasil, quando tínha-
mos desejos de liberdade e horror de tudo o que nos
lembrasse o fascismo, este grande circo criminológico
andou por aqui. Naquele momento era imprescindível
desmontar os dispositivos do autoritarismo, estávamos
todos cativos da tortura, da execução, do extermínio,
do estado de polícia. Não sabíamos que a construção do
paradigma da segurança iria se espraiar depois como
rastilho de pólvora, em todas as direções do cotidiano.
Creio que vivemos anos terríveis, de luta contra o crime,
campanhas de paz, nunca o caguete foi tão homenagea-
do. Hoje o campo do pensamento político brasileiro está
quase todo tomado pelo discurso da governamentabili-
dade, dos “do bem”, da lei e da ordem, pasteurizações,
higienes, bom mocismo e vigilância total.
Louk fulgurou neste mundo careta e covarde; seguiu
impávido sem recuar, enquanto assistíamos a toda hora
alguém cair na esquerda punitiva que Malu5 tão bem de-
cifrou. Marcar esta fortaleza de Huslman é importante:
alegria não é bobeira, é estilo. É estética. É luta política.

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Dossiê Louk Hulsman

É bonito também ver como em nossos últimos anos a ju-


ventude do direito requisitava-o cada dia mais. Saudar
esse fulguroso cronópio, esse amigo gostoso em casa de
Edson Passetti renova as forças. Estamos aqui na mais
bela trincheira abolicionista. Salve o Nu-Sol. Salve Louk
Hulsman. Odô-YA!
Vou só contar dois jantares com Louk (ele adorava co-
mer e cozinhar). Um com Caridad Navarrete de Cuba, ve-
lha e heroína militante da Revolução Cubana, com forma-
ção na URSS. Foi um jantar memorável, a conversa sobre
crime que flutuava ali, entre o Partido Comunista Cubano
e o doce abolicionismo de Louk. Até Caridad me puxar de
lado e perguntar: De onde Nilo conoce este hombre?...
O outro foi no 1º Encontro Regional de Estudantes de
Direito (ERED) na PUC, há uns 2 ou 3 anos. Os moleques
organizaram em encontro majestoso, smells like teen, de-
sejos de fazer e de saber, trouxeram todo o Grande Circo
Místico da Criminologia Crítica. Saímos para jantar e Lola6
sofria com o que lhe arrepiava em seu país. Louk era o
maior abraço, o maior consolo, a boa palavra. Sempre gar-
galhoso. O maior de todos os cronópios.

Notas
1
Texto apresentado na sessão pública Louk Hulsman, um instaurador. Conversação
sobre abolicionismo penal e a vida de um pensador libertário. Com Edson Passetti, Nilo
Batista e Salete Oliveira realizado pelo Nu-Sol no Pátio do Museu da Cultura da
PUC-SP, em 05 de março de 2009. (N. E)
2
Nilo Batista (N. E.)
3
Raul Zaffaroni (N. E.)
4
Alessandro Baratta (N. E.)
3
Maria Lúcia Karam (N. E.)
4
Lola Del Zulia (N. E.)

Recebido para publicação em 5 de março de 2009. Confirmado


em 9 de março de 2009.

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louk hulsman

maria lúcia karam*

Louk Hulsman, professor emérito de Direito Penal e


Criminologia na Universidade Erasmus de Rotterdam,
autor do profundo e ao mesmo tempo simples e deli-
cioso Peines Perdues — le système penal en question,
que tive a honra e o enorme prazer de traduzir para
o português,1 morreu recentemente de um ataque do
coração, em 28 de janeiro de 2009, em Dordrecht, a
cidade holandesa onde morava.
Nascido em Kerkrade, sempre na Holanda, em 8 de
março de 1923, Louk participou ativamente da resis-
tência holandesa contra a ocupação nazista, durante a
Segunda Guerra Mundial. Capturado, esteve preso em
um campo de concentração em 1944, de onde conse-
guiu fugir, saltando de um trem que levava prisioneiros
em transferência para outro campo. Como ele narrou,
em suas conversas com Jacqueline Bernat de Celis, re-
produzidas na primeira parte de Peines Perdues, sua
anterior experiência de fuga do colégio interno ajudou-o
a escapar também dessa vez...
Concluindo o curso de Direito na Universidade de
Leiden, em 1948, trabalhou no Ministério da Defesa e,

* Juíza de Direito aposentada, membro do Intituto Brasileiro de Ciências Cri-


minais e do Instituto Carioca de Criminologia (ICC).

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Dossiê Louk Hulsman

em seguida, no Ministério da Justiça dos Países Baixos.


Em 1964, tornou-se o primeiro professor de Direito Penal
e Criminologia na Universidade Erasmus de Rotterdam,
mais tarde vindo a ser seu professor emérito. Represen-
tou a Holanda, durante muitos anos, no Comitê Europeu
para Problemas Criminais do Conselho da Europa.
Um dos fundadores do pensamento abolicionista em
matéria penal, ativo até o fim de sua intensa e lumino-
sa vida, foi incansável na transmissão de sua crítica ao
sistema penal e na defesa de sua proposta de lidar com
situações problemáticas, conflituosas ou indesejadas
de forma mais humana. Viajando por diversas partes
do mundo, fazia pensar, convencendo, influenciando,
ou, no mínimo, estimulando o nascimento de dúvidas
e questionamentos entre todos os que tiveram a gran-
de oportunidade de vê-lo, ouvi-lo, ou ler seus tantos
escritos.
Conheci-o no começo dos anos 80 do século que já
é passado. Naquele e no novo século, Louk veio com
certa frequência ao Brasil — menos do que gostaría-
mos, é claro, mas, de todo modo, aparecendo quando a
saudade já apertava demais. Trazia seu otimismo, sua
energia, sua luminosidade, sua alegria, suas fecundas
idéias sobre a abolição do sistema penal, e uma doçura
que já, por si, demonstrava a absoluta incompatibili-
dade de seu modo de ser com um sistema que, elimi-
nando a liberdade, só produz violência, danos, dores e
enganos.
No verão europeu de 2001, estive em sua casa em
Dordrecht, onde ele vivia com sua Marianne, tendo
bem próximos a filha Jehanne e os netos e, logo ali, em
Amsterdam, o filho Lodewyk. Pude, então, usufruir de
sua amável hospitalidade, dos vinhos e dos pratos deli-
ciosos que ele fazia questão de preparar. Pude ver, com
muito orgulho, nas estantes cheias de livros, a edição
brasileira do Peines Perdues. E, naturalmente, pude
conhecer o jardim que tanto o encantava, as plantas,
as flores que ele cultivava com a mesma ternura com

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que se relacionava com os humanos. Naquela ocasião,


já com quase 80 anos, Louk ficou horrorizado quando
eu disse que minhas malas eram muito pesadas e se-
ria difícil ir de trem do aeroporto de Amsterdam para
chegar a Dordrecht. Eu queria ir de táxi, mas ele não
permitiu. Disse que iria me buscar e me levaria no
trem. E assim fez. Colocou as malas no trem com uma
facilidade espantosa. Vi-o, com igual energia, a pedalar
sua bicicleta pelas ruas de Dordrecht. E a dirigir seu
carro, pelas estradas holandesas, levando-me para co-
nhecer os campos, os moinhos, o parque nacional de
Hoge Veluwe. Dirigia de forma um tanto atabalhoada,
é certo, mas sempre tranquilo e confiante. O susto ini-
cial, ao acompanhá-lo, logo se dissipava.
Vi-o pela última vez em Londres, em julho de 2008.
Sempre ativo, foi uma das presenças mais festejadas
na XII ICOPA — International Conference on Penal
Abolitionism. Sempre jovial e cheio de energia, terminada
a conferência, fez questão de me levar, com Jehanne,
para um passeio a pé pelas margens do Tamisa, até a
Tate Modern, lá aumentando o prazer proporcionado
pela visão da arte, com suas ricas observações sobre
as obras que revia com entusiasmo e admiração
renovados.
Mas, para recordar e celebrar a vida de Louk Hulsman,
nada melhor do que ler (ou reler) e refletir sobre sua
experiência transformada em seus profícuos pensa-
mentos e ensinamentos, nada melhor do que firmar (ou
renovar) o compromisso de transmitir e levar adiante
sua proposta de um mundo que, libertado do sistema
penal, será um lugar onde a dignidade de cada um dos
indivíduos se reconhecerá igualmente, onde ninguém
será privado da liberdade, onde, efetivamente realiza-
dos seus direitos fundamentais, todos os indivíduos
poderão viver de forma mais tolerante, mais solidária,
mais humana, mais amena, mais feliz — um mundo
inquestionavelmente muito melhor.

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Assim, para recordar e celebrar a vida de Louk


Hulsman, seleciono e comento algumas passagens de
Peines Perdues, aquelas que mais me tocam, que mais
me influenciaram, que não canso de reproduzir, em
suma, as minhas preferidas, embora seja extremamente
difícil tal seleção, até porque o prazer maior é certamente
o de ler (ou reler) cada página, cada frase, cada palavra
dessa pequena e ao mesmo tempo imensa obra-prima
do pensamento humanitário, libertário, inovador.
Comecemos com a conhecida parábola dos cinco
estudantes: “Cinco estudantes moram juntos. Num
determinado momento, um deles se arremessa con-
tra a televisão e a danifica, quebrando também alguns
pratos. Como reagem seus companheiros? É evidente
que nenhum deles vai ficar contente. Mas, cada um,
analisando o acontecido à sua maneira, poderá adotar
uma atitude diferente. O estudante número 2, furioso,
diz que não quer mais morar com o primeiro e fala em
expulsá-lo de casa; o estudante número 3 declara: ‘o
que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e
outros pratos e ele que pague’. O estudante número 4,
traumatizado com o que acabou de presenciar, grita:
‘ele está evidentemente doente; é preciso procurar um
médico, levá-lo a um psiquiatra, etc...’. O último, enfim,
sussurra: ‘a gente achava que se entendia bem, mas
alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade,
para permitir um gesto como esse ... vamos juntos fazer
um exame de consciência’.”2
Quando se aciona o poder punitivo, quando entra
em cena o sistema penal, selecionando-se determina-
das condutas para qualificá-las como crimes e puni-las
com uma pena, simplesmente são afastados esses dife-
rentes estilos, esquecidas as várias reações que podem
surgir diante de tais condutas negativas, conflituosas,
problemáticas e/ou indesejáveis. Quando se dá à con-
duta a qualificação legal de crime, toda tentativa de me-
lhor compreensão do fato ocorrido, toda aquela busca
de soluções efetivas, todas as outras reações possíveis

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são afastadas pela monopolizadora, violenta, dolorosa e


enganosamente satisfatória reação punitiva.
Crimes não existem naturalmente. Crimes não pas-
sam de meras criações da lei penal, não existindo um
conceito natural que os possa genericamente definir.
As condutas criminalizadas não são naturalmente dife-
rentes de outros fatos socialmente negativos ou de si-
tuações conflituosas ou desagradáveis não alcançadas
pelas leis penais. A enganosa publicidade do sistema
penal oculta a realidade do caráter puramente político
e historicamente eventual da seleção de condutas cha-
madas de crimes. O que é crime em um determinado
lugar pode não ser em outro; o que ontem foi crime,
hoje pode não ser; o que hoje é crime, amanhã poderá
deixar de ser.
Como Louk assinalava, “conforme você tenha nasci-
do num lugar ao invés de outro, ou numa determinada
época e não em outra, você é passível — ou não — de
ser encarcerado pelo que fez, ou pelo que é.”3
Pense-se no aborto: enquanto a maioria das habi-
tantes do planeta vive em países onde abortos podem
ser realizados legalmente, idêntica conduta de mulheres
que vivem sob legislações proibicionistas é qualificada
como criminosa. Pense-se nas relações homossexuais,
que, ainda em meados do século XX, eram criminali-
zadas mesmo em países europeus, enquanto, hoje, ao
contrário, em grande parte do mundo, advoga-se a crimi-
nalização de condutas de quem pratique discriminação
motivada pela rejeição a tal orientação sexual. Pense-se,
ainda, em alguém que vendia uísque nos EUA, durante
a vigência da chamada Lei Seca, de 1920 a 1932: era
um “criminoso”, da mesma forma que, atualmente, é as-
sim etiquetado quem vende outras drogas, análogas ao
álcool, agora globalmente proibidas, como maconha ou
cocaína.
Mas, voltemos às palavras de Louk: “O que há em
comum entre uma conduta agressiva no interior da fa-

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mília, um ato violento cometido no contexto anônimo


das ruas, o arrombamento de uma residência, a fabri-
cação de moeda falsa, o favorecimento pessoal, a recep-
tação, uma tentativa de golpe de Estado, etc? Você não
descobrirá qualquer denominador comum na definição
de tais situações, nas motivações dos que nelas estão
envolvidos, nas possibilidades de ações visualizáveis
no que diz respeito à sua prevenção ou à tentativa de
acabar com elas. A única coisa que tais situações têm
em comum é uma ligação completamente artificial, ou
seja, a competência formal do sistema de justiça cri-
minal para examiná-las. O fato delas serem definidas
como ‘crimes’ resulta de uma decisão humana modifi-
cável (...). Um belo dia, o poder político para de caçar as
bruxas e aí não existem mais bruxas. (...). É a lei que
diz onde está o crime; é a lei que cria o ‘criminoso’.”4
A enganosa publicidade que nos faz ignorar essa
artificialidade e essa relatividade temporal e espacial,
levando-nos a pensar e falar em crimes e criminosos
como algo natural e perene, vale-se de uma linguagem
igualmente artificial. As falsas crenças e os muitos enga-
nos que alimentam o sistema penal são frequentemente
transmitidos através de uma linguagem impregnada por
uma forte carga emocional, uma linguagem assustado-
ra, demonizadora, que funciona como um instrumento
particularmente importante para o exercício do poder
punitivo.
Essa linguagem característica do sistema penal,
esse discurso da repressão, esse dialeto penal dramati-
za, demoniza, isola pessoas e acontecimentos, ocultam
suas reais características. Vejam-se as observações de
Louk: “As palavras crime, criminoso, criminalidade, polí-
tica criminal, etc. pertencem ao dialeto penal, refletindo
os a priori do sistema punitivo estatal. O acontecimen-
to qualificado como “crime”, desde o início separado de
seu contexto, retirado da rede real de interações indi-
viduais e coletivas, pressupõe um autor culpável; o ho-
mem presumidamente “criminoso”, considerado como

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pertencente ao mundo dos “maus”, já está antecipada-


mente proscrito...”5
Palavras ocas, de significado desvirtuado ou inde-
finido, que acentuam a dramatização e a demonização
já presentes na própria idéia generalizadora de crime,
vão sendo periodicamente criadas, vão se interiorizan-
do, vão se consolidando, de modo a associar a idéia de
crime a algo ainda mais misterioso e poderoso e que por
isso seria incontrolável por meios regulares.
Com isso se propicia a aceitação de leis penais e
processuais penais, que, editadas sob o pretexto de va-
riadas emergências que acabam por se tornar perenes,
sistematicamente violam princípios garantidores de
direitos fundamentais, positivados em normas inscri-
tas nas declarações internacionais de direitos e cons-
tituições democráticas. Pense-se na sempre indefinida
e efetivamente indefinível expressão “criminalidade or-
ganizada”, sem nenhum significado particular, aplicá-
vel, ao sabor das criadas emergências, ao que quer que
se queira convencionar como suposta manifestação de
um tal imaginário fenômeno. Pense-se na expressão
“narcotráfico”, cujo claro descompromisso com a re-
alidade e com a ciência, não inibe seus “usuários”,
que, para criar o útil e exacerbado clima emocional,
passam tranquilamente por cima do fato de que quem
vende, por exemplo, cocaína, não está “traficando”
um narcótico, mas está vendendo, ao contrário, um
estimulante.
Indiferentes à infinita dor daqueles que sofrem a
pena, dispostos a aceitar os totalitários apelos que pro-
põem a troca da liberdade por uma ilusória segurança,
seduzidos pelas nocivas idéias que privilegiam a ordem
ou a defesa de uma abstrata sociedade em detrimento
das vidas de seres humanos concretos, dominados por
autodestrutivos desejos de vingança, muitos aplaudem
o encarceramento de indivíduos rotulados como “crimi-
nosos”, insistindo em não perceber os danos causados,

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Dossiê Louk Hulsman

inclusive a si próprios, pela inútil e desumana privação


da liberdade.
A opção pelo encarceramento não esconde um cer-
to sado-masoquismo. O lado sádico parece evidente.
Do outro lado, basta considerar que, isolando, estig-
matizando e ainda submetendo aqueles que seleciona
ao inútil e desumano sofrimento da prisão, o sistema
penal faz com que esses indivíduos selecionados para
cumprir o papel de “criminosos” se tornem mais desa-
daptados ao convívio social e, consequentemente, mais
aptos a praticar agressões e outras condutas negativas,
conflituosas ou indesejáveis.
Voltemos às palavras de Louk: “Gostaríamos que
quem causou um dano ou um prejuízo sentisse remor-
sos, pesar, compaixão por aquele a quem fez mal. Mas,
como esperar que tais sentimentos possam nascer no
coração de um homem esmagado por um castigo des-
medido, que não compreende, que não aceita e não pode
assimilar? Como este homem incompreendido, despre-
zado, massacrado, poderá refletir sobre as consequên-
cias de seu ato na vida da pessoa que atingiu? (...) Para
o encarcerado, o sofrimento da prisão é o preço a ser
pago por um ato que uma justiça fria colocou numa
balança desumana. E, quando sair da prisão, terá pago
um preço tão alto que, mais do que se sentir quites,
muitas vezes acabará por abrigar novos sentimentos de
ódio e agressividade. (...) O sistema penal endurece o
condenado, jogando-o contra a ‘ordem social’ na qual
pretende reintroduzi-lo.”6
Somando-se a esses sentimentos e aos obstáculos
objetivos à reintegração social, há ainda o fato de que
a estigmatização opera não somente como um etiqueta-
mento externo. Quando alguém é visto e tratado como
um “criminoso” ou, ainda pior, como o “inimigo”, aca-
bará por efetivamente assumir esse papel, tendendo a
viver marginalmente e a se comportar de acordo com a
imagem que lhe foi atribuída e que finalmente interna-
lizou.

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A subsistência e, pior, o crescimento do poder puniti-


vo mostra o quanto ainda é longo o caminho a percorrer
para se construir um mundo onde a liberdade e todos
os demais direitos fundamentais sejam efetivamente re-
alizados e usufruidos por todos os indivíduos.
As dores da privação da liberdade revelam a irracio-
nalidade da punição. O sistema penal é absolutamente
irracional. Qual a racionalidade de se retribuir um so-
frimento causado pela conduta criminalizada com um
outro sofrimento provocado pela pena? Se se pretende
evitar ou, ao menos reduzir, as condutas negativas, os
acontecimentos desagradáveis e causadores de sofri-
mentos, por que insistir na produção de mais sofrimen-
to com a imposição da pena?
As leis penais não protegem nada nem ninguém; não
evitam a realização das condutas que por elas crimina-
lizadas são etiquetadas como crimes. Servem apenas
para assegurar a atuação do enganoso, violento, dano-
so e doloroso poder punitivo.
O sistema penal não alivia as dores de quem sofre
perdas causadas por condutas danosas e violentas, ou
mesmo cruéis, praticadas por indivíduos que eventu-
almente desrespeitam e agridem seus semelhantes. Ao
contrário. O sistema penal manipula essas dores, in-
centivando o sentimento de vingança, para viabilizar e
buscar a legitimação do exercício do violento, danoso e
doloroso poder punitivo. Desejos de vingança não tra-
zem paz de espírito. Desejos de vingança acabam sendo
autodestrutivos. O sistema penal manipula sofrimentos
para perpetuá-los e para criar novos sofrimentos.
A pena, qualquer que seja ela, definitivamente, serve
apenas para somar mais danos e dores aos danos e dores
causados pelas condutas etiquetadas como crimes e para
fortalecer o poder estatal em detrimento da liberdade dos
indivíduos.
O encarceramento afeta o direito à liberdade em tal
extensão que implica em sua própria eliminação. A eli-

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Dossiê Louk Hulsman

minação de um direito fundamental não se compatibiliza


com a idéia de democracia. Um direito fundamental pode
ser restringido para permitir o exercício de outros direi-
tos fundamentais, mas não pode ser totalmente elimina-
do, como acontece quando alguém é condenado a uma
pena privativa de liberdade.
Uma agenda política destinada a aprofundar a de-
mocracia e construir um mundo onde os direitos fun-
damentais de todos os indivíduos sejam efetivamente
respeitados há de incluir a abolição das prisões — e,
mais ainda, a abolição do próprio sistema penal, o fim
do poder punitivo — como um de seus principais obje-
tivos. Como a escravidão hoje nos escandaliza, a pena
privativa de liberdade também há de ser vista como
um escandaloso fenômeno que, paradoxalmente, ainda
subsiste no interior de Estados democráticos.
A comparação com a escravidão não é exagerada. A
luta pela abolição das prisões também é uma luta pela
liberdade; uma luta contra um sistema que estigmatiza,
discrimina, produz violência e causa dores; uma luta
para pôr fim a desigualdades; uma luta para reafirmar
a dignidade inerente a cada um dos seres humanos.

A abolição das prisões — e, mais ainda, a abolição


do próprio sistema penal, o fim do poder punitivo —
pode parecer, para os mais céticos, uma utopia, espe-
cialmente nesses tempos em que um agigantado poder
punitivo prevalece em todo o mundo. Mesmo que fosse
apenas uma utopia, já valeria a pena cultivar tal ideal.
No entanto, a abolição das prisões — e, mais ainda, a
abolição do próprio sistema penal, o fim do poder puni-
tivo — não são efetivamente uma utopia. A abolição das
prisões — e, mais ainda, a abolição do próprio sistema
penal, o fim do poder punitivo — são uma consequên-
cia lógica da trajetória que foi e deve permanentemente
ser seguida pela humanidade em sua evolução, uma
consequência lógica da trajetória que ainda precisa ser

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seguida em direção ao aprofundamento da democracia


e à efetiva concretização dos direitos fundamentais.
No futuro, certamente será difícil imaginar que, al-
gum dia, um poder voltado para a eliminação da liberda-
de tenha podido conviver com a idéia de democracia.
A abolição do sistema penal é apenas uma questão
de tempo.
Tentemos aprender com a experiência de Louk
Hulsman e seguir suas idéias-chave — estar aberto;
viver solidariamente; estar apto a uma permanente
conversão.
Esforcemo-nos para fazer frutificar, interiormente e
externamente, o desejo de mudança. Assim, estaremos
mais aptos a contribuir para a construção de um mundo
em que todos os indivíduos e seus direitos fundamen-
tais serão efetivamente respeitados; um mundo em que
não haverá prisões; um mundo em que nenhum Estado
terá o violento, danoso e doloroso poder de punir; um
mundo em que ninguém mais será estigmatizado como
o “criminoso” ou o “inimigo”.

Notas
1
Penas Perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria Lúcia Karam.
Niterói, Ed. Luam, 1993.
2
Idem, p. 100.
3
Ibidem, p. 63.
4
Ibidem, p. 64.
5
Ibidem, pp. 95-96.
6
Ibidem, pp. 71-72.

Recebido para publicação em 16 de fevereiro de 2009. Confir-


mado em 9 de março de 2009.

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Dossiê Louk Hulsman

relembrança de louk hulsman1

0 batista*
nilo

Ao comparar as obras poéticas de Tomás Antônio


Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, observou Antonio
Candido que, no primeiro, “a poesia parece fenômeno
mais vivo e autêntico, menos literário” do que no segun-
do, talvez por terem os versos de Dirceu “brotado de ex-
periências humanas palpitantes.”2 Essa passagem, na
qual tropecei quando tentava conhecer melhor nosso
jusnaturalista pombalino, veio-me à mente no próprio
momento em que, notificado do falecimento de Louk
Hulsman, tentava calcular o prejuízo incomensurável
da baixa. De fato, nenhum pensamento abolicionista —
e os há admiravelmente elaborados, como por exemplo
os de Thomas Mathiesen, de Nils Christie e de Edson
Passetti — teve ressonância e influência maiores que
o de Louk Hulsman. Louk não era apenas o professor
carismático, uma espécie de popstar que fascinava todos
os estudantes e deixava engasgada metade de seus cole-
gas. Sua biografia agitada e militante, da resistência ao
magistério, e seu engajamento radical na desconstrução
dos mitos punitivos explicam não só seu prestígio aca-
dêmico, mas também porque seu abolicionismo sempre
parecia “mais vivo e autêntico, menos literário”, como
diria Antonio Candido.

* Professor titular de direito penal da UFRJ e da UERJ.

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Não estamos aqui para uma exposição sintetizadora


da obra de Louk Hulsman,3 mas sim para recordá-lo e
chorar por sua partida. Ocorre que, no caso de Louk,
vida e obra foram uma coisa só. Sobre suas rotas me-
todológicas, Juan Bustos Ramirez disse tudo: “parte de
la vivencia personal y termina siempre en la experiencia
individual; su objetivo y medio es el hombre en su quehacer
cotidiano.”4 Tendo constado, pelo privilégio da primeira
leitura, que a Profª. Verinha Malaguti puxou pela vida
e fez uma fotografia justa e linda da obra, resolvi fazer
o caminho inverso, para chegar ao mesmo resultado;
porque, neste penalista que esteve preso, puxando-se
pela obra também se chega à vida.
Gostaria de me deter aleatoriamente sobre três dos
topoi da tópica abolicionista de Louk, sem a menor
convicção de que sejam os mais importantes. Começo
pelo “nonsense do sistema penal”. Nas mãos de Louk
Hulsman, o automatismo da burocracia dos sistemas
penais, a seletividade imanente a todos eles, a margi-
nalização real da vítima (contraposta, hoje, a um pro-
tagonismo puramente simbólico, já que a decisão sobre
o processo e a solução jurídica não estão, regra geral,
em seu poder), a cifra oculta, as mentiras da ressociali-
zação, tudo isso foi implacavelmente desmontado, des-
sacralizado, reduzido à imagem chapliniana da linha de
montagem industrial. Ouçamos nosso homenageado: “é
como se estivéssemos numa linha de montagem, onde
o acusado vai avançando: cada um dos encarregados
aperta seu parafuso e, ao final da linha de montagem,
sai o produto final do sistema — de cada quatro pes-
soas, um prisioneiro.”5 O sistema penal é um nonsense,
porque o seu produto, o sofrimento punitivo, também é
um nonsense, por ser um “sofrimento estéril.”6 Ao argu-
mento do monopólio da força legítima, respondeu com
palavras cuja atualidade dispensa qualquer comentário:
“o renascimento das milícias e justiças privadas, agindo
sob a forma de autodefesa punitiva, se dá precisamen-
te em contextos onde o sistema penal funciona a todo
vapor.”7 Estimulada pela violência do Estado, aquela da

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força legítima, os negócios da violência privada — aquela


outra mais ou menos legítima — vicejam como nunca,
encontrando nas parcerias público-privadas que cons-
troem e exploram prisões uma demonstração expressiva
de sua estrutural unidade.
Em segundo lugar, quero recordar a radicalidade com
a qual Louk Hulsman recusava todo conceito de crime
que ostentasse a mais tênue pretensão ontológica. Para
ele, a única coisa que distintos delitos — aliás, distin-
tas situações problemáticas8 — “têm em comum é uma
ligação completamente artificial, ou seja, a competência
formal do sistema de justiça criminal para examiná-las.”9
Entre uma falsidade documental, uma apropriação
indébita, um homicídio e um assédio sexual, o único
ponto comum é constituirem infrações penais, crimes.
Mas, voltemos a Louk, “chamar um fato de crime sig-
nifica limitar extraordinariamente as possibilidades
de compreender o que aconteceu e providenciar uma
resposta.”10 Aí se reflete um ponto de partida político
de Louk, que antepõe decididamente o indivíduo ao
Estado, embora preserve algumas “esferas de decisão
(...) sob a direção do Estado.”11 Referi-me, certa oca-
sião, a um “abolicionista utópico”, mas ele não gostou:
utópico é o discurso convencional, respondeu.12 Poderia
ser, e talvez tenha sido em algum momento, um libera-
lismo radical que perpassa o “direito fundamental de
viver segundo sua própria visão das coisas”,13 e viria
a assumir feições de um anarco-abolicionismo tempe-
rado por um pragmatismo processual que não recusa
avanços pontuais, como o fim dos castigos físicos na
escola.14 Em nenhum desses momentos de seu percurso
Louk Hulsman vacilou: ele não foi seduzido, como tan-
tos professores importantes do campo progressista, pelo
canto de sereia do uso alternativo do poder punitivo15 ou
de uma “política criminal alternativa.”16
Por fim, fixemo-nos num ponto central de seu pen-
samento, as afinidades entre a cultura punitiva ociden-
tal e a tradição judaico-cristã, particularmente em sua

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institucionalização eclesiástica. Há campos em que


essas afinidades são muito visíveis, como por exem-
plo na fantástica apropriação jurídico-penal da sexu-
alidade, realizada pelo direito canônico, cujas marcas
estão por toda parte na criminalização do “sexo ilícito”.
Desenvolvendo suas reflexões sobre aquelas afinida-
des, numa conferência proferida em Buenos Aires, em
1996, Louk vai procurando correspondências entre a
terapêutica das almas e a expiação dos corpos infrato-
res, até perguntar: “Qual é o purgatório neste sistema”?
E responder-se: “é o cárcere. Esta é a organização do
sistema de justiça”. Ao purgatório — ao lugar no qual o
sujeito “pode queimar-se um pouco (...) de acordo com
os pecados que cometeu”17 — corresponderia o cárce-
re. A primeira reação estranharia que ao purgatório,
seguramente inventado aproximadamente entre 1150
e 1250,18 correspondesse um dispositivo punitivo só
disponível três centúrias depois, o cárcere moderno, a
penitenciária comum que seria a rainha das penas no
capitalismo industrial. Quem, no entanto, se der ao tra-
balho de, na companhia agradável de Jacques Le Goff,
observar os textos canônicos que instalam a crença no
Purgatório, encontrará uma série de correspondências,
como, para ficar num exemplo caricatural, a classifica-
ção canônica das almas dos defuntos segundo sua con-
duta terrena19 em relação às classificações disciplinares
de internos. É fora de dúvida que a invenção do Purga-
tório se dá naquele momento histórico estratégico, no
qual está também sendo inventada a pena pública, e
um mercantilismo seminal e terrestre inicia — até com
um ius mercatorum — a erosão do mundo feudal, que
no entanto só explodirá mais tarde. Mas é possível que
o paradigma do ignis purgatorius tenha representado
no Ocidente a definitiva fusão cristã da pena expiató-
ria retributiva e da pena medicinal preventiva, porque
o fogo punitivo, mesmo brando, tem a extraordinária
propriedade de a um só tempo fazer sofrer o padecente
e recuperá-lo para a vida celestial. Atribuir ao sofrimen-
to uma utilidade não é só o monstruoso e inabalável

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fundamento das legitimações preventivas da pena, que


lhes confere dutibilidade teórica para articularem-se à
legitimação retributivista, sem qualquer má consciên-
cia dos juristas e dos juízes quanto às contradições
irresolúveis de tal articulação. Já comparei essa arti-
culação à teoria legitimante do Lobo: condene-se em
nome da ressocialização do réu; mas se ele não precisar
de ressocialização, condene-se para advertir os demais
cidadãos; e se porventura o réu for o solitário supervi-
sor do farol na ilha marítima, sem concidadãos a serem
advertidos, condene-se em nome da retribuição, ou já
esquecemos Kant? Atribuir ao sofrimento uma utilidade
é também o princípio legitimante da tortura, essa prática
processual tenebrosa da qual a angustiada alma pena-
lística ocidental não consegue libertar-se, que retorna e
se expande sem cessar, desafiando nos porões da clan-
destinidade ou no conforto refrigerado da exceção, entre
Paraisópolis e Guantánamo, os outdoors discursivos de
sua criminalização. O que Louk Hulsman profetizou so-
bre a influência do Purgatório em mentalidades puniti-
vas cristãs ainda será melhor decifrado por todos nós.
Muito longe da homenagem que ele merece, e que
toda a academia latinoamericana, à qual foi ele tão li-
gado, já lhe está prestando, essa relembrança de Louk
Hulsman quer apenas realçar a imensa falta que suas
lições, suas visões e intuições nos farão nesses tem-
pos sinistros, que pretendem entregar à pena a gestão
da sociabilidade. Sentiremos muita falta daquele abo-
licionismo “vivo e autêntico, brotado de experiências
humanas”, como da poesia de Gonzaga disse Antonio
Candido. Sentiremos muita falta de Louk Hulsman.
Mas sua vida e sua obra, coerente e inseparavelmente
construídas, nos orientarão nas duras batalhas que nos
aguardam.

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Notas

1
Texto apresentado na sessão pública Louk Hulsman, um instaurador.
Conversação sobre abolicionismo penal e a vida de um pensador libertário. Com
Edson Passetti, Vera Malaguti e Salete Oliveira, realizado pelo Nu-Sol no
Pátio do Museu da Cultura da PUC-SP, em 05 de março de 2009. (N. E)
2
Antonio Candido. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte, ed.
Itatiaia, 1997, v. 1, p. 109.
3
Sobre ela, AA.VV., “Mélanges en l’honneur de Louk Hulsman” in Cahiers
de Defense Sociale, Milão, ed. SIDS, 2003; para a bibliografia do homenageado,
pp. 273 ss. A interlocução “marginalizante” que com ele manteve Raúl
Zaffaroni (En Busca de las Penas Perdidas. Buenos Aires, ed. Ediar, 1989; Em
Busca das Penas Perdidas, Tradução de V.R. Pedrosa e A. L. Conceição.
Rio de Janeiro, ed. Revan, 1991) é imperdível.
4
No prólogo a Louk Hulsman, e Jacqueline Bernat de Celis, Sistema Penal
y Seguridad Ciudadana, Barcelona, ed. Ariel, 1984. A tradução brasileira, de
Maria Lúcia Karam, observa o título original (Penas Perdidas, Niterói, ed.
Luam, 1983). Citaremos da tradução brasileira.
5
Idem, p. 61.
6
Ibidem, p. 62.
7
Ibidem, p. 114.
8
“Não existem crimes, mas apenas situações problemáticas” (Ibidem, p.
101).
9
Ibidem, p. 64.
10
Ibidem, p. 99.
11
Ibidem, pp. 42 e 126.
12
Louk Hulsman, entrevista, em DS-CDS nº 5-6, Rio de Janeiro, ed. F.
Bastos, 1998, p. 10.
13
Louk Hulsman, e Jacqueline Bernat de Celis, 1983, op. cit., p. 46.
14
Idem, p. 49.
15
“Coloquemos na prisão — dizem eles — os que enganam o fisco ou os
consumidores, remetem seu capital para o exterior, poluem o ambiente,
recusam-se a instalar em suas empresas dispositivos de segurança que
reduziriam os acidentes de trabalho. Esse não é meu modo de ver. (...)
Nos campos ainda não criminalizados, dever-se-ia evitar a qualquer preço
a criminalização”.

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Dossiê Louk Hulsman

16
É a expressão do notável Alessandro Baratta. Criminologia Crítica e Crítica
do Direito Penal. Tradução de J. C. Santos. Rio de Janeiro, ed. Revan, 1999,
p. 208.
17
Louk Hulsman. Pensar en Clave Abolicionista. Tradução de A. Vallespir.
Buenos Aires, ed. Cinap, 1997, p. 22.
18
Cf. Jacques Le Goff. La Naissance du Purgatoire. ed. Gallimard col. Folio-
Histoire, 1981, p. 14.
19
Jacques Le Goff, 1981, op. cit., pp. 200 ss.

Recebido para publicação em 5 de março de 2009. Confirmado


em 9 de março de 2009.

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louk hulsman, abolicionismo penal e


percursos surpreendentes1

salete oliveira*

Dizer que Louk Hulsman é um dos mais importan-


tes autores do abolicionismo penal é pouco. Ou melhor,
para dizer de sua tamanha importância é preciso ini-
ciar por algo menor. Hulsman era um homem atento
às possibilidades históricas daquilo que parece impos-
sível de acontecer: abolir o sistema penal. Do mesmo
modo que o surgimento da prisão moderna vingou
na simultânea impossibilidade de seu acontecimento,
como mostrou Michel Foucault em Vigiar e punir. Em
maio de 68, jovens transgressores costumavam dizer
que só o impossível acontece, pois o possível apenas se
repete. Hulsman foi um homem de diferença, não de
repetições e sua atuação abolicionista forjada, de forma
mais definitiva, na contestadora década de 1970 veio
afirmar sua existência singular para o abolicionismo
penal atravessada pela atmosfera das lutas anti-pri-
sionais e anti-manicomiais daquela época. Mas não só,
o impossível se fez possível, no presente, no aconteci-
mento, na brutal força do minúsculo da luta: a palavra.
A palavra abolicionismo. Abolicionismo, dizia Hulsman,

* Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora no De-


partamento de Política da PUC/SP.

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Dossiê Louk Hulsman

é um termo inexistente para um holandês. Costumava


chamar a atenção para este fato, pois diferente de nós
nas Américas e de tantos outros no continente Africano,
seu idioma, sua língua, não são afeitos à experiência da
abolição da escravidão. Hulsman apropriou-se da pala-
vra impossível e a fez arma de luta, mesmo porque não
desconhecia que uma escravidão, seja ela qual for, não
se abole por decreto ou por qualquer expediente legal.
Talvez daí viesse sua expressão rara e recorrente de que
“é preciso abolir o sistema penal, antes de mais nada,
em si mesmo.”

Procedências abolicionistas penais

O Direito Contemporâneo, edificado nas mesmas ba-


ses de promoção da seguridade do Estado de Bem-Estar
Moderno, propaga a afirmação de que a racionalidade
jurídica do Direito está norteada por um ‘novo paradig-
ma’ ⎯, preconizado pelos direitos e garantias fundamen-
tais e direitos sociais ⎯ não mais subjugado às noções
universais e transcendentais da justiça, mas balanceado
por interesses sociais irredutíveis, sob a nomenclatura
de direitos difusos e coletivos.
Na divisão tradicional do Direito, remetida ao refe-
rencial da soberania, encontra-se uma linha contínua
de seu próprio desenvolvimento evolutivo. Nesta pers-
pectiva, as mudanças ocorridas no seu interior são
dispostas em escala ascendente que subjaz à confor-
mação e desenvolvimento da política moderna e con-
temporânea. O Direito Clássico, o Direito Moderno, e o
Direito Contemporâneo perfilam-se em uma passagem
de substituição consecutiva imprescindível à justifica-
tiva de seu inerente progresso.
A análise genealógica coloca para este equaciona-
mento estável um problema, uma vez que do ponto de
vista analítico é preciso atravessar a representação de
práticas discursivas, mais do que isso, a representação

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que elas fazem de si mesmas. Deste ponto de vista, é


possível estabelecer algumas descontinuidades naquilo
que a lógica do Direito constrói como sua evolução har-
mônica. Trata-se de interrogar a tranquilidade daquilo
que a Filosofia do Direito prefere designar por “herme-
nêutica jurídica”.
O Direito tomado em linhas mais amplas está vin-
culado a uma subdivisão interna que faz comunicar
saberes hierárquicos entre as esferas que ele distingue
em seu poder de extensão e apreensão: Direito Consti-
tucional, Direito Civil, Direito Penal, Direito Comercial,
Direito Internacional, Direito do Trabalho, Direito das
Relações de Consumo, Direito Ambiental, Direito de
Família, Direito da Criança e do Adolescente, Direitos
Humanos. Esta proliferação de direitos no Direito, que
comporta tantos outros não citados, pode ser estanca-
da de várias maneiras. Estancar esta lógica exige uma
pergunta inicial: como diante da proliferação de direitos
sociais e direitos difusos e coletivos, cuja procedência
significativa encontra-se no Direito Civil, o Direito Penal
não se tornou supérfluo no interior de um Direito mais
amplo? Esta questão que interpela e, ao mesmo tempo,
estanca a pretensa estabilidade do Direito, aponta para
possíveis desdobramentos de uma breve análise.
“Nessa atividade, que se pode, pois, dizer genea-
lógica, vocês vêem que, na verdade, não se trata de
forma alguma de opor à unidade abstrata da teoria
a multiplicidade concreta dos fatos; não se trata de
forma alguma de desqualificar o especulativo para lhe
opor na forma de um cientificismo qualquer, o rigor
dos conhecimentos bem estabelecidos. Portanto, não
é um empirismo que perpassa o projeto genealógico;
não é tampouco um positivismo, no sentido comum do
termo, que o segue. Trata-se, na verdade, de fazer que
intervenham saberes locais, descontínuos, desqualifica-
dos, não legitimados, contra a instância teórica unitária
que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em

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nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos di-


reitos de uma ciência que seria possuída por alguns.”2
Incidir no espaço de combate, no qual reside o aco-
plamento do saber histórico das lutas, como sugere
Foucault, exige esgarçar o conforto do Direito e dos di-
reitos. Requer perturbar a ordem tranquila das coisas,
que dispõe nomes apaziguados na junção soberana que
o Direito reivindica para si, no que tange à sua verdade
teórica e à sua soberana verdade. A questão colocada
retorna: como o Direito Penal não se torna supérfluo?
E, esta colocação afirmada fora do quadro jurídico da
soberania implica em problematizar a emergência do
Direito Contemporâneo, proveniente da medicalização
do controle, cuja erupção se dá na metade do século
XX, simultaneamente aos efeitos da Segunda Guerra
Mundial, que coincidem com a edificação de uma nova
moral, a somatocracia.
Esta gestão de poder específica corrobora a eficácia
articuladora das práticas de normalização acopladas
ao discurso da promoção de seguridade, cujo combate
ao mal é disposto em sofisticadas conexões. Ao mesmo
tempo que enuncia o que lhe é insuportável, sinalizan-
do para aquilo que apressadamente poderia ser tomado
como mecanismo de exclusão, constrói em seu entorno
dispositivos de segurança para incluir o que lhe é incô-
modo. Fomenta uma política destinada a fazer valer a
construção do medo indispensável. É provável que este
seja um dos novos arranjos da defesa social na articu-
lação do direito penal e direitos sociais, como um bem
democrático no Direito.
A política continua sendo a guerra prolongada por
outros meios, e seus efeitos atuais explicitam que se
a sociedade de controle em sua emergência precisou
investir primeiro na medicalização do próprio contro-
le mostrou-se, posteriormente, uma estratégia eficaz
de controle difuso norteada por parâmetros precisos,
intrincados na disputa do controle da segurança.
Trata-se de um reacomodamento da política que gesta

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a medicalização do controle em nome da reforma da


moral da prevenção geral, ao reiterar a continuidade
da prisão em nome da defesa da sociedade, perpetu-
ando, preferencialmente, a incrementação do Direito
Penal, com a universalização do julgamento, equiva-
lente propício à lógica ininterrupta da atualização do
grande tribunal do mundo.
A normalização da vida, consoante à prevenção
geral moderna, exigiu que a infração se convertes-
se em crime e que a interpretação da vida pregressa
dos considerados perigosos se convertesse no suporte
técnico-científico para justificar tanto atos ainda não
cometidos quanto para legitimar seu risco projetado
na certeza da atitude futura, a punição não recairá
mais sobre o ato cometido mas na ameaça potencial.
A defesa da vida e da sociedade no século XIX, sob a
primazia da figura do criminoso e do conceito de pe-
riculosidade virou defesa da humanidade a partir da
metade do século XX, com o Direito acessível a todos,
e hoje passa pela proliferação das esferas de controle
nos atos mais ínfimos, reinventando a sintaxe da su-
jeição sob a justificativa da defesa dos direitos inalie-
náveis, que pretendem afirmar a utopia da cidadania
mundial e explicitando, ao mesmo tempo, as fronteiras
intransponíveis de cada um.
O discurso da inclusão confinado na produção da
sua própria moral, remetido eternamente à centralidade
do poder, não produz outra coisa senão a indispensável
terceira perna, muleta manca e corcunda para todos
aqueles que primam pela covardia de se manter em pé
sem rogar por uma base alheia. Este suposto religio-
so a serviço da razão, das constituições, tratados, leis
e códigos difunde um estilo de vida aprisionada como
forma preferencial de se corresponder com o traçado de
seu destino prescrito: a liberdade almejada. Liberdade
abstrata, divina e racional, onde não cabe o presente
pois ela não passa de nostalgia do ideário do passado
enquanto valores que devem se concretizar num futuro
ideal quando a categoria homem atingir a plenitude de
sua humanidade.
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Dossiê Louk Hulsman

Nesse sentido, é possível apontar duas séries prove-


nientes do interior da própria criminologia do pós guerra.
Se houve aquela que incrementou um importante braço
auxiliar do direito penal ⎯ na contra corrente da pró-
pria proposta do surgimento da criminologia no século
XIX, quando pretendia ser uma disciplina independente,
e desde lá ela nunca o foi ⎯ houve também aquela que
comportaria o aceno da possibilidade de sua corrosão e
ruína. Desta última série provém o abolicionismo, cuja
emergência foi acentuada na década de setenta do sécu-
lo XX.
O abolicionismo penal ao contestar a inevitabilidade
da prisão e do julgamento, torna possível o investimento
na demolição das certezas de estabilidade e centralida-
de, privilegiando intersecções de análise com os desdo-
bramentos advindos do campo da genealogia que, longe
de neutralizar confrontos com início e fim, interessa-se
em uma dimensão na qual as tensões, e somente elas,
mostram-se como meio capaz de gerar potencialidades
de expressão que o saber especializado é incapaz de
prever, responder e, no limite, suportar.
É possível abolir o sistema penal? Será o abolicionismo
libertário a peste no Estado de Direito?

Hulsman e o abolicionismo

O abolicionismo penal não é um bloco homogêneo,


e tampouco suas diferenças internas estão na disputa
de que uma se revele como a mais verdadeira, almejan-
do atingir um alto grau de hegemonia para, aí então,
sobrepor-se às outras.
“O abolicionismo penal é um pensamento que opera
no campo da polivalência tática dos discursos. Congre-
ga no seu interior pensadores de perspectivas libertárias
como Hulsman, mas também marxistas do calibre de
Nils Christie e Thomas Mathiesen. Afirma o esgotamento
das reformas penais levando ao limite as constatações

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desde Beccaria, que apontavam para a ineficiência da


reclusão, até Foucault, ao desvendar a intricada conexão
entre saberes delinquenciais e policiais.”3
Louk Hulsman é uma dessas pessoas que suscitam
uma inquietude saborosa e alegre. Costumava dizer que
‘o abolicionismo faz bem à saúde’. Atravessou tensões
exasperando-as distante do lamento que refaz a sujei-
ção. Cultivou a vida exposto as suas intempéries sem
perder a leveza. Entornou no presente de quem o cer-
cou ou nele esbarrou um sorriso contagiante. Hulsman
presentifica as possibilidades do surpreendente.
“Se afasto do meu jardim os obstáculos que impe-
dem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão
plantas de cuja existência eu sequer suspeitava.”4
Gostava de fotografia e a praticava com talento, pre-
senteando generosamente seus fotografados com cópias
ampliadas. Cada uma carregando sempre alguma pala-
vra pessoal afetiva.5 Foi professor emérito da Universi-
dade de Roterdã e membro constante de diversos foros
internacionais ⎯ das Nações Unidas, do Conselho da
Europa, das Sociedades de Direito Penal e Criminologia.
Divulgou o abolicionismo em ambientes múltiplos, aca-
dêmicos e não-acadêmicos, em várias partes do planeta.
Residia em Dordrecht, na Holanda, em uma casa antiga
e espaçosa, na qual a perspectiva abolicionista habitou
imiscuída em seu jardim e desdobrou-se em cursos,
seminários e estudos sobre abolicionismo penal.
Seu abolicionismo provém de espaços diversos, im-
bricados nas situações concretas de sua vida. De seus
problemas concretos. E as respostas diretas a eles foram
fazendo Hulsman deslizar rumo ao abolicionismo. Não
como ponto de chegada remetido a uma origem idea-
lizada. O abolicionismo é um acontecimento que foi se
tecendo em sua própria superfície, simultâneo a sua
invenção. Talvez o que Hulsman desperta em quem se
interessa e escolhe o abolicionismo seja mais ou me-
nos isto: o abolicionismo existe e ao mesmo tempo

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está sempre por ser inventado de diferentes maneiras.


Hulsman é um convite à inquietude do abolicionismo.
Distante, muito distante, das utopias que convivem tão
bem com as práticas consoladoras.
“O meu abolicionismo não é utópico. Eu tento fazer
um discurso realista sobre criminalização, enquanto o
discurso convencional é utópico, referido ao paraíso e
ao inferno. É interessante observar como a organização
cultural da justiça criminal é baseada na organização
cultural da teologia moral escolástica. Eu estou cada
dia mais convencido disso. (...) Eu acho uma vergonha
que nas universidades você tenha duas faces: uma que
reproduz a ordem existente, repetida, imutavelmente, e
uma outra que é crítica, não é superficial. É uma ver-
gonha que as universidades de direito continuem com
essas estórias escolásticas sobre livros sagrados. Nem
as faculdades de teologia fazem isso atualmente! O pior
lugar na universidade, onde trabalhei por mais de 25
anos, são as faculdades de direito. Como os estudantes
aceitam que estas pessoas continuem despejando ma-
térias baseadas em livros sagrados! Tudo sem nenhuma
análise sobre a origem desses livros sagrados, e sobre
o que são esses textos e o que significam nos dias de
hoje. (...) No meu abolicionismo acadêmico eu não digo
o que vai acontecer. Eu concordo com o que Foucault
diz sobre o intelectual específico (...) As pessoas têm
que entender que os processos não são naturais, exis-
tem opções para criar liberdade, pensando e sentindo.
É a primeira questão do abolicionismo, o indivíduo que
pode fazer escolhas. Como mudar é a segunda ques-
tão. Ninguém pode, do ponto de vista acadêmico, dizer
o que as pessoas devem fazer. A justiça criminal não
é legitimadora, no entanto, a justiça criminal está em
toda parte, nos jornais, na televisão. Eu acredito que os
indivíduos mudam as práticas a partir do momento em
que descobrem que não querem fazer parte de um sis-
tema. (...) São indivíduos mudando práticas. Como isso
acontece, é diferente para cada pessoa (...).”6

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Quando Hulsman faz tais afirmações, seu posicio-


namento parte de situações que experimentou e que
o atravessam. A educação recebida em uma região
dos Países-Baixos, na qual preponderava a doutrina
católica ⎯ atmosfera reforçada por ele como ‘aquela
pré-Vaticano II’ ⎯ na qual respirava-se os ares de que
havia pessoas eleitas e outras não, foi acirrada pelos
períodos que passou confinado em colégios internos,
submetido à rigidez da moral escolástica. A escola lhe
foi insuportável, até o momento em que decidiu saltar
o muro e fugir. Saltaria outros muros mais tarde. Um
deles foi o de um campo de concentração, durante a
Segunda Guerra Mundial, onde se encontrava sob a
condição de preso político. Em relação às duas fugas
faz questão de ressaltar que a primeira foi de vital im-
portância para a consecução da segunda, sublinhando
que a prisão da escola é pior do que a de um campo
de concentração. Em uma entrevista a Jacqueline de
Celis, com quem manteve uma parceria intensa lidan-
do com abolicionismo, quando perguntado acerca das
experiências marcantes em sua vida Hulsman discorre
e escorre:
“Já mencionei algumas de passagem. Mas, para efe-
tivamente fazer compreender melhor o que me mobiliza
interiormente, será preciso retornar a elas. A experiên-
cia do internato, sem dúvida, foi uma das que mais me
marcou. (...) Fui posto várias vezes no colégio interno. A
última foi numa escola secundária mantida por padres,
de onde fugi aos 15 anos. (...) Fui muito infeliz naqueles
anos. Eu não conseguia suportar a disciplina, a atmos-
fera repressiva reinante no internato. E, como os outros
se acomodavam, eu acabava sem amigos. Ficava isolado,
numa espécie de marginalização que duplicava o senti-
mento de rejeição já experimentado em relação à minha
família. Eu era uma criança que não correspondia ao
que dela se esperava. (...) Já mencionei que fui captu-
rado, preso e jogado num campo de concentração, mas
agora que me refiro às experiências interiores, devo dizer
que, na realidade, suportei muito melhor esse período

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de detenção ⎯ que aliás, foi curto ⎯ do que os anos de


internato. (...) Parece espantoso. Mas o preso político não
perde a auto-estima nem a estima dos outros. Ele sofre
em todas as dimensões de sua vida, mas permanece um
homem que pode olhar de frente. Não está diminuído.
(...) Consegui fugir do campo de concentração ⎯ como
fugira do colégio interno ⎯ esta primeira experiência
tendo, sem dúvida, facilitado a segunda!”7
A Revolução Espanhola é outro dos acontecimen-
tos que Hulsman destaca, entre os tantos que narra,
como tendo um significado sutil e decisivo para ele e
que mostra que a prática abolicionista se gesta e se tece
na experimentação da vida, num curso descontínuo re-
pleto de disparates. No desconcerto que sacode o ciclo
da conformidade.
“Escapar do conformismo permite o acesso a um
universo de liberdade mas, nem sempre é fácil largar o
establishment, embora, às vezes, isso dê prazer. Alguns
acontecimentos me ajudaram. A Revolução Espanhola,
por exemplo, foi uma etapa importante. Na região onde
eu vivia, os jornais eram todos franquistas. Com uma
tal imprensa, eu também acabava ficando interiormen-
te contente quando Franco tomava mais uma cidade,
quando seu exército avançava. Mas, em 1938, comecei
a ter acesso a outras fontes de informação e, de repen-
te, me vi muito pouco orgulhoso de meus sentimentos.
Percebi que tinha sido totalmente enganado pelo sistema
onde eu tinha estado encerrado. Agora que lia os livros
daqueles que, na França e nos Países-Baixos, tinham
participado da luta contra Franco, me dava conta do erro
profundo em que eu havia mergulhado e minha vergo-
nha crescia... Jamais fui à Espanha antes da morte de
Franco, pelo trauma profundo que vivi naquela época.
Este episódio me marcou bastante.”8
Se o abolicionismo para Hulsman foi tomando cor-
po na universidade, quando ele assumiu a cadeira de
Professor de Direito Penal e se defrontou com a ativida-
de de pesquisa, é a partir, também, desta dispersão de

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acontecimentos da memória de sua pele que o próprio


abolicionismo pode ser notado. Nos deslocamentos,
cortes abruptos, dissonâncias de linguagem.
Hulsman destaca a atenção que o abolicionismo
deve dedicar à própria linguagem, quando traça estra-
tégias fora da lógica penal.9 Isto implica contestar a na-
tureza ontológica do conceito de crime ⎯ que, segun-
do Hulsman, é a base para a legitimidade da política
criminal e do sistema penal ⎯, levando a discussão
para um campo distinto, no qual importa formular so-
luções para o que passa a ser designado, por ele, como
‘situação-problema’. E, é, precisamente, a contestação
na natureza ontológica do crime que leva à noção de
situação-problema, sendo que esta permite assumir
uma postura de exterioridade que tece a perspectiva
abolicionista.
“(...) Os conceitos e a linguagem do sistema penal
nos retém em seu território o que faz ser necessário
um esforço mental bastante considerável para conse-
guir desfazer-se deste campo de gravitação. Queira-se
ou não, quando se fala de ‘crime’ ou de ‘delito’ surge
imediatamente uma imagem: a de um sujeito culpado.
Se, pelo contrário, utiliza-se o termo ‘evento’, a expres-
são ‘situação problema’ ou qualquer outra, então se
abre um espaço no qual podem coexistir interpretações
diversificadas. Se substituímos os termos ‘delinquen-
te’ e ‘vítima’ pela expressão ‘pessoas implicadas em um
problema’, evitamos que se imputem mentalmente a es-
tas pessoas etiquetas pré-fabricadas que limitam sua
liberdade de consciência e as convertam ipso facto em
adversários. Deste modo se abre um âmbito no qual
se podem encontrar respostas muito distintas daquelas
do modelo punitivo. Apenas quando se sai da dialética
penal se pode romper com o ciclo ‘delinquência-prisão-
reincidência-prisão’ que se apresenta como invencível
na lógica penal.”10
Este detalhe sutil que Hulsman aponta e problemati-
za em torno da linguagem se mostra como um elemento

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de intensa potência no abolicionismo, pois possibilita


o investimento em um combate que estabelece res-
sonâncias com a prática genealógica de estancamento
das palavras como exercício de mapeamento de uma
determinada lógica e sua consequente demolição, se
o interesse for realmente percorrer outros referenciais
distintos daqueles arrumados e dispostos na sintaxe da
sujeição.
A proposta de Hulsman não é um mero jogo de re-
tórica. Evidencia a trama da sintaxe que faz parte da
grande armadilha tecida pelo discurso da reforma, que
ao transitar no interior da lógica do sistema penal,
perpetua-se por meio do eterno rearranjo de seus ele-
mentos, cultivando a infindável troca de sinais entre a
providência divina e a providência da razão.
“Sem dúvida isto se explica pela própria gênese do
sistema penal, que foi idealizado em uma época de
transição entre a sociedade religiosa e a sociedade civil
e que segue sendo devedor do modelo escolástico, por
isso mesmo aparece também impregnado da cosmo-
logia medieval. Uma verdade definida de uma vez por
todas e imposta verticalmente, juizes encarregados de
distribuir uma justiça tão absoluta quanto serena, um
determinado sofrimento imposto como réplica aos atos
considerados maus que há de ‘purificar’, uma filosofia
maniqueísta que divide os homens entre bons e maus,
em inocentes e culpados, tal como tem sido sempre e é,
todavia hoje a lógica do sistema penal vigente em nos-
sas sociedades, que não é senão a lógica do Juízo Final
na qual o Deus onipotente, onisciente e justiceiro dos
escolásticos foi substituído pelo Código Penal e o tribu-
nal de cassação.”11
A noção de situação-problema horizontaliza pessoas
concretas em torno de seus problemas concretos. Pro-
blemas que no interior da lógica penal, são transfor-
mados em abstrações para fazer parte da mediação do
sistema jurídico, como forma regular da representação
das vontades.

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O investimento na afirmação das vontades interes-


sadas envolvidas resulta, para Hulsman, em soluções
diferenciadas e específicas, apontando cinco mode-
los passíveis de ser utilizados para responder a uma
possível situação-problema: o punitivo (banimento), o
compensatório (possibilidade da troca como compen-
sação, restituição), o terapêutico (refuta a aplicação do
tratamento confinado), o conciliatório (acordo indivíduo-
indivíduo) e o educativo. Hulsman não descarta a pos-
sibilidade de que se pode escolher também o castigo. No
entanto, isto diz respeito a um acordo recíproco entre as
pessoas envolvidas em determinada situação.
Ele ressalta, ainda, que o abolicionismo é, simulta-
neamente, um movimento acadêmico e social.
“É útil fazer uma distinção analítica entre dois tipos
de posturas abolicionistas. De um lado temos uma pos-
tura abolicionista que nega a legitimidade de atividades
desenvolvidas na organização cultural e social da justi-
ça criminal. Esta postura rejeita também as imagens da
vida social que são formadas com base nestas atividades
em dois diferentes segmentos da sociedade. Nesta visão,
a justiça criminal não é uma resposta legítima a situa-
ções-problema, mas apresenta as características de um
problema público. Isto implica que esses abolicionistas
têm de cumprir uma tarefa dupla: têm de parar com as
atividades num molde da justiça criminal, mas também
envolverem-se em lidar com situações-problema crimi-
nalizáveis fora da justiça criminal. Esta forma de aboli-
cionismo tem o caráter de movimento social comparável
a movimentos históricos para a abolição da escravatura
e da perseguição de bruxas e hereges e movimentos so-
ciais contemporâneos. (...) De outro lado, temos uma
postura abolicionista na qual não necessariamente a
justiça criminal, mas uma maneira de olhar para a
justiça criminal é abolida. E esta forma de abolição
concentra-se nas atividades de uma das organizações
por trás da justiça criminal: a universidade, e mais
especificamente, os departamentos de direito penal e

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criminologia. Referindo-se a valores acadêmicos que


requerem independência acadêmica de práticas sociais
existentes para permitir uma avaliação mais objetiva
destas práticas sob a luz de critérios específicos, esta
forma de abolicionismo reprova as leituras dominantes
do crime e da justiça criminal pela falta de indepen-
dência necessária. Estas ‘leituras’ dominantes, implici-
tamente apoiam a idéia de uma ‘naturalidade e neces-
sidade’ da justiça criminal. Neste sentido, a abolição é
a abolição da linguagem preponderante sobre a justiça
criminal e a substituição desta linguagem por outra lin-
guagem que permita submeter a justiça criminal à hi-
pótese crítica; em outras palavras, que permita testar
a hipótese de que a justiça criminal não é ‘natural’ e
que sua ‘construção’ não pode ser legitimada. Se essa
hipótese for validada, a linguagem que prevalece sobre
a justiça criminal tem de ser desconstruída e a justiça
criminal aparecerá como um problema público em vez
de uma solução para problemas específicos (...).”12
De acordo com Hulsman ‘a ideia básica é a de que
a punição de acordo com a gravidade é a pedra fun-
damental da ordem.’ Esta pedra fundamental a que
ele se refere assume, na análise genealógica, um des-
dobramento duplo em relação ao termo “gravidade”
no que tange à lógica punitiva do sistema penal. A
palavra gravidade orientada pela sintaxe da sujeição
adquire tanto o estatuto de força capaz de manter o
eixo conformado à órbita da centralidade da ordem,
como também, afina-se pelo mesmo diapasão da taxo-
nomia que referenda a variação de graus concernente
a atos considerados crimes. A emergência do Direito
Penal moderno consoante à Declaração Universal dos
Direitos conjuminou a pena proporcional ao crime co-
metido, conjugando universalidade e individualização,
positivou, simultaneamente, o jogo recíproco entre os
termos agravante e atenuante.
Se o fracasso da prisão foi constatado desde os refor-
madores do século XVIII, tal constatação circunscrita

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no campo da reforma parece mostrar-se útil à mesma


órbita de gravidade na qual circula tanto o espaço que
fomentou a prisão ⎯ espaço demasiadamente huma-
no, pois nunca é demais lembrar que a prisão moder-
na é uma invenção do humanismo ⎯ quanto o novo
velho argumento atual de que a prisão deve continuar
existindo sob variações de gravidade que vão da prisão
digna, asséptica ao confinamento perpétuo; em ambos
os casos não se abre mão dos dispositivos disciplinares
conectados aos dispositivos de controle.
A primazia da escuta e da fala no Direito Penal, no
exercício da gramática-sintaxe, privilegia o discorrer
sobre, como procedimento regular à própria retórica.
Este exercício clama pela pacificação artificial do que
lhe é insuportável e sua realização se dá em nome da
representação e se confirma pelo sequestro da vontade.
Ao operar por modelos, Lei e Códigos e suas eternas
reformas, reconstrói de maneiras distintas a eterna
necessidade do lugar centralizado de onde deve reluzir
a verdade, reproduzindo mecanismos de dominação e
sujeição ao acomodar prescrições gerais e abstratas
no interior de sua consistência preferencial, a servidão
voluntária.

Deslocamentos

O interesse abolicionista libertário nas respostas-


percurso,13 fora da lógica de modelos, é antes de mais
nada um não aos espaços de confinamentos prisionais
ou manicomiais, mas acima de tudo é uma ruptura com
práticas de confinamento que perpetuam o tribunal e a
prisão, dentro e fora de grades assépticas ou não.
O abolicionismo ao propor alguns modelos possíveis
de gerar respostas exteriores ao sistema penal, inclui
entre eles o modelo terapêutico. Importa interrogar em
que medida tal modelo é capaz de responder a situações-
problema específicas como forma de ampliar liberdades e
até que ponto tal proposta pode incorrer, por outras vias,

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em processos de normalização caso o modelo terapêutico


assuma estatuto de terapia ampliada. E neste caso, não
basta apenas interrogar o termo terapêutico mas estancar
o próprio conceito de modelo, exigindo radicalizar diante
do próprio Hulsman e sugerir a possibilidade de abolir
no abolicionismo. A parceria libertária requer que o abo-
licionismo esteja atento às relações que estabelece com a
própria linguagem. Diante disso, parece não ser apropria-
do o termo modelo ao se considerar o comprometimento
implicado em seus desdobramentos de significado.
Exige-se, desta forma, que se problematize o modelo
terapêutico não como fim mas sim como meio, pois se a
interpelação for como fim, perpetua-se o circuito em tor-
no da origem da cura. Radicalizar na superfície do pró-
prio abolicionismo requer que ele também seja inventado
constantemente. Nesse sentido, é possível que a noção de
resposta-percurso seja propícia à prática de horizontaliza-
ção de saberes das pessoas envolvidas em suas situações-
problema concretas.
“Creio que existem muitas coisas interessantes nas te-
ses de Hulsman e entre elas o desafio que apresenta o
questionamento do fundamento do direito a castigar ao
afirmar que já não há mais o fim do castigo. (...) A questão
dos meios não é, segundo ele, simplesmente uma conse-
quência do que se havia afirmado a respeito do funda-
mento do direito à castigar, posto que a reflexão sobre o
fundamento do castigo e a maneira de reagir diante de
uma infração devem estar intimamente unidas. Tudo isso
me parece muito estimulante e importante. Ainda que não
esteja muito familiarizado com seu trabalho, me pergunto:
uma prática semelhante não corre o risco, ainda que não
se deseje, de conduzir a uma espécie de dissociação entre,
por um lado, as reações sociais coletivas e institucionais
do crime, que passa a ser considerado como um acidente,
e que deverá ser solucionado como tal, e, por outro lado,
a uma hiperpsicologização do que se refere ao criminal,
que pode vir a ser constituído em objeto de intervenções
psiquiátricas ou médicas com fins terapêuticos?”14

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O âmbito disto que se chama terapêutico talvez seja


um dos domínios mais delicados que o abolicionismo deve
enfrentar, para que não reproduza fora do cárcere efeitos
de confinamento em regiões mais sutis da vida. Caso o
abolicionismo não esteja atento a isso corre o risco de as-
sumir o lugar de correlato do movimento de despsiquiatri-
zação frente à psiquiatria ou mesmo às pacificações a céu
aberto da anti-psiquiatria diante da rotina manicomial.15
A noção de resposta-percurso é deliberadamente ina-
cabada em duas dimensões, já que por um lado não é
começo nem fim, mas o meio capaz de construir outras
respostas, e por outro lado não traz em si uma saída
definitiva passível de ser universalizada como modelo
exemplar. O termo modelo se esgotou em seus próprios
limites. A resposta-percurso propicia a demolição da
órbita de gravidade da prática de modelos de diversas
ordens. Não interessa mais escutar, escutar e repetir.
Interessam gritos precisos lá onde eles vibram, gritos
imprecisos em silêncios inundantes, cores e movimen-
tos descomedidos e imperceptíveis. Não há domestica-
ção possível.
Para o abolicionismo libertário os sins possíveis nes-
te modo de resposta repousam em notar e compor com
experiências libertárias que desconcertam teorias, ques-
tionam centralidades e, ao passar ao largo do ideal de
felicidade, proporcionam experiências estéticas capazes
de valorizar vidas e obras, não no que lhes falta, mas no
que lhes excede e escapa.
O abolicionismo faz sim bem à saúde, como afirma
Hulsman. E não existe subversão possível sem alguma
dose de crueldade, crueldade enquanto apetite de vida
como sugeria Artaud. Há de interessar a exposição de
fraturas.

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verve
Dossiê Louk Hulsman

Notas
1
Texto extraído de minha tese de Doutorado Política e Peste: crueldade, Plano Beveridge
e abolicionismo penal. São Paulo, PEPG/PUC-SP, 2002, com pequenas alterações
pontuais; apresentado na sessão pública Louk Hulsman, um instaurador. Conversação
sobre abolicionismo penal e a vida de um pensador libertário, na companhia de Edson
Passetti, Vera Malaguti e Nilo Batista, realizada no pelo Nu-Sol no Pátio do Museu
da Cultura da PUC/SP, em 5 de março de 2009.
2
Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976).
Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 13.
3
Edson Passetti. “Sociedade de controle e abolição da punição” in São Paulo em
perspectiva. São Paulo, Revista da Fundação Seade, 1999, v. 13/ nº 3, p. 61.
4
Louk Hulsman. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria Lúcia
Karam. Niterói, Luam, 1993, p. 186.
5
“Após visita a uma favela no Rio de Janeiro, (...) saiu carregado de presentes
que incluíam especial cachaça e fumo de mascar. Em compensação, excepcional
fotógrafo que é, fotografou o povo que tão carinhosamente o recebia e enviou
ampliações das fotos a cada um dos fotografados com palavras de amizade e
agradecimentos que os sensibilizaram.” Ester Kosovski, apud Louk Hulsman,
Idem, p. 9.
6
Louk Hulsman. “Discursos Sediciosos entrevista Louk Hulsman” in Discursos
Sediciosos – crime direito e sociedade, nº 5 e 6, ano 3. Rio de Janeiro, Freitas Bastos
Editora/ Instituto Carioca de Criminologia, 1998, pp. 10-11.
7
Louk Hulsman, 1993, op. cit., pp. 31-32.
8
Idem, pp. 22-23.
9
Louk Hulsman e Jacqueline Bernart De Celis. “La apuesta por uma teoria
de abolición del sistema penal”, tradução de Julia Varela, in Christian Ferrer
(Org.) El lenguage libertário. Montevideo, Norman Comunidad, 1993. Publicado
posteriormente em português em Verve 8, São Paulo, Nu-Sol, 2005, pp. 246-275.
10
Idem, pp. 189-190.
11
Ibidem, pp. 187.
12
Louk Hulsman. “Temas e conceitos numa abordagem abolicionista da justiça
criminal” in Edson Passetti e Roberto Baptista (Orgs.). Conversações abolicionistas:
uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. Tradução de Maria Brant. São Paulo,
PEPG em Ciências Sociais da PUC-SP/IBCCrim, 1997, pp. 197-198.
13
A elaboração da noção de resposta-percurso proveio de seminários internos do
Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária do PEPGCS/PUC-SP), em discussões

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2009

nas quais o abolicionismo foi e é problematizado com o intuito de levar a nós


mesmos do Núcleo às problematizações desestabilizadoras. Nossos exercícios de
análise são realizados de inúmeras maneiras. Foi a partir de um deles, quando fiquei
responsável em apresentar uma discussão sobre o modelo terapêutico, que sugeri
ao Nu-Sol a possibilidade de trabalharmos com a noção de resposta-percurso ao
invés do conceito de modelo, seja para o terapêutico seja para qualquer outro. Foi
a prática de radicalizar a nossa própria discussão, como o tom incessante do Nu-
Sol, que propiciou arriscar tal proposta. Isto compôs parte da atmosfera que arejou
uma de suas procedências. Há várias outras, cabendo destacar duas em especial: as
leituras de Artaud e um vídeo que assisti sobre o trabalho da Dra. Nise da Silveira,
intitulado Encontro com pessoas notáveis, Nise da Silveira, dirigido por Edson Passetti.
A revolta da Dra. Nise não se contenta. Estende-se à contestação da escuta
psicanalítica ⎯ que por questões óbvias sabemos que não está circunscrita aos
limites do divã ou aos consultórios terapêuticos ⎯ e se volta para a exploração dos
sentidos, múltiplas e tensas sensibilidades. Descarta, assim, as celas socialmente
aceitas da terapia ocupacional. Dirige todos os seus nervos e músculos, olhos
míopes, mãos vertiginosas no esforço intenso de estabelecer outros toques na vida,
não no que ela pode oferecer de conforto, mas no que nela é arredio porque não
está pronto e requer ligas de afetividade outras. Argilas, gatos, cães, asmas, veios de
madeiras, envenenamentos, mandalas, suavidades de veludos. E eu aqui grito um
termo seu, EUREKA! Ela encontrou. De bordados intrincados surge uma de suas
descobertas imperdíveis: emoções de lidar. E a descoberta-encontro foi propiciada
por Luis Carlos, um louco, é dele a expressão emoção de lidar. Um deslocamento,
desconcertante, para uma nova linguagem de potências que subvertem a ordem
esperada da palavra bem comportada e “paciente”. A noção de emoção de lidar vem
compor com os gritos, gestos descomedidos e suspiros minúsculos do teatro da
crueldade de Artaud e a analítica genealógica de Foucault. Parcerias amistosas para
o abolicionismo.
14
Michel Foucault. “A qué llamamos castigar?” in La vida de los hombres infames:
ensayos sobre desviación y dominación. Tradução de Julia Varela e Fernando Álvarez Uría.
Madri, La Piqueta, 1990, p. 225.
15
Vale lembrar a densa discussão que Foucault tece a respeito do aspecto
reformista da psicanálise, na medida em que se constituiu como dispositivo de
despsiquiatrização, deixando intocado o lugar de centralidade de poder e o local
soberano de enunciação da verdade sobre o outro. Esta discussão, intitulada
“Psiquiatria e Antipsiquiatria”, faz parte do curso proferido por Foucault no Collège
de France, em 1973-1974. Ver, ainda, no site do Nu-Sol abolicionismo libertário, verbetes
disponíveis em http://www.nu-sol.org/verbetes/index.php?id=58.

Recebido para publicação em 16 de fevereiro de 2009. Confir-


mado em 9 de março de 2009.

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verve
Estamos todos presos

estamos todos presos1


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edson passetti & acácio augusto*

Para Louk Hulsman

Personagens:

Corifeu Anarquista
Novato Alexander Berkman,
Jovem Mulher (por Anarquista)
Homem Emma Goldman
Homem 1 Judith Malina
Homem 2 Julian Beck,
Homem 3 (por Novato)
Mendigo, X (Atriz)
(por Anarquista) Y (Atriz)
Assistente Social Z (por Anarquista)
Terrorista Cantora
Terrorista Louca
Revoltado, Cobrador
(por Anarquista) Operária 1
Banqueiro Operária 2,
Garoto (por jovem mulher)
Senhora 1, 2, 3, 4 (Atores)
Policial

* Edson Passetti é Professor no Departamento de Política e no Programa de


Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol.
Acácio Augusto é mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisador no
Nu-Sol.

verve, 15: 75-105, 2009


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O corpo de Novato está no centro do palco, ligeiramente iluminado.


O elenco senta-se em volta do palco e deita-se na mesma posição do
Novato. O anarquista ajuda Novato a ficar de pé. Aos poucos os demais
se levantam e todos dançam. Novato permanece em pé no centro
do palco de braços abertos e mãos alinhadas perpendicularmente ao
antebraço. Ele é um vírus?

Corifeu: “... falo da responsabilidade do poeta, esse


irresponsável por direito próprio, esse
anarquista apaixonado por uma ordem solar
e jamais pela nova ordem, ou o slogan que faz
5 ou 700 milhões de homens marcarem passo
numa paródia de ordem; falo de uma coisa que
vai contrariar profundamente os comissários ...
Todo comissário está pronto para ver no poeta
o maricas ou o cocainômano ou o irresponsável
de turno; e o mais espantoso é que certa vez
houve um comissário chamado Platão.”2

Black-out

Abertura

Elenco, Novato e Jovem Mulher

Novato: “Ao caminhar em meio aos julgadores, roupa


Cinza e gasta vestia;
Tinha um boné de críquete, e seu passo lépido
E alegre parecia;
Mas nunca em minha vida vi alguém olhar
Tão angustiado o dia.”3

J. Mulher: “Quando Ismália enlouqueceu,


Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,

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verve
Estamos todos presos

Queria descer ao mar...


E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...

Queria a lua do céu,


Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...”4

Black-out

Novato: “Como pode a revolução significar a sujeição


de alguém, como pode a liberdade significar
o domínio sobre o ex-rei da parte dos súditos?
Tais relações são demasiado tristes para o novo
mundo. Após a revolução nada mais de punição.
Mas estamos falando de uma transformação
no espírito, no ânimo. A economia é o córtex, a
política é a epiderme.”5

Black-out

Cena 1. Na Cela

Homem, Homem 1, Homem 2, Novato, Homem 3, na cela masculina

Mulheres sentadas na cela feminina. Uma delas permanece em pé,


como chefe.

Homem: (Desligando o celular-rádio). Merda. Tá olhando o


quê? (Dirige-se para o Novato)

Homem 3: O que ‘tá acontecendo aí?

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Novato: Problema seu!

Homem: (Dá um soco e empurra Novato). O que você ‘tá


agitando aí? Acabou de chegar e quer o quê?
Cabeça baixa! Preciso dizer quem manda?
Presta atenção. Escuta bem o que vou dizer.

Novato: Vai bancar o pastor, agora? Não preciso disso,


logo ‘tô fora daqui.

Homem 2: Você pode até sair rapidinho, mas não vai


esquecer jamais que se “para os que vivem em
liberdade, a visão é o sentido mais importante,
para nós, é a audição.”

Homem 1: Sabe por quê? Você vai sempre lembrar:


a “porta que range, o assovio do amigo, o
pigarro combinado, vozes ao longe, passos
num corredor...”, domingo na visita íntima, e
rapidamente não vai esquecer, também, quanto
tempo você tem pra “tomar providências.
Quando o alarme vem pelos olhos é sinal de
que a coisa está feia: o preso só vê quando foi
visto primeiro”.6

Homem 2: (Para Homem 2) Porra, já deu errado com os


irmãos no mundão e esse cara me enchendo
o saco. Mas, rapidinho, ele aprende como
funciona.

Homem 1: Esse aí ainda não entendeu que aqui ele come-


çou um curso novo. Essa é outra faculdade.

Novato: Então, tem o pastor, e agora o professor...

Homem: Falou demais. Liga o sistema que no banho de


sol, os irmãos vão explicar melhor pra ele. Aqui
você vê, ouve e leva no coro. Não vai esquecer

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Estamos todos presos

as lembranças na pele. (Os homens cercam Novato


na cela para lhe aplicar uma surra. No outro canto,
as mulheres em pé assistem de sua cela a algum
entrevero similar. Homem distancia-se do grupo
que cerca o Novato, posiciona-se próximo ao público
e simula sacar um revolver). Não se esqueça “o
importante de tudo é que ninguém nos deterá
nessa luta porque a semente se espalhou por
todos os sistemas penitenciários do Estado e
conseguimos nos estruturar também do lado
fora com muitos sacrifícios e muitas perdas
irreparáveis...

Homem 2: (Aproximando-se)... mas nos consolidamos a


nível estadual e a médio e longo prazo nos
consolidaremos a nível nacional...

Homem 1: ... Conhecemos a nossa força e a força de nossos


inimigos. Poderosos, mas estamos preparados,
unidos e um povo unido jamais será vencido.
Liberdade, justiça e paz.”

Elenco: ... um povo unido jamais será vencido.


Liberdade, justiça e paz.”

Homem 2: “Aquele que estiver em liberdade ‘bem


estruturado’, mas esquecer de contribuir com
os irmãos que estão na cadeia, será condenado
à morte sem perdão.”7 (Silêncio).

Homem 3: (Toma a frente do grupo) Nós vamos participar


da política de privatização da prisão.

Mulher da cela aproxima-se do centro e emite um grito de desespero. Os


demais assistem impassíveis.

Black-out

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Cena 2. Um mendigo, Um habitante de rua

Elenco e Mendigo
Elenco deitado como corpos abatidos. Assistente Social, agacha e inicia
conversa sussurrada com um deles, da qual só ouvimos murmúrios.

Mendigo: (Agachado como um babuíno) Não tenho história.


A minha história é a mesma de qualquer outro
morador de rua. Se ele (aponta para um outro
qualquer) soubesse que você ia aparecer, e se
tivesse televisão pra gravar, ele era capaz até de
pintar o cabelo. (Pausa) Do que você riu? (Pausa)
Não vou fazer biografia, nem dizer o que eu fui,
mas nós que aqui estamos não cabemos nem
numa possível família, casa, rua, amigos que
tivemos ou ainda temos. Não pergunte porquê.
Não volto lá e pouco importa se vão me ver
aqui. (Elenco, num salto, posiciona-se como bando
de babuínos que segue Mendigo transformado em
líder em saltos coordenados em direção ao público).
Não sou, não estou, sou o que não cabe em lugar
nenhum. Sou o que vive na rua, o flagelo, o resto
dos drogados, dos egressos, dos evadidos e de
quaisquer outras palavras que caberão no seu
formulário. Sou uma das poucas pessoas que
andam livre e sem medo pelas ruas. (Mendigo
em pé e o elenco movendo-se em direção ao público
como babuínos) Ando com o padre, ando com a
peste.

Black-out

Cena 3. O banqueiro, Hoje, Século 21

Banqueiro, Novato, Jovem Mulher e Anarquista

Banqueiro: “Há uma barreira intelectual e social no Brasil:


presídio não é assunto para uma roda social.
O que as pessoas discutem é: mata ou não

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Estamos todos presos

mata. Esse fosso entre a sociedade e o preso é


extremamente perigoso. O sistema é reciclável.
O criminoso vai e volta, vai e volta, e cada vez
aumenta mais.”

Novato: Pra banqueiro nada é difícil... nem ficar um


tempo na cadeia. Rapidinho adquire respeito.
O banqueiro é o dono da grana, do faz me rir,
‘tá de bem com o pastor, com pai de santo, com
a organização e com os otários.

Banqueiro: “A maneira de se combater esse crime


organizado não é (...) com a polícia, matando,
prendendo — não é nada disso. Isso não resolve
absolutamente nada. Só instiga o problema.
Isso se resolve dando uma condição correta ao
preso e à sua família. E como é que se dá essa
condição correta? Com uma palavra: trabalho.
O preso tem que trabalhar e ganhar bem, tem
que ser produtivo, para que se reeduque e
entenda a função social da pena.”

Novato: Como o cara é bonzinho! Bom para os colegas


dele, industriais, bom para a organização, bom
para a prisão não acabar. É tão bom que até dá
nojo de bom que é.

Banqueiro: “O crime organizado: o crime organizado


nasce nos presídios onde tem depósito humano
exatamente pela preocupação do preso em
manter sua família viva aqui fora. Então eles
organizam esquemas, uma forma de dar
sustentabilidade à família. A organização acaba
servindo os presos, aos seus familiares, dando
proteção dentro e fora da cadeia.”8

Novato: Vai se foder! Pensa que a gente é jornalista de


esquerda e acredita em lenda? Você sai, eu
morro, a organização continua firme, minha

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família permanece em cana lá fora. ‘Tá olhando


o quê filho da puta!

Luzes piscam. Novato e a Jovem Mulher, compondo um casal, deslocam-


se para frente do palco. Ao fundo, posiciona-se o Anarquista. Enquanto
o casal fala o texto abaixo, o Anarquista, mudo o repete na íntegra,
como se fosse uma dublagem ou como se as vozes do casal viessem do
Anarquista.

Novato: “O que é fascinante nas prisões é que nelas


o poder não se esconde, não se mascara
cinicamente, se mostra como tirania levada aos
mais ínfimos detalhes...

J. Mulher: como tirania levada aos mais ínfimos


detalhes...

Novato: ... e, ao mesmo tempo, é puro, é inteiramente


‘justificado’,

J. Mulher: ... é puro, é inteiramente ‘justificado’...

Novato: ... visto que pode inteiramente se formular no


interior de uma moral que serve de adorno a
seu exercício:

J. Mulher: ... de adorno a seu exercício.

Novato: Sua tirania brutal aparece então como


dominação serena do Bem sobre o Mal, da
ordem sobre a desordem.”9

Luz em resistência. Luz branca

Anarquista: Século 19, últimas décadas: “Uma jovem


geração que não havia conhecido os atentados
e não queria conhecer o sindicato, inquietava-
se. Abandona as estéreis polêmicas, recorda as
origens da anarquia e o grito de Proudhon: ‘a
propriedade é o roubo!’ Recorda Kropotkin:

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Estamos todos presos

‘Nossa ação deve ser a revolta permanente


pela palavra, pela escrita, pelo punhal, o fuzil,
a dinamite [...]. Tudo que não é a legalidade é
bom para nós’. Se a indigência dos miseráveis
explica-se pelo roubo permanentemente
realizado pelos patrões, proprietários e
burgueses, roubar a esses últimos constitui
legítima defesa! E porque o roubo é reprimido
pela lei, é ilegal, celebra-se o ilegalismo.”10
Black-out

Cena 4. Terrorismo 1 e 2

Terrorista 1 e Terrorista 2

Terrorista 1: Me classificaram terrorista e me enfiaram


em uma cela de segurança máxima. Claudio
Lavazzo, Espanha, final do século 20: “Não
desejo justificar meus atos a esta sala, não
me importo, de forma alguma, com sua
opinião ou decisão, não quero nenhum tipo
de trato com meus inimigos. Tampouco
quero me justificar ante a opinião pública, a
mesma que permite e olha com indiferença
a miséria diária e a eliminação de milhares
de pessoas, indignando-se com a morte
dos policiais. Quando somos nós que
disparamos, dizem que somos assassinos
e quando é a polícia que mata ‘foi feito a
justiça’.”11

Terrorista 2: Me classificaram terrorista e vão cortar


minha cabeça na guilhotina. Émilie Henry,
França, final do século 19: “As minhas mãos
estão cobertas de sangue, tal como sua toga!
De resto, não tenho que lhe responder. Não
reconheço a tua justiça; estou contente com
o que fiz!... Ninguém é inocente!”12
Black-out

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Intermezzo 1

O Revoltado

Revoltado: “O arco se verga, a madeira geme. No auge da


tensão, alçará vôo, em linha reta, uma flecha
mais inflexível e mais livre.”13

Black-out

Cena 5. Dois casais na prisão

Dois casais anarquistas na prisão. Alexander Berkman e Emma


Goldman, e Julian Beck e Judith Malina.

O casal do intermezzo permanece em cena. Foco de luz sobre cada


um. Ele, agora se chama Alexander Berkman, e ela Emma Goldman,
anarquistas presos nos Estados Unidos, no começo do século 20. Mais
tarde, aproxima-se de Emma Goldman a atriz-anarquista americana
Judith Malina, presa no Brasil pela Ditadura Militar e seu companheiro
ator-escritor-anarquista Julian Beck.

A. Berkman: “Um senso de completa indiferença se apossa


de mim. Eu me estico no banco de madeira ao
longo da parede da cela e caio imediatamente
no sono. Acordo sentindo-me cansado e com
calafrios. Tudo está quieto e escuro em volta de
mim. A cela é sufocante e mofada; o ar sujo me
dá náuseas. E agarro as grades. A sensação do
ferro é tranqüilizadora. Pressionada próxima à
porta, minha boca na estreita abertura, eu tomo
fôlego com rápidas e curtas inalações de ar. Eu
estou quente, transpirando.” 14

E. Goldman: Alexander, “fui à Filadélfia para pedir doações e


ajudar a organizar o movimento para tirar você
da prisão. Os jornais da tarde desvirtuaram
meu discurso. Disseram que eu havia incitado
a multidão à revolução. ‘Emma, a Vermelha

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possui uma grande oratória, sua língua mordaz


era justamente o que o povinho precisava para
destroçar Nova Iorque’. Também afirmavam
que uns robustos amigos me tinham feito
desaparecer, e a polícia seguia o meu rastro.”

A. Berkman: “O silêncio cresce, melancólico, opressivo.


Inunda-me com misteriosa reverência. O
silêncio vive. Eu ouço sua respiração acelerando-
se. Ah! É o guarda! É a vigília da morte?”15

E. Goldman: “Na segunda manhã depois de ser presa fui


transferida para outra prisão. (...) A partir
do segundo dia a quietude se fez opressiva e
as horas se arrastavam interminavelmente.
Comecei a me sentir cansada pelo constante ir
e vir da janela e da porta, da janela e da porta.
Estava tensa pelo esforço em ouvir um som
humano.”

A. Berkman: “Meu ânimo natural é esmagado por uma


apreensão inominável.” 16

E. Goldman: Inominável. (Pausa) “Durante a noite tive uma


forte dor de cabeça. A luz elétrica queimava
meus olhos. Golpeei a porta. Exigi ver o doutor.
Veio uma mulher, a doutora. Deu-me um
medicamento e lhe pedi algo para leitura ou,
ao menos, algo para costurar. No dia seguinte
me deram toalhas para cerzir. Costurei horas e
horas, desesperadamente.”17

J. Malina: (Aproxima-se de Emma Goldman)... desesperada-


mente. “Tive forças para falar a Julian: ‘Estou
com medo’. ‘Julian respondeu: ‘Tenha cora-
gem’. Aliás eu sofro de ligeira claustrofobia e
tenho certo medo de escuro, mas Julian acres-
centou: ‘Eu te amo’ e o medo diminuiu’.”18

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Luz Geral no teatro. Aparece Julian Beck.

J. Beck: Eu Julian Beck. (Dirige-se até Alexander Berkman,


passa o braço pelo seu ombro e diz:) Ele, Alexander
Berkman, anarquista, começo do século 20.
Eu, Julian Beck, anarquista, final do século 20.
“A Revolução Anarquista Não-Violenta é a
mudança gerada pela produção e distribuição
de tudo o que as pessoas precisam sem o uso
de suborno coercitivo, violência ou trabalho
rancoroso. (Atravessa a platéia falando) Significa
tentar viver junto, sem leis punitivas, cadeias,
polícias, exércitos, e o controle exercido pelo
dinheiro sobre o trabalho, a produção e o
caráter humano.

J. Malina: Não pode ser a mudança imposta por uma nova


classe dominante. Os anarquistas acreditam que
é possível alimentar a todos e resolver melhor
todos os problemas da condição humana sem o
incentivo do dinheiro, sem regras que sugerem
que se você não trabalhar você não come, e
sem os padrões de vida impostos por sistemas
políticos e econômicos.

J. Beck: Os anarquistas acreditam que todos os homens


podem fazer o trabalho que querem e podem
viver juntos de maneira pacífica e criativa,
pois a mente humana que inventou o intricado
sistema-de-produção-por-meio-da-exploração
e a regulação do consumo-por-meio-do-
desejo-e-da-superprodução irá inventar jeitos
de alimentar todas as pessoas sem o uso da
violência ou medidas coercitivas. (Volta para
o palco) Livre-se do sistema monetário, afirma
o Anarquista, livre-se do controle do governo
centralizado, e o que acontecerá?”19

E. Goldman: Livre-se do sistema monetário, afirma o

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Estamos todos presos

Anarquista, livre-se do controle do governo


centralizado, e o que acontecerá?

J. Malina: Livre-se do sistema monetário, afirma o


Anarquista, livre-se do controle do governo
centralizado, e o que acontecerá?

A. Berkman: Livre-se do sistema monetário, afirma o


Anarquista, livre-se do controle do governo
centralizado, e o que acontecerá?
Black-out

Cena 6. Existimos: X, Y e Z

X,Y e Z.

X: “Não existimos, a menos que estejamos


profunda e sensualmente em contato com o
que pode ser tocado, mas não conhecido.”20

Y: “O criminoso é sempre um juiz solitário; em


virtude de sua solidão o compreendemos.”21

Z: “Se julgar é tão repugnante, não é porque tudo


se equivale, mas ao contrário porque tudo o que
vale só pode se fazer e se distinguir desafiando
o juízo.”22

Black-out. Z ilumina a platéia com duas lanternas de bolso. Black-out.

Cena 7.23 O Despovoador

X,Y,Z, Jovem Mulher e Novato

Z: “Em pé no topo da grande escada desdobrada


ao máximo e erguida contra a parede os
maiores podem tocar com a ponta dos dedos a
borda do teto.

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Y: Aos mesmos corpos a mesma escada erguida


verticalmente no centro do chão lhes fazendo
ganhar meio metro permitiria explorar à
vontade a zona fabulosa dita inacessível e
que portanto em princípio não o é de modo
algum. Pois um recurso desses para a escada é
concebível.

Z: Bastaria uns vinte voluntários decididos


conjugarem seus esforços para mantê-la em
equilíbrio com a ajuda se necessário de outras
escadas fazendo as vezes de contrafortes.

J. Mulher: Um momento de fraternidade.

X: Mas esta fora as ondas de violência lhes é


tão estranha quanto as borboletas.

Y: Não tanto por falta de coração ou de


inteligência quanto por causa do ideal do
qual cada um é presa.

Z: Isso para o zênite inviolável onde se esconde


aos olhos dos amantes de mito uma saída
rumo a terra e céu.

Novato: Isso para o zênite inviolável onde se esconde


aos olhos dos amantes de mito uma saída
rumo a terra e céu.”

Black-out

Cena 8. Uma receita dos nossos dias

O Elenco.

“Receita para aprisionar-se no corpo.

J. Mulher: Escolha um tipo: moderno, conservador,

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eclético (o mais indicado), punk, hippie, yuppie,


manu, emo (ao seu gosto).

Z: Procure em revistas e guias, ou na internet as


opções de roupas, músicas, gírias, etc, indicadas
para o seu tipo.

1: Procure pessoas através de sites de


relacionamento que correspondam ao seu tipo
(não se preocupe, você pode escolher mais de
um tipo se quiser).

2: Se o que você prefere não corresponde aos


valores adequados de comportamentos aos
quais está habituado, você pode criar avatares
paralelos nestes sites de relacionamentos, ou –
melhor ainda – no second life.

Novato: Procure um médico, psicólogo, psicanalista


e coloque suas aflições. Se não for suficiente
ele lhe indicará um psiquiatra que poderá
prescrever-lhe remédios que ajudarão no seu
auto-controle.

Y: Para alguns desvios mais leves de sua


personalidade, existe a possibilidade de
colocá-los em prática nos mesmos sites de
relacionamento, second life, blogs, fotologs, etc.

3: A internet é um meio seguro para você e para


os outros que te circundam.

X: Mas, espere, a sua vida com qualidade só


estará completa se também fores altruísta:
é preciso policiar os outros, e ajudá-los
através de denúncias às instituições que
possam cuidar destes desviados graves.

J. Mulher: Importante! Alguns comportamentos, que


pertencem a certos tipos, ou que borbulham

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no seu interior, não são adequados para


serem colocados concretamente no seu dia-
a-dia, mas isso a sua consciência tratará de
dizer. (Canta imitando Marilyn Monroe
“Diamonds are the girls best friends!”).

4: Nem todos têm a sua consciência e


autonomia, alguns ainda precisam de ajuda
externa.

J. Mulher: Agora é só abrir o casaco, apertar o botão,


e...Bum!”24

Black-out

Intermezzo 225

Ouve-se “Don’t let me down”, Beatles. Uma mulher sentada


escreve carta a seu amado na prisão. Este redige carta para seu
amor fora da prisão. Ele se levanta, sobe num banco e se desnuda.
Ela sai para a vida nas ruas da cidade. Os demais componentes
do elenco estão divididos em 2 grupos: o primeiro é composto por
duas mulheres e um homem dançando; o segundo por homem
e mulher olhando fixo para platéia — o ator é constantemente
atiçado pela garota de programa e cederá quando vier o black-
out, assim como a mulher irá ao encontro do jovem sentado aos
seus pés —; os demais são rapazes de programa, sem camisa, e
distribuídos pelo espaço cênico. Todos cantam o refrão “Don’t
let me down”!

Cena 9. A cantora

Solo de cantora de boite lembrando cantor famoso da época do rádio e


uma canção de amor famosa.

Black-out

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Estamos todos presos

Cena 10. No ônibus

Louca com seu pequeno filho; Novato; o Cobrador do ônibus; Senhora; o


Anarquista; as Operárias 1 e 2 (que fala com sotaque de língua presa);
o Policial e a Jovem Mulher.

Sentados no interior do ônibus estão o Cobrador, o Anarquista, a


Senhora, a Louca e o Garoto.

Garoto: Mãe, olha o rato!

Louca: A cidade está cheia de ratos. Olha, ele faz o


ninho ali. (A mãe retoma a conversa) Gostou do
almoço? Responde. Responde.

Garoto: (Querendo encerrar o assunto) Gostei.

Louca: Ainda bem que não tem mais a internação,


senão você não poderia mais experimentar os
quitutes que faço para você.

Garoto: Sorte sua. Azar meu.

Louca: Eu detesto andar de ônibus. Pensa que é fácil


tomar os remedinhos — não é assim que fala?
— e ficar rodando nessa bosta de coletivo!
(Aumenta a voz) Com esse monte de gente parda
e fedida!

Garoto: Mãe, por favor!

Louca: Por favor? Você me põe nesse coletivo e quer o


quê, que eu fique quieta, olhando pela janelinha,
vendo a tevezinha, apreciando esse bando de
otários com crachás pendurados no pescoço?
(Aumentado a voz) Esses empregadinhos que
se matam para pagar prestação? Eu não nasci
para andar de ônibus.

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Cobrador: (Para o garoto) Pede para sua mãe falar baixo...


ninguém tem obrigação de ficar aturando...
Falta muito para chegar no hospital, e ela, hoje,
começou cedo a confusão.

Novato: (Entra no ônibus) Cobrador... na humildade,


posso passar por baixo? ‘Tô sem bilhete.

Cobrador: Por mim até podia, mas assim você comprome-


te o meu emprego. Sabia que tem câmera, fora
os fiscais que você nunca sabe quem é?

Novato: Não tem nada aí. Você acha que eles iam
colocar uma câmera em cada ônibus... e fiscal
anda com crachá.

Louca: Deixa o menino passar.

Cobrador: Não se mete. Se ‘tá com pena desses vagabun-


dos, paga a senhora.

Novato: Vagabundo não. ‘Tô conversando... esqueci


o bilhete. Pego esse ônibus todo dia, você me
conhece.

Cobrador: E daí. Cada vez que você pega tem que pagar,
esse é meu trabalho... Senão vira festa. Não te
conheço nada.

Senhora: Deixa que eu pago para o menino.

Louca: (Para o Novato) Não tem dinheiro para pagar o


ônibus, mas tem dinheiro para comprar droga,
né?

Senhora: A senhora não pode falar assim. Hoje é ele,


amanhã pode ser o seu neto.

Louca: Olha a cara do safado... Conseguiu, né?

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Estamos todos presos

Garoto: Mãe...

Louca: Depois eu que sou louca!

Novato: (Para a Senhora) Obrigado, senhora. (Para a


Louca) E a senhora não tem o direito de falar
assim comigo.

Cobrador: Cala boca. Você já conseguiu a passagem. Senta


lá no fundo e fica na sua.

Sobem duas mulheres, com os crachás da firma pendurados.

Operária 1: Você viu no jornal?

Operária 2: O quê?

Operária 1: Os china. Os caras, trabalham tipo escravo,


direto, para ganhar uma merreca.

Louca: Ei, vocês aí! Nem lêem jornal direito. Burras!

Operária 2: Que falta de educação falar assim...

Operária 1: Ninguém ‘tá falando com a senhora.

Louca: É burra sim. Vou ensinar. Eu era professora.


(Para o Novato) E você aí menino, presta atenção
para ver se aprende.

Cobrador: Lá vem discurso...

Garoto: Mãeee...

Louca: Quando era só comunismo todo mundo


trabalhava para o Governo. Agora, eles
trabalham também para os donos das empresas,
os capitalistas. Não são escravos não. Escravos

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foram s negros no Brasil; escravo não ganha


salário, mesmo que seja uma merreca como
falou essa aí. Nem você é escrava... Nem esse aí
que estava encrencando com o menino. É tudo
trabalhador. Vão todos enlouquecer como eu,
que tive que aturar (começa a falar rápido e de
forma incompreensível) ...

Garoto: Mãe!

Louca: Tá bom. (Respira) Vou voltar a olhar pela


janelinha, pra telinha ali na frente...

Operária 1: Que falta de respeito. Você tem que trabalhar,


vai com toda boa vontade para o emprego
— que ‘tá tão difícil hoje em dia — e tem que
ficar ouvindo isso. Pelo menos, não tenho que
pagar mais dois ônibus, com bilhete único, eu
pago um só e pego três, graças à boa vontade
de alguns políticos que ainda pensam na gente
que mora longe.

Operária 2: Essa aí deve ser daquelas que ganha bilhete da


prefeitura e ainda cospe no prato que come.

Cobrador: Essa louca é um saco. Toda semana ela vai


no posto de louco perto do ponto final e fica
perturbando meus passageiros.

Operária 1: Nossa, não é lá que tem a escola de inglês que


você faz?

Operária 2: É sim. O professor na última aula disse que a


minha pronúncia é ótima.

Operária 1: É?

Operária 2: Quer ver? (Operária 1 consente com a cabeça) I


think! (Sublinhando o sotaque sibilado).

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Louca: Burra, mas fala inglês!

Cobrador: Essa louca é um saco!

Senhora: Tenha respeito pela doença dos outros... Você


nunca sabe o que Deus reserva para você e seus
familiares.

Louca: Eu não acredito que essa aí é crente... era só o


que faltava. Responde para mim, o que você
fazia antes de virar crente? Por um acaso você
tem o marido ou o filho na cadeia?

Senhora: A senhora não tem nada com a minha vida.


A boa nova do Senhor vem, quase sempre,
pelo sofrimento, seu ou de seus parentes.
Jesus poderia tirar essa chaga da senhora, se a
senhora ouvisse a palavra do Senhor.

Louca: Sabe o que ele acabou de me falar no ouvido?


Ih, nem vou contar!

Cobrador: Se não parar com essa feira, eu peço para o


motorista parar é na delegacia.

Policial: Não precisa parar não. Isso aqui é um lugar


público, quem põe ordem, se precisar, sou eu.
Aqui é da lei, eu sou da lei.

Louca: Mostra os documentos!

Policial: A senhora é muito abusada.

Louca: Não. Não sou abusada, sou louca! Pode


perguntar para os psiquiatras. Vai querer me
prender? Saiba que estou interditada. Eu sou a
louca, não posso ser presa, só tenho que ir nesse
lugar toda semana para ser medicada.

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Anarquista: “A loucura enuncia verdades insuportáveis”.

Luz pisca. Na penumbra.

Louca: Quem aqui dentro não toma remédio, não está


medicalizado, para suportar esse mundo de
merda! Essa vida vazia! Essas crianças murchas
por dentro, e quase viçosas por fora. Essas
operárias conformistas. Esses trabalhadores
obedientes. Esses estudantes quase espertos
e servis, que baixam a cabeça até para esse aí.
Esse mundo cheio de polícia e televisão. Essas
pessoas como eu.

Luz. Luz pisca.

Novato: Tudo bem. ‘Tô cumprindo a medida, mas ‘tô


na rua. Tenho que ir para escola senão volto
para internação. Não sei o que é pior, lá ou
aqui. Lá, se não são os monitores e os polícias,
são os caras do partido que ficam dizendo o que
tenho que fazer; aqui, até o cobrador e essa
louca dizem o que eu sou e o que eu tenho que
fazer; parecem a psicóloga lá do projeto.

Luz pisca. Luz.

Operária 2: Meu irmão era igual ele.

Senhora: Jesus! Só por Deus, glória ao Pai. É mesmo o


fim dos tempos.

Louca: E ainda assim, a louca sou eu... por favor,


não vai chegar logo essa coisa... prefiro meu
remédio.

Novato: (Saca o revolver, desarma o Policial e anuncia) É um


assalto, passa a grana. Se todo mundo colaborar,

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ninguém sai machucado. Vamos velha (para a


Louca) bota o dinheiro aqui, e você Curintia (em
alusão ao Corinthians, diz ao Garoto) quietinho. É
isso mesmo, vai tudo mundo jogando a carteira
e os pertences aqui na sacola... (Para a Senhora
que lhe pagou a condução) Anda carola fingida
joga carteira e bagulhos aqui; vocês duas
bacaninhas (para as operárias) também...

Operária 2: Mas eu acabei de tirar vale, estou com o dinhei-


ro para pagar contas...

Novato: Você é lindinha, um dia eu desenrolo a sua


língua, mas, agora, bote os bagulhos aqui
dentro ...

Cobrador: Motorista toca, toca...

Novato: Não toca nada. E você (para o Cobrador), não


disfarça não, pode esvaziar o caixa aqui e
quietinho.

Cobrador: Motorista, não toca não! (E dá o dinheiro para


Novato que desce do ônibus).

Luzes piscam

Louca: (Para o filho, olhando pela janela) Que pena que


não tem mais outdoors na cidade.

Garoto: Mãe fique quieta.

Luz pisca. Luz.

Novato: Eu não agüento mais. Nem a minha casa, a


escola, a medida, esse bairro de merda e todas
essas pessoas que são as mesmas desde que eu
nasci, desde sempre. Esse bairro, esses colegas
meio bandido meio polícia, meio solução meio

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problema, só o meio sem recheio e eu no meio


dessa merda! Ninguém me salva, ninguém me
tira daqui. Nem eu quero me salvar. Fico entre
viver pouco como um rei ou muito como um
Zé. Todo otário é capaz de escrever um verso
inesquecível: “Estamos todos presos!”

Luz pisca.

Anarquista: “Tentaram me reduzir a pó e não me


reduziram, aqui estou eu com a minha corda e
com a minha consciência, íntegro e íntegro, fora
do alcance de suas armas de longo alcance, de
suas experiências homicidas e suicidas, fora do
seu sistema solar ou de qualquer outro sistema
— eu o rebelde, o rebelado, mesmo que apenas
um desertor: o desertor no deserto. (...) Mesmo
morto continuarei dando meu testemunho de
morte. Esta chuva imóvel serei eu que estarei
cuspindo.”26

Luz pisca.

Louca: ... essa vida vazia! Essas crianças murchas por


dentro, e quase viçosas por fora. Essas operárias
conformistas. Esses trabalhadores obedientes.
Esses estudantes quase espertos e servis, que
baixam a cabeça até para esse aí. Esse mundo
cheio de polícia e televisão. Essas pessoas como
eu.

Luz pisca.

Novato: Tudo bem. Tudo bem, nada. Tudo bem? É só


o que eu ouço. Como posso estar bem? Como?
É só surra. Em casa as coisas só funcionavam
na cinta. Ardia! Depois começaram murros na
cabeça, chutes onde pegava... Depois cresci e
metem o pau. E batem de pau. E você acha que

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Estamos todos presos

eu vou revidar contra minha mãe e meu pai? Aí


vou para a escola. E tome! Porque sou o mais
novo, o mais quieto, nem preciso ser fraco,
porque me atacam em bando. Porque não me
suportam. E porque não me suportam? (Pausa)
Eu não vou contar.

Luz pisca.

Operária 1: Toda vez que eu vejo uma coisa como essa eu


me lembro de como foi difícil compreender
a morte de minha irmã. Eu não sei porque.
Minha mãe era calma. Meu pai era calmo.
Eu sou calma e pacífica, você sabe! Um dia,
de repente minha irmã apareceu chorando e
sem um dente, a boca cheia de sangue. E eu
perguntei o que tinha acontecido. Ela virou o
rosto e foi lavar a boca.

Operária 2: O que tem isso a ver com a morte de sua irmã?

Operária 1: Noutro dia ela estava chutando todas as portas


de casa. Meus pais tinham saído pra igreja.
Tentei conversar. Não deu.

Operária 2: Ela era louca?

Operária 1: Pior que não. Mas às vezes, dava esse negócio


e ela chutava, chorava, gritava... mas, sempre
passava. Minha mãe orava. Meu pai saia de
perto.

Operária 2: E aí?

Operária 1: Um dia, voltamos da igreja e ela começou a


ter isso de novo... Minha mãe não agüentou.
Sacudiu ela e pegou no pescoço. Minha mãe
estava com uma cara estranha, não parecia
ela. Mas ela continuou apertando e gemendo e

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minha irmã não gritava; só com aqueles olhos


esbugalhados. Meu pai olhava e virava a cara.
Eu vi que ela ficou mole e comecei a berrar:
—larga dela, larga dela! Meu pai me deu um
tapa e mandou eu calar a boca para sempre...

Luz pisca.

Novato: Tudo bem. Tô eu nesse ônibus, de novo. Quan-


do aconteceu, eu achei que nunca mais eu ia an-
dar nisso. Foi uma surpresa. Apareceram umas
pessoas na escola, dizendo que eram de um
lugar de não sei onde nem porque. Só sei que
eles diziam que traziam uma oportunidade por
um concurso de história de vida da gente, da
gente desse lugar, da periferia, da comunida-
de. A melhor história ganhava um prêmio e
um curso que ia virar um trabalho. Desses de
escrever e de assistência. Eu ganhei. Fiz o cur-
so direitinho, mas eles não gostavam muito de
mim, do meu jeito; acho que duvidavam que
eu tinha escrito a redação. Trabalhei uns meses
lá. Acabou.

Luz pisca.

Policial: (Para o Novato): Você tem que ser esperto.


Quando eu tinha sua idade era a mesma coi-
sa. Ficava andando por aí, sempre me metendo
em encrencas. Fumava com uma turma daqui,
cheirava por ali... Quando eu não tinha pó, ia
cola mesmo. Foi quando começou a rolar pedri-
nhas... Pirei! Era naquilo todo dia. Não pensava
em outra coisa. A loucura aumentou e a confu-
são também. Aí dei um jeito. Conheci um cara,
tipo eu com você aqui, que me apresentou um
lance legal. Bom... Entrei pra polícia. Agora, ‘tô
te dando a mesma oportunidade. Topa? Vamos
até ali, a gente fuma um e eu te conto como fa-
zer... (Ambos descem do ônibus).

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Luz pisca. O Policial e o Novato já estão sentados lado a lado.

Operária 1: (Falando com a amiga Operária 2) Eu nem ligo


muito pra essa louca. Nem ligo mesmo.
Mesmo. Minha mãe foi parar num lugar pior.
No Manicômio Judiciário. Dali não se sai mais.
Ninguém visita. É lugar de morto-vivo. É o
lugar merecido pra minha mãe.

Luz pisca.

Garoto: Com chama este tipo de crime?

Luz pisca.

Anarquista: (No centro do palco, na escuridão e sob um foco de luz)


Não consta nem no Código Penal: inominável!

Luz pisca.

Cobrador: (Cobrador levanta-se e começa a andar pelo ônibus)


Todo dia a mesma coisa. Todo dia a mesma
gente. Ainda chego em casa e tenho que
aturar minha mulher reclamando das crianças,
das contas, da comunidade, da vizinha, do
conselho... como ela não encontra emprego
nem de doméstica. (Digressão: Ela era linda, a
mais linda; toda noite de sábado no baile. Linda,
rebolando. Perfeita. Gostava tanto...). Fica em
casa dia inteiro. As crianças enchem o saco.
Feias e sujas e berrando. E meto a comida ruim
pelos olhos, a cara na tv e durmo. Não penso em
nada, porque se tiver que pensar como agora,
mato todos, esquartejo, meto fogo, lavo a casa e
a cara, e durmo em paz. Definitivamente.
Luz pisca.

J. Mulher: (Que também era Operária 2, vindo do fundo do


palco): Tudo bem. Tudo bem nada. Agora eu

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ando com esse aí e até dá pra viver. Também se


não for ele, eu me arrumo com coisa parecida.
Tudo é parecido. Mas eu sei que se não rolar
uma sorte, eu embucho de um deles e aí começa
a descida pro inferno. Cuidar de casa e ficar seca
ou gorda é a melhor das histórias. E vai até a
prisão, com filho pendurado, colega pra arranjar
namorado, um tanto de comida e uma trepada
na visita íntima. Ou, então, vira funcionária de
malandro, pega cana escondendo bagulho dos
outros e sem saber quando vão me pegar em
casa ou uma bala, vindo sei lá de onde, vai me
atravessar. (Cai alvejada).

Garoto: Mãe, olha um rato!

A mãe olha.

Garoto: Um dia... um dia... era uma vez, uma garoto


como eu.

Elenco sobre nas poltronas como bando de babuínos.

Resistência até Black-out

Cena 11. O incomum, o estranho

Novato: “A política na sociedade de controle permanece


sendo a guerra prolongada por outros meios:
diplomática, racista, terrorista, macabra. E neste
medonho festim de sorrisos e de ameaças as
pessoas despovoadas de si se conformam com
democracia, participação, voto, ongs, televisão,
software livre, os independentes daqui e dali,
partidos, centros de informática, educação para
todos. Sociedade de controle é para todos; é para
integração.

Anarquista: Sociedade de controle é para todos; é para

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integração. Não suporta os rebeldes, porque


[nós] desestabilizam[os] até revoluções.

X: Não suporta os rebeldes, porque [nós]


desestabilizam[os] até revoluções.

Y: Os rebeldes não aceitam acomodações em seu


interior, nem se consolam com utopias ou votos
válidos, brancos ou nulos. São artistas da vida,
amigos das experimentações de liberdade, não
se amedrontam diante de ameaças. Resistem.

Anarquista: Resistem.

Novato: Resistem.

Anarquista: Na era da comunicação instantânea e dos


efêmeros, repare no rebelde que se aproxima,
agora, de perto, quase imperceptível, invisível.

Elenco: Alternadamente até tornar uma algaravia.


Imperceptível. Invisível.

Novato: Na era da comunicação instantânea e dos


efêmeros, repare no rebelde que se aproxima,
agora, de perto, quase imperceptível, invisível.
Vírus? Tuiiiiiiiiiimmm MÁQUINAS DE
GUERRA!”27

Elenco-vírus, mesma posição inicial de Novato em pé.

Black-out.

Elenco avança silenciosamente como bando de babuínos.

Luz em resistência. Black-out.

FIM

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2009

Notas
1
Aula teatro 4 do Nu-Sol. Pesquisa de texto por: Acácio Augusto, Anamaria Salles,
Beatriz Carneiro, Edson Passetti, Gustavo Ramus, Gustavo Simões, Edson Lopes,
Juliana Meduri, Eliane Knorr, Lúcia Soares, Mauricio Freitas, Natalia Montebello,
Nildo Avelino, Salete Oliveira, Thiago Rodrigues. Preparação de textos: Bruno
Andreotti, Gustavo Simões, Thiago Rodrigues. Escritos de: Albert Camus;
Alexandre Berkman; Alphonsus de Guimaraens; Cláudio Lavazzo; Campos de
Carvalho; D.H. Lawrence; Edson Passetti; Eliane Knorr; Emma Goldman;
Folha de S. Paulo; Gilles Deleuze; Jean Maitron; Jean-Pierre Vernant; Josmar
Jozino; Judith Malina; Julian Beck; Michel Foucault; Oscar Wilde; Pierre-Joseph
Proudhon; Renaud Thomazo; Rogério Duarte; William da Silva de Lima. Com:
Acácio Augusto, Beatriz Scigliano Carneiro, Eliane Knorr, Gustavo Ramus,
Gustavo Simões, Juliana Meduri (nas duas primeiras apresentações), Lúcia Soares,
Mauricio Freitas, Salete Oliveira, Thiago Rodrigues. Produção Gráfica: Andre
Degenszajn. Operadoras de luz: Anamaria Salles e Natalia Montebello. Operador
de som: Bruno Andreotti. Coordenação e direção de Edson Passetti. Apresentada
em: 10 e 11 de novembro de 2008 e 16 e 17 de fevereiro de 2009. A versão deste
texto confere com a última apresentação de fevereiro de 2009.
2
Julio Cortazar. a volta ao dia em 80 mundos. Tradução de Ari Roitman e Paulina
Wacht. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, pp. 174-176.
3
Oscar Wilde. “A Balada do Cárcere de Reading”. Tradução de Paulo Viziolli.
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/o/oscar01.htm
4
Alphonsus de Guimaraens. Ismália. São Paulo, Cosac Naify, 2006.
5
Julian Back. “Transformar o ânimo” (1983). Tradução do italiano de Nildo
Avelino. In Revista Verve. São Paulo, Nu-Sol, v. 11, 2007, p. 10.
6
William da Silva Lima. Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho.
Petrópolis/Rio de Janeiro, Vozes/ISER, 1991, pp. 12-13.
7
“Estatuto do Primeiro Comando da Capital”, artigos 16 e 7 in Josmar Jozino.
Cobras e lagartos. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2004, pp. 36-38.
8
Folha de S. Paulo, 14 de setembro de 2008, p. I-2.
9
Michel Foucault e Gilles Deleuze. ‘‘Os intelectuais e o poder” in David Lapoujad
(org). A ilha deserta e outros textos. São Paulo, Iluminuras, 2007, p. 268.
10
Renaud Thomazo. “Mort aux bourgeois!” Sur les traces de la bande à Bonnot. Tradução
de Nildo Avelino. Paris, Larousse, 2007, p. 104.
11
Cláudio Lavazzo.http://flag.blackened.net/pdg/presos/paginapresos/claudio/
contribuci%F3n.htm, Tradução de Acácio Augusto, 10/06/2004.

104

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verve
Estamos todos presos

12
Jean Maitron. “Émile Henry, o benjamim da anarquia” in Revista Verve. São
Paulo, Nu-Sol, 2005, vol. 7, p. 20.
13
Albert Camus. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro,
Record, 2003, p. 351.
14
Alexander Berkman. Prison Memoirs of an Anarchism. (originally published in 1912
by Mother Earth Publishing Association). Tradução de Beatriz Carneiro. New
York, Shocken, 1970. Parte I Capitulo VI. A cadeia, p. 45-46.
15
Idem.
16
Ibidem. Parte II, Capítulo III, O Silêncio espectral, pp. 120-121.
17
Emma Goldman. Viviendo mi Vida. Tradução de Juliana Meduri. Madrid,
Fundación Anselmo Lorenzo, 1996, pp. 153-156.
18
Judith Malina. Diário de Judith Malina: O Living Theatre em Minas Gerais. Secretaria
de Estado da Cultura de Minas Gerais e Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte,
2008.
19
Judith Malina e Julian Beck. Paradise now (1968). Criação coletiva do The Living
Theatre. Tradução de André Degenszajn. New York, Vintage Books Edition,
1971, pp. 96-97.
20
D.H. Lawrence. “Não-existência” in William Blake & D.H. Lawrence. Tudo o que
vive é sagrado. Seleção, tradução e ensaios de Mário Alves Coutinho. Belo Horizonte,
Crisálida, 2001, p. 153.
21
Rogério Duarte. Tropicaos. Rio de Janeiro, Azougue Tropical, 2003, p. 36.
22
Gilles Deleuze. “Para dar um fim ao juízo” in Crítica e clínica. Tradução de Peter
Pál Pelbart. São Paulo, Ed. 34, 1997, p. 153.
23
Cena criada para a apresentação de 11 de novembro de 2008 e que permaneceu
na versão final de 2009. Samuel Beckett. O despovoador. Tradução de Eloísa Araújo
Ribeiro. Martins Fontes, São Paulo, 2008, p. 12.
24
Uma invenção de Eliane Knorr de Carvalho.
25
Intermezzo 2, criado para a versão de fevereiro de 2009.
26
Walter Campos de Carvalho. A chuva imóvel. Rio de Janeiro, José Olympio, 2008,
p. 127.
27
Edson Passetti. Anarquismo urgente. Rio de Janeiro, Ed. Achiamé, 2007, p. 120.

Indicado para publicação em 2 de março de 2009.

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pira
das ruas de atenas
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ARDE

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Carta aos artistas de Paris

carta aos artistas de paris1


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gustave courbet

Paris, 18 de março de 1871

Meus queridos companheiros artistas:

Vocês me deram a honra, em sua reunião, de me


indicar seu presidente. Eu os estou convocando aqui,
em nome do comitê que foi designado a auxiliar-me,
para reportar-lhes sobre nossas fiscalizações e nos-
sas ações. Aproveitaremos também esse encontro para
apresentar diversas idéias que surgiram durante o
exercício de nossas atividades, em uma proposta para
uma nova reorganização do Fine Arts Administration
[Administração das Belas Artes], que tem como obje-
tivo promover a Exposição e os interesses das artes e
artistas.
As administrações anteriores que governaram a
França quase destruíram a arte ao protegê-la e ao su-
primir sua espontaneidade. Essa abordagem feudal,
sustentada por um governo despótico e discricionário,
não produziu nada além de arte aristocrática e teocrá-
tica, justamente o oposto das tendências modernas, de
nossas necessidades, de nossa filosofia, e da revelação
do homem manifestando sua individualidade e sua in-
dependência física e moral. Hoje, numa época em que

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a democracia deve reger todas as coisas, seria ilógico a


arte, que conduz o mundo, ficar para trás na revolução
que está ocorrendo agora na França.
Para alcançar esse objetivo, discutiremos em uma
assembléia de artistas os planos, projetos e idéias que
nos serão submetidos, no intuito de realizar uma nova
reorganização da arte e de seus interesses materiais.
Não há dúvidas que o governo não deve tomar a
dianteira em questões públicas, pois não é capaz de
carregar em seu interior o espírito de uma nação; con-
sequentemente, qualquer proteção será em si mesma
prejudicial. As academias e o Instituto, que apenas
promovem a arte convencional e banal, para que sejam
julgados por seus integrantes, opõem-se necessária e
sistematicamente a novas criações da mente humana
e infligem a morte de mártires em todos os homens
inventivos e talentosos, em detrimento de uma nação e
para a glória de uma tradição e doutrina estéreis.
Vejam, por exemplo, o caso deplorável da École des
Beaux-Arts, favorecida e subsidiada pelo governo. Essa
escola não apenas desvia nossos jovens, mas nos priva
da arte francesa, com suas finas procedências, favore-
cendo, sobretudo, a tradição túrgida e religiosa italiana,
que vai de encontro ao espírito da nossa nação. Essas
condições podem apenas perpetuar a arte pela arte e
a produção de trabalhos estéreis, sem caráter ou con-
vicção, enquanto nos privam de nossa própria história e
espírito sem qualquer compensação.
Portanto, para tomarmos decisões sobre bases mais
racionais e mais adequadas aos nossos interesses co-
muns, no intuito de abolir os privilégios, as falsas
distinções que estabelecem entre nós hierarquias per-
niciosas e ilusórias, é desejável que os artistas (como
nas províncias e em todos os países vizinhos) definam
seu próprio curso. Deixe que eles determinem como
farão as exposições; deixe que definam a composição
dos comitês; deixe que obtenham o local onde será a

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Carta aos artistas de Paris

próxima exposição. Isso pode ser resolvido até 15 de


maio, pois é urgente que todos os franceses comecem a
ajudar o país a se salvar de um imenso cataclismo.
É impossível que qualquer artista não tenha um ou
dois trabalhos que ainda não tenham sido exibidos.
Para os demais, chamaremos artistas estrangeiros. Ex-
cluiremos, certamente, os artistas alemães, mesmo que
isso seja contrário aos princípios da descentralização
e solidariedade. Mas os alemães, após terem se bene-
ficiado de aquisições francesas e comissões por tanto
tempo sem reciprocidade, nos obrigam, por sua traição
e espionagem, a tomar tal atitude nesse momento.
O local de encontro será anunciado em breve, bem
como as propostas a serem submetidas aos artistas.

Saudações fraternais,
G. Courbet

Tradução do inglês por Andre Degenszajn.

Notas
1
Carta do pintor Gustave Coubert, durante a Comuna de Paris, alertando para
a liberdade na vida e na arte distante dos governos e para a espionagem alemã
anti-comuna. Courbet pintou Proudhon, em 1853, de quem admirava as pro-
postas e idéias. Foi preso, julgado e sentenciado por incentivar a revolta. Dei-
xou a França em direção à Suíça em 1873, boicotado pelo governo, mecenas e
artistas da ordem. Morreu em 31 de dezembro de 1877. Elaborou 47 esboços da
Comuna de Paris, uma crônica daqueles dias de invenção libertária arruinada
pelo Estado e forças reacionárias européias unidas. Carta originalmente publi-
cada em “Le Rappel”, em 19 de março de 1871. (N. E.)

Indicado para publicação em 2 de junho de 2008.

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2009

a breve existência da seção brasileira do


centro internacional de pesquisas sobre o
anarquismo [1ª parte]

pietro ferrua*

Quando, em 1963, fui forçado a sair da Suíça, tive a


imensa sorte de deixar em boas mãos as atividades do Centre
International de Recherches sur l’Anarchisme (a sigla C.I.R.A.
permaneceu mesmo nas seções de outros países, incluindo o
Brasil, onde uma mera tradução teria dado a abreviação C.I.P.A.)
que eu concebera sete anos antes em Genebra. Marie-Christine
Mikhailova (recém falecida) e sua filha Marianne Enckell,
generosa e corajosamente, assumiram a responsabilidade pela
instituição e continuaram a dirigi-la, louvavelmente ajudadas
por um modesto, porém constante, grupo de voluntários. Do
meu exílio brasileiro continuei colaborando com o C.I.R.A.,
como melhor pude.
Neste ponto cabe lembrar que a viagem ao Brasil, depois da
expulsão helvética de 31 de janeiro de 1963, não foi a primeira. Em
1961 eu tinha permanecido lá dois meses de férias e tinha encon-
trado várias vezes os companheiros do Rio de Janeiro, Caxambu,
Belo Horizonte, São Paulo, Niterói, “Nossa Chácara”, participan-

* Professor Emérito do Lewis & Clark College, Portland, Estados Unidos,


fundador do Centre International de Recherches sur l’Anarchisme, C.I.R.A.,
viveu no Brasil entre 1963 e 1969.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

do de reuniões e excursões. O C.I.R.A. já tinha há alguns anos


um representante no Brasil, o então muito ativo Enio Cardoso,
autor de alguns livros e, entre outros, de um Projeto de Federação
Anarquista latino-americana, que previa a adesão ao C.I.R.A. e/ou
a criação de uma seção brasileira. Infelizmente, quando me esta-
beleci no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1963, Enio tinha entra-
do em crise e deixado de militar no movimento anarquista.
As circunstâncias políticas (quase logo sobreveio a ditadura
militar) não favoreciam, certamente, atividades públicas liga-
das ao anarquismo. Como militante tomei algumas iniciativas
(co-fundação da Liga dos Direitos do Homem, do Centro Inter-
nacional de Estudos Brasileiros; também me tornei presidente
do Centro de Estudos Professor José Oiticica, etc.). Nessas ati-
vidades, porém, o rótulo anarquista não aparecia, sendo esse
anonimato insuportável, pois não marcava nossa presença. Eu
me perguntava por que teríamos que praticar uma espécie de
autocensura. Surgiu progressivamente1 a idéia de se constituir
uma seção brasileira (que teria se transformado em centro lati-
no-americano, segundo o velho e esquecido projeto de Cardoso)
do C.I.R.A.-Internacional (do qual, aliás, já se cogitavam “filiais”
na França, na Inglaterra, na Bélgica, na Holanda e no Japão). Foi
assim que, em julho de 1967 — após uma série de conversações
pessoais, antes, e de reuniões preparatórias, depois, foi oficial-
mente inaugurado o C.I.R.A.-Brasil. Apesar da apreensão pela
polícia e pela censura militar dos arquivos, ocorrida em lugares
diferentes e em várias oportunidades, alguns documentos foram
preservados e nos permitem reconstituir quase integralmente a
trajetória. A lista se encontra no fim do artigo.2
Esses documentos de arquivo (em cópia mimeografada ou
datilografada ou fotocópia de um original confiscado ou extra-
viado) não são os únicos vestígios das atividades pois foram
preservadas também cópias das cartas enviadas (costumávamos
datilografar a correspondência “oficial” e guardávamos a cópia)
bem como algumas dúzias das cartas recebidas, entre aquelas
interceptadas pela censura sem nosso conhecimento ou confis-
cadas no momento de minha prisão, ou ainda, sequestradas na
repartição postal de Caxambu (Minas Gerais), ou na casa de ve-

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raneio de minha sogra, Blanca Lobo Filho (que, por causa disso,
teve que passar umas horas no quartel militar de Caxambu).
Essa correspondência deve ser considerada duplamente im-
portante pois:
• os remetentes eram militantes, escritores ou pesquisado-
res conhecidos (hoje em dia quase todos falecidos);
• ilustram o conteúdo, muito mais impessoal, de circula-
res e de relatórios mimeografados.
Se o C.I.R.A.-Brasil tem uma data oficial de nascimento muito
exata, um certo trabalho de preparação tinha sido realizado com
o envio da carta circular mencionada no primeiro parágrafo, que
se torna então o primeiro dos documentos emitidos.
O papel utilizado na correspondência é o do C.I.R.A.-Inter-
nacional, isto é, da sede suíça, enquanto a data não é especifica-
da e o cabeçalho indica vagamente “data do carimbo postal”.
Pode-se presumir que o texto tenha sido concebido de maneira
a poder ser utilizado ainda muito depois da data de sua reda-
ção e deveria servir como introdução ao C.I.R.A., em geral, e
também como projeto de fundação de uma seção brasileira. A
datação deveria ser estabelecida como janeiro de 1967, época de
férias no Brasil durante a qual um professor teria mais tempo
livre para dedicar a esse tipo de atividade. Na apresentação di-
zíamos logo que a militância no anarquismo não era uma pré-
condição essencial para a adesão. Esta distinção, escrupulosa-
mente respeitada, ditada por uma dupla preocupação de evitar
perseguições policiais e a de tomar ao pé da letra os estatutos do
C.I.R.A.-Internacional (à redação dos quais eu tinha participado)
garantia a objetividade científica. Examinando a lista dos inscritos
ao C.I.R.A.-Suíça, perceber-se-á que entre os primeiros cinquen-
ta nomes a metade corresponde a não militantes; tratava-se de
amigos pessoais, de pesquisadores, de simpatizantes, que não
compartilhavam a causa do anarquismo (alguns tornaram-se
anarquistas por “contágio” enquanto outros desinteressaram-se
pelo C.I.R.A. desde o momento em que eu não estive mais pre-
sente para estimulá-los).

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

O caso dos membros do C.I.R.A.-Brasil foi parecido: vários


inscritos não se identificavam com as idéias anarquistas razão
pela qual a lista deles permaneceu reservada e a polícia nunca
a encontrou. Quando aconteceram as prisões, foram presos os
anarquistas empenhados em outras atividades mais específicas,
como as do Movimento Libertário Estudantil ou do C.E.P.J.O.3
Aos destinatários da circular nº 1 se propunham várias esco-
lhas, além da adesão ao C.I.R.A.:
1. aos autores e editores se pedia para ofertar cópias de li-
vros, revistas e jornais à biblioteca da Suíça para aumen-
tar a coleção de língua portuguesa e também para que
fossem recenseadas no Bulletin ;
2. a gravação de palestras para a criação de um arquivo de
história oral;
3. o envio de material iconográfico e manuscrito;
4. o levantamento de dados sobre coleções especializadas
sobre anarquismo existentes em bibliotecas e arquivos
públicos ou particulares para o estabelecimento de um
fichário central para pesquisadores, etc.
Não foram encontradas outras cartas circulares, nem outros
boletins do C.I.R.A.-Brasil depois desse documento até o rela-
tório de atividades distribuído na assembléia de 10 de julho de
1969. Para ilustrar as atividades desenvolvidas entre o início de
1967 e meados de 1969, só podemos nos basear no documento
nº 18 e sobre o arquivo da correspondência. Os dados que emer-
gem podem, portanto, ser divididos em várias categorias:

Membros

Em 1º de julho de 1969, resultam inscritos 34 membros (en-


tre os quais um “honorário” e dois que ainda não tinham for-
malizado a adesão por se encontrarem viajando ao exterior).
Trata-se, à primeira vista, de um número limitado, mas temos
que pensar na dificuldade de aceitar um “carnê” cheirando a
anarquismo em plena ditadura militar. Além disso, não se tra-

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tava somente de declarar seu nome (unicamente duas pessoas


tinham escolhido um pseudônimo), mas também desempe-
nhar tarefas de pesquisa ou outras. E, seja dito, para a honra
da verdade, se olharmos de perto, sobre os 34, pelo menos 23
dos membros exerceram alguma atividade prática e útil. Te-
mos, aliás, que sublinhar a colaboração de amigos próximos
ou longínquos que, apesar de não terem aderido oficialmente
ao C.I.R.A.-Brasil, nos ofereceram um auxílio precioso. En-
fim, temos que notar que o C.I.R.A.-Brasil esteve presente só
no Rio de Janeiro (com exceção de um membro em Caxambu
e outro em São Paulo) devido à dificuldade de manter rela-
ções de correspondência seguras em regime de ditadura e de
censura.

Correspondência

Foram mantidos contatos com os seguintes países:


Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile,
Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Inglaterra, Israel,
Itália, Japão, México, Peru, Suécia, Suíça, Uruguai. As cartas
enviadas ou recebidas eram destinadas ou provinham de
militantes anarquistas isolados, grupos e federações, ou de
bibliotecas, institutos de pesquisa, universidades, sindicatos,
arquivos, fundações, editores, autores, livrarias, etc.
Mencionemos alguns de nossos correspondentes:
Alliance Ouvrière Anarchiste (França), Centro de Acción
Popular (Montevidéu), Charles Hochauser Harmony (Israel),
Circolo Camillo Berneri (Florença), Circolo Germinal (Carrara),
Clélia, viúva de Ugo Fedeli (Ivrea), Ernesta, viúva de Lato
Latini (Florença), Federación Anarquista Mexicana (Cidade
do México), Federación Libertaria Argentina (Buenos Aires),
Federazione Anarchica Italiana (Napoli), Freedom (Londres),
Galart (Peru), L’Internazionale (Ancona), Movimento Operaio
(Milão), René Vienet (da Internacional Situacionista), Sir
Herbert Read (Inglaterra), Trento Tagliaferri (Roma e Rio de
Janeiro), Umanità Nova (Roma), etc.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

Edição

Nossos projetos ambiciosos de edição faliram, pois nenhu-


ma gráfica teria a coragem de realizar nosso programa. Cola-
boramos porém com a única editora abertamente anarquista
ainda existente, a Editora Germinal do corajoso Prof. Roberto
das Neves. Fomos intermediários para obter os direitos au-
torais de Daniel Guérin de seu livro O Anarquismo (que saiu
com um prefácio do autor deste artigo e foi muito difundi-
do). Alguns de nós cooperaram igualmente nas atividades da
Editora “Mundo Livre” (que modestamente e silenciosamen-
te reeditava alguns clássicos anarquistas) mas isso foi feito a
título pessoal, entre militantes, sem envolver o C.I.R.A.
Enio Silveira nos pediu que interviéssemos junto ao Herbert
Read para que ele autorizasse a Editora Civilização Brasileira a
publicar em português algumas obras suas sobre anarquismo.
O escritor inglês, que já aderira ao C.I.R.A.-Internacional a meu
pedido, uns dez anos antes, nos colocou em contato com seu
agente literário, porém a recrudescência da censura fez mudar
de idéia o editor carioca.
O texto de um folheto que eu mesmo escrevi sobre a fun-
dação do C.I.R.A. na Suíça foi traduzido em francês e enviado
ao Centro de Lausanne, mas ficou inédito.
Um manuscrito meu sobre a “Bibliografia dos periódicos
anarquistas de 1939 a 1965” foi confiscado ou destruído pela
censura militar que sequestrou também as fichas contendo
os dados individuais de cada publicação, bem como os do-
cumentos de comprovação (ou seja, milhares de originais de
publicações internacionais em vários idiomas colocados em
pastas individuais), documentos históricos raros e, em alguns
casos, insubstituíveis (publicações clandestinas vindas da
Espanha, Portugal, Iugoslávia, Argentina, Cuba, Bulgária,
Suíça, etc.) números únicos, boletins internos e assim por
diante.
Tampouco foi publicado um longo relatório (24 laudas
formato almaço) que eu redigi sobre o Congresso Internacio-
nal das Federações Anarquistas de Carrara de 1968 (ilustrado

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por fotografias e documentos que vários companheiros suíços,


franceses e italianos, tinham me mandado) bem como outros
artigos meus e de outros membros. Uns anos atrás encontrei
um estudo empreendido pela doutora Regina Helena Machado
(trinta anos depois não tinha perdido seu interesse) que foi
publicado na revista lusitana Utopia, ano I, nº 1, pp. 72-83,
com o título “Sacco e Vanzetti no Brasil. Presença e Ação da
Literatura de Cordel”.
Redigimos também uma moção do C.I.R.A.-Brasil ao
Congresso da C.R.I.F.A.4, de Carrara (agosto de 1968) que
foi registrada nas atas.

Traduções

Além das versões italiana, portuguesa e esperanto dos


estatutos do C.I.R.A.-Internacional, o C.I.R.A.-Brasil, que
dispunha da ajuda voluntária de vários membros e simpa-
tizantes competentes, traduziu vários artigos e documentos
para a imprensa anarquista de língua portuguesa. Entre
eles: “Silhuetas israelianas” do francês, para O Dealbar de São
Paulo; documentação para os livros de Edgar Rodrigues (do
italiano), materiais variados para a Editora Germinal, apelo de
Daniel Guérin em solidariedade com Octavio Alberola amea-
çado de expulsão da Bélgica (do francês), apelo de Carlos M.
Rama em solidariedade a José Peirats ameaçado de expul-
são da França (do espanhol), Declaração Comum Libertária
Continental Americana do Movimento Libertário Cubano no
Exílio (do espanhol), definição do verbete “Anarquismo” da
Enciclopédia Soviética, (do russo) etc.

Entrevistas

Uma entrevista concedida ao diário carioca O Globo com


o título “Ferrua: Anarquismo atua e progride no mundo mo-
derno” saiu na segunda página da edição de 5 de julho de
1968.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

Duas entrevistas com um jornalista do diário carioca O Paiz,


Paulo Sterlinck, que foram suprimidas pelo redator-chefe do
jornal “por serem demais comprometedoras”.
Uma entrevista com Carlos M. Rama foi parcialmente re-
produzida no número de 15 de julho de 1968, na página 3 de
O Paiz. Permaneceram as considerações dele sobre a situação
econômica no Uruguai, mas foi passada sob silêncio a partici-
pação dele no curso sobre anarquismo no Teatro Carioca do
Rio de Janeiro, naquela mesma semana.

Biblioteca-arquivo

A coleção iniciada no Rio de Janeiro, nunca superou uma


centena de volumes. Quando do fechamento do C.I.R.A.-Brasil
esses livros foram despachados para a biblioteca suíça.
Os companheiros portugueses nos assinalaram a existên-
cia de uma coleção importante de documentação anarquista
reunida pelo militante Pinto Quartim. Avisamos o C.I.R.A. na
Suíça sugerindo que interviessem a Biblioteca Nacional Hel-
vética de Berna e se usasse a mala diplomática da Embaixada
da Suíça em Portugal, porém ficamos decepcionados ao saber
que a recuperação desse arquivo não aconteceu.
Mais importante ainda foi a doação do Arquivo de Edgar
Leuenroth que visava sobretudo evitar a possível destruição
do acervo por parte da ditadura militar. Naquela altura o mi-
litante paulista, membro do C.I.R.A., faleceu, mas a confirma-
ção da doação me foi dada pessoalmente pelo filho Germinal
— então militante ativo — por ocasião do último encontro
que tive com ele em São Paulo, em novembro de 1969, poucas
semanas depois das prisões dos membros do C.E.P.J.O. no
Rio de Janeiro e poucas semanas antes de minha saída para
o exílio americano. Escrevi às responsáveis pelo C.I.R.A. na
Suíça e formulei a mesma proposta que já tinha feito em
relação aos arquivos portugueses. A operação, por alguma
razão, não se realizou. Felizmente, porém, os arquivos não
foram destruídos nem extraviados. Após várias vicissitudes
alguns foram vendidos a um pesquisador americano (diz-se

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que eram duplicatas, mas isso nunca foi conferido) que os


utilizou para escrever um livro5 muito tendencioso sobre o
movimento operário e anarquista no Brasil, que foi violen-
tamente criticado por Edgar Rodrigues numa resenha muito
pormenorizada.6 Parte da coleção foi cedida à Universidade
de Campinas (onde parece que as obras foram catalogadas
e postas à disposição dos pesquisadores, o que explica, pelo
menos parcialmente, a abundância de teses de mestrado e de
doutorado, sobre assuntos ligados ao anarquismo (em parti-
cular) e ao movimento trabalhador brasileiro (em geral), so-
brevindas no Brasil durante os últimos quinze anos e outra
parte foi confiada a um comitê de militantes e guardada em
lugar privado e seguro, à disposição do movimento anarquis-
ta.
Segui as vicissitudes desse arquivo, primeiro por corres-
pondência, como representante do Movimento Libertário
do Rio de Janeiro no exílio, e mais adiante, no decorrer de
minhas visitas ao Brasil, depois de quinze anos de ausência.
Desapareceram, infelizmente, Jaime Cubero, Ideal Peres e
também o companheiro espanhol que tomava conta fisica-
mente dos arquivos. Entre os membros responsáveis só está
vivo Edgar Rodrigues, mas provavelmente os outros foram
substituídos.7
Outro fundo de documentação muito importante do
qual o C.I.R.A.-Brasil se ocupou, foi o Arquivo da Biblioteca
Anarquista Internacional Americana (conhecido sob o nome de
B.A.I.A.) de Montevidéu. Quando, em novembro de 1969 fui
à capital uruguaia, eu acabava de ter sido solto pela polícia
da ditadura militar brasileira e temia estar sendo vigiado
também naquela cidade que estava cheia de espiões devido
à presença do ex-presidente “Jango”, que ali vivia em exílio.
Os anarquistas com os quais falei pelo telefone não tinham
porém nenhum receio em me encontrar e assim combinei
de ver as pessoas separadamente. Estive com Luce Fabbri,
Eugen Relgis, os companheiros da Comunidad del Sur (que
convidaram todos os anarquistas brasileiros, recém presos
e que estavam sendo libertados provisoriamente, à espera
do processo, a se exilarem nos locais da comunidade com

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

as respectivas famílias), Carlos Rama e sua companheira


Judith Dellepiane e alguns militantes da Federação
Anarquista Uruguaia, cindida em duas facções, uma das
quais prócastristas. Tive a oportunidade de ver algumas de
suas publicações clandestinas, entre as quais a bela revista
Rojo y Negro bem como o diário da F.A.U., que a esposa do
Rama difundia entre os médicos do hospital no qual exercia
suas funções profissionais. Não a levei na volta ao Brasil
(onde voltei apesar da opinião contrária dos companheiros
uruguaios, pois eu temia que os membros de minha família
pudessem ser presos como reféns em meu lugar) aquelas
publicações preciosas, com medo que me fossem sequestradas
na chegada no aeroporto.
Em Montevidéu me disseram também que Abraham
Guillén (que talvez tenha conhecido na França nos anos 40 com
outro nome) e Gerardo Gatti poderiam me dar notícias dos
arquivos da B.A.I.A., mas não consegui localizar essas pessoas.
Cochichava-se que teriam entrado na clandestinidade, fariam
parte de uma guerrilha urbana ou talvez estivessem presos
incomunicáveis. Alguém se lembrou do último endereço e
me acompanhou até lá mas as portas estavam lacradas. Foi
o terceiro e último fracasso na tentativa de recuperar e salvar
arquivos.

Palestras

Eu mesmo pronunciei três palestras sobre a fundação e o


funcionamento do C.I.R.A.-Internacional, respetivamente no
Rio de Janeiro (na sede do Centro de Estudos Professor José
Oiticica), em Buenos Aires (na sede da Federação Libertária
Argentina) e em São Paulo (na sede do Centro de Cultura
Social). Sobre o mesmo assunto me entretive com os compa-
nheiros do Grupo Libertário de Mar del Plata (Argentina), da
Casa Editorial Proyección (Buenos Aires) e em Montevidéu,
nos grupos Solidaridad del Sur, Solidaridad, Federación Anarquista
Uruguaya.
Roberto das Neves apresentou um relatório, muito entusi-
ástico, de sua viagem a Lausanne em visita ao C.I.R.A.

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Visitas

Alguns membros do C.I.R.A.-Brasil visitaram a sede suíça.


Além de Roberto das Neves, aí estiveram também Valdecir
Palhares e Regina Helena Machado. Rosa Maria de Freire
Aguiar visitou os arquivos de Edgar Leuenroth em São Paulo
e escreveu sobre essa visita um artigo de que não temos cópia,
talvez para a revista semanal Manchete para a qual colaborava
e da qual se tornou correspondente parisiense durante vários
anos.
Eu mesmo encontrei alguns membros de honra do
C.I.R.A.-Internacional, como Diego Abad de Santillán (em
Buenos Aires) e Eugen Relgis (em Montevidéu) enquanto que
outros estiveram conosco no Rio de Janeiro: Helmut Rüdiger
(que veio da Suécia) e Carlos M. Rama (do Uruguai).

Curso “Alguns Aspectos Históricos do Anarquismo”

Talvez tenha sido a atividade pública que tenha suscita-


do o maior interesse e colhido de surpresa os ambientes uni-
versitários, a opinião pública, bem como os serviços de polí-
cia. Tratou-se de um desafio aberto à ditadura, pois o rótulo
“anarquismo” reaparecia abertamente e com bastante evidên-
cia em um cartaz de grandes dimensões afixado nos quadros
murais de todas as faculdades universitárias e das escolas
particulares mais importantes do Rio de Janeiro. O diretor e
dono do diário Jornal do Brasil, Manoel do Nascimento Britto
(a quem eu dava aulas de francês e que, geralmente era muito
prestativo comigo) previu que eu acabaria preso. Isso de fato
aconteceu, mas somente um ano depois de acabar o curso. Os
próprios policiais, quando me interrogaram, tiveram que ad-
mitir que tínhamos agido inteligentemente pois não tinham
encontrado nenhum motivo para interromper uma série de
aulas históricas. Contentaram-se em providenciar que uma
dupla de agentes se inscrevesse no curso, os quais admitiram
em seus relatórios que não conseguiram entender o que nós
queríamos em realidade, pois:

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

1. nunca falávamos do Brasil;


2. criticávamos as ditaduras da direita mas tambem as
da esquerda;
3. nos mantínhamos num nível acadêmico (as revolu-
ções que discutíamos eram as do passado: a Comuna
de Paris de 1871, a primeira Revolução Russa de 1905
e a segunda de 1917, a Revolução Mexicana de 1910-
11, a Revolução Espanhola de 1936-39).
Examinamos também assuntos contemporâneos, como as
revoltas dos estudantes na Europa: o Maio de 68 em Paris e
também seu equivalente em Praga.
Nossos “inspetores” estavam confusos e quando um dos
“provocadores” formulou a objeção de que todos os orado-
res (houve quatro durante a série) só aludiam às revoltas do
passado ou acontecimentos sobrevindos em outras latitudes
e quis saber o que o conferencista do dia pensava da viabili-
dade de uma revolução no Brasil atual. O caso se deu que o
orador fosse o músico americano John Cage, o qual respon-
deu que a primeira revolução no Brasil seria a de reconstruir o
sistema telefônico. Inicialmente o curso tinha sido anunciado
sob minha única responsabilidade, pois eu podia aproveitar
de minha condição de professor estrangeiro (ninguém men-
cionou que eu tinha me naturalizado cidadão brasileiro dois
anos antes) com a “cobertura” do C.I.R.A. suíço. Na última
hora (os cartazes já tinham sido impressos e distribuídos) o
militante anarquista, hoje infelizmente desaparecido, Doutor
Ideal Peres, ofereceu-se como voluntário para tratar do assunto
dos anarquistas na Revolução Russa. Quando o curso já ti-
nha começado chegaram ao Rio, em semanas diferentes,
duas grandes personalidades anarquistas internacionais, o
sociólogo e historiador Carlos M. Rama (fazia parte do Comitê
Internacional do C.I.R.A. e já tinha feito uma palestra para nós
em Genebra em época anterior) que nos falou admiravelmente
dos anarquistas durante a Revolução Espanhola e, como dis-
semos há pouco, o compositor John Cage, que se ofereceu para
falar sobre Henri David Thoreau e a desobediência civil.

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2009

Ao curso colaboraram também outras personalidades


locais, como o historiador do anarquismo luso-brasileiro,
Edgar Rodrigues (que providenciou muita documentação) e o
Professor Daniel Brilhante de Brito (que traduziu do russo
vários verbetes enciclopédicos). Nos bastidores, modesta, po-
rém eficazmente, contribuíram à organização geral do curso
(cuidando de problemas práticos como: datilografia, inscri-
ções, publicidade, transporte de oradores, etc.) as então es-
tudantes Regina Helena Machado (que depois obteve dou-
torado na Universidade de Toulouse) e Rosa Maria de Freire
Aguiar (hoje grande tradutora e diretora da Fundação Celso
Furtado), Jacques Kalbourian (hoje pintor de renome) além
de pessoas que preferiram permanecer incógnitas. Amigos,
companheiros, grupos e instituições estrangeiras nos manda-
ram documentação: Marco Smeraldi (Florença), Movimen-
to Libertário Cubano no Exílio (Miami), C.I.R.A.-Lausanne,
C.I.R.A.-Marseille, Federação Anarquista Mexicana e Grupo
Tierra y Libertad (Cidade do México), Comissão de Relações
das Federações Anarquistas, André Bernard, Antonio Téllez
e Daniel Guérin (Paris), Edgar Leuenroth (São Paulo) etc.

Pesquisas bibliográficas

Aos membros que tinham a oportunidade de viajar se


pedia que visitassem as bibliotecas locais e fizessem um
levantamento do material de interesse anarquista existente
nas coleções. Isso foi feito na Biblioteca Municipal de
Salvador (Bahia), na de São Paulo, no Arquivo Mineiro de
Belo Horizonte e, naturalmente, na Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro. As fichas, infelizmente, foram confiscadas e
jamais devolvidas.

Prisões e processo

As prisões ocorreram durante o mês de outubro de 1969,


isto é, um ano após a conclusão do curso no Teatro Carioca.
Estava previsto e cada um de nós tinha se preparado para isso
(pelo menos, foi assim que pensávamos). Um colaborador e

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

amigo, Gilberto Ballalai, tinha sido preso e muitas perguntas


lhe foram feitas sobre mim. Aconteceu o mesmo com outros:
meu dia se aproximava. Nos primeiros dias do mês de outu-
bro o Roberto das Neves, que pertencia a uma loja maçônica,
tinha sabido que haveria uma incursão nos ambientes ligados
ao anarquismo e nos avisou por intermédio do genro. Alguns
de nós se reuniram e estabeleceram que, não sendo possível
que a maioria pudesse deixar o país (quase todos os suspeitos
tinham uma família que não queriam abandonar), devíamos
salvar o que era possível. Um companheiro empreiteiro de
obras fez construir um esconderijo especial onde foi preserva-
da uma documentação importante (que ainda existe). Cada um
de nós teria que cuidar dos arquivos pessoais. As precauções
que adotei foram desafortunadamente as piores: dividi tudo
por três e deixei uma terceira parte em casa (teria sido muito
suspeito se eles não encontrassem nada) outro terço coloquei
na casa de uma estudante insuspeitável (mas não tomamos
em consideração a curiosidade de uma empregada nem o
medo de um marido apreensivo o que levou a uma destrui-
ção deliberada) e um terço na casa de vilarejo de minha sogra
(a qual tentou despachar meu material para os Estados Uni-
dos), 15 pacotes de impressos e manuscritos registrados, cada
um de cinco quilos, que foram apreendidos na repartição pos-
tal de Caxambu (Minas Gerais) pela Polícia Militar. D. Blanca
Lobo Filho, aliás, foi presa e interrogada durante várias horas
e conseguiu se sair da encrenca só por ser doutora, professora
universitária nos Estados Unidos e não compartilhar de mi-
nhas idéias. De fato ela era totalmente inocente e só queria me
fazer um favor. Protestei junto à Convenção Postal Universal
de Berna, porém de nada valeu. Nunca recuperei nada.
Minha prisão ocorreu no Dia dos Professores, 15 de ou-
tubro de 1969. Fui levado ao Quartel Geral da Aeronáutica
Militar no Galeão, junto com o Professor Roberto das Neves.
Os outros foram presos em dias diferentes resultando num
total de dezesseis militantes, todos anarquistas menos um. A
acusação era de atividades subversivas, de complô contra o
governo, de fabricação de explosivos, de formação de guer-
rilhas, de financiamentos ilícitos de proveniência estrangeira
e assim por diante.

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O ato de acusação está transcrito na seção de documentos.


O tratamento no quartel da Aeronáutica Militar foi dife-
rente para cada um de nós. Sem que nós o soubéssemos, fo-
ram torturados três jovens cujas respostas não soavam — e,
talvez, de fato não fossem — sinceras.
Pessoalmente gozei de um serviço de “luxo” pois o regu-
lamento militar previa que os detentores de algum diploma
universitário tivessem direito a refeições e alojamento ao
nível de oficiais. Dormi com colchão e comi bem. Roberto
das Neves era vegetariano e tentou converter à dieta ma-
crobiótica um policial que sofria de distúrbios gástricos (só
depois soubemos que ele era o torturador).
O coronel que nos interrogava, às vezes juntos e às vezes
separadamente, não entendia porque todos os “subversivos”
sob inquérito negavam tudo, até a evidência, enquanto que
nós anarquistas não só admitíamos tudo (ou quase), mas até
nos gabávamos de nosso comportamento. Os detalhes inte-
ressantes da instrução e do processo são demasiados para
poderem ser reproduzidos aqui e quem estiver interessado
poderá consultar o volume que Edgar Rodrigues dedicou ao
assunto em Os anarquistas no banco dos réus.
A parte que diz respeito ao C.I.R.A. merece algum esclareci-
mento: eu era acusado de ser um agente estrangeiro (a serviço
de uma hipotética revolução internacional) que “financiava”
atividades subversivas no Brasil com fundos suíços.
Foi muito fácil desmontar esse achado dos serviços se-
cretos. Houve, sim, algumas transferência de fundos, mas,
ironicamente (será que as autoridades suíças, que ainda me
vigiavam, pensavam que eu estava alimentando uma revo-
lução na Suíça com dinheiro brasileiro?) em sentido oposto
(uma percentagem do dinheiro cobrado para a inscrição ao
C.I.R.A.-Brasil era paga à sede suíça). As importâncias eram
tão insignificantes (uma dúzia de dólares) que as responsáveis
de Lausanne tinham sugerido que em vez de mandar dinheiro
comprássemos e despachássemos para eles livros de interesse
anarquista em língua portuguesa.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

Minhas viagens “subversivas” no exterior, em vários países


da América Latina, foram também fáceis de explicar devido a
meu trabalho de intérprete a serviço de entes tão subversivos
como a Organização dos Estados Americanos (O.E.A.), da qual
o Brasil fazia parte, ou o Serviço do Cerimonial do próprio Mi-
nistério de Negócios Exteriores do Brasil. Ficaram um pouco
perplexos, mas afinal, divertiram-se às pampas com o estrata-
gema, por mim excogitado, para colocar meu nariz em lugares
e situações indevidos (manifestações estudantis, delegacias de
polícia, ministérios) exibindo um cartãozinho do Ministério
que pedia às autoridades que me deixassem circular livremen-
te. Esse documento deveria ser válido só para um dia especí-
fico ou um período bem delimitado, mas eu o tinha dobrado
de maneira que a carteira plástica não deixasse transparecer as
datas e pudesse ser considerado válido em um controle super-
ficial limitado às assinaturas e aos carimbos. Ninguém nunca
tinha me contestado esse documento até então.
O terreno suspeito de treinamento para guerrilheiros, ad-
quirido coletivamente pelo Movimento Libertário Brasileiro,
correspondia a uma modesta fazenda destinada à agricultura
biológica e à criação de uma comunidade autogerida, a uma
meta quase turística de descanso e reflexão e a um lugar para
palestras e reuniões entre companheiros (os anarquistas pau-
listanos tinham feito o mesmo com a “Nossa Chácara” em
Moji das Cruzes).
Sobre esse assunto o C.I.R.A. não tinha nada a ver; só
eu, a título pessoal contribui financeiramente com o “Nosso
Sítio”; contribuição muito modesta e só financeira, pois eu
nunca pisei naquele terreno. Os militares, depois de tê-lo
sobrevoado com seus helicópteros, antes, e esquadrinhado de
perto, tintim por tintim, não encontraram nenhum traço de
guerrilheiros nem de armas.
Permanecia a acusação mais grave, a fabricação de explo-
sivos, explicada no manual Acção Directa. Este folheto fora
publicado por Roberto das Neves, a pedido do general portu-
guês Humberto Delgado (a quem eu tinha sido apresentado
uns anos antes na sede da Editora Germinal). A publicação
era destinada à luta em Portugal contra a ditadura de Salazar

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e foi fácil convencer os militares nesse sentido por três razões


essenciais:
1. Ortografia, gramática e sintaxe eram lusitanas e não
brasileiras;
2. havia sido impresso “antes” do advento do governo
militar no Brasil;
3. todos os interessados que o conheciam admitiram tê-lo
possuído ou visto e as respostas sempre combinavam
com as do editor que, na verdade, assumiu a respon-
sabilidade de tê-lo impresso e distribuído ele mesmo,
bem como dado de presente a cada um de nós.
Fomos soltos depois de três ou quatro dias, alguns só depois
de um mês, porém fomos todos denunciados. O trâmite do pro-
cesso demorou muito, mas ao final fomos todos absolvidos. O
Procurador apelou, pois as “leis excepcionais” o exigiam. Passa-
ram-se ainda uns anos e o veredicto foi a nosso favor.
As atividades do C.I.R.A.-Brasil se confundem parcial-
mente com as do Movimento Libertário Brasileiro (do qual
me tornei representante no exterior entre 1970 e 1985) e ces-
saram oficialmente com o fechamento da sede do C.I.R.A.-
Brasil e do C.E.P.J.O., em fins de 1969 e são pouco conhecidas
pelas novas gerações de anarquistas cariocas. Isso se tornou
evidente em agosto de 1992, no encontro “Outros 500” orga-
nizado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,8
um curso no qual, devido à ausência do delegado carioca
Ideal Peres, incumbiu-me a tarefa de tomar a palavra e narrar,
para um público desinformado (os presentes tinham aderido
ao movimento anarquista depois de 1969 ou como no caso de
algumas pessoas idosas, que já tinham militado antes, mas
que eram oriundas de regiões em que aconteceram coisas di-
ferentes) fatos daquela época, mais tarde documentado por
Edgar Rodrigues no livro acima mencionado e, no que diz
respeito ao C.I.R.A., com algumas lacunas inevitáveis que va-
mos preencher com os documentos apontados. O discurso,
porém, permanece aberto.

Pietro Ferrua

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verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

P.S.: Este ensaio sobre o C.I.R.A.-Brasil pode ser conside-


rado como artigo em si mas também como um capítulo co-
mum a dois livros, parcialmente inéditos.
O primeiro trata da história de todos os C.I.R.A.s., e foi
em parte publicado pela Rivista Storica dell’Anarchismo (Pisa,
Itália). Assinados por mim saíram os artigos seguintes:
“Appunti per una cronistoria del Centro Internazionale
di Ricerche sull’Anarchismo” ano 7, nº 2 (julho-dezembro de
2000) 88-108.;
“La breve esistenza della Sezione Brasiliana del Centro
Internazionale di Ricerche sull’Anarchismo” ano 8, nº 1
(janeiro-junho de 2001) 51-60.;
“La Sezione del C.I.R.A. in Giappone” ano XI, nº 1 (janeiro-
junho de 2004), 127-131.
Outros artigos da série foram:
Marie-Christine Mikhaïlo: “Cronache del periodo d’oro
del C.I.R.A.” ano 9, nº 2 (julho-dezembro de 2002) 89-93.
René Bianco, antes de falecer, chegou a escrever um artigo
sobre a fundação e o desenvolvimento do C.I.R.A.-Marseille,
em colaboração com Felip Equis, destinado à mesma revista
que, porém, cessou suas publicações.
Faltavam ainda dois artigos a essa série: um de Marianne
Enckell em continuação ao que sua mãe escreveu e um meu,
sobre o “C.I.R.A. virtual”. Quem sabe, algum dia.

O segundo livro programado, do qual o presente artigo


seria apenas um capítulo, é aquele dedicado à “Atividade do
Movimento Libertário do Rio de Janeiro durante a ditadura
militar” e que deve ser precedido e seguido por: “A fundação
da Liga dos Direitos Humanos” (por Lícia do Prado Valladares
e eu mesmo), “O funcionamento do C.E.P.J.O. até as prisões e
o fechamento”, o Movimento Libertário Estudantil, as visitas
de personalidades estrangeiras, o congresso clandestino,

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2009

o Centro Brasileiro de Estudos Internacionais, as atas do


processo, etc.

Lista de documentos

• Circular nº 1 do núcleo preparatório da seção brasileira do C.I.R.A.


(1967).
• Convocatória para a palestra de 23/01/1968.
• Cópia de uma carta do membro Roberto das Neves em visita ao
C.I.R.A. na Suíça.
• Cópia do prefácio ao livro do Daniel Guérin, O Anarquismo.
• Estatutos do C.I.R.A. em português.
• Estatutos do C.I.R.A. em esperanto.
• Circular nº 2 de 12/06/1968.
• Cópia de um artigo no diário O Globo, de 05/07/1968.
• Cópia de um artigo no diário Última Hora de 06/07/1968.
• Cartaz sobre o curso: Aspectos históricos do anarquismo.
• Série de bibliografias distribuidas aos discentes do curso: a),
b), c), d).
• Palestra do Prof. Carlos M. Rama em 13/07/1968.
• Entrevista de Carlos M. Rama a O Paiz, em 15/07/1968.
• Cópia de um artigo do Jornal do Brasil de 20/07/1968 anunciando
nosso curso.
• John Cage. Sobre a palestra de John Cage publiquei um artigo
em Verve, São Paulo, 2003, v. 4, pp. 20-31.
• Outro artigo sobre o mesmo assunto: “O ‘testamento anarquista’
de John Cage”, em Verve, São Paulo, 2004, v. 5, pp. 219-229.
• Temário da primeira Assembléia Geral do C.I.R.A.-Brasil em
30/07/1969.
• Sugestões para o futuro do C.I.R.A.-Brasil em vista da Assem-
bléia Geral.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

• Relatório de atividades do C.I.R.A.-Brasil entre julho de 1967 e


julho de 1969.
• Atas da Assembléia Geral de 30/07/1969.
• Pesquisa: Sacco e Vanzetti no Brasil, por Regina Helena Macha-
do.
• Ordem de bloqueio da Caixa Postal do C.I.R.A.
• Auto de Busca, Apreensão e Prisão.
• Termos de Perguntas ao Indiciado.
• Denúncia do Procurador da Justiça Militar.
• Carta do Ideal Peres.
• Mandado de Citação da Primeira Auditoria da Aeronáutica.
• Sentença.
• Recorte do Jornal do Brasil de 02/12/1971 sobre a absolvição dos
anarquistas.
• Apêndice: Documento nº 10 acima mencionado.

DOCUMENTO 1

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Circular nº 1 de 1967

Centre International de Recherches sur l’Anarchisme


Rio de Janeiro, data do carimbo postal.

Prezados Senhores,

Ocorre neste ano o décimo aniversário da fundação do Centro


Internacional de Pesquisas sobre o Anarquismo (C.I.R.A.) que funciona
na Suíça desde 1957. Nessa ocasião pensamos iniciar uma campanha
pró novos membros, que seria feita simultaneamente em várias línguas
e continentes. A adesão ao C.I.R.A. não implica em absoluto em adesão
às doutrinas anarquistas, como especificam os estatutos reproduzidos em
folhas anexas. O C.I.R.A. é portanto um organismo de estudos “sobre”
e não “para” o anarquismo. Fundado por anarquistas, conta no entanto
entre seus membros com pessoas de fé religiosa tais como católicos e
protestantes e ou de crenças políticas, tais como marxistas ou liberais.
Colaboram com ele personalidades de todos os setores, ligadas
apenas no interesse comum pela História Social, o Sindicalismo, as
Doutrinas Políticas, as manifestações de Vanguarda. É comum estu-
dantes de história, de sociologia, de filosofia consultarem os arquivos
do C.I.R.A.; é frequente jornalistas, bibliógrafos e historiadores se di-
rigirem a seu serviço de consulta antes de redigirem artigos, teses de
doutoramento, manuais de história moderna. Esse valioso trabalho,
entretanto, não seria possível sem a cooperação financeira de mem-
bros esparsos no mundo inteiro e sem sua colaboração intelectual.
A presente circular se propõe não só divulgar as atividades do
C.I.R.A. (estatutos em anexo, boletim à disposição) mas também a
sondar o terreno para a fundação de uma eventual seção brasileira ou
latino-americana no Rio de Janeiro.
Por isso além de convidarmos os destinatários a se inscreverem no
C.I.R.A. (quota anual de NCr 7,00; inscrição vitalícia NCr 70,00), o que
dá imediatamente direito a receber o cartão internacional de leitor da
Biblioteca da Suíça, o catálogo desta, o serviço do Boletim, etc.), mas
pedimos que digam se acham útil e viável a fundação de uma seção
nacional (ou continental), com depósito de livros (como acontece com
as filiais de Marselha e Paris), Boletim local (id.), caixa postal (que per-
centagem da quota deveria ser enviada à Suíça e retida aqui?) etc.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

Independentemente da adesão pura e simples, há naturalmente mil


outras maneiras de ajudar o C.I.R.A. eis alguns exemplos:
• envio de livros ou folhetos por parte de autores ou editores. O
que tem sido feito assaz regularmente pelo Prof. Roberto das
Neves da Editora Germinal; pelos senhores Edgar Rodrigues,
Enio Cardoso, Venâncio Pastorini Sobrinho, Edgar Leuenroth
e pela Editora Mundo Livre, graças aos quais foi inaugurada
a seção de língua portuguesa. Lembre-se que as obras envia-
das em um exemplar são catalogadas e podem ser consulta-
das, pelo serviço de empréstimo internacional, em cerca de
trinta países. O envio de um segundo exemplar dá direito à
crítica de livro no Boletim periódico. O dos demais exemplares
permite ao C.I.R.A. alimentar as bibliotecas locais e as de ou-
tras entidades afins;
• envio regular de jornais anarquistas ou dirigidos por anarquis-
tas sobre outros assuntos. Existem na Suíça coleções de Ação
Direta, O Libertário, Caderno de Questões Sociais; de outras
publicações de periodicidade efêmera e, atualmente, recebe
O Dealbar;
• envio de recortes de imprensa de outros jornais sobre assuntos
de interesse anarquista; de cartazes, manifestos, volantes,
folhas de propaganda, editados por federações ou grupos
locais;
• gravação sobre fita magnética de discursos, conferências ou
palestras que tenham caráter histórico e científico e não sejam
de pura e simples propaganda;
• cessão de velhas edições de livros e folhetins, velhos jornais,
para a reconstituição da história do movimento anarquista
numa cidade, região ou país. (O C.I.R.A. conseguiu reunir
coleções originais, fotocópias ou microfilmes de jornais rarís-
simos por antiguidade ou de edição clandestina);
• cessão de correspondência e fotografias de militantes (o
C.I.R.A. já possui cartas de Max Nettlau, Jean Grave, Luigi
Bertoni, James Guillaume, Emile Armand, Ugo Fedeli,
Sébastien Faure, Benito Mussolini, Lucien Descaves, Luigi
Galleani, Nella Giacomelli, William Morris, Elisée Reclus e de
muitos outros pensadores e militantes famosos);
• assinalação de vendas públicas em leilão ou no sebo de docu-
mentos importantes;

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• compilação de uma lista de livros de interesse anarquista exis-


tentes na biblioteca municipal local;
• informação sobre a existência de museus, estátuas, ruas
públicas ou edifícios que levam o nome de um pensador ou
militante anarquista;
• ajuda sob forma de trabalho: datilografia, mimeografia, enca-
dernação, redação de correspondência, de artigos, de críticas
de livros, etc., compilação de fichas bibliográficas, fotocopia-
gem, traduções, catalogação, etc.;
• oferta de material de escritório, etc.;

Acolhendo este apelo contribuirão ao adiantamento da História


do Anarquismo, da História dos Movimentos Sociais e Operários, da
Ciência, em suma. Não esqueçam que há forças poderosas que tentam
destruir os documentos sobre as origens dos movimentos de reivindicação
social ou de fazê-los desaparecer. Isto aconteceu em vários países e
no próprio Brasil as bibliotecas públicas possuem pouco ou nada sobre
a História Social do país. Ao historiador que aparecer daqui a vinte ou
cinquenta anos e que quiser escrever a crônica das lutas populares no
Brasil, poderá parecer que esta começa só depois da Revolução Russa
ou do Estado Novo, tão bem este conseguiu cortar o cordão umbilical
que ligava o movimento operário à pregação e à ação dos militantes da
Primeira Internacional. Quem se lembraria das publicações socialistas
do Recife de 1852-56, da pululação de jornais anarquistas em São
Paulo no fim do século e do Sindicato dos Foguistas e Estivadores de
1903 que tanto fizeram para a formação da consciência sindical no lito-
ral brasileiro, não fossem alguns exemplares existentes em bibliotecas
européias?
A vida atormentada dos militantes e as perseguições sob vários
governos acabaram com a maior parte dos documentos indispensáveis
para escrever a história do pensamento social. Procurar em qualquer
recanto do mundo estes fragmentos de história, recompô-los, salvá-los
e disponiblizá-los para estudiosos, em lugar seguro contra todas as
tempestades políticas como é a Suíça, tem sido, é e será a obra do
C.I.R.A. à qual esperamos que cada um queira dar uma contribuição.
Pelo C.I.R.A.
Pietro Ferrua
fundador e responsável até fins de 1962

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

Correspondência:
Caixa Postal 119
Copacabana ZC — 07 Guanabara

DOCUMENTO 2
Convocatória para uma palestra

Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1968

O convite datilografado sobre papel impresso do Centre


International de Recherches sur l’Anarchisme é dirigido:

Aos membros residentes nesta cidade


Texto:

CONVITE

6a feira, dia 26 de janeiro de 1968, às 21 horas, na sala do Centro


de Estudos Professor José Oiticica. Avenida Almirante Barroso nº 6, sala
1101, (11° andar) para uma palestra sobre:

História e Atividades do C.I.R.A na Suíça, 1957-1967.


O C.I.R.A. Pietro Ferrua

Nota: O texto da palestra não está disponível atualmen-


te. O original foi mandado para Lausanne. O texto nunca foi
publicado e foi extraviado. O conferencista não se lembra se
leu o texto preparado para ser publicado (o que não acon-
teceu) ou se improvisou. Um texto parecido, mas não igual,
foi publicado muito mais tarde em italiano (em Rivista Storica
dell’Anarchismo. Pisa, Itália) “Appunti per una cronistoria del
Centro Internazionale di Ricerche sull’Anarchismo”, ano 7, nº 2
(julho-dezembro de 2000) pp. 88-108.

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DOCUMENTO 3
Carta do membro Roberto das Neves de Lausanne na data
de 7/04/1968

Neves ficou alguns dias hospedado na 24, Avenue de


Beaumont. Não foi ainda possível datar a visita de outros
membros brasileiros do C.I.R.A., tais como Regina Helena
Machado e Valdecir Palhares, que visitaram os arquivos e ex-
pressaram sua satisfação.

Texto da carta do Prof. Roberto das Neves

Lausanne, 7 de Abril de 1968

Meu caro Pietro Ferrua,


Eis-me em Lausanne, aonde cheguei anteontem, após emocionante
viagem através de Itália, Romênia, Bulgária, Iugoslávia, Áustria, Alema-
nha, Suíça. Estou hospedado, como imaginas, em casa dos nossos ultras-
simpáticos camaradas Maria Christina Mikhailov, que me receberam o mais
fraternalmente possível.
Com exceção daqui e da Romênia, por toda a parte, nas ruas e em
casas de amigos, só falei esperanto. Foi uma experiência altamente inte-
ressante, que vos contarei ai, à minha chegada, e em livros que pretendo
escrever. Estou oficialmente convidado pelos esperantistas a voltar, no pró-
ximo ano, à Bulgária (onde colherei notas para um livro intitulado “Bulgario
paradiso de esperantistoj”) e à Polônia. Queriam que ali ficasse um mês em
cada um daqueles países, à sua custa, para poder visitar todo o interior,
com automóvel a minha disposição, mas não me foi possível aceitar tal
proposta devido a problemas que reclamam meu regresso aí.
Na quarta-feira 10, pela manhã tomarei em Genève o avião da “Air
France” para Paris, onde ficarei uns quinze dias. Depois, de novo para o
Rio.
Li nos jornais o que aí se passou com os estudantes. Faço voto para
que nenhum dos nossos tenha sofrido.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

Além das numerosas e fortes emoções que por toda a parte me foi
dado receber, tive a oportunidade de encontrar aqui no C.I.R.A., os meus
livros.
Maria Christine escrever-te-a por estes dias.
Até breve! Saudações a todos os nossos e para ti e os teus o meu
fraternal abraço
Teu
Roberto das Neves
O envelope leva o carimbo postal de dia 8 de abril de 1968.

Comentário: A urgência da volta ao Brasil manifestada


por Roberto na carta acima era devida, por um lado, a graves
problemas de família, e por outro, ao grande e corajoso pro-
jeto de publicar um livro abertamente anarquista durante a
ditadura militar.
Antes de sua partida para a Europa, Neves pedira-me que
obtivesse a autorização de Guérin, o que eu fiz sem dificul-
dade. O editor fez questão de pagar os direitos autorais e o
autor ficou satisfeito com um adiantamento simbólico. Roberto
insistira também para que eu aceitasse uma remuneração para
redigir o prefácio. Ele não queria em absoluto explorar o traba-
lho dos companheiros.
Enquanto ele estava viajando pela Europa o genro dele,
Manuel Pedroso, estava traduzindo o ensaio de Guérin e eu
preparando a introdução. O livro saiu em setembro (de 1968)
mas as livrarias comerciais não ousavam expô-lo. O editor
resolveu então vendê-lo ao público ele mesmo e aproveitou
uma Feira do Livro que estava se realizando em Niterói.
Os acontecimentos na França, na Tchecoslováquia, a pu-
blicidade de nosso curso no Teatro Carioca, artigos no Jornal
do Brasil, a propaganda do Movimento Estudantil Libertário
tudo contribuiu a criar um clima favorável à difusão do anar-
quismo no Rio de Janeiro. A edição prevista pela Editôra
Germinal esgotou rapidamente.

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DOCUMENTO 4
Prefácio ao livro: O Anarquismo da Doutrina à Ação, de
Daniel Guérin

Rio de Janeiro, Germinal, 1968, pp., 179, encomendado ao


C.I.R.A.-Brasil pelo Prof. Roberto das Neves e assinado por
Pietro Ferrua.

Daniel Guérin: O homem, o militante, o escritor.


Por Pietro Ferrua (Diretor-Fundador do Centro Internacional de
Pesquisas sobre o Anarquismo)

Daniel Guérin nasceu em Paris a 19 de maio de 1904, em uma família


burguesa, que lhe assegurou uma educação católica, da qual, como ele
salienta em suas memórias (Un jeune homme excentrique, Julliard, 1965),
custaria a libertar-se.
Após uma juventude aventurosa, durante a qual percorre vários
países e se inicia nas letras com poesias de algum talento (Le livre de la
dix-huitème année, Albin Michel, 1922) e dois romances que não tiveram
grande repercussão literária (L’enchantement du Vendredi Saint, 1925, e
La vie selon la chair ,1922, ed. Albin Michel), torna-se, por volta de 1930,
militante sindicalista e socialista, aderindo à S.F.I.O.9 Conheceu então Léon
Blum e Leon Trotsky, dos quais, o segundo o fascinou pela sua lucidez,
mas de quem se afasta por seu sectarismo. Visita a Itália e a Alemanha
pré-nazista e revela-se um agudo analista do perigo totalitário, ao denunciar
numa reportagem, em 1933 (La peste brune a passé par là) a ascenção do
3° Reich, que ele estudará, mais tarde, em suas causas e consequências
deletérias (Fascisme et grand capital: Italie-Allemagne, 1936).
A partir de então, Daniel Guérin abraça todas as causas dos humildes e
perseguidos, sejam eles os negros americanos (Où va le peuple américain?,
1950; Décolonisation du Noir Américain, 1963, e Pouvoir Noir, 1967) ou os
argelinos lutando por sua independência, nos anos 50, e de novo, nos últi-
mos anos, após o golpe militarista; condena o colonialismo (Au service des
colonisés, 1954; (Les Antilles décolonisées, 1956; assina o famoso “Manifes-
to dos 121”, funda o “Mouvement Laïque des Auberges de Jeunesse”, é se-
cretário sindical e participa de todas as lutas políticas da esquerda francesa,
dentro e fora do país, com verdadeiro espírito universalista.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

Publicou, além disso, dois livros de sexologia, defendendo a plena


liberdade sexual da juventude e considerando o erotismo como um dos
instrumentos da liberdade, em Kinsey et la sexualité (Julliard, 1955); e
em Shakespeare et Gide en Correctionnelle (Scorpion, 1959) realizará
uma interpretação homossexual dos famosos sonetos de Shakespeare.
Homem de teatro (foi, durante algum tempo, co-diretor do “Théâtre des
Nations”), adaptou à cena o Vautrin de Balzac, e Le grain sous la neige,
do italiano Ignazio Silone (estreado no Teatro Popular Mundial a 1° de
fevereiro de 1961) peça à qual deu uma conotação libertária. No campo
histórico, Guérin se impôs com um extraordinário ensaio sobre a Revolução
Francesa (La lutte des classes sous la Première République, 1793-1797,
Gallimard, 1946), que lhe valeu elogios de historiadores profissionais e de
Sartre, que chegou a considerá-la como a mais válida das interpretações
marxistas, e que atraiu, pela primeira vez, a atenção dos anarquistas sobre
sua obra.
Minhas relações com Daniel Guérin datam de cerca de dez anos. Diri-
gia eu o Centre International de Recherches sur l’Anarchisme, em Genebra,
quando ele me escreveu pedindo informações sobre a situação do anarquis-
mo no mundo contemporâneo, para uma reportagem destinada à revista La
Nef. Militava ele, então, no partido Socialista Unificado, nascido do impacto
causado na intelectualidade da esquerda francesa pela divulgação do rela-
tório do 20° Congresso do Partido Comunista Russo.
Numa carta em fins de 1958, informava-me que as relações entre ele
e a revista La Nef tinham se tornado incompatíveis por causa das diver-
gências suscitadas pelo gaulismo, acrescentando que estava pesquisan-
do seriamente sobre o anarquismo e anunciava para fevereiro de 1959
um ensaio intitulado Jeunesse du socialisme libertaire, depois editado
pela editora Marcel Rivière. Procedendo a uma redução fenomenológica
de tipo husserliano, que consistia em pôr entre parênteses o jacobinis-
mo marxista-leninista, propunha Guérin reconstituir do zero o socialismo,
insuflando-lhe um sopro de pureza libertária. Após a falência do stalinismo,
tratava-se (dizia-me) de purgar Lenin dos germes autoritários, de preferir o
jovem Marx, libertário, ao Marx adulto, ditatorial, de reconhecer a franque-
za ideológica de Proudhon e de reavaliar o marxismo com uma vigilância
libertária. Teses que não satisfizeram a muitos de nossos militantes, mas
que nos induziram, com isenção de ânimo e ante a seriedade e a originali-
dade do seu trabalho, a nomeá-lo membro de honra do Comité do C.I.R.A.,
que reúne, independentemente de sua formação e filiação políticas, todos
os estudiosos do anarquismo, bem como biógrafos, bibliógrafos e histo-
riadores.

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Em julho de 1960, em uma viagem a Paris, onde fomos buscar um


caminhão de documentação para nossos arquivos na Suíça, tive oportu-
nidade de travar conhecimento direto com Daniel Guérin. Estava ele em
companhia de Samuel Beckett, no “Théâtre des Nations” e, desde então,
nossa colaboração não cessou de ser frutuosa. Em outubro do mesmo
ano, era perseguido por ter assinado, ao lado da filha, também escritora,
e de outros intelectuais, o “Manifesto do 121”. A Liga Central Suíça dos
Direitos do Homem, de cujo comitê eu fazia parte, envia protestos a vá-
rios jornais por ele indicados. Durante toda a época da luta em favor da
independência da Argélia, tivemos oportunidade de colaborar, estreita e
fraternalmente.
Entretanto, Guérin distancia-se ainda mais do marxismo e ocupa-
se cada vez mais do anarquismo, sem, todavia, chegar a uma adesão
total ao movimento libertário. Em 1965, sai do prelo o livro L’Anarchisme,
de la doctrine à l’action (Gallimard); em 1966, Ni Dieu ni Maître (ed. de
Delphes); em 1968 Le mouvement ouvrier aux Etats-Unis, 1867-1967. E a
fonte não está prestes a esgotar-se. Em carta de julho de 1966, confessa
ainda Guérin encontrar-se numa posição solitária entre o marxismo e o
anarquismo. Declarara, numa entrevista a 5 de maio de 1966, que em
todos os países se multiplicaram estudos sobre este movimento, que
talvez não mais tivesse muitos porta-vozes, mas que «suas idéias talvez
tenham sobrevivido melhor do que seus partidários».
Segundo Guérin, a atualidade do anarquismo revelar-se-ia sobre dois
planos, num passado honrado e profético (por ter previsto, há um século,
os crimes do socialismo autoritário), e na proposição de um socialismo
libertário, baseado na iniciativa criadora do indivíduo e na participação
espontânea de vastas massas. Mantém-se, porém, Guérin, convicto da
possibilidade de uma síntese entre anarquismo e marxismo (as disputas
encaradas como brigas de família), permanecendo o desacordo apenas
sobre alguns meios de se chegar à sociedade sem classe.
A majestosa obra Ni Dieu ni maître que, segundo o autor, deveria
chamar-se “Antologia Histórica do Anarquismo” é uma verdadeira suma
sobre o assunto, onde se revelam, pela primeira vez, documentos impor-
tantíssimos sobre a atuação anarquista na Revolução Russa (entre outros,
uma entrevista de Makhno com Lênin e a reprodução das Izvestias de
Cronstadt).
Mas examinemos agora, brevemente, o livro que estamos apresentando
e cuja repercussão tem sido enorme, através da grande difusão na França e
das traduções espanhola e alemã, que precederam a portuguesa.

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A obra foi desigualmente recebida pela crítica anarquista: Claude


Frochaux (Bulletin du C.I.R.A., nº 12) considera-a “autêntico vademecum
do anarquista contemporâneo”, enquanto Victor García (Tierra y Libertad,
maio de 1967) censura Guérin por algumas afirmações inexatas.
Já tive oportunidade de expôr a Guérin, a seu pedido, o que pensava
do livro. Não cabe aqui levantar as poucas falhas e omissões atribuíveis
à falta de documentação e a algumas interpretações apressadas. Basta
dizer que não existia em francês, nem talvez em outro idioma, um livro que
condensasse com tamanha honestidade, vivacidade e acuidade, o que é
necessário informar sobre o anarquismo, numa primeira leitura, para um
público virgem. Mas o livro não tem somente esta qualidade: é ainda es-
timulador de um repensamento da problemática moderna do anarquismo,
ao mesmo tempo que é um convite ao reconhecimento de alguns erros
passados e uma avaliação de perspectivas novas.
Os recentes acontecimentos franceses permitem-me acrescentar al-
gumas palavras sobre a grande influência exercida por este pequeno livro,
bem como pelas outras obras do mesmo autor. Mesmo antes de receber
a última carta de Guérin, e antes de estar de posse do material que me
foi enviado de Paris para documentar os acontecimentos, eu já havia de-
clarado a importância de tais influências, numa série de palestras sobre o
anarquismo, patrocinadas pelo C.I.R.A. e realizadas no Teatro Carioca, no
Rio de Janeiro.
Quando Guérin escreveu o ensaio sobre a Revolução Francesa, quis
ele considerá-la únicamente do ponto de vista das relações entre as clas-
ses sociais e insistiu em estudar o movimento das massas, fugindo a qual-
quer interpretação idealista, como foi um pouco o caso de Kropotkin, na
Grande Revolução.
Talvez Guérin não goste de saber que eu lhe reconheço (mérito ou
responsabilidade) aquela influência que a imprensa atribui a Marcuse e
que foi negada pelos representantes dos estudantes. Mas o que acontece
é que, em seu livro L’Anarchisme, Guérin ressuscita o princípio de “auto-
gestão” de Proudhon e dedica-lhe os últimos capítulos. Mais tarde publica
na revista anarquista de Paris Noir et Rouge (1° de outubro de 1965), um
estudo sobre a “Autogestão Contemporânea”. Segue-se-lhe um trabalho
sobre a autogestão na Argélia (“L’Algérie caporalisée”, dezembro de 1965),
continuação de “L’Algérie qui se cherche” (1963-64). Em 1966, ajuda a
fundar a revista sociológica Autogestion, de cujo comité de redação faz
parte.
O mínimo que pode ser dito é que não é por acaso que o lema anar-
quista da autogestão, por uma parte, e, por outra parte, a tônica marxista-

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libertária das ocupações das fábricas, como, entre outros, salienta Edgard
Morin, tenham sido as constantes maiores da recente Comuna estudantil
de Paris. Escreve-me, a propósito, Daniel Guérin, a 5 de julho de 1968: “O
que houve de verdadeiramente novo neste movimento não foram, a meu
ver, nem as barricadas nem mesmo a ocupação das fábricas, mas a con-
testação radical de todos os valores estabelecidos e a democracia direta,
as assembléias populares discutindo tudo sem cansar e repondo tudo em
questão. Nessa contestação, o anarquismo, ou socialismo libertário, saiu
vencedor. É absolutamente inacreditável o número de exemplares vendido
de meu livrinho. Animei debates sobre a autogestão num certo número de
faculdades, de escolas superiores, de colégios e até numa fábrica ocupa-
da. A questão apaixona literalmente o público. Trata-se da aquisição mais
duradoura, parece-me, da revolução de maio.”
Quer se acredite no valor de experiências revolucionárias deste tipo,
como Guérin, ou o neguemos, como o fez outro anarquista, não violento,
o famoso compositor americano John Cage, que há pouco esteve pre-
lecionando no curso de anarquismo, que estamos realizando no Teatro
Carioca, do Rio de Janeiro, os fatos não mudam. Resta intepretá-los devi-
damente: numa ótica marxista, Daniel Guérin terá sido simplesmente um
analista de leis dialéticas, que previu e talvez tenha ajudado o inevitável
deflagrar de algumas contradições da sociedade estatal-capitalista; numa
ótica idealista, teria ele contribuído, com seu trabalho incansável de anos,
com suas sínteses lúcidas, para o esclarecimento e a conscientização das
forças revolucionárias estudantis.
Cada um poderá escolher a versão que mais convier a seus postula-
dos filosóficos básicos.

Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1968.

DOCUMENTO Nº 5
Estatutos do C.I.R.A.

Versão em língua portuguesa.


Tradução do original francês por Eva.
O presente texto não leva em consideração possíveis modi-
ficações dos estatutos sobrevindas depois da redação inicial.

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Centro Internacional de Pesquisas sobre o Anarquismo


Estatutos

I – Nome, sede, finalidades


1) Com o nome de C.I.R.A. (Centre International de Recherches sur
l’Anarchisme) foi fundada em Genebra uma associação apolítica internacio-
nal de duração ilimitada, conforme os artigos 60 e seguintes do Código Civil
Suíço.
2) Sua sede é em Genebra.
3) As finalidades do C.I.R.A. são:
a) organizar, classificar e conservar, em arquivos os documentos, isto
é: livros, jornais, impressos, manuscritos de toda espécie e em todas as lín-
guas, que tracem a história das idéias, dos acontecimentos, dos agrupamen-
tos, dos movimentos e dos indivíduos anarquistas de todos os países.
b) informar os sociólogos, historiadores, escritores, jornalistas, estudan-
tes ou quaisquer outras pessoas interessadas e promover eventualmente
reuniões ad hoc do C.I.R.A. com essas pessoas;
c) suscitar e fomentar as pesquisas históricas, sociológicas, literárias e
bibliográficas sobre o anarquismo.
4) Os meios de doação do C.I.R.A. são, entre outros:
a) o incremento da biblioteca já constituída pelas doações oriundas da
Bibliothèque Germinal du Groupe du Rêveil Anarchiste de Genebra dos fun-
dos FrÍgerio, Bertoni, SPRI, CRIA, Gross-Fulpius e outros grupos e individu-
alidades e por aquisições ou intercâmbios.
b) o sistema de empréstimo de documentos da Biblioteca (veja-se: título
1, parágrafo 3, ítem a) acima) ou diretamente pelos nossos cuidados ou por
intermédio da Biblioteca Pública e Universitária de Genebra à qual o C.I.R.A.
é afiliado. Os empréstimos efetuados pela BPU extendem-se atualmente aos
países seguintes: Suíça, Alemanha, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, França,
Holanda, Itália, Iugoslávia, Liechtenstein, Luxemburgo, Noruega, Reino
Unido, Suécia, Checoslováquia. As obras são emprestadas gratuitamente,
e com as condições da BPU de Genebra. A duração do empréstimo é de um
mês, mas uma prorrogacão pode ser requerida.
Algumas obras são excluídas do serviço de empréstimo.

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Os membros do C.I.R.A. em dia com a sua cotização podem utilizar o


serviço direto de empréstimo. Todas as expedições são feitas registradas e
às custas do destinatário.
As obras e documentos remetidos ao C.I.R.A. em depósito lhe devem
ser restituídos ou cedidos a terceiros.
As doações de obras e documentos feitas sem restrições por parte do
doador, ficam de propriedade do C.I.R.A.
c) a publicação periódica do boletim bibliográfico contendo a lista das
obras recebidas pelo C.I.R.A., críticas de livros, estudos inéditos. Este Bo-
letim é enviado gratuitamente aos membros do C.I.R.A. Os não membros
poderão assiná-lo.
d) a organização de conferências e palestras proferidas por pessoas
competentes sobre assuntos de interesse anarquista. Essas conferências
são gravadas em fitas magnéticas que os membros podem tomar empres-
tadas.
e) o trabalho prático (classificação, correspondência, mimeografia, tradu-
ções, etc.) efetuado várias vezes por semana por membros não remunera-
dos na sede social do C.I.R.A.

II - Membros
a) O C.I.R.A. está aberto a todos aqueles, pessoas ou agrupamentos
que se interessem por sua finalidade, aceitem os presentes estatutos e subs-
crevam uma quota anual mínima de 10 francos suíços;
b) ele admite como membros ativos todos aqueles que ajudarem pratica-
mente a realizar o programa geral previsto pelos presentes estatutos;
c) aceita como membros correspondentes as organizações científicas
ou anarquistas, ou pessoas da Suíça ou do exterior que subscrevam os pre-
sentes estatutos;
d) considera como membros vitalícios todos aqueles que fizerem doa-
ções de fundos ou que, na qualidade de membros, versarem uma quota
única de 100 francos suíços;
e) considera como membros fundadores (que se tornam membros vita-
lícios) os participantes do comitê provisório do C.I.R.A. que funcionou entre
a primeira reunião de abril de 1957 e a primeira assembléia de novembro de
1958 em Genebra.
f) considera como membros honorários, com a sua aquiescência, as
personalidades conhecidas por seus trabalhos de pesquisa e por sua com-

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petência sobre um aspecto do anarquismo; estes membros são dispensados


de qualquer cotização.
Perde-se o direito de membro do C.I.R.A. por:
* demissão
* exclusão pronunciada pela Assembléia Geral ou pelo Comitê por ra-
zões graves, sob reserva de ratificação pela mesma assembléia.
* o não pagamento de duas quotas anuais equivale a uma demissão
tácita.

III - Organização
1) Os órgãos do C.I.R.A. são:
A Assembléia Geral;
O Comitê de Gestão, composto com pelo menos cinco membros e su-
plentes por escolha da mesa;
A Comissão Geral dos três fiscalizadores das contas.
2) A Assembléia Geral
Elege os membros do Comitê de Gestão e os fiscalizadores das contas
pela duração de três anos cíveis. Nomeia também os membros de honra
(Comitê Internacional);
Examina a situação moral, material e financeira e adota as decisões
úteis para o C.I.R.A.;
Discute e decide sobre as questões levadas à ordem do dia pelo Comitê
de Gestão.
Cada assembléia geral nomeia uma mesa de três membros. Os relató-
rios moral e financeiro e os projetos de resolução estabelecidos pelo Comitê
de Gestão serão comunicados aos membros um mês antes da Assembléia
Geral.
As propostas individuais ou oriundas de grupos deverão ser comunica-
das com duas semanas de antecedência do Comitê de Gestão se não forem
objeto de um novo item da agenda. Em caso de urgência, abre-se mão do
parágrafo acima.
3) O Comitê de Gestão
O Comitê de Gestão tem:

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a) o dever de dirigir o C.I.R.A. moral, material e financeiramente, confor-


me às suas finalidades:
b) competência para intervir junto as autoridades suíças para organizar
eventuais manifestações e conferências em nome do C.I.R.A. e para prepa-
rar as assembléias gerais.
c) o dever de fornecer todas as informações que permitam à Comissão
de fiscalização das contas de apresentar o relatório à Assembléia.
4) Afora o caso previsto no parágrafo 2, item a), a Assembléia Geral se
reúne uma vez por ano pelas outras finalidades previstas no capitulo III.
5) Qualquer modificação dos estatutos pode ser proposta a assembléia
Geral por um terço de seus membros ou pelo menos pelo comitê de ges-
tão.

IV - Dissolução
A dissolução do C.I.R.A. só pode ser pronunciada por uma assembléia
geral especialmente convocada com esta finalidade. A decisão deve ser
adotada por dois terços dos membros presentes (incluídos os membros cor-
respondentes. Em caso de dissolução os documentos da biblioteca (veja-se
capítulo l, parágrafo 4, item a) dos estatutos) serão devolvidos aos membros
e organizações depositários ou donatários que o terão especificado no con-
trato de cessão. Os documentos serão entregues à organização que substi-
tuir o C.I.R.A. e cujas finalidades se aproximem mais das suas. O comitê de
gestão decidirá qual o destino da correspondência recebida e enviada pelo
C.I.R.A.

Membros de honra do C.I.R.A.


Emile Armand, Giovanni Baldelli, Alex Comfort, Hem Day, Ugo Fedeli,
Sol Ferrer, Ildefonso González, Abba Gordine, Daniel Guérin, Wieslaw
Jezierski, Renée Lamberet, Louis Louvet, Jean Maîtron, Pier Carlo Masini,
Albert Meister, André Prudhommeaux, Michel Ragon, Carlos M. Rama, Sir
Herbert Read, Eugen Relgis, Helmut Rüdiger, André Salmon, Diego Abad de
Santillán, Sven Stelling-Michaud, Alicia Pérez Salazar, George Woodcock.

Correspondentes nos países seguintes:


Alemanha, Argélia, Argentina, Austrália, Bélgica, Brasil, Canadá, Chile,
Costa Rica, Cuba, Espanha, Estados Unidos, Guiné, Holanda, Hong Kong,
Israel, Itália, Iugoslávia, Japão, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Polônia,
Portugal, Reino Unido, Suécia, Uruguai, Venezuela.

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DOCUMENTO 6
Estatutos do C.I.R.A. em esperanto

Tradução pelos cuidados do Dr. Francisco Viotti de Caxambu.


O texto manuscrito da tradução encontra-se nos arquivos do
C.I.R.A.-Brasil. A pessoa que datilografou o manuscrito não
sabia esperanto e teve que adivinhar. Em caso de utilização
dos mesmos seria bom consultar especialistas. Os sistemas
informáticos de correção ortográfica e gramatical não constam
da lista de idiomas reconhecidos pela Microsoft. O autor deste
estudo já foi esperantista, mas não tem oportunidade de praticar
o idioma e encontra-se portanto na mesma situação do que o
Dr. Viotti há quarenta anos. Também existe um problema de
escolha estilística. Limitar-me-ei a citar um exemplo: ao traduzir
a palavra “membros” o Viotti se serviu do termo “anoj”, porém
a Universala Esperanta Asocio, em seus Estatutos, utiliza o lema
“membroj”. Qual será o mais correto ou elegante?

Internacia Centro por Esploroj pri Anarkismo


Statutoj

I. Nomo, sidejo, celo


1. Sub la nomo de C.I.R.A. (france: Centre International de Recherches
sur l’Anarchisme) estas fondita en Ĝenevo senpolitikan internacian asocion
de senlima daûro la la artikolo 60 kaj de la Svisa Civila Kodo.
2. Ĝia sidejo estas en Ĝenevo.
3. La celoj de la C.I.R.A. estas:
• organizi, klasifiki kaj gardi en arkivoj dokumentojn tio estas: libroj,
ĵurnaloj, presajoj, manuskriptoj de cuij especoj kaj en cuij lingvoj
referantaj la historion de la ideoj, okazoj, grupoj, movadoj kaj de la
elstaraj anarkistoj de ĉiuj landoj.
• informi la sociologojn, historiistojn, verkistojn, ĵurnalistojn,
studantojn aŭ aliajn personojn interesiĝatajn kaj okaze iniciati
specialajn kunvenojn de tiuj personoj.
• sugesti kaj kuraĝigi historiajn, sociologajn, literaturajn kaj
bibliografiajn esplorojn pri la anarkismo.

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4. La agadaj medioj de la C.I.R.A. estas ĉefe:


• pligrandiĝo de la biblioteko jam kreita de donacoj foritaj precipe: de
la Biblioteko Germinal de la Grupo Réveil Anarchiste; de la fondoj
Frigerio, Bertoni, SPRI, CRIA, Gross-Fulpius; de aliaj grupoj kaj
personoj; ankaŭ per akirado aŭ interŝanĝoj.
• la pruntservo de dokumentoj de la biblioteko (laŭ supre dirita en la
titolo 1 numero 3 kaj letero aŭ rekte per nia zorgo aŭ meze de la
Publika kaj Universitata Biblioteko de Ĝenevo al kiu C.I.R.A. estas
aniĝita. La pruntdonoj faritaj de P.U.B. sin etendas nun al sekvantaj
landoj: Belgujo, Bulgarujo, Britujo, Ĉekoslovakio, Danujo, Francujo,
Ĝermanujo, Italujo, Iugoslavujo, Liĥtenstein, Luksenburgio,
Nederlando, Novugrejo, Svedujo, Svisujo.
La verkoj estas pruntitaj senpage kaj kondicoj de P.U.B. de Ĝenevo. La
daŭ de la pruntdono estas de unu monato sed prokraston povas esti petita.
Keljak verkoj estas forigitaj de la pruntservo. Ĉiuj sendaĵoj estas farataj per
poŝtregistro kostpage de la adresato. La verkoj kaj dokumentoj senditaj al
C.I.R.A. kiel depono nur poste akordo kun la deponanto povos esti al li redo
nita aŭ sendita al alia persono. Donacoj de verkoj kaj dokumentoj senrezerve
faritaj de la donanto estas proprajo de la C.I.R.A.
• perioda eldonado de bibliografias bulteno enhavante la liston de
verkoj recevitaj de la C.I.R.A., recenzoj de libroj kaj de ne eldonita
studajoj. Tiun bultenon riceves senpage la anoj de la C.I.R.A. La ne
anoj povas ĝin aboni.
• iniciato de konferencoj, paroladoj, faritaj de kompetentaj personoj
pri temoj de anarkista intereso. Tiuj konferencoj estas gravuritaj en
sonbendoj prunteblaj al la anoj de la C.I.R.A..
• praktika laboro (klasifiko, korespondo, mimeografio, tradukado,
k.t.p.) realigabla plurfoje dum la semajno senpage de la anaro en
la sidejo de C.I.R.A..

II. Anoj
• La C.I.R.A. estas malfermita al ĉiuj personoj au grupo kiuj sin interesas
pri ĝis celo kaj konsentas pri la ĉeestantaj statutoj kaj subskribos
minimuman kuoton de 10 svisaj frankoj jare.
• ĝi akceptas kiel aktivaj anoj ĉiujn kiujn helpos pratike la realigadon de
la ĝenerala programo anta zorgata en la ĉeestantaj statutoj;

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• akceptas kiel korespondantaj anoj la sciencajn a anarkistajn


organizajojn, personojn logantajn en Svisujo aŭ alilande kiuj subskritos
la ceestagn statutojn.
• konsideras kiel dumvivaj anoj ĉiu kiuj faros donacojn de fondoj aŭ ĉiuj
anoj kiuj pagos unu solan kvoton de 100 svisaj frankoj.
• konsideras kiel fondintaj anoj (devenontaj dumvivaj anoj) la
partoprenantoj en la provizora komitato de la C.I.R.A. kiu funkciis
inter la unua kunsido Aprilo 1957 kaj la unua asembleo de 1958 en
Ĝenevo.
• konsideras kiel honoraj anoj, laŭliaj konsento personojn konatajn
pro liaj esploraj verkpj kaj pro liaj kompetenteco pri iu aspekto de la
anarkismo; al tiuj anoj ani ne postulas iun ajn kvoton.
Oni perdas la rajton de aneco al C.I.R.A. pro:
* demisio.
* eksiĝon decidita per la ĝeneralo asembleo laŭ gravaj kialoj sub condiĉe
de konfirmo de la sama asembleo.
* la ne pagado de du kvotoj valoras kiel silenta demisio.

III. Organizaĵo
1. La organoj de la C.I.R.A. estas:
• la ĝenerala asembleo:
• la direktora komitato konsistanta almenaŭ el kvin anoj kaj anstataŭantoj
de la estraro.
• la komitato de tri kontrolistoj pri kontoj.
2. La ĝenerala asembleo:
• elektas la anojn de la direktora komitato kaj la kontrolistojn pri kontoj
per la da ro de tri civilaj jaroj. Ĝi nomas ankaŭ la honorajn anojn
(internacia komitato),
• ehzamenas la moralan, materialan kaj financan situacion kaj prenas
la decidojn utilajn al C.I.R.A.,
• diskutas kaj decidas pri la temoj kiujn la direktora komitato porta al
tagordo. Ĉiu ĝenerala asembleo nomas estraron por tri jarojj. La
moralaj kaj financaj reportoj kaj la projektoj de resolucio elektiloj de
la direktora komitato estas komunikataj al la anoj unu nonato antaŭe

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per la generala asembleo. La individuaj proponoj aŭ ĉiuj devenantoj


de grupoj devos esti komunikataj antaŭ du semajnoj al la direktora
komitato se ili ne apartenas al nova paragrafo de la tagordo. En urĝa
okazo ani forlasas la du lastajn suprajn paragrafojn.
3. La direktora komitato havas:
• la devon direkti la C.I.R.A. morale, materiale, kaj finence la ĝiaj
celoj:
• solan kompetentecon por interveni ce la avisaj a toritatoj por
organizi okazajn manifestaciojn kaj konferencojn sub la nomo de
C.I.R.A. kaj prepari la ĝenerala asembleon;
• la devon doni ĉiujn informojn permesantajn al komitato de
kontrolistoj prezenti ĝian raporton al la asembleo.
4. kron la paragrafo sub numero 2, letero a supre, la ĝeneralo asembleo
kunvenas unu foje jare por la diversaj aliaj celoj de la titulo III.

5. ĉiu ŝanĝo de la statutoj povas esti proponata al la ĝenerala asembleo


de unu triono de ĝin anoj aŭ de la direktora komitato.

IV. Solvo
La solvo de la C.I.R.A. povas esti nut deklarata de la ĝenerala asembleo
speciale kunvokita per tiu celo. La decida devas esti prenata por du trionoj
de la ĉeestantoj anoj (inkluzivaj la korespondantaj anoj). En okazo de solvo
la dokumentoj de la biblioteko (ĉapitro 1, paragrafo 4, litero a) de la statutoj)
estas redonataj al la donantaj anoj kaj organizoj kiuj havos la rajton pri
tio laŭ speciala mencio en la kontrato. La dokumentoj estas liverataj al la
organizo kiu la C.I.R.A. kaj kuij celoj alproximiğos pli al ğiaj. La direktora
komitato decidos pri la destino de la korespondo ricevita kaj sendita de la
C.I.R.A.

Honoraj anoj de la C.I.R.A.:


Emile Armand, Giovanni Baldelli, Alex Comfort, Hem Day, Ugo Fedeli,
Sol Ferrer, Ildefonso González, Abba Gordine, Daniel Guérin, Wieslaw
Jezierski, Renée Lamberet, Louis Louvet, Jean Maîtron, Pier Carlo Masini,
Albert Meister, André Prudhommeaux, Michel Ragon, Carlos M. Rama,
Sir Herbert Read, Eugen Relgis, Helmut Rüdiger, André Salmon, Diego
Abad de Santillán, Sven Stelling-Michaud, Alicia Pérez Salazar, George
Woodcock.

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Korespondantoj en la sekvantaj landoj:


Algerio, Argentino, Aŭtralio, Belgio, Bosnio, Brazilo, Britio, Ĉilio, Germanio,
Guineo, Hercegovino, Hispanio, Honkongo, Israelo, Italio, Japanio, Kanado,
Kostariko, Kroatio, Kubo, Luksemburgio, Meksiko, Nnederlando, Nov-Zelando,
Pollando, Portugalio, Serbio, Slovenio, Svedio, Urugvajo, Usono, Venezuelo.

DOCUMENTO 7
Circular nº 2

Rio de Janeiro, 12 de junho de 1968

Viemos, pela presente, comunicar o início de um curso de extensão sobre


anarquismo, a ser pronunciado pelo professor Pietro Ferrua, em 6 de julho do
corrente ano.
As palestras serão realizadas no Teatro Carioca à Rua Senador Vergueiro,
238 E, aos sábados, às 18 hs, e desenvolver-se-ão durante um período de 8
semanas.
Estabeleceu-se o seguinte programa:
a. Introdução
Manifestações anarquistas na Europa.
b. Esboço Histórico
Papel dos anarquistas na Comuna de París de 1871.
c. Papel dos anarquistas na Revolução Mexicana de 1911.
d. Papel dos anarquistas nas revoluções russas de 1905 e 1917.
e. Papel dos anarquistas na Comuna de Kronstadt de 1921.
f. Papel dos anarquistas na Revolução Espanhola de 1936-39.
g. Atualidade
Autogestão e autogoverno na concepção anarquista.
h. O Congresso Internacional das Federações Anarquistas de 1968.
Sendo um curso pago, estamos trabalhando no sentido de que seja aberto
livremente aos membros do C.I.R.A., e não havendo esta possibilidade, que
estes paguem uma taxa mínima de inscrição no curso.

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Viemos também pedir a V. Sa, possuindo material informativo e de docu-


mentação sobre o tema do curso, se digne cedê-lo a fim de que possamos
melhor ilustrar nossas palestras.
Agradecendo a atenção que dar a esta, subscrevemo-nos,
Atenciosamente, assinado por Regina Helena Machado pelo C.I.R.A. Cai-
xa Postal 5475 Agência de Ipanema.

DOCUMENTO 8
Artigo em O Globo em 05/07/1968, p. 2

Ferrua: Anarquismo Atua e Progride no Mundo Moderno

Citando o exemplo das manifestações operárias e estudantis recente-


mente ocorridas na França como sendo inspiradas em ideais anarquistas e
parcialmente orientadas por líderes anarquistas, o Professor italiano Pietro
Ferrua disse ontem a O Globo que o movimento anarquista não só é atuante
mas vem conquistando sucessivas vitórias em muitos países, tanto no mundo
ocidental, como na área socialista.
Membro do Centro Internacional de Pesquisas sobre o Anarquismo, de
Lausanne, Suíça, ele informou que no curso que ministrará sobre “Aspectos
Históricos do Anarquismo”, a partir de sábado próximo, no Teatro Carioca,
abordará a situação do anarquismo no âmbito internacional e mostrará a evo-
lução do conceito dessa filosofia política através dos tempos.

O Caso Francês
O que ocorreu recentemente na França — acrescentou — é um exem-
plo da situação do anarquismo. Embora a participação anarquista nos últimos
acontecimentos não tenha sido oficial, pois a Federação Anarquista Francesa
não foi a promotora das manifestações e do movimento, seria um erro mons-
truoso negar a participação de um grande número de anarquistas. Todos os
grandes lemas dos manifestantes são tipicamente anarquistas, inclusive a au-
togestão, isto é as fábricas para os técnicos e os operários e as universidades
para os professores e estudantes. Isso é anarquismo puro. Se o movimento
fosse comunista ou socialista, os manifestantes quereriam que as fábricas e
as universidades fossem geridas pelo Estado; se fossem da direita, deseja-
riam que o Estado se afastasse das fábricas e das universidades e que essas
fossem do âmbito exclusivo da iniciativa privada. Mas o que desejavam os

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

10 milhões de grevistas, estudantes e operários? Apenas isso: autogestão.


Nem interferência do Estado, nem propriedade particular sobre o ensino e a
indústria. Anarquismo. Aliás, o líder estudantil Daniel Cohn Bendit se confes-
sou anarquista, embora não pertença oficialmente à organização anarquista
francesa.

Ampliação
Esclareceu o professor que o movimento anarquista vem ganhando corpo
em vários países: na Suécia o sindicalismo e o cooperativismo se desenvol-
vem em torno da necessidade de autonomia total. E até mesmo no mundo
comunista, como na Tcheco-Eslováquia, já se nota, no chamado “movimento
renovador”, tendências claramente anarquistas, como uma evolução para a
autogestão nas fábricas. Na Iugoslávia os operários e técnicos também que-
rem que o Estado perca sua influência sobre a indústria.
— O que o anarquismo deseja — explicou, é a gradual supressão da autori-
dade do Estado, mas sem violência, através, portanto, de processos normativos.
Todo anarquista é um evolucionista, e acredita que a sociedade marcha para a
autogestão. A interferência do Estado na vida econômica e cultural já não pode
ser defendida com objetividade: basta que olhemos para as lamentáveis ditadu-
ras do proletariado. Uma vez abolidas, acredito que todos os países comunistas
poderão evoluir dinamicamente para o anarquismo. Sem iniciativa privada, sem
interferência do Estado. A própria sociedade saberá reger-se, quando atingir a
maturidade, que esperamos venha a ser alcançada em breve.

Atuação
Acrescentou que, no curso a ser ministrado, delineará as linhas gerais
da atuação anarquista no mundo moderno. Tal atuação é feita basicamente
através da propaganda, por meio de livros e revistas editados por empresas a
serviço da causa anarquista, também por ação política, com pressão direta ou
indireta sobre as instituições, mas não através do voto e das lutas eleitorais.

— O anarquismo critica construtivamente as lutas políticas. Além disso


as comunidades anarquistas, pela sua força econômica e organização, se
autegestionam, e mesmo em Israel grande número de “kibbutzim” são de
caráter anarquista, totalmente geridos pelos seus membros. O sindicalis-
mo é outra força. Os anarquistas são desvinculados das grandes centrais
sindicais, e tem suas próprias associações de classe, em muitos países,
todas filiadas à Associação Internacional dos Trabalhadores, instituída em
1864, e da qual participou Karl Marx, que juntamente com seus seguidores

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socialistas dela se afastou, após o segundo congresso da entidade. Os


orgãos sindicais anarquistas, segundo o professor Ferrua, se caracterizam
pela sua defesa do federalismo libertário e pela linha independente, sem com-
promissos de qualquer ordem, seja com o capitalismo, seja com o comunismo
ou o socialismo.

DOCUMENTO 9
Recorte do diário carioca Última Hora de 06/07/1968

Anarquismo
A partir de hoje vamos ter no Teatro Carioca um curso intitulado “As-
pectos históricos do anarquismo”, a cargo do Professor italiano Pietro
Ferrua. O anarquismo, que tinha sido relegado à condição de artigo de
museu, vivendo de lembranças dos velhos militantes, principalmente na
Península Ibérica e na Itália, acaba de ressurgir impetuosamente na crista
da rebelião dos jovens e virou novamente moda.

DOCUMENTO 10
Cartaz do curso: Aspectos históricos do Anarquismo

Ver fac-simile em apêndice, tomando em consideração o fato que as


dimensões do cartaz original (impresso em vermelho e preto) são de tama-
nho muito maior, isto é 47,5 x 68 cm.10

DOCUMENTO 11
Série de bibliografias distribuídas aos discentes

1. A Comuna de Paris
2. As Revoluções Russas de 1905/1917
3. A Revolução Mexicana de 1910
4. A Revolução Espanhola de 1936-39

Professor Pietro Ferrua


Aula de Sábado 5 de agosto de 1968:

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

1. A Comuna de Paris.

Bibliografia mínima :
ALLEMANE, Jean. Mémoires d’un communard. Paris, Librairie
Socialiste.
ANONYME. Le Livre noir de la Commune de Paris — Dossier complet.
Bruxelles, Office de Publicité, 1871, 596 pp.
ARNOULD, A. Histoire de la Commune de Paris (3 tomes). Bruxelles,
1878.
BOYER, Irma. La vierge rouge, Louise Michel. Paris, Delpeuch, l927,
247 pp. CLEMENT, J. B. La revanche dês communeux. Paris, Ed.
Jean-Marie, 1886-87.
DA COSTA, Gaston. La Commune vécue. 18 Mars 28 Mai l871. Paris,
l905, DOMINIQUE, Pierre. La Commune. Paris, Flammarion, 1956,
126 pp.
GALLET, Louis. Guerre et Commune. Impressions d’un hospitalier.
Paris, Calmann-Lévy, 1898, in-8, 332 pp.
GIRAULT, Ernest. La bonne Louise: Psychologie de Louise Michel.
Paris, Bibliothéque des Auteurs Modernes, 1906, 225 pp.
«Joumal des Journaux de La Commune» T. I et II, Garnier, Paris,
1872.
KOECHLIN, Heinrich. Die Pariser Commune von 1871 in Bewusstsein
Ihrer Anhäger. Basel, Don Quichotte, 1950, 248 pp.
LEFRANÇAIS, G. Etudes sur le Mouvement Communaliste à Paris en
1871. Neuchâtel, Guillaume, 1871, p. 596 + appendice p. 71
LEFRANÇAIS ,G. Souvenirs d’un Révolutionnaire. Bibliothéque des
Temps Nouveaux.
LISSAGARAY. Histoire de la Commune de 1871. Paris, Dentu, 1896,
576 pp. MAILLARD, F. Les Publications de la Rue Pendant le Siège
et la Commune. Paris, Aubry Ed., 1874
MARGUERITTE , Paul et Victor. La Commune. Paris, Pion, 1904, 659 pp.
MICHEL, Louise. Buch von Bagne, Erinnerung einer Kommunardin.
Berlin, Ruetter und Loening, 1962, in-8, 339 pp.
MICHEL, Louise. La Commune. Paris, Stock, 1921, 427 pp.

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2009

OLLIVIER, Albert. La Commune. Paris, Gallimard, 1966, 580 pp.


PLANCHE, Fernand. La virgen roja, Luisa Michel. México, MLE, 240 pp.
PLUSIEURS AUTEURS. Hommes et choses du temps de La Commune.
Récits et portraits pour servir à 1’histoire de la première révolution
sociale. Genève, 1871, in-32, 224 pp.
RECLUS, Élisée. La Commune de Paris au jour le jour: l87 : 19 mars-
28 mai. Paris, Scheicher, 1908, 591 pp.
ROUGERIE, Jacques. Procès des Communards. Paris, Julliard, 1964,
261 pp. SEMPRONIÚS. Histoire de la Commune de Paris. Alonnier,
1871, 267 pp.
VUILLAUME, Maxime. Mes Cahiers Rouges au Temps de la Commune.
Paris, Société d’Editions Littéraires et Artistiques, s.d, in- 8, 429 pp.

Estas e outras obras sobre o mesmo assunto poderão ser encontradas


na Biblioteca do “Centre International de Recherches sur 1’Anarchisme”
(24, Avenue de Beaumont, 1012, Lausanne, Suíça — Tel. 32 3543) ou
consultadas pelo sistema de empréstimo internacional.
Assinatura anual — 10 francos suíços (NC 7,50)
Assinatura vitalícia — 100 francos suíços (NC 75,00)
As despesas de porte (registrado) estão a cargo do destinatário.
Informações: Pietro Ferrua. Tel.: 27 8996 à noite, ou C.P. 5475 — Rio
de Janeiro — ZC 95.

Curso: Alguns Aspectos Históricos do Anarquismo


Professor Pietro Ferrua

2. O Movimento Anarquista na Rússia. A Revolução de 1905. A Revo-


lução de 1917. O Movimento Makhnovista na Ucrânia e a Comuna
de Kronstadt.

Bibliografia sumária:
ARCHINOFF, Pierre. Histoire du Mouvement Makhnoviste (1918-
1921). Paris, Librairie Internationale, s.d.
ARNAUDO, J.-B. Le nihilisme et les nihilistes. Paris, Dreyfus.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

ARSCINOV, Pietro. Storia del Movimento Machnovista 1918-1921.


Genova, RL, 1954, 319 pp.
ASTERMANN, Michael. Erziehungs und Bildungs wesen in der
Ukrainischen Sozial Râterepublik. Berlin, Putkammer und Mülbrecht,
in-8, l52 pp.
BERKMAN, Alexander. La Rivoluzione Russa e il Partito Comunista.
Roma, Fede, s.d., in-8, 43 pp.
BERKMAN, Alexander. En Blick TilÏbaka och Framât pâ den Ryska
Revolutionen Stockholm, Brand, 1922, 48 pp.
BIENSTOCK, W. Tolstoï et les Doukhobors. Paris, Stock, 1902,
CANNAC, René. Aux Sources de la Révolution Russe: Netchaeiev, du
Nihilisme au terrorisme. Paris, PAYOT, 1961, in-8, 181 pp.
CHAZOFF, J. Le mensonge Bolcheviste. Paris, Librairie Sociale,
CHESSIN, Serge de. L’Apocalypse Russe (La Révolution Bolchévique).
Paris, Pion, 1921, 333 pp.
GALKINA, I. S. Le istorii Borby Marxa i Engelza za Proletarskouiou
Partiou. Roskva, Gos, 1955, 750 pp.
GIRAULT, Ernest. Pourquoi les anarchistes-communistes français ont
rallié la IIIe. Internationale. Paris, 1925, 62 pp.
GOLDMAN, Emma. Mina tvá ar i Ryss Land. Stockholm, Bonmers,
1924.
GOLDMAN, Emma. Die Ursachen der Russischen Revolution. Berlin,
Der Syndikalist, 1922, 77 pp.
GORKI, Maxime. Lénine et le paysan russe. Paris, Kra, 1924, 187 pp.
GROUPE DES ANARCHISTES RUSSES EXILÉS EN ALLEMAGNE.
Repressionde l’Anarchie en Russie Soviétique. Paris, Librairie
Sociale, 1923.
Histoire du Parti Communiste (Bolchevik) de l’URSS. Moscou, Editions
d’Etat, 1939, 324 pp.
IAROSLAVSKI. L’anarchisme en Russie. Paris, Bureau d’Edition, 1937,
l49 pp.
IAROSLAVSKI. Anarkhizm v rossii (kak istoriía razreshila spor mezhdu
anarkhistami i kommunistami y russkoi revolíutsii. Moskva, Gos,
1939, 115 pp.

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2009

KOLLONTAI, Alessandra. L’Opposizione operaia in Russia. Milano, Ed.


Comune, 1962, in-8o, 98 pp.
KROPOTKINE, GRAVE. Appel des anarchistes russes. Robinson, La
revolte des temps nouveaux, 1922, 24 pp.
KROPOTKIN, Piotr. La terreur en Russie. Paris, Stock, 1910, 114 pp.
LENIN, Wladimir. L’Etat et la Revolution. Paris, Editions Sociales,
1946.
LUXEMBURG, Rosa.- Marxism contra Leninism. Göteborg, Libertad,
1968.
MAKHNO, Nestor. La Révolution Russe en Ukranie (Mars 1917- avril
1918). Paris, La Brochure Mensuelle, 1927, 360 pp.
MAURICIUS. Au pays des soviets (neuf mois d’aventures). Paris,
Figuiere, 1922, 340 pp.
METT, Ida. La Commune de Cronstadt, crepúscule sanglant dês
soviets. Paris, Spartacus, 1949, 95 pp.
METT, Ida. La rivolta di Kronstadt- (II ruolo delia marina nelia rivoluzione
russa) pagine inedite di storia soviética. Milano, Ed. Azione Comune,
1952, 107 pp.
MICHAÜD, S. Vérités et mensonges du Bolchevisme.Ed. Travailleurs
Libertaires, 1932, MIRSKY, Boris. Les juifs et la Révolution Russe.
Paris, Polovozky, 1921, 70 pp.
OLAYA, Francisco. De una a otra revolución — 1798-1918. Buenos
Aires, Americalee, 1960 , 190 pp.
REED, John. Dix jours qui ébranlèrent le monde. Paris, Bureau
d’Edition, 213 pp.
SERGE, Victor. L’an I de la Révolution Russe. Paris, Delphes, 1955,
507 pp.
SERGE, Victor. Destin d’une révolution: URSS 1917-1936. Paris,
Grasset,1937, 324 pp.
SERGE, Victor. Mémoires d’un révolutionnair - 190l-1941. Paris, Seuil,
1965, 417 pp.
SERGE, Victor. Portrait de Staline. Paris, Grassset, 1950, 188 pp.
SOUCHY, Augustin. Den Ryska Arbetare-och Bondrevolutionen
resultatet an en studieresa i rysslar-1 och ükraina under apriloktober
1920. Stockholm, Bokforlaget Brand, 1921, 24l pp.

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verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

SOUCHY, Augustin. Wie lebt der arbeiter und bauer in Russland und in
Ukranine? Berlin, der Syndikalist, s.d., in-8ü, 144 pp.
STEPNIAK. La Russie Souterraine. Paris, Levy, 1885, 426 pp.
VOLINE. Le Fascisme Rouge. Bruxelles, Pensée et Action, s.d., 16 pp.
VOLINE. La revolución desconocida. Paris/Buenos Aires, Solidaridad
Obrera, 441 pp.
VOLINE. La révolution inconnue - 1917-1921. Paris, Les Amis de
Voline, 1947, 687 pp.
VOLINE. La Révolution Russe. Paris, Ed. de L’Encyclopedie
Anarchiste.
VOLINE. La Rivoluzione sconosciuta. Napoli, RL, 1950, 574 pp.
ZAVARINE, P. (General). Souvenirs d’un chef de l’Okhrana — 1900-
1917. Paris, Payot, 1930, 297 pp.

Estas e outras obras sobre o mesmo assunto poderão ser encontradas


na Biblioteca do «Centre International de Recherches sur 1’Anarchisme»
(24, Avenue de Beaumont, 1012, Lausanne, Suíça — Tel. 32 3543) ou
consultadas pelo sistema de empréstimo internacional.
As despesas de porte (registrado) estão a cargo do destinatário.
Informações: Pietro Ferrua. Tel.: 27 8996 à noite, ou C.P. 5475 — Rio
de Janeiro — ZC 95.
Professor Pietro Ferrua
Sede: Teatro Carioca

Aula de sábado 17 de Agosto 1968:

3. Os anarquistas na Revolução Mexicana de 1910

Bibliografia Sumária:
ALBA, Victor. El militarismo en el México. México, Universidade,
1960.
AZUELA, Mariano. Andrés Pérez, Maderista. México, 1911.
AZUELA, Mariano. Los de abajo. El Paso, 1916.

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15
2009

COMITÉ DE RELACIONES EXTERIORES DE WASHINGTON. Las


Revoluciones en México. Una resolucion autorizando ai Comité de
Relaciones Exteriores para investigar, ya sea que hayan existido o
esten algunos intereses financieros de los Estados Unidos Norte-
americanos, ocupados en incitar rebeliones en Cuba y México.
México, 1946, 70 pp.
GUERRERO, Práxedis G. Crónicas revolucionarias. México, Grupo
Cultural “Ricardo Flores Magón”, 1921.
GUZMÁN, Martín Luís: El águila y La serpiente. México. 1928.
MAGÓN, Ricardo Flores. Tribuna Roja. México, Grupo Cultural “Ricardo
Flores Magón”, 1921.
MAGÓN, Ricardo Flores. Sernilla Libertaria. México, Grupo Cultural
“Ricardo Flores Magón”, pp. 176-216.
MANCISIDOR, José. Historia de la Revolución Mexicana. Libro Mex,
1959. MARTINEZ, Pablo L. Sobre mi libro: Ba já Califórnia heróica
(Contra la defensa de una falsedad histórica) México, 1960, p. 63.
RAMA, Carlos M. La Revolución Mexicana de 1910. Montevideo, 12 pp.
RAMA, Carlos M. Revoluciones sociales del siglo XX. Toulouse, Cenit,
1960. SANTILLÁN, Diego Abad de. Ricardo Flores Magón. el apóstol
de la Revolución Mexicana. México, Grupo Cultural “Ricardo Flores
Magón”, 1921, 132 pp.
SILVA HERZOG, Jesus. La Révolution mexicaine. Paris, Maspero,
1968, 236 pp.
TIERRA Y LIBERTAD. Número extraordinário de Octubre de 1963,
México.

Consultem a Biblioteca do “Centre International de Recherches sur


l’Anarchisme” 24, Avenue de Beaumont, 1012 Lausanne — Suisse.
Informações no Brasil: Pietro Ferrua. Caixa Postal 5475 Ipanema, Rio
de Janeiro.

C.I.R.A.
Teatro Carioca
Curso: Alguns Aspectos Históricos do Aanarquismo.
Professor Pietro Ferrua

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

4. A Revolução Espanhola de 1936-39.

Bibliografia Sumária:
ANDERSON, John. Blodsvâldet i Spanien. Stockholm, Federativa
Fórlag, 1955, 78 pp.
AZARETTO, Manuel. Las pendientes resbalizadas (Los Anarquistas
em España). Montevideo, Germinal, 1939, 250 pp.
BAUER, Eddys. Rouge et Or. Chroniques de la Reconquête espagnole
1937-1938. Neuchâtel-Paris, Attinger, 1939, 238 pp.
BERNARD, R. La CNT et la puériculture. Flémalle-Haute, L’
emancipateur, 1959, 93 pp.
BERNERI, Camillo. Entre la Revolucion y las Trincheras (1936-37).
Barcelona, Páginas de Espana, 1946, 32 pp.
BERNERI, Camillo. Guerre de Classes en Espagne. s. l., Terre Libre,
48 pp.
BOLLOTEN, Burnett. La Revolución Espanola, la Izquierda y la lucha
por el Poder. México, Jus, 1962, 335 pp.
BRENAN, Gérald. Le Labyrinthe espagnol. Origines sociales et
politiques de la Guerre Civile. Paris, Ruedo Ibérico, 1963, 280 pp.
BRENAN, Gerald. The Spanish Labyrinth, an Account of the social and
political background of the Spanish Civil War. Cambridge University
Press, 1960, 384 pp.
BROUÊ, Pierre et TÉMINE, Emile. La Révolution et la Guerre d’
Espagne. Paris, Minuit, 1961, 542 pp.
BUREAU D’INFORMATIOM ET DE PRESSE. Dans la tourmente: un
an de guerre en Espagne. Paris, BIP, 1938, in-8 , 332 pp.
BUREAU D’INFORMATION ET DE PRESSE. Durrut: Sa Vie, sa mort.
Paris, BIP, s.d.; in-8 , 152 pp.
CUADERNOS BIBLIOGRÁFICOS DE LA GUERRA DE ESPAÑA 1936-
39. Memorias y Reportajes de Testigos. Madrid, Universidad, 1967,
222 pp.
CUADERNOS BIBLIOGRÁFICOS DE LA GUERRA DE ESPAÑA
1936-1939. Periódicos publicados en tiempo de guerra. Madrid,
Universidad, 1967, 302 pp.

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15
2009

DAY, Hem. Le Capitalisme international devant l’Espagne


révolutionnaire. Bruxelles, Pensée et Action, 1937, 16 pp.
GARCÍA PRADAS, José. Antifascismo proletário. (Tomo I) Tésis.
Ambiente y Táctica. Madrid, Frente Libertário, 1937, in-8, 148 pp.
GARCÍA PRADAS, José. España Colonia de su Ejército. Paris, MLE-
CNT, 1947, 45 pp.
GARCÍA PRADAS, J. La Revolución y el Estado: Táctica Marxista.
Paris, Solidaridad Obrera, 1947, 204 pp.
GARCÍA PRADAS, José. Rusia y Espana. Paris, Tierra y Libertad,
1948, 212 pp.
GONZÁLEZ, Ildefonso. II Movimento Libertário Spagnolo. Napoli, R.L.,
1953, 51 pp.
IBARRURI, Dolores. A Los Trabajadores Anarquistas. Paris, Parti
Commnuniste Français, s.d, 48 pp.
IBARRURI, Dolores. Memorias de la Pasionaria. Paris, Julliard, 1964,
437 pp.
IGNOTUS. El Anarquismo en la Insurrección de Asturias, (La CNT y la
F.A.I. en octubre de 1934). Valencia, Tierra y Libertad, 1935,
IGNOTUS. La Represión de octubre. Documentos para servir a nuestra
civilización. Barcelona, Tierra y Libertad, 1936, in-8, 250 pp.
KAMINSKI.H. E. Quelli di Barcellona. Milano, II Saggiatore, 1966, 235 pp.
KRIVITSKY, W. G. La Mano de Stalin sobre Espana. Claridad, 1946, 32 pp.
LIBRE ACUERDO. Horas decisivas (El Movimiento Libertario Español
y Ia política. Paris, Libre Acuerdo, 1945, 33 pp.
LUX. La España libertaria. edición clandestina, 100 pp.
MISTRAL, S. Êxodo. Diario de una refugiada Española. México,
Minerva, 1940, 191 pp.
M.L.E. Karaganda. (La Tragedia dal Antifascismo Español). Toulouse,
MLE-CNT, 1948, 32 pp.
M.L.E.-C.N.T. 1936-1946 — Libro de Oro de la Revolución Española.
Toulouse, MLE-CNT, 1946.
MOVIMIENTO LIBERTARIO. El Movimiento Libertario através de los
congresos y Plenos de la Comedia, Zaragoza, Valencia, Barcelona.

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verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

OLIVEIRA PIO, F. De (Coronel). Duas palestras sobre Fascismo


ibérico. Rio de Janeiro, Germinal, 1959, 36 pp.
ORWELL, George. Cataluña 1937. Testimonio sobre la Revolución
Española. Buenos Aires, Proyección, 1963, 247 pp.
ORWELL, George. Homage to Catalonia. London, Penguin, 1964, 221 pp.
PALACIO, Solano. Entre dos Fascismos (Memorias de un voluntario
de las Brigadas Internacionales en España). Valparaiso, Más Allá,
1940, 189 pp.
PEIRATS, José. La CNT en la Revolución Española (Tres tomos).
Toulouse, CNT, 1951-52-53, I: XVI+392; II:398; III. 399 p.
PEIRATS. José. Estampas del Exilio en América. Paris, CNT, 153 pp.
PIKE, David Wíngeate. La crise espagnole de 1936 vue par la presse
française et notamment par la presse toulousaine. Toulouse, Thèse
pour le Doctorat de l’Université, 1966, XLIV +432 p.
PUENTE, Isaac. Le Communisme Libertaire. Ses possibilités en
Espagne. Nímes, A.L.A.R.K., 1934, 40 pp.
RICHARDS, Vernon. Insegnamenti della rivoluzione Spagnola.
Genova, R.L.
SOUCHY, Agustín y FOLGARE, Paul. Colectivizaciones. La Obra
constructiva de la Revolución Española. Barcelona, Tierra y Libertad,
1937, in-8, 196 pp.
SOUTHWORTH, Herbert. Le Mythe de la Croisade de Franco. Paris,
Ruedo Ibérico, 1964, 327 pp.
SOUCHY, Agustín. Nacht uber Spanien-Bürgerkrieg und Revolution in
Spanien. Darmstadt, Die Freie Gesellschaft, 269 pp.
THOMAS, Hugh. La Guerre d’ Espagne. Paris, Laffont, 1967, 2 tomes
447+542.
VALLINA, Pedro. Crónica de un revolucionario. Paris, Solidaridad
Obrera, 1958, 122 pp.

Estas e outras obras sobre o mesmo assunto poderão ser encontradas


na Biblioteca do “Centre International de Recherches sur l’Anarchisme” (24,
Avenue de Beaumont, 1012, Lausanne, Suíça — Tel. 32 3543) ou consulta-
das pelo sistema de empréstimo internacional.
Assinatura anual — 10 francos suíços (NC 8,40)

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15
2009

Assinatura vitalícia — 100 francos suíços (NC 84,00)


As despesas de porte (registrado) estão a cargo do destinatário.
Informações: Pietro Ferrua. Caixa Postal. 5475 Agência de Ipanema, Rio
de Janeiro.

DOCUMENTO 12
Anúncio da palestra suplementar do Prof. Carlos M. Rama

Teatro Carioca

Curso: “Aspectos Históricos do Anarquismo”

Temos o prazer de proporcionar ao prezado público que assiste ao pre-


sente ciclo, uma palestra suplementar, hoje, a cargo de:
Carlos M. Rama
— Professor de História Social na Universidade de Montevidéu.
— Bibliógrafo, historiador dos movimentos sociais e operários.
— Autor de várias obras sobre historiografia do socialismo.
— Membro do “Comitê Internacional de História Social” da UNESCO.
— Membro do Comitê do “Centro Internacional de Pesquisas sobre o
Anarquismo” que, na cadeira do Prof. Pietro Ferrua, falará sobre “Revolução
Espanhola de 1936/1939”.
A partir do próximo sábado o curso ministrado pelo Prof. Ferrua terá
prosseguimento normal.
Teatro Carioca
Rua Senador Vergueiro, 238-GB
(Texto redigido e distribuído em 13/7/1968 por Rosa Maria de Freire
Aguiar e Regina Helena Machado)

DOCUMENTO 13
Entrevista do diário carioca O Paiz, 15/07/1968, p. 3

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

Dólar esmaga o Pêso e a inflação corrói o Uruguai

Para o Professor Carlos Rama, da Universidade de Montevidéu, a causa


fundamental da crise atual do Uruguai é a baixa dos preços de venda das
exportações. No ano passado, o preço da lã — matéria prima que contribui
com 60% nas exportações — caiu em 40%. A carne é comprada pela
Inglaterra por um preço que nem sequer paga o custo de produção.
Acentua que a consequência da deterioração dos preços de exportação
é a desvalorização constante da moeda nacional em relação ao dólar, origi-
nando a inflação e a inevitável corrida entre salários e preços. O orçamento
resulta insuficiente e os problemas sociais e políticos se multiplicam.
Ao analisar com exclusividade para O Paiz as medidas adotadas pelo
governo uruguaio para enfrentar a crise, acentua o Prof. Carlos Rama que
o Presidente Pacheco Areco “tem se revelado incapaz de aplicar medidas
profundas e sérias”:
— O governo simplesmente entregou-se ao Fundo Monetário Internacio-
nal contraindo custosas dívidas e aceitando sua política de congelamento de
salários, opondo-se às aspirações da maioria dos trabalhadores. Sem base
popular, procura respaldo nas forças políticas conservadoras internas e no
governo fascista da Argentina.
Após lembrar que o governo uruguaio está bastante desprestigiado por
vários casos de corrupção administrativa, acentuou que “na última desva-
lorização do Peso ocorreu uma gigantesca negociata, fazendo com que a
justiça penal recebesse denúncia da Câmara dos Senadores.”
O professor Carlos Rama foi o único hispano-americano, dentre os es-
pecialistas estrangeiros, a participar do Primeiro Encontro Brasileiro de In-
trodução aos Estudos Históricos, recém realizado em Nova Friburgo com a
participação de cem professores brasileiros.
Prosseguindo afirmou que “o governo uruguaio é impopular e só con-
ta com apoio das associações das grandes empresas e alguns partidos da
extrema-direita. Em contrapartida enfrenta as classes populares.”

DOCUMENTO 14
Anúncio do Jornal do Brasil de 20/07/1968

Aspectos Históricos do Anarquismo

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15
2009

— Oito aulas com o Professor Pietro Ferrua, do Centre International


de Recherches sur l’Anarchisme de Lausanne. No Teatro Carioca. Aos sá-
bados, às 16h.

DOCUMENTO 15
Palestra de John Cage

Sobre a palestra de John Cage publiquei um artigo em


Verve, São Paulo, 2003, v. 4, pp. 20-31.

John Cage: anarquista fichado no Brasil.11

Ainda que possa parecer incrível que um “inocente” compositor de mú-


sica pudesse ter problemas com a Justiça, isso paradoxalmente ocorreu. E
aconteceu no Brasil. Quando, em outubro de 1969, dezesseis anarquistas
foram presos com o intervalo de algumas horas ou dias no Rio de Janeiro,
faltaram três pessoas da lista dos indiciados: Edgar Rodrigues,12 Carlos M.
Rama13 e John Cage. Sobre essas prisões e o processo que se encadeou
podemos consultar o recente livro14 de Edgar Rodrigues que registrou es-
tes eventos, à exceção de alguns episódios deliciosos de que talvez ele
não tenha tido conhecimento, como este que eu vou contar.
O serviço secreto vinha observando o movimento anarquista, e nós
já desconfiávamos disso. Uma das muitas atividades que alguns de nós
havia elaborado era justamente um curso sobre anarquismo, apresenta-
do em um teatro local, bem central e muito conhecido, que foi alugado
para esse evento. Nós também tínhamos conseguido o direito de usar o
interior de faculdades e os outdoors mais bem localizados da cidade, os
quais foram cobertos por anúncios e cartazes15 apresentando uma série de
conferências sobre a presença dos anarquistas em revoluções passadas,
como a Comuna de Paris, a Revolução Mexicana, a Revolução Russa,
a Revolução Espanhola e os acontecimentos de Maio de 1968. Algumas
precauções foram adotadas para evitar uma repressão imediata e a estra-
tégia funcionou, pois o curso pôde ser concluído e as prisões só acontece-
ram um ano mais tarde. Para comprometer o menor número de pessoas
foi estabelecida a fórmula de apenas um palestrante e foi decidido não
transformar o ato em um comício político, apresentando-o como um curso
pago,16 o que permitiu a realização do projeto. Os policiais designados
para supervisionar o evento também tiveram que se inscrever como todos
os outros, e criou-se uma brincadeira para identificá-los (os papéis tinham

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

sido invertidos): eles só poderiam ser pessoas desconhecidas pelos ca-


maradas. Os policiais acabaram confusos — o que pôde ser percebido em
seus relatórios durante os interrogatórios e o processo — pois eles tinham
dificuldade em compreender a posição desses “fanfarrões” que eram con-
tra os capitalistas, os fascistas e os bolchevistas, algumas vezes até os
colocando no mesmo saco. Podemos então imaginar suas caras quando
ouviram este americano (sim, um verdadeiro americano!) que substituía o
palestrante habitual e que foi apresentado ao público como o célebre com-
positor John Cage. Este corrigiu rapidamente o anfitrião dizendo que não
gostava muito do título de músico e preferia o de “micólogo”. Fez questão
de afirmar que de fato não era o estudo de cogumelos que o interessava,
mas a colheita, ou melhor, a “caça” de diversas variedades, segundo a
estação e as latitudes. Ele nos confessou, em seguida, que gostava prin-
cipalmente de os cozinhar para depois comê-los... Nesse ponto, começou
a divagar sobre cogumelos fritos ou recheados, na omelete ou preparados
de outra forma. O assunto poderia ter continuado se ele não tivesse sido
interrompido — por um provocador — e lembrado que era uma receita para
uma Revolução que esperavam dele, não uma para cozinhar cogumelos.
Foi nesse momento que John Cage exclamou: “como vocês querem fazer
uma revolução se os telefones não funcionam?” O que podia parecer uma
piada, era para ele uma experiência e uma convicção. A experiência, pela
qual fui responsável, o tinha marcado a tal ponto que é praticamente a
única lembrança escrita que ele deixou (que eu saiba) de nossa aventura
juntos. De fato, no seu M: Writings’ 67-72, ele escreve: “eu espero no hotel
do Rio de Janeiro, para saber se devo ou não me encontrar com pessoas
que estão estudando o anarquismo (eles haviam estudado até Thoreau e
como descobriram que eu gostava do Journal de Thoreau, pediram que eu
dividisse minhas impressões com eles): o telefone não tocou.”17
Cage ainda não sabia que nós tínhamos tentado em vão conseguir
uma linha de telefone num restaurante ao lado, o que, no Brasil dos anos
1960, significava ficar meia hora na fila, esperar o sinal de linha livre, achar
o número do hotel, ceder o aparelho para a pessoa de trás, retomar a fila
e assim em diante, às vezes podendo chegar a mais de duas horas de
espera.18
Mas chegou o momento de voltarmos no tempo para explicar como
conheci o compositor e como o embarquei nessa aventura. Alguns dias
antes tinha recebido um extraordinário convite para jantar na casa de Jocy
de Oliveira,19 a mais “anarquista” dos compositores brasileiros (o que ela
confirmou alguns anos mais tarde).20 O objetivo era entreter, durante e de-
pois do banquete, John Cage, o pianista David Tudor, o coreógrafo Merce
Cunningham e todo seu grupo. Arnaldo Sant’Anna de Moura e eu tivemos
o privilégio de nos ocupar de Cage durante um momento desta magnífica

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2009

noite. Após uma longa discussão musical sobre o “intonarumori” (o “acor-


da-barulhos”) futurista de Russolo e Pratella (ele nunca tinha visto um e
se interessava muito) e sobre o teremin (sintetizador pioneiro do qual meu
sogro foi um dos raros especialistas) começamos a falar sobre o C.I.R.A.
(Centre International de Recherches sur 1’Anarchisme), cujas atividades na
Suíça ele conhecia e ficou surpreso em saber que no Brasil os anarquistas
se reuniam à luz do dia em plena ditadura. Como ele se declarou aberta-
mente anarquista, eu lhe pedi se poderia nos visitar oficialmente, o que nos
proporcionaria uma boa propaganda em alguns meios. Ele aceitou com
prazer e foi decidido que iria apresentar o anarquismo de Thoreau, porque
ele não acreditava muito em revoluções violentas e não conhecia suficien-
temente os assuntos do curso para apresentar um. A confirmação de sua
presença dependia do telefonema que não conseguimos dar. Felizmente,
também tínhamos tomado a precaução de enviar alguém para buscá-lo no
hotel, com dois carros (se me lembro bem, dois carros idênticos que iam
em direções opostas eram utilizados nessas ocasiões). Não me lembro
quem foi encontrá-lo no hotel, mas ele chegou ao Teatro Carioca e nos
entreteve durante boas duas horas com piadas recheadas de sérias con-
siderações sobre o anarquismo tecnológico. Deixando Thoreau um pouco
de lado, cujo papel na cultura americana nós já conhecíamos, ele apre-
sentou idéias de Suzuki, de Buckminster Fuller e de Paul Goodman, que
nós ignorávamos ou não tínhamos o hábito de associá-los ao anarquismo.
Cage manteve a tese da libertação da sociedade por uma revolução não-
violenta e isso graças às novas tecnologias (com as quais se irritavam os
anarco-sindicalistas). A visita de John Cage aos anarquistas foi ignorada
pela imprensa, mas contribuiu ainda assim para fazer conhecer as ativida-
des anarquistas nos meios artísticos e intelectuais e para consolidar sua
posição. Comparecemos em grupo, nos dias seguintes, a todos os seus
espetáculos e o reencontramos; no entanto, sua estadia chegou ao fim e
foi com tristeza que dele nos separamos. Um ano depois começaram as
prisões e alguém lhe deu a notícia nos Estados Unidos. Não creio que ele
tenha se abalado pelo fato da ditadura ter citado seu nome. Apesar disso,
a fantasia do serviço secreto brasileiro fez John Cage entrar para a história
do anarquismo do Rio de Janeiro. Fica também sua mensagem: “conselho
aos anarquistas brasileiros: melhorem seu sistema telefônico. Sem telefo-
ne será totalmente impossível começar uma revolução.”21
Além deste episódio de participação ativa, John Cage sempre apoiou
o anarquismo em seus escritos. Folheando sua obra podemos reconstituir
sua trajetória, que vai de Lao Tsé a Paul Goodman, passando por Thoreau.
Sua prosa era tão assistemática quanto sua música, e é preciso reconstruir
pacientemente o quebra-cabeça de seu pensamento: “Sem políticos, sem
polícia”;22 “Não ao governo, apenas educação”;23 “A anarquia é prática”;24

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

“Nós devemos realizar o impossível, nos desfazer do mundo das Nações,


introduzindo o jogo da inteligência anárquica no mundo”;25 “Nós sabemos
que o melhor governo é não existir governo.”26
Ele mesmo definirá seu anarquismo como um tecno-anarquismo à la
Kostelanetz.27 Mas seu anarquismo também tem outras fontes. Para Max
Blechman,28 sem dúvida o último a entrevistá-lo sobre a data de sua ade-
são ás idéias anarquistas, Cage respondera: “eu comecei a me interessar
pelo anarquismo mais ou menos nos anos 1940... Vera e Paul Williams
me ‘converteram’. Mas principalmente James J. Martin.” Ele conhecia a
obra de Emma Goldman, e também estava a par dos acontecimentos es-
panhóis, sempre pregando um anarquismo cotidiano, imediato. De fato,
ele considera: “eu dou um exemplo de como isso funciona agora” e revela
que o anarquismo para ele é uma segunda natureza: “eu sou anarquista
da mesma maneira que telefonamos, que apagamos a luz, que bebemos
água.”29
Além do mais, ele não se limitou a viver ou a mencionar suas idéias
revolucionárias; ele as adaptou às suas modalidades de expressão. Suas
composições literárias e musicais são anarquistas tanto pelo conteúdo
quanto pela forma. Sua escrita não é convencional e se exprime de uma
maneira totalmente original. Seus mesósticos parecem um jogo de pala-
vras cruzadas que lhe permitem condensar seu pensamento (máximas
horizontais) e definí-lo (fórmulas verticais). Poderíamos observar que os
futuristas e os poetas concretos o antecederam e que ele tomou-lhes em-
prestado algumas descobertas. Porém, seus antecessores frearam diante
de alguns caminhos não os explorando às últimas consequências, en-
quanto ele os sistematiza, fazendo livros inteiros e composições musicais
(de vez em quando os gêneros acabam se confundindo). Às vezes, ele
constrói estruturas rígidas (como Arnold Schoenberg, do qual ele foi discí-
pulo) acabando por violá-las deliberadamente no decorrer da construção.
Seus livros são feitos na forma de estruturas circulares e não têm nem
um verdadeiro começo, nem um verdadeiro fim. Tanto a indeterminação
quanto a incoerência são evidentes, o todo pendendo para a disciplina e
tendo como resultado uma estrutura variável.
O mesmo acontece com sua música na qual o elemento anárquico se
situa em todos os níveis: o abandono dos cânones tradicionais, a mistura
de gêneros, a supressão do maestro, a introdução da noção de silêncio, o
uso de sons naturais (barulhos também), mecânicos, elétricos, eletrônicos,
etc... Sua gama de sons e suas experiências são tão numerosas quanto
suas obras. Ele dizia: “ficando aberto ao imprevisto espero com alegria o
que vai acontecer.”30

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15
2009

Em Atlas Eclipticalis (1932) ouvimos 25.000 sons em liberdade durante


160 minutos; em Bacchanale (1936) ele altera os sons do piano colocan-
do entre as cordas papel, porcas, cinzeiros (inventando assim o “piano
preparado”); em Construction in metal; (1937) utiliza gamelans indonésios
junto com chapas metálicas e peças de freios de carros; em Empty Words
(1973-78) usa um jogo de vozes, o grito e vocalizes misturando sílabas e
letras de um texto de Thoreau; em Europeras (1987-91) mistura gravações
em fita magnética com fragmentos de discos, pianistas, cantoras de ópera
e muitos projetores; em 59 ¼’ for a string player (1953) os instrumentos de
corda são tocados com ou sem palheta e as caixas de ressonância são
batidas como se fossem instrumentos de percussão; em 4 minutos e trinta
e três segundos (1942) o pianista fica sentado diante de seu instrumento
sem emitir nenhum som (John Cage gostava de dizer: “eu penso que a
melhor composição, pelo menos a que eu prefiro é a silenciosa (4’33”). Ela
é feita em três movimentos e não tem som. Eu queria que minha música
fosse livre dos sentimentos e idéias do compositor. Eu senti e espero ter le-
vado as pessoas a sentir que os sons dos seus ambientes constituem uma
música que é muito mais interessante que a música que eles escutariam,
se estivessem dentro de uma sala de concerto”);31 HPSCHD (1968) foi
concebida como uma peça para cravo e aparelhos eletrônicos; Imaginary
Landscape nº 5 (1952) é uma composição para 42 gravações fonográficas
enquanto que Imaginary Landscape nº 4 (do ano anterior) propunha um
som produzido pela emissão de doze rádios; Muoyce [Música + Joyce]
(1983) foi formada com sons emprestados de Finnegan’s Wake e cantados
sobre diversos ritmos descontínuos, sem melodia mas com o acompanha-
mento de sirenes; Variations II (196l) é uma peça indeterminada para um
número variável de músicos produzindo qualquer som; Varíations V (l965)
é composta de três elementos: barulhos amplificados, dança e uma mon-
tagem de filmes; Winter Music (1957) pode ser tocada por um número
indeterminado de pianistas (de l a 20). E assim por diante.
Arnold Schoenberg, que foi seu mestre durante algum tempo, ou-
sou dizer de John Cage: “naturalmente, ele não é um compositor, mas
um inventor genial”, enquanto que Bruno Maderna disse: “nós somos
todos cageanos.”32 Já, para Peter Yates: “o compositor de sua geração
que teve mais influência, no plano mundial.”
Não importa a área em que se envolvia (música, literatura, balé,
etc...) Cage sempre se distinguia por este lema: “a revolução não pode
nunca parar.”33 Sob todos os aspectos e especificamente sobre as
idéias anarquistas, ele dirá a Max Blechman, apenas algumas sema-
nas antes de morrer: “tenho uma amiga que está voltando da Espanha
onde conhece um escultor que lhe disse: ‘de erro em erro chegaremos
a vitória final’. Ela acredita — como ele, como eu, e como cada vez

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

mais pessoas — que o futuro político da humanidade será anarquista.


Nós só podemos ter uma humanidade universal e anarquista ... mas é
preciso um anarquismo pacífico... ou haverá muito do que poderíamos
chamar de dor.”34
Os camaradas de Marselha que fundaram o “Grupo anarquista
John Cage” foram bem inspirados.

PS: John Cage tinha sido convidado para participar do


programa musical do Primeiro Simpósio Internacional sobre
o Anarquismo de Portland, mas não pôde comparecer devido
a contratos assinados anteriormente com o coreógrafo Merce
Cunningham, mas ele nos permitiu colocar no programa seu
Imaginary Landscape nº 4, incrivelmente interpretado pelo
Lewis Clark Chamber Choir dirigido por Gilbert Seeley.

DOCUMENTO 16
Palestra de John Cage

Este segundo artigo dedicado à memória de John Cage


foi composto para lembrar a visita do companheiro no Rio
de Janeiro.

O “Testamento Anarquista” de John Cage


Publicado em Verve, São Paulo, 2004, v. 5, pp. 219-229

No meu artigo anterior sobre o grande compositor americano35 contei


alguns encontros que tive com ele no Brasil: em casa da insigne com-
positora brasileira Jocy de Oliveira e do Maestro Eleazar de Carvalho no
Leblon (junto com Arnaldo e Nora Sant’ Anna de Moura), no Teatro Carioca
da rua Senador Vergueiro (onde ele se entreteve com o Ideal Peres, Jacques
Kalbourian e Rosa de Freire Aguiar, entre outros), no espetáculo de dança de
Merce Cunningham (onde eu fui com Gizela e Lícia Valladares), etc.
Nessas circunstâncias encontramos outros artistas e intelectuais (limi-
to-me a citar um dos mais entusiastas admiradores dele, de quem eu me
lembre, o amigo professor Antonio Maria de Miranda Netto) estarrecidos
em descobrir que Cage tinha simpatias anarquistas. Eu mesmo ficara agra-

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davelmente surpreendido com as numerosas e pormenorizadas perguntas


que ele me fizera sobre as minhas vicissitudes anarquistas, e, sobretudo,
em relação ao Centro Internacional de Pesquisas sobre o Anarquismo, que
eu tinha fundado em Genebra uns anos antes.
Quando chegou a hora da despedida, comuniquei-lhe a grande ale-
gria que tinha inspirado sua visita ao Brasil e sua colaboração conosco
e perguntei-lhe porque ele não escrevia alguma coisa sobre anarquismo
que pudessemos divulgar como “propaganda”. Respondeu-me que se lês-
semos atentamente seus escritos encontraríamos bastantes referências
às crenças anarquistas dele. Acrescentou que se assim não tivesse sido
ele não teria aceito levianamente um convite para tratar do assunto em
público en plena ditadura militar. Insisti que uma obra dedicada inteira-
mente ao assunto aumentaria as chances de realizar o projeto social que
compartilhávamos. Sorriu, pensou um pouco e acabou dizendo que talvez
eu tivesse razão, que ia pensar nisso. E a coisa ficou aí.
Quando faleceu e escrevi sobre ele não mencionei a “meia promessa”
feita. Mal sabia eu que ele mantivera o empenho deixando o manuscrito de
Anarchy. Permanece o mistério de descobrir porque esse texto traz a data
de 1988 e só apareceu em 2001.
Em vez de um tratado sobre sua concepção do anarquismo, o compo-
sitor criou uma obra poética, baseada na estrutura do “mesóstico” (por ele
já praticada anteriormente) mas contendo várias inovações todas tenden-
tes a envolver a participação do leitor. Uma crítica reproduzida na capa,
confirma tudo quanto Cage me declarou na despedida de 1968 no Rio de
Janeiro; “Apesar de trazer para sua poesia e outros escritos sua profunda,
duradoura preocupação com as sociedades e com os modos de trans-
formá-las para melhor, as formas com as quais o fez enquanto escrevia
Anarchy (...) são especialmente brilhantes e estéticamente instigantes.”36
Para conceber esta pérola, Cage adotou uma linguagem revolucionária
baseada na “aleatoriedade” (un coup de dés n’abolira jamais le hasard,37
como dizia o Mallarmé?). Ele renunciou porém ao lance dos dados e das
moedinhas em favor de um programa informático.
O texto (de uma palestra?) se compõe de vinte poemas nos quais apa-
recem as ideias de Kropotkin (que abre a série), Emma Goldman, Thoreau,
J.J. Martin, Bakunin, Malatesta,38 ou de para-anarquistas (muito citados
já na palestra do Teatro Carioca) como Buckminster Fuller e Marshall
McLuhan.
O primeiro poema (este e o seguinte não tem títulos mas apenas um
número progressivo) é dedicado a Pietr Kropotkin. Além da forma do me-
sóstico também adota o princípio do velho pergaminho do qual algumas

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

letras desapareceram no decorrer dos anos e que o leitor deve reconstituir,


como num palimpsesto.
Enquanto o primeiro poema é contido em quinze versos, o segundo
ocupa quase oito páginas. O autor traça uma comparação entre problemas
sociais e musicais. A seu ver, a introdução da noção de silêncio na música
foi tão necessária para a evolução desta arte como o conceito de anarquia
o é para encontrar uma solução aos problemas dos governos. A dinâmica
do poema é inspirada por uma palestra de Emma Goldman.
No terceiro, estuda-se a função do anarquista como facilitador dos proces-
sos numa sociedade onde os serviços públicos são a base do convívio social.
O quarto é um grito de liberdade contra qualquer coação que impeça ao
ser humano de se desenvolver. Condena a política imperialista do governo
americano pedindo que saia da América Central e do Oriente Médio.
Mais engajado ainda é o poema 5, no qual Cage denuncia o método
“hipnótico” dos governos para perpetuarem a própria autoridade. O poeta
acha que a hora chegou para a gente tomar consciência do fato que os go-
vernos não só não são necessários mas são instituições imorais nas quais
pessoas de respeito não deveriam tomar parte. O poema não faz senão
bordar sobre uma citação de Mikhail Bakunin do qual Cage compartilha e
assume as idéias.
O número 6 é uma consideração sintética sobre a natureza e a men-
te humana. O poeta deseja que o projeto individual mude radicalmente e
torne-se projeto global para a sociedade de todos.
O número 7 indica o lugar do indivíduo na sociedade e o papel que
ele pode desenvolver num contexto no qual o anarquismo pode funcio-
nar. O número 8 é dedicado a um anarquista pouco conhecido fora dos
Estados Unidos (bem como na França, onde nasceu), Hippolyte Havel, que
porém desenvolveu um papel importante no movimento anarquista norte-
americano em princípios do século XX e ao redor de Emma Goldman. A
bibliografia dele, ou sobre ele, sendo muito reduzida, constitui uma prova
a mais de que a cultura anarquista de Cage não era nem superficial, nem
aproximativa. Cage não é a caricatura do inteletual descomprometido com
a realidade que o rodeia e fechado na torre de marfim, mas um artista e
pensador engajado no movimento com uma visão diacrônica e sincrônica
das problemáticas do anarquismo.
O seguinte, trata de Tolstoi, uma referência rara nos meios anarquis-
tas, geralmente ateus que quase sempre se afastaram dele por causa de
sua religiosidade. Cage nem levanta o problema do cristianismo tolstoiano
e limita-se a render ao pensador russo uma breve homenagem.

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O posterior é um brado de luta (poema 10) contra as multinacionais


que se apoderaram das riquezas sociais às custas das multidões e das
quais temos que nos desfazer se não quisermos que a humanidade acabe.
O nº 11 amplia o discurso anticapitalista. As políticas econômicas mundiais
deveriam ser regidas pela inteligência cooperativa e não pela inteligência
concorrencial. Confirma a própria fé na tecnologia.
O nº 12 é uma reminiscência de seu próprio livro A Year from Monday.39
Na sequência, um poema de homenagem a Buckminster Fuller, um
pensador pouco discutido nos ambientes anarquistas, mas em quem o
Cage tinha muita fé como construtor de modelos de vida social viáveis,
harmônicos, libertários. Conceitos que ele ja tinha expressado na palestra
de 1968 no Teatro Carioca.
No seguinte (poema 14) o autor nos surpreende com uma apologia do
insurrecionalismo revolucionário no qual o revoltado pode perder a vida a
qualquer momento. Talvez para apaziguar o leitor chocado pelo anterior, o
poema 15 volta à indagação inteletual nos mistérios da realidade.
O poema 16, em complemento ao anterior, é uma indicação de que
a numeração progressiva não deve absolutamente ser tomada em consi-
deração no sentido de uma evolução do pensamento do autor ou de um
desenvolvimento sistemático de uma idéia. A estrutura do livro é paralela a
estrutura de cada poema: não é a lógica que determina mas o acaso, não
é a ordem que predomina, mas a aleatoriedade. O leitor, porém, querendo
pode mudar a ordem da sucessão dos poemas e colocá-los numa pers-
pectiva diferente, ditada pelas suas escolhas éticas, estéticas ou simples-
mente na base de um método de sistematização próprio. A lição do poema
é que as sementes plantadas pelos anarquistas no começo do século pas-
sado podem ainda frutificar intelectualmente.
O nº 17 é dedicado a Henry David Thoreau, o proponente da desobe-
diência civil (que tantos seguidores teve na América dos últimos cinquenta
anos) do qual o poeta foi sempre um grande admirador pelas suas andan-
ças nos bosques e suas crenças ecológicas.
O seguinte (18) é uma lembrança de Bakunin que plantou a semente
da nova sociedade. A tarefa do revolucionário é explicitada no poema 19:
transformar a si mesmo, viver como homem livre e ganhar a luta para
estabelecer a nova sociedade.
O poema final é inspirado, mais uma vez, por Buckminster Fuller, que
sempre foi o modelo para Cage conceber a organização de uma sociedade
ecológica e livre.

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Essa primeira, rápida e simplificadora excursão nos meandros de


Anarchy de John Cage é provisoriamente suficiente para poder declarar
que se trata de um grande livro que resume não só uma vida, mas tam-
bém um século de pensamento anarquista. Não confundamos os ensaios
influentes escritos por anarquistas do século vinte (como Nacionalismo e
Cultura do Rudolf Rocker, admirado até por Albert Einstein e Sir Bertrand
Russell), com as sinteses artísticas, como O Castelo e O Processo de
Franz Kafka (as atividades dele como militante nos grupos anarquistas e
anarco-sindicalistas de Praga ficaram esquecidas, mas a obra literária dele
tornou-se imortal). Cage nunca foi uma figura política dentro do movimento
anarquista americano, mas quem pode julgar se um economista é mais
importante do que um músico, ou um sociólogo mais importante do que um
pintor? A história nos indica que às vezes os artistas são mais coerentes
(por serem mais sensíveis?) do que os militantes propagandistas. Temos o
exemplo de Paul Signac, militante anarquista e pintor neo-impressionista,
que não perdeu a cabeça durante a Primeira Guerra Mundial e se consi-
derou “traído” pelo bem mais politizado militante Jean Grave que, junto
a Kropotkin e vários outros inteletuais anarquistas, aderiu ao conflito em
oposição à Alemanha.
Falei de testamento em relação a John Cage e acho que com alguma
razão, pois este livro resume o sentido de uma vida. Trata-se de um de-
poimento artístico de grande alcance e, espero eu, de importantes conse-
quências, pois vai atrair ao anarquismo muitas simpatias no campo musical
e poético.
O pensamento anarquista de Cage não é necessariamente original. Mas
poder-se-ia dizer o mesmo do pensamento de um dos grandes filósofos da
Renascença francesa, Michel de Montaigne, que costumava dizer mais ou
menos “Je prends mon bien là où je le trouve.”40 John Cage faz a mesma
coisa, ele toma emprestado conceitos e citações de pensadores anarquistas
e os faz seus, no sentido de englobá-los na própria obra e no próprio pen-
samento. Quem lê os poemas sem ler o prefácio pode pensar que as frases
mais contundentes e provocatórias são de sua autoria. De fato são “suas” no
sentido de Montaigne, pois foi Cage que as leu, as privilegiou, as isolou das
outras e do contexto e fez a (tão criticada!) colcha de retalhos. Assim, pouco
importa saber se uma verdade que nos seduz é da autoria de, digamos,
Buckminster Fuller ou de John Cage. Pelo fato mesmo de tê-la escolhido e
citado, ele a consagrou como mensagem válida para ele.
A cultura anarquista de Cage, aliás, não é superficial. Por exemplo, ele
não leu só, digamos, Emma Goldman, mas leu também quem escreveu so-
bre ela, como Drinnon e Havel, biográfos e exegetas dessa militante lituano-

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americana. Basta ler o prefácio para apreender como ele seguiu pistas, pes-
quisou, escutou, leu.
A originalidade reside mais na elaboração, na construção, no jogo (o as-
pecto lúdico dele já estava presente em todas as obras anteriores, poéticas
bem como musicais). Este livro é complexo mais do que complicado, pois
a chave ele mesmo dá quando se lê a introdução, que contém instruções
pormenorizadas para a correta interpretação. Porém, esmiuçar os detalhes
não acrescenta muito à fruição dos poemas. Mallarmé já nos ensinara que a
banalização literal rouba metade do prazer. O livro parece até um bocadinho
requintado para os concretistas brasileiros que saberão transcriá-lo, como
fizeram com Pound, Joyce e outros grandes.
Eu, por mim, estou satisfeito assim: obrigado, John Cage, promessa e
missão cumprida.

Continua em Verve 16.

Notas
1
Numa carta do Rio de Janeiro ao C.I.R.A.-Lausanne, em 16/12/1965, na p. 2,
eu mesmo formulo a hipótese da fundação de uma seção brasileira (ou latino-
americana) certamente já precedida por alguma sondagem sobre o projeto.
Apesar de algumas hesitações, prevejo a possibilidade de poder concretizar a
iniciativa dentro de algum tempo, o que de fato acontece.
2
Na publicação desta primeira parte são reproduzidos na íntegra os documen-
tos da lista referentes aos nºs 1 a 16. Os seguintes serão publicados posterior-
mente em Verve 16. (N. E.)
3
Centro de Estudos Professor José Oiticica. (N. E.)
4
Comission de Relations de l’Internationale de Fédérations Anarchistes. (N. E.)
5
John H.F. Dulles. Anarchists and Communists in Brazil. Austin-Dallas, University
of Texas Press, 1973, pp. XIX-603.
6
Edgar Rodrigues (conforme o original do autor. N. E).
7
Edgar Rodrigues me informou que faleceu também o companheiro espanhol
Martínez, vigia da Biblioteca-Arquivo.
8
Outros 500 - Pensamento Libertário Internacional, co-organizado pelo Prof. Edson
Passetti quando Diretor da Faculdade de Ciências Sociais com o Centro de
Cultura Social e outros anarquistas. Encontro que reuniu anarquistas de várias
partes do planeta, realizado no TUCA, Teatro da PUC/SP em 1992.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

9
Section Française de l’Internationale Ouvrière. (N. E.)
10
Fac-símile presente nos arquivos do C.I.R.A. Informações contidas no cartaz:
“Curso: Aspectos Históricos do Anarquismo. Oito aulas com o Professor
Pietro Ferrua, do Centre International de Recherches sur l’Anarchisme de Lausanne.
No Teatro Carioca. Aos sábados, às 16h. Informações também disponíveis no
documento 14 (N. E.)
11
Traduzido por Carolina Besse e Thiago Rodrigues.
12
Este camarada foi o único a não ser preso, entre os oficialmente indiciados
no momento da acareação sobre o estatuto do Centro de Estudos Professor
José Oiticica. Ele figurava como bibliotecário da instituição, mas ninguém
conhecia — ou fingia não conhecer — o verdadeiro nome que se escondia
por trás deste pseudônimo.
13
Carlos M. Rama vinha periodicamente ao Brasil visitar uma de suas filhas
que veio morar no país depois de se casar com um brasileiro. Uma de suas
viagens coincidiu com nosso curso e ele teve a bondade de me substituir para
falar sobre os anarquistas na Revolução Espanhola de 1936-39, assim como
havia feito Ideal Peres na semana anterior para nos mostrar a Revolução Russa.
Carlos Rama, no dia de sua conferência, foi até entrevistado pela imprensa local.
Mais tarde eu mesmo o avisei, estando em Montevidéu, das prisões ocorridas.
Ele evitou as tempestades da ditadura brasileira, mas entrou em conflito com
o governo uruguaio, refugiou-se no Chile de Allende e em seguida teve que se
exilar na Espanha, onde morreu muito jovem.
14
O processo dos anarquistas, assim como os acontecimentos que se
desencadearam foram relatados por Edgar Rodrigues em seu livro O anarquismo
no banco dos réus (1969-1972) (Rio de Janeiro, VJR, 1993). Eu mesmo forneci
ao autor uma parte da documentação, mas ele também utilizou documentos
oficiais. Na época das prisões o camarada Rodrigues foi preservado das
perseguições durante algum tempo, o que lhe permitiu manter contato com os
camaradas que estavam livres, ajudar as famílias daqueles que estavam presos,
encontrar advogados para a defesa e se tornar útil sob diversos planos.
15
Diego Abad de Santillán, que eu encontrava de vez em quando em Buenos
Aires, com quem me correspondia regularmente e que me havia fornecido
material para o curso, se espantou ao receber uma cópia do anúncio de nossas
conferências, assim como a possibilidade de distribuir este tipo de material
durante uma ditadura militar. Eu lhe respondi que não era mais permitido no
Brasil do que na Argentina, mas que o fazíamos assim mesmo.
16
A taxa a pagar era modesta. Nenhum pro labore era destinado aos palestrantes
e o dinheiro recebido contribuía para pagar o aluguel da sala e a impressão
dos cartazes.

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17
John Cage. M: Wntings ‘67-72. Middletown, Wesleyan University Press, 1974,
p. 59.
18
Eu tinha me inscrito para a compra de um telefone, para o qual pagava
mensalidades regularmente, mas após seis anos ele ainda não tinha sido
instalado. Eu me tornei proprietário de um apenas quando estava no exílio.
19
Em seu apartamento no bairro do Leblon, onde na ocasião ela morava com
seu marido, o diretor de orquestra Eleazar de Carvalho.
20
O First International Symposium on Anarchism deu-se em Portland entre os dias
17 e 24 de fevereiro de 1980. Foram oito dias de conversas, conferências,
discussões, transmissões, projeções, espetáculos, recitais, concertos, etc. A
parte mais bem sucedida foi aquela consagrada às expressões artísticas: dança,
música, cinema. Nesta ocasião nos deleitamos escutando Jocy de Oliveira, tanto
quanto pianista e animadora ao interpretar “Descrições automáticas. Embriões
desidratados. Velhos sequins e velhas armaduras” de Erik Satie, como quando
ela nos ofereceu a apresentação de um extraordinário e inesquecível espetáculo
“Probabilistic Theater n. l” sua composição para músicos, atores e dançarinos,
que foi muitíssimo aplaudida.
21
John Cage. M: Writings ‘67-72, op. cit., p. 60.
22
John Cage. Composition in retrospect, p. 43.
23
Idem, p. 126.
24
Ibidem, p. 93.
25
Ibidem, p. 34.
26
John Cage. M: Writings ‘67-72, op. cit., p. 101.
27
Ele tinha tanta confiança em Kostelanetz que permitiu que ele palpitasse
sobre seus escritos e que fizesse uma montagem, para um artigo que apareceu
na revista Social Anarchism (n° 14 de 1989, pp. 13-29) com suas idéias sobre
educação. John Cage se limitou a adicionar algumas palavras, aqui e ali, entre
parênteses.
28
Citação: “Last Words on Anarchy. An Interview with John Cage by Max
Bletchman” in Drunken Boat, n° 2, pp. 221-225. A revista apareceu em setembro
de 1994 mas a entrevista aconteceu em 24 de julho de 1992, menos de um mês
antes da morte do compositor.
29
John Cage. A Year from Monday, p. 53.
30
John Cage. Composition in retrospect, op. cit., p. 32.
31
John Cage. “Interview with Jeff Goldberg” in The transatlantic Review, nº 55-
56 de maio de 1976.

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Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [1ª parte]

32
Citado por Piero Santi em “Método e caso in Cage” in Spirali nº 42 de junho
de 1982, pp. 43-45.
33
Idem, p. 33.
34
Ibidem, p. 33.
35
Pietro Ferrua. “John Cage, anarquista fichado no Brasil” in Verve. São Paulo,
Nu-Sol/PEPG-Ciências Sociais PUC-SP, nº 4, 2003, pp. 20-31.
36
“Although he often brought into his poetry and other writings his deep,
lifelong concern with the world’s societies and with ways to change them
for the better, the ways in which he did this while composing Anarchy ...are
especially brilliant and aesthetically compelling.” Quarta página da capa do
livro Anarchy de John Cage (Middleton, Connecticut: Wesleyan University
Press, 2001) assinada por Jackson Mac Low.
37
“um lance de dados jamais abolirá o acaso”, na tradução de Haroldo de
Campos (Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos. Mallarmé.
São Paulo, Editora Perspectiva, 1991). (N. E.)
38
Curiosamente o nome atribuido a Malatesta está errado: Mario em vez de
Errico.
39
Há uma tradução disponível em português: De segunda a um ano. Tradução de
José Paulo Paes e revisão técnica de Augusto de Campos. São Paulo, Hucitec,
1988. (N. E.)
40
“Eu tomo meu bem lá onde o encontro”. (N. E.)

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RESUMO
Primeira parte do ensaio arquivista de Pietro Ferrua sobre a
existência da seção brasileira do C.I.R.A. (Centro Internacional
de Pesquisas sobre o Anarquismo), composta por registros
referentes ao ano de 1968, com exceção da carta convocatória
de 1967. Os documentos reunidos trazem uma breve história
da prática cotidiana de anarquistas, seus deslocamentos
ultrapassando fronteiras territoriais, e suas lutas contra a
ditadura militar no Brasil.

Palavras-chave: cultura anarquista, C.I.R.A., libertarismos.

ABSTRACT
First part of Pietro Ferrua’s archivist essay about C.I.R.A.’s
(International Research Center about Anarchism) Brazilian
section. It is composed by 1968 records, except for a convocatory
letter from 1967. These documents shows a brief history of
anarchists daily practice: their dislocation, exceeding territorial
limits, and their struggles against the military dictatorship in
Brazil.

Keywords: anarchist culture, C.I.R.A., libertarisms.

Indicado para publicação em 2 de junho de 2008.

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verve
O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos...

o (des)encontro do brasil consigo mesmo:


ditos e escritos de edgard leuenroth
0
christina lopreato*

Edgard Frederico Brito Leuenroth, personagem im-


portante da história do(s) anarquismo(s) no Brasil,
nasceu no interior de São Paulo, em Mogi-Mirim, em
31 de outubro de 1881, quando o Brasil ainda vivia sob
o regime monárquico e escravocrata. Ainda jovem, fler-
tou com o republicanismo que dava seus primeiros pas-
sos no país, mas, em pouco tempo, se desencantou com
os descaminhos da República em terras brasileiras. Em
1904, iniciou sua trajetória de militância libertária in-
terrompida somente quando, em idade avançada, suas
forças físicas de octogenário não mais lhe permitiram
agitar a bandeira anarquista.
Ainda jovem, vivenciou a passagem do século XIX/
XX como “fazedor de jornais”. Sua inserção na lida jor-
nalística foi precoce. Aos 15 anos, começou a trabalhar
no jornal Comércio de São Paulo como tirador de provas
e mais tarde como tipógrafo. A passagem por este jornal
ficou assim registrada em seus manuscritos autobiográ-
ficos: “Nunca tive estudos regulares. Aprendi comigo.
Sou autodidata. Tudo colhi na universidade da vida.

* Doutora em História Social e Professora da Universidade Federal de Uber-


lândia, Instituto de História. Dedica-se ao estudo do anarquismo no Brasil. É
autora do livro O espírito da revolta. A greve geral anarquista de 1917 (São Paulo:
AnnaBlume/FAPESP, 2000).

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O jornal O Comércio de São Paulo foi um verdadeiro


escrínio de intelectuais. Pode ajuizá-lo acerca desta
assertiva por esta equipe que lá encontrei, secunda-
da por outras, no decorrer dos anos. Eduardo Prado
(diretor), Afonso Arinos (redator chefe). (...) Tive ali, de
certo modo, o prolongamento do curso escolar, inopi-
nadamente truncado. Nos intervalos da sequência das
provas a tirar, punha-se à porta da redação e a ouvir,
o mesmo fazendo junto à revisão e, ainda, sondando as
tertúlias da improvisada sala de estar.”1
Leuenroth se fez jornalista. Autodidata, com 16 anos
incompletos fundou, em 1897, seu próprio jornal, O Boi,
publicação quinzenal que circulava no bairro do Brás,
em São Paulo. Desde jovem, defendeu a imprensa livre
e, ao longo de sua trajetória de jornalista engajado, lu-
tou aguerridamente pela liberdade de expressão e pelo
livre-pensamento. Inspirado em Victor Hugo, publicou,
na primeira página do seu primeiro jornal, na edição
de 12 de setembro de 1897, as inquietações do escritor
com a censura que rondava os jornais na França: “A
imprensa é a voz do mundo. Onde há luz está a provi-
dencia. Quem reprime o pensamento atenta contra o
homem. Falar, escrever, imprimir e publicar (...) são cír-
culos sucessivos à inteligencia ativa: são essas as on-
das sonoras do pensamento (...) Onde a imprensa livre
é interceptada, pode dizer-se que a nutrição do gênero
humano está interrompida. A missão do nosso tempo é
mudar os velhos fundamentos da sociedade, criar a ver-
dadeira ordem e colocar em toda a parte a realidade no
lugar das ficções. Nesta deslocação das bases sociais,
que é o trabalho colossal do século — nada resiste à
imprensa. (...) A imprensa (...) escrava! A reunião de pa-
lavras, impossível! Não, por mais que façam os déspotas,
não, não há escravidão para o espírito.”2
Ainda adolescente, já tinha clareza da importância
da liberdade de expressão e da força da imprensa livre
como meio propulsor de idéias progressistas. Por acre-
ditar não haver escravidão para o espírito que se quer

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O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos...

livre, escreveu e falou sem peias, arcando com as con-


sequências da sua ousadia. E foi principalmente nas
atividades desenvolvidas nos jornais que teve contato
com diferentes correntes do pensamento e abraçou o
anarquismo. O seu engajamento na imprensa anar-
quista ocorreu em 1905, como co-fundador, adminis-
trador e redator do jornal Terra Livre, dirigido por Neno
Vasco, e publicado na cidade de São Paulo. Antes disso,
em 1903, foi introduzido por Estevão Estrela nas idéias
socialistas filiando-se ao Círculo Socialista Primeiro de
Maio. No ano seguinte, entrou em contato com as idéias
anarquistas e, desde então, foi defensor incansável dos
ideais libertários até sua morte, em 28 de setembro de
1968.
Com a imprensa estabeleceu um vínculo estreito que
se estendeu até seus últimos dias. Fez do jornalismo
não só uma profissão, mas principalmente um meio de
militância. Foi fundador, diretor, redator, administra-
dor e colaborador de vários periódicos. E também “sem-
pre gostou de reunir, colecionar e organizar informa-
ções sobre a imprensa. Organizou e dirigiu os arquivos
de A Noite (edição paulista), Jornal de São Paulo (em
suas duas fases), A Época, Jornal do Comércio (Recife) e
trabalhou na renovação dos arquivos Folha da Manhã e
O Globo (Rio de Janeiro).”3
Leuenroth cultivou o “pendor vocacional” (palavras
suas) de arquivista. Com essa sua “mania” de guardar
papéis, ele acumulou um rico acervo de documentos
sobre a história do(s) anarquismo(s) no Brasil, de um
modo geral (panfletos, material de propaganda, fotogra-
fias, entre outros), e, em especial, da imprensa anarquis-
ta (coleções de jornais libertários, material de edição,
de controle da confecção e distribuição dos jornais que
ele dirigiu, colaborou, foi redator ou editor resposável).
Como arquivista (ele assim se autodenominava) deixou
como legado uma documentação extraordinária. Uma
parte dela, comprada pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), deu origem ao Arquivo Edgard

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Leuenroth (AEL) e encontra-se disponível para consul-


ta. Uma outra parte está sob a guarda do Círculo Alfa
de Estudos Históricos, cujo responsável, Parmênides
Cuberos, sobrinho de Jaime Cubero, companheiro de
militância de Leuenroth, me permitiu acesso a uma
documentação ainda inexplorada. E é sobre esta do-
cumentação preciosa, constituída de textos manuscri-
tos e de textos datilografados ainda desconhecidos dos
pesquisadores, que atualmente estou debruçada.
Edgard foi militante ativo nas manifestações po-
pulares ocorridas em São Paulo, nas duas primeiras
décadas do século XX e teve participação decisiva na
greve geral de 1917 como incentivador, organizador
e orientador das jornadas libertárias de Julho. Ora-
dor vibrante, foi presença constante nos comícios e
agitações públicas que ocorreram durante o primeiro
semestre deste mesmo ano, momento de preparação
da greve geral. No calor das primeiras manifestações
grevistas, fundou, em 9 de junho, A Plebe, jornal liber-
tário porta-voz das reivindicações operárias no ano de
1917. Também teve papel de destaque como membro
do Comitê de Defesa Proletária (CDP) nas negociações
junto aos patrões e industriais que levaram à suspen-
são da greve geral.
Pelo seu engajamento no movimento grevista foi
preso em setembro de 1917 e processado4 como “men-
tor psico-intelectual” do assalto ao Moinho Santista,
ocorrido durante as agitações operárias. Durante os
seis meses em que ficou encarcerado, sob acusação de
ter cometido um crime de multidão, preparou sua au-
to-defesa na qual afirmou ter sido preso e processado
por defender idéias libertárias. E com o mesmo espírito
de livre-pensador e de assumir a responsabilidade por
suas ações, rebateu as acusações que sofreu em outros
processos que lhe valeram, durante sua trajetória de
militância, passagens sofridas pelos cárceres. Quando
da sua prisão no ano de 1935, reafirmou, na sua auto-
defesa, ter “(...) muito respeito à minha pessoa para

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O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos...

fugir às responsabilidades de minhas atitudes sempre


tomadas conscientemente. (...) Antes de tudo, sabem
todos os que me conhecem que jamais neguei meus
atos. As minhas ações são sempre oriundas de bem
pensadas resoluções de minha consciência guiada por
um inabalável senso de responsabilidade.”5
E pela acusação de ser o responsável pela publicação
do jornal anti-clerical A Lanterna, no ano de 1935, res-
pondeu com firmeza: “É verdade (...) Se resolvi publicar
A Lanterna foi porque julgava necessária aos interesses
dos brasileiros, bem como da coletividade humana, a
obra justificava a existência desse jornal. Portanto, por-
que negar? Errados ou certos os princípios sustentados
pela Lanterna? Essa é uma outra questão que não cabe
no âmbito do processo em que me envolveram. É uma
questão de convicção, de imperativo de consciência, de
foro íntimo. Defendia uma causa que reputava útil à
coletividade. Estava em erro? Pois que me convençam
disso. Prender-me e processar-me por defender idéias?
Aí é que está o erro (...).”6
Leuenroth usou a pena e a voz em defesa dos ideais
anarquistas e assumiu os riscos das suas intrépidas
decisões. Engajou-se nas campanhas contra a carestia
de vida, contra a guerra e o militarismo, contra o inte-
gralismo, entre outras. Incentivou gerações a lutar por
um mundo melhor para a humanidade e atravessou o
século XX defendendo a paz entre os homens em guer-
ra, em especial durante os dois conflitos que abalaram
o mundo. Fez da objeção de consciência seu impera-
tivo moral por acreditar ser ela que dá dignidade ao
homem.
Ao longo da sua trajetória de militância política-
intelectual, interessou-se pelos problemas sociais que
afligiam a população brasileira de um modo geral e, em
particular, o operariado, e refletiu sobre as suas causas
e possíveis soluções. Foi um livre-pensador que procu-
rou explicar o Brasil, seus contrastes, suas misérias e
grandezas, e acreditou na via libertária para resolver os

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problemas do país. Jaime Cubero, seu companheiro de


afinidades afetivas e libertárias por mais de meio sécu-
lo, com quem tive o privilégio de conviver, contou que
Leuenroth, pouco antes de falecer aos 86 anos, estava
rodeado de papéis. Eram os manuscritos de um projeto
libertário para a sociedade brasileira, possivelmente es-
crito durante os anos 60 do século passado, momento
conturbado do país, em especial quando da instalação
do regime militar no Brasil, em 1964.
Neste ensaio, compartilho minhas descobertas sobre
ditos e escritos de Edgard Leuenroth, em especial os
manuscritos ainda inéditos, em que ele refletiu sobre
o desencontro do Brasil consigo mesmo e apresentou
sua proposta libertária (em construção) para acabar em
definitivo com as mazelas da sociedade brasileira.

Sobre o lidar com os manuscritos

A obra inacabada de Leuenroth tem como título


Qual a solução para o problema do Brasil? De forma
interrogativa, ele se pergunta se há solução para os
problemas que afligem o Brasil e sai em busca de uma
proposta libertária para responder a sua inquietação.
A documentação a que tive acesso é constituída de
mais de uma versão de textos manuscritos e de tex-
tos datilografados com rasuras, emendas, anotações,
inclusões, exclusões, enfim, um prototexto, isto é, um
texto mas que ainda não é o texto. Diante das inter-
venções de Edgard nos seus escritos, busquei des-
vendar o segredo da sua elaboração. Por se tratar de
uma obra em andamento, para lidar com as diferentes
versões de um mesmo texto recorri à crítica genética,
um campo relativamente novo de investigação que se
dedica ao estudo dos manuscritos literários. A partir
dos rastros, busca-se compreender o percurso criativo
de um autor em direção a uma obra que ainda não é,
que sofre transformação progressiva, que é mutável. O
esforço é procurar entender o processo de criação, a

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O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos...

gestação da obra, aventurar-se pelos meandros do seu


fazer, pelos bastidores da criação.7
Assim como o crítico genético, procurei trazer de
volta ao fluxo da vida um objeto parado no tempo: os
manuscritos de Leuenroth, preservados e conservados
pelos companheiros de militância e imobilizados num
arquivo particular. Ao retirar os textos armazenados
num arquivo e revitalizar o fluxo da narrativa em cons-
trução por Edgard, procurei acompanhar os passos da
composição da sua obra para estabelecer os possíveis
nexos entre os vestígios deixados por Leuenroth, autor
e leitor crítico de sua própria obra, marcada por inter-
venções como acréscimos, cortes, substituições, ano-
tações, etc.
Como um voyeur, fui adentrando o espaço privado
da criação de Leuenroth. Procurei acompanhar as va-
riações da sua escritura, o movimento da sua mão na
construção do texto, mão que fez escolhas, que elimi-
nou e acrescentou, introduziu rasuras. Busquei eluci-
dar o caminho trilhado pelo autor e me deparei com a
complexidade da metamorfose que envolve um texto em
construção, o documento em processo, mediado pelo
olhar do pesquisador. Uma obra no seu vir-a-ser, que
ainda não é, em constante transformação.
Nesse percurso criativo, o escritor tem uma rela-
ção consigo mesmo como primeiro leitor do seu pró-
prio texto. Ele escreve e se lê, se autocomenta, corrige,
modifica, reescreve e enriquece o texto. Na aventura
de compreender os documentos do processo de cria-
ção, meu interesse se voltou para o entendimento da
mudança das formas, ou seja, das modificações intro-
duzidas nas diferentes versões dos fragmentos de uma
obra incompleta. Ao trilhar o caminho da composição
da obra, uma outra questão surgiu: como dar unidade
ao conjunto dos documentos encontrados, fragmentos
de manuscritos com versões datilografadas e de textos
datilografados sem a versão manuscrita? Os estudos
da crítica genética7 me levaram às reflexões do cineasta

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russo Serguei Eisenstein sobre a concepção de mon-


tagem, ou seja, como juntar os fragmentos recolhidos
com o objetivo de dar-lhes uma unidade orgânica, de
encontrar o tema que atravessa o conjunto da obra,
isto é, o seu princípio unificador que subjaz na idéia de
montagem fílmica, desenvolvida por Eisenstein em seus
livros Reflexões de um cineasta e O sentido do filme.
A leitura dos livros de Eisenstein foi inspiradora
para pensar a montagem da obra de Leuenroth a partir
dos fragmentos recolhidos. Na percepção do cineasta,
a montagem como um princípio unificador ultrapas-
sa os limites da simples junção de fragmentos. Nela,
os elementos que a compõem deixam de existir como
coisa independente e cada parte se liga uma à outra
revelando um único tema de conjunto que atravessa
toda a obra. A montagem consiste em ligar cada par-
te na outra e assim compor o conjunto, a arquitetura
da obra, que deverá despertar no espectador um sen-
timento apaixonante. Os fragmentos formam um todo
orgânico quando o tema, a idéia-chave e a composição
se encontram ligados orgânica e indissoluvelmente ao
pensamento, à vida e ao ser do seu autor. No processo
de criação, Eisenstein observa que a intuição do autor
e sua sensibilidade estão absorvidos na sua obra, pela
qual se busca construir uma imagem emotiva para sen-
sibilizar o espectador-leitor.
Na montagem da obra inacabada de Leuenroth, pro-
curei respeitar a organização original dos fragmentos tal
como eles foram encontrados, mas não há como negar
que ela é também fruto da intervenção objetiva e subje-
tiva da pesquisadora. O livro Qual a solução para o pro-
blema do Brasil? digitalizado contém 48 páginas e está
dividido em 6 partes: 1) Panorama atual da realidade
brasileira; 2) O Brasil na atual conjuntura mundial; 3)
Como enfrentar, no Brasil, a situação do momento?; 4)
A situação exige uma reforma social; 5) Transformação
socialista da sociedade brasileira e 6) Bases funda-
mentais da sociedade socialista brasileira. Nessa obra

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em construção, quando “a morte que chega sempre


pontualmente na hora incerta”, como diz o poeta Mario
Quintana, o impediu de terminar, Leuenroth, com a sen-
sibilidade de anarquista octogenário que ainda teimava
em pelejar pela causa libertária, mesmo com a saúde já
bastante abalada, volta-se não para lamentar os desati-
nos do Brasil, mas em apontar um outro caminho para
recriar um novo país.

O encontro libertário do Brasil consigo mesmo

De forma semelhante aos (re)conhecidos intérpretes


do Brasil tais como Darcy Ribeiro, Oliveira Vianna,
Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, entre
outros, que procuraram explicar o Brasil como um
país com identidade inconclusa, país do vir-a-ser,
Leuenroth, durante um longo período da sua vida de
militância anarquista, juntou-se ao coro dessas vozes
que projetavam o Brasil como um país novo, Brasil
de amanhã, país do futuro. E essa sua percepção se
aproxima dos autores que compartilham o fundo-comum
de idéias em que a identidade nacional se apresenta
em construção, tão bem explorado na obra alentada de
Maria Stella Martins Bresciani, O charme da ciência e
a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre os
intérpretes do Brasil, marco na historiografia brasileira
não só por tirar Oliveira Vianna do limbo historiográfico
e incluí-lo entre os intérpretes do Brasil, mas também
por colocar em diálogo fecundo vários outros autores que
trataram do tema da identidade nacional atravessado
pela idéia de carência, de incompletude.
Em artigo publicado em abril de 1920, em que de-
nuncia os açambarcadores da riqueza nacional, Edgard
destacava: “E o Brasil novo, o Brasil de amanhã, terra
de liberdade e de bem-estar, aberta a todos os braços
produtores e a todas as inteligências fecundas só se
tornará realidade concreta quando, sacudido pelo fu-
racão renovador, arremessar para o lixo da história

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todas estas castas malditas de parasitas e sugadores


que o infestam, que o estiolam, que o aviltam e que o
infelicitam.”8
Apesar de se juntar às vozes dos autores que ex-
plicaram o Brasil como o país do amanhã, ainda por
se fazer, Leuenroth vaticinava a passagem de um fura-
cão renovador para varrer os parasitas que impediam o
Brasil de encontrar a si mesmo. Defendia, em especial, a
necessidade do país se livrar da “padralhada” que exer-
cia forte influência católica sobre os governantes, por
ele responsabilizados pelos desatinos que impediam o
país de encontrar o seu rumo. Anti-clerical, Leuenroth
condenou com veemência, em artigo escrito em 1935, a
relação estreita entre poder e Igreja, que se estabeleceu
no país desde que o Brasil foi “achado” pela Coroa por-
tuguesa. Afirmou: “sem padres, como se manteriam no
poder os que nos exploram e nos oprimem, iludindo os
tolos com as perspectivas de um paraíso que somente
será dado a quem aguentar tudo bem quietinho, bem
mansinho, para que os tiranos não sejam importuna-
dos na sua ociosidade e nos seus prazeres da terra?
Resultado do catecismo em que a padralhada arde por
afogar o Brasil do futuro.”9
Já nos seus manuscritos, possivelmente escritos
quando Leuenroth já adentrava oitenta anos de idade,
vê-se o anarquista convicto de que era chegada a hora
do país se encontrar consigo mesmo. Vivenciando nos
anos 60 o que ele denominou ser a passagem do “fura-
cão renovador” a anunciar o “ocaso dos velhos moldes
de civilização” e a acenar uma nova era para a humani-
dade, sua personalidade inquieta e inconformada, ape-
sar da saúde frágil, levou-o a alimentar a esperança de
implantar uma sociedade socialista libertária no Brasil,
sonho acalentado desde que abraçou o anarquismo, no
início do século XX. A mudança deveria se realizar num
presente imediato e não num futuro impreciso.
Nos seus escritos de maturidade, afirmou que o Brasil
tinha jeito desde que o povo se dispusesse a enfren-

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tar uma transformação radical da sociedade brasileira.


Edgard foi além do levantamento dos problemas que fa-
ziam do Brasil um país desencontrado consigo mesmo.
Ele não só fez um balanço das mazelas que afligiam a
população brasileira, mas propôs uma solução libertária
para o Brasil deixar de ser o país do futuro e investir, em
definitivo, no seu fazer-se. Assim, diferentemente de ou-
tros intérpretes que vão ao passado colonial para expli-
car os desajustes do país, afastava-se do mito de origem
ao afirmar que o mal reside na base da organização da
sociedade que aqui se constrói, alicerçada no privilégio
de uns poucos que exploram os muitos que trabalham
para engrandecer o país. Portanto, era preciso atuar na
base dessa sociedade e nela buscar a solução para o
país.
Na construção do seu texto, Leuenroth apresenta,
inicialmente, um panorama da conjuntura internacio-
nal nos anos 1960 e a inserção do Brasil nesse contexto,
seguido de um diagnóstico dos problemas que afligiam
a sociedade brasileira, acompanhado da sua proposta
de solução libertária. Para ele, o mal-estar da civiliza-
ção burguesa atingia os países capitalistas. O mundo
atravessava um período de remodelações na vida dos
povos, de renovação que não se podia frear. Dizia que o
mundo apresentava-se “como se fosse um imenso cadi-
nho de fundição social, dentro do qual se entrechocam
os sistemas estatais e de organizações governamentais
para a moldagem de novas estruturações de convivência
humana.” Ao fazer uso da metáfora da fundição social,
procurou mostrar o movimento remodelador das bases
fundamentais do sistema capitalista que acreditava es-
tar em curso, principalmente no Oriente e que, segun-
do ele, em breve atravessaria o Atlântico e chegaria ao
Brasil. E diante dessa nova configuração internacional,
asseverou que o Brasil deveria enfrentar a situação com
“decisão e firmeza e não por espírito de imitação ou,
usando uma expressão vulgar, macaqueando ou bus-
cando em outras bandas um modelo pré-fabricado para
a nova organização da sociedade.”10 Ele se posicionou

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contra a importação de idéias, base da reflexão dos au-


tores-intérpretes do Brasil que trabalham com a noção
de incompletude quando abordam o tema identidade
nacional, recortada pela idéia de carência, do que ainda
nos falta para atingir o modelo de funcionamento ideal
da sociedade burguesa.
A solução, portanto, dever-se-ia buscar no interior
do próprio país, e não na importação de modelos pré-
fabricados. Para ele, nossos problemas só podem ser
solucionados por quem aqui vive, trabalha, produz e
concorre para o progresso do país. Para enfrentar o que
chamou de quadro de chocante desequilíbrio do Brasil,
de contraste, de fosso entre uma pequena elite que des-
fruta as benesses e os prazeres do sistema capitalista e
mantém a grande maioria da população brasileira mal
alimentada, mal vestida, roída na sua saúde e mantida
na ignorância, defende como única solução “substituir
o regime de privilégios dominante que concede aos ca-
pitalistas, senhores de todos os meios de produção, o
direito de vida e de morte do trabalhador.”11 Advoga o
pertencimento do Brasil a todos os brasileiros efetiva-
mente. E conclama todos que aqui vivem para o dever
da luta, para se engajarem na campanha pela trans-
formação do país a fim de libertá-lo das amarras que o
impedem de encontrar a si mesmo.
Assevera que a reforma da sociedade brasileira deve-
ria caminhar para o socialismo libertário. Mas, ele sabia
que o maior obstáculo nessa cruzada libertadora seria
enfrentar a “mentalidade atrofiadora do conformismo”
que impinge respeito e submissão à ordem constituída.
Sua palavra de ordem: reagir, lutar para libertar o país
“de uma vez para sempre, dos elementos reacionários
que não cessam de criar empecilhos aos anseios libertá-
rios do povo brasileiro (...) somente assim desaparecerá
as causas da miséria e da opressão.”12
Miséria e opressão. Dois temas candentes que atra-
vessam os escritos de Leuenroth. Para ele, os elementos
propulsores da dinâmica burguesa, “odioso círculo com

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o qual a burguesia defende os seus privilégios em de-


trimento dos interesses do povo brasileiro.” Ao traçar o
panorama da sociedade brasileira, aponta a distribuição
desigual de riqueza, “o cenário chocante que apresenta
a vida brasileira (...) desde os seringais da Amazônia
aos pampas sulinos (...) a carestia de vida que convi-
ve com taxas de lucro extraordinárias.” Diante deste
quadro, afirma que os problemas do país são inerentes
ao regime de produção capitalista e somente com uma
nova organização da sociedade brasileira, pautada nos
princípios anarquistas “haverá lugar para todos que
queiram participar do convívio social na base dos direi-
tos correspondentes aos deveres, para que dos esforços
comuns resulte igual soma de bem-estar para todos.
Não poderá, entretanto, haver lugar para quem preten-
da viver da exploração do trabalho do próximo.”13
Nos manuscritos, vê-se o anarquista convicto de que
é chegada a hora do país encontrar seu rumo. O futuro
do Brasil dependia de reformas de base na sociedade
brasileira. Com apelo reformista, propôs um projeto re-
volucionário com o objetivo de “suprimir a exploração do
homem pelo homem, exercida por meio do salariato —
característica da organização burguesa —, pondo dessa
forma fim à divisão da sociedade em classes com inte-
resses econômicos antagônicos (...) concomitantemente
será abolido o Estado — órgão mantenedor da sociedade
capitalista — que com sua engrenagem coatora, buro-
crática, extorsiva impede a estruturação da sociedade
baseada numa organização federativa livre de todas as
atividades produtivas do povo brasileiro.”14
Nos seus apontamentos sobre os elementos favo-
ráveis à organização do socialismo libertário no Bra-
sil, responde a uma indagação que diz ser alimentada
por dúvidas provocadas pela perspectiva dessa radical
remodelação da nossa estrutura social, qual seja, se
seria possível funcionar a atividade coletiva do país
com a devida eficiência sem a utilização do Estado
hoje dominante. Com sua verve libertária argumenta:

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“Parece-nos, entretanto, mais lógica a manifestação de


estranheza provocada pela constatação de haver quem
ainda julgue necessária a existência do Estado como fa-
tor de ordem social. Essa consulta encontra explicação
no fato de se atribuir ao Estado o mérito da gestão da
sociedade (...) Torna-se, pois, necessário examinar se
esse conceito encontra alguma confirmação objetiva na
realidade que todos estamos vivendo. Como ponto de
partida deste exame, ter-se-ia de colocar o Estado no
pelourinho de um julgamento social e submete-lo a um
estudo que deveria ter começo em sua origem e finali-
dade e, acompanhando o seu desenvolvimento, fazer-se
a exposição dos resultados de sua obra no decurso de
sua já longa existência diante da qual — num processo
de metamorfose social — tem tomado as formas que a
história registra.”15
Em sua avaliação cáustica sobre as diferentes experi-
ências de regimes governamentais do Brasil, apresenta o
regime colonial como “dominador e extorsivo”, a monar-
quia “estática e dominadora” e a república, desde 1889
até o presente “ainda não se fez a verdadeira República,
ou seja, aquilo que está contido na definição etimológica:
coisa pública, coisa do povo, portanto, coisa de todos e de
cada qual e, na vida coletiva, administração das coisas e
não do Estado-polvo, triturador da liberdade individual e
sugador do produto do esforço da comunidade.”16
Leuenroth apregoa que a vida social deve se desen-
volver à margem do Estado, considerado por ele “órgão
parasitário, surgido por meio da violência e da astúcia
para ser um instrumento governamental de domínio
e de sucção.”17 Ancorado nas reflexões de Kropotkin,
anarquista russo, afirma que o Estado surgiu quando
a vida coletiva já tinha estabelecido suas normas de
convívio social e que a sociedade pode, portanto, viver
sem ele.
O seu projeto para reformar a sociedade brasileira
aponta para uma única direção: o caminho para o so-
cialismo libertário. E justifica a viabilidade da sua pro-

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posta argumentando que ela foi construída “de acordo


com a evolução histórica do Brasil e dentro das condi-
ções atuais do ambiente brasileiro (...) A organização é
prática, racional e sobretudo humana (...) sem artificia-
lismos ou normas importadas, isento da preocupação
de adotar denominações modernizadoras e estranhas
aos nossos hábitos.”18
Observador arguto da realidade brasileira e parti-
cipante ativo nos protestos e manifestações públicas,
durante mais de meio século de vivência em terras
paulistanas, ele se insurgiu contra os descaminhos do
país que se refletiam na pobreza degradante em que
vivia parcela significativa da população brasileira, nas
condições ultrajantes de trabalho a que estava subme-
tida a maioria dos trabalhadores e que conviviam com a
contrastante ostentação de luxo de um grupo minoritá-
rio de pessoas que conduziam o país de acordo com os
interesses de alguns poucos beneficiados. Inspirando-se
no pensamento de Kropotkin, que definiu o anarquismo
como uma ciência do social e pautando-se em princípios
libertários e preceitos científicos, Leuenroth postulou a
necessidade de uma reestruturação da sociedade brasi-
leira, na qual o indivíduo seria sua unidade essencial e o
solidarismo a sua força propulsora. Na nova organização
social do Brasil, que tem a solidariedade como princípio
fundante da organização livre, torna-se imprescindível
organizar a sociedade de modo que “a terra e os instru-
mentos de produção, todos os bens sociais produzidos
pelo esforço comum, sejam postos como patrimônio
comum que são, a serviço da produção destinada a
satisfazer as necessidades coletivas e não as ambições
de riqueza de uma minoria capitalista.”19
Para enfrentar o que chamou de “regime de desor-
dem imperante”, em que vigora a penúria na abun-
dância, por ser o Brasil possuidor de grandes riquezas
potenciais que não pertencem efetivamente a todos os
brasileiros mas a uma minoria de sua população, ele
insiste na necessidade de levar adiante uma campanha

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destinada a enfrentar, de maneira corajosa, o mal ra-


dical que reside no regime capitalista de produção, no
qual os capitalistas detém o monopólio da riqueza pro-
duzida direta e efetivamente pelo povo trabalhador que,
no entanto, constitui a classe pobre, sujeita às agruras
de escassez do mais essencial à vida. A solução apon-
tada por Leuenroth é “substituir o regime de privilégios
dominante que concede aos capitalistas, senhores de
todos os meios de produção, o direito de vida e de morte
sobre o trabalhador.” Por acreditar no que chamou de
“inegável pendor libertário do povo brasileiro”, manifes-
tado em movimentos de rebeldia reivindicadora ao lon-
go da história brasileira, Edgard apontou a necessidade
premente de despertar o povo brasileiro do marasmo
e da indiferença em que ele se encontrava e incitá-lo
a lutar para se libertar, de uma vez para sempre, dos
elementos reacionários que fazem prevalecer os seus in-
teresses particulares em detrimento dos interesses da
população brasileira.
Repartir o que já existe em prol do bem-estar co-
mum: seu ponto de partida para mudar a situação
existente. Sem destruições, nem violências. Os bens
existentes, argumenta, são resultados dos esforços da
geração atual e das anteriores e devem ser conservados
e utilizados de acordo com os interesses da coletividade
brasileira e não em proveito de uma minoria parasitária
que comanda os destinos do país. A questão crucial que
se coloca é sobre a possibilidade prática de se operar
a reforma tão radical, vencer o atrofiador conformismo
do povo brasileiro com o que existe, o respeito e sub-
missão à ordem constituída, ao princípio de autoridade.
Para Edgard, isso resulta do conceito retardatário e
reacionário da intangibilidade do regime capitalista.
Conformismo e resistência se mostram como interfaces
do modo de agir, mas ele insiste no pendor libertário
do povo brasileiro para levar adiante esse seu projeto
revolucionário, que incide na radical reformulação da
estrutura da sociedade brasileira para tornar possível o

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O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos...

funcionamento da atividade coletiva do país, de manei-


ra eficiente, por meio da cooperação.
Na sociedade socialista libertária, projetada por
Leuenroth, o indivíduo seria sua unidade essencial e
o solidariedade do povo brasileiro a força propulsora
da nova sociedade, baseada no princípio de apoio mú-
tuo, cujo lema “um por todos, todos por um” dispensa
o Estado, o patronato e as formas intermediárias. A (re)
estruturação da sociedade brasileira está assentada no
federalismo libertário, princípio, como afirma Proudhon,
que se opõe ao unitarismo centralizador e salvaguarda a
soberania individual e a dos grupos que se constituem
por afinidades de interesse e de costumes. O federalis-
mo orienta-se pelo respeito à integridade da autonomia
da unidade no conjunto, desde as atividades agremia-
tivas nas comunas (municípios), destas em federações
(profissionais, técnicas, científicas, culturais, recrea-
tivas, etc.) e finalmente nas confederações. A comuna
goza de ampla autonomia e é baseada no princípio da
administração das coisas e não na ação governamental
sobre os indivíduos. Ela é a expressão dos interesses de
cada localidade e dela fazem parte o indivíduo-munícipe
na sua dupla condição de produtor e de consumidor. A
harmonia social está fincada no entrosamento produ-
tor-consumidor. Com isso, rompe-se o círculo vicioso
da carestia dentro da abundância, pois o aumento da
produção representa perspectivas de benefícios para os
consumidores e, assim, deixa de atender a finalidade
capitalista de gerar lucro e acumular riquezas e deixar
na penúria o povo trabalhador.
Seu projeto de reformar a sociedade brasileira é para
que todos possam ter futuro. Se o mal reside na base do
atual sistema, é nela que se deve atuar na busca de uma
solução urgente e definitiva para os males que atormen-
tam e que levam ao desassossego o povo brasileiro. O
regime que propõe é o de bem-estar e de liberdade para
todos, no qual todos os brasileiros desfrutem a igualdade
de direitos em todas as modalidades de convivência so-

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15
2009

cial. Para o começo de uma nova era para o país, na qual


se tem a igualdade como base, a liberdade como meio e a
solidariedade como fim, acredita ser imperativo histórico
do povo brasileiro considerar obsoleto o regime de explo-
ração capitalista e lançar-se na construção de uma nova
ordem social fundada na harmonia, que resulta da prá-
tica do livre acordo, da ajuda mútua. Agir nesse sentido
significa suprimir a exploração do homem pelo homem.
A fim de tornar efetiva essa transformação, Edgard
afirma ser necessário a abolição do Estado — órgão
mantenedor da sociedade capitalista, com sua engre-
nagem coatora, burocrática e extorsiva — que impede
a estruturação da sociedade baseada numa organiza-
ção federativa livre de todas as atividades produtivas
no país. Em seguida, deve-se socializar o patrimônio
social que se encontra em poder de empresas, institui-
ções, do Estado e de particulares, a ser repartido de
acordo com o lema: “de cada um as suas possibilidades,
a cada um segundo suas necessidades.” Propõe abolir
cargos autoritários, instituições parasitárias, títulos de
propriedade e distinções e privilégios. O trabalho cons-
titui o elemento básico da vida na sociedade socialista
libertária brasileira “mediante o qual será assegurado,
em igualdade de condições, a todos os elementos pro-
dutores do país, o bem-estar facultado pelo patrimônio
resultante do esforço coletivo.”20
Com base em princípios racionais e científicos do
anarquismo, Leuronth propõe construir no Brasil a so-
ciedade socialista libertária, libertando assim o país dos
seus entraves: o regime de concorrência, do lucro, da
tirania, do Estado. Considera que o seu projeto “reflete
uma afirmação de consciência alimentada por princí-
pios bem sentidos e bem pensados, uma afirmação de
propósitos de ação, serena mas decidida contra todas as
formas de tirania, de exploração e de embrutecimento
contra o povo e de luta em prol da liberdade e bem-estar
para todos.”21

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O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos...

Na sociedade assim concebida, todo brasileiro po-


derá aspirar a uma vida digna com o desfrute de uma
alimentação saudável, um lugar para morar, acesso
à instrução, à saúde com investimento em medicina
preventiva, às ciências, artes e letras.
Implantar o socialismo libertário no Brasil. Eis o so-
nho acalentado por Leuenroth. Eis o seu modelo de so-
ciedade do bem-viver. Nos seus escritos, ele se insurge
contra a indiferença, a insensibilidade e a ganância dos
que acumulam riquezas e se voltam para si mesmos.
No mundo contemporâneo em que grassa o egoísmo,
o individualismo desenfreado, a ascensão da insigni-
ficância e da arrogância, trazer à tona os escritos de
Edgard reatualiza as preocupações dos que se importam
com o bem-estar social, com o viver junto em harmonia
compartilhando conquistas e desafios. Por acreditar na
possibilidade de uma humanidade mais fraterna e soli-
dária, Leuenroth repõe, no seu projeto libertário, a fan-
tasia, a imaginação, a esperança, a utopia. Sua proposta
de solução dos problemas do Brasil encerra em si a frase
de Gandhi: “se queremos progredir, não devemos repetir
a história, mas mudar a história.”

Notas
1
Edgard Leuenroth. Dados autobiográficos. Manuscrito, s/d.
2
Victor Hugo. “A imprensa” in O Boi. São Paulo, 12 de setembro de 1897,
ano I, nº 5, p. 1.
3
Dados extraídos das anotações de Edgard Leuenroth, no manuscrito (s/d)
intitulado Ficha de identidade.
4
Sobre o processo-crime envolvendo Edgard Leuenroth pela sua participa-
ção no movimento grevista de 1917 consultar: Christina da Silva Roquette
Lopreato. “O processo Edgard Leuenroth” in O espírito da revolta. A greve geral
anarquista de 1917. São Paulo, AnnaBlume/FAPESP, 2000, p. 187-197.
5
Edgard Leuenroth. Auto-defesa. Mimeografado, 1935.
6
Idem.

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2009

7
Obras consultadas: Cecília Almeida Salles. Crítica genética: uma (nova) introdução.
São Paulo, EDUC, 2000; Phillippe Wilemart. Universo da criação literária: crítica
genética, crítica pós-moderna. São Paulo, EDUC, 1993.
8
Edgard Leuenroth. A organização dos jornalistas brasileiros 1908-1951. São Paulo,
Com-Arte, 1987, p. 27.
9
Leão Xisto (pseudônimo de Edgard Leuenroth). “Afinal, quem são os extre-
mistas?” in A Lanterna. São Paulo, 05 de outubro de 1935, nº 401, p. 1.
10
Edgard Leuenroth. Qual a solução para o Brasil? Texto digitalizado, p. 6.
11
Idem, p. 1.
12
Edgard Leuenroth. Qual a solução para o problema do Brasil? Texto digitalizado,
p. 4.
13
Idem, p. 13.
14
Ibidem, p. 22.
15
Ibidem, p. 16.
16
Ibidem, p. 5.
17
Ibidem, p. 18.
18
Ibidem, p. 46.
19
Ibidem, p. 5.
20
Em suas anotações, Leuenroth considera que “naturalmente, estarão isentos
dessa obrigação as pessoas que a isso estejam impedidas em consequência de
enfermidade, invalidez ou outras circunstancias de força maior”. Cf. Qual a
solução para o problema do país? Texto digitalizado, p. 24.
21
Idem, p. 46.

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O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos...

RESUMO
Edgard Leuenroth (1881-1968), anarquista brasileiro, no
seu percurso de militância política-intelectual interessou-se
pelos problemas que afligiam a população brasileira de um
modo geral e, em particular, o operariado e refletiu sobre as
suas causas e possíveis soluções. Usou a pena e a voz para
explicar o Brasil, seus contrastes, suas misérias e grandezas e
formulou, já octogenário, uma proposta libertária para resolver
em definitivo os problemas do país. Neste ensaio, a autora
perscruta, nos textos manuscritos de Edgard, em sua grande
maioria ainda inéditos, as reflexões de Leuenroth sobre os
(des)caminhos do país em que ele aponta os problemas que
impedem o Brasil de encontrar a si mesmo e propõe a ruptura
com o sistema capitalista como base do seu projeto de radical
remodelação da sociedade brasileira

Palavras-chave: Edgard Leuenroth, anarquismo, manuscritos.

ABSTRACT
Edgard Leuenroth (1881-1968), Brazilian anarchist. In his way
thru political-intelectual activities he was in general concerned
about Brazilian population problems, and specifically about
the workers problems, reflecting on these problems causes
and possible solutions. He used his voice and writings to
explain the inequalities, poverties and greatness in Brazil.
About his eighties, Leuenroth developed a libertarian proposal
to definitely solve this country problems. In this essay the
authoress scrutinizes Edgard´s manuscripts (which are most
unpublished) into his considerations about this country (un)
ways. Leuenroth points Brazil’s problems in knowing itself and
sugests a breaking with capitalist system based on his radical
project about Brazilian society remodelling.

Keywords: Edgard Leuenroth, anarchism, manuscripts.

Recebido para publicação em 12 de janeiro de 2009. Confirmado


em 2 de março de 2009.

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2009

dois escritos da imprensa anarquista


em são paulo1
florentino de carvalho
florentino de carvalho

Os escritos de Primitivo Raymundo Soares (1883-


1947), impressos com o pseudônimo de Florentino de
Carvalho, no jornal anarquista Germinal! fundado por
ele e Rodoplho Felipe, em 1913, registram a força e a
coragem dos libertários que atuavam nos meios operá-
rios no início do século XX no Brasil. Seu autor — que
se desligou da Força Pública do estado de São Paulo
para tornar-se um combativo agitador anarquista, em
1901, após ler A Conquista do Pão de Piotr Kropotikin
— viveu como professor e escritor, editando os jornais
libertários A Plebe e O Libertário e a revista A Obra.
É autor de Da escravidão à liberdade (Porto Alegre,
Editora Renascença, 1927) e A guerra civil de 1932
em São Paulo (São Paulo, Editora Ariel, 1932). Es-
teve envolvido ativamente com as greves, comissões e
congressos que convulsionaram o meio operário; como
divulgador das idéias racionalistas de Francesc Ferrer
i Guàrdia no Brasil, atuou nas Escolas Modernas 1 e 2
de Adelino de Pinho e João Penteado. Passou por pri-
sões e uma tentativa de deportação, das quais fugiu
com o apoio de amigos. Editar, quase cem anos depois,
esses escritos é uma maneira de colocar novamente o
problema é preciso escandalizar!, para uma época mo-
derada em que a palavra escândalo está esvaziada da
atitude desafiadora impressa nas páginas de Germinal!.
Leia mais em Rogério H. Z. Nascimento. Florentino de
Carvalho. Pensamento social de um anarquista. Rio de
Janeiro, Achiamé, 2000 (N. E.)

verve, 15: 222-228, 2009


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Dois escritos da imprensa anarquista em São Paulo

é preciso escandalizar

Todas as seitas, sociedades ou partidos, todos os ho-


mens, classes ou coletividades que não tiveram o atre-
vimento de escandalizar o mundo com as suas idéias,
os seus métodos e os seus atos, feneceram sem que os
seus ideais tivessem chegado a ocupar o seu posto de
predomínio, mais ou menos duradouro, no curso das
idades.
Quando dizemos escândalo queremos precisamente
exprimir admiração ou espanto que causam os princípios
ou práticas hostis ao ambiente estabelecido.
Se os cristãos não tivessem escandalizado o mundo
com as loucuras do Nazareno — seu símbolo — com o
terror da Providência, com a infinita bondade, justiça e
sabedoria do Pai Eterno, com as indescritíveis delícias dos
céus e os espantosos martírios do limbo, do purgatório
e do inferno, ninguém lhes teria feito caso, como assim
mesmo não o teria feito se não tivessem impressionado os
povos com a sua audácia, abnegação e heroísmo, e se os
seus mais dedicados defensores não se tivessem, como o
“seu chefe”, coroado com a auréola do martírio.
As concepções e a audácia de Sócrates, e a cicuta que
foi obrigado a beber, revolucionaram a mentalidade hu-
mana da sua época.
Galileu destruiu rapidamente o sofisma da teoria
da imobilidade da terra com a famosa frase: “eppur si
muove!”2
Se o luteranismo e o calvinismo produziram a refor-
ma e facilitaram o surgimento do positivismo, foi porque
escandalizaram o mundo cristão, levando a dúvida aos
cérebros, submetendo a Bíblia ao escalpelo da crítica.

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2009

Por sua vez o positivismo triunfou espantando todos


os crentes com a sua filosofia e as suas arrojadas concep-
ções eminentemente materialistas.
O atrevimento de homens como Babeuf, Hebert e
Octavio Mirabeau, e a valentia de um povo heróico
proclamaram a liberdade, igualdade e fraternidade.
Pensemos um momento sobre a audácia dos traba-
lhadores de Paris que, apesar de estarem as energias po-
pulares esgotadas pela guerra franco-prussiana, tiveram
a coragem de implantar a Comuna [1871] numa época
em que apenas despontavam as idéias socialistas e anar-
quistas; pensemos no seu sacrifício realizado na semana
trágica contra as tropas de Thiers, e teremos uma idéia
da razão da universalização rápida dos novos princípios
de regeneração social.
As forças de Chicago descrevem sobre as gerações no-
vas a famosa frase de Spies: “Saúde oh! Tempos em que o
nosso silêncio será mais poderoso do que as nossas vozes
hoje sufocadas com a morte!”
Quem não foi tomado de assombro pela temerária
revolta dos heróicos marujos do couraçado russo
Kinazpotkine? Que de estímulos não criou o arrojo desses
valentes?
Hoje, todas as bocas limpas repetem a memorável ex-
clamação de Ferrer — Viva la Escuela Moderna!
As transformações sociais, políticas, econômicas, mo-
rais e filosóficas, as revoluções, as ascensões dos plebeus,
dos escravos, produzem-se pelo escândalo.
O mundo marcha à força de escândalos, e a huma-
nidade só concebe uma idéia ou um ato depois de ter se
escandalizado, depois de ter sido a sua atenção atraída
para estas idéias e atos com a admiração e a impressão.
Quando se propaga, seja o que for, com reticências,
com desvios ou roupagens, mais ou menos enigmáticas,
quando se emprega uma fraseologia escolhida para não

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Dois escritos da imprensa anarquista em São Paulo

assustar ou para não escandalizar, o auditório ouve as


filípicas como quem ouve chover.
E nós, se não queremos gastar a cachola nem os pul-
mões inutilmente, temos que propagar as nossas idéias
sem prudência alguma, sem palavras com sentido figu-
rado.
É preciso ter a sinceridade do camponês: pão é pão e
vinho é vinho.
Tratemos, por todos os meios, de escandalizar a todo o
mundo, em todo o momento e lugar.
Gritemos bem alto, com toda a força, os nossos princí-
pios, as nossas doutrinas; e se alguém fugir de nós deve-
mos correr atrás dele até alcançá-lo, e continuar a gritar,
certos de que não perderemos o tempo, porque, quem foge
é porque fez caso das nossas arengas e foi impressionado
por elas. Os irredentos, os que não podem assimilar os
nossos sentimentos, ficam muito tranquilos, porque não
compreendem patavina, ou estão pensando em coisas
que não tem nada com o que nos esforçamos em fazer-lhe
sentir.
Escandalizemos a todo transe.
Quando tivermos escandalizado o mundo ele será
nosso.
Quando o Anarquismo for espalhado por toda a terra a
Anarquia terá triunfado.
Lisboa, 1913.

a imprensa anarquista

Inimigos de todas as leis, de todos os regulamentos,


de todos os programas; mente aberta a todas as idéias ou
pensamentos elevados, irradiados pela luz do livre exame,
não podemos circunscrever-nos a uma estrita concepção

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2009

encerrada nos moldes de determinada escola filosófica ou


sociológica.
Podemos, sim, ter mais simpatia por esta ou aquela
tendência, este ou aquele método de luta, mas, tratan-
do-se de investigação e de propaganda, é um disparate
seguir o método unilateral. Todos os meios que não es-
tiverem em conflito com os nossos princípios devem ser
empregados na luta pela nossa causa.
Entre estes meios alguns há que, à primeira vista
parecem contrários ao Ideal.
A revolução armada, o atentado, o incêndio, a sabo-
tagem, a greve, a manifestação pública, a organização
operária, são meios mais ou menos violentos, antepostos
à nossa idéia de paz e de harmonia.
Muitas revoluções e todos os atentados tiveram por
fim reprimir monstruosidades praticadas pelo Estado e
pelo capitalismo, quando não puderam ir mais longe. O
movimento de julho de 1909, em Catalunha foi pelos so-
cialistas, sindicalistas e anarquistas, posto nas mãos dos
republicanos, para evitar-se a reação governamental. Os
camaradas de Portugal foram os que mais se distinguiram
na revolução que proclamou a República, para livrarem de
serem os primeiros a pagarem o crime de alteração da or-
dem monárquica. Os atentados que justiçaram Umberto,
Carnot, Carlos, Falcão e tantos outros, foram as conse-
quências de massacres, de torturas e outras medidas do
terrorismo do Estado, ou da excessiva extorsão capitalista
— como os trustes nos Estados Unidos — que agravaram
profundamente a situação do povo. Em resumo: tiveram
por fim conquistar a maior liberdade e bem estar das clas-
ses oprimidas e impulsionar o avanço do Ideal.
A relativa liberdade que hoje gozamos deve-se a essas
revoluções, a esses atentados. A sabotagem, e as greves
parciais ou gerais, são também fatores que refreiam o
galope burguês, disputando, para o operariado, as me-
lhores condições possíveis de existência, tanto política
como economicamente.

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Dois escritos da imprensa anarquista em São Paulo

Para promover as greves e as revoluções, melhor seria


que, em vez das sociedades de classe, se constituíssem
numerosos grupos de ação e de propaganda em cada clas-
se; mas, para isso não existe a suficiente preparação re-
volucionária entre o operariado. E a organização de socie-
dades operárias produz se fatalmente, determinada pelo
próprio sistema capitalista. O que se torna necessário,
portanto, é orientar as sociedades de forma que prepa-
rem os trabalhadores para a formação desses grupos,
que são o esboço da sociedade futura.
A manifestação pública, que para muitos representa
um ajuntamento de barulhentos, é antes do que o livro,
o panfleto e o jornal, o melhor meio de transformação da
opinião pública, porque traz ao mesmo tempo a divulga-
ção da idéia e a afirmação prática, embora relativa, do
sentimento que a torna vivaz e respeitável. E nestas ma-
nifestações surgem, com frequência, grandes movimen-
tos de revolta, que fazem tremer os dirigentes do regime
burguês.
A liberdade e o bem estar, na sociedade presente,
enervam as energias, e as pequenas transformações são
reformas fictícias que dão mais longa vida à classe que
impera; mas também é certo que o excesso de miséria
e de despotismo inutiliza os indivíduos completamente,
preparando-os somente para a bestialidade ou para a
morte.
Como os nossos princípios não preconizam a não re-
sistência ao mal pela violência, somos consequentes com
eles, mesmo empregando meios violentos.
Voltando à questão da organização operária, direi que
se nós não a inspirarmos nas nossas tendências, ela to-
mará outro rumo, constituindo-se no mais poderoso
obstáculo às nossas aspirações, como acontece na
Alemanha, na Bélgica e outros países.
Se popularizarmos o nosso ideal e não o praticarmos
destruindo moral e materialmente a sociedade presente,
ele será sempre uma bela utopia.

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2009

Todos esses meios estão concordes com o fim que se


persegue, e, em vez de seguirmos exclusivamente a es-
cola de Stirner, Proudhon, de Kropotkin, etc., temos que
propagar, com as reservas da própria opinião, as diversas
escolas, propagando e afirmando a Anarquia, abreviando
a hora da Revolução.
Esta é a orientação que, entendo, deve seguir a im-
prensa que, sem outros adjetivos, se intitule anarquista.

Notas
1
Textos selecionados por Acácio Augusto, e extraídos respectivamente de Germi-
nal, São Paulo, Editorial, 29/06/1913; Germinal, São Paulo, n° 15, 29/06/1913.
2
“Mas ela se move!” (N. E.)

RESUMO
Dois textos do anarquista Florentino de Carvalho. O primeiro
aborda a relevância do escândalo nas atividades subversivas
e anarquistas, o outro trata da insignificância de se eleger
uma tendência anarquista enquanto verdadeira, na imprensa
revolucionária.

Palavras-chave: Florentino de Carvalho, jornal Germinal, lutas


anarquistas.

ABSTRACT
Two texts of the anarchist Florentino de Carvalho. The first one
treats the relevance of the scandal in anarchist and subversive
activities. The other points the unimportance of electing an
anarchist tendency as the true one in the revolutinary press.

Keywords: Florentino de Carvalho, Germinal newspaper,


anarchists fights.

Indicado para publicação em 9 de junho de 2008.

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verve
O inadmissível feito história

o inadmissível feito história


(a ley de residencia de 1902 e a ley de defensa
social de 1910 na argentina)

0
gabriela anahí costanzo*

I.

No início do século XX, na Argentina, foram sancio-


nadas pelo Congresso Nacional duas leis de perspicácia
imprescindível para a história em geral e para a luta
operária em particular: a Ley de Residencia, em 1902
e a Ley de Defensa Social, em 1910. Era uma época
marcada pela chegada de milhares de imigrantes que se
somavam ao mundo dos trabalhadores. Estes homens
e mulheres tinham fugido do desemprego, da fome, da
pobreza e acreditavam encontrar nesta nova nação,
uma nova oportunidade. A partir de 1853, os chamados
pais fundadores começaram a fomentar a imigração. A
Constituição daquele ano, em seu preâmbulo, convo-
cava os trabalhadores a fazer parte do país. Embora
esperassem por imigrantes anglo-saxões, alemães, es-
candinavos que contribuíssem para modernizar ou “ci-
vilizar o território quase bárbaro”, chegavam aos portos
camponeses, operários e trabalhadores do Mediterrâ-
neo. A Ley Avellaneda criava um marco legal de gran-

* Licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais da


Universidade de Buenos Aires e Professora Assistente em Comunicação II.

verve, 15: 229-248, 2009


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de alcance e estabelecia um Departamento Geral de


Imigração; segundo esta legislação, os recém chegados
seriam alojados, alimentados nos cinco primeiros dias,
receberiam emprego e seriam transportados para um
lugar de domicílio definitivo.1 Para Gustavo Zaragoza,
autor de Anarquismo argentino, “Buenos Aires, ‘a gran-
de aldeia’, experimentou um crescimento espetacular
devido a imigração, passando de 200 mil habitantes em
1869, a mais de 300 mil em 1878, ultrapassou meio
milhão em 1890 e chegou a um milhão em 1905. Nos
três censos de Buenos Aires de 1887, 1895 e 1904, os
estrangeiros representavam sempre mais da metade da
população”. Entre 1891 e 1909 os italianos eram 53,6%
do total de imigrantes que chegavam à Argentina, e os
espanhóis eram 29,5%.2
Os governos da época conservadora em política
e no social, e liberal em economia, tinham uma
preocupação principal que consistia em ampliar os
lucros derivados da importação e exportação. Da lã
à carne, o foco estava em garantir os benefícios da
elite que dirigia estes negócios e que além disso os
representava. As presidências de Julio Roca (1880-
1886 e 1898-1914), Juárez Celman (deposto pela
revolução de 1890), Carlo Peregrini (1890-1892), Luis
Sáenz Peña (1892-1895), José Uriburu (1895-1898),
Manuel Quintana (1904-1906) e José Figueroa Alcorta
(1906-1910), mantiveram o domínio hegemônico da
oligarquia, continuando o programa liberal herdado
mas com os olhos voltados sempre na Europa, fonte
de inspiração e ambição. Os interlocutores com os
quais dialogavam eram a Sociedad Rural Argentina
desde 1886, a Unión Industrial Argentina desde 1877,
o Centro Industrial Argentino de 1878 e a Cámara
Mercantil.

II.

230

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verve
O inadmissível feito história

O cenário da época mostra o esboço de uma velha


imagem no tempo, em branco e preto, por momentos pi-
toresca e em outros melancólica, lembrando que a his-
tória se satisfez em relatar, como um realismo mágico,
as narrativas de bisavós sobre a chegada ao porto de
Buenos Aires, depois de uma longa viagem. Dessa mes-
ma imagem foi recortada de duas maneiras uma parte
importante, profunda, trágica, maldita e inadmissível.
O cadinho de raças em que se prepararam as bases da
unificação nacional não foi homogêneo e igualitário; ao
contrário, fez-se com muitos sacrifícios e esforços dos
imigrantes dispostos a viver sob condições precárias de
existência, com baixas remunerações e intermináveis
jornadas de trabalho.3 Foi a onda imigratória convo-
cada a lavrar e a trabalhar no campo. De outro lado,
também chegavam ao país imigrantes com tradição e
militância política que se integraram aos argentinos e
começaram a compor um pensamento libertário local
com influências e matizes principalmente espanholas e
italianas. Desta maneira nascia o Anarquismo no final
do século XIX, atuando na sociedade incomodando, cri-
ticando e tentando desvelar a trama política e econômica
do sistema.
O pensamento libertário procurava contrapor prá-
ticas culturais e sociais descentralizadas ao sistema
autoritário de desigualdade e repressão por meio de
experiências solidárias, éticas e modernas. Entreme-
avam ou eram filtrados no anarquismo dessa época,
traços dos pensamentos positivistas e até cientificistas,
unidos ao paradigma de então que imortalizava o pro-
gresso e a evolução das sociedades como lei superior
e transcendente. A ciência era considerada símbolo e
ferramenta na luta e na oposição aos princípios dog-
máticos religiosos. Segundo Juan Suriano, “ciência e
razão se convertiam em elementos iluminadores e re-
veladores que guiavam a humanidade da ignorância ao
conhecimento, da autoridade à anarquia e da reação à
revolução e à liberdade.”4 Os preconceitos religiosos eram
considerados pelos anarquistas como hipóteses da cria-

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ção do mundo, que serviram para que alguns homens


enganem, explorem, torturem e matem outros homens.
O conhecimento pela ciência era a fonte indispensável
para clarificar aquelas idéias evasivas sobre a vida. O
anarquismo encontrava explicações, também em outras
concepções como as leis, a política, o trabalho, o patrio-
tismo e a sexualidade que iam em sentido oposto ao da
época. Procuravam combinar os significados destas no-
ções para converter o operário em homem consciente e
ativo na história; um pensamento demasiado moderno
para uma modernidade incipiente.
A importância das atividades culturais nas sociedades
de resistências, nos centros, nos círculos, nas bibliotecas,
na própria federação era essencial ao ideal libertário. A
propaganda por meio de um periódico, conseqüentemen-
te, era para os anarquistas o instrumento principal para
a difusão das idéias ácratas e ferramenta para a deses-
tabilização do equilíbrio imperante. Em 1897 nascem La
Protesta Humana e Ciência Social.5 O anarquismo argen-
tino se nutriu de personalidades que chegavam ao país
para professar idéias ácratas, entre eles Errico Malatesta
e Pietro Gori, e que contribuíram para fomentar a corrente
organizadora6 que buscava sistematizar as reivindicações
operárias. Por exemplo, a criação do Círculo de Estudios
Sociales, do periódico La Questione Sociale e a redação
do estatuto da organização dos padeiros, correspondiam
à tarefa de Malatesta. Gori, igualmente, segundo Iaacov
Oved,7 contribuiu ideologicamente para o movimento e
com sua atividade propagandística atraiu para o anar-
quismo intelectuais argentinos como Pascual Guaglione,
Félix Basterra e Alberto Ghiraldo. Pouco depois da chega-
da de Gori a Buenos Aires foi criado o marco inicial dos
círculos anarquistas na Argentina: a Federación Libertaira
de los Grupos Socialistas Anarquistas de Buenos Aires.
Entre 1900 e 1902 os movimentos grevistas obtive-
ram uma dimensão extraordinária, tanto em Buenos
Aires como em diferentes portos do rio Paraná. Para se
ter uma noção disso, o novo século começou com uma

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grande greve de 4.000 portuários. Esta se ampliou em


1901 com as greves dos marinheiros e foguistas da com-
panhia Mihanovich; outras aconteceram nos portos
de San Nicolas, Ramallo, Bahia Blanca e Ensenada. As
greves se estenderam pelas diferentes agremiações, en-
tre elas, a dos padeiros, dos operários da Bunge y Born,
dos trabalhadores das tabacarias de Rosário; pequenas
greves nas fábricas de guarda-chuvas e alpargatas, en-
tre trabalhadores das estradas de ferro e no ramal Bahía
Blanca a Pringles; e em setembro ocorreu o boicote ao
La Popular (cigarros). No final de 1901 aconteceram as
greves nos portos com a participação dos trabalhadores
do Mercado Central de Frutos. O período que se inicia em
19028 esteve atravessado pela intensificação da “questão
social”. Em 13 de janeiro foi organizada uma greve solidá-
ria aos estivadores de Rosário que paralisou a cidade. Até
o fim do mês pararam os ferroviários de Bahia Blanca e
os trabalhadores de bondes de Buenos Aires; em fevereiro
vieram as greves dos marinheiros e foguistas do porto da
capital; em 4 de março foi a dos trabalhadores braçais de
Barracas, La Boca e Riachuelo e no mesmo mês começa-
ram os conflitos nas empresas da fundição Vasena. No
início de abril os cocheiros se declararam em greve con-
tra uma ordem municipal que exigia carteira de trabalho;
em 26 de julho os padeiros de Buenos Aires realizaram
uma greve de grandes proporções. Nos primeiros dias de
novembro de 1902, a Federación de Estibadores, continu-
ava sua luta pela redução do peso das bolsas para 65/70
quilos. Em paralelo aos conflitos abertos em Buenos Aires
aconteceram outros nos portos do rio Paraná, especifica-
mente em Campana e Zárate, nos quais interveio a polícia
prendendo os trabalhadores. Mais uma vez, em Buenos
Aires, estourou um conflito organizado pelos trabalhadores
braçais do Mercado Central de Frutos: exigiam melhores
salários, melhores condições de trabalho e o reconheci-
mento pelos patrões de sua associação. Em solidariedade
aos acontecimentos, e como resultado da ajuda do gover-
no aos empregadores, a Sociedad de Estibadores do por-
to e a Federación de Rodados pararam também. Assim,

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aconteceu a greve geral em 22 de novembro, a mais im-


portante até aquele momento em toda América Latina: “os
barcos fundeados não foram atendidos, nas plataformas
ficaram aglomerados centenas de carroças com produtos
agrícolas, a exportação e a importação pararam, a recei-
ta aduaneira ficou reduzida.”9 A jornada terminou com a
aprovação de uma lei inconstitucional, a chamada Ley de
Residência.

III.

O que seria da história sem os homens que a fazem?


As origens da Ley de Residência estão em 1899, quando
o senador Miguel Cané apresentou à câmara um projeto
sobre a deportação de estrangeiros que perturbaram a or-
dem e a segurança nacional. Desde 1889, como cônsul na
Espanha, Cané defendia a necessidade de uma legislação
que diferenciasse a qualidade da imigração que chegava
à Argentina, porque nela se encontrava a raiz dos confli-
tos sociais. Em debate no senado, Cané dizia que junto
“aos homens de boa vontade, que chamavam para cul-
tivar o solo, exercer as artes e fincar indústrias, vieram
inimigos de toda ordem social, que chegaram a cometer
crimes selvagens, em prol de um ideal caótico, por assim
dizer, que deixava fascinada a inteligência e que esfria-
va o coração.”10 O quadro que Carné pintou na Espanha
concluía com a apresentação do projeto de lei que não foi
aprovado em 1899.
No meio de estados de sítio permanentes, mobiliza-
ções e greves gerais, a lei 4.144, finalmente encontrou
seu momento histórico e foi sancionada pelas Câmaras
do Congresso Nacional, em 22 de novembro de 1902, em
sessão extraordinária, com a presença dos ministros do
Interior, J.V. Gonzáles, o Ministro das Relações Exterio-
res, A. Drago e o Ministro da Fazenda, N. Avellaneda. A lei
tinha cinco artigos que outorgavam ao Poder Executivo a
faculdade de expulsar do país, qualquer estrangeiro con-
denado, isto é, perseguido pelos tribunais estrangeiros por

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crimes e/ou delitos de direito comum; a lei também dizia


que poderia ser ordenada a expulsão de todo estrangeiro
que atentasse contra ou comprometesse a segurança na-
cional, ou ainda perturbasse a ordem pública. Era de três
dias o prazo estipulado em lei para a saída do país, poden-
do ser ordenada a detenção até a hora do embarque.
Uma resposta contundente do Estado atingiu seu ob-
jetivo: a expulsão de centenas de anarquistas espanhóis,
italianos e até argentinos. Apenas na primeira semana,
os deportados foram quinhentos.11 A medida foi recebida
com uma greve geral convocada pela Federación Obrera
Argentina. Depois de três dias, a repressão foi intensifi-
cada, assim como a censura à imprensa e a busca por
anarquistas a serem deportados. O Estado conseguiu,
por meio da campanha de perseguição, um “novo equilí-
brio”, mas em 1903 foram retomadas as atividades como
a publicação de jornais anarquistas, sob um regime de
limitações e sob a ameaça de aplicação da lei.12
O transcurso do tempo de uma lei à outra estava mar-
cado pelo estado de sítio, as deportações de anarquistas,
a censura à imprensa, o fechamento de centros culturais
e das sociedades de resistência. As greves começaram
assim que terminou o estado de sítio em 1903.13 As co-
memorações, mobilizações e greves no 1º. de maio pros-
seguiram despertando a atenção de sempre. Apesar de
momentos de menor agitação, o movimento anarquista
permaneceu na cena política, sob a latente ameaça de
aplicação da lei. Ocorreram, ainda, fatos marcantes como
a greve de inquilinos em 1907, a chacina após a manifes-
tação da Plaza Lorea, em 1909, e o assassinato do Coronel
Ramón Falcón.
Entre 27 e 28 de junho de 1910, o Congresso Nacio-
nal aprovou a chamada Ley de Defensa Social, com a
presença e participação, na Câmara dos Deputados, dos
Ministros do Interior, Dr. Gálvez, de Relacões Exteriores,
Dr. Victorino de la Plaza, da Fazenda, Dr. Manuel M. de
Iriondo, da Justiça e Instrução Pública, Rómulo S. Naón,
de Obras Públicas, Ezequiel Ramos Mejía, e da Marinha,

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Contra-Almirante Onofre Betbeder. No dia seguinte, no


Senado, estiveram presentes os Ministros do Interior, da
Justiça e Instrução Pública, e o de Obras Públicas. A ur-
gência na aprovação foi exigida depois que uma bomba
explodiu no teatro Colón, em 26 de junho, deixando junto
a alguns feridos uma sensação de pânico e medo nos di-
rigentes políticos.
A partir de um projeto apresentado pelo deputado
Carlos Meyer Pellegrini e elaborado na companhia de
Nicolas A. Calvo e Lucas Ayarragaray, os legisladores
receberam a tarefa de modificar e redigir os artigos que
compunham as três partes que formavam a lei. Divididos
em comissões discutiram a necessidade da medida e ana-
lisaram, em poucas horas, os parágrafos e as inferências.
O capítulo 1, formado por seis artigos, estava centrado na
proibição de entrada de anarquistas no país, incluindo os
que já tinham sido expulsos pela Ley de Residência. Para
os casos de retorno ao país eram estabelecidas penas que
iam de três a seis anos de confinamento em lugar desig-
nado pelo Poder Executivo. A lei continha, ainda, artigos
sobre a responsabilidade dos empresários de transpor-
tes, capitães e agentes no ingresso de ácratas no país, e
as penas eram fixadas de acordo com o conhecimento
ou desconhecimento dos tripulantes. No capítulo 2 que
constava de cinco artigos, ficavam proibidas todas as as-
sociações e reuniões de pessoas que teriam por finalidade
divulgar idéias anarquistas ou instigar atos reprimíveis
pelas leis da nação. As associações que quisessem cele-
brar algum tipo de reunião deviam pedir autorização, e
no caso de ser outorgada esta podia ser desautorizada
caso fosse cometida alguma infração estipulada por lei.
Ficavam proibidas as insígnias, estandartes ou bandei-
ras anarquistas. O capítulo 3 destinava-se a resaltarr os
delitos estipulados pela lei, por um fato, ou escrita verbal
ou impressa. Incluía a intenção, fabricação ou posse de
explosivos com o objetivo de disseminar o medo ou susci-
tar tumultos ou desordens públicas, com penas variando
de três a seis anos. Nos 22 artigos que compunham essa
parte, dispunham de condenações que iam de três anos à

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pena de morte, segundo a magnitude da explosão de um


artefato, que implicava desde danos a edifícios públicos
até a morte de pessoas. Concluindo o capítulo, o artigo
25, reprimia a quem, por meio de ameaça ou insultos,
tentasse persuadir uma pessoa a uma greve ou ao boico-
te. A Ley de Defensa Social não distinguia os sexos para a
aplicação da condenação, somente tinha como atenuante
a pena de morte para menores de 18 anos. Entretanto, o
projeto inicial desta lei tinha como idade mínima para a
possibilidade de aplicação da pena de morte os 15 anos.
Os debates parlamentares, por meio da transcrição
do diário de sessões,14 permitem o acesso a um universo
composto de representações que tinha a classe dirigente
sobre os anarquistas, e, conseqüentemente, sobre os con-
flitos sociais.

IV.

No transcorrer dos onze anos entre a primeira apre-


sentação do projeto de Miguel Cané, em 1899, e a Ley
de Defensa Social em 1910, a visão sobre o anarquismo
permaneceu inalterada. Em alguns discursos dos legis-
ladores foi reforçada a idéia de castigo, de aumento da
pena, ou de expulsão que construíram, em sua oratória,
metáforas, figuras retóricas, que, às vezes, sugeria que
Cesare Lombroso15 encarnava no corpo de um legislador
argentino daquele momento; noutros apareciam cintila-
ções de medo que impregnavam ao discurso a sensação
de ameaça em que se encontrava; finalmente, certos dis-
cursos “mais moderados” coincidiram com a necessidade
de eliminar o anarquismo do movimento operário, apesar
de questionarem as faculdades atribuídas, nestas leis,
ao Poder Executivo; assim como, também, exigiam uma
prestação de contas aos resultados de determinados es-
tados de sítio. Seria possível traçar uma divisão e incluir
as denominações dentro de conjuntos que determinaram
os universos do descritível, do dito e do logicamente inad-
missível. No primeiro deles estariam todas as formas de

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enfermidades (exóticas): vírus, bactéria, gérmen e que


paralelamente sustentam o raciocínio higienista próprio
da relação do positivismo com as primeiras teorias da
criminologia e mais a ciência da época; o conjunto se-
guinte englobaria as qualificações voltadas a explicar o
pensamento ácrata como seita religiosa ou política, e a
partir daí derivaria a denominação de doutrinas do ódio
de caráter irracional; finalmente, o último grupo desig-
naria as práticas e ações dos anarquistas (produto das
premissas que integram os outros dois conjuntos) como
criminosos, delinqüentes, monstros, sinistros sacerdotes
da doutrina ou débeis mentais.
Os três conjuntos compõem uma definição analítica,
pois os discursos dos deputados, senadores e ministros se
justapõem, mesclam-se e se complementam para integrar
uma única voz, a que justifica as leis repressivas e a
perseguição aos anarquistas. O deputado Mariano Vedia
afirmava que a Ley de Residencia “vai contra aqueles
que pretendem retardar a consolidação do regime social,
introduzindo vírus de enfermidades que não tem terreno
propício para se desenvolver entre nós, e que somente
podem motivar comoções por um dia, como estas que
vivemos no momento atual.”16
É interessante notar como nas declarações dos de-
putados e senadores, junto com os qualificativos, apa-
recem as medidas de “cura”, em muitos casos também
“importadas” da Europa. O senador Salvador Macia, dizia
em 1910: “o mundo exterior que traz às nossas terras as
enfermidades exóticas, nos traz também os aparatos e os
meios para desinfetar e combater. A Europa, que nos deu
civilização, progresso e liberdade, com exemplos e doutri-
nas, envia-nos, também, correntes subversivas que che-
gam, como enfermidades, até nós, depois de originar-se e
desenvolve-se lá e de ali mesmo influir sobre elas (...) As-
susta-me tanto os fatos que parecem enormes e notáveis,
como os insignificantes e pequenos. Sintomas de uma
mesma onda de perturbações, impressionam os docu-
mentos dos anarquistas, como aqueles em que chamam o

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governo argentino de ‘governo provisório da Nação’, como


o fato, pequeno ao que parece, sucedido nas ruas, das
insígnias arrancadas na marra das lapelas do paletó das
crianças imóveis e indefesas das escolas primárias (gran-
des aplausos na meia grade da sala do tribunal).”17
A grande variedade de detalhes, características ou tra-
ços para denominar o anarquismo, expõe a flexibilidade
dos legisladores ao pretender construir, a partir de seus
discursos, uma entidade desumanizada, uma enfermi-
dade importada, ou em muitos casos metáforas como a
selvageria, a irracionalidade ou a monstruosidade.
O deputado Lucas Ayarragaray sustentava enfatica-
mente o dia da promulgação da Ley de Defensa Social,
que “é mister, pensava, proibir a entrada do louco, do
epilético, pois este país, senhor deputado, tem o direito
fundamental que reconhecem todas as constituições do
mundo, de defender-se por meio de leis de preservação
social dos perigos exteriores importados, seja de uma epi-
demia, um ladrão reconhecido, um condenado por um tri-
bunal de justiça, um anarquista, uma prostituta ou um
cafetão (...) nos dá a faculdade de negar a entrada no país
ao epilético, ao louco, aos degenerados, a todos esses que
são presumidos anarquistas, porque no raio de ação da
pregação ácrata, são indivíduos preparados por sua men-
talidade para o crime, para o atentado, para o incêndio,
para a bomba, e que seguramente é onde o anarquismo
internacional recruta seus melhores elementos. Porque
o anarquismo, senhor presidente, definitivamente, está
constituído por um bando de degenerados e de fanáti-
cos que não aceitam os métodos de luta consagrados à
civilização. O anarquismo desconhece a lei principal, a
lei da evolução, que não somente governa a vida das so-
ciedades, mas que governa todo universo.18 O deputado
integra num mesmo grupo uma interessante variedade
de sujeitos socais, todos condenados e perseguidos na
época e cada um como uma ameaça para a sociedade:
na saúde, na moral, no social, na política. O perigo de
infiltração no país é a maior intimidação aos valores que

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compõem a “civilização e os bons costumes”. Patrício An-


drés Geli, sustenta que o “novo discurso criminológico,
cuja eficácia social residiria duplamente na atribuição de
status científico à imagem dominante do delinqüente ela-
borada pela imprensa e a literatura, e na capacidade para
diminuir a margem de incerteza, contribui para se pavi-
mentar uma via infalível para detectar o sujeito perigo-
so. Este critério preventivo reconhecia como pedra basal
a noção de criminoso nato (tipo biossocial homólogo ao
selvagem, cuja origem atávica o compele fatalmente a de-
linqüir) estigmatizado segundo determinados caracteres
antropométricos, fisionômicos e certos comportamentos
associados a atributos considerados definidores do primi-
tivismo: o uso da gíria, a tatuagem e o jogo.”19
O deputado Eduado Oliver caracterizava os anarquis-
tas como “hordas de criminosos..., sim, senhor presiden-
te, este é o anarquista que propõe o extermínio e dissolu-
ção do existente; que declara desonesta e publicamente
não ter lei, nem pátria, nem religião; que prepara na som-
bra os meios mais mortíferos para assassinar impune e
indistintamente anciãos, mulheres indefesas e crianças
inocentes. Defendo, senhor, que estes monstros estejam
fora de toda lei social que os ampare. Não são necessários
discursos, senhor presidente, para demonstrar que o
anarquismo nestas condições é o delito mais infame e
covarde, e assim demonstram os diferentes fatos pelo
mundo que falam por si com maior eloqüência do que
posso dizê-lo hoje.” 20
Uma das preocupações fundamentais que aparecem
tanto em 1902 como em 1910, é o perigo para o desen-
volvimento da economia. Como representantes dos be-
nefícios da indústria vários legisladores compartilham,
como no caso do deputado Rufino Varela Ortiz, que “uma
vez olhando o próprio interesse, iremos ao ponto que mo-
tiva a discussão do projeto cuja sanção solicita ao Poder
Executivo deter o perigo, a ameaça, a séria ameaça que
o interesse próprio econômico e social sofre no presente
momento.”21 A ênfase da classe dirigente estava focaliza-

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da em reproduzir as condições necessárias para manter


o modelo econômico e continuar obtendo benefícios. Mas
as greves, as paralizações, os boicotes e as manifestações
atentavam contra, então a única solução que acreditavam
possível era o recrudescimento das leis, o aperfeiçoamen-
to e a especialização da polícia, para eliminar do contexto
político o anarquismo que ameaçava constantemente a
legitimidade do sistema e a maneira como se desenvolvia
a vida cotidiana.
Para finalizar, o deputado Ayarragaray, explicava numa
dessas sessões, a importância da seleção do tipo de imi-
gração, que para além da proibição ao anarquismo, tinha
como principal objetivo a consolidação étnica da nação
Argentina, “e é contra essa situação que este país que já
tem elementos étnicos muito inferiores, em sua popula-
ção, deve se precaver, trazendo elementos de ordem su-
perior, selecionando a corrente imigratória para incorpo-
rar os elementos sãos e poder assim ter uma boa raça
futura, bem constituída fisiologicamente sobre bases
étnicas depuradas.”22 E continuava: “não necessitamos
da imigração amarela, somente pais e mães européias,
de raça branca, para superiorizar (sic) os elementos híbri-
dos e mestiços que constituem a base da população deste
país.”23 Então, a história da chegada dos imigrantes ao
país não terminava quando desciam do navio, pois mui-
tos dos recém-chegados não eram os habitantes que se
desejava, por não serem anglo-saxões ou por terem uma
posição política determinada. A classe dirigente da época
encontrava as origens dos conflitos sociais na imigração,
na ingerência de outsiders, militantes operários ou na re-
alização de manifestações ou protestos como tumultos
que paralisavam a indústria.
O anarquismo, principalmente por meio do jornal La
Protesta, construiu uma visão, um universo, a partir do
qual explicava as leis, e, em conseqüência, a classe diri-
gente. Do lado oposto do limite, este outro universo que en-
frentavam era o sistema capitalista, origem da exploração,
das desigualdades sociais, da opressão, da escravidão, da

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iniqüidade: o inadmissível. A linha que tentava dividir os


dois universos era intransponível. Para o anarquismo,
o Estado, com todas suas instituições, reproduzia e ga-
rantia a ordem social e não acreditava em nenhum tipo
de diálogo ou negociação com os políticos e funcionários,
pois em nenhum caso estes atenderiam às necessidades
proletárias de liberdade plena e igualdade absoluta.
As longas caracterizações e descrições sobre as qua-
lidades das leis e os objetivos de suas utilizações se
repetem em diferentes edições. Em 14 de fevereiro de
1903, Alberto Ghiraldo, em La Protesta, argumentava: “a
aprovação da lei iníqua como a de expulsão de estran-
geiros, lei draconiana, covarde e cruel, põe nas mãos do
poder policial a vida e a obra de homens conscientes e
altivos que lutam por obter um alívio em sua vida de
explorados.”24 Na continuidade da crítica aparece tam-
bém a construção da figura do anarquista como homem
consciente em luta constante contra a dominação. Em
14 de março do mesmo ano é publicado em La Protesta, “a
lei é uma boa espada para quem a empunha na mão.”25
A apresentação da lei tinha traços semelhantes às lettres
de cachet da França do século XVIII, pela qual o rei pos-
suía atribuições diretas para punir as pessoas e levava
no cabo da espada a possibilidade de prender o indiví-
duo.
Em 1904, as descrições mantinham o mesmo tom: “a
lei de residência é má, é brutal, é demasiado esmagadora.
Não a queremos. Não a admitimos. Menos ainda porque é
uma imposição de barbárie.”26 Os qualificativos barbárie
e civilização são utilizados no discurso dos anarquistas
para designar as ações do governo argentino. Seu uso é o
exato contrário ao utilizado pela classe dirigente ao anar-
quismo. Todavia, o paradigma iluminista, e em alguns
casos higienista, filtrava os discursos da época, inclusi-
ve no pensamento ácrata, que não ficou isento de incluir
em sua linguagem aquelas denominações que supunham
uma premissa evolucionista. Por exemplo, em 14 de ju-
lho de 1904, La Proteta afirmava: “a lei de residência

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marca um passo atrás na marcha do país no sentido da


involução.”27
Em 1910, o diário publicava, “o governo argentino de-
creta leis tão terríveis e bárbaras sem procedentes na
história. A Rússia, a nação mais autocrática do mundo,
não possui leis tão atentatórias e iníquas contra a liberda-
de individual e coletiva como as promulgadas ultimamen-
te na Argentina.”28 As comparações com países como
a Rússia procuravam mostrar a pouca importância
atribuída pelo anarquismo aos regimes políticos, ape-
sar de denunciar as medidas repressivas do Estado; a
comparação não aprofundava as magnitudes e alcances
que aquele tipo de lei tinha em um país com intenções
democrático-burguesas.
Depois de oito anos de promulgação da Ley de Residência,
a Ley de Defensa Social era a nova ferramenta contra o
pensamento libertário. A quatro dias da sua promulgação
o La Protesta afirmava, direto do Uruguai: “modificada
a mesma lei de residência pela qual não poderá habitar
terras argentinas nenhum amante da liberdade e do
espírito livre; somente poderá vegetar naquele solo virgem
o que se submete ao látego do tirano, à lâmina do capanga
e à exploração do capitalista. O mais breve protesto a
esta trindade de rapina implicará a imediata expulsão do
país. Não será permitida nenhuma publicação libertária
nem informações de associações ácratas, e o correio
não fará entrega de nenhuma publicação revolucionária
do exterior; as agremiações operárias serão dissolvidas
acusadas de perturbadoras da harmonia entre o capital e
o trabalho, e não se tolerarão as greves, com duras penas
aos que as propiciem.”29
A trama que pretendia armar o anarquismo sobre as
leis de repressão encontrava correlação na definição de
classe dirigente/legislativa. As caracterizações das leis não
foram os únicos elementos mencionados nos artigos do La
Protesta; a construção de um inimigo visível, que encar-
nava e defendia as medidas estatais se transformava em
outro protagonista, com seus próprios traços e atitudes.

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O anarquismo sustentava e englobava sob a caracteriza-


ção de sistema capitalista todas formas de exploração sem
buscar matizes em país ou região e as identificava com o
mesmo sistema de desigualdades, e procurou esboçar as
características dos legisladores como servis escravos do
sistema. Em paralelo, construiu um outro completamente
despojado de qualquer idéia de justiça e liberdade, o que
era necessário para a denominação voltada propriamente
ao pensamento ácrata. Desde as descrições das qualida-
des, que supostamente seriam inerentes aos legisladores,
até a inclusão dos funcionários sob a categoria de clas-
se dirigente, estas foram maneiras de abordar um objeto
complexo composto de manejos parlamentares e posições
de classe.
Em diversas notas aparece a referência à ignorância
dos deputados e senadores no momento de votar ou apli-
car a Ley de Residência e de Defensa Social, sob a presun-
ção de que tomaram estas medidas por desconhecimento
dos conflitos sociais e não por uma decisão de governo
para garantir o sistema social. Em 14 de julho de 1904, La
Protesta sustentava em matéria de capa que “ignorância
demonstram possuir os legisladores, pretendendo em vão
conter o avanço triunfal do grandioso ideal libertário.”30
Noutro caso, um ano antes, fundamentavam a ignorân-
cia afirmando que “por maior que seja sua ignorância o
General Roca e seus homens de governo deviam saber
que iguais ou parecidas foram as medidas tomadas na
França, sob o puro preconceito de que as manifestações
operárias, eram obra de sectários propagandistas e não
fruto de uma reação lógica contra a ordem social.”31
Em conjunto com as características das leis da clas-
se dirigente, La Protesta publicava, em suas edições, sob
a forma de denúncia, os nomes dos deportados, as per-
seguições, as detenções ilegais (como no caso do diretor
argentino de La Protesta, Valenzuela, detido e interrogado
em 1903, sob a Ley de Residência), as torturas, as pri-
sões ou a formação de um saber sobre os militantes do
anarquismo — por meio dos registros antropométricos

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O inadmissível feito história

ou das extensas listas de informações secretas da polícia


especializada —, que governavam o contexto no qual o
ácrata era o sujeito perigoso da época. O diário libertá-
rio publicava no 1º de maio de 1903: “as expulsões fo-
ram aplicadas com uma brutalidade inédita a honestos
trabalhadores, pais de numerosas famílias estabelecidas
na República há muitos anos, onde nasceram seus filhos
de nacionalidade argentina. Estes homens de bem, pelo
fato de tomarem parte nas manifestações operárias ou de
haver expostos livremente seu pensamento foram detidos
como bandidos e deportados aos seus países de origem,
sem conceder-lhes sequer uma hora para prepararem-se
para uma improvisada viagem. A brutalidade do procedi-
mento policial foi tal que impedia a muitos expulsos des-
pedir-se da esposa, dos filhos, da mãe. Foi uma aberração
inqualificável.”32
As leis de residência e defesa social foram medidas
atentatórias dos direitos civis e sociais dos indivíduos,
ao mesmo tempo definiam o caráter persecutório e au-
toritário do Estado moderno, neste caso, eliminando os
anarquistas do plano político. As representações e os ar-
gumentos do Diario de Sessiones ao La Protesta definiram
o limite exato entre dois universos, duas visões cruzadas,
inadmissíveis, intoleráveis, indevidas e até por momentos
incoerentes e que compunham significados correspon-
dentes ao lugar histórico preciso na luta de classes no iní-
cio do século XX. Definitivamente, uma imagem de época
recortada por uma história maldita.

Tradução do espanhol por Edson Passetti.

Notas
1
Gonzalo Zaragoza. Anarquismo argentino. 1876-1902. Madrid, Ediciones de la
Torre, 1996, p. 24.

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2
http://www.revistapersona.com.ar/11Ramella08-3.htm. Formatado a partir
dos dados de Juan A. Alsina, La inmigración en el primer siglo de la Independência,
1910, p. 22.
3
Segundo Iaacov Oved, em 1901, viviam em Buenos Aires 235.000 assala-
riados entre os operários, empregados, servidores públicos, carroceiros, etc.;
contudo, naquele ano havia 46.500 desempregados, isto é, 25% dos assalaria-
dos. E 5,5% da população total da cidade padecia de escassez e precariedade
material permanente.
4
Juan Suriano. Anarquistas, Cultura y política libertaria en Buenos Aires 1890-1910.
Buenos Aires, Editorial Manantial, 2001, p. 43.
5
Sobre as publicações anarquistas no início do século XX, ver Gonzalo Zara-
goza, 1996, op. cit.; Juan Suriano, 2001, op. cit.
6
No início do pensamento ácrata havia duas tendências: a individualista e a
organizadora, que representavam pequenos grupos movidos para a propagan-
da de idéias. Cada uma tinha concepções próprias sobre a luta revolucionária,
sobre a visão e o papel que devia ter o anarquismo na cena política. A corrente
que prevaleceu foi a organizadora, que além de nutrir-se de diversas personali-
dades, supôs traduzir as necessidades do proletariado argentino.
7
Iaacov Oved. “El trasfondo historico de la Ley N° 4.144 de Residencia” in
Desarrollo Econômico, Buenos Aires, 1976, n° 61, v. 16.
8
A cronologia das greves que precederam a Ley de Residencia foi extraída de
Iaacov Oved, 1976, op. cit., pp. 142-143; Juan Suriano. “El Estado argentino
frente a los trabajadores urbanos: política social y represión, 1880-1916” in 14
Anuario, segunda época, Rosario, UNR Editora, 1990.
9
Iaacov Oved, 1976, op. cit., p. 147.
10
Cámara de Senadores, Congreso Nacional. Diario de sesiones. República Ar-
gentina, 8 de junho de 1899, p. 135.
11
Iaacov Oved. El anarquismo y el movimiento obrero en Argentina. México, Siglo
XXI Editores, 1978, p. 275.
12
O deputado socialista Alfredo Palacios apresentou em 1904 um projeto de
anulação da Ley de Residencia. O debate durou alguns dias no senado, porém
a lei foi mantida.
13
Apenas entre 1902 e 1910 foram promulgados cinco estados de sítio, que
duraram 18 meses no total, sob a alegação de prevenção contra as demons-
trações operárias.
14
O diário de sessões é a transcrição do debate parlamentar, e ao mesmo tem-
po, é uma transposição genérica (da fala ao texto).

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O inadmissível feito história

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As teorías de Cesare Lombroso — um dos fundadores da Escola Positivista
de Direito Penal, no final dos anos 1800 — sobre as topologias fisiológicas dos
criminosos em sua procura e identificação abriram um caminho para a certeza
nas respostas científicas. A repercussão que estas tiveram na Europa orientou
as primeiras leis de repressão ao movimento anarquista. E nas terras rioplaten-
ses, constituíram-se em razões e justificativas para determinados legisladores
atirarem sobre os sujeitos indesejáveis para o país, as características corporais
que determinavam se uma pessoa poderia converter-se em criminosa.
16
Cámara de Diputados, Congreso Nacional. Diario de Sesiones, República Ar-
gentina, 22 de novembro de 1922, p. 432.
17
Cámara de Senadores, Congreso Nacional. Diario de Sesiones, República Ar-
gentina, 14 de maio de 1910, p. 125.
18
Cámara de Diputados, Congreso Nacional. Diario de Sesiones, República Ar-
gentina, 27 de junho de 1910, p. 326.
19
Patricio Andrés Geli. “Los anarquistas en el gabinete antropométrico. Anar-
quismo y criminología en la sociedad argentina del 900” in Entrepasados. Bue-
nos Aires, 1992, n° 2, p. 10.
20
Cámara de Diputados, Congreso Nacional. Diario de Sesiones, República Ar-
gentina, 27 de junho de 1910, op. cit., p. 295.
21
Cámara de Senadores, Congreso Nacional. Diario de Sesiones, República Ar-
gentina, 23 de novembro de 1902, p. 432.
22
Cámara de Diputados, Congreso Nacional, 27 de junho de 1910, op. cit., p.
325-326.
23
Idem, p. 326.
24
Alberto Ghiraldo. “Sobre la ley de expulsión. Un descubrimiento y una opi-
nión” (Fragmento) in La Protesta Humana, 14 de fevereiro de 1903, p. 1.
25
“Otro deportado: Salvajismo policial inaudito” in La Protesta Humana, 14 de
março de 1903, p. 4.
26
“Semanas” in La Protesta Humana, 17 de julho de 1904, p. 1.
27
“La ley de Residencia” in La Protesta Humana , 14 de julho de 1904, p. 1.
28
“La tragedia en Buenos Aires; ¿Quién tiró la bomba?, Las Leyes terribles” in
La Protesta Humana, 2 de julho de 1910, p. 1.
29
“La Federación Obrera Regional en Uruguay” in La Protesta Humana, 2 de
julho de 1910, p. 1.
30
“La ley de Residencia”, 14 de julho de 1904, op. cit., p. 1.

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31
“Sigue la razzia: Deportaciones, arrestos, persecuciones” in La Protesta Hu-
mana, 31 de janeiro de 1903, p. 1.
32
“La apertura del Congreso y la Ley de Expulsión” in La Protesta Humana, 1º
de maio de 1903, p. 2.

RESUMO
Antecedentes e efeitos jurídico-repressivos do Estado contra
anarquistas no início do século XX na Argentina.

Palavras-chave: anarquistas, greves, estado de sítio.

ABSTRACT
The juridical-repressive antecedents and the effects of the
State against anarchists in the beginning of the 20th century
in Argentina.

Keywords: anarchists, strikes, state of siege.

Indicado para publicação em 8 de setembro de 2008.

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Luis Andrés Edo (1925 – 2009), um anarquista de verdade

luis andrés edo (1925 – 2009),


um anarquista de verdade
0
doris ensinger

Não vou relatar neste artigo a vida de Luis Andrés Edo


porque há inúmeros textos que já o fizeram e contam as
fases mais importantes de sua vida — sua luta contra a
ditadura de Franco, os anos na prisão e sua contribuição
às discussões sobre a sociedade pós-franquista, a cha-
mada “transição à democracia”, e sua reivindicação por
uma ruptura com o regime anterior. Em suas memórias,1
a serem publicadas em breve no Brasil, refletiu sobre sua
vida e os últimos oitenta anos da história da Espanha, a
CNT e o exílio forçado daqueles que tiveram que fugir ao
final da Guerra Civil. Pensei, então, em descrever o Luis
que conheci e com quem vivi por tantos anos, período
que para mim significou um privilégio especial e um
presente inigualável.
Desde que conheci Luis, no final de 1977, sempre o
considerei o homem mais humano. Neste grande e tão
diverso movimento anarquista-libertário, com tantas
pessoas incríveis, generosas e humanistas, não encon-
trei ninguém como ele. Para mim, Luis personificava
exatamente o que disse Melchor Rodríguez, outro anar-
quista e um companheiro muito apreciado por Luis, em
um recente poema:

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“Anarquia significa:
Beleza, amor, poesia,
Igualdade, fraternidade, sentimento, liberdade,
Cultura, arte, harmonia,
A razão, suprema guia,
A ciência, sublime verdade,
Vida, nobreza, bondade,
Satisfação, alegria,
Tudo isto é anarquia
E anarquia, humanidade”

Luis Andrés vivia todas e cada uma destas palavras e


conceitos. O amor guiava sua vida, o amor pela própria
vida, pelo coletivo e pelos demais, a quem sempre tratava
com apreço e respeito, amor pela idéia. Costumava dizer
“eu não escrevo poesia, faço poesia”.
Para ele, sua defesa de um companheiro expulso
da Organização por unanimidade que, como explicava,
foi fato único na história da CNT, era um ato poético.
Laureano Cerrada financiava todas as ações contra a
ditadura de Franco nos anos 40 e 50, mas um dia foi
declarado culpado por uma ação que disseram danar a
imagem da CNT no exílio. Luis se colocou ao seu lado
por considerar que a Organização o transformou em
um bode expiatório.
Não havia nada irracional nele. Ele atuava sempre
com um sentido comum, e previa sempre as conseqüên-
cias, analisando e meditando profundamente sobre os
assuntos. Sim, era a razão que o guiava.
Desde muito jovem, ele se interessava por diversos
assuntos e era um aluno muito aplicado que, como ex-
plica em suas memórias, foi batizado em “sete ciências”.
Aos 14 anos, teve que deixar a escola para trabalhar,
porque seu pai desapareceu nos últimos da Guerra e,
com ele, o sustento da família. Ainda assim, manteve

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Luis Andrés Edo (1925 – 2009), um anarquista de verdade

a “sede pelo conhecimento” e, durante sete anos, fre-


qüentou a Escola Industrial à noite para ampliar sua
formação. Jamais deixou de estudar e de ler; a Ciência
se converteu no foco de seu interesse e a leitura em
uma de suas paixões.
As idéias fundamentais da Revolução Francesa —
até hoje meros postulados e reivindicações, não uma
realidade, na maior parte do mundo, e agora de novo
ameaçados —, a liberdade, a fraternidade e a liberdade,
não eram para ele apenas retórica. Ele os vivia. Não
preciso dizer que nele não havia nenhum traço de com-
portamento patriarcal e machista, já que tratava a to-
dos como iguais com um autêntico espírito fraternal.
O diálogo e o compromisso eram outros traços carac-
terísticos dele. Podia discutir com veemência, brigar, mas
ao final de uma discussão buscava sempre a concórdia,
tal como o significado original da palavra harmonia: a
arte de abraçar o contrário em sua totalidade.
A bondade e a generosidade são características res-
saltadas por muitos que o conheceram. Bondade no
sentido de que o sofrimento do outro, dos demais, é
determinante para a atuação de uma pessoa, mais do
que sua própria vontade. Ao se colocar no lugar do ou-
tro, passou a lutar contra a injustiça e a apoiar, por
exemplo, os presos mais indefesos, os presos sociais ou
comuns.
Os pequenos sucessos que conseguiu nessa luta
contra o sistema carcerário, ou de (in)justiça, foram
sua maior satisfação. Satisfação e alegria encontradas
também no cotidiano, nas pequenas coisas da vida: seu
maior prazer, sua maior satisfação era seu prato prefe-
rido, as lentilhas, ou “as lentilhas do Dr. Negrín”, como
costumava dizer, em alusão ao alimento indispensável
para lutar contra a fome durante a Guerra Civil e anos
seguintes.
Algumas pessoas, companheiros no Brasil, puderam
conhecer este homem excepcional. Ele teve um amigo

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diplomata, José Ignacio Martín-Artajo, a quem prome-


teu visitar onde o Ministério o enviasse. Assim, em 1984
viajamos à Venezuela e, depois ao Brasil, em 1991. Luis
nunca fazia turismo e quando viajava era sempre com
um propósito definido. A partir de anotações em meu
diário de viagem, pude reconstruir um pouco o que
movia Luís naquela visita.
***
Em São Paulo, deu uma conferência sobre anarco-
sindicalismo e visitou o Centro de Cultura Social, onde
conversou com Jaime Cubero, Decio, Plinio e outros
companheiros sobre o “projeto 92”, ações ou jornadas
planejadas contra os festejos dos 500 anos. É bastan-
te provável que tenha falado também sobre o projeto
de 93, o grande encontro anarquista que aconteceu em
setembro e outubro daquele ano, em Barcelona, com
o título de “Anarquismo: Exposición Internacional”. A
viagem a Porto Alegre teve um objetivo muito especial,
já que pretendia convencer Helios Puig, o filho de Juan
Puig i Eliás, fundador do CENU (Consejo de la Escuela
Nueva Unificada) — o sistema escolar da Catalunha
durante a Guerra Civil — a ceder a documentação de
seu pai aos arquivos da CNT. Ele achava que poderia
voltar à Espanha com uma mala de papéis, mas ao
fim essa mala — ou baú — acabou ficando mesmo em
Porto Alegre. Lá ele também foi entrevistado por uma
emissora local de TV e deu uma palestra na Casa dos
Economistas. Desta última atividade, tenho uma lem-
brança muito especial: os organizadores pediram para
eu sentar ao lado de Luís e, depois de sua fala e algu-
mas perguntas, o moderador perguntou ao “professor
Edo” se tinha mais comentários a fazer. Ele respondeu,
“Não, não tenho nada a acrescentar, mas a companheira
Doris tem muito a dizer sobre o movimento alternati-
vo alemão”. Assim, bastante incomodada por “começar
do nada”, iniciei, sem preparação alguma, a falar dos
anos 60 e 70 na Alemanha, quando foi criado o grande
movimento resultante das famosas mobilizações de 68,

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Luis Andrés Edo (1925 – 2009), um anarquista de verdade

também falei da República Democrática da Alemanha e


da queda do Muro, ocorrida um ano antes. Em segui-
da, perdoei Luis porque todo o público me escutou com
muita atenção e interesse.
***
Nessa viagem, consegui uma concessão de Luis: a
caminho de Brasília, verdadeiro destino da viagem,
fizemos uma escala nas Cataratas do Iguaçu. Mais
tarde, comentou sobre “aquela quedinha d’água”, mas
ficou mesmo assombrado e maravilhado com esse es-
petáculo da natureza: a força e o ruído da água, as
centenas de quedas e o arco-íris, e não se arrependeu
de ter sido uma vez infiel a seu princípio do não-turis-
mo. Por último, quero destacar a grande hospitalidade e
cordialidade com as quais fomos recebidos em todos os
lugares durante essa viagem. Apesar da distância e do
tempo, ainda penso com muito afeto e carinho em todas
as pessoas que nos receberam com tanta amabilidade e
amizade e nos abriram suas casas.
É difícil descrever Luis Andrés Edo em poucas li-
nhas, mas espero que estas sirvam para mostrar como
ele era um homem muito especial e como disse no co-
meço, o homem mais humano.

Barcelona, 18 de março de 2009.

Tradução do espanhol por Gabriel Passetti.

Notas

1
Luis Andrés Edo. La CNT en la encrucijada. Aventuras de un heterodoxo.
Barcelona, Flor del Viento, 2006.

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RESUMO
A autora e companheira de Luis Andrés Edo traz um pouco da
generosidade e poesia da vida dele e das próprias experiências
com esse corajoso anarquista que tomou parte da CNT e lutou
contra a ditadura franquista.

Palavras-chave: Luis Andrés Edo, anarco-sindicalismo e


anarquia.

ABSTRACT
The authoress, who was Luis Andrés Edo’s partner, brings
some of the generosity and poetry of his life, and even her own
experiences with this courageous anarchist who had joined
CNT and fought against Franco’s dictatorship.

Keywords: Luis Andrés Edo, anarcho-syndicalism, anarchy.

Indicado para publicação em 23 de março de 2009.

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verve
Tragédia e comédia: uma peça cubista...

tragédia e comédia: uma peça cubista


“estrutura da tragédia segundo sófocles”1

0 goodman
paul

Paul Goodman, um anarquista.

por beatriz scigliano carneiro*

Nos anos 1960, rebeliões de jovens eclodiram pelo


mundo. Um dos epicentros encontrava-se nos Estado
Unidos, onde estudantes, ativistas negros, feministas,
pacifistas sacudiram o conservadorismo do país que
parecia estável desde o pós-II guerra. Entre a muni-
ção, não apenas para subsidiar argumentos para os
protestos, mas para novas práticas de inspiração li-
bertária, estavam os textos de Paul Goodman (1911-
1972), escritor e ativista, em especial o livro Growing
up absurd (Crescendo no absurdo), lançado em 1960,
após ter sido recusado por vários editores.2 A questão
básica do livro consistia em afirmar a inexistência de
atividades e empregos que desenvolvessem os talentos
únicos de cada pessoa, e sim o lucro ou crescimento
das empresas. Isso afetaria em especial os jovens, que
se encontravam compulsoriamente dentro um sistema

* Doutora e pós-doutura em Ciências Sociais na PUC-SP. Pesquisadora no


Nu-Sol. Publicou o livro Relâmpagos com claror: Lygia Clark, Hélio Oiticica, vida
como arte, São Paulo, Imaginário/FAPESP, 2004.

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educacional disposto apenas a moldá-los tirando-lhes o


viço e o potencial inventivo.
“Certamente agora, muitos leitores estão contestando
que este argumento inteiro é fora de propósito, pois as
pessoas de fato não consideram seu emprego desta ma-
neira. Ninguém pergunta se um trabalho é útil ou nobre
(dentro dos limites da ética dos negócios). Um homem
obtém um emprego que paga bem ou o suficiente, que
tenha prestígio e boas condições, ou ao menos, condições
toleráveis. (...) Mas a questão consiste no que significa
crescer em uma realidade como esta: ‘Durante meus anos
mais produtivos eu passarei oito horas por dia fazendo
o que não serve’.”3 Apresentar tal questionamento dessa
simples e incisiva maneira atiçou a insatisfação e ansie-
dade de jovens que se dispunha a enfrentar o mundo de
seus pais e dos governantes do país. Ao lado da oferta
desses empregos inúteis e do adestramento escolar para
o sistema, na época, ocorria também a escalada da guerra
do Vietnã e a conseqüente convocação para lutar em uma
guerra sanguinária do outro lado do mundo. A sugestão
de Goodman diante de uma sociedade que parecia sem
saída era: “Se não há uma comunidade para você, jovem,
faça-a você mesmo!”4
Apesar da atividade de escritor e dramaturgo,
da invenção junto com um grupo de psicólogos da
terapia gestalt, de pesquisas sociológicas, de propostas
práticas em urbanismo e educação, de inúmeros
livros e artigos publicados desde 1940, foi nessa
década convulsiva que Goodman ganhou notoriedade.
Tornou-se figura frequente em manifestações públicas
contra o conservadorismo dos costumes de setores
do povo americano, a guerra do Vietnã e demais
políticas autoritárias dos governos dos Estados Unidos,
temas, também, sobre os quais continuou es-
crevendo e atuando. Foi considerado um dos ex-
poentes mais libertários da chamada “contra-
cultura”, movimentação de jovens nas artes e no
pensamento, que implodiu valores e comportamentos

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verve
Tragédia e comédia: uma peça cubista...

conservadores.5 Antes disso, era apenas conhecido nos


círculos mais fechados dos radicais e inventivos da
sociedade americana.
Paul Goodman nasceu, viveu e morreu em Nova Iorque,
tendo residido alguns poucos anos em Chicago e cidades
próximas. Graduou-se na universidade em 1932. Desde
criança escrevia poemas e contos, mas apenas em 1941
publicou seu primeiro livro de poesia, e no ano seguinte a
primeira parte de seu romance mais famoso: The empire
city. Junto com o irmão, o arquiteto Percival Goodman,
elaborou estudos e planos urbanísticos referentes ao
estabelecimento de uma vida comunitária dentro de
grandes cidades. Ao mesmo tempo, escreveu e publicou
ensaios em forma de livros e artigos sobre literatura, arte,
sociologia, psicologia e política. Nos anos 1940, publicou
artigos e textos literários em revistas como Partisan Review
e Politics, esta última com a colaboração do sociólogo
Charles Wright-Mills.
Durante a segunda guerra, começou também a es-
crever para a publicação anarquista Why?, e freqüentar
o grupo da revista que se reunia semanalmente na sede
nova-iorquina de Solidaridad Internacional Anti-fascista
(SIA), organização de apoio aos refugiados da revolução
espanhola, um dos poucos espaços de discussão de temas
radicais na época. Entre os freqüentadores ocasionais es-
tavam Julian Beck e Judith Malina,6 fundadores do Living
Theatre, futuros amigos e parceiros de Paul Goodman.
Entre outras atividades, a partir de 1936, foi professor
assistente de literatura na Universidade de Chicago, onde
residiu por alguns anos, e iniciou seu PHD sobre literatu-
ra, concluído em 1953, e publicado no ano seguinte, com
o título The structure of literature. Em 1941, porém, foi
convidado a se retirar da universidade, pois se envolveu
amorosamente com alunos e reivindicou sua liberdade
em manter esses relacionamentos. Entretanto, no mesmo
período em que afirmava seu interesse sexual por outros
homens, valendo-lhe a expulsão, casou-se duas vezes, e

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2009

teve duas filhas e um filho. O segundo casamento durou


até sua morte em 1972.
As experiências sexuais com homens e o fato de nun-
ca ter mantido isso em segredo foram decisivos para sua
prática libertária. Em um artigo seminal de 1969, Being
queer,7 declarou: “minha homossexualidade me fez ser
um negro.”8 No entanto, relatou que ao comentar essa as-
sociação entre homossexuais e negros com Carmichael,
ativista negro dos anos 1960, este lhe retrucou que as
desvantagens sociais de um e outro são diferentes, pois
um homossexual pode esconder sua condição e seguir
em frente, um negro não. Goodman prosseguiu, porém,
dizendo que se recusava esconder esses impulsos.9 Ape-
sar disso, percebia com clareza que socialmente era des-
qualificado apenas por manifestar tais impulsos sexuais
sem medo, ou seja, era desqualificado apenas por “ser ele
mesmo.”10
Ser negro ou ser queer não implicava em se fechar
em uma identidade de minoria, mas fazer com que essas
situações desestruturassem uma sociedade fundamen-
tada na imposição de valores e comportamentos que
moldam indivíduos e os fazem renunciar a si mesmos.
A condição de ser queer, equivalente a de ser negro, o
“inspira a desejar a humanidade mais elementar, selva-
gem, pouco estruturada, mais variada e onde as pessoas
prestam atenção uma nas outras. Esta é a condição que
deu energia ao meu anarquismo.”11
No final dos anos 1940, em função das posições po-
líticas, dos artigos e livros que publicara, Goodman foi
procurado por Frederick Perls, psiquiatra, para que o aju-
dasse a organizar manuscritos e a escrever acerca de uma
forma de terapia que buscava aprimorar. Desse modo,
nasceu uma parceria e um livro, publicado em 1951,
Gestalt therapy: excitement and growth in the human
personality, que inaugurou a terapia gestalt. Ambos au-
tores pertenciam ao grupo dos fundadores do Instituto
para a Terapia Gestalt de New York.

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Tragédia e comédia: uma peça cubista...

A contribuição de Goodman nesse livro não foi apenas a de


um editor de textos e esboços, mas de um colaborador incisi-
vo na construção da terapia gestalt, pois tinha conhecimento de
Freud, Reich, e um especial interesse por um contemporâneo de
Freud, Otto Rank, o qual minimizou o papel terapêutico de re-
memoração do passado em prol do que ocorria ‘aqui e agora’
com o paciente. Goodman participava de grupos de formação
e chegou a clinicar por alguns anos, até que uma legislação de
controle rígido das qualificações profissionais exigidas para o
trabalho terapêutico impossibilitou que continuasse. Assim re-
tornou a suas atividades literárias e de crítica. Foi quando escre-
veu os livros que ajudaram a incendiar os anos 1960.
Paul Goodman considerava-se antes de tudo um “homem
de letras”. Acompanhou o Living Theatre desde seu início, e teve
quatro peças encenadas pelo grupo nos anos 1950. “Seu trabalho
literário era caracterizado por uma combinação de tradição clás-
sica e experimentação de vanguarda.”12 Não era um intelectual
especialista, nem daquele tipo que opinava sobre variedades
de ocasião, pois as incursões pela psicologia, sociologia, crítica
cultural, ativismo marcavam-se pela pesquisa, leituras e prin-
cipalmente, experiência e intenso envolvimento pessoal.

Prefácio

Artistas sempre adaptam o objeto de imitação às proprie-


dades do meio, mas o cubismo distorce e abstrai ainda mais o
objeto para celebrar e brincar com o próprio meio ou, como dis-
se Cézanne, “reconstruir” o mundo com estruturas da pintura.
Na literatura, Stein e Cummings fizeram isso bem para a arte
de dizer, e Joyce e Beckett têm feito isso notadamente para o
personagem. Em vez de dissimular a escrita (ars celare artem),13
eles chamam a atenção para o que a escrita é e pode fazer, e por
meio disso, eles nos mostram algo original no modo como as
pessoas realmente falam e são.
Nessa peça pensei realizar alguns estudos cubistas para su-
blinhar o enredo e o pensamento dramáticos. O problema está
em contar histórias sobre pessoas, quando as pessoas são sim-

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plesmente os agentes de diferentes tipos de enredos, com os


pensamentos que motivam tais tramas. Então, posso adicionar
alguns elementos decorativos, como tochas e peles de urso ou
um pé de feijão e um bolo de aniversário.
As estruturas das peças são algumas das que analisei em A
estrutura da literatura, e abstrações adequadas do comportamento
humano são dadas em psicanálise, política e antropologia. (...) Se
as abstrações parecem fazer sentido — isto é, referem-se a algo
— é devido às estruturas fundamentais de toda arte, sejam elas
enredo ou métrica ou máscara ou gesto ou sonata ou fuga, são
de fato importantes maneiras de ser humano no mundo. Posso
até afirmar que o Soneto é uma forma “natural” tanto quanto
convencional. Não quero porém, forçar esse ponto ao extremo.
(...)
Para performances, estas peças devem ser acrescidas de de-
clamação acompanhadas de música, canções e dança. Na ma-
neira cubista, obviamente, as estradas e saídas, as interrupções,
a abertura e fechamento das portas são parte do enredo no enre-
do, ou de fato, são o enredo.

Paul Goodman
Nova York
Setembro de 1968

Prólogo

Coro: Ele é o que veio


a ser. Agora é difícil existir.

Protagonista: Eu me dediquei a obras construtivas. Meu palá-


cio é belo, minha cidade rica. Por que esta pes-
soa está provocando essa perturbação pública?

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Tragédia e comédia: uma peça cubista...

Antagonista: (O Antagonista é o mesmo homem que o Protago-


nista, mas com uma máscara diferente e permane-
cendo um passo adiante, encarnando-o) Ai!
Protagonista: No entanto, eu estou imóvel. Eu me associaria
aos seus crimes ao combatê-los. Ao invés disso
aqui me apresento, à corte suprema. No devido
tempo, eu administrarei justiça.
Antagonista: Angústia! Náusea!
Protagonista: Eu compreendo que não sou feliz. Os grandes
feitos que realizo não são aquilo que penso
querer. É triste estar apenas objetivamente sa-
tisfeito.
Mas, maldito seja este que perturba o silêncio
do tirano. Primeiro, eu dirijo meus olhos a isto.
No devido tempo, eu cerrarei meu punho.
Antagonista: O palácio e a cidade insultam-me. Eles me sufo-
cam. Foi-me feita uma ferida tempos atrás. Em
troca eu o atormento até que ele seja obrigado a
prestar atenção também em mim. Sim, ele será
movido. Nós estamos unidos em amor e ódio,
mas ele está iludido. O que ele denomina obras
construtivas são sintomas impressionistas do
grau pelo qual a ira que dissimulam é terrível.
Líder do coro: Em relação ao palácio, muitas casas têm se-
gredos. Mas vocês dois erram ao mencionar a
cidade. Ela não é dele nem tua. Mas se o rei a
embeleza, o faz com a beleza que emana de nós
para ele.
Quando virá o dia em que o povo não sofrerá
mais? Mas no tribunal apenas a verdade virá
à tona.
Protagonista: Aqui estou eu, parado na praça da cidade.
Antagonista: Você está parado na sombra. A verdade é reve-
lada pelo tempo.

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Protagonista: Não vejo nenhuma sombra, apenas esse ho-


mem monstruoso.
Antagonista: Aqui está um espelho, tua face está em uma né-
voa.
Protagonista: (Olhando no espelho) O que ele quer? É ele mor-
tífero? Invejoso? Separatista? Usurpador? Qual
eu devo lançar primeiro sobre ele?
Antagonista: Verdade! Você o lança contra mim, em ficções.
Protagonista: Meu ódio é desinteressado e absoluto, é sim-
plesmente impossível para eu viver se ele vive.
Não obstante, o tirano vitorioso deve salvar até
mesmo as vis aparências, mas no seu devido
lugar. Então, eu agora estico minha mão e o ex-
pulso da nossa cidade.
Deverei aconselhar-me comigo.
(Ele entra. Vai para dentro)
Líder: A porta bate, ele está trancado consigo mes-
mo. Não gosto disso. Tal silêncio interrompe o
suave fluxo do discurso no qual a verdade en-
contra-se refletida com agudeza. Os indivíduos
não se dão conta que no tribunal da cidade não
há nenhuma oferta de julgamento mas apenas
o sempre renovado sentimento das pessoas
que dão consolo.
Antagonista: (na porta) Adeus! Eu devo partir para a terra de
minha mãe no sul, onde o fogo move-se violen-
tamente através do espaço. Fico profundamen-
te doente nesses climas gélidos da paz civil.
(Exit.)14
Coro: O relâmpago cortando o universo a partir do
primeiro instante palpita no girar do pulso do
nosso herói. Agindo, ele cria o estado presente
das coisas. E ainda faz algo mais ser possível.
A cidade encontra-se estabelecida — tal como

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Tragédia e comédia: uma peça cubista...

está. Louvada seja a amplidão de seu alcance


e gesto. Em seu vazio as coisas tombam sozi-
nhas. Estamos atônitos, como o gesto simples
do leão é um golpe que esmaga o crânio.

II

Protagonista: Meus amigos, tendo me aconselhado comigo


mesmo, cheguei a um perturbador problema
de lógica de um perturbador problema:
Eu faço declarações universais tais como “to-
dos os homens são dessa maneira”. Por intui-
ção e longa experiência sei que estas afirmações
são verdadeiras. Agora, uma vez que sou um
homem, devo portanto ser dessa maneira. No
entanto, não acredito nessa conclusão.
Como posso evitar tal conclusão? Não porque
isso agora seria desvantajoso para mim, pois
motivações interesseiras não fazem jus ao meu
orgulho. Nem evito isso por me ser vantajoso,
na medida em que não me odeio.
Todos os homens são dessa maneira, entretan-
to, eu não acredito que eu seja. É porque sou
um caso excepcional? Pelo contrário, eu me
sinto igual a qualquer um, e de fato eu os re-
presento.
Isso me assusta — como se eu não projetasse
uma sombra. Ah! Agora sei a resposta. Eu vejo
minha sombra projetada pelo sol nessa praça,
mas esta não parece ser propriamente minha.
É que eu não sinto meu corpo. Portanto, não
sou uma substância. Portanto, eu não derivo de
uma declaração universal sobre mim como um
caso individual. Pode-se inferir apenas sobre o
real.

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Consorte: Não apenas isso. Vigiar a vontade e a ação, não


o sentimento ou a falta de sentimento. Desse jei-
to você tem realizado grandes façanhas. Senti-
mento é uma ilusão que persegue os tolos, mas
uma mudança de atmosfera revela a estupidez
deles.
Protagonista: Você está certa. Encoraja-me saber que, não im-
porta o que eu pense ou sinta, minha mão faz a
coisa certa. Mas ai! Ai! A infelicidade está intu-
mescendo em meu peito como leite materno.
Revele-se! Revele-se!
Quanto tempo pode um rei que diz a verdade e
faz o que é certo, viver uma vida de mentiras?
Consorte: Venha dormir. Esta sombra abençoada é a nos-
sa sombra.
(Exeunt.)15
Coro: O que aconteceu com o homem banido pelo
rei?
Exausto pelo caminho ele está!
Eles dizem que os sonhos são uma estrada da
realeza para o desconhecido, mas a estrada é
longa.
Depois que age, um homem vê o que está a seu
alcance.
A espada escorrega de suas mãos.
Gostaria de poder compor a disputa entre os
príncipes. A cólera não é o mal, nem mesmo
violência. Mas apenas um coração suicida con-
cebe um ódio estabelecido que amarra toda li-
berdade porque ele quer morrer.
Como poderei dar o próximo passo se não há
chão sob meus pés?

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Tragédia e comédia: uma peça cubista...

Não posso comer se não houver uma estrutura


política suportável. Esta é chamada liberdade.

III

Protagonista: Eu tive um sonho e agora apareço aqui acor-


dado e, para minha surpresa, percebo que essa
é a mesma cena, como no sonho. Por que não
continuo e represento minha vontade?
Líder: Você não a está representando?
Protagonista: Não exatamente. No sonho eu vi a cena a par-
tir de uma pequena elevação. Acima estava eu,
observando; e abaixo estavam você e os outros.
Agora, estou visualizando isso aqui na altura
dos meus olhos.
Líder: Não pode o tirano elevar-se à vontade, se assim
for seu desejo?
Protagonista: Oh! Eu fui derrubado pelo passado. E meu
corpo está pesado, pesado, não como antes,
quando não havia nada. Esta é a diferença entre
meus sonhos e a situação idêntica ao despertar.
Minha mão poderia estender-se, talvez dar um
soco, talvez pegar, mas não se pode colocar em
movimento o peso da minha mão, assim não
sei o que quero.
M. do exterior: Qual é o tirano da cidade, pois seguramente
este é o palácio?
Líder: Estrangeiro, aqui se encontra o herói em pes-
soa.
Mensageiro: Eu posso falar em público pois minha mensa-
gem será apenas compreendida pelo homem
destinado.

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Protagonista: Fale. Qualquer novidade seria boa. Mas deixe-


me te informar que eu exauri cada possibilida-
de. Não há nada novo.
Mensageiro: Então, rejubile-se! Minhas novas serão boas
para você de fato!
Protagonista: Vejam amigos! Eu estou afundado na humi-
lhação de escutar avidamente qualquer pala-
vra fora do círculo fechado de minhas próprias
idéias, eu, que costumava proferir sentenças
no tribunal.
Mensageiro: Seu passado foi diverso do que você havia
pensado. Você veio a ser um homem diferente
do que é.
Protagonista: (Dançando) Io! Io! Bendito seja!
Eu sou diferente do que me tornei.
O peso foi retirado de mim,
agora poderei realizar meu desejo.
Viver meu sonho,
Meu ódio já inflamou a cólera.
Era uma falsa responsabilidade em relação
a uma falsa voz interior que restringia o re-
presentante do povo e me fazia dizer: “toda
humanidade”. Melhor que as árvores mortas
caiam e deixem as lascas caírem onde quise-
rem. Mas o mensageiro de pés alados irrom-
peu com a nova que eu sou eu.
Arme-se! Arme-se!
(Entra apressadamente.)
Coro: Lei Divina. Pela qual todas as coisas se origi-
nam sucessivamente! É em virtude do medo
que nós, que preferiríamos apenas crescer e
florescer sem levar isso em conta, agora depo-
sitamos nossa segurança em ti. A terra treme,
mas — nós acreditamos — o centro permane-
ce. Embora muito morram horrorizados.

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Tragédia e comédia: uma peça cubista...

IV
Protagonista: (transportando-se na Máquina) Aconteça o que
acontecer! Coisas contrárias são indiferente-
mente possíveis e necessárias. Eu nunca fui
uma criança, nem cheguei a conhecer e amar o
ambiente através da preciosa mediação do cor-
po de mãe. Não há nem uma estação certa nem
uma errada. E palavras são gritos estridentes.
Dario ow dishtu ormei varuda.16
Temerariamente, eu chego ao ponto exato três
metros acima, e um pouco ao sul pelo oeste do
eixo, de onde são observadas as visões tutelares
da noite. Experimentalmente reproduzindo a
situação precisa, devemos representar confian-
temente as ideias que não têm nenhum peso
corporal.
Agora, então, chegamos ao lugar alto. Lá abai-
xo se espalha a ameaçadora praça pública e a
multidão hostil, lá se encontra minha mulher
com as mãos erguidas, e através da porta do
palácio deve aparecer o próprio herói — (A
porta de repente se abre.) Aíííií.
(Ele cai, e é carregado para dentro.)
Coro: (canção dançante) Gaia é a ciência
da felicidade quando
hostil verdade murchou
com um estado distante.

Ó Pan, renove
sempre na estação
o afrouxamento
dos músculos das flores.

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Meu filho nativo


novamente encontrou
esta terra onde
fazemos saltar quem dança.
Dissipando-se os erros
da floresta sombria
a lua levanta-se de um salto
em nossas faces surpresas.

Semicoro A: Devemos fechar a porta e excluir a lamenta-


ção?
Semicoro B: Não. Lamentação não é o mal, contanto que se
lamente lá adiante.
Semicoro A: Esvaziado de sua raiva acumulada, o palácio
se parece exatamente como nossas casas.
Semicoro B: Amigos! Não sejam rancorosos. A força do con-
solo é um consentimento solícito.
M. de dentro: Tristes notícias.
Líder: O pior evento é comum. Desta vez, qual foi a
sua maneira particular?
Mensageiro: Ele estava totalmente armado, no entanto, des-
cuidadamente desprotegido em partes vitais.
Confuso, ele duelou com sua sombra. A senho-
ra gritou: “Por piedade, vocês são amigos.” Mas
depois de uma luta desajeitada, ele golpeou-se
com perfeita convicção.
Líder: Você fala no tempo passado, então nós não es-
tamos sendo chamados a fazer nada. Segura-
mente estamos em apuros.
Antagonista: (Aparecendo na porta, sem máscara) Não fiquem
alarmados com meu retorno. Não há necessi-

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Tragédia e comédia: uma peça cubista...

dade mutatis mutandis18 de repetir os mesmos


erros. Eu deslizo despercebidamente dentro de
seu harmonioso coro.

Exodus18

Coro: Prontamente nós cantamos louvor pelo que a


coisa é
e o homem agradece por ser o que é.
Naturalmente, nós avaliamos de acordo com o
que somos,
o que nos tornamos, para onde vamos.
É difícil conhecer a substância
— minha mente está tão povoada com histórias
que
não sei por onde começar.
A sorte tem uma parte assim como a coragem

Tradução do inglês por Beatriz Scigliano Carneiro e revisão


técnica por Andre Degenszajn.

Notas
1
Tragedy & Comedy: four cubist plays. Los Angeles, Black Sparrow Press, 1970. Dedi-
cado a Julian Beck e Judith Malina.
2
John Fitzgerald. Paul Goodman biography. Disponível em http://dwardmac.pitzer.
edu/ANARCHIST_ARCHIVES/bright/goodman/goodman-bio.html.
3
Paul Goodman. Growing up absurd: problems of youth in the organized society. New
York, Vintage Books, 1960, p. 29.
4
Paul Goodman, Making do, livro de 1967. Apud Theodore Roszak, A contracultura.
Tradução de Donaldson Garschagen. Petrópolis, Vozes, 1972, p. 207.
5
Ver Theodore Roszak, 1972, op. cit., em especial, Capítulo VI “Exploração da
utopia: a sociologia visionária de Paul Goodman”, p. 185-208.

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6
Taylor Stoehr, Drawing the line: the political essays of Paul Goodman, New York, Dut-
ton, 1979, p. XVII.
7
Queer, palavra inglesa cujo sentido genérico era “estranho”, “não usual”, mas que
a partir do século passado se estendeu a específicos “desvios” sexuais, qualificando
homens efeminados e hoje se refere a uma categoria ampla em que se incluem
homossexuais: gays e lésbicas, bissexuais e trans-gêneros.
8
Paul Goodman. “Being queer” in Taylor Stoehr. Crazy hope and finite experience.
Routledge, 1997, p. 105.
9
Idem, p. 108.
10
Ibidem.
11
Ibidem, p. 105.
12
Scott McLemee. Goodman, Paul. Disponível em: http://www.glbtg.com/literatu-
re/goodman_p.html.
13
Expressão latina: arte é esconder arte. (N.T.)
14
Palavra latina, no teatro assinala a saída de cena de um personagem. (N.T.)
15
Palavra latina, no teatro assinala a saída de cena da maioria dos personagens.
(N.T.)
16
Expressão sem tradução. (N.T.)
17
Expressão latina: Com as devidas modificações. (N.T.)
18
Expressão grega. Saída de várias pessoas, debandada. (N.T.)

Indicado para publicação em 15 de setembro de 2008.

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A ameaça do canibalismo

a ameaça do canibalismo1
0
eliane knorr*

Em dezembro de 2002, uma agência de notícias


na internet2 revelou um caso peculiar de canibalismo
na Alemanha. Em pouco tempo a notícia repercutiria,
mundialmente, despertando um interesse especial em
psicólogos, psiquiatras, criminalistas e cientistas so-
ciais. Para além do canibalismo, que não consta como
crime no código penal alemão, o caso apresentava uma
série de elementos que até então eram inéditos, espe-
cialmente para o direito penal.
Armin Meiwes e Bernd-Jurgen Brandes se conhece-
ram, em 2001, em um site de relacionamentos na in-
ternet para “simpatizantes de canibalismo”. Meiwes,
sob o codinome Franky, publicou um anúncio3 no qual
procurava um homem jovem, com o corpo normal ou
bem constituído, entre 18 e 30 anos que desejasse ser
esquartejado e devorado.
Antes do contato com Brandes, centenas de pessoas
teriam respondido ao anúncio, mas a maioria estaria
interessada apenas em uma encenação sexual. Tendo
discutido os pormenores por meio de mensagens eletrô-
nicas, os dois finalmente se encontraram em uma esta-
ção de trem em Rotemburg e se dirigiram para a casa
de Meiwes. Fizeram sexo e, antes do esquartejamento,

* Pesquisadora no Nu-Sol e mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP.

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Brandes tomou sedativos com bebida alcóolica e pediu


para que ambos comessem seu pênis. Meiwes registrou
tudo em vídeo, inclusive a declaração de Brandes de
que este estaria de pleno acordo com a própria morte
e o canibalismo.4 Foi precisamente o registro do con-
sentimento de Brandes, associado a não criminalização
do canibalismo, que trouxe um problema para o direito
penal.

Inimputabilidade da vítima

Se o ato fora um acordo entre os dois envolvidos,


não há vítima nem algoz. Na apresentação do livro
Violentados, Edson Passetti observa que “a vítima é
apenas a parte jurídica do ato que a transforma em
testemunha num processo de penalização do outro.”5
Se não há vítima, e não há um crime qualificado — em
que a sociedade ocupa o lugar de vítima —, não há
como punir.
O caso de Armin Meiwes, com todas as suas parti-
cularidades, ainda se relaciona com a instituição jurí-
dica como “crime sem razão”,6 quando não há nenhu-
ma característica explícita da loucura e tampouco há
um motivo, algo que comprovaria a racionalidade do
crime. Um ato considerado tão irracional, tão absur-
do, que não haveria a necessidade (pelo menos até o
momento) de classificá-lo nas categorias jurídicas. No
entanto, se o canibalismo não se enquadra no código
penal, e a confissão de Brandes dificulta a qualificação
do ato como arbitrário; a acusação e a defesa tiveram
que encontrar outros meios para classificá-lo dentro da
lógica criminal.
De acordo com as notícias divulgadas em mídia ele-
trônica, a defesa de Meiwes alegava que o réu matara a
pedido.7 A pena para o que seria um crime de eutanásia,
ou de morte a pedido da chamada vítima, na Alemanha é
de seis meses a cinco anos. Para fundamentar seu argu-

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A ameaça do canibalismo

mento a defesa tentava mostrar, a partir do depoimento


de conhecidos, como Meiwes era um bom sujeito e que
de forma alguma se parecia com seu crime e, mesmo não
sendo doente mental, sua infância difícil o teria marcado
com alguns traumas que poderiam ter sido resolvidos
por um psiquiatra.8
O discurso da defesa procurou mostrar, enfim, como
Meiwes era um homem diferente de seu ato, mas que
ainda assim, haveria na base de suas estruturas men-
tais uma disfunção. O próprio acusado declarou em seu
julgamento9 que teria problemas por ter sido abando-
nado pelo pai e pelo irmão durante a sua infância, e que
a partir daí criou a fantasia de poder ter alguém bem
próximo, dentro de si.
Em contrapartida, a acusação fez uso dos mesmos
elementos para mostrar como o sujeito perigoso é na
verdade dissimulado. Lorna Rhodes,10 em uma pesquisa
na ala psiquiátrica de uma prisão de segurança máxima
no E.U.A., ressalta, com relação aos encarcerados tidos
como psicopatas, que nenhum bom comportamento par-
tindo deles é visto como verdadeiro. Sobre Collins, um
destes prisioneiros, Rhodes observa que suas atitudes
eram sempre entendidas como inadequadas e reafirma-
vam sua psicopatia, pois para os psiquiatras e carcerei-
ros, “o que torna Collins perigoso é a sua capacidade de
imitar as exigências do seu ambiente (...) enquanto ocul-
ta uma vontade patologicamente perturbada.”11
Além disso, a acusação procurou estabelecer rela-
ções entre o canibalismo de Meiwes com casos anterio-
res, que passaram a servir de modelo na qualificação
de seu ato como crime. Em uma notícia se lê que “o
caso do alemão se assemelha ao de Jeffrey Dahmer,
um canibal homossexual.”12 A tentativa de assemelhar
Meiwes a Dahmer por meio do homossexualismo é ex-
plícita. Jeffrey Dahmer foi condenado em 1991, por
matar e comer jovens garotos com quem tinha relações
sexuais.

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Também é possível notar a estratégia de relacioná-lo


a outros casos como o de Ed Gein — cuja história ins-
pirou a personagem Norman Bates do filme Psicose de
Alfred Hitchcock —, por intermédio da analogia estabe-
lecida pela promotoria entre Meiwes e sua mãe morta,
com Gein e sua mãe. Utiliza-se o modelo do pai fraco
ou ausente, e a mãe severa, autoritária e super-proteto-
ra.13 Ou, ainda, pode-se considerar que Gein se tornou
um exemplo ilustrativo das teorias psicanalíticas para
os casos considerados psicopáticos.
Os exames psiquiátricos mostraram, no entanto,
que Meiwes não era doente mental, já que o ato fora
inteiramente premeditado, mas que talvez sua vítima
o fosse.14 Até então, as condenações de práticas de ca-
nibalismo apoiavam-se principalmente na questão da
sanidade mental do considerado agressor, em que a
defesa tentava alegar insanidade — tornando o dito
crime inimputável —, e a acusação tentava mostrar
que o réu sabia exatamente o que estava fazendo, que
era um sujeito simplesmente mau. No caso de Armin
Meiwes, a defesa não se empenhou em conferir ao réu
o estatuto de doente mental, pois tinha ao seu lado a
confissão do consentimento da chamada vítima. Por
seu turno, a promotoria levantou a dúvida sobre a sa-
nidade desta mesma vítima.15 Assim como a loucura é
utilizada para descaracterizar o que se chama de crime,
ela passa a ser usada aqui para desqualificar a vontade
daquele considerado vítima. Apenas anulando a vonta-
de de Brandes seria possível torná-lo vítima.

Uma ameaça virtual na sociedade de controle

O caso de Brandes e Meiwes, de um acordo estabe-


lecido consensualmente entre dois homens, é trans-
formado em uma nova ameaça criminal possibilitada
pela internet.

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A ameaça do canibalismo

A internet é uma ferramenta que se desenvolveu a


partir das tecnologias criadas no período pós-IIª guerra
com o intuito de interceptar informações inimigas, per-
mitir infiltrações em sistemas de segurança, capturar
agentes espiões etc., e que somente com o chamado “fim
da ameça socialista” foi utilizada para facilitar a troca
de pesquisas nos E.U.A.16 Nela, o espaço é virtual, as
atualizações são constantes, as informações se movem
em fluxos cibernéticos quase que instantaneamente.
Pode-se dizer que a internet é o ‘espaço’ do controle por
excelência, onde se reúnem informações, depositadas
a todo instante, por pessoas do mundo todo, seguindo
certos protocolos, disponíveis através de senhas, mais
ou menos restritas.17
Gilles Deleuze parte da análise de Michel Foucault
sobre as sociedades disciplinares, e de suas inquieta-
ções acerca destas novas técnicas que começaram a
despontar depois da Segunda Guerra, para elaborar em
um breve artigo18 a noção de sociedade de controle.
Enquanto a sociedade disciplinar, de acordo com
Foucault, atuava por meio do confinamento, a partir
de lugares bem determinados, como a escola, a fábri-
ca, o hospital e a prisão, criando e seguindo moldes,19
Deleuze expõe que a sociedade de controle atua a partir
de modulações e do inacabado.20 As disciplinas agem
em lugares fechados, limitados espacialmente, aonde
os corpos devem ajustar-se a certos modelos. Mesmo
no interior de uma hierarquia as posições estão ligadas
a espaços determinados a serem ocupados. O controle,
acrescenta Deleuze, opera por uma modulação “como
uma moldagem auto-deformante que mudasse conti-
nuamente, a cada instante (...).”21
Não que a emergência desta sociedade tenha su-
primido a existência de uma outra. As técnicas de
soberania, disciplinares, ou de controle coexistem e
se complementam no governo dos corpos.22

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Segundo Edson Passetti,23 a sociedade de controle


exige a participação e o fluxo inteligente. O lugar (fixo,
rígido) cede espaço aos fluxos (virtuais, instantâneos,
velozes). A comunicação é contínua e as avaliações
constantes. Na sociedade de controle, o prazo é curto e
a rotação é rápida, é preciso se atualizar sempre.
Armin Meiwes usou das imaterialidades da sociedade
de controle para tornar concretos seus desejos canibais.
No entanto, se pela internet surgem novas possibilidades
de relacionamentos, permitindo que aqueles, antes consi-
derados anormais e desviantes, se encontrem e coloquem
em prática os seus chamados desvios, a sociedade de con-
trole alimenta por meio da participação, a confissão, a
denúncia e o policiamento de todos por todos.
A sociedade de controle convida à participação mas
também à denúncia, ou melhor, à denúncia como forma
de participação.24 A participação permite a constante
atualização de dados, posições, informações. Cada vez
há menos espaços obscuros, desconhecidos, livres de
controle. O policiamento é cada vez mais ‘democrático’.
Todos são convocados a ser polícia dentro de suas co-
munidades (reais ou virtuais). A polícia, enquanto ins-
tituição, é cada vez mais inserida de forma positiva (ou
não repressiva) no cotidiano da comunidade, como é o
caso da polícia comunitária, e cada um é convocado a
policiar os que estão à sua volta, através de dispositivos
como o disque-denúncia, ou via internet.
Foi pela internet que Meiwes pode concretizar seus
desejos, mas foi também por este meio que ele foi des-
coberto e denunciado. A partir deste caso, também, se
começou a cogitar a inclusão do canibalismo enquanto
crime no código penal. Se a internet possibilita estes
encontros, o sistema judiciário transforma casos extre-
mos, como o canibalismo, em ameaças à sociedade
que exigem novas medidas de prevenção e punição.
A participação pela denúncia é ainda uma convoca-
ção ao juízo. O cidadão participante é polícia e é juiz,

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A ameaça do canibalismo

ou ao menos acredita ser o juiz, sem pensar que as


opções e possibilidades já estão colocadas de antemão
segundo o julgamento de outrem.

O risco do contágio

Após as repercussões do caso de Armin Meiwes,


num spaço muito curto de tempo, outros casos de
canibalismo (ou de ameças de canibalismo) também
vieram à tona. O primeiro deles foi o de outro alemão,
Ralph Meyer.
Em 2005, antes ainda do segundo julgamento de
Meiwes, Meyer procurou a polícia pedindo ajuda, pois
matara um homem e estava prestes a comê-lo. A vítima
era Joe Ritzkowsky, 33 anos, professor de música. Os
dois teriam se conhecido em uma sala de bate-papo na
internet. Joe, foi ao apartamento de Meyer e pediu que
o amarrasse. Enquanto faziam sexo, Ralf enfiou uma
chave de fenda no pescoço da vítima. Abriu o corpo,
alimentou seu gato com os pulmões, cortou, temperou
e guardou o pênis na geladeira, e colocou alguns orgãos
na frigideira. Depois disso procurou a polícia.25
Na notícia, a relação com o caso de Armin Meiwes
é explicitada logo no início: “Ralf Meyer, 41, decora-
dor, estava claramente imitando Armin Meiwes.”26
Em seguida, há uma declaração de seu advogado que
teria enfatizado que, “diferente de Meiwes, Meyer não
chegou a comer nenhum dos órgãos.”27
O fato do advogado de defesa enfatizar que não houve
canibalismo, ainda que o réu tivesse matado, cortado,
temperado, e até alimentado seu gato, mostra, mais
uma vez, que no caso de Armin Meiwes era o canibalis-
mo que estava sendo julgado. Meyer foi condenado
por assassinato baseado em causas emocionais, com
motivação sexual.

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Segundo as informações contidas na notícia, “a


polícia temia há algum tempo que o caso de Meiwes
pudesse enfraquecer o tabu contra comer carne
humana”,28 como se o caso de Meiwes pudesse esti-
mular as pessoas a querer comer carne humana, ou
ainda, como se dessa forma o canibalismo se tornas-
se um ato banalizado — discurso semelhante que se
usa com relação à liberação das drogas.
O fato de Ralf Meyer ter, diferente de Meiwes, por-
curado a polícia, solicitando que essa o ajudasse a
conter seus desejos canibais, contribuiu para que
seu caso fosse encarado como um distúrbio mental.
Em janeiro de 2006, foi divulgada outra notícia.
Desta vez o caso de um sueco que no ano anterior ha-
via matado duas mulheres, bebido o sangue e comido
a carne. O canibal foi diagnosticado como portador
de graves distúrbios psiquiátricos.29 Não houve, na
notícia, referência ao caso de Armin Meiwes.
Também em 2006, foi publicada outra notícia
em que quase ocorreu um ato de canibalismo. Nes-
te caso, o corpo de uma menina foi encontrado em
uma caixa plástica no apartamento de seu vizinho.
O corpo estava inteiro, mas como a polícia encontrou
instrumentos para churrasco e amaciante de carne
deduziu que o ato “parece fazer parte de um plano de
sequestrar uma pessoa, estuprá-la, torturá-la, matá-
la, cortar sua cabeça, tirar sangue do corpo, estuprar
o cadáver, comer o corpo e então tirar seus órgãos e
ossos.”30 A intenção de canibalismo não foi admitida
pelo acusado.
Além destes, é possível citar uma série de outros
casos. Alguns ainda fazem menção ao “canibal de
Rotemburg”, como um episódio, que só foi divulgado
em 2004, de um australiano que, também em 2001,
teria matado outro em um camping, e comido sua
perna e seu pênis.31 Ou, como a mulher russa, que
teria matado um homem e, junto com seus dois filhos,

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verve
A ameaça do canibalismo

o teria cozinhado e comido.32 Também, em 2007, foi


divulgada a história de um sem teto que teria matado
seu companheiro do abrigo e comido suas vísceras.33
Ainda em 2007, mas sem referência ao caso de
Meiwes, no México um homem foi acusado de ter ma-
tado e comido duas mulheres.34 No mesmo ano, na
Espanha, um inglês admitiu que, em 2004 matou e
comeu sua namorada.35 Além de dois casos recentes,
em 2008, um deles, de um homem que matou uma
adolescente e comeu seus órgãos quando, segundo a
polícia, estava drogado, nas Filipinas,36 e outro, desta
vez no Texas, também de um homem que matou e co-
meu a namorada alegando que atendia a um pedido
divino.37 Esta lista ainda poderia continuar se esten-
dendo, inclusive, até o ano de 2009.
A quantidade de novos casos de canibalismo na
mídia possibilita, pelo menos, dois desdobramentos
analíticos. O primeiro, é que a internet e os meios de
comunicação globalizados, permitem o acesso mais
fácil a notícias planetárias, dando a impressão de que
os casos aumentaram, quando na verdade só teriam
ficado mais acessíveis. O outro, é que a repercussão
de um caso de canibalismo poderia ter alimentado a
busca e a atenção para outros. De qualquer forma, as
duas possibilidades apontam para o discurso da ne-
cessidade do desenvolvimento de novas intervenções
jurídicas.
A partir da justificativa do medo do contágio, e
grande exposição de casos de canibalismo, anuncia-
se a necessidade (colocada pela justiça penal) de apli-
car uma punição mais severa a Meiwes, para que sua
punição sirva de exemplo aos outros que pensarem em
fazer algo semelhante. Assim o caso de Armin Meiwes,
em sua exceção, torna-se mais um caso exemplar.
Foucault compreende que no Ocidente houve dois
grandes modelos de controle político, o modelo da ex-
clusão do leproso e da inclusão do pestífero. Uma e

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outra prática tinham como objetivo erradicar o mal


impedindo que ele se alastrasse entre os corpos con-
siderados sãos. Mas se o modelo da lepra atua sim-
plesmente pela expulsão dos doentes, dos portadores
do mal, o modelo da peste vai mais além. Ele insere
a prática de um mecanismo de controle contínuo e
minucioso, e justifica o mapeamento e o policiamento
constante, como medidas para evitar e corrigir. Pro-
cura identificar o mal a tempo de evitar o contágio.
Segundo Foucault, “o momento da peste é o momento
do policiamento exaustivo de uma população por um
poder político, cujas ramificações capilares atingem
sem cessar o próprio grão dos indivíduos, seu tempo,
seu habitat, sua localização, seu corpo.”38
O risco do contágio do canibalismo justificaria in-
tervenções mais duras com relação a Armin Meiwes.
Se a peste justificou a aplicação de um controle contí-
nuo, o caso de Armin Meiwes é utilizado para justificar
uma pena mais agressiva, ou mesmo a inclusão do
canibalismo no código penal como prevenção a futuras
práticas de canibalismo. Depois que Armin Meiwes foi
condenado a oito anos e meio de prisão, as notícias de
canibalismo exerceram um papel importante na justi-
ficativa da elevação de sua pena. Neste sentido, uma
pena mais dura, serviria de exemplo impedindo que
outros casos, como este, voltassem a ocorrer. De fato,
a pena inicial de Meiwes foi anulada e ele foi condena-
do à prisão perpétua.
Tal estratégia, que une a exposição constante na
mídia e reformas no sistema judiciário, não é nova. A
lei de crimes hediondos de 1990, no Brasil, surgiu a
partir de um grande investimento publicitário sobre
o caso da morte da atriz Daniela Perez.39 Em “Pena
pública em tempo de privatização”,40 Nilo Batista ex-
põe o uso da mídia na tentativa de redução da idade
penal, usando casos atuais, como exemplares, e as-
sociando a eles uma série de outros casos. O autor
afirma que “na campanha que se inicia no Brasil pelo

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A ameaça do canibalismo

rebaixamento etário da inimputabilidade, tendo como


peça publicitária central a dor muito exibida do pai
desventurado, convertido repentinamente num espe-
cialista em política criminal, um elemento estratégico
é dissimular os óbvios sentimentos de vingança na
ideologia legitimante do poder punitivo.”41

Tribunal midiático

O saber e os discursos são sempre interessados. A


forma como as coisas são colocadas, os estudos que
são propostos, têm como base certos valores e objeti-
vos de quem os apresenta.
Quando se noticia um acontecimento considera-
do crime monstruoso, em que é conferido ao agen-
te do ato o estatuto de psicopata — como acontece
com aqueles associados ao canibalismo —, é de praxe
que, a partir do ato, a vida do sujeito considerado cri-
minoso seja exposta de forma que todos os mínimos
acontecimentos não tenham outro sentido além de
acusação da execução do ato delituoso. É disso que
trata Foucault ao constatar que a psiquiatria tem o
papel de dobrar o delito fazendo com que o sujeito se
pareça com seu crime.42 Durante os dois julgamentos
de Armin Meiwes, a imprensa acompanhou de perto
todo o processo.43
A cobertura detalhada do julgamento não atende à
imparcialidade da divulgação jornalística. Tanto na ex-
posição das informações, quanto na sua interpretação
— ao menos com relação às grandes fontes de notícias
—, reproduz-se ou o discurso da acusação ou o da defe-
sa. Parte-se do princípio que estes saberes são verdades
científicas, sem nem atentar para o fato que, em toda a
história ocidental, nem as ciências consideradas mais
exatas estiveram livres de enganos.
Na melhor das hipóteses, quando as informações
na mídia apenas reproduzem os discursos jurídicos,

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não existe preocupação em questionar os conceitos


como crime, delinquência, psicopatia, etc., assumin-
do que estes seriam verdades universais consolidadas
por saberes científicos e imparciais. É neste sentido
que apenas perpetuam o sistema penal. Segundo o
abolicionista penal Louk Hulsman, “o acontecimen-
to qualificado como ‘crime’ (...) pressupõe um autor
culpável; o homem presumidamente ‘criminoso’, con-
siderado como pertencente ao mundo dos ‘maus’ já
está antecipadamente proscrito...”44
As informações do julgamento de Armin Meiwes fo-
ram divulgadas, pelos meios de comunicação, imedia-
tamente após o seu acontecimento. Outras informações
também eram divulgadas em seguida ao acesso que se
tinha a elas. Para além do julgamento no tribunal, as
notícias de jornais mostram seu próprio tribunal. Bus-
cam nas mesmas fontes médico-jurídicas elementos na
infância e a adolescência do acusado que explicariam as
causas, as origens do que qualificam como ato crimino-
so. O tribunal do júri e a mídia se complementam nos
desdobramentos legais e cotidianos da condenação do
canibal. Constroem e sustentam verdades, e alimentam
práticas de delação, vigilância e controle.

A condenação insuficiente

No primeiro julgamento, que teve início em dezembro


de 2003 e terminou em janeiro de 2004, Meiwes fora
condenado à 8 anos e meio de prisão, por homicídio
simples.45 Depois do veredicto, a promotoria entrou com
uma apelação, pedindo a pena por homicídio qualifica-
do, alegando que a motivação sexual para o canibal não
havia sido levado em consideração. Em contrapartida, o
tribunal superior negou a apelação da defesa que pedia
a condenação por homicídio à pedido da vítima, cuja
pena é de seis meses a cinco anos.46

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A ameaça do canibalismo

No segundo julgamento, que ocorreu de janeiro à


maio de 2006, Meiwes foi condenado à prisão perpétua.
Se o fato do canibal não ser considerado irresponsável
pelos seus crimes não contribuiu na severidade da pena,
a acusação inverteu este procedimento e se empenhou
em aplicar a chamada vítima a irresponsabilidade pelos
seus desejos. Conferir a Brandes uma inimputabilidade
pelos seus atos, permitia que se pudesse tornar Meiwes
total e unicamente responsável. Se a acusação conse-
guisse provar que o ato de Brandes foi um ato de loucu-
ra, irracional, o seu consentimento perdia o valor.
A dificuldade no julgamento não parece ter sido,
afinal, quanto à qualificação do chamado crime, se
assassinato por motivação sexual ou assassinato por
misericórdia. O processo divulgado na mídia mostra,
explicitamente, a necessidade de não se deixar impu-
ne o ato de canibalismo, mesmo que voluntário, como
quando se afirma que “Meiwes não pôde ser julgado
por canibalismo, já que esta prática não está tipifi-
cada como delito na Alemanha.”47 O problema real
da justiça alemã parece ser o de justificar a punição
do canibalismo sem que este estivesse presente no
código penal. O crime sem razão atualiza na esfera da
sociedade de controle os dispositivos e a reforma do
saber psiquiátrico.
Além disso, o caso de Armin Meiwes permite ao or-
ganismo jurídico justificar novos dispositivos de con-
trole no meio virtual. Se o espaço de fluxos contínuos
da internet, possibilita, para além do controle — como
um ‘efeito colateral’ —, outras maneiras de burlar as
normas, cria-se, sob a lógica do sistema penal, fun-
damentos para a continuidade deste próprio sistema.
A partir de casos extremos o saber psiquiátrico e o
sistema jurídico refestelam-se em justificativas para
a implementação de penas, dispositivos preventivos
de segurança, medicalização dos normais, etc.
Sob a lógica penal, em cada condenação, em cada
pena, na construção de cada crime, pune-se, julga-

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se, e se intervém na vida de todos. E isso não é uma


metáfora e nem uma abstração. A construção de cada
crime traz sempre novos criminosos, novos suspeitos,
novas vítimas, e novas medidas sobre cada um. To-
dos são suspeitos ou vítimas em potencial. Alastra-se o
medo de mais uma ameaça virtual, irreal, que pode ser
exterior ou interior. Difunde-se a insegurança até em
meios considerados seguros, como a internet. Aprisio-
na-se, cada vez mais, em nome de uma sociedade onde
se pode viver livre, sem ameaças, sob a utopia de que
quanto mais encarceramentos, punições e prevenções,
mais próximos estaremos de um mundo sem violências,
sem crimes. Acabar com o crime, começa em reconhe-
cer — como fazem os abolicionistas —, “que este é uma
construção histórica por parte da sociedade que não
sabe lidar com o insuportável.”48
Assim como as crianças são assombradas por his-
tórias de fantasmas, para que fiquem imobilizadas,
obedientes e crentes na força extraordinária do adulto
— invencível — que promete protegê-la, vivemos apri-
sionados, recolhidos, contidos com medo das amea-
ças que nós mesmos criamos (ou criadas por aqueles
a quem delegamos alguma superioridade). E acredita-
mos que a fonte de nosso medo (aqueles que inventam
tais ameaças) são aqueles que irão nos proteger.

Notas
1
Texto extraído de Eliane K. de Carvalho. Canibalismo e normalização. São Paulo,
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, PEPG/PUC-SP, 2008. Com
algumas modificações.
2
Deutsche Welle. “Canibalismo entre homossexuais choca Alemanha” in DW-
World.de. Disponível em: http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,712831,00.
html, 12 de dezembro de 2002.
3
Anúncios publicados no extinto forum Cannibal Café. Algumas mensagens podem
ser conferidas em Eliane K. de Carvalho, 2008, op. cit., pp. 100, 114 e 115.

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A ameaça do canibalismo

4
“Eles se conheceram pela internet, e a vítima aceitou ser morta e devorada” in
Veja Online, ed. 1832. Disponível em http://veja.abril.com.br/101203/p_111.html,
10 de dezembro de 2003.
5
Edson Passetti (coord.), et alli. Violentados: crianças adolescentes e justiça. São Paulo,
Ed. Imaginário, 1999, p. 10.
6
Sobre ‘crime sem razão’ ver: M. Foucault. Os Anormais. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo, Martins fontes, 2002, pp. 06-10.
7
“Loz juzgan en Alemania” in Terra Uruguay. Disponível em http://www.terra.
com.uy, 02 de dezembro de 2003.
8
“Canibal de Rotemburg confessa crimes na TV” in Folha Online. Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u337288.shtml, 16 de
outubro de 2007.
9
Mais informações na cobertura sobre o caso, nos sites de notícias: BBC, DW-
World, Folha Online, Estadão.
10
Lorna. A. Rhodes. “A psicopatia e a cara do controle na supermax” in Discursos
Sediciosos. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Ed. Revan, 2004, pp.
57-76.
11
Idem, p. 64.
12
A. Sydney. “Cold-blooded Murder or Death Per Request?” in Ritro.com. Disponível
em: http://www.ritro.com/sections/worldaffairs/story.bv?storyid=2226, 29 de
dezembro de 2003.
13
“German cannibal’s dad unaware of son’s ‘Hansel & Gretel’ obsession” in
Gmax.com.za,. Disponível em: http://www.gmax.co.za/look04/01/19-germany.
html, 19 de janeiro de 2004.
14
“Los juzgan en Alemania”, 02 de dezembro de 2003, op. cit.
15
France Presse. “‘Rezei por nós e o comi’, diz alemão acusado de canibalismo”
in Folha Online. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/
ult94u66241.shtml, 03 de dezembro de 2003.
16
Marcelo Sávio R. M. Carvalho. A trajetória da internet no Brasil: do surgimento das redes
de computadores à instituição dos mecanismos de governança. Rio de Janeiro, Dissertação —
Universidade Federal do Rio de Janeiro, COPPE, 2006.
17
Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez Editora,
2003.
18
Gilles Deleuze. “Controle e devir” in Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart.
Rio de Janeiro, Ed. 34, 2004, pp. 209-218.

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2009

19
Michel Foucault. “Soberania e disciplina” in Microfísica do poder. Tradução de
Roberto Machado. São Paulo, Ed. Graal, 2004, pp. 179-191.
20
Gilles Deleuze. “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle” in Conversações.
Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2004, pp. 219-226.
21
Idem, p. 221.
22
Edson Passetti. “Segurança, confiança e tolerância: comandos na sociedade
de controle” in São Paulo em Perspectiva, vol. 18 (1), São Paulo. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-8839200
4000100018&lng=pt&nrm=iso, 2004, p. 154.
23
Edson Passetti, 2003, op. cit.
24
Idem, p. 257.
25
Roger Boyes. “Cannibalism copycat who kept a man in his fridge” in Times
Online. Berlin. Disponível em: http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/
article1079465.ece, 04 de maio de 2005.
26
Idem.
27
Ibidem.
28
Ibidem.
29
“Suécia condena canibal que bebeu sangue e comeu carne das vítimas” in Folha
Online. Disponível em: http://www.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u92020.
shtml, 28 de janeiro de 2006.
30
“Suposto caso de canibalismo choca os EUA” in Folha Online. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u94932.shtml, 16 de abril de
2006.
31
Folha Online & France Presse. “Canibal australiano demonstra ‘orgulho’ por
seus atos” in Folha Online. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/
mundo/ult94u72355.shtml, 06 de maio de 2004.
32
Folha Online & Agências Internacionais. “Polícia russa acusa mulher e seus dois
filhos de canibalismo” in Folha Online. Disponível em: http://www1.folha.uol.
com.br/folha/mundo/ult94u89632.shtml, 17 de novembro de 2005.
33
BBCBrasil. “Homem mata e come sem-teto na Áustria” in Folha Online.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u323898.shtml,
29 de agosto de 2007.
34
Ansa & France Presse. “Polícia mexicana confirma que homem comia carne
humana” in Folha Online. Disponível em: http://www1.folha.com.br/folha/
mundo/ult94u336951.shtm, 15 de outubro de 2007.

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35
BBCBrasil. “Canibal britânico admite ter matado e comido namorada” in Folha
Online. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u344090.
shtml, 09 de novembro de 2007.
36
EFE. “Homem drogado assassina menina e come seus orgãos nas Filipinas”
in Yahoo Notícias. Disponível em: http://br.noticias.yahoo.com/s/05082008/40/
politica-homem-drogado-assassina-menina-come-orgaos-nas-filipinas-.html, 05
de agosto de 2008.
37
France Presse. “Texano é acusado de matar e cozinhar a namorada por pedido
divino” in Folha Online. Disponível em: http://www1.folha.com.br/folha/mundo/
ult94u361451.shtml, 08 de janeiro de 2008.
38
Michel Foucault, 2002, op. cit., p. 59.
39
Para uma reflexão abolicionista acerca dos chamados crimes hediondos ver
hypomnemata, nº 71. Disponível em: http://www.nu-sol.org.
40
Nilo Batista. “Pena pública em tempo de privatização” in Edson Passetti (org.).
Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro, Revan, 2004.
41
Idem, p. 115.
42
Michel Foucault, 2002, op. cit.
43
Segundo a Redação do site Terra, no dia do primeiro veredicto, “a imprensa pôde
filmar e fotografar a sala quando o réu foi apresentado, mas teve de abandonar
o recinto antes da leitura do veredicto. A sessão começou com meia hora de
atraso por causa do grande número de fotógrafos e câmeras de televisão na sala,
que estava lotada pelo público” em “Canibal alemão é condenado a 8,5 anos de
prisão” in Terra/Mundo. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/mundo/
interna/0,,OI262121-EI294,00.html, 30 de janeiro de 2004.
44
Louk Hulsman & Jacqueline. B. de Celis. Penas perdidas: o sistema penal em questão.
Tradução de Maria Lúcia Karam, Rio de Janeiro, 1993, p. 96.
45
Deutsche Welle. “Canibal condenado a oito anos de prisão” in DW-World.de.
Disponível em http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1100710,00.html, 30
de janeiro de 2004.
46
Deutsche Welle. “Canibal de Rotemburgo terá novo julgamento” in DW-World.
de. Disponível em: http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1561157,00.html,
22 de abril de 2005.
47
“Canibal de Rotemburgo outra vez no banco dos réus” in Sapo/Sociedade.
Disponível em: http://dn.sapo.pt/2006/01/13/sociedade/canibal_rotemburgo_
outra_no_banco_re.html, 13 de janeiro de 2006.
48
Ver Abolicionismo libertário, verbetes. Disponível em: http://www.nu-sol.org.

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RESUMO
Armin Meiwes e Bernd-Jürgen Brandes trouxeram um novo
problema à economia do poder de punir quando um deles
consentiu em ser morto e devorado pelo outro. A partir daí,
defesa e acusação tiveram que elaborar novas estratégias
jurídicas, redimensionando discursos para que se pudesse
definir uma vítima, um criminoso e aplicar-lhe uma pena que
contivesse uma ameaça inexistente alimentada pela mídia.

Palavras-chave: canibalismo, ameaça virtual, tribunal


midiático.

ABSTRACT
A few years ago, Armin Meiwes and Bernd-Jürgen Brandes
caused the punishment system a new concern: How to punish
when the potential victim agreed in being killed and eaten?
Since then, new juridical strategies were applied in order to
determine a victim, a criminal and to penalize him based on
a threat hitherto inexistent induced by the mass media.

Keywords: cannibalism, virtual threat, media court.

Recebido para publicação em 10 de novembro de 2008.


Confirmado em 2 de março de 2009.

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verve
Artaud e Nise, a loucura de viés

artaud e nise,
a loucura de viés salete oliveira*

André Queiroz. Antonin Artaud, meu próximo. Rio de Janeiro,


Pazulin, 2007, 102 pp.; Bernardo Carneiro Horta. Nise,
arqueóloga dos mares. Rio de Janeiro, Edições do Autor,
2008, 400 pp.

Dois livros. Um pequeno, de proximidade arredia,


letras mais miúdas. Um grande com figuras, como
dizem as crianças, e largueza nas letras. Dois livros
tão diferentes. Um Artaud de André e uma Nise de
Bernardo.
A explosão inapreensível da frase Eu, Antonin Artaud,
em Queiroz vira Antonin Artaud, meu próximo. O hor-
ror das biografias nutrido pela senhora das imagens,
Nise da Silveira, vira biografemas por Carneiro Horta
em Nise, arqueóloga dos mares. Dois livros e uma con-
versa possível entre o inapreensível da loucura em re-
cusa às tentativas psiquiátricas de realizar a infame
anaminese de algum provável biografado.

* Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora no De-


partamento de Política da PUC/SP.
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E é possível, também, ao leitor atravessar os dois


livros como um escafandrista, não em busca do ocul-
to de cada um como pretende a psiquiatria para pro-
ferir a atribuída verdade escondida da natureza do
ser. Mas apenas se deixando levar por correntes de
marés. Próximas e quentes e de repente geladas e
revoltas. Como num mergulho em água salgada ou
a alguns passos de um retorno ao cheiro do mar. E
ninguém volta incólume de um mergulho. Ninguém
retorna ileso de seus movimentos.
O livro de André Queiroz traz um Artaud de maltas,
na definição de Elias Canetti em Massa e poder, malta
que provém do latim e designa movimento, revolta,
sublevação e partidas de caça. Maltas do corpo em
duplos, de Blanchot e Deleuze; de Kafka e Melville; de
Joseph K. e Bartleby. A atmosfera que atravessa estas
maltas em duplos em “Antonin Artaud, ou como fazer
funcionar um corpo sem rastro” provém um tanto
da instigante afirmação de Foucault ao dizer que na
escrita de Artaud se encontrava a materialidade do
pensamento.
A arqueóloga dos mares Nise, de Bernardo Horta,
chega ao leitor em fragmentos narrados entre
acontecimentos provocados por esta pequena mulher,
de corpo frágil e de mãos e articulações contorcidas
que sacudiram e transtornaram a estabilidade da
história da psiquiatria. E é ela quem diz, ecoada na
voz do ator Rubens Corrêa — no transtornante vídeo
Encontros com Pessoas Notáveis, Nise da Silveira
dirigido por Edson Passetti, no começo dos anos 1990:
“Estou cada vez menos doutora, cada vez mais Nise.”
Nise, esta nordestina de nome minúsculo extraído
da poesia de Cláudio Manuel da Costa, este nome mí-
nimo da amada pelo poeta, e do amor que brota por
uma mulher insubmissa, e mais uma vez inapreensí-
vel. Da literatura que habitaria a vida da doutora e
da mulher e viria liquidar os compêndios dos médicos
psiquiatras. Daí, a admiração inclassificável da se-

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Artaud e Nise, a loucura de viés

nhora das imagens por Artaud. “Creio que, antes de


Artaud, nunca alguém conseguiu por meio de pala-
vras, exprimir, com tanta força, dilacerantes vivências.
Pela imagem, sim, que é a direta forma de expressão de
processos inconscientes profundos, muitos o fizeram e
fazem todos os dias, usando lápis e pincéis. Pela pala-
vra, não” (H, p. 113). E a recusa irredutível de Artaud
em se deixar institucionalizar se desdobra quando
Nise afirma que a “Carta aos médicos” escrita por ele
é ir-respondível.
Se Artaud dizia que a única vantagem que os médi-
cos têm sobre um louco é a força, ele reverteu a quan-
tidade desta mesma força por sua potência de vida
inestancável. E mostrou que relações de força não se
confundem com relações de governo e submissão.
Talvez, André Queiroz fale de outro modo desta po-
tência, por intermédio do que ele designa por “corpo
sem rastros”, ao colocar na cena do embate a luta do
pensar contra o pensamento, a luta do corpo contra a
organização. E ele, Queiroz, aqui sim reduplica sua es-
colha pelas maltas no rastro de Deleuze, sublinhando
a diferença singular entre movimentos e instituições.
Deleuze dizia que o surpreendente só pode vir do me-
nor em movimento ao passo que as instituições estão
sempre ligadas ao direito, à lei, e se segundo ele a lei é
um conceito vazio, as leis são noções complacentes. O
corpo sem rastros que Queiroz fabrica e faz funcionar
deságua no novo duplo de maltas Artaud-Rimbaud,
em viagens de acertos, desencontros e descobertas no
México da América e nos confins da África. Desta vez,
duplo mínimo, literatura com literatura, e na vida jo-
vens desacatando a lei e explicitando outros meandros
dos tráficos alimentados por proibicionismos e proibi-
ções morais que começam no sexo e terminam na arte,
que começam no corpo e findam nas experiências de
estados alterados livres.
Se para Queiroz a questão é se situar na “viagem
e no infortúnio de quem fica” para Artaud a ida ao

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encontro dos Tarahumara no México o leva à lida com


esse povo que o próprio nome já diz, “aquele que ca-
minha”, desse povo que recusa a esmola e desdenha
o comércio, o mercado e que nas altas altitudes lida
com a dor que aplaca o corpo de maneira, mais uma
vez, inapreensível a quem discorre sobre o sofrimento
e a morte e recomenda as maravilhas e benesses da
felicidade e da qualidade de vida. Distante da famige-
rada lógica dos eletrochoques, da lobotomia e das medi-
calizações químicas tão recomendadas atualmente; ins-
trumentalizadas pelo discurso psiquiátrico. A Segunda
Guerra Mundial havia acabado, e na saída de Artaud de
anos de manicômio, infindáveis sessões de eletrochoque
os tarahumara e as visões suscitadas no deserto foram
uma saúde.
Não é fortuito que uma das procedências da psicologia
e da psiquiatria no Brasil, situem-se, simultaneamente,
sob o nome de licantropia, quando no século XIX expedi-
ções européias construíam os índios como doentes men-
tais por aquilo que o saber médico rotulava de “delírio
no qual o indivíduo se julga transformado em lobo”. E
se um dos baixos começos da psicologia e da Psiquiatria
emergiu com a construção do Hospício Pedro II no Rio de
Janeiro, também chamado por Palácio dos Loucos, e que
ficaria mais conhecido como Hospício da Praia Vermelha,
seria lá que, segundo Bernardo Horta, Nise viria a se in-
surgir contra as novidades de tratamento que chegavam
da Europa, sob a forma de eletrochoque, precisamente
no momento em que ela saía da cadeia onde esteve presa
pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. E ela
diante da parafernália da máquina gritou: “eu não
aperto o botão!”. Resultado: em 1946, foi rebaixada
ao setor de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico
Pedro II. Chegando lá notou que aquilo não era mais
do que uma extensão da oficina de farrapos que se es-
praiava pelo hospício, explorando o trabalho escravo
dos internos, entre remendos e lavagens de roupa. E
de novo gritou: “Eu não sou capataz!”

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Artaud e Nise, a loucura de viés

A construção do esquizofrênico como inafetivo pela


psiquiatria seria liquidada pela surra que a louca Luíza
deu na enfermeira que delatou Nise à policia de Vargas
e o Museu das Imagens do Inconsciente inciaria sua
existência pelos gritos dos loucos e de Nise da Silveira,
entre o rebaixamento da doutora e a fundação do mu-
seu em 1952. Entre bordados, tintas, pincéis e outros
instrumentos a Casa das Palmeiras, também não
tardaria a surgir em 1956. A terapia ocupacional foi
soterrada pela emergência convulsiva e delicada de
outros espaços da emoção de lidar. Mas é preciso estar
atento, pois hoje a terapia ocupacional, regularmente,
vem assumir o lugar da cela socialmente aceita não
só no redimensionamento da rotina manicomial nos
hospitais-dia, assim como na avassaladora prática de
psiquiatrização da ordem o eletrochoque vem sendo
recomendado e aplicado em tratamentos do chamado
transtorno depressivo, conectado aos desdobramentos
de estudos neurocientíficos, instrumentalizados pela
psiquiatria. E eles dizem assim: A questão hoje, com
os avanços da medicina psiquiátrica e da neurociência,
é apenas de saber combinar a dose certa de anestesia
com a voltagem de eletrochoque compatível a cada
paciente. Neste caso, o equacionamento preventivo
da minimização dos possíveis efeitos colaterais serve
de pretexto às liberações de verba para pesquisa de
Institutos e Universidades, fomento para proliferações de
Ong’s e grupos de auto-ajuda, entre incontáveis outros
beneficiados, começando pela indústria farmacológica
e pela capacitação técnico-médica de polícias, preten-
dendo tornar a tortura um eufemismo. Chega-se,
então, à inominável associação entre eletrochoque e
qualidade de vida. A abjeta vinculação oportuna dos
zeladores da ordem, sob as auspiciosas recomendações
medicamentosas. O infortúnio do mau encontro, como
diria Pierre Clastres.
O infortúnio de quem fica, no livro de Queiroz abre
passagem para um penúltimo movimento entre Artaud
e Nietzsche, atravessado por um pensar outro que lan-

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ça André ao derradeiro capítulo onde ele próprio e sua


escrita, que neste momento, assume tons absurdos, be-
cktianos mesmo, remete-nos ao capítulo anterior onde
se destacam estas palavras de Artaud a Van Gogh: “...É
preciso um exército de gente amesquinhada para con-
duzir o corpo ao gesto contranatura que é privar-se de
sua própria vida” (Q, p. 59).
Anexações. Antonin Artaud, meu próximo traz no
anexo um entrevista imperdível com André Queiroz,
na qual sua coragem, de homem, de intelectual, tam-
bém, enuncia verdades insuportáveis para o estado
das coisas na Universidade e na submissão das pes-
quisas acadêmicas aos temas e áreas referendados por
agências de fomento. Enquanto em Nise, arqueóloga
dos Mares, Bernardo oferece um intricado bordado de
referências de trabalhos escritos e imagéticos, tecido
por Nise e por pessoas que mergulharam na luta con-
tra o encarceramento de gente, seja que palavra isto
possa assumir quando está em jogo administrar, gerir
e governar vidas.
Se a loucura enuncia verdades insuportáveis como
explicitou Artaud é preciso ter presente que ele tam-
bém insistia na inapreensível afirmação: a vida é de
queimar as questões.

o singular
maurício tragtenberg lúcia soares*

Antonio Ozaí da Silva. Maurício Tragtenberg: Militância e


Pedagogia Libertária. Ijuí, Unijuí, 2008, 344 pp.

Em 1994, eu estava no último ano da Faculdade de


Ciências Sociais — PUC/SP quando soube que Maurício
* Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisadora no Nu-Sol.

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O singular Maurício Tragtenberg

Tragtenberg lecionaria uma matéria de Ciência Política.


Fui cedo fazer matricula no seu curso, a ansiedade mi-
nha e dos outros estudantes crescia, não víamos a hora
de conhecer em “carne e osso” o mestre, o intelectual e
autodidata Maurício Tragtenberg. No primeiro dia de
aula, surpresa: entra um homem de idade, simples,
cabelos grisalhos desgrenhados, usando óculos e an-
dando de calça jeans, sua voz mansa e baixa, se pôs a
falar durante uma hora e meia fazendo sua apresen-
tação. Não trouxe nada em suas mãos, nenhum livro,
não precisava. Quando citou pensadores, períodos,
acontecimentos históricos e políticos, ficamos todos
absortos pela sua erudição.
Um dia o professor Maurício Tragtenberg chamou
minha atenção, ficou bravo, mas depois me disse para
pesquisar Maria Lacerda de Moura; recomendou que
ligasse para seu amigo Jaime Cubero e me falou ra-
pidamente sobre o CCS (Centro de Cultura Social).
Naquela época, eu não sabia quem era Maria Lacerda
de Moura, tampouco Jaime Cubero e sequer tinha co-
nhecimento da existência do CCS. Ali começou uma
simpatia mútua. Suas aulas eram carregadas pelo seu
humor cáustico e críticas mordazes, que davam o tom
da sua reflexão analítica da sociedade; dos efeitos do
poder sobre a academia; da burocracia educacional,
sindical, partidária; das distinções entre trabalho inte-
lectual e trabalho físico; entre outras surpreendentes
abordagens frequentes.
Como professor, Maurício Tragtenberg não tratava
estudantes como alunos-clientes, tinha aversão às es-
colas-empresas tão disseminadas hoje em dia, muitas
das quais iniciaram suas atividades com o apoio do re-
gime militar. Ele mesmo observou a maneira como a di-
tadura implementou “o processo de expansão pela pri-
vatização” ao apresentar o livro, A Empresa Cultural, de
Carlos Benedito Martins, e depois republicada em seu
livro Sobre a Educação, Política e Sindicalismo. Ali criti-
cou também a disparidade entre a universidade pública

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e a universidade privada: a primeira como detentora do


conhecimento e pesquisa; a segunda como reprodutora
de conhecimentos disponíveis para serem consumidos
instantaneamente.
Tragtenberg sempre incentivou os estudantes a ler e
pesquisar livremente assuntos, obras, autores e pensado-
res. Estimulou, sobretudo, a não ser conformista, e essa
é uma das infinitas possibilidades da pedagogia libertá-
ria que Ozaí da Silva se refere em Maurício Tragtenberg:
Militância e Pedagogia Libertária.
Antonio Ozaí da Silva, concluiu o mestrado com
Maurício Tragtenberg, é professor de História, leciona
na Universidade Estadual de Maringá/Paraná. Na in-
ternet mantém um blog e a revista eletrônica Espaço
Acadêmico além de participar do Neils — Núcleo de
Estudos de Ideologias e Lutas Sociais na PUC-SP. O
desafio a que ele se propôs na pesquisa e redação so-
bre a história da vida de Tragtenberg está no contexto
de não pretender instaurar uma biografia definitiva ou
uma totalidade em busca de delimitar ou resumir sua
vida e obra, mas apresentar as singularidades do bio-
grafado, suas contribuições e práticas libertárias.
Em cinco capítulos, Ozaí da Silva discorre sobre o que
ele chama de militante e pedagogo libertário: “analisar
a contribuição de Maurício Tragtenberg à Pedagogia
Libertária” e situar sua abordagem “na experiência e
práticas pedagógicas vinculadas à tradição dos liber-
tários, anarquistas e anarco-sindicalistas” (p. 17).
Entretanto, não está em jogo rotular Maurício
Tragtenberg, enquadrá-lo numa categoria, afirmar
ou discutir se ele foi um anarquista, marxista ou
seguidor de Weber. Pelo contrário, o livro mostra as
suas diversas contribuições que proporcionaram li-
berdades para pensar e agir aos movimentos sociais,
trabalhadores sindicalizados ou não, e estudantes ao
problematizar estigmas, assujeitamentos, dominação,

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O singular Maurício Tragtenberg

utilizando-se dos pensadores anarquistas, assim co-


mo de Marx e Weber.
Maurício Tragtenberg nasceu na Colônia Erechim,
na cidade de Passo Fundo — Rio Grande do Sul. Neto
de judeus camponeses vindos da Bessarábia — uma
província fronteiriça com o antigo Império Russo —
cresceu num ambiente rural, envolto pela cultura ju-
daica fortemente religiosa. Garoto, frequentou a escola
e a biblioteca local e por conta do avô tomou conta-
to com a literatura russa influenciada pela Revolução
Makhnovita na Ucrânia.
Ainda criança, iniciou seus estudos sobre os
anarquistas Nestor Makhno, Mikhail Bakunin, Piotr
Kropotkin que influenciariam seu pensamento. O
interesse constante sobre a Revolução Russa de 1917
o levou anos depois a pesquisar e escrever sobre esse
tema vinculado à sua própria origem, para mostrar com
outro olhar os processos da revolução, os resistentes ao
bolchevismo de Trotsky e Lênin e a maneira como os
dois abririam caminho para a ditadura stalinista.
As leituras iniciadas na infância se ampliam e tomam
outro rumo quando a família Tragtenberg sai do Rio
Grande do Sul para São Paulo. Nesta cidade, morando
no bairro do Bom Retiro, o jovem Maurício Tragtenberg
trabalhava como escriturário e frequentava a Bibliote-
ca Mário de Andrade. A efervescência daquele ambiente
contribuiu para sua convivência com diversas pessoas
— muitas que se tornaram amigos —, intelectuais, pro-
fessores e estudantes. Como enfatiza Ozaí da Silva: “os
anos de aprendizado de Maurício, no sentido da sua for-
mação-intelectual, correspondem às suas universidades”
(p. 64).
Segundo Ozaí da Silva foi na Biblioteca Mário
de Andrade que Tragtenberg conheceu a política
organizada, primeiro com o PCB depois com o PSB,
experiências não duradouras, porque ele divergia e
criticava o pensamento autoritário stalinista que proi-

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bia a convivência com outras pessoas e militantes de


esquerda que não comungassem da mesma cartilha. O
jovem Tragtenberg era irriquieto e não cabia dentro de
um partido, sua atenção voltava-se para problematizar
a burocracia partidária. Nesta época passou a ler
Proudhon e Rosa Luxemburgo, que o levaram a ques-
tionar a doutrina trotskista, que considerava um
“stalinismo mais intelectualizado” (p. 74).
Fora de partidos políticos e questionando os autori-
tarismos, Maurício Tragtenberg conheceu pessoalmente
militantes da Revolução Espanhola, que haviam lutado
contra o general Franco. Estes libertários encontravam-
se no Centro Republicano Espanhol, Centro Catalão e o
CCS, onde conheceu o amigo para toda sua vida: Jaime
Cubero. “Maurício se tornaria um libertário e consoli-
dou relações de amizade (...), mantendo-se vinculado à
proposta político-pedagógica do Centro de Cultura So-
cial e participando das suas atividades” (p. 83).
Ozaí da Silva narra como Tragtenberg iniciou seus
estudos universitários, valendo-se de uma lei federal
que permitia àquele que escrevesse uma monografia e
a apresentasse para uma banca, prestasse o vestibular.
Na USP fez um ano de Ciências Sociais, deixou o curso,
para cursar História. Nos anos 1960, já formado, pas-
sou a lecionar numa escola em Iguape e na Faculdade
de Filosofia Ciências e Letras de São José do Rio Preto.
O ano de 1964 foi denominado por ele como: “o pior
ano da minha vida” (p. 90). Os militares invadiram sua
casa e levaram todos seus livros. Com a promulgação do
AI-1 foi considerado “subversivo” e demitido da Faculda-
de de Rio Preto pelo governo do Estado de São Paulo. Em
seu depoimento no vídeo comemorativo dos 25 anos da
Faculdade de Ciências Sociais afirmou: “Foucault antes
de escrever Vigiar e punir deve ter sobrevoado São José
do Rio Preto”, numa referência concisa sobre o controle,
vigilância e delação instauradas naquela época. Entre
1964 e 1968, afirmou ter feito “curso de extensão uni-

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O singular Maurício Tragtenberg

versitária nas delegacias de polícia de Rio Preto e São


Paulo” (p. 92).
Nesse período difícil, Ozaí da Silva descreve o apoio
que Maurício Tragtenberg obteve de inúmeros amigos
e pessoas que ele sequer poderia imaginar que fossem
lhe ajudar. Foi assim que em 1966, a PUC-SP aco-
lheu Maurício Tragtenberg como professor de História
na Faculdade de Ciências Sociais — Departamento de
Política. Em 1968, ele ingressou na FGV-SP como pro-
fessor de Sociologia aplicada à Administração. Porém,
como vinha sendo perseguido, a universidade resolveu
desligá-lo.
Segundo Ozaí da Silva, diante do descontentamento
e da tirania, Tragtenberg entrou em colapso nervoso,
foi internado; mas ao invés de morrer, teve forças para
escrever no hospital o primeiro capítulo da sua tese de
doutorado Burocracia e Ideologia, que posteriormente
seria um dos seus livros mais conhecidos, citado e ado-
tado, inclusive em cursos de Administração.
Como intelectual Maurício Tragtenberg sempre
questionou a divisão entre “saber operário e saber in-
telectual”. Escrevia em jornais de grande circulação
como Folha de S. Paulo, mas o seu percurso o levou
a escrever no jornal Notícias Populares, chamado por
muitos de imprensa marrom, mas um jornal de gran-
de apelo popular. Durante anos manteve a coluna
semanal No Batente, endereçada aos trabalhadores
oprimidos, assujeitados, subestimados e excluídos
tanto das fábricas quanto da sociedade, respondia
cartas e dava visibilidade para os despercebidos.
Dar voz a homens e mulheres, minorias, era o que ele
fez anos a fio. É assim que Ozaí da Silva mostra a atua-
ção e dedicação de Tragtenberg ao operar em dois pólos:
na academia, orientando estudantes e pesquisadores,
traduzindo e organizando coletâneas, divulgando nomes
e pensamentos anarquistas e também como ativista e
intelectual discutindo e orientando trabalhadores, enfa-

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tizando a autonomia e auto-organização, contra a repre-


sentação sindical e partidária; contra o “cassetete demo-
crático” (p. 130), que apenas servia para acabar e calar
greves. Em tempos atuais de reivindicações, capturas e
acomodações dos movimentos sociais, que não resistem,
mas participam fervorosamente do Estado, é como se
Maurício Tragtenberg fizesse parte de outro mundo.
Em “A delinqüência acadêmica”, republicada em
2002, na revista Verve n. 2, Tragtenberg criticou a aca-
demia, sua neutralidade, técnicas e fins que justificam
uma pedagogia burocrática. Descreveu minuciosamente
a maneira com a qual as instituições passaram a atuar
como empresas valendo-se de “critérios mercadológicos”,
vendendo um produto, isto é, conhecimento àqueles que
podem investir, consolidando, assim, o aluno como clien-
te e inflando o controle burocrático, compondo o que ele
denominou delinquência acadêmica. Segundo Ozaí da
Silva: “o delinquente acadêmico tem a capacidade sin-
gular de privilegiar meios, desconsiderando os fins (...)”
(p. 244).
Maurício Tragtenberg foi também um crítico ferrenho
da administração escolar, da sua produção e profusão
de estigmas. Ozaí da Silva aborda como Tragtenberg,
problematizou o investimento das instituições escolares
em vigiar e punir os alunos rebeldes, “problemáticos” (p.
257), para serem enquadrados ou expulsos da escola
caso não obedecessem à autoridade e não seguissem a
hierarquia. Em contrapartida, a domesticação, a incul-
cação, o investimento no bom aluno, em nome dos as-
sujeitamentos, docilidades, prevalecem fundamentando
recompensas e méritos. Neste sistema impera o exame;
a valorização do papel do “professor-policial” alinhado a
uma pedagogia repressiva.
Ozaí da Silva, ao longo do livro mostra como Maurício
Tragtenberg atravessou várias experiências libertárias,
fez e aconteceu; foi um homem que não aceitou nenhum
tipo de autoritarismo, nem de esquerda nem de direita.
A maneira como pôs em prática o seu pensamento

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Política e a organização das ilegalidades contemporâneas

libertário, numa perspectiva anti-autoritária e solidária


leva o leitor a compreender por que influenciou pessoas,
deixou sua marca e dá saudades. O autor, procurou
se despir de elogios a Tragtenberg, para analisar sua
pedagogia libertária.
Ler este livro é saudável para quem se depara com a
onda do conformismo disseminada na atualidade e dela
quer escapar. É para sacudir os jovens sorumbáticos
que acreditam única e exclusivamente na participação
democrática, conformados e confinados. É para profes-
sores burocráticos e empertigadinhos. Para sábios da
ocasião. Para se rebelar. Mas será que esses caras que-
rem saber disso? Maurício é para heterodoxos, libertá-
rios e anti-pluralistas. Para Tragtenberg, o pluralismo
era a nova ideologia dos conservadores.

política e a organização das ilegalidades


contemporâneas edson passetti *

Jeremy Scahill (2008). Blackwater. Tradução de Cláudio


Carina e Ivan Weiz Kuck. São Paulo, Companhia das Letras,
2008, 548 pp.; Misha Glenny (2008). McMáfia. Tradução
Lucia Boldrini. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, 440
pp.; Roberto Saviano (2006). Gomorra. Tradução de Elaine
Niccolai. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 2008, 350
pp.

Três livros escritos por jornalistas chamaram a aten-


ção entre as publicações lançadas no Brasil no ano de
2008. Foram eles: Blackwater, McMáfia e Gomorra. O
* Edson Passetti é professor na Faculdade de Ciências Sociais na PUC-SP,
coordena o Nu-Sol e é autor entre outros livros de Anarquismos e sociedade de
controle (São Paulo, Cortez, 2003), Anarquismos urgente (Rio de Janeiro, Achiamé,
2007) e em parceria com Acácio Augusto, Anarquismos e educação (Belo
Horizonte, Autêntica, 2008).

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assunto em comum: ilegalidades, as novas formas de


segurança, a refundação da organização empresarial,
e a renovação dos usos e abusos sobre os trabalha-
dores. Anunciam, na atual sociedade de controle, o
redimensionamento transterritorial da segurança le-
gal ou ilegal, garantindo a continuidade do empreen-
dimento capitalista globalizado, no leste de herança
socialista, no Oriente Médio, passando por África e
América Latina; atuando principalmente, a partir da
China-Japão, Europa e Estados Unidos.

1. Diplomacia, força repressiva de Estado


e novos dispositivos de segurança

A diplomacia combinada com o uso das forças ar-


madas para a guerra (interna ou externa) propiciou,
durante o século 20, reviravoltas surpreendentes na
oscilação pendular entre guerra e paz que dá vida, sen-
tido e poder ao Estado. Mesmo depois de abalado por
movimentos libertários, o Estado-nação saiu fortalecido
das guerras imperialistas e específicas mais ou menos
justas, pelo vaivém celebrado entre tratados, pactos,
acordos, o uso deliberado do terrorismo de Estado e
aplicação de programas genocidas.
O Estado moderno, intensamente, marcado pela
necessidade de segurança à propriedade e aos seus
ideais, às práticas de governo e ao controle da popu-
lação sempre lançou mão de efeitos de legalidades e
ilegalismos imperativos à sua continuidade. Agiu por
meio dos variados regimes políticos em conformidade
com a constituição, a lei, mas, também, com o poder de
acionar dispositivos de exceção e agendar negociações
suspeitas. Dentre as mais antigas estão o recrutamen-
to de mercenários, o financiamento de forças oposi-
cionistas ao governo de contorno político-econômico
antagônico, a espionagem, a delação, a infiltração nos
grupos revolucionários...

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Política e a organização das ilegalidades contemporâneas

A vida do Estado não se restringe à constituição, ao


fazer e aplicar leis, às amistosas políticas articuladas
de maneira circunstancial entre Estados e governos
em nome dos povos; tampouco a sua existência, no
âmbito internacional, encontra-se relacionada à inter-
minável guerra de todos contra todos. Essa crença —
decisiva para as políticas colonialistas européias até o
século 19 e mais tarde aos variados imperialismos —,
disseminada desde o realismo hobbesiano, funciona
como um duplo vínculo. De um lado, sem o Estado,
a diplomacia e as forças armadas, a possível paz ex-
terna, mesmo que temporária, é improvável. De outro
lado, sem a ameaça contínua de guerra internacional
o Estado não tem como justificar sua existência, inti-
mamente relacionada aos ilegalismos, aos dispositivos
de exceção e terrores em nome da segurança — nova-
mente dele mesmo, do seu governo, dos seus ideais e
da luta em defesa da sua população. A continuidade
do Estado depende da crença numa iminente situa-
ção de guerra interna ou internacional para que seja
possível prorrogar a utopia da paz. O caminho traçado
pelos governos para este fim é anunciado como difícil,
árduo, quase interminável e exigindo, além de muitas
sutilezas diplomáticas, enormes vistas grossas. Em
defesa da sociedade, do Estado e da população produ-
zem-se os intermináveis e incontornáveis ilegalismos,
que, por sua vez, geram leis, tribunais, fiscalizações,
forças reativas, outros ilegalismos...
Chegamos a um momento que o Estado precisa cada
vez mais de amparos de segurança e para tal, passa a
privatizar a segurança pública interna e externamente.
Aqui começa a importante contribuição do livro de
Jeremy Scahill, Blackwater, mais que uma empresa,
um programa de colaboração público-privado. O li-
vro mostra como o Estado passou a atrair investi-
dores privados para colaborarem na administração
participativa do aparelho repressivo, especialmente
na disciplina das prisões (fomentando políticas de to-
lerância zero) e na proteção às forças armadas (que

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2009

zelam pela democracia planetária) em tempos de paz


e guerra. Presenciamos as variadas contratações de
mercenários muito bem remunerados, tanto para
lutar ao lado das forças armadas no exterior e pre-
servar os trajetos de patentes superiores, como para
transportar alimentos e armamentos, configurando
mais uma surpreendente especialização na política
de manutenção do estado de guerra. Trata-se de um
registro documental marcante dessa época de presen-
ça estadunidense no pós-guerra ao Afeganistão (desde
o embate financiado contra a influência soviética, in-
cluindo acertos e desacordos com o Taleban e os des-
dobramentos em terrorismos de mão dupla, desde o 11
de setembro de 2001) e das ressonâncias internas no
combate ao crime pelo aparecimento da prisão de regime
disciplinar máximo controlada por grupos empresariais
conservadores articulados com religiosos.

2. Segurança ilegal no interior dos Estados

O chamado fim do socialismo, geralmente relacionado


pela imprensa e intelectuais liberais à queda da URSS,
é também considerado o marco das mudanças em
McMáfia, de Misha Glenny. Ele expõe os efeitos in-
contáveis desde então, incluindo, o mais importante
deles: a emergência da China capitalista empresarial
governada pela mesma ditadura do proletariado que
pregava a planificação econômica, a “revolução cultural”,
a uniformidade e a subserviência dos trabalhadores ao
Partido.
Os diversos relatos jornalísticos de Glenny auxi-
liam o pesquisador a acompanhar como o neoliberal
mercado globalizado e democrático exigiu a mesma
subserviência com a qual o proletariado chinês servia
ao partido e à sua vanguarda revolucionária. A ve-
lha e experimentada máxima capitalista vingou nova-
mente: o mercado capitalista governa com qualquer
regime político! Nesta mesma ocasião, a burocracia

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Política e a organização das ilegalidades contemporâneas

soviética capitalizou a miséria e se expandiu a partir


da potencialização do tráfico (não há capitalismo sem
tráfico, nos primórdios, nas reformas, na atualidade).
A população pobre, sem pai, providência ou coman-
dante recolheu as sobras dos empregos ou aderiu às
grandes gangues, as novas máfias, para as quais pas-
sou a vender qualquer coisa, inclusive suas filhas e a
si mesmos para trabalhos clandestinos na Europa...
Enquanto isso os ideólogos do capitalismo liberal fes-
tejavam sua vitória lado a lado com empresários e os
novos emergentes sociais, proclamando em pesqui-
sas, entrevistas, artigos e livros que o mercado livre
tinha se estabelecido definitivamente. Com o fim do
socialismo soviético desdobraram-se os ilegalismos
de segurança voltados para assegurar o trânsito de
produtos legais e ilegais, etnias, monopólios sobre
parte da força de trabalho e até mesmo governo de
prefeituras e condomínios de luxo.
A globalização socializou a miséria e consolidou
as relações econômicas, sociais, culturais e políticas
por meio de programações computo-informacionais
de produção e segurança, próprias da sociedade de
controle. Nesta os espaços de ocupação sob vigilância
são contínuos e ampliados, e os limites deslocados,
constantemente, redesenhando fronteiras de Estado
e continentes, como Europa; os fluxos de produtos
e populações são ininterruptos sob uma convocação
generalizada à participação democrática na política,
na empresa, na cultura, exceção feita às organizações
de segurança ilegais que continuam estruturadas
pela verticalidade de poder. É aqui que McMáfia, de
Glenny e Blackwater, de Scahill, escancaram o triân-
gulo segurança, Estado de Direito e “controle” do con-
trole da corrupção. Mais do que a metáfora de uma
figura geométrica, as reportagens abordam a tridi-
mensional expansão medonha dos lados do triângulo:
segurança a qualquer preço e para todos os preços;
Estado de Direito para fomentar uma pletora de di-
reitos para calar as forças ativas de resistências pelas

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negociações de maiorias; corrupção desenfreada em


sintonia com a ampliação das instituições nacionais
e transterritoriais de controle. A queda do socialismo,
enfim, propiciou mais lucratividades ao capitalismo
com tráfico de drogas e pedras preciosas, escravismo,
semi-escravismo, rebaixamentos salariais, genocídio
e cibercrimes produzidos por um contingente inume-
rável de desempregados e semi-empregados da pro-
dução legal.
Os dois livros são referências para estudos que vi-
sem compreender o novo redesenho da segurança pe-
las organizações ilegais, parceiras voluntárias ou in-
voluntárias de governos, atuando dentro das cidades
e administrando-as também como campos de concen-
tração a céu aberto. Esta segurança ha-bita condomí-
nios verticais ou horizontais, favelas, empresas, áreas
territoriais georreferenciadas, popu-lações demarca-
das como vulneráveis e hipotéticos níveis de qualidade
de vida, fiscalizações por meio de relatórios de impac-
tos ambientais, e ambíguas vigilâncias em nome da
responsabilidade social: atuam para contornar, vigiar,
produzir produtos e matar.
Nestes tempos de refundação dos ilegalismos, não
faltam bilhões de pessoas silenciadas ou assujeita-
das incluídas na produção de riquezas e que jamais
chegarão a provar a convocação à participação de-
mocrática na política, na empresa, na comunidade,
como a grande parte de trabalhadores pobres e me-
dianos empregados já capturados. Essa poderá ser a
herança para seus descendentes. Por ora, espera-se
que eles vivam, breve e clandestinamente, em quartos
coletivos com sua imensa solidão; que esperançosos
de uma liberdade promovida pelos meios de comuni-
cação, durmam com a televisão ligada; que aprendam
que esse não é o dark side do capitalismo, mas a ilu-
minação das faces indistinguíveis da população.

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Política e a organização das ilegalidades contemporâneas

3. Gomorra: religião e ciência,


os mesmos recomeços.

As forças ilegais assemelham-se aos corsários que


trabalhavam para o Estado e as companhias coloniais;
nada têm em comum com os piratas, com seus paraí-
sos tropicais de descanso, sexo e embriaguez, benefi-
ciando-se das mercadorias roubadas. Roberto Saviani,
em Gomorra, percorre a Camorra italiana que o leitor
encontra transitando no mesmo fluxo de Blackwater
e McMáfia, complementando-o e renovando-o. O jor-
nalismo atento, agora nos mostra mais do que mer-
cenários e gangues ilegais, junções, permutas, con-
tinuidades do ilegalismo na legalidade de empresas,
políticas, Estados; coloca-nos diante de um ampliado
modo de produzir produtos e verdades: a Camorra é
o investimento com suas próprias leis, funcionando
como um sistema multiplicador que evita confrontos
com em-presas legalizadas e governos.
O que poderia parecer passível de solução — depois
da leitura dos livros anteriores —, por políticas sanea-
doras, reviradas morais, tolerâncias com tolerâncias, a
leitura de Gomorra nos remete a constatar irreversíveis
expansões deste modo atual de produzir compatível
com os históricos e tradicionais ilegalismos capitalis-
tas e seus posteriores acomodamentos legais. A velha
refundação do capitalismo como neoliberalismo, ou a
atual, com a volta da intervenção econômica do Estado,
são sempre favoráveis às empresas e às renovadas for-
ças que colaboram para o mesmo movimento pendular,
sob velocidades oscilantes. Segundo as composições de
forças, as refundações podem até mesmo propiciar a
restauração do discurso socialista democrático ou do
keynesiano, mas o que o capitalismo planetário pre-
tende mesmo é ser literalmente universal, ultrapassar
a galáxia.
O capitalismo se quer eterno e com força e direito
para ocupar o universo em expansão, que ainda re-

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2009

verbera, segundo a física contemporânea, ruídos do


Big-bang. Vivemos, ainda, sob o efeito da produção do
saber pelos grandiosos começos, eloquentes inícios, o
marco da origem. Diante de tantas renovações e dessa
inércia do saber, nada mais adequado do que o título do
livro de Saviano: Gomorra, a cidade irmã de Sodoma,
o par bíblico amaldiçoado. Numa era em que ciência e
religião estão cada vez mais próximas, pela origem cien-
tífica ou pelo criacionismo, pelas práticas de governo
de Estado e terrorismos fundamentalistas, ou até mes-
mo pela busca de renovação do discurso religioso livre
de ortodoxias e flexibilizado pelas descobertas cientí-
ficas, o autor não teme expor essa moral, nem dissol-
ver o glamour das empresas em sórdidas relações de
trabalho, os trâmites de containners de mercadorias
e cadáveres, os universitários suburbanos assinando
pareceres ambientalistas, o lixo cibernético crescendo
e contaminando, a multiplicação de crianças podres,
de jovens vendidos, de padres resistentes: a Camorra
como sistema. Gomorra leva o leitor para um limite
adiante que deixa intocável o niilista convicto.

∞. ...
O capitalismo entra em nova-velha fase, própria
de seu pendular funcionamento. Abre-se a era de re-
fundação do capitalismo globalizado e do correlato
altermundialismo. E o que estes, incluindo uma boa
parte dos anarquistas que pressionavam por retoma-
da dos direitos sociais, exigirão? De novo, a revolução
universal? A revolução universal na Via Láctea? Ou
estarão definitivamente capturados pelo governo das
verdades articulado por meio de palavras-chave?
Enquanto isso, um sistema de produção de pro-
dutos e gentes amplia e nanifica o universo em inter-
mináveis especialidades; faz de inovadoras linhas de
fuga a sucessão desenfreada de resistências reativas;
condensam a invenção dos povos a uma população

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Política e a organização das ilegalidades contemporâneas

de bilhões de pessoas divididas entre os sem rosto,


sob controle eletrônico a serviço da segurança, e as
devotas participativas repletas de direitos, mensagei-
ras de agendas e maiorias, voluntários amantes da
obediência.
Blackwater — a empresa em fluxo atuando em va-
riados ramos de segurança com polícia e forças ar-
madas —, McMáfia — essa maneira de produzir segu-
rança por meio de organizações, circunstancialmente,
construídas como criminosas, a serviço de gente de
bem, inevitavelmente enredada com polícia e forças
armadas — e Gomorra — a nova cara da moral depois
do combate a Sodoma, do sexo livre, da embriaguez e
das liberdades condenadas —, compõem, para o pes-
quisador, arranjos de procedências marcantes para o
estudo e a ampliação de sua compreensão da socie-
dade de controle. Mas o que eles não mostram é como
os rebeldes transitam como surpreendentes vacúolos,
invisíveis e imperceptíveis.

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2009

Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos


Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

Hypomnemata, boletim eletrônico mensal, 1999-2009.


Flecheira libertária, semanal, 2007-2009.
Ágora, agora, apresentação da série ao vivo de setembro a outubro de
2007; reapresentação de janeiro a março de 2008 e de fevereiro a abril de
2009.
Ágora, agora 2, apresentação da série de setembro a dezembro de 2008;
reapresentação de abril a julho de 2009.
Os insurgentes, apresentação de abril a junho de 2008; reapresentação
de junho a agosto de 2008 e de dezembro de 2008 a fevereiro de 2009.
Canal universitário/TVPUC e transmissão simultânea em
http://tv.nu-sol.org.

Aulas-teatro
Emma Goldman na Revolução Russa, maio e junho de 2007.
Eu, Émile Henry, outubro de 2007.
Foucault, maio 2008.
Estamos todos presos, novembro de 2008 e fevereiro de 2009.
Limiares da liberdade, junho de 2009.

DVD
Ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo.

Os insurgentes, edição de 9 programas.

Vídeos
Libertárias, 1999.
Foucault-Ficô, 2000.
Um incômodo, 2003.
Foucault, último, 2004.
Manu-Lorca, 2005.
A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola, 2006.
Cage, poesia, anarquistas, 2006.
Bigode, 2008.

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CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo).

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004

1. a anarquia Errico Malatesta

2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston

3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.

4. municipalismo libertário Murray Bookchin

5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux

6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky

7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua

portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva

8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin

9. deus e o estado Mikhail Bakunin

10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin

11. escritos revolucionários Errico Malatesta

12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares

13. do anarquismo Nicolas Walter

14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,

Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero

15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou,

Breton, Schuster, Kyrou, Legrand

16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,

Berkman

17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti

18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo

Colombo

19. o essencial proudhon Francisco Trindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin

21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud

22. a instrução integral Mikhail Bakunin

23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,

Enckell

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24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag

25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón

Safón

26. a revolução mexicana Flores Magón

27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Co-

lombo

28. Bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval

29. Autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta

Livros
Edson Passetti e Acácio Augusto. Anarquismos e educação. São Paulo,
Autêntica, 2008.
Edson Passetti. Anarquismo urgente. Rio de Janeiro, Achiamé, 2008.
Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). Terrorismos. São Paulo, Educ,
2006.
Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). A tolerância e o intempestivo. São
Paulo, Ateliê Editorial, 2005.
Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,
Editora Revan/Nu-Sol, 2004.
Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê Editorial,
2004.
Beatriz Scigliano Carneiro. Relâmpagos com claror: Lígia Clark e Helio Oiticica,
vida como arte. São Paulo, Ed. imaginário/FAPESP, 2004.
Thiago Rodrigues, Política e drogas nas Américas. São Paulo, Educ/FAPESP,
2004.
Thiago Rodrigues, Narcotráfico, uma guerra na guerra. São Paulo, Desatino,
2003.
Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone
Editora/Nu-Sol, 2003.
Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário/
Nu-sol, 2001.

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recomendações para colaborar com verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho


Editorial para possível publicação. Os textos enviados à revista Verve
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espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times New Roman,
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Resumo:

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em português e inglês — e de três palavras-chave (nos dois idiomas).

Notas explicativas:

As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de


fim de texto.

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto


observando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Guilherme Corrêa. Comunicação, educação, anarquia: proce-


dências da sociedade de controle no Brasil. São Paulo, Cortez, 2006,
p. 74.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,


página.

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Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios,


vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, p.76.

III) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não sequencial: Nome do autor, ano,


op. cit., p. número da página.

IV) Para resenhas

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o título,


da seguinte maneira:

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de


páginas.

Ex: Roberto Freire. Sem tesão não há solução. Rio de Janeiro, Ed.
Guanabara, 1987, 193 pp.

V) Para obras traduzidas

Nome do autor. Título da Obra. Tradução de [nome do tradutor].


Cidade, Editora, ano, número de páginas.

Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. Tradução de Salma


T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico para o


endereço nu-sol@nu-sol.org salvos em extensão rtf. Na impossibilidade
do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete ou cd seja
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São Paulo/SP.

Informações e programação das atividades


do Nu-Sol no endereço: www.nu-sol.org

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Publicação da Associação Cultural A VIDA
www.utopia.pt
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Letralivre
Revista de cultura libertária, arte e literatura
Robson Achiamé, Editor
www.achiame.net
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Vócero ácrata de ideas y propuestas de acción
www.nodo50.org/ellibertario
Venezuela

El Libertário
Publicación de la Federación Libertaria Argentina.
www.flying.to/fla
www.anarquia.org.ar (versão digital realizada pelo Colectivo Libertario Mar
del Plata
Argentina

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