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Renascimento:
— Sim ou não?
A nossa compreensão do período que vai de Filipe, o Belo [século XV] a Henrique IV – século
XVI) ficaria muito facilitada se fossem suprimidos dos livros de Historia dois termos solidários e
solidamente inexactos: Idade Média e Renascimento. Com isso se abandonaria todo um conjunto de
preconceitos. Ficar-se-ia, especialmente, livre da ideia de ter havido um corte brusco que veio separar
uma época de luz de um período de trevas
Criada pelos humanistas italianos e retomada por Vasari, a noção de uma ressurreição das letras
e das artes graças ao reencontro com a Antiguidade foi, seguramente, fecundada, como fecundos são
todos os manifestos lançados em todos os séculos, por novas gerações conquistadoras. Essa noção
significa juventude, dinamismo, vontade de renovação. Mas o termo Renascimento, mesmo na acepção
estrita dos humanistas que o aplicavam essencialmente, à literatura e às artes plásticas, parece-nos
actualmente insuficiente. Parece rejeitar, como bárbaras, as criações simultaneamente sólidas e
misteriosas da arte românica e aqueloutras, mais esbeltas e dinâmicas, da idade gótica. Não dá conta
nem de Dante, nem de Villon, nem da pintura flamenga do século XV. E, principalmente, ao ser alargado
às dimensões de uma civilização (…) mostrou-se inadequado. Não afirmou Burckhardt — que não tinha
em conta a economia —, há já um século, que , no essencial, o Renascimento não fora uma
ressurreição da Antiguidade? Ora, se dermos aos factos da economia e à técnica o lugar que lhes cabe,
o juízo de Burckhardt ganha ainda mais verdade. Pois o regresso à Antiguidade em nada influiu na
invenção da imprensa ou do relógio mecânico, nem no aperfeiçoamento da artilharia, nem no
estabelecimento da contabilidade por partidas dobradas, nem no das letras de câmbio ou das feiras
bancárias.
Mas as palavras têm muita vida, impõem-se-nos contra a nossa própria vontade. Com que
haveríamos de substituir a palavra Renascimento? Com que outro vocábulo designaríamos essa grande
evolução que levou os nossos antepassados a mais ciência, mais conhecimento, maior domínio do
mundo natural, maior amor pela beleza?
(…) Mas que fique entendido: esta palavra já não pode ter o sentido original No âmbito de uma
história total significa (e não pode significar outra coisa) a promoção do Ocidente numa época em que a
civilização da Europa ultrapassou de modo decisivo, as civilizações que lhe eram paralelas
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, vol 1, Ed Estampa
Reflectir sobre:
Helena Almeida (n. 1934) começou a pintar convencionalmente. Mas, a partir dos anos 70 e tendo
contactado com a obra de Lucio Fontana (e com a forma como este incorpora na pintura na 3.ª dimensão,
através de cortes e perfurações na tela), passou a situar-se nas chamadas práticas anticonceptuais, que
rompem com os processos e formatos mais tradicionais e utilizam novas experiências, como a fotografia.
Assim, na obra de Helena Almeida, observamos quase sempre um jogo entre duas formas de
representação distintas: por um lado, a imagem da fotografia da própria artista a executar um determinado
gesto, que é, por outro lado, completado ou prolongado com um acrescento ou colagem de fios (crina) ou
pinceladas de tinta, Cria, assim, dois momentos distintos: o passado, que é a fotografia, e o depois, ou seja,
os elementos que ela adiciona posteriormente. Deste modo, dá-nos a noção distinta de tempo.
A essência do seu trabalho é, então, a fixação desse espaço temporal entre dois actos distintos
executados na mesma superfície.
Normalmente, a pincelada sobrepõe-se à fotografia, ora limitando-a ora alterando-a, oferecendo
sempre novas possibilidades de leitura, através da opacidade azul, negra ou vermelha da tinta,
prolongando os limites da representação do corpo e do gesto fixado.
Esta série de trabalhos, intitulada “Sente-me, Ouve-me, Vê-me, é formada por um conjunto de
fotografias completadas por uma peça de vídeo (que contém o tema Vê-me) e uma peça de som, alargando
o seu campo de intervenção a outras áreas. Juntando à fotografia, os fios de crina, o som e a imagem
vídeo, criou um campo sensorial mais vasto: um representado e outro não representado, abrigando a uma
maior envolvência do observador.
Estes trabalhos remetem para os gestos e para as atitudes implícitas no título “Sente-me, Ouve-me,
Vê-me”, embora correspondam exactamente ao contrário do enunciado. Nos trabalhos “Vê-me”, os olhos
estão fechados; no “Ouve-me” a boca está suturada com fios. Limitamo-nos, pois, a “Sentir”.
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A. O Homem Universal,
desenho de Leonardo da B. O Homem, autor de si próprio
Vinci para representar, de O arquitecto supremo escolheu o homem, criatura de natureza
acordo com o romano imprecisa, colocando-o no centro do Mundo, dirigiu-se-lhe nestes
Vitrúvio, o cânone ideal do termos:
corpo humano. “Ó Adão […], tu que nenhum limite constrange de acordo com
a livre vontade que colocámos nas tuas mãos, decidirás dos próprios
limites da tua natureza. Colocámos-te no centro do Mundo para que
daí possas observar facilmente as coisas. Não te criámos nem céu, nem
terra; nem mortal, nem imortal, para que, por teu livre arbítrio, como
se fosses o criador do teu próprio modelo, tu possas escolher e
modelar-te da forma que preferires […]. Pelo teu poder poderás,
graças ao discernimento da tua alma, renascer nas formas mais altas
que são divinas.
Pico della Mirandola (humanista florentino),
Discurso acerca da Dignidade Humana. 1486
Idade Moderna – Período da História que sucede à Idade Média, compreendendo os séculos XV, XVI, XVII e XVIII.
Convencionalmente, inicia-se com a queda do Império Bizantino em 1453 (face ao avanço dos Turcos Otomanos) e termina
com a Revolução Francesa, em 1789.
Individualismo – Corrente doutrinal e prática que defende, para cada homem, a concretização das potencialidades e
características próprias e sobrevaloriza o papel do indivíduo na evolução das sociedades e da História.
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Panorâmica da cidade de Florença, a cidade-
berço do Renascimento, onde se vê a cúpula da
Catedral de Santa Maria das Flores e o telhado
branco do seu baptistério
Foi em Florença, no século XV, que
nasceram e/ou se desenvolveram os maiores
génios artísticos do Renascimento, como
Masaccio, Botticelli, Alberti, Donatello, Leonardo
e Miguel Ângelo, para só citar alguns. Esta
coincidência explica-se pela precoce prosperidade
económico-financeira (indústrias de lã e tinturaria,
comércio rico, aparecimento dos câmbios, bolsas
e bancos) que aí, desde o século III, se foi
desenvolvendo e permitiu aos seus comerciantes financiar reis e imperadores em toda a Europa. A boa
situação económica garantiu a independência política da cidade. Constituída como república livre,
Florença criou um ambiente social único, aberto e cosmopolita, propício ao incremento cultural que era
amplamente favorecido pela política dos burgueses que a governavam, como os Médicis.
Este espírito foi igualmente impulsionado pela descoberta da cultura clássica e consequente
paixão pela arqueologia que se registou primeiro na Itália, devido a ter sido aí o centro do mundo romano,
mas que se tomou comum a todos os espíritos cultos da Europa.
Estes factos foram estimulados por uma conjuntura propiciadora — crescimento demográfico e
urbano, abertura comercial e maior dinamismo socioeconómico, centralização do poder político e novos
intercâmbios culturais — que primeiramente se manifestou em Itália e depois se estendeu pela Europa.
Esta conjuntura histórica do Renascimento (séculos XV-XVI), expansionista e optimista, deu
lugar, a partir de meados da centúria de Quinhentos, a um período mais instável. O movimento da
Reforma Protestante e a enorme cisão que causou entre os cristãos abalou tremendamente os espíritos.
As guerras e lutas religiosas que então se geraram (como a Guerra dos 30 Anos que, em 1618, partindo de
um acontecimento religioso se tornou numa guerra europeia) dividiram as nações, causaram perseguições
cruéis e desestabilizaram a vida económica, Os reis fortaleceram os seus poderes e o seu controlo sobre as
populações, prenúncio do absolutismo. A Igreja Católica encetou a Contra-Reforma, reforçando os
poderes fiscalizadores da Inquisição e do Índex.
Assim, tal como a expansão económica e o crescimento populacional degeneraram em depressão e
crises económicas e demográficas, ao racionalismo optimista e confiante do século XV e começos do
século XVI sucedeu a dúvida, o cepticismo e a crise de valores; à liberdade intelectual sucedeu a censura
e o controlo ideológico.
Reflexo dos tempos, a Arte perdeu a clareza formal e o rigor lógico e conceptual das primeiras
manifestações, enveredando pelos perfeccionismos técnicos, pela exploração dos sentimentos e da
sensualidade, pelo individualismo estilístico e pelo decorativismo. Chegara a época do(s) Maneirismo(s),
período de transição que em breve evoluiria no sentido do Barroco.
Reforma Protestante – Movimento de protesto contra o Papa e a moral da Igreja Católica. Surgiu em inícios do
século XVI, na Alemanha, com Martinho Lutero, e alastrou a numerosas outras regiões da Europa do Norte e Leste, criando a
maior cisão do Cristianismo depois do Cisma do Oriente. A Reforma deu origem às Igrejas protestantes ainda hoje existentes.
Contra-Reforma – Movimento criado pelos papas do Vaticano para combater o Protestantismo, em prol da
continuação da doutrina e dos dogmas da Fé católica.
Inquisição – Tribunal eclesiástico destinado a velar pela pureza doutrinal da Igreja Católica e a julgar questões de fé e
heresias. Criado no final da Idade Média, viria a ser instrumento privilegiado da Contra-Reforma, destacando-se pelo ímpeto
repressivo e pela crueldade dos seus métodos.
Índex – Congregação religiosa criada em 1519 pelo Papa Paulo IV para vigiar as publicações intelectuais, proibindo a
difusão e leitura das obras consideradas heréticas ou portadoras de ideias e valores contrários aos ensinamentos da Igreja.
Maneirismo – Corrente artística que se iniciou em Itália no segundo quartel do século XVI e se difundiu por toda a
Europa, até cerca de 1600, nas suas manifestações mais tardias. Produziu uma arte de corte, elitista, tecnicista e lúdica, que
privilegiou a sensualidade, o dramatismo e o movimento.
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A Europa das rotas comerciais, das ideias
e dos objectos de cultura (O espaço)
Em finais do século XV e início do século XV[…]tudo muda. Em 1492, Colombo atravessa o Atlântico e
“descobre” as Antilhas; nos anos que se seguem chega ao continente americano. Em 1498, Vasco da Gama dobra
o Cabo da Boa Esperança e abre o caminho marítimo para a Índia. Em 1500 Pedro Álvares Cabral aproa à costa
brasileira. Em 1519, Cortez desembarca no México [...]. Por fim, em 1522, as naus de Fernão de Magalhães
concluem a primeira volta ao Mundo […]. Nunca trinta anos modificaram tanto face do Mundo!
Tzevtan Todorov, Viajantes e Indígenas, em Eugénio Garin, (dir. de), O Homem Renascentista Presença, Lisboa
A Europa das rotas comerciais foi o resultado de grandes transformações ocorridas, algumas delas,
desde o século XII e outras, neste período, com a abertura comercial iniciada no Mar Mediterrâneo, pela
Itália.
Tal deveu-se, primeiro, à burguesia das cidades italianas (em franca ascensão, rivalizando com a
aristocracia), que gozava de uma boa situação política e de urna economia baseada no comércio
internacional e nas lucrativas actividades financeiras; e, em segundo lugar, às grandes descobertas
geográficas transcontinentais e transoceânicas, nas quais Portugueses e Espanhóis foram pioneiros.
Esta abertura, que do Mediterrâneo chegou ao Atlântico, ao Báltico e ao Oriente, foi de
extraordinária importância, uma vez que:
• quebrou o isolamento europeu, abrindo as portas a uma época de grandes intercâmbios culturais
animados pelo espírito de aventura e gosto pelas viagens;
• permitiu às nações europeias a construção de um comércio à escala mundial que foi motor de
desenvolvimento interno e seu sustentáculo económico e financeiro até ao século XVIII;
• revelou aos Europeus, pela primeira vez, a verdadeira dimensão e forma do globo terrestre,
dando a conhecer a quantidade dos mares, continentes e ilhas, a variedade dos climas, das faunas e das
floras, a multiplicidade dos povos, culturas e religiões;
• proporcionou a elaboração de numerosos novos saberes, construídos com base na observação e
na experiência vivida, que estão na base do arranque da ciência ocidental;
• levou à formulação de novos conceitos sobre o Homem e a existência.
Foi a mundialização das rotas, cio comércio, das ideias e dos objectos de cultura.
A Itália do Renascimento
Nos séculos XV e XVI, a Itália que hoje conhecemos ainda não
existia. O país encontrava-se dividido em várias unidades políticas
autónomas que se constituíam como reinos, ducados, principados e
repúblicas. De comum, a situação privilegiada no meio do
Mediterrâneo e o precoce desenvolvimento das actividades
artesanais, mercantis e financeiras.
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O palácio, habitação das elites.
As artes no palácio (O local)
A.
B.
No Renascimento, a vida centrou-se nas cidades — onde reis e príncipes construíram as suas
cortes, onde moravam os bispos e as grandes colegiadas, onde se instalaram as universidades, onde os
burgueses possuíam as suas sedes de negócios/palácios e até os nobres instalaram os seus palácios. Assim,
a vida mundana deslocou-se para a cidade.
No mundo urbano, o palácio era a habitação típica das elites (nobres, eclesiásticas e burguesas). De
planta quadrangular, ocupava normalmente, pelas suas dimensões, todo um quarteirão. Apresentava ainda,
do lado de fora, um aspecto compacto, fechado e maciço (o rés-do-chão possui poucas janelas colocadas a
grande altura, pois o mundo urbano continuava a requerer protecção e defesa).
Contrastando com o exterior, as fachadas internas, criadas em torno de um pátio central aberto
(cortile), rasgavam-se em elegantes loggias, galerias de arcos redondos, à maneira romana, decoradas com
mármores, medalhões de cerâmica esmaltada e peças de estatuária, O pátio era o centro orgânico do
palácio, cujas divisões, em cada piso, se desenvolviam quase simetricamente a partir dele; ordenava
também os eixos de circulação interior. Os pisos organizavam-se segundo critérios funcionais: o rés-do-
chão continha a área de serviços; o primeiro andar, as dependências nobres e sociais (piano nobile); o
terceiro, as zonas privadas.
A delicada elegância da loggia reflectia o luxo da decoração interior onde, desde o revestimento
das paredes, tectos e chãos, ao mobiliário e todo o equipamento, tudo era tratado com requinte e arte.
Orgulho dos seus proprietários, os palácios eram, igualmente, o símbolo da sua forma de vida.
Com efeito, as elites deste período criaram estilos de vida requintados onde o conforto e o luxo se
associaram ao gosto pelos prazeres mundanos e espirituais: banquetes, bailes e saraus eram
acompanhados por música, poesia ou teatro; bibliotecas e museus privados guardavam objectos raros,
relíquias e obras de arte, com fervor de coleccionismo.
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Muitos homens cultos, como Lourenço de Médicis, organizavam tertúlias (algumas apelidadas de
academias nas suas casas, para as quais convidavam os mais brilhantes filósofos e literatos da época.
Outros, amantes das belas-artes, convidavam artistas, fazendo-lhes encomendas e/ou patrocinando a sua
formação, desenvolvendo o mecenato (apoio e protecção à produção intelectual, literária, artística ou
científica).
Assim, os palácios reais e das famílias mais ricas e importantes transformaram-se em verdadeiros
centros culturais e artísticos, pequenas cortes onde os prazeres da vida, do corpo e do espírito, eram
verdadeira mente celebrados.
A. B. C.
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O Humanismo e a imprensa (Síntese)
O Humanismo foi a expressão literária do pensamento e dos valores dos intelectuais do
Renascimento. Os humanistas foram escritores, filósofos e professores que, imbuídos pelo espírito novo
do racionalismo, do individualismo e do antropocentrismo e fascinados pelos exemplos dos autores
clássicos, gregos e romanos, renovaram o pensamento europeu nas letras, nas ciências e nas artes e
produziram um movimento novo — o Humanismo. Este partiu de Itália (onde teve precursores como
Dante, Petrarca e Boccaccio) e expandiu-se por toda a Europa.
Amantes da erudição, os humanistas procuraram a Antiguidade nos originais e não nas versões
adulteradas da interpretação eclesiástica que a filosofia medieval fizera da Antiguidade. Por isso.
pesquisaram nas velhas bibliotecas e nos scriptoria dos mosteiros os manuscritos antigos e leram, em
grego e latim clássicos, as obras originais de Platão, Aristóteles, Cícero, Plutarco e outros.
Contudo, para os humanistas, admirar os clássicos não significava copiá-los, quer nos temas, quer
nos géneros literários — imitá-los consistia, sobretudo, em recriá-los com espírito criativo e crítico.
Assim, a cultura clássica foi entendida como instrumento pedagógico ao serviço do desenvolvimento de
capacidades intelectuais, de valores morais, do conhecimento de si próprio e do mundo envolvente, em
suma, ao serviço da formação da personalidade humana (antropocentrismo e humanismo).
A valorização da experiência pessoal, da Razão e do espírito crítico (e não apenas do saber livresco
e teórico) no processo de descoberta do Homem e do Mundo proposto pelos intelectuais do Humanismo,
constitui a consciência da modernidade.
A atenção dada ao seu tempo histórico e aos homens que nele viveram foi visível em muitas obras,
onde a utopia e a crítica social e política, bem como a preocupação com a educação dos jovens, foram
temas constantes.
Neste campo, ressaltam nomes como os de Baltasar Castiglione (1478-1529), Thomas More,
Erasmo de Roterdão, Nicolau Maquiavel, Giorgio Vasari (1511-74), que relatou as Vidas dos artistas
italianos mais célebres do seu tempo; e ainda Rabelais (1494-1553) em França e Damião de Góis (1502-
1574) em Portugal.
A par das línguas clássicas, os humanistas valorizaram as línguas nacionais, nas quais se
notabilizaram autores como Shakespeare (1564-1616), em Inglaterra, e Luís de Camões (1525?-1580) em
Portugal.
Optimistas em relação ao mundo, amantes da vida e da beleza, como os clássicos, os humanistas
souberam acreditar no homem sem deixar de acreditar em Deus, fazendo uma análise racional, um
livre exame, aos dogmas religiosos e à Sagrada Escritura, dando um sentido mais humanista à religião.
Para a rápida difusão do movimento humanista e para o sucesso dos seus autores, muito contribuiu
o aparecimento da imprensa. Trazida da China ou inventada por Gutenberg, o que é certo é que a
tipografia, a arte da impressão, surgiu na Alemanha por volta de 1440-50 onde foi impresso o primeiro
livro, por volta de 1456-58; em Portugal tal aconteceu em 1494.
Até ao século XV, os livros impressos eram, principalmente, de carácter religioso: Bíblias, missais,
vidas de santos...A partir do séc. XVI, também se publicaram romances de cavalaria, literatura de viagens,
reedição de clássicos, em latim ou grego, livros de medicina, de direito e obras dos humanistas da época.
Os livros, dado o seu preço, eram considerados produto de luxo e propriedade de importantes
coleccionadores. Apesar disso, o gosto pela leitura e a paixão pelos livros difundiu-se entre as mentes
mais evoluídas da época.
A paixão pelos livros e pelo saber (na lista de compras feita por Salutati a Jacopo da
Scarperia, humanistas Italianos)
Traz tantos livros quantos possas. Faz de maneira que não falte nenhum historiador, nenhum poeta,
nenhum tratado sobre fábulas poéticas. Faz-nos ter as regras de versificação. Gostaria que trouxesses toda a
obra de Plutão e todos os vocabulários disponíveis, indispensáveis para resolver as dificuldades de
compreensão.
compra -me Plutarco, todos os escritos possíveis de Plutarco e um Homero escrito em pergaminho, em
caracteres grandes. Se encontrares uma mitologia, compra-a também.
Coluccio Salutati, Carta a Scarperia, em Epistolário, vol. III, século XVI
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Três eminentes humanistas: A. Erasmo de Roterdão (1466-1536), autor de O Elogio da
Loucura, uma critica ousada à sociedade e ao clero na procura da definição de um humanismo cristão; B.
Nicolau Maquiavel (1469-1527), em Florença, que escreveu O Príncipe onde teoriza o Estado despótico,
com base na repressão; C. Thomas More (1478-1 535), em Inglaterra, que relatou A Utopia, criação
imaginária de uma sociedade mais igualitária.
A. B. C.
A formação de um cortesão
Que o cortesão Seja, além de nobre, homem de bem, isto é, prudente, bom, corajoso, confiante, belo e
elegante. Que a sua principal e autêntica profissão seja a das armas, que saiba todos os exercícios que convêm
a um militar. Que o perfeito homem de corte seja alegre, saiba jogar e dançar, que se mostre homem de espírito
e seja discreto.
As letras que Deus revelou aos homens são úteis e necessárias à vida e à dignidade do homem. Que o
cortesão conheça não só o latim, mas também o grego. [...] Que ele saiba escrever em verso e em prosa,
particularmente a nossa língua. Louvá-lo-ei também por saber várias línguas estrangeiras […]. A sua cultura
parecer-me-á insuficiente se não tiver conhecimentos de música e não basta que saiba ler a partitura, deve
ainda tocar vários instrumentos. [...] Há ainda um aspecto que julgo de grande importância: trata-se da arte
do desenho e da pintura. […] Que o nosso homem, de corte seja um perfeito cavaleiro de toda a sela: nos
torneios, nos duelos, nas corridas, no lançamento do dardo e da lança. [...] Convém também que saiba saltar e
correr.
Baltasar Castiglione, O Cortesão, 1528
9
O mecenas Lourenço de Médicis (1449-1492)
Lourenço, por ele mesmo
Que poderia haver de mais desejável para um espírito bem formado que a fruição do ócio na
dignidade? É o que todos os homens bons desejam obter, mas que tão-só os grandes homens
conseguem. [...] Não posso negar que o caminho que foi o meu quinhão tenha sido árduo e acidentado,
cheio de perigos, rodeado de traição. Mas eu me conforto, sabendo que contribuí para o bem do meu
país, cuja prosperidade pode agora rivalizar com a de todo outro Estado, por mais florescente que
seja. Não estive nunca desatento aos interesses e ao progresso de minha própria família, tendo-me
sempre proposto como exemplo de meu avô Cosme que vigiava os seus negócios públicos e privados
com uma igual vigilância. Tendo atingido desde agora o objecto de meus cuidados, estou confiante que
me será permitido gozar as doçuras do ócio, partilhar a reputação de meus concidadãos, e exultar na
glória da minha cidade natal.
Lourenço de Medicis, Cartas
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Curriculum vitae
1449 — Nasce Lorenzo, filho de Piero e de Lucrezia de Médicis, senhores da República de Florença, e
neto de Cosimo ou Cosme de Médicis, um dos maiores governantes da cidade, denominado pelo povo
paterpatriae (pai da pátria).
1464 — Viaja pela Europa: França, Nápoles, Milão, Roma...
1469 — Casa com Clarice Orsini, filha de uma família romana. A festa durou três dias. Por morte de seu
pai, Lourenço assume, com seu irmão Julião (1453-78), o governo da cidade.
1478 — Julião morre assassinado numa conspiração preparada pelos Pazzi com o apoio do Papa Sisto
IV. Lourenço escapa miraculosamente.
1480-91 — Lourenço consolida a sua posição no governo de Florença e na cena política italiana,
considerado árbitro absoluto.
Fez da sua cidade uma das mais ricas da Europa e o centro cultural mais brilhante do seu tempo.
1492 — Morre passando o poder a seu filho mais velho, Piero (1471-1503), que, dois anos depois, foi
expulso da cidade por incompetência política.
Benozzo Gozzoli, O cortejo dos Reis Magos, fresco da capela do Palácio dos Médicis, em
Florença, de c. 1459-61
1. Giovanni (ou João) de Médicis (1360-1429). Foi o primeiro dos Médicis a fazer parte do
governo de Florença, onde se notabilizou. Dirigiu com grande sucesso a casa bancária da família
e foi distinto mecenas (financiou a construção da Igreja de São Lourenço).
2. Cosimo, ou Cosme, de Médicis, Il Vecchio (1389-1464), sucedeu a Giovanni, seu pai, nos
negócios da família e no governo oligárquico de Florença, tendo sido um dos seus governantes
mais brilhantes e eficientes. Foi, também, um grande mecenas da cidade.
3. Piero de Médicis, Il Gottoso (1416-1469). Foi pior governante que seu pai Cosimo, mas um
amante da cultura e das artes, coleccionou manuscritos, livros e moedas antigos, fundou a
Biblioteca Médici.
4. Lourenço de Médicis, Il Magnifico (aqui um jovem de cerca de 15 anos)
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Lourenço de Médicis, um político e um mecenas
A conduta, a habilidade e a fortuna de Lourenço de Médicis constituíram assunto de admiração
para os príncipes, não só na Itália, mas nos países mais afastados. Matias, rei da Hungria, deu-lhe muitos
testemunhos da sua afeição. O sultão do Egipto cumprimentou-o e mandou embaixadores oferecerem-lhe
presentes [...]. O Grande Turco entregou-lhe Bernardo Banduri, assassino de seu irmão. Tudo isto lhe
concedeu a mais alta consideração na Itália, o que aumentava todos os dias com as provas dos seus dons.
Tinha uma palavra eloquente e espirituosa, decisão ajuizada, execução pronta e corajosa […].
Não se pode falar de vícios que fizessem sombra a tantas qualidades.
Lourenço de Médicis sonhou tornar a sua cidade a mais bela e maior [...]. Como encerrava
grandes espaços desprovidos de habitações, fez traçar sobre estes terrenos novas ruas para aí construir
edifícios que a tornaram maior e mais bela [...]. Graças a ele, a cidade, quando não estava em guerra,
estava perpetuamente em festa, convidada para torneios, para cortejos onde se representavam os mais
importantes acontecimentos e feitos da Antiguidade. [...] Acarinhava e estimava todos que eram notáveis
nas artes; protegia os homens de letras. […]
O conde Pico dela Mirandola, homem quase divino, atraído pela magnificência de Lourenço de
Médicis, preferiu permanecer em Florença, onde se fixou, a viver em qualquer parte da Europa que tinha
visitado. Lourenço dedicava-se, sobretudo, à música, à arquitectura e à poesia.
Nicolau Maquiavel, Histórias Florentinas, em Les Mémoires de l’Europe, vol. II
[Lourenço de Médicis] tinha adornado os Jardins da Praça de S. Marcos [em Florença] com
belas estátuas antigas; a Loggia, as áleas do parque, todas as salas estavam embelezadas com admiráveis
estátuas antigas, quadros e mil objectos da autoria dos melhores mestres que tinham vivido em Itália ou
no estrangeiro.
Todas as obras de arte constituíam não só um incomparável adorno para a sua casa e jardins,
mas também uma escola ou academia para os jovens pintores, aprendizes de escultura e todos os que se
aplicam ao desenho. [...] Lourenço de Médicis favoreceu sempre os grandes génios, particularmente os
nobres dotados para as artes [porque podem mais facilmente alcançar a perfeição e não têm que lutar
contra os rigores da corte e contra a pobreza... e não são assim obrigados às necessidades mecânicas que
lhes impedem o exercício e a elevação aos cumes da arte] [...] Àqueles que, demasiado pobres, não
tivessem podido consagrar-se ao estudo do desenho. Lourenço assegurava os meios de vida e vestuário e
concedia grandes recompensas aos que, entre eles, realizavam os melhores trabalhos.
Giorgio Vasari, Vidas, c. 1550
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De Revolutionibus Orbium Ccelestium
(1543), de Nicolau Copérnico (1473-1543)
Curriculum Vitae
1473 — Nasce em Torun, Polónia.
1491 — Entra na Universidade de Cracóvia.
1495 — Muda-se para Frombork, onde foi
nomeado cónego.
1496 — Começa a estudar Direito em Bolonha, Itália,
1500 — Obtém doutoramento em Astronomia, em Roma.
1503 — Doutora-se em Direito Canónico, em
Ferrara (Itália).
1512 — Observa Marte.
1520 — Começa a escrever De Revolutionibus.
1524 — Escreve De Octava Sphera, onde critica a obra do astrónomo Johan Werner, Do
Movimento da Oitava Esfera.
1529 — Presencia um eclipse da Lua, que
relata na sua obra De Revolutionibus.
1533 — A teoria heliocêntrica de Copérnico é
discutida no Vaticano.
1535-36 — 1.ª tentativa de publicação de De Revolutionibus, mas o manuscrito perdeu-se.
1542 — Inicia-se a impressão de De Revolutionibus numa oficina de Nuremberga, a
13
cargo do luterano Andreas Osiander que introduz alterações na obra.
1543 — De Revolutionibus é impresso.
Morte de Copérnico.
Não duvido de que os matemáticos sejam da minha opinião se quiserem dar-se ao trabalho de
conhecer, não superficialmente, mas de uma maneira profunda, as demonstrações que darei nesta obra.
Se alguns homens superficiais e ignorantes quiserem atacar-me sobre algumas passagens da Escritura, às
quais deformamos o sentido, eu desprezo os seus ataques: as verdades matemáticas só devem ser julgadas
por matemáticos.
Nicolau Copérnico, De Revolutionibus Orbiurn Coelestium, 1543
A. B.
Desde as suas origens, a Cosmologia conheceu três momentos em que protagonizou uma mudança na concepção do
mundo: uma primeira etapa aristotélica e ptolemaica em que se imaginava um universo geocêntrico, isto é, em que a Terra
ocupava uma posição central e estática [A]; outra marcada pela visão heliocêntrica de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton
[B]; e a actual, baseada na Teoria da Relatividade de Albert Einstein, que descreve o Universo como um todo espácio-temporal,
formado por numerosos sistemas planetários.
A. A visão geocêntrica do Cosmos, segundo Ptolomeu (repare-se no desenho circular das órbitas dos planetas e na
posição secundária do Sol).
B. A teoria heliocêntrica, segundo Nicolau Copérnico (Na imagem, gravura da obra de Cellari, Harmonia
Macroscópica, de 1661).
14
As Artes do Renascimento e Maneirismo
Arte de síntese, a do Renascimento? […]
Os artistas do Renascimento possuíam uma técnica superior à dos Antigos e não ignoravam este
facto. Os pintores da Grécia e de Roma não utilizavam a pintura a óleo, embora encausticassem painéis de
madeira. É verdade que, em Pompeia, nos séculos II e I antes da nossa era, tentaram estudos de
perspectiva; mas Pompeia ficou escondida dos olhares da Humanidade até ao século XVIII. Os estudos
dos Flamengos e, mais ainda, dos Italianos do Quattrocento, em matéria de pintura, tiveram, pois, carácter
inédito. As pesquisas de Masaccio, Piro della Francesca, Paolo Ucello, Leonardo e os estudos teóricos de
Alberti e dos matemáticos Manetti e Pacioli permitiram aos pintores, a partir do início do século XVI
dispor de uma técnica que se pode dizer perfeita [...].
Seguros do seu talento e dos seus processos, como é que os artistas do Renascimento não haviam
de fazer obra original?
Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Editorial Estampa
A.
B.
Piero della Francesca, A Flagelação, 1465 (têmpera sobre
madeira, 59 x 81,5 cm)
Esta obra representa as ideias que Della Francesca descreveu nos seus
tratados sobre geometria e perspectiva. O espaço arquitectónico
circundante dá ao autor a possibilidade de enquadrar a cena religiosa
numa autêntica câmara óptica, subdividida em paralelepípedos que se
“escalonam” com uma exactidão milimétrica [B]. Todas as linhas
convergem num ponto crucial (ao lado do flagelador), para o qual o olhar
é atraído e tudo é ritmado em função de valores matemáticos
preestabelecidos. As colunas dividem o espaço em duas partes ritmadas
C. de acordo com a secção áurea, considerada pelo pintor como garantia de
uma beleza harmoniosa. A perspectiva é o reflexo da harmonia que rege
a Criação; é o produto de uma racionalidade superior e divina que
sanciona o acordo perfeito entre o Homem e a Natureza. A luz é tida
como elemento capaz de configurar as pessoas numa materialização
absoluta, quase escultórica [C]. O ambiente é de tipo clássico, mas as
vestes são renascentistas [A].
15
Masaccio, O Pagamento do Tributo, c. 1427 (247 x 597 cm, fresco na Capela Brancacci, Florença)
Nesta obra, Masaccio relata a parábola do Tributo justapondo três momentos sucessivos do tema numa única
representação espacial. Aliada à inovação compositiva, realce-se ainda a descrição plástica e humanística das
personagens, criando um realismo dramático à maneira de Giotto. A história começa no centro, onde, de entre
todos, Cristo ordena a Pedro que vá pescar; na boca do peixe, este encontrou a moeda necessária para pagar o
tributo exigido pelo barqueiro (único personagem de costas):
no lado esquerdo Pedro cumpre a ordem e no lado direito paga ao barqueiro.
Tendo corno ponto de partida a cultura e a arte da Antiguidade Clássica, o artista do Renascimento
procurou urna formação mais humanista e científica. como afirmava Ghiberti (1378-1455) ao propor que o
pintor e o escultor estudassem também Geometria, perspectiva, teoria da elaboração de projecto,
aritmética, gramática, Filosofia, História, Astronomia, Medicina e Anatomia de modo a poderem
expressar bem a sua arte.
O conteúdo e a finalidade da Arte era a beleza entendida como representação objectiva da
realidade. Tal atingia-se com o conhecimento e a cópia da Natureza, conseguidos pela dedução de regras
racionais e soluções científicas para a criação de Cânones, representações e técnicas. A pintura era “cosa
mentale”, Como Leonardo definiu.
A pintura italiana do início do Quattrocento (século XV), ainda muito marcada pela arte de Giotto
e pela do Gótico Internacional (e dada a falta de modelos antigos), apresenta características muito próprias
e inovadoras, tanto técnicas como estético-formais e temáticas.
A primeira e mais retumbante conquista técnica foi a de perspectiva (Arte de representar o
espaço tal como se apresenta à vista, com tridimensionalidade e profundidade virtuais), rigorosa e
científica, que permitiu a construção do espaço pictórico segundo as leis da óptica, das proporções
geométricas, da exactidão matemática e do tratamento da luz, de um modo coerente e integrador.
A segunda e mais tardia foi a introdução da pintura a óleo, técnica importada da Flandres e das
cidades alemãs que, nesta fase, conviveu com o fresco e a têmpera. A pintura a óleo, porque tem um
tempo maior de secagem, permitiu a elaboração de modelados (Técnica utilizada na pintura para obter,
através de gradações cromáticas a completa ilusão da volumetria; no desenho, é conseguido pelo
sombreado) e de velaturas (técnica de pintura que simula as transparências), pormenorizando a
representação com obtenção de brilhos e reflexos intensos de grande vivacidade cromática, tão necessários
ao verismo procurado pelos pintores renascentistas. Com a utilização de novos aglutinantes, as tintas
tornaram-se mais homogéneas e pastosas, possibilitando gradações de cores, de modo a produzirem uma
atmosfera e uma luminosidade corpóreas, concretas, que envolvessem os objectos e ajudassem a construir
os espaços e a modelar os corpos.
16
A terceira foi a divulgação do uso do papel e o aparecimento das telas e dos cavaletes, que
facilitaram a criação e a feitura das obras.
Quanto às inovações estéticas e formais, estas observam-se na harmonia, equilíbrio, realismo
anatómico e beleza contidos nas figuras, revelando o estudo e o desenho da estatuária da Antiguidade
Clássica.
À temática religiosa cristã, a predominante, acrescentaram-se os temas mitológicos ou ligados à
literatura clássica. Vulgarizaram-se os temas marianos e a representação dos doadores junto das imagens.
Os temas laicos, como o retrato, o nu e a paisagem são, neste campo, as grandes inovações. O retrato
devido ao individualismo de homens e mulheres poderosos que pretendiam a eternidade; o nu, pela
influência da arte clássica, onde o belo era a nudez natural; e a paisagem, dado o gosto pela cópia e pela
idealização da Natureza.
A pintura do século XV ficou marcada por diferentes individualidades artísticas. Pintores como
Masaccio, Luca Signorelli (c. 1441-1523), Paolo Uccello, Piero della Francesca e o veneziano Andrea
Mantegna foram vanguardistas, realistas interessados pelo estudo da anatomia, da perspectiva e do
volume, entendendo a arte da pintura como um objecto de aprendizagem e reflexão constantes. Outros,
marcados pela tradição gótica, foram mais líricos e místicos, com uma figuração que mantinha um
tratamento natural e uma perspectiva ainda empírica, como Fra Angélico, Fra Fillippo Lippi (c. 1406-
-1469) e Sandro Botticelli. Outros, ainda, como os pintores venezianos, exaltaram a cor e o movimento,
caso de Giovanni Bellini (1432-1516) e de Antonello da Messina (c. 1430-1479).
— Fra Angélico (1395-1455) revelou grande austeridade religiosa nos temas, porém as figuras, delicadas
e estilizadas, expressam uma fé veemente. A sua pintura possui um intenso cromatismo feito com cores
luminosas e douradas. Apesar disso, utiliza a perspectiva empírica, o que se constata pelo tratamento do
espaço arquitectónico;
— Paolo Uccello (1397-1475) trabalhou com o escultor Ghiberti e pintou um ciclo de murais sobre A
Batalha de San Romano. Nestas obras nota-se o estudo científico da perspectiva: as figuras e os objectos
têm alguma geometrização e ocupam todo o espaço numa composição cénica complexa; realçam-se os
escorços dos cavalos e a orientação das lanças que dão as linhas perspécticas e criam ritmo;
17
— Masaccio (1401-28) foi o iniciador do Renascimento na pintura. Combinou a espiritualidade realista de
Giotto com a aplicação da perspectiva empírica e serviu-se da luz e da sombra para obter o volume e as
massas dos corpos solenes que pintou. A composição possui um sentido naturalista de que fazem parte a
luz ambiental, os elementos arquitectónicos e a paisagem;
— Piero della Francesca (1415/20-1492) contactou com o arquitecto Alberti. A sua linguagem
imagética, estilizada, apresenta figuras monumentais, solenes e hieráticas, em paisagens quase líricas, mas
de grande rigor na composição geométrica. Denota-se a presença da luminosidade que materializa as
figuras e os elementos arquitectónicos perspectivados;
— Andrea Mantegna (1431-1506) destacou nas suas obras o volume escultural das figuras, quase
monocromáticas, acentuadas pelo domínio do conhecimento anatómico e pela aplicação da perspectiva.
Pintou formas arquitectónicas de um modo majestoso e em construções perspécticas imponentes, como no
fresco do tecto da Câmara dos Esposos (1474) do Palácio Ducal de Mântua;
— Sandro Botticelli (1445-1510) defendeu a prevalência do desenho sobre a modelação, criou corpos
esguios e graciosos, integrados em harmoniosas composições; a perspectiva não é científica e a paisagem
serve apenas de enquadramento. Fez uma série de pinturas de carácter mitológico, relacionadas com o
amor físico e espiritual. A temática religiosa esteve também presente em obras como A Anunciação a
Maria (1489-90).
Leonardo da Vinci, A Última Cela,
numa das paredes do refeitório do
Convento de Santa Maria da Graça,
Milão, 1495-98 (óleo sobre têmpera
sobre gesso, 420 x 910 cm) Tema
antigo, mas com uma nova vivacidade
na composição (vários momentos num
só momento), é de uma perfeição
absoluta na organização perspéctica, nos
ambientes, nas cores, na luz, na
constituição dos grupos dos Apóstolos e
nas suas atitudes (“apanhados” como
numa fotografia), ao ouvirem Cristo
dizer: Um de vós me trairá.
18
Miguel Ângelo, A Sagrada Família, 1504 (tondo com 120 cm de diâmetro,
têmpera sobre madeira)
Numa forma piramidal, a Virgem, S. José e o Menino ocupam o primeiro plano; no
muro, S. João Baptista Menino, e num plano mais recuado, figuras nuas da
Antiguidade pagã — num entendimento entre dois mundos. A forma escultórica
das figuras está marcada pelo desenho e pelo claro-escuro.
A segunda fase do Renascimento, na viragem para o século XVI, especialmente até 1520, foi
designada por Vasari como Alto Renascimento ou Perfeito Renascimento, por nele se atingir o auge das
pesquisas e inovações, do equilíbrio e da maturidade, assim como uma linguagem sistematizada.
Foi a época dos mais prodigiosos artistas de sempre como Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo e
Rafael. Iniciada em Florença, teve em Roma o seu foco principal, dado os grandes projectos
arquitectónicos que os Papas desta época se propuseram realizar.
A arte, cheia de autoconfiança, caracterizou-se pela harmonia, pela graciosidade, pelas
proporções com base na forma humana, por uma maior expressividade e pela ligação à Ciência.
Assim, houve:
• um crescente entendimento da Natureza e da capacidade para a reproduzir artisticamente, como o
provam os estudos efectuados por Leonardo da Vinci e por Giorgione;
• um maior conhecimento e compreensão da anatomia (dada a necessidade de representar o Homem
e em particular o nu) como o fizeram Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo; e das características
psicológicas, como o fez, sobretudo, Rafael;
• progressos na pintura a óleo que permitiram o uso mais subtil da cor, da luz e da sombra, assim
como as ilusões de óptica. Para tal contribuíram a técnica do sfumato (Técnica utilizada par
Leonardo da Vinci, que consiste numa transição da luz/sombra tão gradual que tornava os
contornos das formas quase imperceptíveis), criada por Leonardo da Vinci, o colorido forte e
equilibrado de Rafael e, especialmente, a luz/cor dos pintores venezianos;
• e uma melhor compreensão da perspectiva, da matemática e da óptica que conduziram a pintura a
um maior domínio das relações espaciais e a alguma monumentalidade, como se nota nas obras A
Última ceia (1495-98), de Leonardo, e A Escola de Atenas (1508-11), de Rafael.
19
Miguel Ângelo, Juízo
Final, 1535 (fresco
cobrindo toda a
parede do altar da
Capela Sistina,
13,70 x 12,20 m)
O tema representado e
o modo como está
expresso denotam um
cunho maneirista.
A figura de Cristo,
acima e ao centro,
possui um intenso
movimento de rotação
que anima toda a
superfície. As figuras,
de corpos
musculados, escorços
escultóricos, olhares e
atitudes expressivos e
os intensos contrastes
de claro-escuro
imprimem grande
tensão ao conjunto.
Sabe-se que
Miguel Ângelo se
baseou na Divina
Comédia e noutros
conhecimentos
teológicos, históricos
e filosóficos para a
criação desta
grandiosa obra.
20
Rafael, A Escola de Atenas, 1510-11 (7,7 m de base, fresco)
A cena desenrola-se na Academia de Platão onde se encontram vários filósofos da Antiguidade, cujos rostos
representam contemporâneos de Rafael, como: Platão (com o rosto de Leonardo da Vinci), Euclides (com o rosto de
Bramante), Heráclito (com o rosto de Miguel Ângelo). O próprio Rafael se retrata com um barrete preto, inserido
num grupo à direita. O ambiente arquitectónico é o projecto de Bramante para a Basílica de S. Pedro, pintado
segundo as rigorosas regras da perspectiva. Numerosas esculturas de deuses da Antiguidade, em fingidos nichos,
ocupam as paredes.
Ticiano, A Vénus de Urbino, 1538 (119 x 165 cm, óleo sobre tela)
Num aposento íntimo, Vénus, descrita como uma cortesã, fixa o espectador com um olhar sonhador. O ambiente é
completado pela presença de um cão e de duas figuras femininas. Executada com grande mestria técnica e artística,
esta Vénus mostra um contraste delicado entre a carnação e o brilho dos tecidos que a rodeiam.
22
A arquitectura renascentista como metáfora do Universo
A arquitectura do Renascimento é descendente natural da arte da Antiguidade Clássica e herdou
dela os princípios fundamentais da harmonia e do equilíbrio.
Os arquitectos estudaram os clássicos através da observação e do estudo directo de monumentos
dessa época (como o Coliseu e as suas ordens clássicas, o Panteão e a sua cúpula, os arcos de triunfo e a
sua simbologia, as termas e as suas abóbadas), mas também através dos tratados de arquitectura clássica,
como o de Vitrúvio, Os Dez Livros de Arquitectura, século 1 a. C.
Assim, criaram urna arquitectura monumental e vinculada ao princípio da colocação do Homem
como centro e medida de todas as coisas.
Na arquitectura religiosa, no século XV, relevamos Fillippo Brunelleschi (1377-1446),
desenhador, ourives, escultor e criador de mecanismos de engenharia. Mas foi como pintor, ao representar
o baptistério de Florença, a partir de um único ponto de visão, que deu o seu contributo para a invenção da
perspectiva rigorosa.
A partir de 1420, em Florença, Brunelleschi, como arquitecto, projectou e executou a cúpula da
catedral gótica de Santa Maria das Flores, o Hospital dos Inocentes , a Capela dos Pazzi e as igrejas de S.
Lourenço e do Espírito Santo, entre outras obras. Nelas iniciou o regresso à estética greco-romana e pôs
em voga a simetria e o uso constante do módulo de base.
B. – Planta
A.–Perspectiva
em corte
23
Brunelleschi, cúpula de Santa Maria das Flores, Florença, 1418-36
A cúpula de Brunelleschi, na Catedral de Florença, foi uma das primeiras obras arquitectónicas do Renascimento —
tempo de racionalismo e de afirmação. É um trabalho de engenheiro, mais do que de arquitecto, pois Brunelleschi
concebeu inovadores meios técnicos e construtivos que atenderam à resistência das estruturas, à repartição das
cargas, ao peso dos materiais e às condições de trabalho e de segurança dos operários. Assim, foi construída sobre
uma base octogonal, sem andaimes no solo, pois estavam colocados num estrado de madeira, sobre o alto tambor.
A cúpula possuía dois cascos da mesma espessura — o interior [1], mais pequeno, com tirantes metálicos; e o
exterior [2] mais alto — que exerciam no interior uma força vertical. Nestes foi usado o tijolo (para aligeirar o
peso), colocado em escamas de peixe (cada camada de tijolo avançava um pouco para dentro, dando forma à
cúpula) e numa fiada completa, para que cada nova fiada fosse suportada pela anterior. Assim foi possível elevar a
cúpula através de uma série de anéis horizontais e de nervuras longitudinais e sem a tradicional armação de madeira
interior. As nervuras contribuíram para dar a sensação de leveza e também serviram para sustentar a lanterna, que
encimava a cúpula. Eis o modelo que, pela sua pureza de formas, levará Miguel Ângelo a dizer da de S. Pedro de
Roma: “Maior poderá ser, mas não a mais bela”.
Mas se Brunelleschi foi o “engenheiro”, Leon Battista Alberti (c. 1404-72) foi humanista,
arquitecto, urbanista, teórico da arquitectura e autor de tratados sobre: pintura — Della Pintura (1436) —
que contém a primeira descrição da construção da perspectiva; escultura — De Statua; e arquitectura —
De Re Aedificatoria — onde, inspirado por Vitrúvio, descreve os princípios da arquitectura e do
urbanismo. Alberti via a arquitectura como uma actividade cívica, ao serviço e à medida do Homem O seu
racionalismo arquitectónico traduziu-se pela preferência de formas geométricas puras, o espaço circular.
Na construção do Templo Malatestiano, 1450, em Rimini, usou a forma do arco de triunfo romano,
baseando-se num existente na cidade. Mais tarde, aplicou-a na Igreja de Santo André, em Mântua, na
fachada e nas arcadas da nave. Esta estrutura, contínua e lógica, assim como as colunas colossais (onde a
altura da coluna ou pilastra atinge vários andares) serviram de modelo para as construções do século
seguinte.
Também é de Alberti a reconstrução da fachada da Igreja de Santa Maria Novela, em Florença.
No século XVI — Alto Renascimento —, na arquitectura religiosa, afirmou-se como modelo mais
comum a planta centrada coberta por uma ou várias cúpulas. Esta foi vulgarizada por Donato Bramante
(1444-1514), arquitecto, engenheiro e pintor, que a utilizou no Tempieto de São Pedro, em Montório, e no
projecto da Basílica de São Pedro, em Roma. Miguel Ângelo Buonnaroti (1475-1564) utilizou a mesma
planta para outro projecto na mesma basílica. Ambos são tidos como os criadores da arquitectura do Alto
Renascimento pelos seus papéis na construção desta basílica.
24
Alberti, fachada da Igreja de Santa Maria Novella, Florença, c. 1455-60
O desenho que Alberti fez para a sua reconstrução foi executado por meio de traçados geométricos rigorosos. A
solução das aletas ou volutas permitiu disfarçar a verticalidade gótica da fachada primitiva, conseguindo, assim, a
articulação entre os dois corpos da igreja: o central mais alto que os laterais.
Bramante morreu antes de as paredes da basílica de São Pedro terem sido levantadas e
Miguel Ângelo, continuando a sua obra só a partir de 1546, aplicou a ordem colossal da fachada e
desenhou a cúpula. Quando Miguel Ângelo morreu, em 1564, só o tambor da cúpula estava construído.
Assim, em termos estruturais, a arquitectura religiosa do Renascimento evoluiu, a partir do
século XV, do uso da planta basilical em cruz latina para plantas quadradas ou de cruz grega e centrada na
procura da perfeição e do absoluto.
Estas soluções surgiram, primeiro, em pequenos templos e, depois, em plantas intermédias onde
a cabeceira seguia o modelo de planta centrada, mas o corpo principal se alongava e as naves laterais se
transformavam em pequenas capelas. É o caso da Igreja de Santo André de Mântua, de Alberti.
A partir do segundo quartel do século XVI, e seguindo as orientações do Concílio de Trento,
foi imposto o tipo de igreja de nave única, criando a visão do espaço absoluto.
As paredes finas eram locais privilegiados para a colocação de elementos decorativos —
pintura e decoração escultórica. Para a cobertura usaram-se abóbadas de berço e de aresta e
preferencialmente as cúpulas. A fachada e o portal eram entendidos como a entrada triunfal e, por isso,
relevados. A decoração subordinava-se à estrutura dos edifícios e era através dela que os arquitectos
individualizavam a sua obra. Os elementos decorativos usados eram retirados da gramática clássica, sendo
mais estruturantes que escultóricos.
A B
25
Bramante, Tempieto de S. Pedro, em Montória, Roma, c. 1502
Bramante, em vez de repetir os temas da Antiguidade Clássica,
utilizou os conhecimentos sobre a perspectiva e o volume para criar
este edifício harmonioso e elegante.
A sua forma volumétrica faz lembrar o templo romano dedicado a
Vesta. Neste pequeno templo, o arquitecto usou colunas dórico-
toscanas, um pódio contínuo de três
degraus, balaustrada, corpo cilíndrico
central com nichos encravados e uma
cúpula semiesférica.
O pátio circundante foi projectado de novo
mas o seu plano nunca chegou a ser
executado.
A B
No século XVI, a decoração tornou-se mais sóbria conferindo monumentalidade e grandeza aos
edifícios. A decoração do interior consistia em pinturas murais, retábulos e ornamentação em estuque.
Na arquitectura civil a construção mais significativa foi o palácio enquanto representação e
exaltação do Homem. De Florença, a arquitectura palaciana difundiu-se para Roma com o mesmo aspecto
severo. Em Veneza e Verona estas construções são mais alegres e festivas, ornamentadas com
entablamentos e colunas decoradas. Eram edifícios essencialmente urbanos, mas também rurais.
Seguiram de perto as construções religiosas quanto aos princípios estéticos (simetria,
regularidade, alinhamento, proporções) e por isso apresentavam: um traçado rigoroso e geométrico, com
volumetrias cúbicas e paralelepipédicas, fachadas rectilíneas segundo a regularidade ortogonal que,
acentuando a horizontalidade, davam forma ao conjunto — a caixa; no interior, têm um pátio e, no
exterior, as fachadas são em silharia rusticada (pedra não lavrada) no rés-do-chão e nos outros andares
pedra almofadada ou lisa e com janelas alinhadas; a porta central ganha importância com a decoração.
São exemplos os palácios de Rucelai, de Alherti, e o dos Senadores, de Miguel Ângelo.
Nas villae, ou palácios rurais, persistiram a simetria, o rigor geométrico, a imitação de fachadas
antigas e o ideal das plantas centradas. Inseriam-se em jardins e parques e a decoração era alusiva aos
locais onde os palácios se edificavam. Um dos melhores exemplos é a villa Rotonda de Andrea Palladio,
representante da arquitectura tardo-renascentista veneziana.
26
Andrea Palladio, Villa Rotonda, Vicenza, meados do século XVI
30
Miguel Ângelo: A Pietá do Vaticano [A], 1498-1501 (mármore, 174 cm de altura); A Pietá de Florença [B]
1535-50 (mármore, 226 cm de altura); A Pietá Rondanini [C], 1552-64 (mármore, 195cm altura)
No primeiro conjunto, a impressão dominante é a de uma grande serenidade. No entanto, a regularidade e a
harmonia da composição foram obtidas pela não obediência ao real: o rosto da Virgem é demasiado jovem para uma
mãe com um filho adulto e o corpo de Cristo, que repousa no regaço da mãe, é demasiado pequeno se comparado
com o dela. O segundo conjunto perdeu em serenidade e ganhou em expressividade e emoção. No terceiro, as
figuras alongadas e as posições anticanónicas, assim como o facto de estarem inacabadas, conferem ao conjunto um
dramatismo próprio do período seguinte.
32
O Maneirismo encontrou expressão nos seguintes pintores:
Só mais tarde o Maneirismo apareceu em Veneza, tendo como nomes mais relevantes Tintoretto
(1518-94) e Veronese (1528-88). O primeiro desenvolveu uma arte de compromisso entre Ticiano e
Miguel Ângelo, através de uma pintura “anticlássica e elegante”. O segundo revela uma arte de intensa
beleza, dedicada ao luxo. Os seus trabalhos são ricamente coloridos, cheios de humanidade.
Tintoretto, A Última Ceia, 1592-94 (óleo sobre tela, 366 x 569 cm)
San Giorgio Maggiore, Veneza
É uma visão particular da cena bíblica que revela muitas cenas dentro da
cena, vivendo de representações acessórias, como criados, cães, gatos e
anjos que pairam sobre toda a composição.
34
As tipologias arquitectónicas do Maneirismo foram as mesmas do Renascimento: palácios, villas,
bibliotecas e igrejas. Nestas últimas nota-se a solidez pesada das paredes, a nave única de abóbada de
berço — usada por razões acústicas —, as capelas entre os contrafortes, o transepto pouco saliente, a
capela-mor reduzida à abside e uma cúpula no cruzeiro. É o novo sentido da volumetria e de equilíbrio
estático e formal das massas, dado que, com as imposições da Contra-Reforma, as igrejas passaram a ser
um local privilegiado da pregação; e, também por isso, o púlpito e o altar deviam ser bem visíveis.
Miguel Ângelo e Vasari podem ser considerados os primeiros arquitectos maneiristas pois há, nos
seus projectos, um certo sentido introspectivo, libertador e fantasioso. Seguiram-se Júlio Romano (c.
1499-1546), discípulo de Rafael; Baldassarre Peruzzi (1481-1536), também pintor, e Vignola (1507-
1573), autor do modelo da Igreja de Il Gesù.
A escultura maneirista nunca conseguiu igualar a qualidade da pintura e da arquitectura.
Caracterizou-se pela perda do rigor da representação clássica, substituindo o realismo racional por um
grande virtuosismo técnico e formal — com escorços difíceis, contrapostos e posições em desequilíbrio.
As figuras possuem movimentos fluidos e angulosos, e expressões faciais e corporais exageradas; e as
composições acentuam o jogo dos volumes e os contrastes luz-sombra, privilegiando a subjectividade, os
sentimentos, a sensualidade e o efeito puramente plástico e decorativo.
A modalidade mais comum foi a estatuária de grandes dimensões que cumpriu funções
monumentais, representativas e decorativas (destinada a interiores palacianos e a lugares públicos) e teve
um cunho mais profano, alegórico ou comemorativo que religioso. São exemplo deste tipo de escultura a
estatuária individual, grupos escultóricos, estátuas equestres e fontes esculpidas.
Outra das modalidades foi a estatuária de pequena dimensão e de sentido mais decorativo,
destinada a coleccionadores e Outra clientela privada.
A estatuária individual caracteriza-se pela preferência pela figura contorcionada sobre si mesma,
artificialmente serpentinada, numa linha sinuosa e helicoidal que evolui em ascensão.
Nos grupos escultóricos abandonou-se completamente a regra da
estatuária do Renascimento clássico que defendia a unifacialidade da obra
(isto é, um único ângulo de visão) e aplicou-se a perspectiva
estereométrica e multivisual que permite a contemplação omnilateral da
obra; a utilização de um só bloco de material foi substituída pelo uso de
vários.
Como escultores mais significativos deste período salientam-se:
— Bartolomeo Ammannati (1511-1592), que explorou os efeitos
estéticos resultantes do forte contraste cromático dos materiais usados;
— Giovanni di Bologna (1529-1608);
— Benvenuto Cellini (1500-1571), escultor e ourives florentino que
trabalhou na corte dos Médicis, em Florença, e na de Francisco 1 de
França.
Maneirismo significou para alguns elegância conforme a moda,
para outros uma estranha transformação da realidade em sonho ou
pesadelo e para outros, ainda, a exploração da alma humana e das suas
relações com o meio, as suas paixões, o bem e o mal, o mundo, a carne,
Deus e o diabo.
Fare piacere,fare stupore (deleitar, espantar) parece ter sido o seu
objectivo.
35
Benvenuto Cellini, saleiro de Francisco I, 1540-43, madeira de ébano, ouro
parcialmente esmaltado (altura 26 cm e largura 33,5 cm) A figura masculina é
Neptuno, deus do mar, logo o sal; a feminina é Reha, deusa da terra, onde nasce a
pimenta.
36
Pierre Lescot, fachada ocidental do Cour Carré, no Louvre, 1546
Esta obra do renascimento francês apresenta uma perfeita
combinação da arquitectura com a escultura.
Pieter Brueghel, A Parábola dos Cegos, 1568 (têmpera sobre madeira, 84 x 154 cm) Este tema bíblico mostra a
ironia peculiar do autor. A pintura, bastante homogénea ao nível da cor, é, no entanto, muito dinâmica pela linha
oblíqua que os cegos descrevem.
37
Hans Holbein, Os Embaixadores, 1533 (óleo
sobre madeira, 207 x 210 cm)
Estes retratos mostram os instrumentos ligados à
sabedoria e às tendências culturais destas duas
figuras. A obra é caracterizada pelo rigor e minúcia
da representação. Em primeiro plano, a anamorfose
de um crânio, o que demonstra a perícia do pintor
em relação aos conhecimentos da geometria.
No século XVI, destacam-se autores como Lucas Cranach (1472-1553) e Hans Holbein (c.
1489-1543).
A pintura da Flandres no século XV definiu-se por um realismo seguro, minucioso e empírico
como é exemplo Pieter Brueghel, o Velho (c. 1528/30-1569). No século XVI, cultivou a arte da
paisagem e a “pintura de género” (tipo de pintura centrada em temas ligados à vida do quotidiano ou aos
elementos do dia-a-dia -cenas do quotidiano, natureza-morta, retrato, paisagem e pintura histórica-
tratados com grande realismo. Possuía, em regra, pequenas dimensões) em pequeno formato.
Na arquitectura dos países do Norte perdurou a verticalidade do Gótico. A inovação esteve na
profusão de formas decorativas interpretadas segundo o gosto maneirista — grotescos, arabescos, volutas,
formas abstractas e vegetalistas. Em Inglaterra, onde esta arquitectura revelou maior sobriedade, destaca-
se o Palácio de Hampton Court, iniciado em 1515.
Na escultura destes países de tradição gótica salienta-se, na Alemanha, os escultores Hans
Daucher (1485-1538), Peter Vischer (1460-1529) e Hubert Gerhard (c. 1550-1622), este último
influenciado pelo maneirista Giovanni di Bologna. Ao primeiro, coube a decoração escultórica da capela
dos Függer e, ao segundo, o Túmulo do imperador Maximiliano (1493-1519).
Na pintura espanhola do século XVI sobressai El Greco (1541-1614).
Na arquitectura, influenciada pela expansão ultramarina e mantendo as tradições das artes
gótica e mudéjar, a Espanha criou um estilo decorativo próprio, o plateresco. Só em meados do século
XVI é que se fez a ruptura com a tradição, devido à construção do Palácio de Carlos V, em Granada, e do
Palácio do Escorial (1563-84).
Na escultura, juntaram-se influências flamengas, góticas e italianas, aliadas ao plateresco e ao
mudéjar. No período renascentista situam-se Bartolomé Ordónez (c. 1490-1520) e Damián Forment (c.
1480-1541); no maneirista, Alonso Berruguete (c. 1486-1561), Juan de Juni (c. 1507-1577) e Gaspar
Becerra (c. 1520-70).
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El Greco, O Enterro do Conde de
Orgaz, Igreja de São Tomé, Toledo,
c. 1586-88 (óleo sobre tela, 460 x 360
cm) Um completo “horror ao vazio” na
distribuição das figuras induz
dinamismo na composição, que foi
rigorosamente pensada. As cores e a
pincelada rápida e fluida contribuem
para a mesma sensação, reforçada pelo
alongamento das figuras. Assim, apesar
da densidade da cena, fica uma
sensação de leveza.
Gaspar Vaz, Adoração dos Magos, século XVI – Esta obra fez
parte do retábulo de Nossa Senhora da Glória da Igreja do
Mosteiro de S. João de Tarouca.
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Claustro prIncipal do Convento de Cristo, em Tomar
Iniciado por João de Castilho em estilo renascentista, foi
continuado, a partir de 1558, por Diogo de Torralva em
estilo maneirista. Filipe Terzi viria a concluí-lo em 1587,
seguindo o mesmo modelo.
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A Anunciação (1473-1475)
de Leonardo da Vinci (1452-1519)
Se tivermos de eleger uma figura que simbolize o tempo simultaneamente racional e culto,
sensível e humanista que foi o do Renascimento, um nome surge naturalmente: Leonardo da Vinci.
Nascido em 15 de Abril de 1452, em Vinci, discípulo do pintor e escultor Andrea Verrochio
(1433-1485), muito cedo se revelou um talentoso e extraordinário desenhador.
Atento e estudioso, foi à Natureza e às suas regras que foi buscar grande parte dos motivos e
soluções para os seus trabalhos — usava sempre modelos reais. A diversidade dos seus interesses —
que incluíam minuciosos estudos sobre aspectos físicos e de funcionamento da anatomia humana e de
outros animais, as leis da física, da engenharia, da arquitectura e da botânica...— revelou um espírito
inquieto, simultaneamente reconhecido mas sempre enigmático, mesmo para os seus contemporâneos.
É a partir de desenhos minuciosos, quer de pormenores, quer da composição global, na
procura do rigor da composição, que Leonardo, de forma calculada e cerebral, apoiada numa técnica
notável, executa as suas primeiras pinturas, algumas das quais se tornaram parte da iconografia
renascentista, como A Ultima Ceia ou a Mona Lisa.
Sabemos que por volta dos 30 anos abandonou a sua Vinci natal, soltando-se do ambiente
florentino, e que foi ao serviço do duque de Milão, Ludovico Sforza, que continuou a sua obra.
Nela traduziu um completo conhecimento do que tinha sido a apurada pesquisa de grandes
artistas que o precederam: no uso da perspectiva geométrica pura, nos estudos da óptica e das regras
matemáticas, na definição das composições e das relações espaciais.
A pintura de Leonardo da Vinci ultrapassa a mera criação artística para se tomar algo de
racional e científico quando, para além da aplicação das regras da pintura, capta a essência psicológica
das personagens que figuram nos seus quadros — transforma a pintura em cosa mentale.
Leonardo, ao contrário dos artistas seus contemporâneos, não pensava a pintura apenas como
um conjunto de regras de representação: acrescentava-lhe uma ambiência simultaneamente real, pela
forma como as figuras emergiam de fundos sombrios, mas ao mesmo tempo imaterial, esbatendo as
linhas de contorno, o que se traduzia numa noção mais evidente de tridimensionalidade (os seus
contornos são sempre implícitos, nunca explícitos).
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O génio de Leonardo
(...) Foi conduzido a Milão com grande reputação Leonardo ao duque (Ludovico Sforza), o
qual muito se deleitava com a lira, para que tocasse; e Leonardo levou aquele instrumento que ele
tinha por suas mãos fabricado, de prata, grande parte em forma de caveira de cavalo, coisa bizarra e
nova, para que a harmonia fosse com maior tubo e mais sonora voz; por isso superou todos os
músicos que ali tinham acorrido para tocar. Além disso, foi o melhor declamador de rimas de
improviso do seu tempo. Ouvindo o duque os razoamentos tão admiráveis de Leonardo, de tal modo
se encantou com suas virtudes, que era coisa incrível. E, rogando, mandou-lhe fazer em pintura um
retábulo enquadrando uma Natividade, que foi enviada pelo duque ao imperador. (...)
GiorgioVasari, Vidas dos Mais Excelentes Escultores e Arquitectos, 1550
A Anunciação
“Esta Anunciação foi pintada entre 1473-75 e é compreensível que, ao enorme êxito obtido pelo
jovem pintor com o seu primeiro «anjo», se tenha seguido um motivo semelhante. A obra foi exposta
pela primeira vez como original de Leonardo da Vinci na Galleria degli Uffici em 1867, tendo
imediatamente desencadeado uma acalorada discussão pública. (...)
Na verdade, surpreende a precisão no pormenor, nada típica para Leonardo, que se pode
apreciar na decoração da mesa de pedra, em frente à qual se encontra sentada a Virgem Maria, bem
como a frieza rectilínea dos silhares do edifício que surge por detrás dela. É provável que estes
elementos tenham sido executados por outro pintor, talvez por Ghirlandaio ou qualquer outro aprendiz
da oficina de Verrocchio. É também possível admitir que Leonardo, que ao longo da sua vida tantas
pinturas deixou por concluir, tenha delegado para um companheiro a responsabilidade de terminar este
quadro de grandes dimensões, que ultrapassa os dois metros de comprimento.
Porém, os três elementos mais importantes — o anjo, a Virgem e a paisagem vespertina do
fundo — são tão característicos do conceito e estilo de Leonardo que a mais ninguém se pode atribuir a
sua autoria. De facto, nunca antes se tinha visto uma Anunciação assim. Ainda que a interpretação, a
composição e a rigorosa perspectiva linear se insiram perfeitamente na continuidade estilística
proveniente do Quattrocento, os aspectos inovadores podem encontrar-se na paisagem de fundo, na
luz, na composição das figuras e na expressão dos rostos. Uma luz dourada de fim de tarde derrama-se
por toda a cena, transformando em sombrias silhuetas as árvores de fundo. Também o anjo projecta
uma sombra à sua frente, ao pousar silenciosamente e com as asas abertas no canteiro florido que se
encontra à frente de Maria. A sua atitude é de respeitosa distância. Ajoelhado, inclina-se submisso para
a frente, mas a sua testa alta e orgulhosa está virada para ela. Com os olhos levemente obscurecidos
pela sombra dirigida a ela, lança-lhe um olhar intenso, que o revela como conhecedor do seu destino. A
sua boca entreaberta está prestes a anunciar a «boa nova», mas algo nos faz intuir que os seus lábios
suaves não irão revelar tudo aquilo que sabe sobre o doloroso final da história da Redenção. O seu
braço erguido e o gesto da mão correspondem numa perfeita harmonia à forma das asas. Com um olhar
mais admirado do que surpreendido, embora atento, a jovem Maria escuta as palavras do anjo. A
sombra de incerteza e dúvida que se espelha nos seus olhos rasgados e ligeiramente oblíquos parece
converter-se, nesse preciso momento, num gesto de reconhecimento meditativo. Com a doçura da
inocência, embora com a concentração que só a sabedoria concede, esse jovem rosto dá a impressão
de pertencer a uma criança inteligente e estranhamente madura. Já neste quadro se manifesta a mestria
de Leonardo em integrar psique e tma numa grandiosa harmonia.”
Alexander Rauch em Rolf Toman, A Arte da Renascença Italiana, Könemman
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A Anunciação, c. 1473-75, óleo sobra madeira, 98 x 217,2 cm
Nesta pintura, os elementos da composição são de facto separáveis, de tal modo que se pode experimentar a
estratificação do espaço e estabelecer a subtil relação da superfície com a profundidade.
No primeiro pleno, as figuras do Anjo e de Nossa Senhora “aparecem em relevo”; no chão e a meio, as flores abertas
vão ficando progressivamente mais pequenas e menos coloridas.
O plano médio é formado pelo muro do jardim que continua os limites da perspectiva do edifício cujas linhas
convergem, à distância, na linha do horizonte.
O fundo está pintado à maneira vaporosa e deslocada que Leonardo considerava a melhor para dar a sensação de
distância (“diminuição da definição, da medida e da cor”).
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Fala do Licenciado e diálogo de Todo o Mundo e Ninguém,
Gil Vicente, Lusitânia, 1532
Em finais de Quatrocentos, na transição da Idade Média para o Renascimento, as classes
privilegiadas, clero e aristocracia, viviam despreocupadamente na corte que oferecia honras, comendas,
animação e galantarias. Foi neste cenário que apareceu o poeta Gil Vicente (c. 1465-c. 1537), a fazer
teatro na corte.
Logo em 1502 escreveu e apresentou a sua primeira peça, O Auto da Visitação ou Monólogo
do Vaqueiro, para festejar o nascimento do primeiro filho do rei D. Manuel I, o futuro D. João III.
Partindo deste simples monólogo, Gil Vicente procurou outras formas mais evoluídas.
Aproveitou antigos temas religiosos e mitológicos, contos populares, romances de cavalaria, momos e
entremezes, sermões burlescos, ladainhas e ideias de poetas espanhóis coevos (contemporâneos) para
criar os seus argumentos. Melhorou a qualidade poética e a estrutura compositiva dos seus escritos
usando a redondilha maior, a divisão por actos e as tipologias do auto (composição, inicialmente em um
acto, e de ambiência religiosa, forma genérica de todas as obras de Gil Vicente) e da farsa (composição
sem exigências de estilo, com o objectivo de fazer folgar, relatando episódios cómicos da vida
quotidiana, e que invade os domínios do auto e da comédia). Explorou o espectacular e as técnicas de
dramatização (a expressividade e a imagem dos actores), associando ao texto dialogado a música, o
canto e a dança, dando à acção mais ritmo e movimento e tornando o espaço cénico mais elaborado,
mais vistoso com cenários e luzes, tudo com um estilo mui eloquente e mui novas invenções, como
referiu Garcia de Resende in Miscelânea.
Partindo da cultura popular, da experiência vivencial da corte, do gosto pela poetização do
real e pela criação de personagens-tipo, Gil Vicente escreveu, em 1509 a sua primeira farsa literária —
Auto da Índia—, a que se seguiu uma série de obras-primas desse género. Acrescentou outros tipos
como a moralidade (teatro religioso sobre o mistério da Encarnação, em que entram anjos e diabos ao
lado de personagens alegóricas e tipos sociais), como o Auto da Fé a comédia (narrativa em verso que
exigia um estilo mais eloquente, mas satírico), como Corte de Júpiter e Rubena, em 1521. A actividade
regular de Gil Vicente era escrever, encenar, participar nas peças, assim como organizar autos,
representações e folias para entradas solenes (como a muito famosa entrada em Lisboa de D. Leonor,
terceira esposa de D. Manuel I), casamentos, nascimentos, celebrações, satisfazendo os desejos reais
nas pequenas e grandes festas cortesãs.
O ambiente cénico era também da sua autoria. Pouco se sabe deste assunto mas, atendendo
às referências comidas nas peças, seria montado, nos salões dos palácios e nas igrejas, um estrado ou
um palanque. Nesse estrado eram colocados quadros vivos (exemplo: imagem real da Natividade) e
distribuídas as instalações de barcos com ondas do mar (panos pintados), de casas, de pequenos
templos em madeira, de ornamentos luxuosos para dar vida ao alegórico e simbólico, por vezes,
artificiosamente movimentados, de acordo com a complexidade das cenas; estas possuíam unidade de
acção, tempo e lugar e a sua sequência era muitas vezes assinalada por uma cortina, como em certas
cenas do Auto da Lusitânia. Neste, dada a complexidade da trama, o palco tinha até dois andares e
várias portas.
Pela frequência das representações, pela criação destes ambientes cénicos, pela
especialização dos seus actores (bailarinos, cantores, músicos com diversos instrumentos como
gaitas, pandeiros, atambores, atabales, sacabuxas, trombetas, charamelas...) e pela criação de guarda-
roupas específicos, bem precisava Gil Vicente de uma companhia teatral, mas de tal não se sabe. Só se
conhece que, seguindo a tradição medieval, muitas vezes os espectadores também participavam nas
peças.
Este desempenho de Gil Vicente deu-lhe prestígio, independência, liberdade e autoridade de
criação e de crítica.
Convivendo com o Sagrado e o Profano, o Espiritual e o Carnal, a Verdade e a Ilusão, a Alma e o
Diabo, o Lirismo e a Ironia, o Simbólico/Mágico e o Real, Gil Vicente criou um teatro de sátira social, ou
um teatro de ideias, que critica sem apresentar alternativas ou questionar. Em mais de cinquenta obras,
observou a sociedade quinhentista, denunciou os males, os desvios e os vícios, dizendo verdades com
um aparente sem sentido, através do anedótico e do caricatural.
Mestre de Retórica das Representações, criou personagens-tipo, figuras paradigmáticas da
sociedade do seu tempo, acentuando-lhes linguagens e traços característicos como: o simples
camponês, que paga pesados impostos; o velho namoradeiro (como o Velho da Horta); o criado
manhoso; o pastor e o parvo que, com a sua ignorância, fazem rir; o abastado burguês (como na
Lusitânia); o escudeiro ocioso e a mania nobilitária (como em Quem têm farelos?); o médico charlatão
(Falsos Físicos); os magistrados corruptos; o frade folião; o clero depravado e ostensivo; a mulher
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volúvel; a alcoviteira; o usurário (conotado com os judeus, que ora são satirizados, ora bem aceites,
como na Lusitânia); e os excessos da corte. Estes retratos, com alguma carga psicológica, estão
inseridos em relatos bucólicos e vidas simples; a própria Natureza tem uma grande presença e
expressividade dramática e até as montanhas e florestas são personificadas. Deste modo Gil Vicente
contou, poeticamente, intrigas dramáticas.
Denotou também saberes sobre a astrologia, a jurisprudência e a teologia (debateu ideias e
opinou sobre atitudes papais como a venda das indulgências e a Reforma, como acontece no Auto da
Feira).
Apesar de ter estado em sintonia com a moral e os valores cristãos, foi criticado, perseguido e
silenciado, como ele próprio refere, pela Inquisição, instalada em Portugal por D. João III.
Em 1562, os seus filhos, Luís e Paula Vicente, juntaram na Compilaçam as suas obras, tendo
referido que foi necessário apurar alguns textos e mutilar muitas peças; algumas delas até
desapareceram e outras encontravam-se no Index (lista de livros proibidos elaborada pela Inquisição).
Porém, muitas das suas obras eram conhecidas em folhetos de cordel ou folhas volantes e
representadas fora da corte.
Sempre viva e actual, a obra de Gil Vicente reflecte já, para a literatura, a necessidade de
liberdade de consciência e de opinião.
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AUTO DA LUSITÂNIA
A farsa seguinte foi representada ao muito alto e poderoso rei dom João, o terceiro deste
nome em Portugal, ao nascimento do muito desejado príncipe dom Manoel, seu filho. Era do
Senhor de 1532. E porque ao diante vai o argumento dela se nam põe aqui neste princípio.
Começa a farsa num razoamento de uns judeus pelas figuras seguintes: Lediça, um Cortesão, a
mãe da Lediça, Saulinho, Jacob e o pai deles. (...)
• a fala do licenciado, que começa com dois judeus que estão a pensar como
organizar uma festa para comemorar o nascimento de D. Manuel, filho de D. João
III. Concluíram que G. V. seria a melhor escolha. Entretanto, o Licenciado, que é o
argumentador do texto, entra e faz a apresentação de G. V. e do assunto que ele
quer representar e, a seu modo, ensinar aos espectadores;
Entra Todo o Mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando algua
causa que se lhe perdeu. E logo após ele um homem vestido como pobre, este se chama
Ninguém.
Ninguém: Ninguém:
Buscas mais amigo meu? Que mais buscas?
Todo o Mundo: Todo o Mundo:
Busco a vida e quem ma dê. Lisonjar.
Ninguém: Ninguém:
A vida nam sei que é Eu som todo desengano.
a morte conheço eu. Berzabu:
Berzabu: Escreve anda l mano, ´
Escreve lá outra sorte. Dinato:
Dinato: Que me mandas assentar?
Que sorte? Berzabu:
Berzabu: Põe aí mui declarado
Muito garrida: nam te fique no tinteiro:
Todo o Mundo busca a vida Todo o Mundo é lisonjeiro
e Ninguém conhece a morte. e Ninguém desenganado.
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GIL VICENTE, A SUA OBRA, AS SUAS PERSONAGENS
Gil Vicente (c. 1465-1536) foi um poeta, dramaturgo e encenador, que fez teatro na Corte
portuguesa de Quinhentos.
Gil Vicente aproveitou antigos temas religiosos e mitológicos, contos populares, romances de
cavalaria, entre outros elementos, para criar as suas histórias. Explorou o espectacular e as técnicas de
dramatização – a expressividade e a imagem dos actores –, associando ao texto dialogado a música, o
canto e a dança, dando à acção mais ritmo e movimento e tornando o espaço cénico mais elaborado, mais
vistoso, com cenários e luzes, tudo com um estilo muito eloquente e inventivo. Para além do auto
(composição de ambiência religiosa) e da farsa (relato de episódios cómicos da vida quotidiana),
acrescentou outros tipos: a moralidade (teatro religioso, com personagens alegóricas e tipos sociais) e a
comédia (narrativa satírica em verso). As cenas possuíam unidade de acção, tempo e espaço.
Convivendo com o Sagrado e o Profano, o Espiritual e o Carnal, a Verdade e a Ilusão, a Alma e o
Diabo, o Lirismo e a Ironia, o Simbólico/Mágico e o Real, Gil Vicente criou um teatro de sátira social, ou
um “teatro de ideias”, que critica sem questionar ou apresentar alternativas. Em mais de cinquenta obras,
observou a sociedade quinhentista, denunciando os males, os desvios, os vícios, dizendo verdades com um
aparente “sem sentido”, através do anedótico e do caricatural, e criando personagens-tipo, figuras
paradigmáticas da sociedade do seu tempo.
O «Auto da Lusitânia» (1532), um dos mais ricos que o autor produziu e do qual fazem parte as
cenas analisadas, é constituído por um quadro realista, tratado à maneira de farsa, no início, e por uma
comédia alegórica/simbólica sobre as origens de Portugal. A «fala do licenciado» (1ª cena) apresenta dois
judeus que estão a pensar como organizar uma festa para comemorar o nascimento de D. Manuel, filho do
rei D. João III, e que concluem que Gil Vicente seria a melhor escolha. Então, o licenciado entra e faz a
apresentação de Gil Vicente e do assunto que ele quer representar e, a seu modo, ensinar aos espectadores.
Por sua vez, o «diálogo de Todo o Mundo e Ninguém» é comentado por dois demónios escondidos
(Berzabu e Dinato), servidores de Lúcifer, para quem têm de relatar tudo o que ouvem e vêem; Todo o
Mundo (rico mercador) quer dinheiro, honra muito grande, vida luxuosa e paraíso, mesmo que para tal
tenha de enganar e lisonjear; Ninguém (pobre) procura a consciência, a virtude, a morte digna, a verdade,
o desengano e aceita ser repreendido sempre que erra; esta preferência de Ninguém pela vida simples,
despojada mas verdadeira, é a mensagem de Gil Vicente.
Apesar de ter estado “em sintonia com a moral e os valores cristãos”, Gil Vicente foi criticado e
inclusive perseguido e censurado pela Inquisição.
Sempre viva e actual, a obra de Gil Vicente reflecte já, para a Literatura, a necessidade de
liberdade de
consciência e de opinião.
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Requiem — Introito (1625), de Frei Manuel Cardoso (1566-1650)
Portugal viveu, nos séculos XVI e XVII, uma situação de isolamento e de subalternidade cultural
devido à perda da independência e à aplicação total das decisões do Concílio de Trento (único país que o
fez), com a introdução da Contra-Reforma e do Índex.
Neste contexto — de medo, de estado depressivo e de fervor religioso —, as ciências e as artes
(plásticas, literárias, teatrais.) foram as primeiras a serem afectadas, assim como a música profana, que
quase desapareceu. Em contrapartida, a música religiosa desenvolveu-se com renovado vigor, para
responder às imposições tridentinas e devido à actividade dos mestres de capela das sés catedrais e dos
conventos.
Foi nesta atmosfera que surgiram várias escolas de música, nomeadamente a Escola de Évora e,
neta, Frei Manuel Cardoso.
Frei Manuel Cardoso foi a personalidade criativa mais original da Escola de Évora, um dos mais
importantes compositores da história da música portuguesa polifónica e, como tal, reconhecido pelos seus
contemporâneos. Organista e contrapontista, está inserido no Maneirismo musical. Teve o privilégio de
ver algumas das suas obras impressas em Lisboa por Pedro Craesbeeck e foi aplaudido em Madrid.
Escreveu, pelo menos, três Livros de Missas, um de motetes, um sobre cântico Magnificat, publicado em
1613 e outros que não foram impressos ou que faziam parte da Livraria de Música de D. João IV,
destruída com o terramoto de 1755.
Cumprindo os princípios de ascetismo da Regra carmelita e as orientações da Contra-Reforma
(toda a missa com algo de ímpio ou lascivo deve ser excluída), a sua obra pautou-se pela mensagem
artística submetida ao prestígio da Palavra bíblica e litúrgica, valorizando o texto claro e audível.
Através de grande virtuosismo técnico, apresenta influências de músicos coevos, como Palestrina e
Victoria, mas também um estilo próprio, místico, expressivo, dramático, com um acentuado conteúdo
emocional. As suas peças eram cantadas a 4, 6 ou 8 vozes e acompanhadas por instrumentos de sopro, de
corda e órgão.
As missas do 1.º livro foram baseadas em motetes de Palestrina, as do 2.° em obras indicadas pelo
futuro D. João IV e as do 3.° por temas de Filipe IV. O Requiem ou Missa dos Defuntos (Missa Pro
Defunctis) inclui-se no livro das missas de 1625. Organiza-se em:
Introitus: Requiem aeternam; Kirie;
Graduale: Requiem aeternam In memoria;
Qffertorium: Domine lesu Criste; Sanctus & Benedictus; Agnus Dei I, II &III;
Communio: Lux aeterna; Responsorium: Libera me.
Enquanto a Europa vivia a revolução musical com o Barroco, Portugal elegia, na música sacra, a
polifonia ao stilo antico.
Vida e obra
1574-75 — Estuda no Colégio dos Moços do coro da Catedral de Évora onde tem como mestre Manuel Mendes.
1588 — Tomou o hábito no Convento dos Carmelitas, Lisboa.
1589 — Tornou-se mestre de capela e organista, subprior e vigário do provincial da Ordem.
1613 — Publicou Cantica Beatae Virginis.
1618-25 — Viveu no Paço dos Duques de Bragança, contactando com o futuro D. João IV de Portugal. Dedicou-
lhe o 1. ° Livro de Missas, em 1625, e o 2.° em 1636.
1636 — Patrocinado por Filipe IV, rei de Espanha, publica o 3.º Livro de Missas que contém a Missa Philippina
em sua honra.
1648 — Escreveu Livro de Vários Motetes.
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