Sunteți pe pagina 1din 235

HEIDEGGER E O SAGRADO:

Uma Leitura Budista

por

Antonio Carlos Pereira Borba Rocha

Tese de Doutoramento em Letras


apresentada à Coordenação do Programa
de Pós Graduação em Ciência da
Literatura da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ. Orientador: Professor Doutor
Manuel Antonio de Castro.

Rio de Janeiro, 1º Semestre de 2007.

Faculdade de Letras – UFRJ


2

Defesa de Tese

Rocha, Antonio Carlos Pereira Borba. Heidegger e o sagrado: uma leitura budista.
Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2007, 233 fl. Tese de Doutorado em
Ciência da Literatura – Poética.

BANCA EXAMINADORA

--------------------------------------------------------------------------------------
Professor Doutor Manuel Antonio de Castro – Orientador

--------------------------------------------------------------------------------------
Professor Doutor Antonio José Jardim e Castro

--------------------------------------------------------------------------------------
Professor Doutor Werner Aguiar

--------------------------------------------------------------------------------------
Professora Doutora Maria Lúcia Guimarães Faria

--------------------------------------------------------------------------------------
Professora Doutora Mirian Terezinha Fonseca de Carvalho

--------------------------------------------------------------------------------------
Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza

--------------------------------------------------------------------------------------
Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira

Defendida a Tese: Heidegger e o Sagrado: uma leitura budista

Conceito:

Em: 26 / 04 / 2007.
3

Sumário

Sumário i.

O Vazio 1.

Agradecimentos 2.

Epígrafes 4.

Sinopse 5.

Introdução 6.

Notas da Introdução (Epígrafes) 9.

Capítulo 1 – Leitura Budista: O Método Zen 10.

1.1.–Vacuidade da presença 12.

1.2 – Parábola do Menino e o Carro de Boi 14.

1.3 – Entre-Redes 16.

1.4 – A palavra palavra e outras palavras questões 18.

1.5 – Vida Mítica 20.

1.6 – Caminhos a descobrir 24.

1.7 – Afinidades Originárias 27.

1.8 – Meditação Budista e Heideggeriana 29.

1.9 – A Mística em Heidegger 31.

1.10 – Revelação Búdica 33.

Notas do Capítulo 1 37.


4

Capítulo 2 – O silêncio de Buda 38.

2.1 – Solidão não é Sinônimo de Silêncio 40.

2.2 – Método: a ferramenta e o suporte 42.

2.3 – O silêncio da chuva 44.

2.4 – A força do silêncio 46.

2.5 – O jogo do silêncio 48.

2.6 – Silêncio é movimento 50.

2.7 – Zen, a percepção do silêncio 52.

2.8 – O Verbo e o Silêncio 54.

2.9 –Silêncio e Satori 57.

2.10 – O Zen e a Bíblia 60.

Notas do Capítulo 2 63.

Capítulo 3 – Heidegger e a Filosofia Oriental 64.

3.1 – Mente de Principiante 66.

3.2 – Filosofar Principiante 68.

3.3 – Zen Principiante 70.

3.4 - Tese de Principiante 72.

3.5 – Ser Principiante 74.

3.6 – Mente Originária 76.

3.7 – Heidegger e Buda 78.

3.8 – Mundo e a terra 80.

3.9 – Arte: o a-pare-ser da verdade 82.

3.10 – Hölderlin e Buda 84.

Notas do Capítulo 3 86.


5

Capítulo 4 – Eihei Dogen: o monge filósofo-pensador 87.

4.1 – O Ser-do-tempo 89.

4.2 – O cajado e o batedor 91.

4.3 – Meditação Heideggeriana 94.

4.4 – A dúvida saudável 97.

4.5 – O caminho da travessia 99.

4.6 – Nome e Forma 101.

4.7 – Experiência de união-unidade 104.

4.8 – Passado, presente e futuro 106.

4.9 – O fluir do tempo 108.

4.10 – A teia da memória 109.

4.11 – A questão do olhar 112.

4.12 – A prática completa 115.

4.13 - Além dos conceitos e dicotomias 116.

4.14 – O que é o tempo 117.

4.15 – Não-fazer fazendo 120.

4.16 – O fluir da primavera, dentro de cada um 121.

4.17 – Permitir e não-permitir 123.

4.18 – A limitação das palavras 126.

4.19 – Heideggerologia, Heideggerosofia 129.

4.20 – O ponto fundamental 131.

4.21 – Todo fim é seguido de um novo começo 133.

Notas do Capítulo 4 135.


6

Capítulo 5 – Buda e Chuang Tzu: Pensadores Originários? 137.

5.1 – A questão do útil e do inútil 139.

5.2 – A luta entre o útil e o inútil 141.

5.3 – O útil é temporário 143.

5.4 – Heidegger introduz o pensamento asiático 145.

5.5 – Libertando-se dos rótulos 147.

5.6 – A árvore inútil 149.

Notas do Capítulo 5 152.

Capítulo 6 – Heidegger e o Zen-Budismo 153.

6.1 – Filosofia Meditativa 155.

6.2 – O Pensar é Criativo 157.

6.3 – A discursividade da dicotomia 159.

6.4 – Serenidade: uma palavra antiga 161.

6.5 – Pensamento e essência do homem 163.

6.6 – O caminho da serenidade 165.

Notas do Capítulo 6 168.


7

Capítulo 7 – Diálogo entre um Japonês e um Pensador 169.

7.1 – A experiência do vazio 171.

7.2 – O jardim vazio e ao mesmo tempo cheio 173.

7.3 – O enigmático termo “iki” 175.

7.4 – O orvalho da manhã 177.

7.5 – O filme 179.

7.6 – As várias formas de alimento 181.

7.7 – Dimensão originária da vida 183.

7.8 – O teatro Nô 184.

7.9 – O teatro e o silêncio 186.

Capítulo 8 – O que é vazio? 187.

Notas do Capítulo 8 205.

Conclusão – Inevitável diálogo 206.

Notas da Conclusão 211.

Bibliografia 212.

Resumo 223.

Abstract 225.

O Vazio 227.
8

O Vazio
9

AGRADECIMENTOS

Noêmia e Antonio, meus pais. E demais familiares – gratidão infinita!

Heloisa (esposa), Vera e Gabriel (filha e genro) – sempre solidários.

Manuel Antônio de Castro, Orientador – em termos Zen, “Sensei”: mestre,

instrutor, aquele que transmite a lâmpada do conhecimento: Dômo Arigatô

Gozaimassu !

CNPq – a bolsa veio em boa hora. Ajudou muito nas pesquisas, leituras e

tranqüilidade na hora de escrever.

Antonio Jardim, Ronaldes de Melo e Souza, Werner Aguiar, Alberto

Pucheu, Luiz Edmundo, – professores que me auxiliaram a auscultar o Sagrado.

Mirian de Carvalho que me soprou a idéia, e sua mãe Nancy – grandes

amigas.

Professores do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura e os

demais professores da Faculdade de Letras da UFRJ – me abriram portas e

janelas para contemplar a beleza da Literatura, da Filosofia e da Arte.


10

Colegas – juntos fizemos uma ótima travessia pelo oceano de monografias,

trabalhos, seminários e afins.

Funcionários da secretaria da pós – vocês são peças-chaves no jogo

acadêmico. Valeu!

Dra. Norma Benedicta de Oliveira Rodrigues, médica, me ajudou a

equilibrar a saúde, através das agulhinhas da acupuntura, mosha e remédios

afins.

À HBS - Honmon Butsuryu Shu (Budismo Primordial) minha querida ordem

budista japonesa, Mahayana, da qual, honrosamente, faço parte no grau de

sacerdote. Agradeço a todos na pessoa do meu preceptor Kyohaku Correia pela

“orientação compassiva”.

A Heidegger, que me ensinou a conversar com o Caminho.

Ao Buda, pelos ensinamentos e pela convivência fraterna desde os 16

anos.

A Physis, pelo muito que ainda eu tenho de aprender.

A Deus – Criador da Criação – dádiva, enigma, graça, presença, mistério.

Na falta do que mais dizer: Muito obrigado!


11

“É um diálogo que ainda está esperando para começar.

Trata-se de um diálogo que mal se acha preparado mas que,

para nós, se torna uma condição prévia do

diálogo inevitável com o mundo do Extremo Oriente”1.

- Martin Heidegger –

“O próprio tempo é ser e todo ser é tempo”2.

- Dogen -

(monge budista japonês:1200 -1253).

“Pensei ter percebido nesse filme

o encanto do mundo japonês,

que nos leva às regiões do mistério”3.

- Martin Heidegger -
12

SINOPSE

Uma poética do Sagrado. Olhar literário, filosófico e religioso.

A presença do Oriente nas obras do pensador alemão.

O Budismo e o pensamento de Martin Heidegger.

Poética do vazio. O silêncio fala.

Meditação Zen e Serenidade Heideggeriana.

Tentativas de aproximação Oriente-Ocidente.


13

Introdução

Com raras exceções, muitos leitores de Heidegger dizem que o seu texto é

difícil, denso, hermético, enigmático. Há até quem diga que o pensador fala uma

coisa e depois desdiz, fala outra, ao contrário, puxa o tapete e deixa o leitor na

confluência da bifurcação, na encruzilhada.

Inúmeras vezes, ao longo dessa tese, nos perguntamos, nos questionamos.

Por que será que ele escrevia assim? Queria brincar com a posteridade? Será que

não sabia escrever de forma mais simples? Era proposital – proposiTAO – queria

confundir a cabeça do leitor? A nosso ver, ele fez um verdadeiro copidesque,

reescrevendo muitas palavras, recriando-as. Claro que ele tinha todo direito

literário e filosófico, toda licença poética de inventar neologismos, mas será que o

fato de ter lido tanto não permitiu que ele fosse mais claro, preciso, objetivo, mais

simples no escrever?

Estas colocações que fazemos de clareza, precisão e objetividade é um

reflexo do nosso condicionante pensamento metafísico? Sendo um insigne

professor, um eminente educador será que ele não pensou em trabalhar a sua

abordagem do Ser de modo a torná-la mais fácil para o grande público? Para as

massas? Será que, tal como Buda, Heidegger ficou em dúvida se o povão, o

público, a massa iria realmente entendê-lo? Ainda que trabalhasse na academia e

com a academia, ele só queria leitores de nível universitário? E não alcançar a

comunidade, além dos muros superiores?

Também o Buda, assim que teve a revelação do estado que chamamos de

Iluminação, ficou em dúvida se as pessoas em geral iriam realmente entendê-lo,


14

tamanha a profundidade de seus ensinamentos. Aqui entra um aspecto mitológico,

dizem os textos canônicos que neste momento apareceu um “ser divino” e lhe

pediu para ensinar ao povo, para transmitir os conhecimentos que ele havia

descoberto, que toda a sabedoria que ele havia compreendido fosse transmitida

aos demais seres humanos. E assim ele atendeu o pedido da divindade. No caso

do pensador alemão, quem será a “deidade”, a musa que estimulou Heidegger a

escrever?

A reflexão sobre o hermetismo de Heidegger pode parecer questiúnculas

pós-modernas, levantarmos tais observações pode parecer fora de propósito.

Alguém pode afirmar que sendo um pensador ele não estava interessado na

cotidiana linguagem dos jornais, que ele não escreveu para as massas e até

abominava uma escritura mais moderna. Se bem que sendo uma pessoa atenta

aos detalhes Heidegger primava pelas coisas mais simples, que contém em si, as

complexidades da vida.

Com isto, estamos querendo dizer que o nosso fazer escri-turístico terá

também alguns neologismos. Vamos pro-curar o sentido da simplicidade nas

passagens selecionadas e comentadas.

Tentaremos fazer uma leitura budista e ao longo do texto iremos explicitar o

que vem a ser uma leitura budista.

E por que estamos tentando essa abordagem? Porque vemos a filosofia

budista como mais uma ferramenta, mais uma forma de conhecimento para

estudarmos o real, a physis.

A questão da linguagem, para Heidegger, sempre foi fundante, inaugurante,

originária. Em seus textos vemos que ele refere-se ao ser da língua que se revela
15

na experiência da fala por parte do homem. O tema desdobra-se, então, da

seguinte maneira: sob um aspecto, qual é o caminho do homem para a

linguagem? Sob outro, qual é o caminho da palavra nesta mesma linguagem? É

como se a palavra fosse um ser vivo, uma pessoa.

É a partir dessa experiência primordial, originária de poder de nominação

da língua, a partir da natureza dessa vivência que o pensador constata quase que

uma corporificação da língua, colocada em prática na enunciação. É um poder

interno que a linguagem tem e revela-se a si mesmo sua fundamental essência,

sua qualidade de ser primeva no caminho que o homem estabelece até que a

palavra enseje a proposição final.

Essa fórmula do caminho para a palavra, que também é o caminho da

palavra na linguagem, é pensamento a partir da enunciação. Assim, ao situar-se

na essência do pensamento heideggeriano do ser, no amplo domínio da diferença

ontológica, o caminho para a palavra manifesta a dialética fundamental entre o

signo como instrumentalização da língua e a palavra como poder de nominação

do ser e da originariedade das coisas. A palavra revela-se, acima de tudo, como

poder inicial de demonstração, demonstrar, mostrar-se, evidenciar-se

compreensivelmente. A palavra é a capacidade de realização, do desvendar das

coisas e do poder de deixar ser aquilo que ela denomina e se denomina.

A questão que se coloca, que se nos mostra não é tanto a modalidade do

caminho do homem para a palavra, mas o movimento da palavra na linguagem do

homem para designar a dimensão importante da estância humana ou melhor

dizendo, como a palavra vem à palavra. Como a palavra nasce como palavra?
16

Notas da Introdução (Epígrafes)

1 – HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002, p.41.

2 – TANAHASHI, Kazuaki. Escritos do mestre Dogen. São Paulo, Siciliano, 1993,

p. 90.

3 – HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, Vozes, 2003, p. 84.


17

CAPÍTULO 1

Leitura Budista: O Método Zen

Nossa tentativa de leitura budista que pretendemos fazer nos leva ao

método zen. É tentativa, pois nada está pronto, nada está acabado, nada está

concluído e também é uma pretensão, no bom sentido. Pretendemos propor que

o pensamento zen, o pensamento budista, que são sinônimos, tornem-se mais um

caminho de compreensão para o texto heideggeriano. Identificamos aproximações

entre os pensamentos do alemão Martin Heidegger e do indiano Sidarta Gautama,

o Buda.

De certa maneira, pode ser uma ousadia, e assim queremos nos lançar

nesta travessia, nesta aventura.

É uma tese sobre o vazio, mas, um texto sobre o vazio, por enquanto, não

pode ser vazio de sinais gráficos, não pode ser vazio de digitações. Falamos por

enquanto pois, quem sabe o dia de amanhã? É uma tese sobre o Sagrado.

Entretanto, mesmo que conseguíssemos escrever uma tese vazia de vazio, vazia

de si mesma, ainda assim teríamos um texto para ser lido ou meditado – o branco

da página.

Certa feita, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu sobre este

silêncio da folha de papel em branco. E o resultado foi o livro Impurezas do

branco1. Onde ele falava das letrinhas, dos sinais gráficos que preenchem a folha

de papel. Podem ser bons preenchimentos se o texto for bom e podem ser

preenchimentos que deixam a desejar se a mensagem não for bem aceita.


18

A página completamente em branco é um grande texto. É o silêncio visível,

palpável, concreto. A página completamente em branco é um profundo

ensinamento Zen. Fala do vazio e assim, logo no início podemos compreender

que este vazio é repleto de presenças. É interessante esta palavra presença, pois

na recente edição revista e atualizada de Ser e Tempo2, a tradutora optou por

chamar Dasein de presença. E como a nossa tese é sobre o Sagrado, tal

colocação da tradutora nos faz lembrar das proposições místicas, de que

falaremos mais adiante, sobre a presença sempre presente daquilo/daquele que

parece ausente, mas nunca está ausente, ainda que esteja sempre silente, em

silêncio. Sua forma de falar é através de um tonitruante silêncio.

Um silêncio repleto de presenças. Onde? Na folha em branco vazia que não

está sem nada, pois se estivesse sem nada não existiria, pois o nada, neste

sentido, não existe, e se ela existe, logicamente tem algo. Mas que algo é esse?

Onde está esse algo da folha branca e vazia? Que silêncio é esse?

É um silêncio compartilhado. A folha de papel em branco indica que ela veio

de uma árvore. Deste modo foi cortada por um lenhador, deduz-se então que este

lenhador tem uma família, tem antepassados, logo aí já há muitas pessoas para

se agradecer, conforme recomenda o Buda. Agradecer é uma forma de

reconhecer que todos estão interligados, que todos estão interagindo, não há

dicotomia, não há dualismos. Antepassados, obviamente já falecidos, continuam

“presentes” na folha de papel em branco que o lenhador nos proporcionou.


19

1.1 – Vacuidade da presença

A folha branca está vazia, implicitamente encontramos a “presença” da energia

de uma série de pessoas. Se o citado lenhador for casado e tiver filhos, a

possibilidade de ter netos e demais descendentes aumenta. Por inferência deduz-

se que, talvez este lenhador não estivesse só, mas sim acompanhado e aí, são

mais pessoas para compartilharmos a “vacuidade” da folha branca sem nada

escrito, mas com muitas coisas “inscritas” de forma indelével.

A madeira, o caule, os galhos, certamente foram cortados com um machado,

então, este machado foi feito por alguém, é bem possível que mais de uma

pessoa tenha trabalhado na confecção deste machado: o ferreiro, a família do

ferreiro, antepassados e descendentes.

Estamos falando em uma linguagem da antiguidade: lenhador, ferreiro;

entretanto, se for em termos atuais, de produção industrial, permanecem os

antepassados e descendentes do operário que cortou a árvore com a moto-serra,

a linha de produção que fabricou a moto-serra, a equipe de trabalhadores que

transportou no caminhão os troncos de árvore até que estes ao chegar no galpão

industrial se transformem em celulose, papel etc e depois vem o replantio, através

das firmas que fazem o reflorestamento.

São milhares de pessoas que colaboraram e contribuíram para que tivéssemos

essa única folha de papel em branco, aparentemente vazia, mas nada vazia.

Voltando à linguagem da antiguidade o mesmo ritmo permanece. O lenhador,

utilizando-se de um machado feito por outros, transportou a madeira em um carro

de boi, ou uma carroça puxada por outro animal, cavalo ou jumento, talvez esse
20

rudimentar veículo tenha sido feito por estranhos. E aqui já entra o dado do

animal. Budisticamente falando, precisamos agradecer ao animal, aos animais

envolvidos no referido trabalho, o animal ou animais muitas vezes são tratados

como membros da família. O animal de carga ajuda o lenhador no transporte da

madeira.

Em se tratando do animal, além do agradecimento, outro fato entra nesta

“presença” vazia repleta é o dado da alimentação, do cuidado, da cura com o

animal, que prepara ou compra a ração. Logicamente, então, este animal ou estes

animais têm antepassados e provavelmente descendentes, precisamos assim,

também agradecer ao reino animal, à espécie do gado bovino ou eqüino,

conforme o caso.

Ao nos propormos a fazer uma leitura budista estamos lançando mão de

princípios ensinados pelo Buda, no caso acima, pode parecer absurdo agradecer

aos antepassados dos animais, mas queremos dizer que sendo um caminho

milenar, que tem suas origens lá no século VI aC. o elemento mítico está

presente, a visão mítica da vida faz-se presente, onde tudo está integrado, onde

uma espécie interage com a outra constituindo uma rede. Estamos todos inseridos

nesta rede, todo ser que respira se faz presente na presença ou na ausência,

mas, estamos todos na rede e em rede.

A rede tudo abrange: cidades, pessoas, coisas, situações as mais diversas e

assim vamos observar que o “entre” permeia todo o ecossistema.


21

1.2 – Parábola do Menino e o Carro de Boi

Há um conto budista, que está presente nas escrituras e nos fala, justamente,

dessa interação, dessa rede entre o ser humano, o reino animal, o reino vegetal e

o reino invisível, a dimensão dos deuses, que no budismo chamamos os devas.

Certo dia, um lenhador e seu filho foram para a


floresta, como sempre faziam, com o romper do sol.
Nesse dia o trabalho foi excepcionalmente árduo; as
árvores pareciam cheias de espinhos e difíceis de
serem abatidas; quando a noite chegou encontrou os
dois ainda a caminho da cidade com a carroça cheia de
madeira. A cidade, diga-se de passagem, era cercada
de muros e possuía apenas duas pontes: uma pequena,
para pedestres; outra, maior, para carruagens. Elas
fechavam, pontualmente, por ordem do Rajá, às 6 horas
da tarde. Primeiro, era a vez do portão de carros, e
minutos depois os guardas cerravam a entrada de
pedestres. Em nenhuma hipótese eram abertas até o
raiar do dia; porque a floresta era espessa e cheia de
estranhos seres.
Pai e filho apressaram o mais que podiam o boi
que puxava o carro. Mas a noite estava cheia de
perfumes, a temperatura suave e o animal cansado não
se apressava. Tudo em vão. Quando chegam diante
dos muros os portões dos carros estavam sendo
cerrados. O pai suplicou em vão. A ordem era severa e
os guardas temerosos das represálias. O lenhador
deixa o menino no carro e entra pelo portão dos
pedestres para implorar ao chefe da guarda que
deixasse seu carro entrar. Enquanto pedia os guardas
inflexíveis fechavam o último portão, deixando no frio da
noite o menino e sua carroça.
Não houve súplica que fizesse os guardiães
voltar atrás. A palavra do rei é sempre uma ordem e
como tal, tem de ser cumprida. A criança não se
perturbou e ajeitou com alguns gravetos e capim um
leito onde se deitou e logo adormeceu. A floresta, como
dissemos, era espessa e povoada por estranhos seres.
Um deles, um tremendo demônio, vendo a carroça fora
dos muros resolveu aproximar-se para matar o filho do
22

lenhador. Pois os demônios, segundo a tradição, só


podiam se alimentar de carne morta. Acorda o menino e
resolve mata-lo de medo. Assume as formas mais
hediondas, cresce, diminui, multiplica-se em braços e
cabeças, faz ruídos. Seus olhos lançam chamas que
furam a noite. O pequeno lenhador não se deixa vencer
pelo medo e começa a repetir em voz alta o potente
mantra em que o nome de Buda é mencionado: Namo
Buddhaya.
E repetia sem cessar, o mantra da Luz. O
demônio, a princípio ficou surpreso e quis fugir diante
de tanta paz; mas não consegue se mover. Parecia
grudado ao chão. E foi lentamente modificando suas
feições, encurtando as garras à medida que a
serenidade do mantra o envolvia. Por fim,
completamente tocado e já em forma humana, pede ao
menino que o considere seu servo. Ordene o que quiser
que ele obedecerá ! A criança, que não tinha se
alimentado disse que tinha fome.
O demônio parte como um raio, cruza os muros e
entra no palácio onde vê, aguardando o Rei, numa
antecâmara deserta, um maravilhoso prato de ouro
cheio de alimentos saborosos. Segura o prato e num
piscar de olhos apresenta-o ao seu novo amo, que
come e adormece feliz com o demônio velando aos
seus pés.
A noite passa, porque o destino de todas as
coisas é transitório e ao romper da aurora, quando os
pássaros abandonam os ninhos, os portões da cidade
foram abertos mais uma vez e por eles entraram o
menino, seu novo criado, e um sonolento boi puxando
um carro cheio de lenha. O pai se surpreende e chora,
pois, acreditava que nunca mais iria ver seu filho. Era
grande, entretanto, o alvoroço na cidade. Os tambores
soavam transmitindo a notícia: o precioso prato milenar
de ouro com que os reis há muitos anos, eram
alimentados, trazido à terra, há milênios pelos próprios
deuses, tinha desaparecido misteriosamente. O rei
oferecia recompensas, e fazia ameaças. O menino
ouviu e sorridente partiu rápido para o palácio
acompanhado do pai e do demônio convertido, à
procura do Rei para devolver-lhe o prato. Grande foi o
júbilo. As trombetas soaram, os tambores vibravam,
pois de novo a alegria voltava ao coração do rei que,
tocado com a história, recebe o menino como a um
filho2.
23

1.3 – Entre-Redes

A parábola em questão nos fala de um momento entre redes, momento

entre reinos. E falamos em momentos porque o Budismo nos diz que a vida é

uma sucessão de momentos, assim como o oceano é uma reunião de gotas

de água.

Na história estão presentes os reinos: humano, animal, vegetal e invisível, o

assim chamado reino dos deuses ou dos devas. O enredo nos diz que os

reinos estão interagindo, interagem o tempo todo. É a teia da vida. Em páginas

anteriores falamos da folha de papel, mas aqui vemos uma outra função para o

reino vegetal, servir de lenha. Aquecer nas noites de frio e durante o dia ajudar

a preparar o alimento. É a madeira que se transforma em fogo e cozinha a

comida.

Os elementos da natureza, o tempo todo, estão visíveis, bem claros,

concretos. É a physis em toda a sua pujança: floresta, sol, dia, trabalho,

cidade, carroça, noite, perfumes, estrada, o pai, o filho, lenhador, demônio,

palavra. Estas palavras chaves cada uma, por si só constituem uma rede,

como se fosse um substantivo coletivo, que não acontece de forma isolada.

Vejamos: a floresta em si já é uma rede, um conjunto de árvores, caminhos,

terra, insetos, pássaros, ninhos, talvez animais de porte maior, talvez até feras,

animais selvagens e implicitamente temos o clima, não apenas o oxigênio,

mas a umidade, considerando que a Índia é um país de clima subtropical, em

alguns pontos semelhante ao clima brasileiro, assim, no âmbito da flores


24

temos o mormaço, o suor durante o sol a pino, os vermes e germes que

habitam a terra, as minhocas, tudo completamente vivo e agindo.

O sol não é algo único; é um todo, é um conjunto. Os especialistas irão

esclarecer que um conjunto de gases formam aquele calor, que as

temperaturas variam da superfície até o núcleo, até o centro do sol, os raios

solares, como o próprio nome diz, é plural, mais de um, ainda que

aparentemente tenha-se a impressão de que é só um, mas um físico poderá

explicar as partículas que compõem a refração da luz, a reunião de átomos ali

presentes. Então estamos diante de um coletivo de coisas, de um grupo, de

um somatório que resulta no que chamamos singularmente de sol.

É interessante que a palavra “estrada” não está presente na descrição, no

entanto, deduz-se que há uma estrada, por onde o carro de boi anda, por mais

rústica e poética que seja esta estrada ela está ali. A estrada pode ser larga ou

estreita, pode até ser um caminho, duas trilhas por onde passam as rodas da

carroça com a lenha, mas o texto fala em carruagem, então verificamos a

possibilidade de uma estrada, ainda que primitiva, rudimentar.

E assim, ao longo de cada palavra-questão assinalada nós podemos inferir

uma série de vivências presentes, efetivamente ou implicitamente. Sempre no

plural, evidenciando que a vida é uma rede e que muitas vezes as redes

contêm outras redes numa sucessão de entre-redes, um organismo vivo como

é o corpo humano e a própria estrutura do planeta Terra.


25

1.4 – A palavra palavra e outras palavras-questões

A palavra “palavra” também é um conjunto, também é uma reunião,

também é um coletivo, não no sentido gramatical, mas no sentido ontológico.

Vejamos a sua hermenêutica: a palavra palavra é composta de letras, cada

letra tem uma forma gráfica, visual diferente; tem fonemas, tem sons, tem

sílabas, tem acentuação. A articulação da palavra palavra tem a sua

contraparte no organismo, no corpo humano, no aparelho fonador.

Ao se pronunciar o mantra citado, a repetição, a oração em que se

transforma o mesmo, a prece, além das implicações religiosas, fonéticas,

fonológicas, gramaticais tem a contraparte psicológica que acalma o menino e

até transforma o demônio em amigo e protetor.

“Namo Buddhaya” é o sagrado mantra. Namo quer dizer “eu me refugio” e

Buddhaya significa a invocação ao nome de Buda. Representa que o estamos

chamando para nos ajudar, para nos salvar de uma situação difícil como

ocorreu com o menino, para socorrê-lo. Por outro lado, é um nome tão forte,

budisticamente falando, que consegue despertar a bondade do demônio. E eis

aqui um dos fatores advindos da iluminação de Buda. Ele descobre que todos

os seres, absolutamente todos, até os que estamos chamando de invisíveis

têm, no mais profundo de sua originariedade, a semente do esclarecimento

que leva aos atos bondosos e consequentemente a proteger o menino,

conforme a parábola em questão.

Uma das coisas que o Budismo fala é que toda palavra, em si, constitui um

mantra, por isso devemos sempre pronunciar palavras positivas, construtivas,


26

ainda que a situação seja difícil. A palavra boa, do bem transforma o ambiente,

por mais adverso que ele pareça. E aqui temos outra importante lição búdica.

Nada é adverso, ainda que aparente nos sugira algo ruim, não é, pois, mais

adiante, veremos que resultou em ação frutífera, para melhor, para

amadurecer. É por isso que ao ouvir o mantra o demônio se transmuta e revela

sua melhor parte, aquela que estava escondida, até dele mesmo, a face da

bondade, a face original, a face essencial, a face originária.

Vejamos outra palavra questão, o dia, por exemplo. O dia é um todo coeso,

o dia é tempo e é ser. O dia é composto da noite, pela noite, com a noite. O dia

é plural, é um conjunto. Hoje medimos esse tempo através das horas, minutos,

segundos e décimos de segundos; naquela época tinha a madrugada, o

amanhecer do dia, o nascer-do-sol, o período da manhã, o meio-dia, a metade

do dia, a tarde, o entardecer, o crepúsculo, o pôr-do-sol, e a noite

propriamente dita. Um tipo de ave canta pela manhã, outra canta à tarde e

algumas à noite. Logo, na antiguidade, era fácil descobrir as horas, a medida

do tempo, a medida do dia, assim a palavra questão “dia”, também constitui

uma rede. E cada palavra anteriormente referida conecta-se com outra

palavra-rede como, por exemplo, cidade.

É fácil perceber que cidade é um conjunto de moradores que se locomovem

ao longo do dia, cuidando de suas coisas, de suas vidas, tratando dos seus

seres e dos seus tempos. A cidade em questão era cercada de muros

compostos de pedras, argamassas, imitações de cimentos, tijolos etc. As

redes são vidas e a Vida de todos nós é plural.


27

1.5 – Vida Mítica

Este carro de boi, esta parábola, o que foi comentado é uma visão mítica da

vida, onde tudo está integrado, onde uma espécie interage com a outra, em um

amplo conjunto de redes interagindo com as demais redes, visíveis e invisíveis.

Estamos todos, todo ser que respira, inseridos nesta rede. E a vivência da

rede, a experienciação deste momento pressupõe o “entre”. Algumas vezes, como

iremos nos referir mais adiante, ao ler determinadas passagens de Heidegger,

temos a nítida impressão de estarmos lendo um texto budista, um texto zen.

Cremos que através do estudo, da vivência e da reflexão da vida, o pensador

alemão chegou a pressupostos semelhantes aos de que Buda falava.

Este entre é o vazio, ao longo desta tese, vamos em diversas ocasiões nos

referir a este tema. Podemos tentar explicar o vazio como algo transparente,

aberto, mas observando que nesse entremear de rede, se tudo está em inter-

relação, entre-redes, tudo é vazio, tudo é transparente, por mais que se vele, por

mais que se tente ocultar, o vazio, a transparência sempre se faz presente, mais

cedo ou mais tarde. Tudo também é aberto, permite uma interpretação múltipla.

Então, como disse Umberto Eco4, a obra de arte é aberta e nós podemos

acrescentar, a obra de arte é vazia, é transparente. E se é vazia é originária.

Observando que todas as coisas se pertencem, interagem, não estão e não

são isoladas, Heidegger, nos dá o exemplo de uma mesa. A mesa é um objeto, é

um utensílio, mas vejamos como ele trata a coisa chamada mesa. O mesmo que

falamos sobre a folha de papel em branco, podemos falar sobre a mesa, que o

pensador alemão aborda a seguir. É bom notar também que há uma unicidade
28

entre a folha de papel branco e a mesa. Ambas provém da árvore. Se for, claro,

uma árvore de madeira. Imaginamos que o mago da Floresta Negra devia estar

falando de uma mesa de madeira, pois ele sempre foi muito ligado às questões da

natureza.

O físico e astrônomo inglês Eddinton fala


da sua mesa e diz: todas as coisas deste gênero,
mesas, cadeiras etc tem um duplo. A mesa
número um é a mesa conhecida desde o tempo
de criança. A mesa número dois é a “mesa
conhecida cientificamente” quer dizer, a mesa
que a ciência determina na sua coisalidade, não
é composta, segundo a física atômica
contemporânea, de madeira, mas na sua maior
parte, de espaço vazio: aqui e ali, nesse vazio,
estão entremeadas cargas elétricas que, a
grande velocidade, se deslocam em todos os
sentidos. Qual é agora a mesa verdadeira, a
número um ou a número dois? Ou ambas são
verdadeiras? E em que sentido de verdade?5

Qualquer “coisa” deste mundo tem a sua especificidade e está interagindo

com outra. O termos qualquer, no início deste parágrafo, não generaliza a

questão nem a banaliza. Ao contrário. Quer significar que tudo o que existe são

“coisas” como Heidegger descreve. É interessante que sobre a citação acima há

uma afirmação de Buda ao questionar o homem, ao questionar o “eu” pergunta:

quem é homem, onde está o homem, o que é o homem a assim ele vai

dissecando o organismo humano e inquire: o homem é a carne dos ossos, o

homem é o coração, o homem é o sangue que corre nas veias, o homem é o

esqueleto, o homem é o coração, o fígado, os rins? Nessa primeira fase ele

aborda os aspectos físicos. Depois ele parte para os aspectos emocionais,

psicológicos, sociais, econômicos etc.


29

Da mesma forma que Heidegger pergunta “qual é agora a verdadeira

mesa”, Buda pergunta verdadeiramente, onde está o homem? Penso que, mais do

que uma simples resposta, o que os dois pensadores querem é uma reflexão, é o

pensar. Um outro antigo texto canônico, ao falar da complexidade que representa

esta compreensão de vida que inclui a interdependência afirma: “Montanhas, rios,

relva, árvores, terra, tudo é Buda”6. Mais adiante, iremos discutir a questão da

palavra Buda, mas é evidente que na frase acima não está se falando só do

homem Sidarta Gautama, que ficou conhecido, a partir do século VI aC como O

Buda, o iluminado, o desperto, o esclarecido. Aqui é a abrangência do nome Buda,

como se estivesse se referindo à physis.

Ainda que pareça uma noção panteísta, a proposta é tentar afirmar que

tudo é vida, tudo é Buda, semelhante ao princípio que está na Bíblia: “Cristo é

vida”7, assim, todas as coisas que existem tornam-se relativas, tornam-se vazias,

tornam-se abertas, tornam-se inexistentes, pois o que existe é só Deus em ação.

Ele age através de mim, de você, de todos nós, de tudo o que existe, de tudo o

que há. Logicamente, nesse caso, não vemos panteísmo, mas sim, um sentido

unitário, originário, onde tudo é um. Tudo é o Um. E o Um é o Todo. Obviamente,

nesta hora, Deus e Buda são sinônimos, e aqui, Oriente e Ocidente aproximam-se

mais uma vez.

O Zen trata essa questão da seguinte forma. É preciso experienciar que

uma folha de papel em branco é um dos grandes ensinamentos do Buda. Dizem

os textos canônicos que o Zen nasceu da experiência direta da transmissão de um

Sutra silencioso. Um sutra poderoso proferido por Sidarta e completamente isento

de palavras. O termo sutra já está dicionarizado na língua portuguesa e significa o


30

texto canônico budista. Sutra é em sânscrito e tem, na língua páli, o seu

equivalente sutta. Originalmente significa “fio” porque, após a morte de Buda –

budisticamente não se usa essa palavra “morte”, diz-se que Sidarta ao falecer,

atingiu o parinirvana, isto é, além do nirvana. É um grau superior, altíssimo de

nirvana, de santidade, de sanidade.

Voltando então, após a morte de Buda, os discípulos reuniram-se e

começaram a colocar em pergaminhos rudimentares feitos de folhas de bananeira

e outras que fossem largas, as palavras que Buda ensinou. A arte de escrever,

naquele tempo, era através de letras pintadas (desenhadas, escritas) em folhas

das árvores e plantas. Com isto, amarrava-se em um “fio”, um barbante feito de

cipó e eram organizados em temas que depois eram colocados em cestos, cujo

nome em sânscrito e em páli é pitaka. Em seguida, reuniam em três cestos, daí o

termo clássico Tripitaka, tanto na língua sânscrita quanto na língua páli. Sempre

em três cestos as folhas eram separadas. Em um cesto encontravam-se os sutras

correspondentes aos ensinamentos diretos, objetivos, para o dia-a-dia; os

sermões para se viver melhor nesta vida e após deixarmos esta vida física. Não é

redundância falar em vida física, pois temos a vida extra-física.

No segundo cesto guardavam os sutras dedicados à ordem monástica:

como os monges e monjas devem proceder nas mais variadas situações e por fim

o terceiro cesto que alguns tradutores chamam de sutras metafísicos, mas que

preferimos chamar de sutras de questões profundas, sutras que tratam de

questões poético-ontológicas porque dizem respeito aos diferentes aspectos da

autopoiése como as questões psicológicas, filosóficas, originárias etc.


31

1.6 – Caminhos a descobrir

A grande questão, nessa área, é que tendo ensinado ao longo de 45 anos

são muitos sutras. Por exemplo: um ano tem 365 dias, não vamos contar os

muitos bissextos que ocorreram. Ele, normalmente ensinava três vezes por dia.

Então, em um ano temos 1.095 sutras, aulas, pronunciamentos, lições.

Multipliquemos por 45 anos e teremos 49.275 textos. Alguns são longos, outros

curtíssimos. Muitos, bastante repetitivos, devido à tradição oral. Geralmente

rimados para que os discípulos pudessem gravar, decorar melhor. Alguns sutras

dizem que Buda pronunciou 84 mil ensinamentos. Em parte é um exagero, sob

outro aspecto é que em todas as ocasiões ele aproveitava para ministrar as aulas,

assim, de 49.275, um número aparentemente mínimo, pula-se para o simbólico 84

mil porque 84 é o número básico de ásanas, de posturas, de posições da

disciplina Hatha Yoga. São 84 formas de exercitar o corpo, visto que, na

antiguidade, os monges ficavam muito tempo sentados, meditando, daí ser

importante se mover, mexer com o corpo.

Assim, nossa leitura budista é um caminho, uma descoberta que aos

poucos vamos descortinando horizontes semelhantes entre os textos de Buda e

de Heidegger.

Falamos no início deste capítulo em lenhador, em floresta, até

transcrevemos uma parábola budista, um pouco extensa, mas necessária para a

compreensão da vivência búdica de inter-união, de inclusão do todo em um e vice-

versa. Vamos agora ver um pequeno e belo texto de Heidegger. Caminhos de

floresta. Um misto de poesia, crônica e ensaio.


32

Holz (madeira, lenha) é um nome antigo


para Wald (floresta). Na floresta (Holz) há
caminhos que, o mais das vezes sinuosos,
terminam perdendo-se, subitamente, no não-
trilhado.
Chamam-se caminhos de floresta
(Holzwege).
Cada um segue separado, mas na mesma
floresta (Wald) . Parece, muitas vezes, que um é
igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim.
Lenhadores e guardas-florestais
conhecem os caminhos. Sabem o que significa
estar metido num caminho de floresta8.

Assim é a nossa tese, estamos metidos na floresta vida, na floresta dos

pensamentos de Buda e de Heidegger, imerso na floresta de páginas impressas.

Caminhos e descaminhos das tentativas que fizemos até chegar a esta forma

´ultima de texto, que afirmamos, não é a definitiva, quem sabe, mais adiante, pós-

diploma, teremos uma melhor forma, em um constante refazer-se e recriar-se.

Floresta de fios, de sutras, das palavras de Buda. Floresta de cipós que se unem

às folhas, galhos, troncos, flores, raízes. É muito boa esta imagem do pensador

alemão, pois ele sempre esteve ligado à terra, ao solo, ao chão, à floresta.

Ele tentou nos dizer que, ainda que estejamos trilhando um outro caminho,

continuamos dentro da floresta. Isto é, continuamos dentro da vida, com vida, na

vida. Cada um no seu caminho, mas só os lenhadores e os guardas-florestais

sabem, conhecem as trilhas, não se perdem. Heidegger e Buda são os

lenhadores, eles extraem da mata o alimento, o aquecimento para a

sobrevivência, o conhecimento, eles trabalharam com afinco e nó,

simbolicamente, precisamos ser os guardas-florestais que cuidam da floresta,

cuidam do ensinamento tanto de um quanto de outro, um no Oriente, outro no


33

Ocidente, mas eivados de vida, de floresta, de physis. Nós, de nossa parte,

sabemos o que é estar envolvido com o pensamento dos dois. Sob um aspecto

muito difícil, sob outro confortante, relaxante, calmante mediante as indicações

que se nos afiguram pela frente. Chegarmos à clareira, à iluminação.

Por outro lado, nós podemos ser os lenhadores que estão diuturnamente

trabalhando, investigando, pesquisando qual a melhor madeira, qual o melhor

tronco para colocar na lareira e nos aquecer nas noites de frio ou preparar o

alimento. Por outro lado eles também são os guardas-florestais que cuidam dos

caminhos, cuidam de nós, indicam-nos a chance, a oportunidade de resolvermos

os enigmas da vida.

Esta aparente contradição, na verdade, não existe, pois o que queremos

demonstrar que estando interligados, entre-ligados na rede-floresta, ao mesmo

tempo cumprimos mais de um papel. A diminuta folha da árvore ajuda a proteger o

galho, é sinal de vida. Um galho seco, sem folhas, corre o risco de, numa

ventania, quebrar-se, partir-se, esfacelar-se e as pequeninas folhas ajudam a

distribuir o vento forte, ajudando e protegendo o galho ou o caule, ou o tronco em

um belo trabalho coletivo.

Este é o nosso caminho, este é o nosso método zen integrado ao todo, mas

observando bem os diversos caminhares. O caminhar internando-se na floresta,

enveredando-se no desconhecido de textos, embrenhando-se entre matagais os

mais diversos é metáfora de que a natureza está em estado puro, originariamente

intacta, enigmática, por mais que tentemos decifrá-la, ainda que decifremos uma

parte, logo, ela se oculta novamente e retoma, retorna sob a forma de outro

enigma. Caminhar e descobrir.


34

1.7 – Afinidades Originárias

Como já dissemos, o pensamento de Heidegger nos lembra muito o

pensamento budista. Tentaremos neste item colocar algumas questões

pertinentes a ambos. Talvez uma das razões para o recente interesse tanto pela

obra de Heidegger quanto pelo pensamento de Buda é o fato de que os dois têm

propostas críticas, apresentam uma alternativa ao antropocentrismo e ao dualismo

reinante na atual sociedade. A crise que ora vivemos no Ocidente tem como base

este excesso de antropocentrismo e antropomorfismo em quase todas as áreas da

vida e isso leva a um dualismo muito grande.

O homem ocidental é, por sua formação educacional, cultural e

condicionante, um baluarte já bastante desgastado do tradicional

antropocentrismo que vem nos dominando há séculos. Os contrastes e paradoxos

estão presentes no dia-a-dia em quase todas as latitudes e longitudes do

hemisfério ocidental.

Essa civilização, essa humanidade matriz de todo o sentido, fim e valor

muitas vezes justifica aspectos absurdos como naturais: guerras atrozes,

corrupções as mais abjetas como procedimentos aparentemente “normais” ou

naturais, próprios do estado ou des-estado em que nos encontramos. Escrevemos

des-estado porque muitas vezes, parece massa amorfa, caos acomodado e pouco

ou nada adiante fazer, reclamar, pois não se tem com quem reclamar, com quem

reivindicar uma vida melhor.


35

Assim, o “ser” ocidental, o habitante desta parte do mundo é por natureza

binário, pensa, vive e tenta administrar-se no dualismo reinante, tal como mente e

corpo, razão e sentimento, homem e natureza, masculino e feminino, rico e pobre,

feio e bonito, alto e baixo etc.

Os que, por algum motivo cultural e/ou econômico têm privilégios sobre os

demais utilizam esse “direito” de dominar as castas inferiores. Por exemplo,

tradicionalmente o machismo oprime a mulher, os países desenvolvidos, no

mínimo, atrapalham os países em desenvolvimento, exploram os países

subdesenvolvidos. À semelhança de se obter uma ilusória segurança as modernas

ideologias, quaisquer que sejam elas pretendem um domínio a todo preço e estão

transformando o planeta em algo próximo à destruição, onde a vida humana corre

o risco de desaparecer.

Cronologicamente falando: tanto Buda quanto Heidegger perceberam isso.

Respeitando-se – claro – as devidas proporções. O pensamento budista e a obra

do filósofo alemão nos põem a par de que os seres devem deixar os seres serem.

Isto vai nos levar a re-pensar a questão do nada. Até onde esse nada, é nada

mesmo, ou é um nada criativo, criador, gerador de amplas possibilidades.

Esses dois pensadores – Buda e Heidegger – nos recomendam, cada um à

sua forma, a refletirmos sobre a importância da introspecção e esta irá

desembocar, como um rio caudaloso, na superação ou pelo menos compreensão

desse doentio dualismo.


36

1.8 – Meditação Budista e Heideggeriana

No item anterior falamos em introspecção. Realmente, é fácil detectarmos,

tanto em um quanto em outro uma proposta de meditação, de interiorização para

ultrapassarmos a crise em que vivemos, em que estamos submersos e que, em

algumas situações, estamos quase que nos afogando ou desfalecendo.

As meditações budista e heideggeriana nos levam a uma ultrapassagem do

dualismo e do antropocentrismo. Quando o pensador alemão fala em nada,

identificamos até uma posição mística. Esta é a nossa leitura, esta é a nossa

interpretação. Este é o nosso método zen de leitura.

Quando pensamos no nada é bem diferente de pensar em nada, se é que,

budisticamente falando isso é possível, pois dizia Buda que a nossa mente não

pára. Logo, estamos pensando em algo, em alguma coisa a todo momento. A

reflexão sobre o nada é da maior importância tanto no pensamento budista quanto

no heideggeriano. Esse questionamento sobre o nada vai nos mostrar a

impermanência de todas as coisas de que tanto o Buda falava.

Em nossa mente corriqueira, o nada é apenas a falta, a ausência de

qualquer coisa que queremos, que pretendemos, que desejamos. É um vazio no

sentido negativo. Mas, curiosamente, descobrimos através dos dois pensadores

acima citados que há um vazio positivo, construtivo, saudável, e assim ao

vivenciá-lo, ao compreendê-lo vamos deixando de lado a visão dicotomizada do

mundo. O olhar dualista das coisas. Afastando-se desta característica dual vamos

compreender que a Vida está muito além das categorias conceituais em que

vivemos.
37

Podemos até arriscar um Nada soberano, da mesma forma que o Buda

falava em Vazio. Vemos os dois termos como sinônimos. O grande perigo é, numa

leitura apressada, confundirmos com niilismo. O niilismo que não deixa margem

para questionamentos, para criatividades, um niilismo que é produto da metafísica

binária entre o bem e o mal, entre o céu e o inferno.

Este Nada-Vazio não pode ser encarado como uma super-entidade

existindo em outra esfera, em outra dimensão. Este Vazio-Nada consiste em uma

abertura não condicionada, onde tudo aflora, onde a transparência nos mostra que

também há um ocultamento, desvelamento do que se quer demonstrar, amostrar,

mostrar-se, evidenciar-se, colocar-se, ser-se. Como se fosse um jogo, brincadeira

de criança, de esconde-esconde.

Originariamente nós somos esta abertura, nós somos esta fenda, nós

vivemos esta brecha, nós estamos nessa clareira. Mas, tomar consciência dela é

outra situação. Nem sempre é possível. E a civilização contemporânea faz

questão de dizer que ela não existe, mas, paradoxalmente, cada vez mais, a fenda

está aí para todos nós continuarmos perplexos ante a incontestável perplexidade

de nossa existência. Com isso, vamos compreender um sentido básico do

budismo que é o tema do sofrimento, da dor, da angústia.

Não estamos falando só no aspecto físico, social, psicológico. O Vazio-

Nada vai nos levar a uma compreensão transcendente desta dor diária onde

pensamos que falta algo, quando não falta nada. Reside aí uma das diversas

dualidades doentias dessa concepção dividida de ser e estar no mundo.


38

1.9 – A Mística em Heidegger

Sabemos que o sábio da Floresta Negra, em sua juventude, pensou em ser

padre. E este é um dos motivos porque aproximamos o seu pensamento da leitura

budista.

Observamos que, mesmo tendo abandonado a carreira do claustro, o seu

pensamento, o seu viver e o seu fazer filosófico refletem sua formação cristã e

católica. Sua proposição de que a vida humana é a abertura, é a clareira, é o

nada-vazio onde as coisas podem se manifestar, podem aparecer, apare-ser.

Espelham a influência religiosa.

A mística nos diz que o Ser não é um ente em oposição a uma atitude

dualista a outros entes. Por outro lado, a clareira na qual os entes mais diversos

manifestam-se, surge para nos ajudar a compreender que esta abertura-homem é

um todo com este Ser. Não estão separados, não estão isolados.

Cremos que o pensamento místico ajudou Heidegger a formular a sua tese

de que o homem não é um ente, mas uma fenda, uma abertura, por onde estes

entes se fazem presentes. Entes pensamentos, entes sentimentos, entes objetos,

entes percepções surgem na brecha, nas brechas da vida. Pensamos que este

raciocínio inspirado na mística forneceu ao pensador alemão, condições plena

para entender que um dos grandes problemas da humanidade é o dualismo, a

dualidade, o binarismo. E com ele, o outro da moeda da técnica, o

antropocentrismo.

É a moeda do desenvolvimento científico e tecnológico que tornando-se

maciçamente antropocêntrica, esqueceu-se de toda a complementaridade que a


39

physis nos propõe. Essa atitude da humanidade ocidental, de acreditar demais, de

creditar demais valores os quais sustentam que o homem é autêntico homem, é

genuinamente humano quando se serve de qualquer maneira e a todo custo a

outros homens, mesmo sacrificando o ecossistema, por exemplo, levou Heidegger

a entender que, quando o homem permite que uma coisa se manifeste de forma

consistente mediante suas possibilidades e não em função do instrumental técnico

toda a physis sai ganhando em sua pujança, em seu vigor.

Vemos que a noção mística do nada filosófico está presente em Ser e

Tempo, ainda que entremeada pelo vocabulário hermético que o autor criou. O

excesso de neologismos que Heidegger usa criativamente nos sugere, nos

lembra, nos faz pensar nas sociedades secretas medievais em que era necessário

iniciação ao cavaleiro templário, rosacruz ou maçônico. Não por acaso, seu

primeiro trabalho acadêmico de monta foi sobre o franciscano Duns-Scotto.

A mística de Heidegger se faz presente também quando ele fala da

natureza, como se fosse um precursor dos ambientalistas de hoje. Ele queria

entender a capacidade humana e ver o ser dos entes, uma capacidade que foi

revelada na profícua linguagem que criou, uma tentativa de diálogo, bem sucedida

entre o ser e os entes. O diálogo leva ao entendimento, a compreensão de uma

faculdade que chamamos “mente”, essa coisa pensante tão complexa.

Coincidentemente, Buda também se debruçou, desde o início da formulação de

seu pensamento, sobre esse mundo que é a mente, sobre esse cosmo que é a

mente.
40

1.10 - Revelação Búdica

Diz a tradição que, certa feita, os discípulos estavam todos reunidos. O

Buda chegou, sentou-se em sua postura predileta, que ficou conhecida em todo o

mundo, através de estátuas e imagens, a postura de lótus e permaneceu no mais

absoluto silêncio. Sem dizer uma única palavra. Observemos a expressão

“Absoluto Silêncio” podemos muito bem com esse termo caracterizarmos o

Sagrado. O Absoluto. Nesse instante único de pleno silêncio, o Buda ergueu uma

flor. Este foi o sermão, este foi o Sutra Silencioso. Simplesmente ergueu no ar

uma flor, sem nada dizer. E continuaram todos, absolutamente, silenciosos.

Contam os textos sagrados que ninguém entendeu esta mensagem, a não

ser um único monge, chamado Kashyapa ou Kasyapa. Com o passar do tempo e

dos séculos este discípulo ficou conhecido como Maha Kasyapa, o Grande Maha

Kasyapa. Afirmam estes textos que nesse preciso momento, quando o Buda

ergueu a flor no ar e só um monge entendeu o gesto e não os centenas ali

presentes, nesse preciso momento, nesse ato nasceu o Zen. Deste modo, o Zen é

uma experienciação do real. É uma experiência direta, fora das escrituras. Dizem

também os tais textos que, nesse momento, o monge Kasyapa atingiu o estado de

iluminação que consiste em um estado bastante difícil de definir. É um misto de

santidade, insight, bênção ou revelação divina, ou melhor, revelação búdica.

Deste modo, a linhagem Zen começou a se propagar enfatizando a prática

da meditação silenciosa. Mas, o que é o Zen? O que é Zen? É uma palavra

japonesa que conquistou o mundo. Zen é a contração da palavra japonesa zen´na


41

oriunda da contração chinesa chan que, por sua vez, corresponde ao termo chinês

chan´na, cuja origem é o vocábulo sânscrito dhyanna com o sinônimo em língüa

páli jhanna. Todos estes termos significam “meditação”. Assim, Zen quer dizer

meditação, mas a palavra ganhou tal força, em diversas partes do mundo, que

hoje representa um estilo de vida.

A língua páli era um idioma falado no século VI AC ao norte da Índia, uma

variante do sânscrito. Todos os discursos de Buda estão, originalmente, em páli.

Depois é que foram traduzidos para o sânscrito, chinês, japonês, tibetano,

coreano, vietnamita, mongol etc.

A palavra páli significa “texto”, é comum aceitar-se que equivalia ao dialeto

magadhi, falado na época de Buda, na região de Magadha, onde Siddharta

ministrou grande parte de seus ensinamentos. Falava-se em magadhi, escrevia-se

em páli, por isso, alguns especialistas dizem que o páli é uma língüa literária. Suas

origens remontam ao tronco indo-germânico. Alguns autores especulam que o páli

era a língua da nobreza enquanto o magadhi, a pronúncia popular. Siddharta era

um príncipe, logo falava a língua da elite, o páli, que depois foi absorvido pelo

védico e o sânscrito.

Foi o pensador japonês Daisetz Teitaro Suzuki (1871-1966), que no início

da década de 1920 começou a divulgar na Europa e nos Estados Unidos a

filosofia Zen. Médico formado pela Universidade de Tóquio, logo dedicou-se ao

estudo do Zen-Budismo e assim alcançou o seu Doutoramento em Letras na

Universidade Otani. Seguiu para o Ocidente onde escreveu e publicou mais de 30

livros. Conhecia profundamente as línguas antigas páli, sânscrito, chinês e

japonês e escrevia com propriedade em alemão, inglês e francês.


42

Octávio Paz, em Sendas de Oku, ao comentar a obra poética de Matsuo

Bashô (1644-1694), o mestre do Haikay japonês, afirma:

A atitude Zen diante dos problemas filosóficos


pode ser exemplificada também com um diálogo que
faz tempo me contou o doutor Erich Fromm. Parece que
o professor Suzuki, o grande expositor do Zen, visitou
há anos Martin Heidegger. O filósofo alemão mostrou
interesse por saber qual era a posição do budismo Zen
diante do problema do Ser. Suzuki disse que não podia
dar-lhe nenhuma contestação categórica, porém lhe
contaria uma anedota que responderia a sua
interrogação: um discípulo se aproxima de um mestre e,
antes de lhe falar, faz-lhe uma reverência. Em lugar de
responder à saudação, o mestre lhe dá um golpe com o
bastão. “Mas por que me bates se ainda não falei?” Ao
que o monge responde: “Não era necessário esperar
para que o fizesses”. Para o Zen não só ficam sobrando
as respostas como também as perguntas... E no
entanto há uma indubitável e estranha analogia entre o
budismo Zen e as meditações de Heidegger sobre o
tempo e o nada9.

Escolhemos a citação acima porque fala de Suzuki e também de

Heidegger. Fala do pensador japonês e do pensador alemão, contemporâneos.

Podemos dizer que um leu o outro e vice-versa. E o que isto tem a ver com a

nossa tese? Muito! A forma como conhecemos hoje o zen-budismo deve-se aos

trabalhos de divulgação do erudito japonês. No princípio do século XX, a Europa

abraçou o pensamento oriental e o Japão ligou-se muito ao pensamento alemão,

mais precisamente o pensamento do sábio da Floresta Negra, devido às

semelhanças.

Octávio Paz, que também era um conhecedor do pensamento dos dois

ajuda-nos, nesta citação, talvez, a comprovarmos de alguma forma a proximidade


43

dos pensamentos budista e heideggeriano. Dizemos talvez porque estamos no

plano das tentativas, do caminhar na floresta. Ainda que dois caminhos parecidos,

têm as suas diferenças, são duas trilhas que levam à sabedoria, à clareira e com

isso estamos querendo dizer que os dois somam-se, um pode ajudar o outro a

esclarecer determinadas partes misteriosas, enigmáticas, veladas.

Com relação à anedota zen que Suzuki contou para Heidegger verificamos

que Heidegger comportou-se como o Mestre que geralmente faz uma pergunta

desconcertante para o “discípulo”. Suzuki, sendo um “aluno” bem aplicado

compreende que não pode definir o Ser e que o Zen também não define o Ser,

mas sugere que o Ser deve ser vivenciado, experienciado e a melhor forma é com

a historieta.

O diálogo entre o monge e o noviço quer dizer que, o monge deve ter

compreendido, percebido no silêncio da reverência que o noviço iria falar algo

corriqueiro, vulgar, nada importante, uma pergunta comum, certamente

aguardando uma resposta sem originariedade, já que no plano originário não é

necessário respostas, mas sim questionamentos, vivências e é isto o que o monge

proporciona. Uma experienciação corporal, física, até um pouco de dor e surpresa

ante o inusitado da atitude do monge.

E com isto Octávio Paz nos faz entender que tanto o pensamento zen

quanto o pensamento heideggeriano estão no plano originário, primordial. A

“estranha analogia entre o budismo Zen e as meditações de Heidegger sobre o

tempo e o nada” nos remete ao vazio que iremos estudar mais adiante.
44

Notas do Capítulo 1

1 - ANDRADE, Carlos Drummond. As impurezas do branco. Rio de Janeiro.

Record, 2005.

2 – HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis / Bragança Paulista, Vozes /

São Francisco, 2006.

3 – AZEVEDO. Murillo Nunes. O olho do furacão. Rio de Janeiro. Civilização

Brasileira, 1973, p. 311, 312, 313.

4 – ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo. Perspectiva, 1978.

5 – HEIDEGGER, Martin. Que é uma coisa? p. 24, citado por Manuel Antonio

de Castro em “A coisas como questão”, paper, 2005.

6 – ROCHA, Antonio Carlos. Revista O Magma, Duque de Caxias, outubro de

1998.

7 – Bíblia de Estudo de Genebra. Jo14:6, São Paulo, Cultura Cristã, 1999, p.

1255.

8 – HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Lisboa, Gulbenkian, 2002.

9 – PAZ, Octávio. Sendas de Oku. São Paulo, Roswiha Kenpf, 1983, p. 34.
45

CAPÍTULO 2

O silêncio de Buda

O mecanismo de compreensão do Zen adquire-se no silêncio, com o

silêncio. Mas o silêncio não quer dizer inércia, inatividade; ao contrário, silêncio é

movimento. Silêncio é um não-falar falando, visto que se compreende a revelação

por outros modos de entendimento, por exemplo as manifestações não-verbais

como experienciação gestual ou a chamada sabedoria, fruto de interações com o

real. Este é um dos resultados da prática Zen.

Nas escrituras budistas são inúmeras as referências quanto à importância do

silêncio. É no silêncio que se encontra o Caminho, que se realiza o Caminho, mas

é importante frisar que silêncio não é alheamento do mundo, é, justamente o

contrário, uma integração no todo, uma integração do todo, quando tudo se

transforma em “um”. E esta experiência do “um” acontece com os outros, por isso,

podemos entendê-la como plural. Como bem diz José Carlos Michelazzo no título

de seu livro Do Um como princípio ao Dois como unidade1. Um título, podemos

dizer, bem Zen, pois é justamente essa a proposta do Zen. A pessoa vivenciar o

originário de forma plural e vice-versa, pois os dois se complementam.

Michelazzo, à página 218 afirma:

Há ainda um outro fato que merece aqui


ser destacado e que, num certo sentido, se
relaciona ao da mística medieval. Trata-se do
vivo interesse que o pensamento de Heidegger
sempre despertou entre pensadores, professores
e estudantes japoneses, com os quais o filósofo
travava constantes contatos desde os tempos
que era assistente de Husserl (...) Por outro lado,
esse interesse dos orientais pelo pensamento de
46

Heidegger não é unilateral, mas recíproco, tal


como mostra o impacto que a leitura dos livros de
D. T. Suzuki causou no filósofo, fazendo com que
ele reconhecesse naquilo que lia – do grande
divulgador do pensamento oriental no Ocidente –
“o que ele tinha tentado dizer em todos os seus
próprios escritos”2.

Estamos fazendo um diálogo entre o pensamento de Heidegger e o

Budismo, por isso fizemos a citação acima, pois falar de silêncio é, neste caso,

falar do Zen e do seu principal divulgador no Ocidente, o pensador japonês

Daisetz Teitaro Suzuki. Impossível falar de um sem citar o outro, com isso

comprovamos, ou pelo menos, pensamos em comprovar, os contatos entre Suzuki

e Heidegger, entre o pensamento do Oriente e do Ocidente, entre a obra do

filósofo alemão e a obra do filósofo japonês.

Oportunamente, voltaremos a Suzuki, por enquanto voltemos ao tema do

silêncio de Buda.

Embora tenha nascido com o Buda, na Índia, o desenvolvimento do Zen

surge na China, porque o espírito indiano é muito metafísico, tendendo para a

mística. E a sociedade chinesa é muito pragmática, objetiva. A grande revolução

do Zen é a iluminação, a experiência de santidade, de sanidade, de contemplação

no dia-a-dia, no burburinho do mundo. E aí resulta uma grande diferença, já que o

caminho se faz em silêncio, a pessoa consegue, estando imersa no cotidiano, no

corre-corre, na multidão, não se perder a si mesma, não se perder de si mesma,

mas manter-se em si mesma, ela não vai com a correnteza, ela compreende o

fluxo do rio, ou seja, a própria vida, mas não se deixa levar, mantém-se íntegra

consigo mesma e com o todo.


47

2.1 – Solidão não é Sinônimo de Silêncio

De fato, uma coisa é solidão, outra é silêncio. Quem está em silêncio está

só e, ao mesmo tempo, não está. Não é a solidão doentia, neurótica que

conhecemos. É um estar só criativo, um só múltiplo que permite ir além de si

mesmo e dos outros e, portanto, do todo, construindo outro todo e este todo

constitui um círculo concêntrico em expansão, uma espiral que cresce, abre-se. E

a boa imagem oriental búdica é a rã que está à beira da lagoa e salta na água, a

partir daí, círculos concêntricos propagam-se, expandem-se.

O Zen é um sistema silencioso, meditativo. Em 1927, Suzuki inicia a

publicação de seus livros na língua inglesa. Vejamos a este respeito, a citação

completa que nos diz Martin Heidegger:

Se eu compreendo o Dr. Suzuki


corretamente, eis o que tentei dizer em todos os
meus escritos. A publicação em 1927 dos
primeiros Ensaios sobre Budismo Zen, de
Daisetz Teitaro Suzuki, apresenta-se às
gerações futuras como acontecimento tão
importante quanto a tradução em latim de
Aristóteles, no século XIII, por Guilherme de
Moerbeck, ou de Platão, no século XV, por
Marsílio Ficino3.

Michelazzo conta em seu citado livro, ainda na página 218, que o editor

inglês das obras de Suzuki soube através de um amigo alemão, também amigo de

Heidegger, que este amigo, certa feita, ao visitar o pensador da Floresta Negra

encontrou-o lendo um dos livros do pensador japonês e então Heidegger disse

sobre Suzuki, o que transcrevemos acima.


48

O silêncio é o vazio de que o Zen tanto fala. O vazio que o Budismo

pratica, compreende e vivencia é a natureza fundamental, fundamen-Tao, de

todas as coisas. A criatividade no escrever da frase anterior é que Tao e Zen são

sinônimos. Tao é Caminho. Zen é Meditação. Meditação é Caminho. Caminho é

Meditação. Por vezes pode parecer repetitivo, mas a questão de o Budismo repetir

alguns postulados é no sentido de que Heidegger também muito se repete,

tentando levantar a questão. É a proposta de procurar lembrar, para que a pessoa,

aos poucos, se acostume e grave o que se quer transmitir. Não a definição pela

definição, mas um treinamento meditativo que abre possibilidades de

compreensão e assim faz-se aflorar o que deve ser manifestado.

Normalmente somos muito dispersos, o dia-a-dia zen enfatiza o vazio de

tudo o que existe. Desse modo, convivendo com esse princípio, a pessoa vai

afastando-se do pré-conceito. A repetição não é decoreba, psitacismo. Com esse

exercício o Zen bloqueia a enxurrada de pensamentos, a discursividade, como um

dique que canaliza a força da água gerando energia.

O que ao longo desta tese pode soar como repetição deve ser visto, lido e

encarado como a própria técnica do Zen, da meditação e um de seus postulados

afirma que “a repetição é a mãe do saber”. Por uma série de exemplos chegamos

à raiz do ensinamento, à origem, ao centro, ou como diz o termo clássico Zen,

descobrimos a nossa face primeira, aquela que ainda não cobrimos com as

máscaras da educação, da sociedade, da ideologia.

Este vazio primeiro, primordial é o próprio estado de Buda, é o próprio

estado de Deus, é o Sagrado; os budistas também falam em Estado de

Iluminação.
49

2.2 – Método: a ferramenta e o suporte

Nossa ferramenta de trabalho é o Zen e, para exemplificá-lo também

teremos como suporte as obras do pensador japonês Daisetz Teitaro Suzuki. Esse

autor nos é importante porque ele expôs de forma contemporânea os milenares

textos budistas, dando-nos assim a oportunidade de conhecer, originariamente

como viviam os antigos budistas.

Mas qual é o método zen? O que é o método zen? É um fazer, fazer-se,

fazendo-se ao longo da caminhada-vida. Nada especificado de antemão. É um

continuum. É um caminho de retorno, de regresso, em certo sentido mesmo,

radical, de buscar a raiz e aqui temos uma postura originária. O que o zen propõe

não é uma simples reforma aqui e acolá, eventual, não; no que se refere ao

sistema educacional, à instrução acadêmica ou sobre as circunstâncias da vida o

zen pretende questionar, pretende ver o outro lado, olhar a fundo, se necessário

inverter um estilo de vida.

Esse caminho, esse método nasceu de um sem-número de experiências e

de provas ao longo dos séculos. O Extremo Oriente levou muito tempo para

desenvolver esse método chamado zen-budismo. Procedeu-se a uma acurada

pesquisa no espírito e na alma do homem.

Cremos que assim, mediante a nossa proposição, estamos estudando o

imaginário, a literatura, a filosofia, o pensamento e, mais especificamente, a

poética. Imaginário este que tem muito a ver com o silêncio e, portanto, com o

Zen. Há uma semelhança muito grande entre os dois e é o que vamos

demonstrar.
50

Especificamente, nesta tese, teremos um olhar budista. Nossa proposta de

trabalho é tentar mostrar que há profundas semelhanças entre o pensamento do

filósofo alemão Martin Heidegger, na primeira metade do século XX, e o

pensamento de Sidarta Gautama, que, desde o século VI aC. ficou conhecido, ao

longo desses dois milênios e meio, como “o Buda”, “o iluminado”, “o desperto”.

Frisamos o verbo “tentar” porque a nossa intenção não é fechada, não está

pronta, não é acabada. Aliás, tal visão determinista não se coaduna com os

princípios tanto da obra do pensador alemão quanto do Budismo. Levantamos

questões, assinalando a proximidade de abordagens ante a vida, o real e a arte.

Da extensa obra de Heidegger destacamos o livro Serenidade, inédito no

Brasil, mas publicado em Portugal. Nos pareceu um verdadeiro manual de

meditação. Os três textos que compõem este volume datam, respectivamente,

dos anos 1944/45, 1954 e 1955 quando na Europa e no Ocidente o Zen-Budismo

estava em “moda”.

Outro texto que destacamos é o capítulo “De uma conversa sobre a

linguagem entre um japonês e um pensador”, do livro A caminho da linguagem. No

diálogo fica evidente que o pensador da Floresta Negra teve alunos japoneses,

sabia da existência de alguns filósofos (monges) budistas japoneses e conhecia

até um pouco da cultura nipônica através do filme Rashomon, do cineasta japonês

Akira Kurosawa. É interessante neste filme que não aparece o juiz, os jurados,

deuzindo-se então que deve ser ou devem ser os leitores. Os personagens, às

vezes, parecem estar em um tribunal, mas só aparece o aparente e possível réu

depondo, esclarecendo as vertentes da verdade.


51

2.3 – O silêncio da chuva

A chuva fala? A chuva é uma questão? Sim, a chuva é uma palavra-

questão. E se estamos falando em silêncio por que estamos falando de chuva? E

se a chuva fala, onde é que entra o silêncio? Se não fala, já é silenciosa por

natureza? O silêncio é outra grande questão que estamos tratando, mas no filme

citado, grande parte do tempo ele se passa na chuva. Quando os personagens

estão conversando a chuva cai copiosa; só quando estão contando ou recontando

uma possível interpretação da história ou uma face da aparente verdade é que a

chuva pára.

Silêncio é diferente de mutismo. O silêncio tem algo de revelador. Ao

mesmo tempo que se mostra, se oculta, é como a verdade. O silêncio é um

grande koan do zen. O silêncio é soberano, tranqüilo, sereno; o mutismo pode ter

algo de doentio, de neurótico. Em se tratando de Sagrado, o silêncio é uma

cerimônia, um ritual, pode ser mítico. O silêncio é abertura, o mutismo é

fechamento.

Chuva é sinal de bênçãos. Indica boas influências celestes, vai fecundar a

terra, aumentar os mananciais dos rios e limpar a atmosfera. No filme, a chuva

também é uma personagem, mais do que simples cenário ela fala em cada gota,

em cada barulhinho que faz caindo nos telhados. Anuncia que vai lavar, vai limpar,

vai fazer florescer a compreensão, o entendimento, a arte do silêncio.

Sobre essa arte de falar não falando, isto é, falar de forma silenciosa, por

mais paradoxal que possa parecer, nos diz Emmanuel Carneiro Leão:
52

Desta universalidade do silêncio dá


testemunho toda experiência criadora da
condição humana. Pois o vigor do silêncio não
está nem em se aprender a refletir, nem em se
ensinar a agir. O vigor do silêncio é deixar ser o
nada da realidade em toda realização de
qualquer real. A fala encontra o viço mais
originário deste deixar ser no pensamento dos
pensadores, na poesia dos poetas, na
convivência dos homens. Por isso mesmo, Lao-
Tsé nos reconduziu ao coração de nossas
línguas, ao insinuar a vigência do silêncio em
todo discurso: “Falam-se palavras e se
apalavram falas / Mas é no silêncio que mora a
linguagem”4.

O silêncio está presente em todas a línguas, em todo o gênero humano, por

isso Carneiro Leão nos fala desta universalidade, desta condição planetária do

silêncio. Muito bom que ele tenha citado o lendário fundador do Taoísmo, pois o

seu pensamento em muito se assemelha ao Zen, dissemos há pouco que Tao e

Zen são sinônimos.

Nesse mesmo capítulo, mais adiante, Leão presenteia o leitor com uma

parábola chinesa da antiguidade, quando uma epidemia de ratos grassava no

país. Um determinado príncipe resolve acabar com o problema arranjando um

gato e depois outro e mais outro. Habilmente os ratos recolhiam-se ao esconderijo

e observaram em silêncio o adversário. Conclusão desapareciam

temporariamente e depois voltavam, ao que o príncipe também tinha que arranjar

novo gato. Por fim, ele consegue o gato mais caro de um criador nas montanhas.

Um gato que dormia o dia todo, aparentemente não fazia nada, só ficava em

silêncio.
53

2.4 - A força do silêncio

Os ratos então compreendem que este era um felino perigoso pois não

revelava o método de atacar e assim temendo por suas vidas, abandonam

totalmente o reino, pois os gatos anteriores eram barulhentos. Atacavam de dia e

descansavam à noite, ou vice-versa, mas este era silencioso; como descobrir o

seu método? Era um gato meditante. Só vivia no enigma do silêncio e por isso era

considerado o mais caro e o mais perfeito dos felinos. E a parábola termina de

maneira bela:

Os ratos se recolheram para observar qual


seria a técnica e o método do novo caçador.
Passou o dia e o gato dormia. Passou a noite e o
gato dormia. Veio a manhã e o gato dormia. Os
ratos começaram a tremer! Não tem método, não
tem técnica, não tem ferramenta, não tem meio:
o caçador perfeito! Nele tudo é o silêncio de uma
realização perfeita. E contra o silêncio da fala
não há o que fazer. Junto com o príncipe, os
ratos abandonaram a região de Sung e deixaram
o império da dinastia Chou5.

Respeitando-se as devidas proporções queremos dizer que nosso método

de trabalho nesta tese é semelhante a este gato. É um método Zen, silencioso,

meditativo e vamos, aos poucos, tentando compreender cada palavra, cada

silêncio entre duas palavras, questionando e vivenciando: o que este silêncio quer

dizer?

No final deste mesmo segundo volume Carneiro Leão mais uma vez brinda

o leitor com outra história do Oriente, desta feita um ensinamento de Buda a

Churi-Handoku. Com isso estamos querendo dizer que o pensamento de Sidarta


54

Gautama, em muitos pontos é uma espécie de prévia do pensamento de

Heidegger. Os dois, em continentes diferentes e em épocas diversas falaram de

temas semelhantes:

Não chames de burrice a experiência bem


sabida do não saber. Experimentar a vida na
dificuldade de viver tem sabor de convivência.
Assim, quem, no nada da ausculta, nada sabe de
antemão, nada possui de domínio do eu, nada
pode de si mesmo, está dis-posto à comunhão
de tudo na qual sempre esteve posto. Coisas e
pessoas lhe caem e ressoam cada vez mais na
novidade da primeira vez. No nada da
experiência comunga com o mundo6!

O Ocidente sempre objetivo quer praticidade, respostas rápidas, mas a vida

não é tão rápida assim. Exige-se saber, mas se esquecem de que o não-saber é

um ato soberano de vivência, de experienciação. O não saber quando se tem

consciência de suas dificuldades, de suas limitações, torna-se altaneiro na

comunhão de tudo com o todo. Mas para haver esta manifestação de maturidade

é preciso da colaboração do silêncio criador.

Nossa tese trata de uma dificuldade. Como colocar a semelhança entre o

pensamento budista e o pensamento heideggeriano? É dificuldade porque

estamos adentrando em paragens do pensar e este pensar se faz a partir da

incógnita do desconhecido. Temos consciência de que estamos pisando em área

nova, em terreno vazio de maiores bibliografias. Estamos partindo de nossa

experiência pessoal de mais de 30 anos de vida com a filosofia budista e

comunhão com as obras de Martin Heidegger em nosso curso.


55

2.5 - O jogo do silêncio

O silêncio incomoda. Incomoda, em geral, quem costuma ficar longo tempo

em silêncio, ocasião em que a outra pessoa que está do lado se sente tímida ou

então é tímida por natureza. Esse fato incomoda a outra pessoa com quem se

está “conversando”, mas como é conversa, se não estão falando, balbuciando?

Isto é, não estão concretamente conversando, visto que, entre uma frase e outra,

há um longo e tonitruante silêncio.

Há até uma brincadeira que se fazia antigamente, quando duas ou mais

pessoas estavam conversando e ficavam alguns segundos em silêncio. Segundos

esses que, dependendo do teor da conversa e do silêncio podia parecer muitos

minutos. Nesses momentos de angustiante silêncio a outra pessoa da conversa ou

uma delas, quando se estava em grupo, dizia: “Vamos mudar de assunto?” A

ironia é que se estavam calados, mudos, não havia assunto para ser mudado.

Outra brincadeira comum entre as crianças de antigamente era “tentarem”

ficar alguns segundos em silêncio. Quem conseguisse ficar maior tempo em

absoluto mutismo vencia o jogo. Só que, invariavelmente, muitos riam e o jogo

nem sempre acaba como devia, ou seja, nem sempre se chegava ao final com um

vencedor. Quando um começava a rir os outros também riam.

Poderíamos listar outros jogos de crianças. Mas na simplicidade e candura

deste dois exemplos, de tempos bem antigos, vemos a força que o silêncio tem.

Nós sabemos que o silêncio representa muito. Às vezes, um silêncio quer dizer

não, outras vezes quer dizer sim, em algumas ocasiões, nem sim nem não, ou sim
56

e não ao mesmo tempo. É a própria incógnita. O silêncio em si mesmo é um

grande enigma.

Tanto assim o é que a representação da Esfinge do Egito, em termos

verbais, é o conhecido “decifra-me ou devoro-te”, o que não deixa de ser um

simbolismo. É a vida que nos diz: “Decifra-me ou devoro-te”.

O silêncio é um jogo. É um pacto. O silêncio diz muito. Por exemplo, o

silêncio-pacto de duas pessoas que se gostam e vivem um amor-clandestino, o

silêncio-pacto dos bandidos, mafiosos, dos marginais, contraventores. O silêncio-

pacto das chamadas sociedades secretas, iniciáticas, esotéricas tipo Maçonaria,

Rosacruz e tantas outras. Há também o silêncio psicanalítico, em que os

envolvidos podem ser apenas duas pessoas: o analisando e o profissional ou no

caso da análise de grupo, o terapeuta e várias pessoas. Assim, pactuam,

combinam, de modo a não revelarem a terceiros os conteúdos das sessões;

momentos em que são evidenciados, muitas vezes, quase sempre, segredos

íntimos.

É por isso que saber guardar segredos é algo tão difícil. E segredo é

silêncio. Guardar segredo é uma arte para poucos.

Quando uma pessoa fala muito, quando popularmente se diz que “fala

pelos cotovelos” e, na verdade, estes não falam, ela está tentando ocultar,

empanar o medo que tem do silêncio, de si mesma, de ficar consigo mesma e

assim fala espantando o seu silêncio. O silêncio é a “sombra” da fala. Quando

uma luz incide sobre determinado corpo há o fenômeno da sombra; é impossível

separar o corpo da sombra e vice-versa. A luz no caso é o sentido que veremos

adiante.
57

2.6 – Silêncio é movimento

Silêncio é movimento, silêncio é ação, silêncio não é inércia. Inércia é estar

parado, mas pode estar falando. Quando uma pessoa é silenciada por outra ou

quando é silenciada por si mesma, deduz-se a existência de problemas,

repressões etc.

Em geral, aquilo que é o mais importante nunca se diz ou se diz raramente

ou evita-se ao máximo para dizer. Fato que nos remete ao adágio popular: “Para

bom entendedor meia palavra basta”. Às vezes, não é preciso nem falar porque o

sentido, a intensidade, a entonação do enunciado esclarecem tudo. Por exemplo,

quando a mãe ou o pai repreende um filho e apenas exclama: “Menino !?”, a

criança compreende, ou seja, o silêncio atravessa as palavras. Como bem diz um

provérbio árabe: “Não digas tudo o que sabes, porque quem diz tudo o que sabe,

muitas vezes diz o que não convém”.

E assim, estudando o silêncio, chegamos ao jogo de palavras, trocadilhos

que se realizam, isto é, compreendem-se pelo dito popular: “Fica o dito pelo não

dito”. Esse não-dito é o silêncio. Essa série de exemplos explicita o de que o vulgo

lança mão para tornar o silêncio audível, compreensível, referenciável,

logicamente por meio do próprio silêncio. O funcionamento do silêncio atesta o

movimento do discurso que se faz na contradição, na dialética entre o “um” e o

“múltiplo”, o mesmo e o diferente, entre a paráfrase e a polissemia. Esse

movimento, por sua vez, mostra o movimento contraditório do sentido, fazendo-se

no entremeio entre a ilusão de um sentido só (que é o efeito da relação com o


58

interdiscurso) e o equívoco de todos os sentidos, ou seja, o efeito da relação com

a língua.

O silêncio é Criador. Ele cria algo, ele funda, é fundante, é fundador,

fundamenta o não-dito, a história, o acontecimento, o acontecer. Aconte-ser.

A linguagem implica silêncio, implica no silêncio, este, por sua vez, é o não

falado, o não-dito. A percepção além da audição de uma voz emitida, pronunciada.

Isso quer dizer que o silêncio é sempre maior do que aquilo que dizemos,

revelamos, contamos. O silêncio é sempre mais profundo do que aquilo que

anunciamos/enunciamos. Sempre há mais silêncio do que fala. A linguagem é o

rio que corre e deságua no oceano do silêncio.

O silêncio é o não-dito do interior da linguagem. Não é o nada niilista, não é

o vazio sem história, mas o vazio pleno, o vazio que o zen propõe. É o silêncio

significante, que significa algo, que diz muito. A relação silêncio/linguagem é

complexa. O silêncio não é mero complemento da linguagem, ele tem significância

própria. Os termos criador, fundador, fundante, criante são necessários para

explicitarmos o silêncio enquanto pausa ativa, que o Zen costuma chamar de não-

fazer, fazendo. Fundador também significa que o silêncio é garantia de movimento

dos sentidos. O silêncio é o tudo da linguagem, ele é possibilidade para o sujeito

trabalhar sua contradição constitutiva.

Isso nos faz compreender que estar no sentido com as palavras e estar no

sentido em silêncio são modos diferentes, distintos entre si, e essa dicotomia faz

parte da nossa forma de significar e significar é ser/estar (relacionar-se) com o

mundo, com as coisas e com as pessoas.


59

2.7 – Zen, a percepção do silêncio

A experiência Zen-Budista do satóri é plena da percepção silenciosa. O

que linhas atrás chamamos de acontecimento, aconte-ser o zen o caracteriza

como um estado de consciência. Mais adiante veremos o significado da palavra

satóri, bem cara ao Zen. Podemos inicialmente dizer, originariamente dizer que

satóri é uma percepção do instante, do momento, do presente único, indecifrável,

algumas vezes, no corre-corre da discursividade, mas perfeitamente

compreensível no silêncio comungante de que fala Carneiro Leão, como já vimos.

Mas, apesar de toda a beleza do silêncio, de todo o esplendor há aqueles

que acham o silêncio uma tortura. Libertação para uns, maldição para outros.

O silêncio é insuportável, em alguns momentos; há até a expressão: “Fale

agora ou cale-se para sempre”. As pessoas estão acostumadas ao tradicional “um

minuto de silêncio” em memória de algum falecido ilustre, mais do que um minuto

é algo profundamente incômodo.

A linguagem permite o falar. A linguagem é o rio da vida que o Buda

exemplificava, e por esse curso o falar escoa, escorre e o silêncio também, a

percepção idem? A linguagem abre-se ao falar e o homem aceita compartilhar

compreensões, vivências com ela, para ela e através dela interagir com outro e

outros homens. Como seria a linguagem no tempo em que não havia homem na

face da Terra? Onde estava a linguagem no período em que a raça humana ainda

não havia aparecido e o planeta era só habitado por dinossauros? Certamente,

certamente, ela, a linguagem estava imersa na physis, em comunhão,

comungando e comungante. Segundo cientistas da área, a “civilização” dos


60

dinossauros durou vários milênios... E, neste caso, será que os dinossauros

utilizavam a linguagem própria à sua espécie?

Pensamos que estava na physis. Como surgiu a espécie humana não vem

ao caso, foge à proposta desta tese, mas pensamos que a “physis” estava

“grávida” do homem e a linguagem também pairava naquela natureza ainda em

formação esperando o brilho da espécie humana. Claro que neste parágrafo

estamos tendo uma visão antropocêntrica, privilegiando a espécie humana como

se fosse o apogeu, o coroamento, a mais bela obra de arte da physis.

Então a linguagem manifestou-se, operou nos seres humanos. Com isso, o

silêncio que já existia e sempre existiu, também na physis, tornou-se importante,

básico para a humanidade. Mas nem todos têm consciência disso. A linguagem é

uma das formas de ser physis. Manifesta-se, mostra-se, evidencia-se no homem

que não compreende que é ela que o tem e não o contrário.

Temos a memória. A memória só é memória porque é linguagem, o reunir,

o cuidar da unidade. Quando o homem vislumbrou pela primeira vez o silêncio,

quando avistou o vazio da ausência de barulho, quando ouviu o silêncio como algo

significativamente discernível, ele compreendeu o espaço do mistério. Em termos

sagrados, falar é escolher, é distinguir-se e, dialeticamente, vislumbrar o silêncio.

Vejamos um bom exemplo, onde o silêncio e o sagrado aparecem juntos.

No princípio era o verbo, o verbo estava com


Deus e o verbo era Deus. Ele estava no princípio com
Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele
e sem ele nada do que foi feito se fez. A vida estava
nele e a vida era a luz dos homens7.
61

2.8 – O Verbo e o Silêncio

As palavras são do Evangelho de São João. Verbo é palavra, palavra é

pensamento, pensamento é silêncio, verbo é não-silêncio. Concomitantemente,

verbo também é silêncio e é assim que Deus se manifesta. Mediante o silêncio, o

homem entra em contato com Ele e, pela palavra, comunica a outros a razão de

ser da conversa entre esta pessoa e Deus. É pela fala que tornamos, neste

mundo, as coisas palpáveis. Pelo discurso nós materializamos, nós concretizamos

o não-dito, o silêncio.

Isso nos faz lembrar o pensador chinês Confúcio que, no século VI aC.

Afirmava: “Uma imagem vale mais do que mil palavras”. Essa assertiva tem sido

muito utilizada pela propaganda, pelo marketing, publicidade e pelas teorias

modernas da comunicação de massa. Mas a sua origem está no Confucionismo.

Ou seja, a imagem é o silêncio. A imagem não fala verbalmente, não fala

audivelmente, mas “fala”, transmite a mensagem. O ato de olhar é bastante

significativo. O olhar/a imagem/o ver se faz no silêncio. Podemos afirmar que o

silêncio do olhar representa muito mais do que mil palavras.

Outro aspecto a ser pensado é o eco. Quando nós falamos ou gritamos em

uma casa vazia, ou em um vale, ou em um desfiladeiro de montanhas, o eco

responde. Interessante: o eco responde ! O que é o eco? É o vazio ! Podemos

dizer que o eco não tem nada, não é nada e mesmo assim ele “fala”. E se ele fala

alguma coisa ele não pode ser nada, a menos que esse nada seja sinônimo de

vazio, de todo, de cheio, de vivo e é aí que reside a literariedade, o intertexto, a

palavra não-dita, o Zen.


62

E o silêncio do mar? O silêncio das ondas? É na profundidade, no silêncio

que está o real do sentido. As ondas são apenas o seu ruído, suas bordas

(limites), seu movimento periférico (palavras).

Quando estamos calados, quando não falamos, não estamos apenas

mudos, estamos em silêncio. Mas o que representa esse silêncio? Significa

pensamento, introspecção e toda sorte de contemplação, sentimentos e

sensações. Não paramos de trabalhar com a cabeça, ainda que permaneçamos

sem proferir uma única palavra.

Temos vários tipos de silêncio: o silêncio das emoções, o silêncio dos cinco

sentidos e mais o sexto que é a nossa mente; o silêncio do místico, o silêncio da

contemplação, o silêncio da introspecção, o silêncio da revolta, o silêncio da

resistência, o silêncio da disciplina, o silêncio da lei, o silêncio do exercício do

poder, o silêncio da derrota, o silêncio da vontade, o silêncio do amor etc. E todas

estas formas de silêncio falam, dizem algo.

Há também os vários prismas sob os quais estudamos o silêncio

acadêmico, ele é próprio da reflexão das teorias filosóficas, psicanalíticas,

psicológicas, semiológicas, etnológicas, lingüísticas etc. O que eu chamo de

silêncio acadêmico é quase como se fosse uma disciplina específica que é

utilizada por todas estas correntes da ciência. Ou seja, em todos os cursos

universitários referidos e, provavelmente em outros mais, produzem-se trabalhos,

monografias, dissertações e teses sobre a importância do silêncio. Vejo isso nas

livrarias, nas referências bibliográficas. Muitos estudando, pesquisando o silêncio.

Um dado importante é a questão da completude. Todo mundo, de uma

forma ou de outra, busca a completude nas coisas, mas só o que prevalece é a


63

incompletude. Nada é completo, nada é pronto, nada é acabado. No fundo é a

incompletude que produz a possibilidade do múltiplo, e é a base da polissemia.

Há um filme chamado O baile, de Ettore Scola, em que não há uma única

palavra. O único ruído é o da trilha sonora e mesmo assim nós vemos parte da

História da França, parte da História do mundo. Temos que pensar também na

mímica, que é puro silêncio. E como é reveladora ! O filme em questão é todo

mímica e constitui-se em um bom exemplo de silêncio.

O silêncio é o outro lado da fala. Assim, como se fosse uma moeda que tem

duas faces. Deste modo teríamos de um lado a fala e do outro o silêncio. Os

textos de meditação budista nos falam que na voragem dos pensamentos que

assolam a nossa mente, na verdade, pensamos só um de cada vez, mas eles são

muito rápidos e pensamos que são muitos ao mesmo tempo. Com isto queremos

dizer que o espaço entre um pensamento e outro é o silêncio. Se considerarmos o

pensamento como uma forma de “fala”, o espaço entre essa “fala” inaudível,

especial e outra teremos o silêncio.


64

2.9 – O silêncio e o satori

Vamos tentar demonstrar a compreensão do silêncio e do satori através de

um koan. Uma historieta clássica que os textos contam:

Nan-in, um mestre japonês durante o


período Meiji (1868-1912), recebeu um professor
universitário que lhe visitou para fazer perguntas
sobre o Zen.
Nan-in serviu chá. Ele encheu
completamente a xícara de seu visitante e depois
continuou a servir mais chá nela.
O professor observou o derramamento de
chá até não poder mais se controlar. “Já está
derramando. Não cabe mais nada!”.
“Como esta xícara”, disse Nan-in, “você
está cheio de suas próprias opiniões e
especulações. Como posso lhe mostrar o Zen a
menos que você primeiro esvazie a sua
xícara?”8.

Existem koans, relativamente novos, como esse, e outros, antiqüíssimos.

Com isso queremos dizer que as questões estão o tempo todo conosco, elas são

atemporais e assim são os koans. Mediante nossa percepção podemos ver os

koans surgindo a cada instante; esta é a proposta do zen.

Vejamos outro koan em forma de poesia:

A grande senda não possui portões,


Milhares de estradas entram nela.
Quando alguém atravessa o portal sem portões
Caminha livremente entre o céu e a terra9.

O primeiro texto sugere que o professor deve pro-curar vazio do silêncio,

isento de conceitos. O segundo nos fala do enigma da iluminação, da

compreensão. O mistério da vida.


65

Falamos ainda há pouco em Satori. Vamos ver o que significa este

vocábulo em japonês, e como sempre, tem a sua correspondente em chinês.

Sendo um tema importante na vida budista, ele não se esgota por si só. E ao

longo da tese, vez por outra iremos abordá-lo quando o assunto for pertinente

Satori e silêncio são semelhantes, são próximos, talvez um dependa do

outro. Ainda que estejamos falando o satori e o silêncio podem estar presentes.

O vocábulo “satori” já está no Dicionário Houaiss e significa “estado de

iluminação intuitiva procurado no zen-budismo” Em japonês deriva-se do verbo

sator que representa “despertar” e de “sato” que é atento, ser atento, estar atento,

ficar atento, permanecer atento. Lembrando a corresponde em páli “sati” atenção.

O satóri pode ser compreendido, de certa forma, como uma espécie de

conhecimento, porque ele indica, sugere uma espécie de informação concernente

a alguma coisa. Em algumas situações o conhecimento nos dá, apenas, uma

visão parcial da coisa, do fato, do acontecimento, mas o satori é o conhecimento

integral, da coisa toda, em sua totalidade, em sua originariedade. Em sua

essência, não como um agregado de partes, mas como algo indivisível, completo

em si mesmo. Normalmente falamos que é uma percepção, uma visão interior,

mas na experiência do satori não há a dicotomia interior/exterior, não há o fora e

não há o dentro. O satori transcende estas diferenciações.

Através de Manuel Antonio de Castro, vejamos o que Heidegger nos fala

sobre percepção e vamos constatar que é muito semelhante ao que podemos

dizer em relação à experiência zen do satori. Novamente, afirmamos, séculos

separam um postulado do outro, mas é impressionante como se assemelham:


66

A percepção se dá em virtude do Ser. Ora


esse só se essencializa como aparecer, entra
apenas em desvelamento, quando se dá
revelação, quando se dá um abrir-se e
manifestar-se /.../ A percepção e o que
Parmênides diz dela não constitui uma faculdade
do homem, já determinado em si. A percepção é
um acontecimento em que o homem, nele
acontecendo, entra no acontecer Histórico como
o ente que é, isso quer dizer no sentido literal da
palavra, em que o homem mesmo chega ao Ser
/.../ a percepção é o acontecimento que possui o
homem. Por isso se fala sempre de NOEIN
simplesmente, de percepção. O que se realiza
nessa sentença não é nada menos do que o
aparecimento consciente do homem como
Histórico10.

Acontecer, aconte-ser. Como já grafamos, o acontecimento é um momento

atual que o homem percebe, compreende, capta. O acontecimento se faz,

manifesta-se e o homem histórico chega à essência do que é, do que há para se

ver, contemplar.

Interessante a grafia do verbo mani-festar. Festejar, fazer uma festa. E a

primeira parte do vocábulo, nos lembra que em sânscrito, uma língua falada no

tempo de Buda a palavra “mente” escrevia-se manas. Será que as duas primeiras

sílabas de manifestar têm algo a ver com manas? Manifestar é a festa da mente?

E mente é physis. Manifestar é a festa da physis? Entendendo-se também esta

mente como o próprio pensar, o pensamento o ser-alma, o ser-espírito.

Deduzimos então que manifestar, manifestar-se é a festa do pensar, é a epifania,

a glória do Ser Criador.

E nesse instante coeso acontece, aparece a percepção. Falamos em coeso

porque é um momento inteiro, total, não fragmentado.


67

2.10 – O Zen e a Bíblia

O pensador japonês Daisetz Teitaro Suzuki assim esclarece o que venha a

ser a experiência do satori.

Penso agora que podemos caracterizar


claramente o que é o satori do Zen:
É estar com Deus antes de ele ter dito: “Faça-se
a luz”.
É estar com Deus quando seu espírito moveu-se
para dar essa ordem.
É estar com Deus e também com a luz não
criada.
É ser mesmo o próprio Deus e também ser seu
firmamento, sua terra, seu dia e sua noite11.

É interessante essa colocação de Suzuki, pois ele faz uma referência direta

ao primeiro capítulo do primeiro livro da Bíblia Sagrada. Gênesis. Comparemos as

citações:

No princípio, criou Deus os céus e a terra.


A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia
trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus
pairava por sobre as águas.
Disse Deus: Haja luz; e houve luz12.

Poeticamente, é um texto em prosa muito bonito, significativo e altamente

revelador da experiência do Sagrado, da Essência essencial do Originário, dos

primeiros segundos da idade da Terra. Segundos estes que podem ter demorado

milhões de milênios, mas ainda assim, considerados segundos ante a eternidade

infinita do tempo. Que Ser é este? Quem é este Ser?


68

Pode parecer, mas a expressão “essência essencial” não é pleonasmo ou

algo semelhante. É uma indicação da presença do originário, do mais primordial,

se é que assim podemos falar, do primeiro princípio gerador. E é bem esse

momento que caracteriza o livro da Gênesis.

Para melhor entender o Zen é fundamental vivenciar esta experiência

conhecida como satori. Esse mergulho é uma atitude originária, pois todas as

respostas se constituem em desafios, em questões. Explicações também se

transformam em questões, então é mais lícito, é melhor perguntarmos pelas

questões, é melhor questionarmos as questões. E a grande questão do zen,

assemelha-se à questão do ser proposta por Heidegger. A resposta para uma

questão talvez seja uma outra questão, quem sabe uma vivência, uma

experienciação. O que o zen tenta nos dizer é que recomenda-se tentar penetrar,

atravessar esse muro de conceitos que muitas vezes nos rodeia e nos embota.

A seguir, vejamos mais um koan:

Bashô disse ao seu discípulo: Quando


você tiver um cajado, eu o darei a você. Se você
não tiver cajado, eu o tomarei de você”.
Comentário de Mumon: Quando não
houver ponte sobre o riacho, o cajado me
ajudará. Quando eu voltar para casa numa noite
sem lua, o cajado me acompanhará. Mas se você
chamar isto de um cajado, você entrará no
inferno como uma flecha.
Com seu cajado em minha mão
Posso medir as profundezas e os baixios
do mundo.
O cajado suporta os céus e torna firme a
terra.
Por onde quer que ele vá,
O verdadeiro ensinamento será
13
disseminado .
69

Nascido em 1644, Matsuo Bashô é considerado um dos maiores poetas do

Japão, mas não apenas só isto, foi também autor de várias obras em prosa e

mestre zen. Sua poesia também é sinônimo de devoção búdica. A natureza é

adorada em toda a sua simplicidade e em tudo ele identifica manifestações da

vida.

Tal é o caso do cajado acima. Na antiguidade os monges e mestres zen

muitas vezes andavam com cajados, por vários motivos. Primeiro, porque sendo

andarilhos, podiam se defender de animais ao longo das caminhadas.Segundo,

ajudava a carregar a mochila, os pertences. Terceiro, servia para improvisar uma

rudimentar barraca, tenda para abrigar-se à noite. Quarto, o cajado é símbolo de

força, lembra o cetro real. Quinto, para atravessarem os rios, o cajado ajudava a

medir a profundidade e também ajudava na travessia. Sexto, no sentido de

autodefesa servia como um bastão, uma lança ou espada.

Significa também a compreensão. Quanto mais a tivermos, mais ela nos

será acrescentada, pela própria vida. Enquanto que, não a tendo, não a

possuindo, corremos o risco de, cada vez mais, nos perdemos na ignorância

abissal do desconhecimento das possibilidades de iluminação que regem a

existência.

O comentário de Mumon, aquele que organizou os textos, na antiguidade é

bem mitopoético. Ele nos sugere que o cajado, mais do que um objeto faz parte de

nossa vida, está interligado ao nosso dia-a-dia, ao nosso viver. Essa experiência

nos diz que devemos estar além das palavras, das definições, dos conceitos.

O terceiro parágrafo completa a exposição poética, o manifestar-se da arte

de estar integrado e vivenciando-se a cada momento.


70

Notas do Capítulo 2

1 – MICHELAZZO, José Carlos. Do Um como princípio ao Dois como unidade.

São Paulo, AnnaBlume/Fapesp, 1999.

2 – Idem. p. 218.

3 – SUZUKI, D. T. Mística: cristã e budista. Belo Horizonte, Itatiaia, 1976.

(Apresentação da obra, aba interna da capa).

4 – LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Vol. II. Petrópolis, Vozes,

2000, p. 27.

5 – Idem, p. 32.

6 – Idem, p. 204.

7 – Novo Testamento. Evangelho de São João. Bíblia Sagrada. Sociedade Bíblica

do Brasil, 1993, p. 99.

8 – REPS, Paul. Histórias zen. Brasília, Teosófica, 1999, p. 19.

9 – Idem, p. 96.

10 – CASTRO, Manuel Antonio de . O acontecer poético. Rio de Janeiro, Antares,

1982, p.37.

11 – SUZUKI, Daisetz Teitaro. Viver através do Zen. Rio de Janeiro, Zahar, 1977,

p. 87.

12 – Antigo Testamento. Bíblia Sagrada. São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil,

1983, p. 3

13 – REPS, Paul. Op. Cit., p. 129.


71

Capítulo 3

Heidegger e a Filosofia Oriental

Certa feita, Martin Heidegger, em carta ao ex-diretor do internato religioso,

onde estudou alguns anos, escreveu:

Talvez, a filosofia mostre mais insistente e


duradouramente como o ser humano é principiante.
Filosofar em última análise não é senão ser um
principiante1.

Com isso, estamos querendo dizer, desde já, que a nossa tese é de

principiante, como é próprio do pensamento zen-budista. Não temos nada

acabado, pronto, terminado. À maneira de Heidegger, é uma tese no Caminho,

sobre o Caminho, a Caminho de se fazer uma tese melhor, sem preocupação de

se chegar a um ponto ou local (pre)determinado. É o próprio Caminho quem vai

falar por si mesmo. Resta-nos ouvir. É o próprio Método quem vai falar por si

próprio. Vamos tentar escutar. Auscultar.

De forma poética, em prosa, Heidegger também escutou o que dizia o

Caminho do Campo, o Caminho é quem fala:

O próprio carvalho afirmava: só este


crescer pode fundar o que dura e frutifica.
Crescer significa abrir-se à amplidão dos céus
mas também deitar raízes na escuridão da terra.
Tudo o que é maduro, só chega à maturidade, se
o homem for, ao mesmo tempo, ambas as
coisas: disponível para o apelo do mais alto céu
e abrigado pela proteção da terra, que tudo
72

sustenta. É o que o carvalho diz sempre ao


Caminho do Campo, que lhe passa ao lado
seguro de sua via.
O Caminho acolhe tudo que vigora à sua
volta e restitui o seu a todos que o percorrem. Os
mesmos campos e as mesmas encostas dos
prados escoltam o Caminho do Campo em cada
estação do ano, mas com uma proximidade
sempre nova2.

É interessante que o pensador da Floresta Negra fala que os seres

inanimados falam. Mas será que são inanimados mesmo? O carvalho é uma

árvore, é um ser vivo e assim tem a sua forma de falar; claro, diferente da nossa.

Qual será a linguagem das árvores? Ao que nos consta, Heidegger, com a sua

extrema sensibilidade, atenção e percepção a conhecia. Certamente aqueles que

conhecem a physis também conseguem “ouvir” o que dizem as árvores.

Seria o carvalho um personagem, um ente e o Caminho do Campo outro?

Ou os dois são um único Ser, integrados no todo de tudo, diferenciados, únicos e

múltiplos? O Caminho do Campo fala e faz-se falar, faz-se ouvir, faz-se refletir ao

longo do texto. Da mesma forma, nossa tese, tentará falar e fazer-se ouvir tal e

qual o Caminho do Campo. O Caminho do Campo nos foi revelado pelo professor

da Floresta Negra, mas este Caminho do Campo é e ao mesmo tempo não é

diferente do nosso Caminho do Campo, do nosso Caminho da Tese, do nosso

Caminho de Vida. É isto o que o Zen tenta nos dizer, para evitarmos a separação,

a dicotomia e faz isso mostrando os paradoxos do existir.

Vamos tentar descobrir esta “proximidade sempre nova”. É antiga,

antiqüíssima, mas com esta leitura vamos revelar mais uma proximidade sempre

nova que a obra de Heidegger nos possibilita.


73

3.1 – Mente de Principiante

É notável que há um livro clássico do zen-budismo, escrito por um mestre

japonês contemporâneo que se chama Mente Zen, Mente de Principiante. E o

princípio é o mesmo que Heidegger nos propõe acima. A vida, o caminho é

sempre um aprendizado, estamos sempre aprendendo. A vida em si é o próprio

caminho, é sempre um fazer-se, um aprender, um apreender, um melhorar-se.

Na língua japonesa há um vocábulo milenar, inspirado no zen-budismo que

se chama shoshin. O termo significa “mente de principiante”. Equivale e tem como

sinônimo a expressão “mente originária”. Existem inúmeros koans, (histórias sob a

forma de enigmas) do Zen fazendo referência à nossa mente original, que

podemos reescrever como a nossa mente originária. Tanto o sentido de

principiante, quanto o de originário estão no âmbito de primordial, primeiro,

primevo, único, mas um único plural, um único que se torna múltiplo.

Shunryu Suzuki é o nome desse mestre e é ele quem nos fala:

Para os estudantes do Zen, o mais importante é


não serem dualistas. Nossa “mente originária” inclui em
si todas as coisas. Ela é sempre rica e auto-suficiente.
Você não deve perder esse estado mental auto-
suficiente. Isto não significa uma mente fechada e sim,
na verdade, uma mente vazia e alerta. Se sua mente
está vazia, está pronta para qualquer coisa; ela está
aberta a tudo. Há muitas possibilidades na mente do
principiante, mas poucas na do perito3.
74

O filosofar é principiante, o zen é principiante, a mente é principiante, a tese

é principiante e o autor da tese, também é principiante. Feitas estas devidas

ressalvas continuemos. Aliás, como bem diz Manuel Antonio de Castro:

Ser principiante é, no fundo, deixar-se


atravessar pelo princípio, é deixar o princípio
acontecer4.

A proposta do zen é que a pessoa fique sempre com a mente de

principiante, por mais que estude, por mais que aprenda, por mais que pratique

não deve se esquecer deste fato importante, para que não se esmoreça no

Caminho. Tendo a mente de principiante a pessoa vai aos poucos despertando

para o sentido ilimitado da mente original, da mente originária.

Com esta atitude, com esta vivência, de mente originária a pessoa não vai

discriminar os fatos, não vai cair na dualidade, na divisão, visto que tais aspectos,

tais posturas são procedimentos limitadores. Com a mente de principiante, com

mente originária evita-se o egocentrismo e também as dicotomias originadas na

metafísica. Tais como ser/ente, princípio/causa, originário/original,

fundamento/fundado, verdade/verdadeiro, sujeito/objeto, interior/exterior. Muita

gente pensa que ser principiante é humilhação, não é. Ser principiante é uma

atitude de sabedoria e falei em egocentrismo porque é um tema caro ao budismo.

Devemos evitar o egocentrismo, a arrogância, mas para isso é recomendável a

mente de principiante.
75

3.2 – Filosofar Principiante

A experiência, o excesso de conhecimento, de informação muitas vezes

leva o ser humano a uma postura vaidosa. O zen nos diz que uma compreensão

aceitável e recomendável é apreciarmos e alimentarmos a decisão de nos

tornarmos principiantes sempre, por mais que tenhamos vivência no assunto.

Pensamos que foi isso o que Heidegger quis dizer com o filosofar

principiante. Sempre motivados com o vigor do descobrir, com a curiosidade

natural e saudável de quem está começando, de quem está principiando, com o

ânimo jovial. É interessante que, nesta mesma página citada, Suzuki declara: “O

real segredo das artes também é esse: ser sempre um principiante”. O artista, o

poeta está sempre com este propósito, imbuído com o sentido do aprender,

aprender a ser.

Esse vigor do principiante lembra o despertar da criança que quer conhecer

e vivenciar o mundo. É uma experiência radical, das origens. E nos lembra o mito

de Cura. É importante saber que Cura é Cuidado, mas Cuidado também é

Atenção e atenção também é Respeito, também é Amor. São sinônimos. A

principal meditação do budismo conhecida como Plena Atenção enfatiza muito a

prática da atenção. É a plenitude da atenção, o esplendor do momento presente e

nos diz que com atenção a vida vai melhor, não que seja mais fácil ou os

problemas não venham; não é isso. Com atenção a pessoa tem melhores

possibilidades de enfrentar o dia-a-dia.

A pessoa tem respeito para consigo mesma e com os demais e também

com a natureza, com o ecossitema. Ela fica mais sensível, mais atenta às
76

questões ecológicas. A recomendação é sempre fazer as coisas com cuidado,

como se as coisas fossem “seres vivos”, “seres animados”, “pessoas”. É algo que

está fora da lógica. Talvez uma lógica de outra dimensão. Respeito tem a ver com

amor, não o conceito de amor que estamos cansados de ver e ouvir, mas uma

visão nova, um outro olhar diferenciado da experiência do amor, da vivência do

amor.

Nessa colocação mítica vemos que Heidegger investiga a questão do

Cuidado vista em Ser e Tempo. O mito de Higino a que ele se reporta mostra-nos

a vida humana explicitada no tempo entre Júpiter e a Terra. Entretanto, a

diferenciação ontológica é observada pela distância que interage com os pólos da

transcendência. A poesia presente no universo de Cuidado é, na realidade,

constituída por uma área entre relações cujas quatro direções são o céu, a terra,

os divinos e os mortais.

É muito interessante que Buda se refere às seis direções do universo. Além

dos quatro pontos cardeais ele acrescenta o nadir e o zênite, ou seja, o centro da

terra, do globo terrestre e o infinito acima, o firmamento. Heidegger, na questão da

quaternidade, a quarta eternidade, as quatro formas de ser eterno, as quatro

maneiras de sempre se tornar eternamente presente manifestam-se no céu que

bem pode ser o firmamento visível, o que o senso comum chama de o azul do

céu; mas aqui já tem outra dimensão embutida nesse tema é que também o céu

post-mortem, o local, a região “geográfica” para onde vão os remidos do Senhor,

assim falando em uma linguagem cristã.


77

3.3 – Zen Principiante

A palavra geográfica, no item anterior, está entre aspas pois estamos

tratando de algo não palpável, não concreto ou então, algo “concretamente

abstrato” para os que se situam no âmbito da fé. Em Serenidade o pensador da

Floresta Negra também fala em região e fazemos uma leitura como sendo o

nirvana budista.

A terra é o planeta, o globo, a terra propriamente dita, o húmus, o elemento

concreto, palpável, “pisável” em que nos encontramos. Os divinos são os seres

míticos de todas as latitudes e longitudes e os mortais somos nós humanos.

Vemos no mito de Cura o tema da quaternidade. É uma alusão à experiência

mítica de mundo. É um misto de jogo infantil e divino, uma representação mental,

vivencial, teatral, uma espécie de reinterpretação. É por isso que o texto fala em

fingir, em ficção. Não no sentido pejorativo do termo, mas o fingir do poeta, a

ficção do artista, visto que, todos nós, seres humanos, somos artistas da vida,

somos todos poetas caminhando rumo à infinitude da poesia presente no enigma,

no koan da existência humana, da physis.

Pode parecer que este retorno mítico é uma fuga. Não é. O que o texto

heideggeriano mostra é que esse postura originária evidenciava-se através do

mito, manifestava-se, aparecia. Vamos observar que aparecer, fazer nascer

originariamente é diferente de parecer. Este último mais próximo do fingir. Vemos

assim que a estrutura da razão humana é o sentido da ek-sistência e ganha raiz

em uma experienciação mítica que condiciona a compreensão do mundo. Não

podemos nos refugiar no finito da razão, mas no infinito cosmos não-definível do


78

símbolo, do mito, da vivência primordial, desta representações humano-divinas ou

divnino-humanas.

As extremidades e os lados dessas áreas de relação entre esses mundos

não são isoladas, unilaterais, mas, por estarem independentes, libertas da finitude,

da unilateralidade pertencem-se entre si infinitamente na eternidade da relação

que as mantém. Essa quaternidade, esse jogo nos permite ver e sentir com os

seis sentidos, os tradicionais cinco sentidos mais a mente, o transcendente e isso

vai nos levar à reflexão, à meditação, às regiões nirvânicas desta vida física, desta

dimensão e de outras possíveis que os mitos nos re-velam, des-velam.

É impossível nomear o Sagrado, o pensamento defronta-se com as

potências numinosas que iluminam o horizonte do transcender. São divindades

intra-mundanas, esquemas e sistemas da finitude humana e indicam o ponto

nodal, crucial, o nó górdio do pensamento limitado, do pensamento finito. Então

vemos que a essência do real é poética, o originário da realidade é a poesia que

se manifesta de “n “ formas. Deste modo o pensar, o filosofar principiante indica-

nos o caminho da poesia e do mito.

Estas descrições em que aquele que pensa ou tenta pensar

principiantemente se deixa orientar rumo à poesia nos lembra uma proposição por

demais búdica, por demais zen: é a poesia que revela ao ser humano o sentido

originário das coisas. A presença do homem na realidade, inserido no real, dentro

do real, fazendo parte também do real, sendo impossível sair dele não é de

natureza teórica, mas sim poética. Neste sentido podemos dizer que poesia é

sinônimo de zen, ambos são experienciações do mundo.


79

3.4 – Tese de Principiante

A vida não é constituída pelo conjunto dos objetos percebidos e dos

utensílios conhecidos, mas sim criada pelo universo das coisas. A percepção e a

representação das coisas nos dão somente um leve pressentimento do que de

fato é, por isso está aqui o fingir. A imaginação precede a reflexão. É necessário

então mudar a concepção metafísica e observar que o perceber é uma correção

da imaginação simbólica.

Consegue-se chegar à descoberta das quatro dimensões, da quaternidade

e esse termo-descoberta tem o sabor de experiência, de vivência através da

colocação desapaixonada da coisa como ela realmente é. O termo desapaixonado

é importante porque nos lembra o desapego que Buda nos ensinou, a renúncia do

zen, só assim teremos isenção e ver que o jogo do Ser reflete na coisa da

“quaternosa”, na coisa que é melhor perceptível, entendível, vivenciável,

experienciável que é a quaternidade. Isso exala que a vida é benfazeja e a terra é

nutritiva e bela. Ela é o sinal da adesão vital ao solo que cresce, floresce e

frutifica. O homem contempla no horizonte do Cuidado, da Atenção os traços

indeléveis do Sagrado. O céu não é um outro mundo diferente, mas a própria

profundidade deste que conhecemos.

Entendemos assim porque é que a técnica moderna procede da essência

da metafísica. Ela destrói ou tenta destruir a coisa a ponto de fazer dela um

material e rompe o misterioso estado que o zen chama de natureza búdica, a

concomitante interação entre o homem e o mundo. Vemos em Heidegger um

romantismo da terra que morre, a nostalgia de uma natureza que a mão do


80

homem não deveria ter tocado. E, tudo isso traduz que estes momentos nos

revelam que o “homo technicus” deriva-se do modelo metafísico do animal

racional. A besta do apocalipse bíblico, do fim do mundo é o próprio homem que

ameaça a si mesmo.

O fulcro da reflexão heideggeriana previu a crise que vivemos hoje. Em

parte é provocada pelo excessivo desenvolvimento das ciências e da técnica,

quase que onipresente em todas as coisas. E isso põe em causa os antigos

modelos míticos. Não se trata de saudosismo, mas é que a invasão da técnica em

todos os setores, em todas as atividades desencadeia uma aceleração da

produção econômica e provoca nos seres humanos novas necessidades de

consumo. Essas necessidades são propositalmente tornadas agudas,

fundamentais através da propaganda, do marketing, da publicidade. A questão é

para se compreender e para viver em meio a isso tudo, é importante, é

recomendável um certo recuo, uma “volta” no tempo para que nos lancemos

prospectivamente à frente.

Explica-se assim, então, o porquê do crescente interesse pela filosofia

oriental que é visceralmente mítica, mormente o budismo.

Como vencer, superar ou ultrapassar a crise que nos abala, que vai

dinamitando a sociedade? O pensamento de Heidegger não dá qualquer resposta

clara, simples, mas sugere, indica-nos algumas pistas. Alguns “retornos”, entornos

e contornos criativos. Ele coloca uma questão mais essencial que nos permite

iluminar as interrogações pessoais em que projetamos a insegurança

contemporânea.
81

3.5 – Ser Principiante

Para compreender este fato devemos começar por relativizar aquilo a que

estamos mais agarrados – coincidentemente, o mesmo diz Buda – porque as

idéias em que voluntariamente nos refugiamos tendem a impor-se com uma força

tal que as confundimos com a própria realidade das coisas em si. A nossa auto-

representação, a nossa linguagem escapa-se, esvai-se pelo nosso pensamento,

confunde-se com o mundo real e adquire laivos de norma absoluta, de verdade,

de Verdade. Como se fosse um Buda ocidental do século 20, Heidegger nos

recomenda desconfiarmos dos positivismos e dogmatismos que são

frequentemente a estruturação operada pela representação de projeção das

nossas necessidades, muitas vezes influenciada pela propaganda. E, certamente,

é por esta aproximação com o pensamento de Buda que Heidegger, no Japão

também é visto como um ser iluminado, uma espécie de Buda, um Bodisatva,

aquele que tem, aquele que detém a essência, o originário do estado de

iluminação vigindo, atuando, atuante, fluindo.

Verifico que o pensador alemão sugere-nos o caminho que reenvia ao solo

natal sobre o qual vamos desconstruir para em seguida construir a necessária

reconstrução, pois é questão de sobrevivência da espécie. Não é um caminho

fácil. O pensador da Floresta Negra propõe o abandono dos atalhos banais da

metafísica, que nos dão ilusões de que somos exploradores, desbravadores do

novo quando na verdade estamos sendo repetidores, imitadores de predadores da

natureza, depredadores da vida como um todo.


82

Sabiamente Heidegger nos fala de caminhos perdidos que os antigos

trilharam. Eram caminhos de floresta. Lenhadores que nos levavam, nos levam à

clareira. O regresso às coisas preconiza uma outra compreensão, não se efetua

diretamente. Seguindo esses caminhos aparentemente sem saída o pensamento

liberta-se de seus estreitos pressupostos e eleva-se em relação aos sistemas

metafísicos. Há uma separação ontológica. Estamos distantes de nós próprios. A

aventura do pensamento é a expressão do homem que tenta repor-se, resgatar-

se, remediar se quiser que a espécie sobreviva.

O desvelamento das coisas recomenda uma capacidade mítica da

existência humana, ou como prefere o pensador, do Dasein, do Entre-ser. A

quaternidade é antes de tudo uma estruturação do ser humano. Heidegger refletiu

que o homem só chega à sua própria transcendência pelo afastamento da

transcendência que gera o mundo. É preciso compreender isso, a metafísica está

interessada na transcendência que procura a geração do cosmos, a proposta do

pensador é constatar que a transcendência, o sagrado já está no mundo, no

cosmos, nas coisas. Está e sempre esteve, nunca saiu de lá.

Faz parte desse todo e não cabe a pergunta: e se ele, o sagrado não

estiver lá, o que acontece. Esta é uma pergunta mal formulada, uma pergunta

metafísica e não ontológica. Na ontologia essa questão não existe. Ao descrever a

coisa, o que é, o que existe Heidegger retoma a quaternidade. As dimensões da

quaternidade que descrevem o perfil das coisas, têm suas raízes na abertura ao

grande mistério do Ser, que é o Sagrado.


83

3.6 – Mente Originária

Nosso pensador nos diz que perder a visão poética do universo é a mesma

coisa que perder uma possibilidade interior que nos define profundamente, no

mais íntimo de nossa alma. A técnica, ao ocultar a densidade simbólica do mundo,

dissimula, por si mesma, a essência do homem. O contrário também é verdadeiro,

o acolhimento poético das coisas realizado para além da teoria, abre o caminho de

uma região esquecida. É o lugar do mistério.

A região é a casa do Sagrado. O Ser não é o Logos recolhido ao seu

nadificar, tornar ao nada. É a natureza que evoca o Absoluto.

Em sua originariedade o Zen também manifestou-se nas artes. As

manifestações artísticas permitem expressar o inexpressável, permitem exprimir o

inexprimível, por isso operam a arte. E como é este operar a arte? Como é este

operar da arte? A arte “toma” o artista e revela-se através dos cinco sentidos, por

exemplo; as artes plásticas revelam-se no visual; as artes musicais nos ouvidos. E

assim por diante, mas não devemos vê-los de forma isolada, mas ao contrário,

integradas ao todo, em comunhão, irmanadas. Elas emanam de um campo

comum que é a physis.

A mente originária é uma experiência difícil de explicar, difícil de responder.

O Zen usa a imagem para dizer que explicar ou responder é como prender o vento

em uma caixa. No momento em que se feche a tampa, deixa de ser vento, torna-

se ar parado, estagnado, deixa de ser vida, deixa de ter vida. Vida é movimento,

como já dissemos, mesmo estando parados não estamos parados, estamos em

não-movimento e isso é zen.


84

E aprendemos também que estamos sempre em conexão, estamos juntos,

não estamos separados, não estamos isolados e isto é Zen. E só se aprende com,

estando junto de, só se principia com, compartilhando com alguém, por isso, disse

muito bem Manuel Antonio de Castro em seu opúsculo Linguagem: nosso maior

bem:

O sábio nos adverte: Não escutem a mim, mas


ao Logos. Escutando não a mim, mas ao Logos, é sábio
dizer-com: tudo é um5.

Parece um fragmento Zen, mas é de Heráclito, é o fragmento nº 50. e assim

surge a questão: será que este tipo de formulação do pensamento é característica

dos pensadores originários? Esta tradução de Manuel Antonio de Castro é bem

reveladora pois atesta o que vimos dizendo sobre o Zen. O texto acima é

profundamente budista, ainda que não tenha sido proferido por Buda ou por um de

seus discípulos diretos, contudo, Buda também era contemporâneo de Heráclito,

quem sabe, na antiguidade, estes pensadores, talvez com a época, talvez com o

tempo, talvez com experiências semelhantes tenham tido discursos que, em certo

sentido, se aproximam. Qual sentido, o sentido da originariedade.

Há uma recomendação muito antiga que os praticantes zen devem

compreender. Quando um monge estiver falando sobre o Caminho, devemos

“olhar” para o Buda e não para a pessoa, para o monge, para o homem que está

ensinando, pois este é falível, já que ninguém é perfeito. Neste sentido há a

referência ao Buda Primordial, primeiro, primevo, originário que, respeitando-se as

devidas proporções assemelha-se ao Logos citado.


85

3.7 – Heidegger e Buda

É por existir este Buda, que alguns textos chamam de Eterno, que existiram

todos os demais Budas manifestos, mitológicos, seguidores, discípulos daquele

conhecido historicamente no século VI aC, como Sidarta Gautama.

Há um texto milenar que assim diz:

A sabedoria de Buda é tão imensa quanto é


vasto o oceano e sua essência é toda de misericórdia.
Buda não tem forma, mas se manifesta em bondade e
nos guia com seu coração misericordioso6.

O texto acima fala da energia universal búdica que se manifestou em

Sidarta Gautama através do despertar. Esta energia estando presente no cosmos

pode se manifestar, novamente, em outro ser humano, desde que esse novo ser

humano tenha condições propícias para tais.

Coincidentemente, tanto Heidegger quanto Buda também queriam ver as

coisas em sua essência, em sua origem, em seu sentido originário. Siddhartha

costumava dizer que devemos “ver as coisas como elas são”, inclusive citava a

palavra “coisa”, tão cara a Heidegger. Isto é, devemos procurar ver sem os rótulos,

sem os condicionamentos. Observamos que tanto na antiguidade grega, quanto

na antiguidade indiana não havia separação entre arte, vida, religião, filosofia e

ciência. É o próprio Sagrado. É uma espécie de unidade na diversidade que

permeia a compreensão de todas as coisas. É o Um que em interação com o

outro, com o Dois somam Três.


86

A essência da obra de arte, a origem da obra de arte, o originário da obra

de arte é a essência da própria vida, e vida é poesia ou podemos inverter, poesia

é vida. É por este motivo que no Zen há um apelo tão forte à vivência da arte. A

iluminação, o esclarecimento, o satori que é tão difícil definir, tanto quanto o Ser,

bem podem ser apreendidos através da experiência originária que o budismo,

enquanto filosofia, enquanto Caminho propõe. É como se o Ser “possuísse” a

pessoa, talvez seja melhor a expressão: é como se o Ser se manifestasse na

pessoa, tomasse-a e lhe imprimisse uma nova forma de ser/ver o mundo.

Mas, e a arte, como é que ela aparece? A vida e a arte constituem um jogo,

o jogo do existir. Podemos dizer também que é uma dança. Semelhantemente a

Heidegger, o Zen vê na arte a perfeita evidenciação da gratuidade da physis que

se manifesta. O termo “perfeita evidenciação” talvez soe algo como metafísico,

mas o que queremos dizer é que, para o zen, a arte é um caminho excelente para

esta experiência com o real, com o sentido originário das coisas.

A criação artística não é nem uma produção subjetiva, nem um produto

formal, mas o desvelamento da relação misteriosa em que se dá a disputa de terra

e mundo. O mundo não designa aqui a imagem objetiva da percepção, mas a

abertura prévia que torna possível a apreensão de todas as coisas. Não é algo

com delineamentos pré-marcados, determinados, mas uma constante realização

permanente. A terra é a base do mundo, o que resiste ao afluxo luminoso do

mundo. E é neste mistério que o mundo se oculta.


87

3.8 – Mundo e a terra

A obra de arte é a tradução do diálogo nunca acabado que se trava entre o

mundo e a terra. Este diálogo é, de fato, uma questão – o mundo desvela a terra e

a terra oculta o mundo. Por isso falamos em jogo, em dança, como se fosse, e,

realmente é, uma brincadeira cósmica seríssima. É uma disputa, um conflito que

desencadeia a criação artística, é uma projeção existencial que se verifica através

de um jogo entre a verdade e a não-verdade. A obra de arte é uma espécie de

“outra forma de dizer a verdade”, de ser a verdade, é uma das formas como o Ser

se dá. Contudo, temos que ter o cuidado para não cairmos na metafísica da forma

e matéria.

Transcendência e acontecimento são vertentes do belo, porque o belo é o

ser se dando na plenitude do desvelamento, enquanto verdade da não-verdade.. E

vemos isso em Heidegger e no Zen. Por um lado produzindo em nós a novidade

da revelação do Ser, a arte rompe e irrompe o longo curso do rio da vida. E então

nos revela o algo mais além da banalidade metafísica. Por outro lado, a nossa

existência (ek-sistência) encaminha-nos para a Verdade do Ser que é. É uma

experiência de originariedade da história. A obra de arte enquanto manifestação

originária da Terra e Mundo é sempre bela por si só, sem precisar de leituras de

estilos de época. O acontecimento criador é um ato sagrado e por isso nos confia

ao Ser.

Por esse motivo, para o pensador alemão a linguagem poética é o

acontecer da linguagem artística, considerando que ela é a linguagem originária

que conduz o ser humano ao começo de sua história. Podemos identificar na


88

concepção heideggeriana da arte o criativo jogo, no sentido em que se vela,

desvela e revela da verdade mediante o belo no jogo do mundo. Há uma

comunhão entre o homem e o acontecimento que é a irrupção da verdade. O

artista não domina o ato de criar, da criação, ele está sempre sendo ultrapassado

pela força da obra, uma força “mística”, sagrada, misteriosa, que tem vida própria.

Como se fosse uma outra pessoa, diferente do artista, por isso se diz que às

vezes, determinado artista queria uma coisa e a obra saiu outra.

Este fato acontece, ocorre porque a arte é uma manifestação da Verdade, a

arte é verdade acontecendo. É pura poesia no sentido amplo dos termos, não a

poesia versificada, tradicional que a metafísica conhece, mas a poesia que é vida,

que é descoberta, que é experiência. A linguagem tem o papel de libertar o Ser,

logo, toda obra de arte originária e não qualquer obra de arte no sentido metafísico

é linguagem poética. O belo é a experiência de um sentido transcendente, mas

que, ao mesmo tempo, concomitantemente une homem e mundo, revela que

homem e mundo nunca estiveram separados.

O jogo, a dança do Ser rompe a aparência uniformizante da leitura

metafísica da arte e instala a diferença entre o existencial no homem e o

cosmológico na natureza. A obra de arte é o diálogo entre o mundo e a terra. A

arte é uma experiência de auto superação. Vemos no jogo heideggeriano do Ser,

isto é, no diálogo que ele nos propõe com as questões, a justificação ontológica da

arte. Entendendo-se por arte, no âmbito das artes plásticas, aquela que ao

mostrar uma figura produzida pelo pintor-artista, evidencia a physis. Arte é a

própria terra como mundo.


89

3.9 – Arte: o a-pare-ser da verdade

A obra de arte é então a verdade a-pare-sendo, a verdade se manifestando,

podemos até dizer que arte é um sinônimo para a verdade. Para descobrir o de

que se constitui a essência desta obra de arte o pensador alemão nos faz lembrar

do salto para o ser da obra. Concretizar este salto equivale a colocar-se diante da

obra para deixa-la ser ela mesma. Deixar a obra operar, deixar a obra ser obra.

Esse modo de ser da obra manifestar-se com tanta mais originariedade enquanto

ela bastar-se, enquanto não se fizerem desvios explicativos, dedutivos, mas sim,

como diz o Buda ver a coisa como ela é, precisamos então ver a obra de arte

como ela realmente é, ver a obra operando em si mesma, agindo, vigindo em si.

Por sua vez, a arte budista, a arte zen assumiu formas que indicam a

influência do ensinamento de Buda. Na verdade, o que os artistas tentaram, ao

longo dos séculos, foi falar do estado de iluminação das mais diferentes

manifestações do fazer artístico. A influência do zen na arte implica uma

substituição dos detalhes agitados pela quietude que representa a ação principal

na meditação profunda. Se consegue este resultado mediante a alusão ao vazio

como motivo preferencial. É a grande incógnita do vazio que o artista, muitas

vezes, tenta evidenciar.

Na pintura, por exemplo, o fato de deixar espaços em branco, ou espaços

vazios, realizando só os traços imprescindíveis sobre o papel ou a tela ou outra

superfície, deixando o espaço aberto para que a mente o preencha, tal como

expressa o pensamento zen. Isso faz com que a mente não seja induzida a

pensar, mas sim, justamente ao oposto, a mente aprende a meditar sobre o que
90

representa quietude e tranqüilidade. Isso é o que descobre o observador quando

contempla o efeito da arte zen em sua própria mente. Não é o descobrimento que

é importante, neste raciocínio, nesta vivência cotidiana, é a mudança, o efeito em

si mesmo.

Mas, falar de arte é falar também do Sagrado. No segundo capítulo de

Hinos de Hölderlin o pensador da floresta Negra tece demorados comentários

sobre a questão do Sagrado e da Renúncia. Curioso que o Buda dedicou sempre

atenção, cuidado, cura ao tema da renúncia. Lendo Heidegger parece que

estando lendo Sidarta Gautama, no século VI aC.

Ele destaca alguns trechos do poeta alemão e em seguida explicita o que

Hölderlin chama de sagrado. Só que, neste momento, vemos que a

experienciação do Sagrado em Hölderlin tem muito a ver com o tema da renúncia.

Ou seja, o verdadeiro poeta tem que renunciar a si mesmo para que a poesia

propriamente dita fale. O poeta tem que calar, tem que silenciar para que a

energia poética da vida – a poiésis -, a energia primordial da physis se manifeste.

O Sagrado não é uma palavra que se opõe ao Profano. Esta é uma visão

dicotômica, metafísica. A poiésis é o Sagrado e é por isso que nomear o sagrado

é o próprio do poeta. O sagrado é uma experienciação inaugural, fundante. O

verdadeiro poeta também é pincipiante, pois a poesia principia com o sagrado

princípio do principiar.

O sagrado não é um lugar, não é um local. O sagrado é o aberto abrindo-se

ao abrir-se. A natureza em si é esta abertura primordial, originária,

maravilhosamente presente.
91

3.10 – Hölderlin e Buda

O título deste item pode parecer uma provocação, uma afronta, um

absurdo. Não é. Provocação apenas no sentido acadêmico, não para chamar a

atenção como um apelo de marketing, não é isso, é provocação no sentido em

que nos faz pensar. Não estamos querendo afirmar que Hölderlin leu Buda.

Estamos querendo afirmar que a experiência poética do primeiro, com a arte,

assemelha-se, em parte, nos faz lembrar do Sagrado que o segundo enfatizava.

Para se ter acesso ao Sagrado é preciso uma experiência de renúncia, uma

experiência com a renúncia. Esta experiência, esta renúncia é a disposição

fundamental da poesia e a historicidade do Entre-ser, como afirma Heidegger nas

páginas 77 e 78 dos Hinos de Hölderlin7. Essa disposição, esse estar disposto,

disponível, receptivo, aberto, flexível é o originário do dizer poético. Mais adiante

na página 84 o pensador é bem claro: “A disposição fundamental é, toda ela,

sagrada”. O pensador da Floresta Negra completa informando que o poeta-

pensador Hölderlin “utiliza esta designação (o sagrado) com freqüência e sempre,

essencialmente a partir do alcance da disposição fundamental que é própria da

sua poesia.

Para Hölderlin, segundo Heidegger, sagrado é o “isento de proveito próprio”

Isento de proveito próprio, aqui, não é


apenas aquilo que prescinde de proveito próprio
em prol do proveito da comunidade, mas é
aquele tipo de ação isenta de proveito próprio
que ainda retira o proveito próprio, quer dizer, a
sua finitude, do que acontece em proveito da
comunidade; aquele tipo de ação isenta de
92

proveito próprio que já não pertence à esfera do


útil nem, por conseguinte à do inútil, que ainda é
avaliado na perspectiva da utilidade8.

São diversos os textos de Buda em que ele recomenda a renúncia, a

simplicidade, a humildade. Esses textos falam de sua grande renúncia quando ele,

abdica do palácio e vai viver na floresta como um asceta, tema que iremos tratar

mais adiante. Pensamos que essa disposição fundamental de Sidarta Gautama o

levou à experiência com o Sagrado. Hölderlin, de modo semelhante e

respeitando-se as devidas proporções, experiencia o sagrado, vivencia, manifesta

a unicidade plural da physis.

Uma das compreensões básicas que levam ao sagrado, à disposição

fundamental é a questão da finitude. Sidarta atingiu o estado que nós chamamos

de Iluminação quando ele experienciou que a finitude, da mesma forma que

prende pode também libertar, pode também iluminar. Vivenciando a originariedade

das coisas ele compreendeu que a infinitude da vida está intimamente coligada

com a finitude desta mesma vida. De um lado a vida primordial,a vida essência , a

vida-via originária; de outro a vida finita, a transitoriedade de todos os fatos, todas

as coisas, pessoas e situações. Mas é essa constante impermanência finita que

nos torna infinitos.

O homem é parte integrante, não-descartável de si mesmo e do todo que o

envolve. A renúncia ajuda esse mesmo homem a melhorar essa compreensão. O

sagrado fala ao indivíduo, dando conta de sua interação com as funções da vida.

E que funções são essas? Criativas, criadoras, protetoras. Presentes na physis.


93

Notas do Capítulo 3

1 – SAFRANSKI, Rudiger. Heidegger. São Paulo. Geração, 2000, p. 27.

2 – HEIDEGGER, Martin. O Caminho do Campo. Petrópolis. Revista Vozes,

mímeo., s/d.

3 – SUZUKI, Shunryu. Mente zen, mente de principiante. São Paulo, Palas

Athena, 1994, p. 20.

4 – CASTRO, Manuel Antonio de. www.travessiapoetica.com

5 - ------. Linguagem: nosso maior bem. Rio de Janeiro. Faculdade de Letras –

UFRJ, 2004, p. 5

6 – Bukkyô Dendo Kyokai. A doutrina de Buda. São Paulo, 1998, p. 4.

7 – HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa. Instituto Piaget, 2004.

8 - ______. Idem, p. 85.


94

Capítulo 4

Eihei Dogen: o monge filósofo-pensador

Depois de Buda, alguns grandes monges, considerados “iluminados”

levaram adiante essa tradição originária. Os registros se encontram nos textos

sagrados, textos clássicos, textos canônicos. Mas três merecem destaque. O

primeiro, naturalmente, é o já citado Kasyapa, discípulo direto de Buda, a partir do

referido gesto da flor, que ficou conhecido como o “Sermão da Flor” ou o “Sermão

em Silêncio”, visto que só ele entendeu e sorriu a mensagem de Siddhartha e por

isso ficou conhecido como o grande Kasyapa, ou em sânscrito, Maha Kasyapa. E

ele deve constar aqui porque, a partir dele, teve início esta sucessão “apostólica”,

esta linhagem hermenêutica. A seguir tem o monge Bodhidharma (470-543), um

monge indiano que introduziu o Zen na China – e esse é um dado muito

importante para a nossa tese – pois foi a partir da China que o Zen chegou ao

Japão com o monge Eihei Dogen (1200-1253).

Dogen era um monge budista japonês que, após estagiar na China, voltou

para o seu país e introduziu o pensamento Zen em sua terra natal. Dos três

nomes que acabei de citar, sem dúvida, Dogen é o mais importante, é o que nos

interessa, ele levou e elevou a experiência originária tão profundamente que até

hoje é respeitado como um grande filósofo, um grande pensador e o fundador da

Filosofia no Japão. É o pai, o grande patriarca do Pensamento no Japão.

Respeitando-se as devidas proporções, o pensamento de Dogen é tão

importante quanto o de Heidegger e há profundas semelhanças entre eles. É o

que vamos ver agora.


95

Mas, quem foi Dogen? Os biógrafos, historiadores e estudiosos são

unânimes que ele foi a mente mais brilhante do Zen em todos os tempos, um dos

grandes monges da história do Budismo em todo o mundo. Foi o primeiro

prosador, pensador e filósofo do Japão. Até então, só se escreviam textos na

forma tradicional de poesia, em versos. Ele inovou ao escrever poesia na forma de

prosa.

Eihei Dogen nasceu em 1200, em Quioto, a antiga capital do Japão.

Pertencia à aristocracia, a classe abastada que preservou durante séculos a

cultura japonesa influenciada pelo zen-budismo, que teve início com ele. O pai de

Dogen chamava-se Michichika Koga, o mais influente ministro de sua época, na

corte imperial. Sua mãe era filha do Motofusa Fujiwara, outro antigo regente da

corte. O pai de Dogen faleceu quando ele tinha 3 anos e a mãe faleceu quando

ele tinha 8 anos de idade. Tendo de encarar, desde muito cedo, a dura realidade

da morte e da perda dos pais ele procurou o ensinamento de Buda para

compreender a razão de ser das coisas e da vida. Faleceu em 1253. Viveu pouco,

mas a sua obra permanece até hoje e, cada vez, é motivo de estudo em diversas

partes do mundo.

Aos 13 anos entrou para um mosteiro budista e foi ordenado no ano

seguinte. O Budismo chegou ao Japão por volta do ano 550, através de

missionários coreanos. Mas eram escolas budistas metafísicas, as primeiras que

se estabeleceram em solo nipônico. O Zen resgata a experiência originária de

Buda e é por isso que Dogen é importante para a nossa tese.


96

4.1 – O ser-do-tempo

Filósofos japoneses contemporâneos como Tetsuro Watsuji e Hajime

Tanabe, alunos de Kitaro Nishida (1870-1945), que foi aluno de Heidegger, são

unânimes em afirmar que o pensamento de Dogen não é só zen-budista, não é só

japonês, pertence a toda humanidade.

Da mesma forma que Heidegger resgatou o pensamento originário na

antiga filosofia grega; com o Zen, Dogen resgatou o pensamento originário de

Buda.

Há um texto clássico do Zen, pouco conhecido no Ocidente, de autoria de

Dogen que em japonês se chama Uji, mas a tradução é “O ser-do-tempo”. Vamos

transcrevê-lo na íntegra. Comentando cada uma de suas partes. A primeira letra

de Uji significa algum, ser, ter, existência. As duas últimas “ji” formam a palavra

tempo. É interessante notar que vazio em japonês é “ku” e esta mesma letra “u”

significando este som vazio representa o ser, a existência, donde se deduz que a

existência-vida é vazia e o ser, da mesma forma é vazio. Com Uji, Dogen nos

revela que tempo e existência são inseparáveis.

Uji foi escrito no primeiro dia do começo do inverno de 1240, provavelmente

no mês de novembro. Dogen estava hospedado no Monastério Kosho Horin. Na

antiguidade os monges eram peregrinos, mormente no verão, primavera e outono,

no inverno rigoroso eles faziam retiros e estudos nos conventos.

Os tópicos ou itens não têm título. Dogen entra direto no assunto, no texto.

Vejamos o primeiro tópico de O ser-do-tempo, de Eihei Dogen:


97

Essa primeira parte é um misto de prosa e poesia:

Um antigo buda disse:


Pelo ser-do-tempo permanecei no alto do mais
alto pico.
Pelo ser-do-tempo avançai pelo fundo do mais
profundo oceano.
Pelo ser-do-tempo três cabeças e oito braços.
Pelo ser-do-tempo um corpo de dois metros e
meio ou cinco metros.
Pelo ser-do-tempo um cajado ou um batedor.
Pelo ser-do-tempo um pilar ou uma lanterna.
Pelo ser-do-tempo os filhos de Zhang e Li.
Pelo ser-do-tempo a terra e o céu.
“Pelo ser do tempo” significa, aqui, que o próprio
tempo é ser e todo ser é tempo. Um corpo dourado de
cinco metros é tempo; porque é tempo, há a radiante
luminosidade do tempo. O estudo é como as 12 horas
do presente. “Três cabeças e oito braços” é tempo;
porque é tempo, não está separado das 12 horas do
presente1.

A primeira linha: “Um antigo buda disse:” é uma referência ao Buda

histórico, Sidarta Gautama, isto porque, dentro da própria tradição do budismo, há

infinitos budas, de certa maneira, as pessoas são budas, há dentro delas, como já

falamos, o estado potencial de iluminação.

A segunda e a terceira linhas nos mostram os paradoxos da vida, que o

método de abordagem Zen usa muito. Isso quer dizer que tanto faz estarmos no

mais alto dos picos do planeta, ou nas maiores profundezas do oceano, ainda

assim, nossa vida está sujeitas às intempéries do tempo-ser, ser-tempo. Também

é uma alusão a um discurso de Buda quando certa feita ele falou que não adianta

fugir, não adianta nos escondermos, onde quer que a gente esteja, a

impermanência e o vazio estarão conosco.


98

4.2 – O cajado e o batedor

A quarta linha é uma referência à vida, as três cabeças equivalem ao

passado, ao presente e ao futuro. Os oito braços simbolizam os pontos cardeais e

colaterais. Há uma antiga prática de reverenciar os pontos cardeais e colaterais.

Na mitologia budista se diz que estas regiões do planeta são administradas por

seres divinos. “Três cabeças e oito braços” é o nome de uma deidade que significa

justamente essa grande incógnita da vida. Para onde quer que nos movamos:

presente, passado ou futuro e ainda podemos seguir em qualquer das oito

direções, ainda assim, estaremos sob a égide da incompletude. Assim,

compreender este ser-tempo-tempo-ser implica em desvendar o segredo desta

deidade que é a própria vida.

A quinta linha é uma referência ao Buda histórico. Os textos sempre

apresentaram Siddhartha Gautama como um homem alto. Deduz-se que este alto

estava acima de 1,80, alguns afirmam, informam que certamente ele teria algo em

torno de 2 metros. Verdade ou não, lenda ou não, com o passar dos séculos ficou

mais ou menos admitido pelo grande público que a altura do Buda estava mais ou

menos na casa dos 2m. O Zen sempre usou esta imagem extrema “dois metros e

meio ou 5 metros”. Em primeiro lugar isso quer dizer que é raro uma pessoa acima

de dois metros, da mesma forma, é raro, na face da terra, o aparecimento de um

Buda; de 5 metros então é uma pessoa inexistente. Entra aqui um pouco de

mitologia, sempre nas descrições míticas, estes seres quase divinos, ou semi-

divinos são identificados com porte atlético, ao falar da estatura espiritual as

imagens confundem com a estatura física.


99

A sexta linha nos fala em cajado e batedor. O cajado é como se fosse um

cetro imperial ou real. Os grandes mestres Zen na antiguidade, quando estavam

pronunciando os ensinamentos seguravam um cajado, lembra um pouco as

antigas audiências dos reis e imperadores que identificavam no cajado a posição

real com as respectivas insígnias da reino. Lembra também que Siddharta era um

rei, um príncipe e assim, os grandes mestres, simbolicamente são herdeiros desta

realeza espiritual. O batedor é um instrumento litúrgico, como se fosse uma vara,

uma ripa de madeira que alguns mestres Zen usam nas meditações para corrigir a

postura dos demais praticantes, dos discípulos, dos alunos. A referência do verso

simboliza que a pessoa, o praticante, que é o próprio ser-tempo é ao mesmo

tempo, um raro buda em potencial, um mestre, identificado pelo cajado e um

simples, um mero e comum praticante, sujeito a uma leve pancada com o batedor,

uma espada de madeira que, segundo os textos serve para cortar a ignorância.

Em japonês esta espada de madeira, este batedor, recebe o nome

“kyosaku”. Cerimoniosamente traduzem como “a espada de prajna do Bodhisatva

Manjusri”. É espada porque corta a ignorância, o desconhecimento e ao cortar

revela a sabedoria, o discernimento, pois “prajna” significa a sabedoria intuitiva.

Bodhisatva é aquele ser, aquela pessoa que já está quase em um grau especial

de santifidade, que contém em si a semente da iluminação, já é quase um Buda.

Então “a espada de prajna do Bodhisatva Manjusri” é aquele bastão de madeira

que os monges Zen usam, na hora da meditação em grupo, durante a cerimônia

para ajudar a prática. Quando a pessoa está sonolento a leve pancada que se dá

no ombro acorda aquele que está com o sono. Como é uma pancada seca, o
100

barulho acorda o sonolento praticante e aqueles que estão também meditando,

pois podem também estar um pouco com sono.

A linha seguinte “pilar e lanterna” é outra referência à sala de meditação,

pois ali é o campo especial e preferencial da iluminação búdica. O pilar indica uma

existência insensível, diferente de nós, seres humanos que somos, seres

sencientes e assim temos a oportunidade de nos iluminarmos, de nos

esclarecermos, de nos conhecermos melhor, conhecendo a si mesmo e aos

outros. A lanterna é o símbolo da luz, do conhecimento.

A oitava linha, “os filhos de Zhang e Li” são nomes comuns na China. Isso

quer dizer que o ser-tempo está com e além, está como estas pessoas comuns,

normais, inseridas no cotidiano e também muito além delas.

A última linha desse primeiro parágrafo nos fala da terra e do céu. Dogen

quer nos dizer que o praticante está inserido neste amplo espectro, que não são

contraditórios, paradoxais, mas sim, fruto de sua união com o todo, que junta o

céu e a terra. Este é o espaço imenso onde circula o praticante Zen. Imenso para

medir, mas pequeno, tão pequeno que duas palavras o identificam, qualificam,

duas palavras, o cerceiam, mas há nesse meio, o vazio misterioso, incógnito.

O segundo parágrafo deste primeiro item esclarece o anterior. Dogen é

muito feliz ao dizer que “o próprio tempo é ser e todo ser é tempo”. É um binômio

único ser-tempo, tempo-ser, binômio e não-binômio. É a união do todo. A unidade,

a não separabilidade das coisas. A rede de que nos falam os estudos

contemporâneos.
101

4.3 – Meditação Heideggeriana

Chamamos esse item de meditação heideggeriana porque, em inúmeras

passagens da obra de Heidegger, encontramos referências, sugestões, indicações

para a prática da meditação. Sabido é que a proposta da meditação budista é a

melhoria, a transformação do homem, esta meditação tem duas vias, a via interior,

do homem consigo mesmo e a via exterior, a parte em que o homem interage com

o mundo circundante

Logo no primeiro capítulo de Ser e tempo, parágrafo 9, encontramos sob o

título “O tema da analítica da presença” o texto a seguir:

O ente que temos a tarefa de analisar


somos nós mesmos. O ser deste ente é sempre
e cada vez meu. Em seu ser, isto é, sendo, este
ente se relaciona com o seu ser. Como um ente
deste ser, a presença se entrega à
responsabilidade de assumir seu próprio ser. Ser
é o que neste ente está sempre em jogo2.

O analisar da primeira linha significa conhecer. Precisamos nos conhecer

mais e melhor, para nos relacionarmos mais e melhor, interagirmos com todas as

coisas, pessoas e situações. Buda ensinou, transmitiu isso ao longo de sua

existência. E aqui de forma atual, contemporânea, Heidegger faz o mesmo, fala o

mesmo.

A segunda oração: “O ser deste ente é sempre e cada vez meu” nos lembra

a noção budista de que nós temos sempre um sentido de apego, pelo qual

devemos nos desapegar. O eu, o meu, quando se tornam conceitos, se tornam


102

apegos que interferem em nosso viver, causando dor e sofrimento, tristezas e

angústias, mas ao transmutarmos, ao transformarmos esse eu e esse meu em

questões elas apontam para a libertação, para a clareira do caminho. O eu e o

meu se tornam possibilidades amplas de esclarecimentos.

Tanto assim o é que em seu mais profundo ser, em sua essência, em sua

origem originária. Observe que a origem sozinha é conceitual, é metafísica. A

origem originária é essencial, é ontológica. Pois bem, em sua origem mais

originária, mais profunda para baixo enquanto as raízes de uma árvore e por outro

lado , cada vez mais conectadas com o alto , com o sagrado nós constatamos que

o ser só é ser, sendo, daí a razão de ser da terceira oração. No período em

destaque temos o um e o dois. O Um é o ente, uno, indiviso, mas que não está só,

está junto, não é separado de nada nem de ninguém e aqui está um dos grandes

mistérios da vida. Como é que um Um que é uno, único e indivizível é ao mesmo

tempo, concomitantemente, junto, aconte-sendo com o dois que é o Ser.

Mas este Ser que é dois, não é o segundo na escala, também é Um. E só

especificamos entre um e dois, para que consigamos explicitar a oração de

número quatro. E já falamos tanto em Sagrado, apropriadamente, são orações

que estamos estudando. O somatório deste um com o dois, ainda estando no Um

faz com que surja, com que apareça o presente, o tempo presente, o aqui e o

agora que é a presença. A Presença é a reunião. É o conjunto dos três. O aqui e o

agora é o tempo presente, atual, não o atual momentâneo, mas o atual eterno. É

preciso que haja uma entrega, uma fé, uma fides, em latim e uma pitis em grego –

confiança, para que aconteça o que chamamos de Logos.


103

Após a presença da Presença, da entrega mútua mani-festa-se o Ser que

está sempre em jogo. Este jogo é a dança cósmica, é o movimento da respiração:

o inspirar e expirar, o nascer e o morrer do Sol a cada dia, o apare-ser e o ocultar-

se da Lua a cada ciclo. Jogo aqui é o mistério da vida, o charme, a alegria da

existência, conforme Joan Huizinga em seu livro Homo ludens3:

Jogo é também uma forma de luta e no zen temos as chamadas artes

marciais. O nome é curioso, artes marciais, artes de guerra, mas aqui no sentido

de que a vida é uma guerra e, metaforicamente, é uma luta diária que precisamos

vencer a nós mesmos, da mesma forma que Heidegger falou em sua primeira

oração no trecho acima citado. Vencer a nós mesmos, compreender a nós

mesmos, superar a nós mesmos.

A especificidade do Zen e a especificidade da arte podemos encontrar na

especificidade da arte marcial do arco e flecha. Este jogo ou esta luta que na

vivência Sagrada do Budismo é transformado em arte não tem como objetivo o

resultado de “matar” o adversário. Os praticantes entendem que o alvo a ser

acertado é o não-alvo. Exercita-se a consciência, a Presença para chegar-se à

realidade última, ao originário, primordial.

A meta do arqueiro não é apenas atingir o alvo, a espada não é empunhada

para derrotar o adversário; o dançarino não dança unicamente com a finalidade de

executar movimentos harmoniosos. O que estes praticantes querem, antes de

tudo, é harmonizar suas vidas, é compreender suas existências.

Para ser um bom arqueiro, um bom espadachim, um bom dançarino, só o

domínio técnico é insuficiente. É preciso transcender e chegar ao que o Zen

chama de arte sem arte.


104

4.4 – A dúvida saudável

Vamos ao segundo tópico da obra de Dogen, O ser-do-tempo:

Muito embora não meçais as horas do dia como


longas ou curtas, próximas ou distantes, ainda assim as
chamai de 12 horas. Porque os signos das vindas e
idas do tempo são óbvios, as pessoas dele não
duvidam. Embora não duvidem dele, não o entendem.
Ou quando os seres sencientes duvidam daquilo que
não entendem, a sua dúvida não é firmemente fixa. Por
causa disso, as suas dúvidas passadas não coincidem
necessariamente com a dúvida presente. No entanto, a
dúvida em si mesma nada mais é do que tempo4.

No segundo parágrafo do primeiro item. Dogen já esboçou algo com

relação às 12 horas do dia. Os dias vêm e vão, chegam e passam e assim vai o

tempo constituindo para nós um grande enigma. O tempo é tudo? O tempo é o

todo? Sim e não, mas é preciso não esquecer do Ser que faz o tempo, que vive o

tempo, o Ser pertence ao tempo. Daí o título: o ser-do-tempo. Somos seres do

tempo.

Este segundo item nos fala de dúvida, esta palavra nos remete à questão

de Heidegger. Duvidar é um questionar, não uma dúvida cética, estéril, negativa,

niilista, metafísica, mas uma dúvida criativa, a dúvida de quem inquire, a dúvida

científica de quem investiga, a dúvida filosófica de quem pensa, de quem

questiona. A dúvida saudável nos torna sempre um principiante. O Zen, através do

estratagema dos koans, utiliza muito a dúvida, no sentido de questionamento. Os

koans não nos perguntam soluções, nos perguntam sobre a vida e não estão

interessados em respostas metafísicas. A boa resposta originária é aquela que


105

sempre nos leva a um outro pensar, a uma outra questão. Por isso intitulamos

este item de “Dúvida Saudável” para contrastar com a dúvida doentia, neurótica, a

dúvida repetitiva, sem criatividade. Buda, aliás, dizia que o excesso de dúvida

prejudica, logicamente, ele estava se referindo à dúvida doentia, pois a dúvida

criativa ele sempre estimulou.

Sobre a criatividade deste questionar, vejamos o que nos diz Heidegger no

parágrafo 159 de O originário da obra de arte:

O esforço de reflexão que diz respeito à


realidade da obra deve preparar o solo para que
encontremos a arte e sua essência na obra
efetivamente real. A pergunta pela essência da
arte e o caminho de seu saber devem ser de
novo e em primeiro lugar trazidos a um
fundamento. A resposta à pergunta é, como cada
autêntica resposta, a última saída do último
passo de uma longa seqüência de passos
questionantes. Cada resposta somente conserva
sua força como resposta enquanto ela
permanecer enraizada no questionar5.

Vemos nesta passagem o vigor do perguntar, a sabedoria do questionar. A

criatividade da dúvida saudável que falamos antes e que Dogen explicita bem. O

pensador alemão está nos falando da obra de arte, mas podemos entender e ver a

vida como uma obra de arte em construção, na medida em que vamos, a cada dia,

construindo esse mosaico do viver. Por isso é fundamental o questionar, o argüir,

o investigar, o pesquisar. Não é uma estéril pergunta só pelo fato de perguntar,

como disse Heidegger: a pergunta em si já trouxe, já mostrou, já evidenciou, já

desvelou, já revelou a autêntica e criativa resposta.


106

4. 5 – O caminho da travessia

O todo de nossa vida é travessia e essa travessia constitui o caminho.

Vejamos o item 3 de Dogen:

O modo como o eu se ordena a si mesmo é a


forma do mundo inteiro. Vede cada coisa neste mundo
inteiro como um momento do tempo.
As coisas não impedem umas às outras, assim
como os momentos Não impedem um ao outro. Uma
mente que-busca-o-caminho desperta neste momento.
Um momento que-busca-o-caminho desperta nesta
mente. O mesmo se dá com a prática e com atingir o
caminho.
Assim o eu, expondo-se em ordem, vê-se a si
mesmo. Este é o entendimento de que o eu é tempo6.

Eihei Dogen, nesse terceiro momento de seu texto, nos coloca que se tudo

é tempo, se o todo é tempo, então tudo o que existe são faces, são partes, são

partículas, são átomos deste tempo. E estes átomos, estas partículas, estas faces

nós podemos chamar de momentos, de instantes. Assim é o primeiro parágrafo

deste novo item.

A primeira linha do segundo parágrafo deste item 3 é bem reveladora; ele

nos esclarece que as coisas não são excludentes, mas sim, complementares. Ou

seja, as coisas podem co-existir, cada uma em sua essência, cada uma em seu

todo, cada uma em sua plenitude. Vemos aí um bom indício para a democracia,

desde que as partes respeitem-se, respeitando-se o limite de cada uma. As

demais linhas desse parágrafo nos revelam um aspecto muito importante, do

pensamento Zen-Budista. Uma mente é uma coisa, um momento também é uma

coisa. Naquele espaço de tempo, um vai ao encontro do outro, um completa-se no


107

outro, um existe no outro, um constitui a diferença fundamental e significativa que

é o outro e que o outro tem, todos os outros têm, todos nós temos.

Se tudo são coisas, a prática da meditação, da vida Zen, do caminho é uma

coisa, é um ser com vida própria, concomitantemente independente e dependente

de nós, ligado a nós. O caminho idem, ele existe por si só, ele é uma coisa, um

ser, deste modo, tendo vida própria ele vai ao encontro da prática e vice-versa

para que haja este encontro, este apogeu do tempo, do momento e também das

partes envolvidas na questão.

E assim chegaremos à questão de que nós somos o tempo, não apenas

fazemos o tempo, mas somos intrinsecamente o tempo e talvez por não sabermos

disto é que ficamos medindo-o, mensurando-o, contando-o, comparando-o com

outra metragem deste mesmo tempo.

Do terceiro item, podemos destacar como imagens-questões: coisas,

momentos, momento, mente, prática e caminho. São palavras-chaves para a

compreensão do que o pensador monge quer nos dizer. As coisas são plenas,

com todas as possibilidades possíveis em suas respectivas plenitudes. Momentos,

o conjunto das pluralidades, como se fosse o conjunto, uma rede, um grupo de

momento-s; por motivos gramaticais precisamos colocar o s do plural, mas

queremos dizer que é um único momento pleno e atuante em toda a sua pujança

em interconexão com outro momento também único. E é isso que constitui o

caminho da vida, a prática do existir, o próprio do Zen. Ainda que seja único, o

momento precisa de outros momentos também únicos.


108

4.6 – Nome e Forma

Buda costumava falar em nome e forma. Um está ligado ao outro, um está

associado ao outro. Sempre que pensamos ou falamos ou escrevemos um nome

imediatamente vem a forma. E vice-versa. Um acompanha o outro. O que é

preciso para a experiência Zen concretizar-se é ultrapassarmos essa dicotomia e

ver que um já contém outro e vice-versa, daí não ser preciso que o nosso

pensamento conceitual e condicionante atue. Vamos deixar que o que tem que ser

mostrado ou evidenciado fale por si e não vamos interferir com o nosso apego à

forma, ao nome, ao conteúdo. O item 4 de Dogen fala:

Sabei que deste modo há infindas formas e


centenas de folhas de relvas por toda a terra e, no
entanto, cada folha de relva e cada forma em si mesma
é a terra toda. O estudo disso é o começo da prática.
Quando estais neste lugar, só há uma folha de
relva, só há uma forma; há entendimento da forma e
nenhum-entendimento da forma; há entendimento da
folha de relva e nenhum-entendimento da folha de
relva. Como não há nada além deste momento, o ser-
do-tempo é todo o tempo que existe. Ser-da-relva, ser-
da-forma, são ambos tempo.
Cada momento é todo ser, é o mundo inteiro.
Refleti agora se qualquer ser ou qualquer mundo é
deixado fora do momento presente7.

Aos poucos Dogen vai cada vez mais adentrando-nos no mistério desse

grande tempo e vamos descobrindo que se ser é tempo, então viver é tempo,

existir é estar imerso nessa grande aventura do tempo que se transforma a cada

instante, a cada momento. Há infinitas formas de tudo quanto existe, aos milhares,
109

aos bilhares, entretanto, ao citar a folha de relva ele fala da união do todo. Essas

infinitas e infindas formas são cada uma de per si, todo um mundo, todo um

universo em si, por si, a parte, completo, único. E há uma frase reveladora do

Caminho zen, quando no final do primeiro parágrafo deste item 4 ele diz: “O

estudo disso é o começo da prática”.

É por aí que começa a prática do Zen-Budismo, nesta identificação. E

quando chegamos a este estágio de compreensão, as infinitas formas deixam de

ser formas e pode ser apenas, uma e única forma, pois esta forma representa a

totalidade das outras formas. E é por isso que ele entra naquele necessário jogo

de palavras, onde aflora a dialética do zen: “entendimento da forma e nenhum-

entendimento da forma”, é porque nesse instante as palavras se mostram

limitadas para evidenciar todo o potencial dessa experiência.

Ultrapassando-se esta dicotomia de nome e forma, de forma e conteúdo

chegaremos à iluminação tão preconizada por Buda, mas o que é iluminação.

Vejamos a colocação de Heidegger para a questão da iluminação.

Na edição de 2006, volume único, pois as anteriores eram em dois tomos,

nas notas marginais do autor, página 542, temos o seguinte: “iluminado – aletéia

(em caracteres gregos) abertura – claridade, luminosidade, iluminar” e há a

indicação que o texto para estes vocábulos encontram-se na página 191. São

sinônimos heideggerianos para essa importante questão que é o todo do Budismo.

Através da iluminação temos um outro ângulo para olhar o mundo. Se algo está

escuro, não muito claro, precisamos de claridade, de luminosidade, precisamos

iluminar o ambiente. Mas vejamos como o pensador alemão se expressa:


110

Numa imagem ôntica, falar de lumen


naturale no homem não indica mais do que a
estrutura ontológico-existencial deste ente, ou
seja, de ser no modo do pre de sua presença.
Ser “esclarecido” significa: estar em si mesmo
iluminado como ser-no-mundo, não através de
um outro ente, mas de tal maneira que ele
mesmo seja a clareira. É para um ente
existencialmente iluminado desse modo que um
ser simplesmente dado faz-se acessível na luz e
inacessível no escuro. A presença sempre traz
consigo o seu pre e, desprovida dele, ela não
apenas deixa faticamente de ser, como deixa de
ser o ente dessa existência. A presença é a sua
abertura8.

É muito boa esta experienciação que Heidegger teve ao tratar do tema da

iluminação. Coincide com aspectos da iluminação que o Buda nos falava, que o

Zen nos propõe. É justamente esse o ponto chave de nossa tese. A iluminação

que Buda obteve, descobriu e investiu no século VI aC, coincide em muitos pontos

com a iluminação que Heidegger alcançou no começo do século XX.

Certamente, este é um dos motivos porque dissemos, em outra parte deste

trabalho, que o pensador da Floresta Negra é visto no Japão, como um Buda, um

Bodhisatva, um ser que atingiu um estado de esclarecimento, de compreensão

das coisas como elas são, independentemewnte dos seus rótulos.

É por isso que um dos capítulos desta tese intitulamos com uma pergunta,

com uma questão: seria também o Buda um pensador originário?

E o Zen, sendo o seu método, o Caminho que o Buda transmitiu, o caminho

de iluminação, é natural que vejamos este método como primordial, ontológico,

ôntico.
111

4.7 – Experiência de união-unidade

Continuemos e vamos adiante com o item 5:

No entanto, uma pessoa comum, que não


entende o darma-de-buda, pode ouvir as palavras o ser-
do-tempo deste modo:
“Por um momento fui três cabeças e oito braços.
Por um momento fui um corpo de dois metros e meio ou
cinco metros. É como ter atravessado rios e escalado
montanhas. Muito embora as montanhas e rios ainda
existam, eu já as ultrapassei e resido agora no palácio
adornado de jóias e na torre escarlate. Essas
montanhas e esses rios estão tão distantes de mim
quanto o céu da terra”.
Não é assim tão simples. No momento em que
as montanhas foram escaladas e os rios atravessados,
estáveis presente. O tempo não é separado de vós e,
como estais presente, o tempo não foge.
Como o tempo não é marcado pelo vir e ir, o
momento em que escalastes as montanhas é o ser-do-
tempo exatamente agora. Se o tempo continua vindo e
indo, vós sois o ser-do-tempo exatamente agora. É este
o significado do ser-do-tempo.
Este ser-do-tempo não traz o momento em que
escalastes as montanhas e o momento em que
residistes no palácio adornado de jóias e na torre
escarlate? Ele não os expele?9.

Dogen quer nos transmitir a sua experiência de união-unidade, essência-

essencialidade com todas as coisas.

No segundo parágrafo, entre aspas, Dogen está falando do senso comum,

das pessoas que têm uma visão metafísica da vida. Quando elas se põem, se

colocam em separado da vida, do todo e das questões circunjacentes, aí

implícitas.
112

O terceiro parágrafo nos fala dos descaminhos, das dificuldades que

encontramos ao longo da vida. Tanto é assim que ele diz “estáveis presente”.

Quando bate o sofrimento não temos como fugir, ainda que talvez queiramos ou

tenhamos vontade. Não adianta fugir, é impossível, nós somos o tempo.

No quarto parágrafo Dogen quer realçar que nós somos, realmente, o

tempo, deste modo quer escalemos montanhas, propriamente ditas, ou

ultrapassemos obstáculos de natureza emocional, financeira, espiritual etc não

podemos nos ligar na ilusão de que o tempo vem e vai, vai e volta. Somos nós que

fisicamente ou mentalmente vamos a algum lugar e voltamos. Nós nos

locomovemos, de fato, ou através do mental ou do emocional, e assim pensamos

que o tempo vai e vem.

No quinto parágrafo Dogen nos faz meditar que nas montanhas, no

ultrapassar dos problemas ou então na paz de espírito de uma mente bem

treinada, que é o palácio adornado somos e continuamos sendo o tempo que jaz

no ser, que reside no Ser.

Neste quinto item Dogen começa falando no darma-de-buda. Ele escreveu

buda minúsculo, o que nos sugere uma pessoa qualquer que tem o potencial de

ser Buda. Um potencial ilumin-ativo que vai ativar o esclarecimento. Darma é o

caminho, é a própria existência ontológica, originária. Como ele escreveu darma

também com letra minúscula e afirma que é uma pessoa que não entende este

método, isso nos leva a ponderar com o item anterior quando Heidegger fala da

iluminação em oposição ao escuro; ou seja, o senso comum está na escuridão,

precisa caminhar muito para chegar à luz.


113

4.8 – Passado, presente e futuro

Vejamos então o sexto item:

Três cabeças e oito braços pode ser o tempo de


ontem. O corpo de dois metros e meio, ou cinco metros
pode ser o tempo de hoje. No entanto, ontem e hoje
estão no momento em que diretamente entrais nas
montanhas e vedes milhares de infindos picos. O tempo
de ontem e o tempo de hoje não fogem.
Três cabeças e oito braços movimentam-se para
a frente como vosso ser-do-tempo. Parecem longe, mas
estão aqui e agora. O corpo de dois metros e meio ou
de cinco movimenta-se para a frente como vosso ser-
do-tempo. Parece perto, mas está exatamente aqui.
Desse modo, um pinheiro é tempo, o bambu é tempo10.

Já vimos que as três cabeças simbolizam o passado, o presente e o futuro

e os oito braços. Esse mistério que a vida nos propõe. Se considerarmos estes

três estágios como sendo nós mesmos veremos que nossos dois braços vezes

estes três momentos, formam seis braços e os dois braços seguintes que

completam oito são os braços de Buda que nos apóia, nos esclarece, nos orienta.

Quando ele diz, no primeiro parágrafo, na primeira linha, que pode ser o tempo de

ontem, significa também o fantasma do passado que nos espreita, pois “três

cabeças e oito braços” é também uma figura mítica, lendária que aterroriza as

pessoas. Justamente o passado que nos cobra “n” coisas a todo instante. Ou

melhor, nos cobramos.

Veja que na linha seguinte, o tempo de hoje quer dizer o Buda. O corpo de

cinco metros é o Buda em pé, o corpo de dois metros e meio é o Buda sentado,

em meditação. Claro, é outra alegoria, outra imagem mítica. Simbolizando a


114

grandeza dos ensinamentos de Sidarta. E essa grandeza de ensinamentos é para

hoje.

Mas apesar de passado e presente, estes tempos estão juntos, não

podemos separá-los, somos nós. Não podemos fugir, nem para a nostalgia do

passado, nem podemos fugir do presente, caso ele seja difícil, temos que

enfrentar, temos que ser, continuar sendo.

No segundo parágrafo do sexto item, Dogen quer dizer que os fantasmas

do passado e a sabedoria do momento presente, personificada em Buda nos faz

seguir adiante, na vida. As duas árvores, pinheiro e bambu são símbolos de

longevidade. Assim, por mais que vivamos estaremos sempre às voltas com esta

dicotomia passado e presente. Mas tudo é tempo, tudo é uma questão de tempo.

Se observarmos bem o estilo de Dogen veremos que ele fala em

montanhas, em picos, em natureza. Em parte muito semelhante a alguns textos de

Heidegger. Já falamos da ligação do pensador com a terra natal, não apenas a

sua cidade de origem, mas entendendo-se esta terra natal como a interação com

a casa, com a morada do ser, com a linguagem. É que a experiência do pensar,

do questionar nos leva a uma interação com a natureza, com o ambiente

circundante.

No dizer de Dogen, “vosso ser-do-tempo” somos nós, entes que

compreendem o ser e nos integramos ao Ser da physis, é por isso que a alusão à

natureza é bem-vinda. Sugere que estamos co-participando com o todo, não

estamos isolados de nada, somos e não somos independentes.


115

4.9 – O fluir do tempo

No sétimo item, temos novamente dois parágrafos:

Não penseis que o tempo apenas foge. Não


vejais fugir como a única função do tempo. Se o tempo
apenas fugisse estaríeis separados do tempo. A razão
pela qual não entendeis claramente o ser-do-tempo é
que pensais no tempo apenas passando.
Em essência, as coisas todas, no mundo inteiro,
estão ligadas umas às outras como momentos. Porque
todos os momentos são o ser-do-tempo, eles são o
vosso ser-do-tempo11.

O primeiro parágrafo nos remete a uma conhecida expressão de que o

tempo está fugindo, quando na verdade não está, o tempo é. Nós é que estamos

fluindo, porque somos um aglomerado, um composto de aspectos psico-sociais,

emocionais, culturais, econômicos, políticos etc. e este ser que somos está

sempre fluindo, está sempre em transformação, por isso temos a impressão de

que o tempo está fluindo. Mas não somos apenas Ser, somos Tempo também, por

isso, com propriedade, Heidegger nos fala em Ser e Tempo e Dogen em Ser-do-

Tempo. E é por isso que é difícil compreender este fluir. Nós somos radicalmente

esses diferentes aspectos externos, mas que têm suas componentes internas.

Somos poético-ontologicamente essas plenitudes enquanto unidade das

diferenças.

O segundo parágrafo nos remete à rede. Somos uma união de momentos,

de instantes, uma sucessão infinita se interligando formando um todo complexo,

cuja melhor imagem é realmente também pode ser uma teia.


116

4.10 - A teia da memória

Ouçamos o que o oitavo item tem a nos dizer:

O ser-do-tempo tem a qualidade de fluir. O que


se chama hoje flui para o amanhã, o hoje flui para o
ontem, o ontem flui para o hoje. E o hoje flui para o
hoje, o amanhã para o amanhã.
Porque o fluir é uma qualidade do tempo, os
momentos do passado e do presente não se
sobrepõem nem se alinham lado a lado. Qingyuan é
tempo, Huangbo é tempo, Jiangxi é tempo, Shitou é
tempo, porque o eu e o outro já são tempo. Prática-
esclarecimento é tempo. Ser borrifado com lama e ficar
molhado de água também é tempo12.

O primeiro parágrafo continua a explicitação do tempo que flui, mas aqui

Dogen coloca uma parte interessante. Talvez, de imediato, podemos pensar que o

tempo apenas flui para a frente, podemos até pensar que o tempo avança e flui

para o futuro, para o amanhã. Mas aqui ele diz que “o hoje flui para o ontem” isto

quer dizer que hoje, pensamos, lembramos e fazemos coisas que têm a ver com

ontem, de onde se deduz, que o tempo é, realmente, uno, pois esta tripartição do

tempo em presente, passado e futuro, quem faz somos nós e, em essência, isso

não existe. Nossa mente vai se lembrar de coisas que fizemos ou deixamos de

fazer ontem e da mesma forma vai projetar coisas para se fazer amanhã e outra

deixarmos de fazer, porque fizemos no passado, fazemos no presente e faremos

no futuro determinadas escolhas. Então, o tempo flui incessantemente como um

continuum.
117

Já o segundo parágrafo deste item oito evidencia que o tempo só é tempo

porque flui, porque passa, porque é impermanente, pois se não fluísse não seria

tempo, se não passasse não seria tempo, se não fosse impermanente não seria

tempo. Em seguida ele cita uma série de nomes próprios, são monges

considerados iluminados na escala búdica. A expressão “Ser borrifado com lama e

ficar molhado de água” significa o ser humano em geral. É porque naquele tempo,

os caminhos, as estradas eram sempre de terra e quando chovia ficavam as

poças de lama e ao se passar pelos caminhos, ficava-se borrifado de lama, mas

quando se chega em casa, ou no destino, o que se vê, o que sente, são as vestes

molhadas, umedecidas e sujas. Por outro, significa também a unidade que

permeia todos nós seres humanos, por mais que nos limpemos, estamos sempre

“sujos” e por isso é importante tomar banho todos os dias, além disso tem o

aspecto da sujeita mental, através dos pensamentos negativos, destrutivos,

violentos etc e a especificidade da água é que nascemos na água, a vida surgiu

com a água, ficamos nove meses, no ventre, em meio à água.

Tempo também é memória e memória também é linguagem. Ao falarmos

de memória não estamos nos reportando a um passado distante, mas a uma face

do tempo presentificada na memória. A memória é uma unidade ontológica, um

todo plural, coletivo que abriga um outro ângulo do tempo.

Para bem esclarecer a questão da memória, vejamos o que nos diz Antonio

Jardim, no capítulo “Os Caminhos da Memória” em sua tese de doutoramento:

A memória, pela abrangência contida em


sua articulação, foi escolhida como ponto de
partida. E é exatamente essa abrangência que se
118

apresenta como capaz de conduzir a memória


para um espaço e um tempo que se permita
transcender sua espácio-temporalidade mais
específica. Assim, é, em última instância, pela
memória, que o ser humano se configura como
um ser passível de constituir mundo, ou melhor,
mundos, na medida em que é pela memória que
se estabelece a possibilidade da vigência da
unidade. A memória é um modo privilegiado de
constituição da unidade e por isso, um modo
privilegiado de consolidação de toda a
possibilidade de relacionamento entre o que foi, o
que é e o que será. Desse modo, é pela memória
que o caos pode se converter em cosmos. É por
meio dela, memória, entre outras coisas, que o
ser humano cria a possibilidade de escapar dos
estreitos limites impostos pela vigência de uma
espácio-temporalidade subjugada por critérios
advindos unicamente de imediatas relações inter-
materiais, e, desse modo, ser capaz de pleitear
vigências espácio-temporais que se configurem a
partir da possibilidade. De uma certa forma, a
memória constitui a possibilidade enquanto
possibilidade. E esta assim constituída, se
apresenta tanto como possibilidade retrospectiva,
quanto como possibilidade prospectiva. As
temporalidades que habitamos são, dessa
maneira, diretamente tributáveis da memória,
pois é com ela e a partir dela que se revelam,
velam e se desvelam13.

O de que Antonio Jardim está nos falando é sobre a força da Memória,

impossível acabar com ela, impossível tentar apagá-la. Pode-se até, por motivos

doentios ou propositais esquecer, entretanto, mesmo assim ela estará presente-

ausente e vice-versa. A memória é a sombra que nos acompanha. Memória é a

unidade. Budisticamente falando não devemos nos prender e perder em

lembranças, em passados, pois aí há dualidade com o que vem a frente, temos

que fluir como bem recomenda o mestre Dogen no texto que destacamos no início

deste item.
119

4.11 – A questão do olhar

Vamos ao item nove:

Embora os pontos de vista de uma pessoa


comum e as causas e condições desses pontos de vista
sejam o que a pessoa comum vê, eles não são
necessariamente a verdade da pessoa comum. A
verdade manifesta-se apenas para o ser-do-tempo
como pessoa comum. Porque pensais que vosso tempo
ou vosso ser não são verdades, acreditais que o corpo
dourado de cinco metros não é vós.
No entanto, vossas tentativas de escapar de ser
o corpo dourado de cinco metros não são mais do que
insignificâncias do ser-do-tempo. Aqueles que ainda
não o confirmaram devem examinar isso
profundamente. As horas do Cavalo e da Ovelha, que
agora estão ordenadas no mundo, percebem-se por
subidas e descidas do ser-do-tempo a cada momento.
O rato é tempo, o tigre é tempo, os seres sencientes
são tempo, os budas são tempo14.

Identificamos em Dogen um estilo poético, na forma de prosa. Poesia pura

e por isso, altamente filosófica. Os textos falam por si.

No primeiro parágrafo vemos a questão do olhar, cada um olha de uma

forma, mediante os seus condicionamentos, educação e formação. Mas esta

“verdade” é só dessa pessoa, ela não pode, não deve, não é recomendável,

arbitrar como sendo norma para os demais. Dogen fala aqui também sobre a

questão da dualidade, da divisão, da dicotomia. Temos a tendência de nos

acharmos separados das coisas, isolados e assim temos dificuldade de ver o uno,

a unidade na diversidade.
120

No segundo temos um esclarecimento a fazer: na antiguidade da Ásia

budista, o dia completo era dividido em 12 horas, 6 para o dia e 6 para a noite,

mediante o nascer e o pôr-do-sol. A duração das horas variava, dependendo da

época do ano. As horas eram representadas por animais, signos zoológicos.

Conta a lenda que, belo dia, o Buda resolveu fazer uma festa e convidou

todos os animais da floresta, visto que, ele morou seis anos na floresta, antes da

iluminação e mesmo após atingir este estado-estágio de interiorização, ele

passava longos períodos nas florestas. Mas, apesar de todos os animais terem

sido convidados, só doze apareceram, então, como prêmio, cada um recebeu um

signo astrológico e também a guarda da hora, de um tempo, de um período do dia.

Compareceram o rato, o boi, o tigre, a lebre, o dragão, a cobra, o cavalo, a ovelha,

o macaco, o galo, o cachorro e o javali. A hora do rato fica aproximadamente entre

as 11 da noite e a uma da manhã. A hora do cavalo equivale às 7 horas da manhã

e a hora da ovelha é a oitava.

Na antiguidade, por volta das 7 horas, retiravam os cavalos do estábulo

para iniciarem o dia de trabalho e as oito horas levavam as ovelhas para o campo,

para o pasto, daí a referência à hora da ovelha. Quanto à hora do rato, deduz-se

que a partir das 23 horas, quando todos já dormiam e lamparinas apagadas, os

ratos saiam de seus esconderijos e faziam a festa nas sobras de alimento ou nos

depósitos.

A indicação de “subida e descida do ser-do-tempo” simboliza a percepção

através da meditação, pois uma das técnicas da prática zen consiste em observar

a respiração através da subida e descida do abdômen, com isso a pessoa vai


121

desenvolver a atenção e tendo atenção vai ter a percepção de cada momento, de

nossa vida e do tempo que flui, de nós que também fluímos.

Ao escrever buda com letra minúscula, Dogen está dizendo que toda

pessoa, independentemente de ser budista ou não, é um buda em si, em

potencial, no âmbito primordial, na essência, no originário.

É preciso também entender a época em que Dogen nasceu e viveu, o país

e o seu meio ambiente. Nós, aqui no Ocidente, hoje, em 2007, temos, às vezes,

dificuldade em ouvir isto, que todos são budas, mesmo não sendo budistas. É que

estamos, por demais, condicionados com a influência do pensamento cristão no

Brasil, nada contra e estamos abordando a temática com todo o respeito e

reverência que requer a matéria.

Mas é preciso pensar que Dogen nasceu e se criou nos primeiros 53 anos

do século XIII. Assim, a palavra buda equivalia ao conceito que se tem hoje no

Ocidente de Deus. E foi neste contexto que Eihei Dogen viveu, trabalhou, meditou

e escreveu.

Ao falar em animais ele está querendo dizer que “budisticamente falando”

não somos separados dos animais. Estamos também interagindo com eles. Eles

também estão presentes em nossas vidas, fazem parte de nossas existências,

estão presentes em nossas memórias e nos ajudaram a construir a civilização que

somos hoje. Quer como animal de carga, quer como alimento, quer como veículo.

Para o budista, todo ser que respira tem um potencial de buda, de

iluminação. Potencial esse que um belo dia pode despertar. Aqui estamos no

plano dos mitos: seres humanos, reino vegetal, reino mineral e reinos invisíveis.
122

4.12 – A prática completa

Vamos ao item 10:

Neste momento esclareceis o mundo inteiro com


três cabeças e oito braços, esclareceis o mundo inteiro
com o corpo dourado de cinco metros. Realizar
completamente o mundo inteiro com o mundo inteiro é
chamado prática completa.
Realizar completamente o corpo dourado –
despertar a mente que-busca-o-caminho, praticar,
atingir o esclarecimento e entrar no nirvana – nada mais
é do que ser, nada mais é do que tempo15.

O primeiro parágrafo quer nos dizer que a prática completa do zen é aquela

que está inserida no mundo. Seria mais ou menos o seguinte: a missão de cada

praticante é transmitir o darma, o ensinamento, o caminho.

O segundo parágrafo completa o primeiro e significa que ser no mundo, ser

no tempo é ser ser-e-tempo, que somos nós no dia-a-dia com nossas buscas,

nossas idas e vindas pelos caminhos da vida. Com a prática da meditação e

trilhando o Caminho zen queremos entrar no nirvana, mas este item nos diz que

entrar no nirvana e não entrar no nirvana é a mesma coisa. É a dialética do zen.

Não há separação entre atingir o esclarecimento e não atingir. Contudo, é preciso

compreender bem esta afirmativa para não se cair no senso comum.

Vemos neste item o círculo hermenêutico. Observem que Dogen parte da

imagem questão mitológica de Buda: as três cabeças que representam o passado,

o presente e o futuro. Depois os oito braços que são os pontos cardeais e

colaterais e que aconchegam, protegem e consolam, e chega ao buscador, ao

praticante, ao ser-do-tempo, que somos nós.


123

4.13 – Além dos conceitos e dicotomias

Vamos ao item 11:

Realizar exatamente todo o tempo como todo


ser; não há nada extra. Um chamado ‘ser extra’ é
completamente um ser extra. Assim, o ser-do-tempo
metade realizado é metade do ser-do-tempo
completamente realizado, e um momento que parece
estar faltando é também um ser completo. Do mesmo
modo, até mesmo no momento anterior ou posterior ao
momento que parece estar faltando, o ser-do-tempo
também é completo-em-si-mesmo. Vigorosamente
conformando-se a cada momento está o ser-do-tempo.
Não o confundais equivocadamente com um não-ser.
Não o declareis forçosamente como um ser16.

O que Dogen tenta mostrar neste item 11 é que o ser-do-tempo não está

limitado a conceitos de existência ou não-existência. Entrar nestes conceitos é

entrar na dicotomia e a proposta do Zen é evitar a dualidade doentia divisionista.

O parágrafo acima é também um grande ensinamento do Buda. Não devemos

considerar um ser, uma pessoa, como um ser pela metade, pois ele contém em si,

todas as possibilidades de esclarecimento, de iluminação, de experienciação da

plenitude do um múltiplo total. O texto acima nos revela o grande princípio do zen

que não há nada faltando, não há nada nos faltando. Mais do que uma

compreensão, aqui é importante vivenciar dialeticamente o sentido, o significado.

De fato, como entender isto a não ser originariamente? Não está nos

faltando nada, em nenhuma área e, paradoxalmente, nos falta tanto. Em uma

leitura apressada, pode-se até pensar em alienação, mas este é um enigma, um

koan, uma questão.


124

4.14 – O que é o tempo

Vamos ao item 12:

Podeis supor que o tempo está apenas passando


e não entender que o tempo jamais chega. Embora o
próprio entendimento em si mesmo seja tempo, não
depende de sua própria chegada.
As pessoas apenas vêem o tempo vir e ir e não
entendem completamente que o ser-do-tempo
conforma-se a cada momento. Assim sendo, quando
podem eles penetrar a barreira? Mesmo que as
pessoas reconheçam o ser-do-tempo em cada
momento, quem pode dar expressão a este
reconhecimento? Mesmo que possam fazer isso por um
longo tempo, quem poderia deixar de procurar a
percepção da face original?
De acordo com o ponto de vista que as pessoas
comuns têm do ser-do-tempo, mesmo o esclarecimento
e o nirvana, assim como o ser-do-tempo, seriam
meramente aspectos do vir e ir17.

O que é o tempo? Por um lado é um grande enigma. Nós somos o tempo,

nós fazemos o tempo, nós fazemos parte do tempo. Ser do tempo, ser o tempo, o

tempo é ser.

O primeiro parágrafo é bem esclarecedor. Nós estamos sempre com

ansiedade, querendo realizar coisas, as mais diversas, por vezes nos cobramos e

assim Dogen escreve dialeticamente: o tempo não passa e jamais chega. E,

sempre temos a impressão de que ele está passando, estamos sempre ansiosos

pelo novo, para que este novo apareça logo ou se é o caso de termos medo de

alguma coisa, que este novo desapareça e não volte mais.


125

No segundo parágrafo, a dialética continua e a última linha nos fala em face

original. É uma referência a um famoso koan, a um enigma que o zen propõe,

para descobrirmos a nossa face original, a nossa face primeva, isenta de

condicionamentos.

O terceiro parágrafo fala nos aspectos do vir e ir. É uma referência sobre a

meditação andando, sobre o que estamos fazendo no dia a dia, sempre indo e

vindo, e o tempo sempre fluindo. Se tivermos suficiente atenção poderemos ter a

percepção do que o texto nos diz.

Perguntamos no título deste item, o que é o tempo? Não colocamos sinal

de interrogação no final porque o título também pode ser uma constatação, uma

esclamação. O que é o tempo, quem faz o tempo, um constante enigma, um koan

como diriam os estudiosos Zen. Uma das grandes questões que envolvem o

tempo é o tema da finitude. O completo desconhecido, o que fazer com esse

engima, qual a saída? Muitas vezes, os estratagemas dos mestres zen apelam

para a ironia ao tentar esclarecer questões mais complexas.

Valemo-nos das palavras de Ronaldes de Melo e Souza para falar sobre

isso:

À finitude radical ou carência congênita do


homem, que o faz participar do duplo domínio do
ser e do não-ser ou da vida e da morte,
corresponde a linguagem poética da ironia, que
não fala nem cala, mas assinala sempre no que
não se pode dizer. Diálogo perpétuo da palavra e
do silêncio ou do dizível e do indizível, a
linguagem da poesia é uma ironia permanente.
Suscitação órfica do silêncio excessivo, o ritmo
poético é uma mediação eterna do dito e do não-
dito18.
126

A ironia, o humor é um traço marcante em muitos textos Zen. É que há

momentos em nossa vida que o melhor que se tem a fazer é através do humor,

por exemplo, no caso de palhaços e humoristas que propõem saídas, que para

outros parecem situações ridículas. Tudo isso para falar, como bem diz Ronaldes,

da “finitude radical ou carência congênita do homem”. Buda abordou esse tema

de forma semelhante.

Sidarta falou, no século VI aC da dor, do sofrimento humano, da angústia,

quando, por “n” motivos nos apegamos às coisas, pessoas e situações. Temos de

conviver com esta finitude. É impossível nos livrarmos dela; talvez só em duas

situações conseguimos, aparentemente, ultrapassá-la. Sendo a arte e sendo o

sagrado. Sendo a arte, Ronaldes cita o caso da poesia e o outro lado é o sagrado

que Heidegger também fala. O “diálogo perpétuo “ do texto acima é o entremear-

se da arte nas entre-palavras da rede-vida, ou rede-via-travessia.

Podemos observar no primeiro parágrafo do texto de Dogen que há uma

certa dose de humor. Ele evidencia a contradição perene, na verdade que é o

tema da morte e da vida de que nos fala Ronaldes. Em um texto budista, Sidarta

afirma que ele deixou o Palácio, viveu seis anos na floresta para compreender,

justamente esse grande engima. Heidegger foi outro pensador que compreendeu

logo essa grande inquietude do homem e tratou de colocar como destaque em sua

vasta obra.

Mas o que o Zen tenta nos mostrar é que a experiência da morte pode ser

uma experiência libertadora, tanto para quem fica, como para quem vai. E com

estes termos, estamos vendo este momento supremo, dar morte, sagrado, como

algo artístico, poético, inovador.


127

4.15 – Não-fazer fazendo

Vejamos o texto nº 13:

O ser-do-tempo é inteiramente percebido sem


ser preso em redes ou gaiolas. Os reis devas e os seres
celestiais que aparecem à direita e à esquerda são o
ser-do-tempo de vosso completo esforço exatamente
agora. O ser-do-tempo de todos os seres pelo mundo
todo, na água ou na terra, é apenas a realização do
vosso completo esforço exatamente agora. Todos os
seres de todas as espécies, nos domínios visíveis e
invisíveis, são o ser-do-tempo realizado pelo vosso
completo esforço, fluindo graças ao vosso completo
esforço.
Examinai cuidadosamente este fluir; exatamente
agora, sem o vosso completo esforço nada seria
realizado, nada fluiria19.

O budismo fala muito em perseverança, em esforço correto, assim, este

item 13 nos dá esse recado. Somos fruto de um esforço correto positivo em

respirar, em alimentar-se, em muitas outras coisas. Desde criança estamos

fazendo esforço, mas este esforço é um não-fazer fazendo, é um esforço que flui

ao sabor do tempo e nós com ele.

A indicação sobre “reis devas e os seres celestiais” refere-se a algumas

estátuas e pinturas apresentando o Buda com seres de outras dimensões em sua

volta. Com isso, Dogen está nos propondo que o esforço do momento, aqui e

agora é completo, incluindo as dimensões míticas; e isso, ou seja, esse todo

abrangente, muito irá ajudar, em termos de méritos espirituais, abrindo horizontes

interiores para a realização, isto é, para a iluminação.


128

4.16 – O Fluir da Primavera, dentro de cada um

Passemos ao texto 14:

Não penseis que o fluir seja como o vento e a


chuva movimentando-se de leste para oeste. O mundo
todo não é imutável, não é inamovível. Flui.
O fluir é como a primavera. A primavera, com
todos os seus inumeráveis aspectos, é chamada de
fluir. Quando a primavera flui não há nada fora da
primavera. Estudai isso cuidadosamente.
A primavera flui invariavelmente através da
primavera. Embora o fluir em si mesmo não seja a
primavera, o fluir ocorre durante toda a primavera.
Assim, o fluir completa-se exatamente no momento da
primavera. Examinai isso com atenção, vindo e indo.
Em vosso estudo do fluir, se imaginais que o
objetivo está fora de vós mesmos e que fluis e vos
movimentais através de centenas e milhares de
mundos, por centenas, milhares e infindos éons, não
estudastes com dedicação o caminho de buda20.

Este item 14 nos lembra o tema da rede, do fluir como um todo. O primeiro

parágrafo está nos falando de movimento, do dinamismo que caracteriza a vida.

O segundo parágrafo nos remete ao todo, ao microcosmo no macrocosmo.

Quando a primavera flui, flui tudo junto que está com ela, a estação da primavera

não está separada de nada. A primavera é um todo, assim, nada está fora dela. O

tempo todo e tudo o mais está integrado na primavera, quando ela está fluindo,

mas depois passa.

O terceiro parágrafo, muito bonito, nos faz compreender o que flui. É a vida,

é o tempo, é o ser. É o princípio vital. Nesse instante não se podem desmembrar


129

os elementos, não se pode desmembrar a vida. Há um todo em união, em

comunhão, um todo integrado.

Por fim, o quarto parágrafo esclarece, justamente, essa união. É o

ecossistema, a rede, não estamos separados de nada, pois na vida nada se

separa, nem com a morte. Pode haver distanciamento físico, emocional,

psicológico e outros, mas, nem a morte nos separa, visto que, ao morrer, vamos

para outra dimensão, continuamos vivos em outra dimensão. E quanto ao corpo,

mesmo se decompondo no cemitério, vai adquirindo novas formas de vida através

de larvas, insetos, germens etc.

Muito interessante a colocação de Dongen quando ele escreve, no quarto

parágrafo: “o vosso estudo do fluir”, é que ele via a vida como uma forma de

estudar, como uma forma de aprender, como uma forma de vivenciar o Zen e,

portanto, o Budismo. Ele dizia que a vida era de estudo e viver é estudar o

Budismo e estudar o Budismo é esquecer de si mesmo. Com isso ele estava

justamente falando da renúncia, do desapego de que tratamos linhas atrás, que

Heidegger também nos ajudou com as suas colocações de aceitação da vida

como ela é.

Ao abordarmos o tema da morte, não se trata de pessimismo, niilismo ou

algo semelhante, é que o Zen nos mostra a vida, a inevitável chegada do final da

finitude, a qualquer momento, sem avisar e sem que estivéssemos esperando.

Para este grande momento a arte nos ajuda muito, a poesia idem, o zen também.

E vamos então, ter a constatação de que vamos continuar fluindo. Como sempre,

aliás, vimos fluindo.


130

4.17 – Permitir e não-permitir

Vamos ao item nº 15, é um pouco extenso, mas fazemos questão de

transcrevê-lo na íntegra, visto que, certamente, é a primeira vez que “O ser-do-

tempo”, de Dogen é citado em uma tese acadêmica no Brasil, até prova em

contrário:

O grande Mestre Hongdao, do Monte Yao


(Yaoshan), instruído por Shitou, o Grande Mestre Wuji,
foi uma vez estudar com o Mestre Zen Daji, de Jiangxi.
Yaoshan perguntou: “Tenho familiaridade com o
ensinamento dos três veículos e com as doze divisões.
Mas qual é o significado do Bodidarma vir do oeste?”
O Mestre Zen Daji replicou:
Pelo ser-do-tempo, permitir que ele levante suas
sobrancelhas e pisque.
Pelo ser-do-tempo, não permitir que ele levante
suas sobrancelhas e pisque.
Pelo ser-do-tempo, permitir que ele levante suas
sobrancelhas e pisque é correto.
Pelo ser-do-tempo, permitir que ele levante suas
sobrancelhas e pisque não é correto.
Ouvindo estas palavras, Yaoshan experienciou
grande esclarecimento e disse para Daji: “Quando eu
estudava com Shitou, era como um mosquito tentando
morder um touro de ferro”.
O que Daji disse não é o mesmo que as palavras
dos demais. As “sobrancelhas” e os “olhos” são
montanhas e oceanos porque montanhas e oceanos
são sobrancelhas e olhos. “Permitir que levante as
sobrancelhas” é ver as montanhas. “Permitir que
pisque” é entender os oceanos. A resposta “correta” lhe
pertence e ele é ativado por permitir-lhes que levante as
sobrancelhas e pisque. “Não é certo” não significa não
permitir que levante as sobrancelhas e pisque. Não
permitir que levante as sobrancelhas e pisque não
significa que não é correto. Tudo isso é igualmente o
ser-do-tempo.
Montanhas são tempo. Oceanos são tempo. Se
não fossem tempo, não haveria montanhas nem
131

oceanos. Não penseis que as montanhas e os oceanos


aqui e agora não são tempo. Se o tempo for aniquilado
as montanhas e os oceanos também o serão. Como o
tempo não é aniquilado, montanhas e oceanos não são
aniquilados.
Assim sendo, aparece a estrela da manhã,
aparece o Tathagata, aparece o olho, e aparece o
erguer uma flor. Cada um é tempo. Se não fosse tempo,
assim não poderia ser21.

No primeiro parágrafo temos a citação de nomes históricos, para introduzir

o contexto.

No segundo parágrafo, os três veículos constituem a forma tradicional como

o Budismo é estudado: o ramo ortodoxo Theravada, a chamada Escola dos

Antigos ou dos Anciãos, também conhecida como Hinayana ou Pequeno Veículo,

mas este chamado pequeno veículo não é depreciativo, mas sim, tem o sentido de

pequeno no que se refere ao interior, é uma escola muito introspectiva; depois tem

o ramo liberal chamado Mahayana, do qual faz parte o Zen; o Mahayana é

conhecido como o “Grande Veículo”, pois ele é abrangente, grande no sentido

ontológico. Grande no sentido em que a physis é grande e abrangente, tudo

abarca; e por fim o Vajrayana ou Veículo do Diamante, que é o conhecido

budismo tibetano. As 12 divisões são a forma como as escrituras budistas são

agrupadas para o estudo. Em outro capítulo vamos ver mais detalhadamente

estas 12 divisões. A pergunta “Qual o significado de Bodidarma vir do oeste?” É

uma clássica pergunta, espécie de treinamento que os monges e mestres faziam

para averiguar, aferir até que ponto, aquele que estava ouvindo tinha, de fato,

conhecimento do zen.
132

A pergunta quer, mais ou menos dizer: “Para que serve o Zen?” É que

Bodidarma foi o monge nascido no Sri Lanka que introduziu o Zen na China, como

já vimos, tornando-se assim, o 28º Patriarca do Zen naquele país, vir do oeste é

porque, ele foi da Índia para a China e a Índia está a oeste da China.

Vejamos a resposta de Daiji. Quando ele fala em levantar as sobrancelhas

está se referindo à prática da meditação e ao próprio Sidarta. Lembra o início do

Zen quando ele ergueu uma flor, no mais absoluto silêncio e ninguém entendeu,

ficando também em silêncio. Só um único monge, chamado Kasyapa é que

entendeu o ensinamento. E ao entender, sorriu em silêncio. Portanto, mais uma

vez verificados que o zen nasce e permanece com o enigmático silêncio.

Interessante a afirmação de que sobrancelhas e olhos são as montanhas e

oceanos. Podemos, poeticamente, comparar as sobrancelhas que estão no alto do

rosto com “montanhas” e os olhos com “lagos” porque estes, constantemente

estão imersos no líquido lacrimal.

Vamos assim, chegando a conclusão que tudo o que existe é tempo, a

partir da leitura zen das montanhas, oceanos, flor etc.

Mas, observemos bem. Se no início dos itens, Dogen nos diz que nós

somos ser-do-tempo, nós somos seres-do-tempo, nós somos senhores-do-tempo,

só que nem sempre, na verdade, raramente temos consciência disto o que ele

quer dizer com esta passagem é que se sobrancelhas e olhos são montanhas e

oceanos é porque nós, seres humanos, somos o rosto da Terra. E aqui a

integração é total, somos, realmente, todos um. E um belo dia, quem sabe,

quando tivermos consciência plena desse estado, podemos vivenciar experiências

primordiais, originárias, no dia-a-dia.


133

4.18 – A limitação das palavras

Continuando, vamos ao texto 16:

O mestre Zen Guixing, da Prefeitura de She, é o


herdeiro de Shoushan, um descendente do darma de
Linji. Um dia ele ensinou à assembléia:
Pelo ser-do-tempo a mente chega, mas não as
palavras.
Pelo ser-do-tempo chegam as palavras, mas não
a mente.
Pelo ser-do-tempo chegam ambos, a mente e as
palavras.
Pelo ser-do-tempo nem mente nem palavras
chegam.
Ambas, mente e palavras, são o ser-do-tempo.
Ambos, chegar e não-chegar, são o ser-do-tempo. Se o
momento de chegar ainda não apareceu, o momento de
não-chegar está aqui. A mente é um burro, as palavras
são um cavalo. Já-ter-chegado são palavras e não-ter-
saído é mente. Chegar não é vir, não-chegar não é
“ainda não”22.

Esse trecho parece o mais enigmáticos dos itens até agora vistos, mas

serve para verificarmos que mente e palavras estão intrinsecamente ligados. A

mente, repositória sagrada dos pensamentos, conforme o budismo, manifesta-os

através de palavras, mas nem sempre encontramos palavras para traduzir, falar o

que a experiência nos proporcionou. Por exemplo, como explicar a experiência de

que o açúcar é doce e o sal é salgado? O zen fala muito na limitação das

palavras.

A afirmação de que a mente é um burro, significa que o animal chamado

burro, por não ter o pensamento intelectual, simboliza que a mente dessa pessoa

está livre desse pensamento aprisionante, pois o intelecto acaba sendo uma
134

limitação, um apego e a proposta do zen é nos libertarmos dos conceitos, do

pensamento discursivo que o intelectualismo propõe.

A imagem-questão de que as palavras são cavalos evidencia que, os

cavalos precisam ser conduzidos, orientados. São instrumentos, veículos,

possibilidades que nos ajudam a esclarecer a mensagem que queremos, a

comunicação que queremos transmitir.

E qual é a comunicação que, nesta tese, queremos transmitir? Na verdade

é um diálogo. O diálogo entre Oriente e Ocidente. O diálogo entre o pensamento

de Heidegger e o pensamento budista. Vejamos, sobre este assunto, uma

interessante colocação do pensador da Floresta Negra.

Quem hoje em dia se aventura,


questionando, refletindo e assim já agindo em
corresponder à profundeza de curso do abalo do
mundo que sofremos a cada hora, não deve,
apenas levar em conta o domínio do mundo de
hoje pela vontade de conhecer, próprio da
ciência moderna. Deve, também e sobretudo,
pensar que qualquer meditação sobre o sentido
do que hoje é e está sendo só poderá surgir e
prosperar num diálogo de pensamento com os
pensadores gregos e sua linguagem, capaz de
lançar suas raízes no solo de nossa Pre-sença
histórica. É um diálogo que ainda está esperando
para começar. Trata-se de um diálogo que mal
se acha preparado mas que, para nós, se torna
uma condição prévia do diálogo inevitável com o
mundo do Extremo Oriente23.

Altamente revelador o final deste parágrafo para a nossa tese. Precisamos

então continuar estudando e pesquisando os pensadores gregos. Certíssimo !


135

Mas, segundo o pensador alemão, qualquer reflexão, qualquer meditação “só

poderá surgir e prosperar” num diálogo de pensamento com os pensadores

gregos e sua linguagem. Perfeito, concordamos plenamente, pois é a base do

pensamento ocidental, mas é bom não esquecermos o outro lado, pois, em

tempos de globalização, o outro lado , o outro hemisfério, o Oriente, sempre

existiu. Mas o homem no seu antropocentrismo esqueceu que existe o outro lado

do planeta e esse outro lado também pensa. E por isso, sabiamente, nesse

parágrafo, Heidegger toca fundo na questão: primeiro é o diálogo com os

pensadores originários gregos que ainda está caminhando de forma incipiente,

está engatinhando, vamos dizer assim de forma mais coloquial.

Mas, não devemos esquecer que este diálogo com a filosofia grega é a

“condição prévia” para que nos aproximemos do “diálogo inevitável”. Ou seja, não

tem jeito, mais cedo ou mais tarde, e é bom que seja agora, e é isto o que

estamos fazendo nesta tese, iniciando o diálogo com o pensamento asiático. É a

esclarecedora última linha do parágrafo. O diálogo inevitável é “com o mundo do

Extremo Oriente”.

Extremo Oriente é o mundo onde o pensamento budista está presente há

milênios, desde os tempos dos pensadores gregos que Heidegger nos orienta a

estudar. Geograficamente falando, Extremo Oriente é o Japão, a China e a Coréia.

Mas como, neste mundo, nada está isolado e vivemos entre-redes, ao falarmos de

budismo, precisamos lembrar suas raízes na Índia.

Portanto, sentimo-nos respaldados não apenas por este parágrafo, mas

também por outras passagens que aos poucos vamos citando.


136

4.19 – Heideggerologia, Heideggerosofia

Até prova em contrário, os vocábulos ainda não existem, e se alguém já

pensou em um ou em outro termo, ou nos dois, ainda não registrou através de

publicação e também, os termos não foram dicionarizados. São neologismos que

estamos criando para estudar melhor, tentar compreender o complexo

pensamento do Mestre da Floresta Negra. O pensador alemão, realmente, foi um

mestre na arte de criar neologismos e assim estamos criando dois.

Heideggerologia é a ciência que estuda a vida e a obra de Martin

Heidegger. E verificar quais outras possível ciências estão abertas para estudar o

seu pensamento. E verificar se é possível. Heideggerosofia é a parte da filosofia

que estuda o pensamento de Heidegger. Quando estavávamos escrevendo este

parágrafo, pesquisamos na internet, mas os dois termos, de fato, ainda não

existem. Quem sabe, é provocação demais... mas, convenhamos, uma inusitada

provocação acadêmica.

O intróito acima é importante para prosseguirmos e chegarmos ao texto 17:

Assim é o ser-do-tempo. Chegar é esmagado por


chegar, mas não por não-chegar. Não-chegar é
esmagado por não-chegar, mas não por chegar. A
mente esmaga a mente e vê a mente, as palavras
esmagam as palavras e vêem as palavras. Esmagar
esmaga o esmagar e vê o esmagar. Esmagar não é
senão esmagar. Isto é tempo.
Como o esmagar é causado por vós, não há
esmagar que seja separado de vós. Assim, saís e
encontrais alguém. Alguém encontra alguém. Vós vos
encontrais a vós mesmos. Sair encontra sair. Se esta
não for a realização do tempo, assim não pode ser24.
137

O primeiro parágrafo nos remete à prática da meditação, visto que a mente

pode ser identificada como uma câmera que vai “filmando” um pensamento, um

sentimento, uma emoção sem interferir. Sendo silenciosa a câmera faz todo um

trabalho de gravação, de arquivo, de documentação. Recomenda-se ao praticante

de meditação que observe, sem interferir, os pensamentos, sentimentos, emoções

etc. Isso é o que se chama estar no aqui e no agora, no presente, na atualidade.

Por isso o texto de Dogen esclarece uma das funções de nossa mente que é ter

essa capacidade de sair de si e observar a si mesma.

O segundo parágrafo confirma o que vimos dizendo neste capítulo. Nada

está separado de nada. Estamos juntos, unidos, co-participantes, interagindo

nesta trama da vida, nesta teia, nesta rede. Não podemos fugir de nossa vocação

coletiva.

Dogen também gostava de criar os seus neologismos. Parece que criar

neologismo é próprio dos pensadores originários porque eles estão falando do real

que, muitas vezes, é difícil de explicitá-lo. Esmagar para Dogen tem o sentido de

impedimento, isto é, de acobertar, de cobrir, de proteger, ou seja, é aquilo que

separa os nossos olhos e a nossa experienciação do real e o grande enigma, no

caso, é ter a consciência de que se é um com o real, com a physis ou está-se

distante, fora dessa vivência. Está, portanto, como que esmagado pelo peso dos

condicionamentos, dos conceitos, não está livre, não está solto, por isso é que é

um impedimento, é como se tivesse uma venda nos olhos escurecendo a visão,

atrapalhando o ver.
138

4.20 – O ponto fundamental

Vamos ver agora o item 18:

A mente é o momento de realizar o ponto


fundamental; palavras são o momento de ir além,
abrindo a barreira. Chegar é o momento de abandonar
o corpo; não-chegar é o momento de ser um
exatamente com isto, enquanto se é livre exatamente
disto. Desse modo, deveis empenhar-vos em realizar o
ser-do-tempo25.

Este parágrafo é uma poesia. Vamos reescrevê-lo em versos e assim tentar

compreender sua mensagem, vamos ver o que estes versos têm a nos dizer:

“A mente é o momento de realizar o ponto fundamental;


palavras são o momento de ir além, abrindo a barreira.
Chegar é o momento de abandonar o corpo;
não-chegar é o momento de ser um exatamente com isto,
enquanto se é livre exatamente disto.
Desse modo, deveis empenhar-vos em realizar o ser-do-tempo”.

A mente é o tempo, sendo tempo, é nesse instante, em que se entende, se

vivencia isso que encontramos o ponto fundamental, o preciso aqui e agora, o

ponto essencial e originário. As palavras manifestam, rompem os obstáculos,

constituem o meio para irmos além, abrindo horizontes e barreiras. O terceiro

verso é uma lição budista do desapego. Ao chegarmos onde queremos, ao

conseguirmos o que queremos, é preciso atenção, cuidado e maturidade para não

se apegar, o abandonar o corpo significa renúncia.


139

Mas, questiona Dogen, o que é chegar em uma meta, se há um não-chegar

e é nesse instante que devemos ser um com as coisas, ora, se somos um com as

coisas, somos um com isto, com aquilo, com etc. E na medida em que, por sermos

livres, renunciamos ao tradicional apego de qualquer coisa, estamos libertos para

sermos originários. E o último verso é um estímulo para continuarmos na prática

do caminho.

E o que é ponto fundamental? Qual é o ponto fundamental?

O ponto fundamental é agora, é o aqui, o momento, imanente,

transcendente, que não está longe, mas está no cotidiano. Isso é muito

importante, pois o senso comum tem a impressão que o imanente, o

transcendente está longe, distante, inacessível. O ponto fundamental é a mente

porque sem ela não vivemos. Entretanto, não a mente dispersa, a mente

metafísica que dualiza, discrimina, não unifica. O ponto fundamental é a mente

originária, a mente primordial de que os textos zen nos falam. Precisamos

descobrir a nossa face originária, precisamos ouvir o som primordial, precisamos

ver com olhos primevos.

Na poesia em questão, os versos três e quatro, nos falam do princípio

fundamental budista que é o tema do desapego. Mas observe que ter ou não ter

não é problema para o ensinamento do Buda. No verso três “chegar” nos fala

diretamente da renúncia, qualquer que seja ela, renúncia, aceitação da vida como

ela é. No quarto verso, esta renúncia continua de forma ontológica, mesmo que a

pessoa não consiga aquilo que ela quer, Dogen afirma que o momento de “ser

um” e isto vai-nos levar à libertação, a realizar o ser-do-tempo que somos.


140

4.21 – Todo fim é seguido de um novo começo

Por fim, vejamos o último item, o 19. Mas é o último mesmo? Nesta

seqüência, nesta série, no texto de Dogen, sim, mas o que queremos questionar é

porque ele escreveu 19 itens e não 20 ou 18 ou outro número? Há uma razão de

ser para especificamente ser 19 itens? Por um lado podemos ver que ele foi

explicitando, vivenciando, dialogando e eis que chega ao 19. Ou seja, o assunto

esgotou. Já não há nada mais a falar. O texto calou-se e agora é silêncio.

Intitulamos este último item do capítulo quatro com um adágio muito comum no

Zen. É que a vida não há começo nem fim, é um constante fluir. Por isso não há

fim, não há início, há o fluir ad aeternum.

Vejamos, então, o item 19:

Os antigos mestres desse modo proferiram estas


palavras, mas não há nada mais para dizer?
Mente e palavras chegando “em separado” são o
ser-do-tempo.
Mente e palavras não chegando “em separado”
são o ser-do-tempo.
Dessa maneira, deveis examinar o ser-do-tempo.
Permitir que levante as sobrancelhas e pisque é
“meio” ser-do-tempo.
Permitir que levante as sobrancelhas e pisque é
o ser-do-tempo “ausente”.
Não permitir que levante as sobrancelhas e
pisque é “meio” ser-do-tempo.
Não permitir que levante as sobrancelhas e
pisque é o ser-do-tempo “ausente”.
Assim, estudar cuidadosamente, vindo e indo, e
estudar cuidadosamente, chegando a não-chegando, é
o ser-do-tempo deste momento26.
141

O primeiro parágrafo pode nos dar a entender que o texto talvez não seja

de Dogen, se bem que estudiosos garantem que é dele. Note que ele diz que os

antigos mestres “proferiram estas palavras”. Contudo, o estilo contraditório é

realmente de Dogen. Essa aparente contradição, como já vimos, é no intuito de

despertar naquele que lê ou que ouve os diálogos citados a experiência do satori.

O próprio Dogen questiona “Não há nada mais para dizer?” E ele escreve

isso porque as palavras chegavam aos borbotões à sua mente. Nossa dedução é

que as palavras chegavam afloravam à superfície de sua mente, em separado e

em união, ou seja, de forma originária, ontológica e de forma que ele chama “em

separado”. Talvez de forma dual. Mas ele, com sabedoria sabe discernir e verificar

que sendo ser-do-tempo a consciência plena é que importa e esta vê as palavras

chegando. É isso, as coisas nos vêm à mente, nos vêm à superfície de nossa

existência. Estando atentos, temos condições de estudar o todo circundante,

temos oportunidade de nos estudar, de nos ouvir, de nos auscultar, de nos

averiguar. E Dogen frisa, estudar cuidadosamente, estudar com cura, com

cuidado, com atenção. Estudar-se e assim vamos compreender que a grande

questão do ser-do-tempo, que somos nós, está aqui e agora, nesse momento.

E o trabalho de Dogen termina com a poética informação: “No primeiro dia

do inverno do primeiro ano de Ninji (1240) foi escrito este texto no Monastério

Kosho Horin. Este monastério antigo estava em ruínas e Dogen o reconstruiu em

1233 estabelecendo lá sua morada durante 11 anos. Depois, mudou-se para

outro, visto que os monges são sempre peregrinos, andarilhos, estão sempre no

caminho e a caminho.
142

Notas do Capítulo 4

1 - TANAHASHI, K. Escritos do mestre Dogen. São Paulo, Siciliano, 1993, p 90

2 – HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis & Bragança Paulista, Vozes e

São Francisco. 2006, p. 85.

3 – HUIZINGA, Joan. Homo ludens. São Paulo, Perspectiva, 1980.

4 – TANAHASHI, K. Escritos do mestre Dogen. São Paulo, Siciliano, 1993, p. 90.

5 – HEIDEGGER, Martin. O originário da obra de arte. Rio de Janeiro. Faculdade

de Letras, UFRJ, mimeo. Tradução de Idalina dos Santos Azevedo e Manuel

Antônio de Castro, 2006, p. 26.

6 – TANAHASHI, K. Escritos do mestre Dogen. São Paulo, Siciliano, 1993, p. 91.

7 - Ibid, p. 91.

8 – HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis e Bragança Paulista. Vozes e

Universitária São Francisco, 2006, p. 191 e 192.

9 – TANAHASHI. K. Op. cit., p. 91 e 92.

10 - Ibid, p. 92.

11 - Ibid, p. 92

12 - Ibid, p. 92.

13 – JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro, 7

Letras, 2005, p. 124.

14 – TANAHASHI, K. Op. Cit., p. 93.


143

15 – Ibid., p.93.

16 - Ibid, p. 93.

17 - Ibid, p. 93.

18 – SOUZA, Ronaldes de Melo e. Introdução à poética da ironia. In Revista Linha

de Pesquisa, Universidade Veiga de Almeida, ano1, nº 1, 2000, p. 46.

19 – TANAHASHI. K. Op. Cit., p. 93 e 94.

20 – Ibid, p. 94.

21 - Ibid, p. 94 e 95.

22 - Ibid. p. 95 e 96.

23 – HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis. Vozes, 2002, p. 41.

24 – TANAHASHI, K. Op. Cit., p. 96.

25 - Ibid. p. 96.

26 - Ibid p. 96 e 97.
144

CAPÍTULO 5

BUDA E CHUANG TZU: PENSADORES ORIGINÁRIOS?

Cremos que sim, pensamos que sim. Achamos que sim. E é isso que

vamos tentar demonstrar neste capítulo.

O verbo crer sugere crença, algo em que se acredita, uma coisa em que se

supõe-se, seja bom acreditar, por uma série de fatores. O verbo pensar nos

lembra a propositura de Heidegger: o pensar e o questionar. O verbo achar foi

empregado aqui no sentido do grego eureka (encontrar o que se procura).

Ao longo deste trabalho iremos tentar demonstrar que o pensamento

budista aproxima-se do pensamento grego, do tempo dos pensadores originários.

Tanto Buda quanto os pensadores originários são contemporâneos. Nossa

proposta de tese é investigar possíveis semelhanças. O intercâmbio entre a

Grécia e a Índia já existia, nessa época, de há muito. Há registros históricos,

geográficos e antropológicos que fogem ao escopo deste trabalho, mas que

indicam que aquelas terras – Grécia e Índia – se conheciam, uma sabia da

existência da outra. Seus povos até tinham intercâmbios através de remotas

caravanas: especiarias, seda, roupas e se o comércio já existia, acreditamos que

as trocas filosóficas também, culturais idem.

Inclusive, outro tópico que foge à finalidade desta tese, mas citemos de

passagem, há fortes semelhanças entre as mitologias grega e hindu.

Mas, quem foi Buda? Para uns personagem histórico, para outros um ser

mitológico, para outros ainda os dois ao mesmo tempo, uma espécie de semi-
145

deus, um ser humano protegido pelos seres divinos. Em sua biografia o real e o

maravilhoso misturam-se.

Eis o seu nome.

Sidarta Gautama, que mais tarde ficou conhecido como “o Buda”, “o

iluminado”, “o desperto” foi contemporâneo dos pensadores originários gregos.

Anaximandro, Parmênides e Heráclito na Grécia. Buda na Índia. Lao Tsé na

China. O profeta Jeremias na Palestina. Este era o quadro daquele tempo. O

século VI a.C. foi um período muito importante na histórica antiguidade.

Nesta tese vamos não vamos nos ater ao profeta Jeremias, um dos

grandes nomes do Antigo Testamento e da Bíblia, pois nossa proposta de trabalho

é ver o Oriente propriamente dito, ou seja, o continente asiático e não o chamado

Oriente Médio, onde se encontra a Terra Santa, Israel, Palestina e adjacências.

Destacamos a Ásia, pois o pensamento de Buda muito influenciou aqueles

povos. O pensamento asiático, através do budismo, do taoísmo, do zen chamou a

atenção de Martin Heidegger. É o que estamos querendo propor com esta tese.

Encontramos pontos de contato entre essas três correntes de pensamentos

e os citados pensadores originários gregos. Alguém poderia cobrar que

inseríssimos na listagem acima o nome de Chuang Tzu, na China. Entretanto,

nossas pesquisas nos levam a concluir que Chuang Tzu foi discípulo do lendário

Lao Tsé. Há discussão se, realmente, Lao Tsé existiu de fato ou é fictício,

lendário, mítico. O seu discípulo sim, existiu. Há registros históricos e literários

sobre o mesmo, comprovando o fato.


146

5.1 – A questão do útil e do inútil

Chuang Tzu apresenta-se como “discípulo” de Lao Tse, mas não se pode

garantir, não se pode afirmar, não há provas cabais de que o seu mestre foi uma

pessoa de carne e osso ou simplesmente um ser mitológico.

Nossa tese é sobre Heidegger e Buda, mas neste capítulo, queremos falar

um pouco sobre Chuang Tzu, porque o seu pensamento em muito se assemelha

ao Zen e, portanto, ao pensamento de Buda.

Partindo do fato histórico de que Chuang Tzu vem depois de Buda e de

que os monges budistas peregrinos logo se espalharam por toda a Ásia e,

logicamente pela China, deduzimos que o sábio chinês Chuang Tzu conhecia o

pensamento de Buda. Algumas historietas do taoísmo e do zen-budismo são

muito próximas, os monges budistas também estudam os textos de Chuang Tzu,

logo há uma afinidade entre Buda e Chuang Tzu, refletimos então que os dois,

podem ser pensadores originários asiáticos, da mesma forma que temos os

pensadores originários gregos.

Martin Heidegger, em seu livro Língua de tradição e língua técnica1

transcreve o texto de Chuang Tzu “A árvore inútil”. É interessante a forma como

ele apresenta, como introduz a questão do útil e do inútil. O pensador da Floresta

Negra está-nos apresentando as suas questões sobre a utilidade e inutilidade das

coisas, tema sobre que ele se debruça em vários livros, ora a utilidade ou

inutilidade da arte, da poesia, ora a utilidade ou inutilidade da vida. Mas vejamos

as palavras do próprio Heidegger:


147

“Também tentaremos no presente por nossa conta e


risco indicar a direção de uma meditação. Em que é que existe
aqui um risco? Na medida em que meditar significa despertar
o sentido para o inútil2.

Nossa tese também é uma meditação, uma reflexão. E é por isso que

fazemos questão de citar este significativo parágrafo de Heidegger. “Por nossa

conta e risco”. Por nossa conta sim, por nosso envolvimento com as questões que

o autor nos propõe, com as questões que a vida nos coloca e temos consciência

de que abordar tais assuntos é um risco. Vamos até dizer, é uma ousadia tentar

entender Heidegger, tentar compreender, apreender o que ele nos diz, pela via do

Oriente, não custa tentar. Mas sempre tentar, o exercício do tentar. Tenhamos ar e

fôlego para ir adiante neste empreendimento.

Quando Heidegger fala em inutilidade é preciso ver o outro lado da questão.

Vivemos em um mundo aparente que privilegia aparências, esquece-se do real, da

essência, da origem, do originário. Para este mundo objetivo, pragmático falar do

Sagrado, da Arte, da Poesia é algo totalmente inútil. Ora, o termo meditação, na

forma em que estamos abordando, faz parte do universo do Sagrado. E o Sagrado

é objeto de nossa tese, de nosso pensar, de nosso refletir neste trabalho.

É por isso que o pensador alemão nos leva a meditar sobre este

sentido do inútil. Para que serve o inútil em um mundo tão útil? Há espaço para o

inútil respirar nesse mundo aparentemente útil? Mas e do ponto de vista do inútil?

Será que em um mundo inútil, onde imperasse o inútil, o útil, como conhecemos

hoje, teria espaço, teria vez? Sobreviveria?


148

5.2 – A luta entre o útil e o inútil

Será que não é essa uma das eternas lutas da arte? A luta entre o útil

querendo apagar o inútil e o inútil tentando existir. Pensamos que em um mundo

onde imperasse o inútil, democraticamente haveria espaço para o útil. Sendo o

inútil algo poético, obviamente ele deixaria que o útil convivesse no mesmo

espaço-tempo. Claro que estamos, neste parágrafo fazendo uma abordagem de

um outro ângulo do inútil e vendo-o como algo criativo, importante.

Digamos que há um que de “utilidade” no inútil e é por isso que ele co-

existe, ainda que a contragosto do útil. E, democraticamente, há um que de

“inutilidade” no útil. De nossa parte, vemos hoje, muita coisa inútil com ares de útil.

Pensamos que era isso o que Heidegger queria que refletíssemos. Há muita

inutilidade por aí, no que se diz, no que se divulga, ser útil. Há muita

desimportância no que costumeiramente se afirma ser importante. E é justamente

essa uma das crises do nosso tempo. O nosso tempo está mostrando que, muito

do que é tachado como inútil, tem a sua utilidade, como é o caso do Sagrado, da

Meditação, da Arte, da Poesia.

Convenhamos todos, impossível imaginar um mundo sem o Sagrado, uma

civilização sem poesia, uma sociedade sem arte, o silêncio sem meditação, a

meditação sem o silêncio. O Sagrado sem reflexão e sabemos que o Sagrado é

fonte de todo o real, do tudo e do todo, ele é poiésis, é mistério. Daí que engendra

tanta reflexão, que nos faz contemplar. Vejamos a palavra con-templar. Lembra

que há um templo no meio do vocábulo. E templo é local de reflexão, de


149

meditação. De vasculhar o mistério que nos assombra, espanta e ao mesmo

tempo, comove, nos move, nos mobiliza.

Até que ponto é útil ou inútil esta leitura do Sagrado em Martin Heidegger?

Mais adiante iremos tocar na questão do vazio. Um tema bastante caro ao

pensamento de Buda. O inútil que o pensador alemão nos coloca é um sinônimo

para o vazio. Vamos ver mais adiante, detalhadamente, o que é isto.

Nessa mesma página 9, do livro em apreço Heidegger continua:

Num mundo para o qual não vale senão o


imediatamente útil e que não procura mais que o crescimento
das necessidades e do consumo, uma referência ao inútil fala
sem dúvida, num primeiro momento, no vazio3.

Nós ocidentais temos a tendência a pensar o vazio, como o nada, como

algo completamente oco, como aquilo que não tem nada e, portanto, não é nada.

Mas o pensamento originário da Ásia, consubstanciado em Buda, na Índia e em

Chuang Tzu, na China, nos mostra que este vazio não é vazio. É um vazio cheio

de possibilidades, de potencialidades, um vazio pleno, um vazio-todo, bem

diferente de um vazio-nada, como o pensamento mecanicista do Ocidente

concebe.

Por isso, é muito bom, muito importante, esse resgate do inútil que nos faz

Heidegger, pois vamos ver a dinâmica que reside em sua proposta. Ele nos

mostra que, numa linguagem ocidental, o inútil é profundamente útil, considerando

o pragmatismo e a objetividade da técnica. Ou seja, está na hora de pensarmos

não apenas na importância da inutilidade da arte, mas também na importância do

vazio da poesia, da vida, da existência, na vacuidade que reside na literariedade.


150

5.3 – O útil é temporário

Continuemos com o pensador alemão:

Contudo, as necessidades definem-se a partir daquilo


que é tido por imediatamente útil. Que deve e que pode ainda
o inútil face a preponderância do utilizável? Inútil, de maneira
que nada de imediatamente prático pode ser feito, tal é o
sentido das coisas. É por isso que a meditação que se
aproxima do inútil não projeta qualquer utilização prática, e
portanto o sentido das coisas é que se afigura como mais
necessário4.

A colocação de Heidegger nos permite pensar que o útil da sociedade de

consumo é temporário, pois em sua ânsia de ter sempre mais e de aparentemente

facilitar mais a vida, mas como esta é complexa o consumo sente em si a

necessidade de produzir novas coisas úteis, tornando as anteriores obsoletas e

nesta rede de interdependência (este termo “interdependência” faz do vocabulário

budista que veremos mais adiante), suas palavras proferidas em 1962 são

profundamente atuais e soaram naquele pós-meado de século vinte, como algo

premonitório, profético.

Não é de estranhar porque consideramos Heidegger um poeta, um poeta

do pensamento e da prosa, um poeta poetando o ato de pensar, um poeta do

questionar. E os poetas, com um sexto sentido, mais aguçado, portadores de uma

sensilbilidade, quiçá, extra-sensorial, captam, percebem o atemporal, o além-do-

tempo; além do horizonte, tais grandes poetas são seres-águias que enxergam

bem mais longe do que medianidade geral das demais aves-pessoas.


151

“Que deve e que pode – pergunta o autor – ainda o inútil face à

preponderância do utilizável”. Que pode o vazio fazer mediante o desvario do

consumo? Que pode fazer o nada ante o descomunal desconcerto do mundo

atual? E, dialeticamente, contraditoriamente, paradoxalmente, esse “desconcerto

do mundo”, para citar palavras de Camões, é de uma utilidade tamanha para

mostrar, para evidenciar a vacuidade desse desacerto.

Podemos ler o desconcerto do mundo como aquela incompletude de que

nos fala o Buda, aquela impermanência que a tudo permeia, aquela inquietude

que sabemos todos existe nas mais diversas coisas, pessoas e situações. Que as

pessoas são inquietas isso é fácil de constatar. Que as situações podem conter

pessoas inquietas, quer internamente, quer externamente é fácil de verificar, mas

como aferir que uma “coisa” está ou é inquieta?

A questão é oportuna. Como um ser inanimado pode ser ou estar inquieto?!

Nesta frase cabe um ponto de interrogação e também um ponto de exclamação.

Antes é bom verificarmos que, desde os primeiros bancos escolares aprendemos

que “dividimos” o que interfere e interagem em nossa vida como seres animados e

inanimados. Mas observe que chamamos de “seres”. Então, do ponto de vista da

ontologia um ser inanimado pode muito bem espelhar uma certa inquietude do

momento, de uma dada situação, ao interagir com o que identificamos como

coisas, pessoas e situações. A questão está além da lógica formal, da lógica

cotidiana, mas queremos falar aqui de uma lógica ontológica. Então a

experienciação nos diz que sim, é possível uma coisa ser ou estar inquieta.
152

5.4 – Heidegger introduz o pensar asiático

De forma significativa Heidegger introduz o pensamento asiático em seu

texto. Como num intertexto, entretexto. Chamamos de pensar asiático não porque

haja muita discrepância entre um pensar asiático e outro grego, por exemplo, não

é isso. Queremos dizer que o pensar se manifesta na Ásia revestido com a cultura

local, logo, o pensar asiático tem muito do pensamento budista, do pensar que

Buda revelou. Vejamos o que nos diz o Mestre da Floreta Negra, quando começa

a assumir em sua obra o pensamento do Oriente:

Em lugar de discutir esta questão em si própria e de lhe


responder, escutemos um texto retirado dos escritos do velho
pensador chinês Chuang Tzu, um discípulo de Lao Tse5.

Ouçamos o que nos diz o pensador alemão, “escutemos”. O texto de

Chuang Tzu, não é apenas para ser lido, mas para ser ouvido, escutado,

meditado, re-pensado. Ele é atual, ele nos fala, o texto-ser, como se fosse um ser

é atemporal, além do tempo e ainda nos fala, nos diz como pensar sobre o que é

útil e/ou inútil, através da alegoria-metáfora de uma árvore.

Após a transcrição do texto chinês, Heidegger continua discorrendo e

comentando sobre as questões do útil e do inútil. Que podemos estender para

todas as coisas, para a vida, para os seres e fica a questão no ar. O útil em si é

útil e o inútil? Cada um tem a sua peculiaridade, a sua grandeza e des-grandeza.


153

Quem é Chuang Tzu? Quem foi Chuang Tzu? Rapidamente, vamos situá-lo

no tempo e no espaço.

Quando criança ele se chamava Chuang Chou, nasceu em uma localidade

chamada Meng e, ao que parece, era empregado em uma loja que fabricava

móveis de laca. Provavelmente ele viveu entre 370 e 319 ou mesmo 301 aC. Não

há precisão nas datas. Há indicações de que a região de Meng é a atual cidade de

Honan, ao sul do Rio Amarelo, o grande, místico e mítico rio Yang Tse Yang. Após

estudar com o mitológico Lao Tse ou Lao Tzu, ele adotou o nome Chuang Tzu,

uma característica da antiguidade chinesa quando os discípulos adotavam o

sobrenome do mestre, assim como hoje se diz que os seguidores de Cristo são

cristãos e os seguidores de Buda são budistas.

O tema central dos escritos de Chuang Tzu gira em torno da liberdade. Não

a liberdade especifica que conhecemos hoje, mas uma liberdade originária. Sua

questão básica era averiguar como pode o homem viver em um mundo

consubstanciado pelo caos, pelo sofrimento e pelo absurdo, isto é, o non-sense, o

sem-sentido, o ilógico, alógico, metalógico?

E a resposta do sábio é com outra questão: para libertar-se do sofrimento,

da dor, do desconcerto do mundo, da incoerência do planeta liberte-se do mundo.

Mas como se libertar do mundo estando no mundo? Como se libertar do planeta e

continuar vivo sobre a face da Terra?

A libertação aqui é a libertação dos conceitos, dos condicionamentos, das

dicotomias.
154

5. 5 – Libertando-se dos rótulos

Se um belo dia o homem abandonar o hábito, o costume, o

condicionamento de rotular, de dar nome, de nomear as coisas entre boas e más,

feias e bonitas, altas e baixas, pobres e ricas, agradáveis e desagradáveis e

procurar viver neste “entre”, meio caminho para a libertação estará encaminhado.

Pensamos que a questão do Entre-ser, do Da-sein em relação ao mito de

“Cura” tem a ver com o Sagrado, com o Budismo e com a nossa tese, mas

queremos, de antemão refletir que Heidegger foi muito feliz nesta tradução, nesta

compreensão, nesta interpretação do “entre”, pois é uma vivência tipicamente

proposta pelo Buda e por Chuang Tzu.

O senso comum tem a tendência de excluir ou um ou outro, o pensamento

originário propõe os dois ao mesmo tempo e automaticamente nenhum; e antes

de pensarmos em niilismo, negativismo, derrotismo vemos aí a presença do

“entre”.

De acordo com a filosofia budista o ser humano é ambíguo porque ele é

inacabado, não pronto totalmente, mas, paradoxalmente, o ser humano também é

totalmente pronto e genuinamente acabado. Em nosso fundamental equívoco, do

ser humano em geral, e aqui estamos usando uma terminologia heideggeriana

para a palavra fundamento, quer dizer, nosso equívoco desde a mais tenra

infância da humanidade que vem se perpetuando através dos séculos, como se

houvesse alguma propagação, programação na célula, no DNA e este equívoco

se faz presente na educação, na formação condicionada dos povos, das

sociedades, à exceção, talvez, do pensamento originário conforme citamos no


155

início deste trabalho. Nosso equívoco fundamental é pensarmos que somos

inteiros, somos únicos, somos independentes, autônomos.

O pensamento budista diz que somos e não somos. Somos inteiros e não

somos. Somos únicos e não somos. Somos interdependentes, em vez de

independentes. Somos e não somos autônomos. Para usarmos uma terminologia

inspirada em Heidegger podemos dizer, budisticamente, ontologicamente,

originariamente, que nesta tese estamos vendo os três como sinônimos, que

somos entre-serianos, entre-seres, somos entre-dependentes.

Visto que a realidade, como se nos apresenta, aos nossos olhos

condicionados é muito dura, difícil de aceitar, em função de nossa equivocada

visão metafísica. Se torna mais fácil superar este real através de uma outra

“meta”, mas desta vez, “metáforas”: o levar “entre”, “para o telos”, o fim, o sentido.

O real é o Sagrado. O real é uma doação da poiésis. Este real se manifesta,

se nos aparece, se mostra, se nos dá, se nos revela, é uma doação que nos

lembra a epifania divina ou búdica, que são sinônimas.

Nesta tese iremos ver o real como o Sagrado e o Budismo como uma

interpretação do real, assim como o Cristianismo é outra interpretação do

Sagrado, do real. Tanto faz escrevermos real e Real, sagrado e Sagrado, o

princípio é o mesmo. A vivência é a mesma. A experiência é a mesma.

Após este intróito sobre Chuang Tzu, voltemos a Buda, na qualidade

também de pensador originário. E aqui cabe uma interessante questão? Sabemos

que os ensinamentos do Buda se propagaram rapidamente por toda a Ásia. Será

que Chuang Tzu teve algum ponto de contato com o Budismo? Já que há

profundas afinidades entre o seu pensamento e o do Zen? Cremos que sim.


156

5.6 – A árvore inútil

Vejamos agora a transcrição que Heidegger fez do texto atribuído a Chuang

Tzu. O título acima é do próprio pensador alemão:

Hui Tsé dirigiu-se a Chuang Tzu e disse:


“Eu tenho uma grande árvore. As pessoas
chamam-lhe a árvore dos deuses. O seu tronco é
tão nodoso e disforme que não se pode cortar
direito. Os seus ramos são tão torcidos e tortos
que se não podem trabalhar com peso e medida.
Está à beira do caminho, mas nenhum
marceneiro a olha. Assim são as vossas
palavras, senhor, e todos se afastam de vós ao
mesmo tempo.
Chuang Tzu respondeu: “Nunca haveis
visto uma marta que se põe à espreita com o
corpo encolhido e que espera que qualquer coisa
aconteça? Ela vai e vem correndo sobre as
traves e não se impede de dar saltos elevados
até que um belo dia cai numa armadilha onde
perece por um laço. E depois há também o
iaque. É grande como uma nuvem de
tempestade: eleva-se no seu poder. Mas não
pode apanhar ratos. Da mesma maneira vós
tendes uma grande árvore e lamentais que não
sirva para nada. Por que não a plantais numa
terra deserta ou num campo vazio? Aí poderíeis
passear na sua proximidade ou dormir à vontade
sobre os seus ramos sem nada fazer: o machado
e a machadinha não lhe reservam um fim
prematuro e ninguém lhe pode fazer mal.
Como é bom que nos preocupemos com
uma coisa que não tem utilidade!6

Até que ponto uma árvore é realmente inútil? Mesmo uma árvore retorcida,

contorcida, como diz o texto, deve ter a sua função no ecossitema. A palavra

“função” é uma palavra metafísica. Vamos pensar outro sinônimo.


157

Até que ponto uma árvore pode ser dispensada de sua presença no quadro

geral da physis? Pensamos que é difícil, senão impossível, se levarmos em conta

que a árvore é um elemento contribuinte para o respirar da natureza. Neste

sentido, árvore nenhuma é inútil.

No primeiro parágrafo temos uma conversa sobre o poder das palavras,

sobre o significado das palavras, sobre o sentido das palavras, a potencialidade

de pronunciarmos palavras, a capacidade de articularmos sons entendíveis ou não

fosse como uma árvore. É uma árvore, simbolicamente falando, pois, a palavra é o

tronco, o pensamento que gerou as palavras, são as raízes;os galhos e as folhas

são as interpretações que fazemos a partir das palavras ouvidas e pronunciadas.

Chuang Tzu responde com a natureza, com a physis. Da árvore passa para

a marta, um mamífero bem violento, é que as palavras podem ser calmas como

um tranqüilo e silencioso tronco de uma árvore, mas também pode atacar como

um animal que espreita a presa, mas ainda assim, pode cair em uma armadilha;

através da palavras podemos cair na própria armadilha das palavras.

Chuang Tzu completa ainda o sentido com a imagem do iaque, que é um

boi das montanhas asiáticas, serve de montaria e de animal de carga. Por ser

grande e desajeitado, como se fosse um búfalo desgovernado talvez não consiga

pegar pequenos animais como um rato. O que nos sugere que, muitas vezes, ao

estarmos preocupados com a verborragia das palavras, nos esquecemos dos

mínimos detalhes, das pequenas coisas.

E assim o pensador chinês afirma que nós temos, internamente, uma

grande árvore, nós temos o aparelho fonador, o cérebro e a característica de


158

poder dialogar. Isso possibilita que a linguagem nos tenha, ou seja, para que

através de nós, a linguagem flua. E a linguagem flui, é transmitida a partir da terra

deserta do silêncio. O silêncio é o deserto, o silêncio é o vazio e é nesse vazio que

as palavras atuam, fluem e se fazem presentes. A linguagem instrumental é o útil.

A linguagem poética é o inútil.

As palavras podem ser inúteis quando há outras formas de compreensão,

de expressão, experienciação. “Passear na sua proximidade” e “dormir à vontade

sobre os seus ramos” indica estar na preponderância do vazio. O final do texto é

um pouco enigmático, lembra os koans do zen-budismo, os enigmas, os

paradoxos, as questões que o existir nos coloca a cada momento.

Como já dissemos, há algumas evidências de que Chuang Tzu conhecia o

pensamento de Buda. E esses enigmas do final do texto podem talvez comprovar

o seu estilo Zen.

O budismo foi o primeiro movimento de massas que aconteceu na história

da Ásia e de que se tem notícia. Os povos da antiguidade sempre se

comunicaram através de caravanas, para troca do comércio. A notícia da

iluminação do Buda espalhou-se logo por todo aquele velho continente. Não

apenas a notícia, mas os textos canônicos budistas registram que Buda

recomendou aos seus discípulos que saíssem pelos caminhos divulgando a boa

nova da meditação, do nirvana e do caminho que ele havia descoberto.

A notícia dos ensinamentos e do Caminho proposto pelo Buda se espalhou

logo. O campo estava fértil. Por isso, em muitos textos o Zen, o Tao se confundem

com a palavra Caminho.


159

Notas do Capítulo 5

1 – HEIDEGGER, Martin. Língua de tradição e língua técnica. Lisboa. Vega, 1999.

2 – Ibid., p. 9

3 – Ibid., p. 9.

4 – Ib id., p. 9 e10.

5 – Ibid., p. 10.

6 – Ibid., p. 10 e 11.
160

Capítulo 6

Heidegger e o Zen-Budismo

Estudaremos neste capítulo o livro Serenidade, de Martin Heidegger. Mas,

o que é serenidade? Qual é a grande questão deste livro? Por que um filósofo, um

pensador do porte de Martin Heidegger iria se interessar por um tema

aparentemente meditativo, reflexivo, religioso, um tema mais pertinente ao

Sagrado?

Porque, de acordo com a leitura, com a interpretação que estamos fazendo

ele também era um religioso, ele nunca abandonou a religião. Ele nunca se

afastou da questão do Sagrado. Esta é uma declaração polêmica. Não estamos

confundindo o Sagrado com o religioso, não estamos falando de uma instituição

religiosa específica. Para nós, o pensamento, a arte, o mito, a religião são

experienciações do Sagrado.

Em A caminho da linguagem, no capítulo que vamos estudar a seguir sobre

a conversa entre Heidegger e um japonês, o pensador declara, à página 79: “Sem

a proveniência da teologia, jamais teria chegado ao caminho do pensamento. Ora,

proveniência é sempre por-vir”.

Conhecendo o caminho zen, que naturalmente leva a uma serenidade

meditativa, reflexiva, o pensador alemão foi morar em uma cabana na Floresta

Negra. Tal como um asceta budista, um eremita, um ermitão que vive nas

montanhas. Pensamos que ele tinha uma ligação muito forte com a terra, com a

natureza, com a physis. E a physis o ensinou a meditar, a serenar a mente.


161

Nesta obra, às vezes, parece que vemos Heidegger falando de meditação.

Em japonês há uma expressão conhecida no âmbito do zen que é wabi ou sabi. A

melhor tradução de tais termos é serenidade. Esta experiência de serenidade

encontramos nos jardins zen de que falaremos mais adiante, nas peças Nô. É

uma idéia de calma, de tranqüilidade do coração, do espírito; tranqüilidade na

simplicidade e no despojamento. O budismo nos diz que tudo que foge à

simplicidade natural das coisas é prejudicial à saúde, formando um desequilíbrio e

conseqüente perda da serenidade.

O livro começa com Heidegger falando de gratidão à terra natal, não

apenas por ser natal, mas, vemos aí a importância da ligação com a Mãe Terra,

com a physis. O ensinamento budista enfatiza bem a importância da gratidão e da

ligação com a terra em si. A terra é algo fundamental em nossas vidas. Há um

texto canônico em que o Buda diz para o seu filho, que também tinha se ordenado

monge, que ele precisava ser como a terra, que aceita as coisas boas e ruins que

jogamos nela, aqui entendendo-se uma lição de simplicidade, de humildade. E

depois, tal como a terra, transformamos o que é negativo para melhor e o que

melhor torna-se melhor. Conta-se que ao atingir o estado de iluminação Buda

tocou o solo, a terra e ele diz, nesse momento, que a Terra é sua testemunha.

No início desta tese, na parte dos agradecimentos, agradeço ao pensador

da Floresta Negra que me ensinou a conversar com o caminho. É uma referência

ao belo texto de sua autoria sobre “O caminho do campo”, com “O caminho do

campo”. Vemos nesse trabalho de Heidegger também uma forma de meditação,

semelhante a que ele propõe em Serenidade.


162

6.1 – Filosofia Meditativa

Depois o pensador, na página seguinte, a 10, fala de um princípio

tipicamente zen. Afirma que a interação entre um mestre e sua obra deve ser tão

grande, tão única que a pessoa desaparece e só fica a obra. Esta experiência

profunda de unidade foi bem descrita por outro professor universitário alemão e

também filósofo, contemporâneo de Heidegger. Safranski cita-o, página 298, em

sua biografia sobre o mestre da Floresta Negra.

Trata-se de Eugen Herrigel autor dos livros A arte cavalheiresca do arqueiro

Zen e O caminho Zen. Neste segundo título há um capítulo sobre “serenidade”.

Deduzimos que o tema era pertinente na época, como hoje também.

Heidegger lecionava em Freiburg e Herrigel em Heidelberg. Ambos

professores de filosofia. Vamos (ousadamente?) dizer que Eugen assumia os seus

estudos e pesquisas no campo do pensamento oriental, de forma confessional. E

Heidegger inspirado na semelhança entre o pensamento zen e o ontológico, a

partir de uma experiência de vida com a natureza, “reelabora”, reescreve

filosoficamente, ontologicamente alguns princípios budistas. E ele está certo, se

Heidegger se limitasse a repetir os princípios zen, não estaria sendo criativo, não

estaria sendo zen, pois ser zen é recriar, renascer, reescrever. No entanto, a

posição do mestre da Floresta Negra foi muito boa pois verificamos que ele

conhecia bem os postulados zen e demais doutrinas búdicas.

Na página 11 de Serenidade Heidegger nos diz:


163

Não é de modo nenhum necessário pensar


enquanto ouvimos a narração, isto é meditar (besinnen)
sobre algo que, na sua essência, diz respeito a cada um
de nós1.

Cremos que ele tinha conhecimento da filosofia meditativa do Budismo.

Melhor, da prática de meditação. É justamente essa a proposta das famosas

meditações búdicas. Não pensarmos tanto. Aprender a não pensar

conceitualmente. E é importante falar isso. Pensar conceitualmente é bem

diferente do pensar de Heidegger. O pensar do pensador é um pensar criativo,

vivo, soberano, originário, sem os rótulos e condicionamentos. O pensar discursivo

e conceitual é o pensamento repetitivo, repetidor, sem a criatividade, sem a

natureza, sem a physis.

Essa questão tem dois aspectos. O primeiro, como se fosse um pregador

em um ofício religioso, em um momento litúrgico, Heidegger diz que as pessoas

preferem um discurso, preferem o falar e o ato seguinte, o ouvir. O ouvir mecânico

e não o escutar criativo. Com isso esquecemos de nós mesmos e dos outros e da

situação circundante, como se fôssemos tagarelas..

Por outro lado, alguém pode lembrar do aspecto pensar criativo que

Heidegger nos propõe. Antes de pensarmos em contradição vamos ver que tentar

não-pensar é a grande questão da vida. No fundo, na essência nos temos o não-

pensar, este não-pensar é o silêncio e assim, para distrair a mente buscamos aqui

e ali experiências passageiras que, por vezes, nos trazem muita dor.
164

6.2 – O Pensar é Criativo

Na citação anterior, em seu diálogo, o que Heidegger está nos mostrando é

que se estamos distraídos, ou melhor entretidos com uma discurso, com um

pronunciamento, com uma falação, o pensar criativo se cala, este pensar

revelador, criante, fundante torna-se silêncio e passa a agir na esfera do banal, do

corriqueiro transformando-o para melhor, modificando-o de costumeiro para

criativo, de metafísico para ontológico. É por isso que no parágrafo seguinte ele

conta que, mesmo os profissionais do pensar, estão cada vez mais pobres em

termos de pensar.

Vemos aqui que uma coisa é pensar criativo, revelador ontológico, bem

diferente do pensar metafísico, o pensar do burburinho, não é o pensar do

pensador.

Aqui e acolá, em seus textos, vemos que Heidegger é profético. Ainda na

página 11 é o que estamos verificando atualmente, ante a avalanche das mídias,

pelo excesso de informação: ”Pois hoje toma-se conhecimento de tudo pelo

caminho mais rápido e mais econômico e, no mesmo instante e com a mês

rapidez, tudo se esquece”.

Este livro parece um manual de meditação. Vejamos a página 13:

Existem, portanto, dois tipos de pensamento,


sendo ambos à sua maneira, respectivamente,
legítimos e necessários: o pensamento que calcula e a
reflexão (Nachdenken) que medita2.
165

A partir do ponto de vista budista Heidegger está certíssimo. Realmente,

Buda ensinava que há dois tipos básicos. Um é o pensamento discursivo,

conceitual, preso aos objetos, às coisas. O outro é o pensamento que se torna

meditativo, que o pensador chama de reflexão. É isso mesmo, como se a nossa

mente tivesse essa capacidade de ver a si mesma, olhar a si mesma, refletir sobre

si mesma, como se fosse uma câmera cinematográfica filmando. Esse movimento

ele chama de “a reflexão que medita”.

O pensamento que calcula é o que pensamento que mede, que se

dispersa, que se torna desatento. Buda, a partir daí criou uma prática interiorizante

para acalmar este tipo de pensamento e tentar levá-lo à tranqüilidade. A outra

forma é a serenidade em si, serenidade esta que nos leva à uma visão interior, a

ver dentro de cada um, ver dentro de si, mas que também vê fora. É uma atitude

originária. Não dicotomiza, não dualiza, não separa.

Ainda na página 13 o pensador da Floresta Negra nos diz que o

pensamento que calcula corre de oportunidade em oportunidade. É isto mesmo o

que diz o Buda. O pensamento desatento vive de um sentimento para outro, de

uma emoção para outra, não consegue parar pois a sua natureza é dispersa. Está

sempre exteriorizada. É um tipo de pensamento que não consegue meditar, que

não consegue refletir, que não consegue ter serenidade. E o autor toca em um

ponto importante, quando fala do “sentido que reina em tudo o que existe”.

O zen também diz isso, geralmente nunca olhamos um objeto em sua

essência, em seu todo. Estamos sempre colocando rótulos, os mais diversos. Só

através da meditação é que vamos ver a essência do objeto, da coisa, o originário

da questão.
166

6.3 – A discursividade da dicotomia

O pensamento discursivo, o pensamento que calcula não consegue porque

está mais interessado em calcular se o objeto, a coisa, a pessoa ou a situação é

algo, baixo, feio, bonito, rico, pobre etc. perdido nessa dicotomia, o pensamento

discursivo, o pensamento que calcula cada vez mais envereda-se pelos planos da

conceituação, não consegue distinguir o sentido real.

E, por fim, diz-se que a pura reflexão, a


meditação persistente, é demasiado “elevada” para o
entendimento comum. Nesta desculpa a única coisa
correta é que é verdade que um pensamento que
medita surge tão pouco espontaneamente quanto o
pensamento que calcula. O pensamento que medita
exige, por vezes, um grande esforço. Requer um treino
demorado. Carece de cuidados ainda mais delicados do
que qualquer outro verdadeiro ofício. Contudo, tal como
o lavrador, também tem de saber aguardar que a
semente desponte e amadureça3.

Verdadeira preciosidade. Enquanto necessitamos ter persistência, o tal

esforço correto de que falava Buda, o senso comum diz que é algo muito elevado,

transcendental. A comparação com o lavrador é boa porque o pensador tem a

noção exata de que meditação é um longo processo, exige um treinamento

constante até que os frutos amadureçam.

Heidegger também explica que a meditação, a reflexão está nas coisas

mais simples e mais próximas, justamente porque a metafísica tem a tendência a

separar, a dicotomizar e assim pensa equivocadamente que algo próximo não


167

pode ser bom, não pode ser sagrado, não pode ser espiritual, prefere o que está

distante, longe. O próprio autor diz que não é necessário (p. 14) nos elevarmos às

“regiões superiores”. É interessante esta expressão pois no diálogo mais adiante,

neste mesmo livro, muito se fala na “região” e nós detectamos que esta região

bem pode ser o céu, o paraíso, o nirvana.

É bom, é confortante ver e ler um filósofo, um pensador do porte de

Heidegger falando nestes temas e criativamente inventando neologismos. E nos

provocando uma leitura budista, fazendo-nos lembrar do caminho zen de vida.

Caminho este que, mesmo tendo sido proclamado na Ásia, não difere do caminho

que o professor alemão nos propõe.

Vemos a seguir, uma reflexão profunda sobre o ato de pensar criativo,

sobre o meditar.

Porque o caminho para o que está


próximo é para nós, homens, sempre o mais
longo e, por isso, o mais difícil. Este caminho é
um caminho de reflexão4.

Nesse texto da página 23 ele fala de forma que parece um mestre zen

citando os seus enigmas, propondo contradições aos alunos para que eles

cheguem à compreensão de um fato, de uma situação. Considerando que o zen

evita as respostas fáceis, superficiais e, muitas vezes, propõe descobrir o que está

oculto, o que esta velado, chega-se a este ponto através do não-fazer, do não-agir

e para isso é necessário ver com outros olhos o que está próximo de nós, o que

está à nossa volta.


168

6.4 – Serenidade: uma palavra antiga

Para chegarmos à essência do ser, ao originário da situação é fundamental

nem aceitar, nem recusar um dado, um fato, uma coisa, pois optando por um ou

por outro estaremos na área do pensamento discursivo, conceitual, do

pensamento que calcula.

Gostaria de designar esta atitude do sim e


do não simultâneos em relação ao mundo técnico
com uma palavra antiga: a serenidade para com
as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen)5.

Nosso autor vai buscar, segundo ele mesmo, uma palavra antiga e esta

palavra é “serenidade”. Sabiamente ele nos diz que tendo serenidade, desvelando

a serenidade, manifestando serenidade nós veremos as coisas não pela técnica,

não pelo pensamento que calcula, mas pela meditação, pela reflexão que nos

levam ao estado de serenidade.

O tempo todo ele fala em budismo zen, ainda que não esteja citando o

Buda, nem especificamente o postulado religioso do Zen. A serenidade nos leva,

realmente, porque está no plano real, a vermos as coisas sob outro prisma, a

termos uma outro olhar, uma outra relação com os objetos. Este outro olhar, esta

nova forma de ver uma coisa, um objeto nos leva ao segredo, ao mistério, ao

sagrado. E o próprio Heidegger diz que estas atitudes são inseparáveis, ou seja, à

medida que avançamos na serenidade constatamos que serenidade e esta

abertura para o insondável são quase que simultâneas.


169

Vejamos uma outra citação, nesta mesma página, onde ele complementa a

sua reflexão. Muito boa sua declaração de clarividência, um termo mais para o

campo do Sagrado. De onde deduzimos que o sagrado também pode ser uma

leitura do pensar, do filosófico, da obra criadora de Heidegger.

Nesta atitude já não vemos as coisas


apenas do ponto de vista da técnica. Tornamo-
nos clarividentes e verificamos que o fabrico e a
utilização de máquinas exigem de nós, na
realidade, uma outra relação com as coisas que,
não obstante, não é sem-sentido (sinn-los)6.

A seguir, no segundo ensaio, intitulado “Para discussão da Serenidade” o

pensador alemão começa a discutir o tema da serenidade com mais duas

pessoas. Ao todo são três. No intróito ele explica que é um investigador, um

erudito e um professor. Heidegger é o professor. É fácil identificar suas colocações

e percepções. É importante também notar que o subtítulo esclarece: “De uma

conversa sobre o pensamento, que teve lugar num caminho de campo” ele

demonstra bem que o assunto gira em torno da questão do pensamento.

E toda essa questão é complexa, plena de mistério, de mostrar-se e ocultar-

se. Na página 25, no primeiro ensaio, o pensador declara: “O que, deste modo, se

mostra e simultaneamente se retira é o traço fundamental daquilo a que

chamamos o mistério”. Mas é preciso calma, é preciso serenidade para vivenciar

tudo o que Heidegger comenta, nos sugere reflexão em relação às coisas e a

abertura em torno do mistério, do segredo, do sagrado.


170

6.5 – Pensamento e essência do homem

Sim. Se o pensamento é o traço distintivo


da essência do homem, então o essencial desta
essência, ou seja, a essência do pensamento, só
pode ser apercebida desviando o olhar do
pensamento7.

Nesse parágrafo, o professor Heidegger explica que a questão do

pensamento tem a ver com a essência do homem, o pensamento é o traço

distintivo, básico do ser humano, mas para isso ser melhor compreendido e

vivenciado é necessário que desvie o olhar do pensar, ou seja, é o que o zen

chama de pensar sem pensar, fazer sem fazer, ser sem ser. O budismo nos diz

que a mente humana tem essa capacidade de se auto-observar, de se ver a si

mesma, como se fosse uma outra pessoa, uma outra situação. É isto o que

Heidegger está falando, tanto é que na página seguinte ele declara que quer o

não-querer.

Essa postura budista é muito mais do que um jogo de palavras. A princípio

pode se pensar em mero jogo de vocábulos, mas com o passar da meditação

vamos ver que essas aparentes contradições: querer não querendo evidencia um

outro lado, uma outra possível forma de ser.

Na página 36 Heidegger fala para os seus companheiros de conversa: “Não

devemos fazer nada a não ser aguardar”. Ora, eis aí outro princípio budista da

meditação. Nós estamos o tempo todo tentando fazer algo, tentando demonstrar,

tentando criar e o pensador da Floresta Negra diz que é justamente o contrário, ou

seja, deixar vir as coisas, aguardar que elas se manifestem. Mas isso só se
171

consegue estando em serenidade, desenvolvendo-se o patamar da serenidade, do

treinamento do pensamento que calcula par ao pensamento meditativo, reflexivo e

então não será mais pensamento, mas sim pura meditação, pura reflexão, pura

serenidade.

Como se fosse um professor de meditação, e neste livro ele é, mais

adiante, nesta mesma página ele diz que estamos sempre nos enganando. Nós

seres humanos comuns, simples mortais temos dificuldade de alcançar esse

discernimento heideggeriano.

Definimos, assim, os termos horizonte e


transcendência por meio do exceder
(Übertreffen) e do ultrapassar (Überholen)... O
horizonte e a transcendência são assim
experienciados (erfahren) a partir dos objetos e
da nossa atividade de representação e são
definidos apenas em relação aos objetos e à
nossa atividade de representação8.

O professor começa falando em transcendência, em exceder, em

ultrapassar e por fim chega ao horizonte, mas o bonito é quando ele afirma, ao

expor esta vivência de horizontalidade; ele diz tratar-se de “um aberto que nos

rodeia”. Além de poético, é profundamente enigmático, profundamente zen. É um

daqueles koans, daquelas questões zen, que nos põem a meditar, a refletir. E na

página seguinte ele começa a falar em região, que nós identificamos, pela

descrição, com o nirvana budista, o céu, o paraíso.

A leitura nos pareceu ser transcendente, desde que ultrapasse e exceda o

horizonte. É uma indicação para irmos além.


172

6.6 – O caminho da serenidade

Sobretudo quando a ocasião é ainda tão


pouco aparente como o andamento silencioso de
uma conversa que nos move/encaminha
(bewegt) que é algo como o Repouso. A
serenidade seria, então, não apenas o caminho
(Weg) mas também o caminhar/movimento
(Bewegung). Para onde/onde poderia ser senão
para/em a Região, em relação à qual a
serenidade é o que é?9

E então, acima ele diz que a serenidade é o caminho, o caminhar, o

movimento. É este repouso não-parado, não estacionado, mas um repouso

dinâmico que faz da serenidade o caminhar caminhante. É isso mesmo que diz

Buda quando afirma que a meditação deve ser as 24 horas do dia e não apenas

em momentos específicos durante o dia; a meditação, segundo o zen, a

meditação é concomitantemente com o cotidiano, com o dia-a-dia. Não está

separada, não está isolada. Como normalmente meditar traz muita calma, muita

paciência, muita serenidade e o Buda afirmava que a paciência é a maior de todas

as virtudes, pois nos leva à serenidade, estando em movimento, em atividade

vamos compreender tal fato.

A serenidade vem da Região, porque


consiste no fato de o Homem permanecer
confiado/sereno (gelassen) à/na região,
precisamente através dela. Está-lhe confiado na
sua essência na medida em que pertence
originalmente à Região. Pertence-lhe na medida
em que está inicialmente a-propriado (ge-eignet)
à Região (Gegnet), precisamente através da
própria Região10.
173

No trecho escolhido ele continua com sua aula de meditação nos dizendo

que a serenidade vem da Região, ora ele escreve com minúscula, ora com

maiúscula. É importante frisar que os contatos que os filósofos japoneses que

tratamos em outro local desta tese, sofrem a influência de uma escola budista

chamada Terra Pura, ou seja, identificamos essa Região como sendo a Terra Pura

de Buda, outro nome para o nirvana.

Depois de tudo o que dissemos sobre o


demorar-se da extensão que dura, o deixar
repousar no retorno, o fazer região da Região,
dificilmente se pode falar da Região como
vontade11.

Nesse parágrafo ele fecha o círculo hermenêutico, começara dizendo que

queria o não-querer, isto porque o Buda afirmava que para meditarmos bem não

podemos ter apego a nada, nem ao próprio ato de meditar, justamente é o querer

não-querendo e aproximando-se do final ele fecha o círculo ao falar que ao

acedermos à Região por meio da serenidade estamos querendo o não-querer, é a

meditação com renúncia.

Aproximando-se do final do livro, Heidegger diz, à pagina 63:

Desse agradecimento que não apenas


agradece por algo, mas que apenas agradece
poder agradecer12.
174

O que lemos nesse trecho é que ele está falando no agradecimento que

toda prática meditativa tem e, mais uma vez, a elaboração do que fala, do que

escreve é profundamente zen. Agradecer por tudo e até pelo ato de poder

agradecer. E na página seguinte esclarece, como se fosse um mestre budista que

a experiência da conversa serviu para aproximar-se da Região e, ao mesmo

tempo, quanto mais nos aproximamos, mais verificamos que estamos longe e ao

mesmo tempo não estamos. Permanecemos lá, nunca saímos de lá, do nirvana,

do céu, do paraíso, de Deus, de Buda como queiram, permanecer é regressar, é

voltar à origem, ao originário.

Decerto; e quero dizer o seguinte: A


essência do homem é unicamente confiada
(gelassen) à Região e utilizada por esta em
conformidade porque o Homem, por si, nada
pode sobre a verdade e esta permanece
independente dele. A verdade só pode, portanto,
ser independente do homem, porque a essência
do homem é utilizada como a serenidade em
relação à Região, pela região, na regionalização,
para defesa do Condicionamento. A
independência da verdade em relação ao (vom)
Homem é, pois, notoriamente uma relação com
(zum) a essência do homem, relação essa que
Repousa na regionalização da essência do
homem na Região13.

Nesse parágrafo o pensador da Floresta Negra sintetiza todo o seu

pensamento em relação ao livro Serenidade. Realmente, é um manual de

meditação budista. Quando ele diz que o homem por si nada pode, está sendo

profundamente budista, pois Buda ensinava a interligação de todas as coisas, de

todos os saberes, a rede da contemporaneidade que estamos imersos.


175

Notas do Capítulo 6

1 – HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa. Instituto Piaget, 2000, p. 11.

2 – Ibid., p. 13.

3 – Ibid., p. 14.

4 – Ibid., p. 23.

5 – Ibid., p. 23

6 – Ibid., p. 24.

7 – Ibid., p. 31.

8 – Ibid., p. 38.

9 – Ibid., p. 45.

10 – Ibid. , p. 49 e 50.

11 – Ibid., p. 57.

12 – Ibid., p. 63.

13 – Ibid., p. 62.
176

Capítulo 7

Diálogo entre um Japonês e o Pensador

Apresentamos aqui um roteiro de leitura, uma tentativa de esclarecer no

referido diálogo as passagens e referências búdicas. Pensamos que, ao assim

procedermos, estamos ajudando na compreensão do texto heideggeriano,

situando-o geográfica e budisticamente.

Logo na primeira página da conversa entre Heidegger e um japonês que

deduzimos ser mais um aluno dele, ou leitor ou estudioso de suas obras. O

nipônico fala no “mestre Nishida”. Nishida Kitaro (1870-1945) é um importante

filósofo budista cuja obra do pensador alemão teve muita influência em seu fazer

filosófico devido à proximidade entre o pensamento Zen e o de Heidegger.

Outro aluno de Kitaro Nishida e que também foi aluno de Heidegger, de

1937 a 1939, foi Keiji Nishitani (1900-1990). Eles formavam a chamada Escola de

Kioto, um movimento de filosofia budista que tinha influência do pensador alemão.

Nishitani também é considerado um dos grandes filósofos do Japão. Ele nasceu

em 27 de fevereiro de 1900 e faleceu em 24 de novembro de 1990.

Consideramos estes dados biográficos importantes para situarmos a época

e o desenrolar dos fatos. Até que ponto isto pode ser considerado uma questão,

um símbolo, uma palavra chave “Nishitani”? Muito, na medida em que tentamos

aproximar o pensamento de Heidegger do pensamento budista.

Nishitani nasceu em uma pequena aldeia (tal como Heidegger) da

península Noto em frente ao Mar do Japão. Com seis anos de idade, sua família

se mudou para Tókio e, poucos anos depois seu pai faleceu de tuberculose, o
177

próprio Nishitani contraiu a doença que o impediu de iniciar os estudos superiores

mas curou-se logo depois. Estas experiências dolorosas tiveram influência em seu

pensamento.

Em 1921 ingressou na Universidade Imperial de Tókio, a mesma do

professor Tezuka, que conversa com Heidegger neste capítulo. O jovem Nishitani

ficara impressionado com a leitura do livro Shisaku to Taiken (Contemplação e

Experimentação) de Nishida Kitaro. O texto o ajudou muito naqueles momentos

difíceis que passava e assim Nishida transformou-se não apenas em seu

professor e amigo, mas em seu mestre de vida.

Em 1932 Nishitani iniciou sua carreira como professor da Faculdade de

Letras da Universidade Imperial de Kioto. Em 1937 foi para a Alemanha, como já

dissemos, estudar com Heidegger, na Universidade de Freiburg, e ficou lá até

1939. Após voltar lecionou Filosofia e Religião até 1963. E a seguir, até 1971, na

Universidade Otani. Foi professor visitante da Universidade de Hamburg, na

Alemanha e foi eleito para a Academia do Japão. Em 1972 o Instituto Goethe lhe

conferiu uma honrosa “Medalha de Ouro” pelos relevantes serviços prestados no

intercâmbio entre a filosofia alemã e a filosofia budista. Foi autor de 13 livros,

alguns traduzidos para o Ocidente.

O Budismo, enquanto filosofia, ocupou um lugar central em seu

pensamento e dedicou grande parte dos seus escritos ao princípio budista do

Vazio, semelhante ao nada heideggeriano. Tanto o vazio não é de todo vazio, nem

o nada não contém nada, mas ambos são plenos de potencialidades, de

possibilidades.
178

7.1 – A experiência do Vazio

Nishida integrou a experienciação do vazio budista a postulados filosóficos

contemporâneos, instilando novas perspectivas e convertendo-o em um

instrumento para se chegar à compreensão da realidade. Compreensão esta que

leva em conta a experiência que a humanidade vem acumulando ao longo dos

séculos, a partir da experiência de iluminação proclamada pelo Buda.

Em Nishitani temos um exemplo valioso da vigência da antiga filosofia

budista encontrando-se com a filosofia contemporânea, via pensamento de

Heidegger.

Continuando com o diálogo, vamos ver que em seguida, o mestre da

Floresta Negra declara possuir algumas fotos, tanto do túmulo do falecido aluno,

quanto do campo em volta, sugerindo então que tinha amizade e reciprocidade

com o aluno e sua família . Esse túmulo e esse jardim estão no templo da cidade

de Kioto, antiga capital, que é um anagrama da palavra Tókio, atual capital

daquele país.

Há uma referência ao sacerdote Honen, que plantou esse jardim, no final do

século XII. Destinado à meditação e ao recolhimento.

São famosos os jardins Zen, os pátios dos templos budistas. São

paisagens ornamentadas, com imitação da ave grou de bronze e templos em

miniaturas, sugerindo a forma de lamparinas, indicando que o templo é luz, nos

leva à Luz, ao saber, ao esclarecimento.. A proposição dos jardins budistas é

sugerir uma atmosfera simples e geral do binômio “montanha e água”. Tudo o que

tem na montanha e tudo o que tem na água e isso em um pequeno espaço


179

organizado de tal modo que o plano do jardim mais pareça ter sido ajudado que

feito. É como se o jardim tivesse vida própria, o jardim pediu para ser organizado

assim e o homem, o jardineiro só ajudou. Não foi a mão do homem que

determinou que seria assim, mas a arte da jardinagem, do paisagismo que

escolheu, que preferiu ser assim, ficar assim, mostrar-se assim.

O jardineiro budista não impõe a sua intenção, a sua vontade. Ele tem o

cuidado de seguir um fazer sem fazer, um realizar sem realizar. É uma intenção

sem intenção das formas jardinescas. O jardineiro zen procura saber, questionar

como o jardim quer se feito pelo próprio jardim. É como se o jardim lhe

respondesse. Esse jardineiro nunca pára de podar, de cortar, de aparar, libertar as

ervas e encaminhar, orientar as suas plantas. Observemos que este podar, cortar,

aparar também se refere às nossas vicissitudes. Assim, não paramos nunca de

trabalhar, cultivar esse jardim que é a própria vida. Estamos sempre

embelezando-a.

O jardineiro zen integra-se à paisagem. Ele não é um ser estranho, alheio,

de fora. Ele faz parte do próprio jardim. Ele também é árvore, planta, pedra e o

próprio jardineiro como se fosse uma estátua em movimento. Nunca, jamais

parada, inerte. O jardineiro não faz uma interferência na paisagem, na natureza

porque ele também é natureza, também é paisagem.

Um bom exemplo desta consciência zen de jardinagem encontra-se,

principalmente, nos templos da cidade de Kioto a que o diálogo acima se refere.

Areias e rochas. Às vezes grupos de rochas pequenas e médias dispostos sobre

um espaço de areia alisada, trabalhada, arada a rodo. Aquele tradicional rodo de

casa que conhecemos para fazer correr a água e enxugar o chão.


180

7.2 – O jardim vazio e ao mesmo tempo cheio

Este espaço tem pequenas árvores, arbustos, plantas rasteiras e pedras.

Ás vezes sugere uma praia virgem, ainda intacta, não explorada pelo homem, pela

civilização ou um pedaço de mar com ilhas rochosas.

E por que isso? Note que o Japão, onde esta arte é bem desenvolvida é um

arquipélago. Mar sugere viagem, travessia, novas descobertas. É a simplicidade, a

forma como é feito o jardim e como ele se nos mostra que evoca uma serenidade

e clareza de sentidos. Algumas vezes este estilo de fazer um jardim é chamado de

“a arte de cultivar rochas”. Como se os rochedos fossem plantas, seres vivos.

Mas essa arte de fazer jardins também sugere difíceis expedições ao

mundo interior, às montanhas, aos rios. Tais jardins, às vezes, são uma forma de

miniaturizar montanhas, rios, em busca de rochas cujas formas foram moldadas

pelo vento, pela ação do tempo. Essas rochas são colocadas no jardim de modo a

parecer que “cresceram” como se fossem plantas.

Esses monges-jardineiros gostam de cultivar jardins criando uma atmosfera

mais informal, às vezes sugerindo um vale montanhoso, silencioso, próprio para

meditar.

A significação de um jardim é que ele é símbolo, representa o Paraíso, o

Nirvana, em qualquer situação, morada dos deuses, de Buda, na tradição do

Oriente. É a indicação de estados espirituais, experiências, vivências

paradisíacos, mesmo após a morte, como é o caso do diálogo entre Heidegger e

seu aluno. Esse tipo de jardim é um mundo, um universo em miniatura, cada grão

de areia pode simbolizar um planeta, uma estrela, um astro celeste que cintila na
181

noite, no céu iluminado. É também a natureza reconstituída no seu estado

primordial e originário. O jardim é um convite à restauração do Ser.

O jardim é uma questão, é uma palavra chave. Jardim é cultivo e vemos

uma interessante conexão entre as palavras cultivar, habitar e cultuar. Cultivar tem

a ver com jardim. Cultuar tem a ver com o Sagrado e habitar é o homem inserindo-

se criadoramente aí neste meio, neste entre, entre o Originário do cultivar, do arar

a terra, do cuidar da terra e o Originário do Sagrado, tanto nesta vida como em

estágios post-mortem. É que estamos sempre inseridos no Sagrado.

Continuando com a leitura da conversa vamos ver que o japonês nos fala

sobre o sacerdote Honen. Quem foi este monge?

Honen (1133-1212) nasceu na província de Okayama. Aos nove anos seu

pai era um oficial e foi morto por bandoleiros. De acordo com o desejo de seu

progenitor, manifesto nos últimos momentos, Honen tornou-se monge. Aos quinze

viajou para outro mosteiro situado nas montanhas de Hiei para aperfeiçoar os

estudos. Aos 24 anos iniciou uma peregrinação visitando importantes sábios

budistas da época. Aos 43, conta-se que atingiu o estágio de iluminação

estudando os textos sagrados na biblioteca do mosteiro. A partir daí começou a

pregar e a divulgar os ensinamentos de sua escola, conhecida como Terra Pura.

Atraiu uma grande quantidade de discípulos monges e leigos. As obras completas

de seus textos comentando as escrituras sagradas somam 18 volumes. Como já

vimos no capítulo em que falamos de Dogen, os monges budistas japoneses

eram filósofos, pensadores.


182

7.3 – O enigmático termo “iki”

Depois o japonês diz que “Toda a meditação de Kuki se recolhe no iki”.

Esse termo é sinônimo do milenar princípio budista itinen sanzen cuja tradução é:

“Três mil mundos em um instante momentâneo da vida”. É uma vivência usada

para explicar a vida como um todo em sua indivisibilidade, a compreensão total da

existência. Refere-se também à iluminação de Buda. Em linhas gerais é a

capacidade de compreensão. De entendimento das pessoas e sua época.

Itinen Sanzen é também conhecido como a Lei da Vida. Significa que cada

instante da nossa existência contém os três mil mundos. Itinem sugere os

instantes da vida e Sanzen os fenômenos que se manifestam nesses instantes. O

número três mil em parte é simbólico, significando o universo, há uma explicação

numérica, mas não vamos entrar em detalhes porque foge ao propósito de nossa

tese. Representa as infinitas formas e aspectos diferentes existentes no cosmos.

Esse princípio budista quer dizer que todos os fenômenos do universo

estão contidos em um único momento da vida de uma pessoa comum. Podemos

dizer que itinen sanzen equivale à compreensão da rede, pois esclarece a relação

inseparável de cada instante da vida de todos os fenômenos. Em outras palavras,

o cosmos inteiro está condensado na vida de cada indivíduo e a vida desse

indivíduo exerce influência no universo. Cada instante da vida permeia todos os

três mil mundos. É um número mitológico.

Com esta explicação queremos dizer que, ao falecer, o conde Kuki voltou a

essa rede, voltou a essa energia. É preciso lembrar também que o termo “ki”
183

signfica esse fluído vital que dá vida ao universo, presente no oxigênio. Em chinês

é chamado de “chi” e em sânscrito “prana”.

Especificamente, o termo “iki” quer dizer: 1 - Energia espiritual, 2 –

Frescor, 3 – Abandono, 4 – Refinado. Observe que estes quatro estágios são

importantes para a compreensão do momento, do dia a dia, do cotidiano que vai

nos levar ao estágio final de iluminação, pois é como se a união dos estágios

diários chegasse a esse topo.

Energia espiritual – o nome já diz tudo. É a força do prana que está

presente no cosmos e influencia e ajuda a pessoa. É energia e é espiritual. É

espiritual e também é material, pois essa energia vital do universo permeia todas

as coisas, todas as dimensões da existência. É o esforço correto que fala Buda no

caminho óctuplo. Frescor – entendido aqui como algo novo, recém-nascido, como

o frescor da manhã, logo após que o dia clareou, nasceu, surgiu. Abandono – é o

clássico desapego que Buda ensinava. Lembramos que desapego não é

abandono, não é indiferença. Refinado – É próprio do estilo zen, esse caminho

espiritual mostra que arte é vida e assim é preciso refinamento, delicadeza,

sutilidade, beleza, leveza.

Ao pé da letra podemos dizer a respeito de “Iki” que “I” é mente, espírito e

“ki” é energia; logo, o conde Kuki estava se recolhendo, após sua morte, a este

mar, a este oceano onde acontece o Nirvana. A energia da mente o leva para

outra dimensão, mas o espírito, a mente permanece porque isto é energia e a

energia não morre, não desaparece, se transforma.


184

7.4 – Orvalho da manhã

O número 2 – frescor - é o orvalho da manhã. É símbolo da natureza em

toda a sua vontade de vida, de crescer, de ver o dia aumentar, prosseguir, ir,

caminhar. A terceira forma como “iki” se manifesta é “Abandono”. Vem a ser o

famoso desapego budista. Desapego enquanto sabedoria, não é a doentia

indiferença, abandono na forma como está empregado é a consciência das

limitações do viver, é a compreensão do existir em toda a sua plenitude. Por fim o

número 4 – Refinado – algo tipicamente oriental, refinado, artisticamente delicado,

sutil, singelo, importante.

Continuando o diálogo vamos ver, ainda nessa primeira página da

conversa, que Heidegger discorda da estetização européia da arte japonesa.

Querendo abrir-se ao Ocidente alguns japoneses esquecem-se de sua milenar

tradição ontológica, originária e investem na ocidentalização, na europeização

relegando com isso a tradicional leitura da arte japonesa, integrada à physis a uma

leitura estetizante, metafísica.

Sabiamente Heidegger diz que a consideração estética é estranha ao

pensamento oriental e tanto é que o japonês confirma. Ou seja, ao contestar, ao

questionar, o pensador alemão conhecia muito bem os princípios, as bases que

regem a tradicional arte japonesa inspirada no zen. Ele parecia antever que a

ocidentalização do Japão poderia por em risco a tradicional arte oriental.

Chamamos tradicional a forma costumeira de manifestação da arte, sem a

interferência dos condicionamentos europeizantes.


185

Mais adiante, na página 84 do livro A caminho da linguagem, o japonês

pergunta se Heidegger assistiu ao filme Rashomon, do cineasta japonês Akira

Kurosawa. O pensador alemão responde afirmativamente e lamenta só ter

assistido uma única vez, pois é um filme para se ver muitas vezes e refletir sobre

suas questões.

O tema do filme é sobre a dificuldade das pessoas em falarem a verdade.

Quando acontece alguma coisa, aqueles que estão ouvindo os depoimentos, a

polícia ou a justiça têm enorme dificuldade em obter a verdade pura e

simplesmente. É justamente disso que o filme trata. Um questionamento sobre a

verdade e como as pessoas se relacionam com ela.

O enredo, basicamente, trata do assassinato de um samurai e o estupro de

sua esposa. A trama oferece quatro possíveis respostas, bem distintas e

conflitantes entre si. Uma testemunha enveredando pelo real e pela ficção ou pela

imaginação, ou ainda pelo silêncio. Por que agem assim? A película é também

uma reflexão sobre o excesso de parcialidade que existe no mundo. Dificilmente

as pessoas são imparciais em seus relatos. Dificilmente as pessoas “olham as

coisas como realmente são” como recomendava o Buda.

O que é a verdade? Um fato absoluto, inquestionável? Ou apenas uma

aparência manipulada pelos homens, mediante as conveniências? Ou será que o

modo como cada pessoa, individualmente considerada, olha determinada coisa

influencia em suas emoções e sentimentos e assim, a chamada verdade nua e

crua, cristalina, tem dificuldade de aparecer. Observemos que já acrescentamos

ao termo verdade outros esclarecimentos: verdade nua e crua, verdade cristalina.


186

7.5 – O filme

Ambientado no século XI, grande parte do filme se passa em uma floresta.

A floresta é a vida. Os crimes referidos acontecem em uma clareira, os caminhos

que levam a essa clareira são as variadas interpretações. E ainda há mais uma

interpretação possível, as deduções do espectador.

Uma chuva torrencial, desde o início do filme encharca os principais

personagens. O que é chuva? É um símbolo celeste, universal de coisas boas,

sugerindo talvez que a chuva vai fecundar a terra e a verdade de fato vai

aparecer. Antigos textos do Zen-Budismo comparam a chuva à sabedoria que a

meditação ajuda a despertar. No final do filme, a chuva começa a passar, dando a

entender que a verdade está colocada, mas de quatro formas possíveis.

Os depoimentos dão a entender que as testemunhas estão ou na polícia ou

na justiça, entretanto, estes não aparecem. Será que a verdade é a consciência de

cada um. E como ela não se mostra, não é possível tocá-la, ela aparece sob o

diáfano manto do diálogo? Do velar e do desvelar? Será que nós mentimos para

os demais e para nós também? São questões cujas respostas cada um deve

pensar. Talvez as respostas não sejam totalmente lógicas, mas, o que é a lógica?

A vida é lógica? O Zen dá a entender, a compreender que há uma certa lógica na

ilogicidade do viver, e por isso é melhor colocar em evidência o “sendo” e não o

“sou” pronto e acabado.

Mas, e o título do filme Rashomon? É composto de vários ideogramas.

Podemos decompor, para a nossa língua, estes ideogramas em sílabas e letras.

Vejamos: a primeira sílaba Ra significa isenção de impurezas, o que nos leva a


187

pensar que a verdade é feita de isenção de impurezas, é pura, na essência, é

cristalina, no originário, na fonte, todavia, como um rio, vai ao longo de seu curso

poluindo-se, encontrando pedaços de madeira, nem sempre limpos, partes de

terra e vegetação, também nem sempre puras e acrescente-se ainda, a ação do

homem que joga outros poluentes, logo, mesmo que a água nasça cristalina,

transparente pura e bela em sua fonte mais originária, ao longo de seu percurso,

em seu caminho de vida rumo ao oceano, ela encontra, adquire involuntariamente,

acolhe aspectos e fatos desagradáveis.

O som “R” corresponde aos estados de erudição e absorção. Notemos que

um pouco de erudição é importante para o conhecimento das coisas, frisamos um

pouco porque o Buda sempre recomendava “caminho do meio” em tudo, mas

sendo que, cada um sabe ou deve tentar saber, deve conhecer o seu caminho do

meio próprio. E absorção é no sentido da intuição da compreensão búdica das

coisas, do entendimento iluminado, da vivência, da experienciação dos

acontecimentos. Estes estados são conhecidos no Budismo como “10 Estados do

Ser” ou “Dez Mundos”. Isto é, eles se manifestam em dez aspectos, a saber: 1)

inferno; 2) Fome; 3) Animalidade; 4) Fúria; 5) Humanidade; 6) Êxtase; 7)

Aprendizagem; 8) Realização; 9) Natureza Bodhisátvica; 10) Budicidade. Ou seja,

ainda que aparentemente o nome Estado de Erudição ou Absorção seja bonito,

ele abrange estas 10 formas.

Vejamos, rapidamente, cada item: no primeiro é importante não misturar

com o conceito ocidental e cristão de inferno. O inferno no Budismo é temporário e

não é lugar, um local, mas um estado de mente, sendo assim, este estado de

mente encontra-se em qualquer lugar.


188

7.6 – As várias formas de alimento

O número dois é a questão da fome, não apenas a fome de alimentar-se,

mas a comida representada nos seus vários aspectos, por exemplo, assistir a um

bom filme, como Rashomon é uma “refeição”, esse tipo de comida alimenta não

propriamente o estômago, mas o espírito, a alma, o ser como um todo. No item

três “animalidade” temos de cuidar para que este nosso aspecto, esta nossa

dimensão animal não sobrepuje as demais dimensões, pois é aí que reside a

encruzilhada, a bifurcação. Se meditarmos sobre o tema e tivermos a devida plena

atenção vamos desenvolver aspectos construtivos do ser, caso contrário,

corremos o risco de praticar atos que levam ao estado seguinte, atos que

prejudicam o próximo. Até aqui, ao terceiro item só prejudicamos a nós mesmos,

seguindo adiante, enveredamos pelo perigoso caminho do prejuízo aos demais.

O quarto estado de ser ou do Ser é a Fúria e ele é muito prejudicial pois

desperta a energia do desejo de dominar os outros. Para dominar utilizamos

atitudes autoritárias e quase sempre ultrapassamos limites os mais diversos,

quando não ferimos ou matamos, fisicamente ou psicologicamente. O problema

aqui, com este quarto elemento é que ao fazermos isso, estamos no plano da lei

da física, da natureza que nos diz: toda ação corresponde a uma reação. Em todo

agir há uma conseqüência, um desdobramento e é por isso que acontecem as

disputas, guerras e toda sorte, ou má sorte, de violência.

O quinto estado ou melhor, a quinta forma como o Estado de Erudição e

Absorção se manifesta é na Humanidade. A humanidade é o palco onde

interagimos. É onde temos a chance, a oportunidade de, encaminhando-nos para


189

a frente, de forma construtiva podemos despertar as formas mais promissoras de

ser e estar no mundo. Lembrando que cada aspecto do que estamos analisando

também é visto como um mundo, pois a pessoa pode estacionar em um desses,

pode parar.

Caminhando-se nessa trilha chegamos estágio de número seis, chegamos

ao êxtase. Não apenas o êxtase religioso, o êxtase da realização búdica, mas o

êxtase de estar integrado à physis; o êxtase que não faz distinção, que estando

interconectado à rede sente-se completo, percebe-se fazendo parte de um todo.

Podemos verificar na seqüência que tais estados são vivenciados a partir

do mais ínfimo, do estágio do inferno, até o mais superior. Vamos adiante.

O sétimo grau é a aprendizagem. Elemento muito importante na caminhada

filosófica do pensamento budista, pois o fiel, o praticante está sempre aprendendo.

Nunca pára, mesmo ao falecer, continua o aprendizado em outra dimensão da

vida, é uma escalada infinita não para crescer, para se tornar melhor do que outro,

mas para integrar-se, cada vez mais à natureza circundante, à chamada natureza

búdica.

O oitavo momento de imanente transcendência é a Realização. A

realização de saber-se, reconhecer-se e admirar-se que se está no caminho da

Realização e esta realização é com profunda reverência a todos os fatos que

compõem a vida em toda a sua pujança, a vida como um todo, podemos sintetizar,

a vida total, do TAO, em todos os seus meandros, labirintos e entremeios da rede.

Todos estes aspectos têm a ver com a questão da verdade. Vimos, páginas

atrás que sempre colocamos “esclarecimentos” à verdade, mas esclarecimentos

estes que nem sempre esclarecem, podem até confundir ou indicar contradição.
190

7.7 – Dimensão originária da vida

O nono estado de mente é a Natureza Bodhisátvica. Nesse momento a

pessoa tem consciência de que ela está interligada até aos aspectos inferiores da

existência, que em uma dimensão originária da vida, não há separação entre o

mal e o bem, são ângulos, pelos quais escolhemos nossa trajetória, sabendo,

evidentemente que tudo tem um desdobramento, uma conseqüência.

O décimo estado é a Budicidade, podemos também chamar de Budeidade;

a qualidade ou estado do estágio de iluminação. O ápice da compreensão.

“Sho” significa nascimento, caminho e “Mon” é portal, abertura, entrada. Ou

seja, seria uma espécie de Portal da Pureza, o título do filme, mas, onde está a

pureza? Onde está a verdade? Onde está o certo? Ao passarmos por um portal,

ao atravessarmos estamos sendo conduzidos por um caminho que nos levará a

um novo nascimento. Simbolicamente e respeitando-se as devidas proporções é

uma espécie de “Arco do Triunfo” japonês. Uma passagem primordial. Existia de

fato, na antiguidade, e ficava na cidade de Kioto, tinha 30 m de largura e 8 m de

comprimento. Sua altura equivalia a uma casa de dois andares. Com os vários

terremotos ao longo dos séculos, só restou uma coluna, como se fosse um

obelisco, um marco arquitetônico. Data de 1107 d.C.

Era uma travessia ritualística. Todo aquele que por ali passasse estava à

procura da verdade. A verdade, neste caso, é o Caminho budista. Tanto de um

lado, quanto de outro, a vida era a mesma, a cidade era a mesma, mas ser e o

tempo originários eram outros.


191

7.8 – O Teatro Nô

Na página 86 novamente o japonês pergunta se Heidegger leu alguma

coisa sobre o teatro japonês tradicional Nô. E ele responde sim.

A palavra Nô significa poder, talento, fazer algo, realizar, concretizar. É

antiqüíssima essa forma teatral. Origina-se nas danças sagradas rituais

executadas por ocasião das colheitas, inspiradas nas escrituras budistas. Podem

ser classificadas de cinco formas: sobre os deuses, sobre a guerra, sobre a

mulher, sobre os assuntos históricos e sobre temas sobrenaturais,

fantasmagóricos. No primeiro e no último assunto é visível a questão do Sagrado.

Oficialmente as origens desse tipo de teatro são obscuras, se perdem na noite dos

tempos

Heidegger faz referência a um estudo de Oscar Benl sobre Seami Motokiyo,

às vezes, também grafado como Zeami Motokio (1363-1443), filho de Kuanami

Kiotsugu (1333-1384) que na idade média, século XIV compilou muitos textos

orais e os escreveu na forma de peças teatrais.

Autor, ator e dançarino, Zeami teve uma carreira brilhante até que, por

intrigas palacianas, caiu em desgraça com o governo, e para não ser morto, torna-

se monge budista e vai para o exílio. No ano seguinte é perdoado e volta.

Tanto o teatro Nô quanto as outras artes zen são, em grande parte, como

os ritos, manifestações do Sagrado, do novo no sentido originário, do

aparentemente inesperado e concomitantemente um apelo da experienciação que

o budismo nos propõe. Em uma peça teatral, ao se encenar uma planta ou uma

pedra ou qualquer outro aspecto da natureza, da physis, a tradição oral dizia que
192

devíamos respeitá-los e reverenciá-los pois também o reino vegetal e o reino

mineral têm “alma”. E que fora da natureza o ser humano não é completo.

A partir da página 87 os dois começam a conversar sobre o vazio e na

seguinte o japonês faz uma aproximação importante da experiência do vazio, da

descrição do vazio como é visto na filosofia oriental e a descrição de Heidegger

sobre o ser. Diz o japonês: ‘Para nós, o vazio é o nome mais elevado para se

designar o que o senhor quer dizer com a palavra ser...” E o alemão não o refuta,

não discorda dele.

Por fim, o que vemos nesta conversa entre um japonês e Heidegger é que

este último conhecia bem o pensamento oriental, conhecia bem o pensamento

budista a ponto de corrigir em algumas partes o pensamento do japonês e sua

tendência à ocidentalização. Assim, vemos proximidade entre as formulações de

Heidegger e as do budismo zen.

O teatro Nô tem muito de dança, a noção de movimento é importante nessa

arte, pois é um princípio budista de que tudo está em movimento, nada está

parado. Em uma peça deste tipo, o ator não age com grande ênfase, a proposta é

esvaziar-se e assim, sem gestos viçosos, vigorosos ele encontra-se em um jogo

de cena silencioso. É uma arte muda, interior, profunda, bastante requintada. O

público assiste a alusões aparentemente simples, às vezes, a movimentos

contidos em si próprio, esse artista interpreta o texto com sentimento e disposição

de ânimo e emoções.
193

7.9 – O teatro do silêncio

Essa forma teatral tem por base não a palavra, mas sim o silêncio. O

conteúdo é insinuado. Não é narrado. Há peças nas quais o ator, no mais absoluto

silêncio mantém a platéia longamente sob o encanto do gesto, da não-palavra,

através de um desempenho expressivo e por isso algumas vezes é chamado de

dança imóvel, dança sem dançar.

A dança, sabemos, é uma linguagem. É uma forma de organizar o mundo

de forma lúdica. De vivenciar através de ritmos, gestos, melodias corporais e

comunicar-se. A dança zen, a dança budista tem características espirituais. É

também uma forma de meditação, de treinamento interior visando a uma

concentração maior. Diz a lenda que, ao nascer, o bebê Buda, por ser búdico, por

ser divino ensaiou passos para cada um dos pontos cardeais indicando que a

partir daquele momento ele iria ensinar, transmitir o seu caminho em todas as

direções do planeta.

Os textos sagrados registram que muitos mestres iluminaram-se, atingiram

esse estado de santidade e o exemplificaram através da dança, do gesto, falando

de uma outra dimensão de entendimento e compreensão.

É que a arte para o Zen é tão sagrada quanto a vida. A arte se manifesta de

várias formas, em várias correntes e modalidades. A vida também. Podemos até

dizer que são sinônimos: arte, vida, zen, caminho. A experiência originária,

primordial, proporciona a vivência, única e paradoxalmente eterna. Eterna, não

porque se repete, mas porque é plena, infinita.


194

Capítulo 8

O que é o Vazio?

A experienciação do vazio é fundamental tanto no Zen quanto no Tao. Os

dois termos nesta tese são sinônimos. Tao é uma palavra chinesa que significa

caminho. Zen é uma palavra japonesa que significa “meditação”, mas entendendo-

se a prática da meditação como caminho de vida, como experienciação do

caminho, como vivência deste caminho, experienciação do viver.

Queremos crer que este princípio é importante para compreendermos o

pensamento de Heidegger.

No Ocidente, vazio é algo oco, sem nada dentro, podemos até vê-lo como

sinônimos de nada. Vemos neste conceito ocidental uma atitude niilista. Mas não

é assim que o Oriente vê o vazio, mormente a filosofia Zen-Budista. Aliás, é

justamente o contrário.

É interessante que em Introdução à metafísica Heidegger toca, justamente,

na questão do vazio, mas ele chama de “nada”. Aqui ele compreende muito bem o

conceito de vazio do Zen-Budismo. Vejamos:

Por que há simplesmente o ente e não antes o


Nada? Eis a questão. Certamente não se trata de uma
questão qualquer. “Por que há simplesmente o ente e
não antes o Nada?” – essa é evidentemente a primeira
de todas as questões1.
195

O pensador alemão foi muito feliz em sua colocação. É esta a primeira de

todas as questões. Tem a ver com a nossa vida. Tem a ver com o nascer, com o

vir-a-ser, tem a ver com a morte. Notemos que ele escreveu Nada com “n”

maiúsculo, assim quis destacar o termo.

As origens dessa idéia do vazio remontam a Siddharta Gautama quando

ele, no século VI aC instituiu um princípio chamado de “Lei da Originação

Interdependente” ou “Gênese Condicionada”. Siddharta constatou que todas as

coisas estão condicionadas a uma coisa anterior, todas as coisas estão

interligadas, todas as coisas são relativas e interdependentes. Com este raciocínio

ele elaborou a lei abaixo:

1 – Por causa da ignorância (incompreensão da


impermanência), há individualidade e ilusão de um eu;
2 – Através da individualidade estão
condicionadas as ações volitivas ou formações
cármicas;
3 – Através das ações volitivas (cármicas) surge
a consciência ou conhecimento;
4 – Por causa da consciência, há nome e forma,
ou através da consciência estão condicionados os
fenômenos mentais e físicos;
5 – Por causa do nome e forma, há os seis
sentidos, ou através dos fenômenos mentais e físicos
(mente e corpo) estão condicionadas as seis faculdades
sensoriais: visão, audição, olfato, tato, paladar e a
faculdade do órgão da mente;
6 – Por causa dos seis sentidos, há o contato;
7 – Por causa do contato, há a sensação;
8 – Por causa da sensação, há desejos;
9 – Por causa dos desejos, há apego;
10 – Por causa do apego, há existência individual
(de um “eu”), ou através do apego surge o
condicionamento do processo de vir-a-ser;
11 – Por causa da existência individual, há
existência terrena, ou através do processo de vir-a-ser
surge o processo cármico (nascimento);
196

12 – Por causa da existência terrena, há


decadência e morte, ou através do renascimento ficam
condicionados: a decadência, a velhice, a morte,
lamentações, sofrimentos, tristezas e desespero2.

No item 1, ignorância, podemos colocar o sinônimo ilusão,

desconhecimento. A pessoa não sabe, desconhece que agindo dessa forma a

situação terá esse desdobramento. Ela não tem o conhecimento da realidade. Ela

ignora que todas as coisas são ilusórias, impermanentes, carecem de um sentido.

Ignorância diz respeito às três características da vida, a pessoa desconhece que

esta existência é impermanente, insatisfatória e impessoal. Assim agindo e

pensando a pessoa desenvolve o conceito de um eu eterno, alimenta a ilusão de

que as coisas permanecem. Desenvolvem então os conceitos de “isso é meu”,

“isso é teu” e não conseguem ver a interligação, a interdependência que há entre

entre estes dois seres: eu e tu. Ocorre também muito sofrimento quando um

destes fatores passam, desaparecem, pois a transformação é parte da vida, faz

parte da vida, é a própria vida.

O item 2 nos fala sobre as formações cármicas. É preciso entender esta

questão, pois há em nosso país, diversas interpretações para esta palavra. Mas o

que o Buda falava é que o tal conceito de um Ego permanente, indissolúvel faz

com que a pessoa, pensando-se eterna ou esquecendo-se de sua finitude, aja

sem bom senso, equilíbrio ou, o que ele chamava, de Caminho do Meio, evitando

sempre os extremos.

Esta quase “cegueira” espiritual faz com que o homem viva em um mundo

ilusório, orientando suas vontades para fatos passageiros, dando muita

importância a aspectos irrelevantes no dia-a-dia.


197

Carma, ou karma, em sânscrito, é uma palavra que significa “ação”. A

ignorância, a ilusão, o desconhecimento faz com que estas ações, fruto de

vontades tenham desdobramentos nem sempre construtivos, mediante a sua

origem.

A volição, ou vontade; assim como as percepções e sensações têm seis

formas (os cinco sentidos mais a mente) que, por sua vez, estão relacionadas com

as seis faculdades sensoriais e com os seis tipos de objetos físicos e mentais

correspondentes. Com isto temos os “18 elementos psicofísicos”.

Este dado é importante porque mais adiante vamos verificar que o Vazio se

apresenta, se manifesta em 18 formas:

“Seis bases internas: (órgãos – parte


material), a saber: olho, ouvido, nariz, língua,
corpo, mente. Seis bases externas: parte material
e mental), a saber: formas visíveis, sons, odores,
sabores, objetos que tocam o corpo, objetos da
mente (material e mental). Seis tipos de
consciência: consciência visual, consciência
auditiva, consciência olfativa, consciência
gustativa, consciência tátil e consciência
mental3.”

Buda explicava que este nosso Ser é um composto com estes 18 itens que

interagem para formar a ilusão de um eu perene. Ou seja, uma pessoa é o

somatório destes aspectos, como se fosse um aglomerado, uma estrutura

compósita. Por isso é que as volições, as formações cármicas, isto é, as ações,

toda e qualquer ação passa por estes 18 elementos psicofísicos.


198

O item 3 nos fala da consciência ou conhecimento. Conhecer é ter

consciência. Conhecer é saber. Conhe-ser. Neste sentido, conhecimento não é

informação. Conhe-ser aqui é algo originário, que remonta à essência dos povos.

Esta consciência também pode chamar-se Pensamento.

O item 4 apresenta a questão do nome e forma. Tudo tem nome e forma,

em tudo há um/a condicionante. Quando vemos algo, vemos, identificamos,

rotulamos através de um nome e uma forma, com isso, afloram os nossos

conceitos, pre- conceitos, sentimentos, emoções, lembranças, projeções para o

futuro as mais diversas. Desde uma paisagem até qualquer outra coisa. É por isso

que se diz que tudo é vazio, é ilusório, é impermanente, pois temos dificuldade em

ver, de fato, pelo simples fato de ver, apreciar, contemplar. E Heidegger nos fala

de algo, de uma experiência semelhante quando descreve um quadro, uma

pintura onde se vê um sapato, em A origem da obra de arte. Por exemplo, ao

olharmos um par de sapatos vamos rotular: grande/pequeno, novo/usado,

feio/bonito, caro/barato, atual/antigo. Heidegger vai mais longe, é a questão:

mundo, terra que é igual a arte.

Ou seja, estamos sempre imersos nessa dualidade, nessa dicotomia. É

difícil ver o ser do sapato, a essência do calçar-se, de andar calçado.

Nesse item 4 Buda aprofunda o tema da consciência e diz que a

consciência condiciona os 18 fenômenos psicofísicos. No exato momento em que

tomamos consciência do mundo exterior, a percepção que temos dele é

condicionada. E vamos ver através dos rótulos e agir mediante nossas deduções

advindas desse “ver”.


199

O item 5 trata dos seis sentidos, ou seja, os cinco sentidos, propriamente

ditos mais a mente. No dizer de Buda, estas faculdades são janelas, através das

quais entramos em contato com o mundo que nos cerca.

O item 6 ocorre quando os seis sentidos condicionam o contato com

alguma coisa. É sempre uma reação em cadeia, um elo puxando o outro. À

medida que este contato é estabelecido automaticamente desenvolve-se o apego,

tanto se o contato for agradável, quanto desagradável. No primeiro caso pretende-

se renová-lo, gerando mais apego e no segundo, há repulsa, mas esta repulsa

também é uma forma de apego.

O item 7 fala das sensações. Estas são a resultante do que aconteceu com

os contatos gerados a partir dos seis sentidos. Podem ser sensações agradáveis,

desagradáveis e neutras. De uma forma ou de outra o apego se faz presente. Os

nossos rótulos vão indicar qual é o nível em que vamos querer ou deixar de querer

uma coisa.

O item 8 trata dos famosos desejos, quaisquer que sejam eles. Ter desejos

faz parte da vida, o organismo para sobreviver e se perpetuar requer desejos,

deste modo, existem os desejos saudáveis, mas nesse caso, o que Buda fala são

os desejos doentios, neuróticos, em qualquer área e não necessariamente no

campo da sexualidade como se pensa em primeira instância. Pode ser um

problema de tradução, pois a palavra em língua páli, usada pelo Buda, naquele

tempo era tanha. Mas o termo “tanha” tem essa característica de excessividade,

de exagero, de extrapolar o limite, o equilíbrio, o Caminho do Meio que Buda tanto

recomendava, a eqüidistância entre os pontos extremos. Tanha é o desejo

egoísta, que só pensa em si e ignora os outros, o próximo.


200

O nono item é a questão do apego. Novamente, neste caso, é preciso

entender que há um bom senso, e um tipo de apego saudável, entretanto, o apego

falado aqui é aquele que junto com a ansiedade e com os transtornos gerados por

um viver desequilibrado colaboram para uma série de sofrimentos.

O item 10 nos fala do processo de vir-a-ser. A vida em si é sempre um ato

de vir-a-ser, estamos sempre inseridos neste contexto. Querendo mais e mais,

qualquer coisa que nos faça bem, ou que pensamos que, naquele momento,

aquilo nos faz bem.

O item 11 trata do renascimento. É um tema polêmico e complexo. Pode-se

abordá-lo pelo aspecto de que estamos todos renascendo a cada momento, a

cada instante e também pelo dogma da reencarnação. Entretanto, é importante

frisar que algumas correntes budistas, como o Zen, por exemplo, não se

preocupam com este item. Se isso existe ou não, não é relevante. Neste sentido o

Zen é hermenêutico, originário, enquanto outras correntes budistas são

metafísicas. É preciso pensar o budismo em um contexto plural.

O 12 e último elo fala do fim a que estamos todos sujeitos, da decadência e

da morte. Dizem os textos que foi para superar esta decadência e morte, e

também o constante renascimento que Buda transmitiu os ensinamentos ao longo

de 45 anos. Estes 12 itens estão sempre interagindo ente si e com outros.

O pensador japonês Daisetz Teitaro Suzuki que, em 1923 introduziu o

pensamento zen-budista na Europa, e que esteve pessoalmente com Heidegger,

em sua casa, na Alemanha, em sua obra básica, em três volumes, ainda inédita

na língua portuguesa, Ensaios sobre Budismo Zen, afirma no terceiro tomo que,
201

desde a mais remota antiguidade, os textos clássicos do Budismo enumeram 18

formas de vazio, a saber:

1) Vazio das coisas interiores

2 ) Vazio das coisas exteriores

3) Vazio das coisas interiores-e-exteriores

4) Vazio do vazio

5) Grande vazio

6) Vazio da verdade última

7) Vazio das coisas criadas

8) Vazio das coisas incriadas

9) Vazio último

10) Vazio da ilimitação (do ilimitado?) a interrogação é nossa

11) Vazio da dispersão

12) Vazio da natureza primária

13) Vazio do eu

14) Vazio das coisas

15) Vazio do inexeqüível

16) Vazio do não-ser

17) Vazio da auto-natureza

18) Vazio do não ser da auto-natureza

O primeiro item “vazio das coisas interiores” significa o vazio das seis

consciências. Quando o Zen afirma que elas estão, são vazias isto quer dizer que
202

todas as nossas atividades não têm substância alguma, não tem perenidade, não

tem eternalidade, são mutáveis, transitórias, passageiras. As seis consciências

são as que vimos anteriormente, o ato consciente de se tomar ciência dos nossos

seis sentidos. Metafisicamente falando, se fala na dicotomia interior e exterior e

este primeiro vazio quer dizer que estas coisas ditas “interiores” são vazias,

carecem de um sentido.

O segundo item, “vazio das coisas exteriores” são os objetos das seis

consciências e novamente, a assertiva que por trás delas não há nada que as faça

existir sempre, como o mundo está sempre em transformação, estas seis

consciências chegam à conclusão de que estas coisas exteriores carecem de um

sentido. Novamente tem a ver com a dicotomia interior e exterior que falamos

antes. Se não existe essa coisas chamada interior, logicamente não vai existir

essa coisa chamada exterior. Estes dois conceitos são da metafísica. De acordo

com este item, a bem da verdade, tudo o que a experiência nos evidencia a partir

da prática dos seis sentidos são coisas vazias, não existem por si só, para

existirem são necessárias a participação e a presença de diversas coisas.

O item 3 “vazio das coisas interiores-e-exteriores” mostra que o Zen ao

questionar a dicotomia da metafísica, vai mais além e descobre que há um terceiro

conceito aí implícito, criado, naturalmente, por essa divisão. Por mais que se tente

excluir, ou analisar o mundo interior e o mundo exterior, as duas estão

visceralmente unidades. Se uma não existe sem a outra, há, portanto, uma nova

etapa que mostra as duas separadas e unidas ao mesmo tempo. Por mais que

tentemos exemplificar cairemos nesse vazio.


203

O item quatro trata do “Vazio do vazio”. Quando compreendemos que as

coisas, os fatos, as situações internas e externas são, em sua totalidade, em sua

originariedade, em sua essencialidade, completamente vazias, somos tentados a

pensar o vazio como algo metafísico, mas para não cairmos nessa armadilha o

Zen propõe o “Vazio do vazio”, para retirar o nosso apego, qualquer que seja ele,

pois com o apego inventamos logo a muleta metafísica. O vazio não é um

pensamento, não é uma idéia, se assim o fosse tornava-se conceito, definição, o

vazio é uma experiência indizível, silenciosa. Definir o vazio é semelhante a limpar

uma casa e deixar um montículo de poeira em algum lugar, ora, esta casa não

estará limpa. Não estará vazia de pó, nem estará limpa.

O número 5 é a irrealidade do espaço, é o Grande Vazio. Na antiguidade se

pensava o espaço como algo concreto, objetivamente real, mas o Budismo

considera o espaço como algo vazio. As coisas, quaisquer que sejam elas,

animadas ou não, estão sujeitas, no espaço, às leis de nascimento e morte, isto é,

elas são governadas por leis que regem o universo. O item 5 nos lembra ainda

que o espaço infinito estando onde sempre esteve, ainda assim é vazio porque

está em movimento, em transmutação. Como? As coisas que ele abarca, envolve,

estão, em última instância, em constante mudança. A vasta vacuidade do espaço

tampouco tem realidade objetiva, concreta, palpável.

O item 6, o “vazio da verdade última” nos leva a pensar, a interrogar, a

questionar, a inquirir, qual é a verdade última? Quem é a verdade última, qual é a

forma da verdade última? Significa que o ser, a essência, o ponto fulcral, inaugural

de todas as coisas é o estado que existe além de toda subjetividade. Esse vazio é

algo não a destruição, é algo que não nasce, ele existe por si só. O vazio da
204

verdade última nos mostra que a “verdade última”, qualquer que seja ela, é vazia

porque ao tentarmos definir o que é ou o que não é, estaremos caindo no fosso da

metafísica. Se a verdade última fosse uma fração do real seria um daqueles

objetos condicionados e encadeados nas leis da causalidade. Portanto, o “vazio

da verdade última” é esse grande e misterioso real. Se podemos anexar alguma

coisa à Verdade Última, ela deixa de ser Verdade Última, pois o que é

acrescentável é verdade temporária. O vazio da Verdade Última é indefinível.

Os itens 7 e 8 se aproximam muito: “vazio das coisas criadas e vazio das

coisas incriadas (não criadas). Podem ser estudados juntos. Como o nome bem

diz o “vazio das coisas criadas” evidencia que todas as coisas que são criadas são

vazias, são imperfeitas, são fugazes, são incompletas. São coisas que existem

devido às condições de causalidade. A existência, ao mesmo tempo, que é criada

ela é incriada e é por isso que se diz que ela é vazia. Ela existe e continua

existindo, trocando-se, sempre que possível de dimensão. O mesmo acontece

com as coisas incriadas, verificando-se na essência, na originariedade, vamos

constatar que é apenas um jogo de palavras, distinções relativas, convenções e

como tal imersas na vacuidade total, no vácuo eterno, eternal.

O item 9 enfatiza a idéia de que todas as coisas estão, são total e

absolutamente vazias. “Último” aqui significa absoluto. A negação da realidade

objetiva de todas as coisas é sustentada incondicionalmente. O “vazio do vazio”

significa praticamente a mesma coisa. Vazio do vazio e vazio último são similares.

O budismo nos diz que a partir de um ponto de apego se pode fabricar um

mundo de pluralidades e, portanto, de possibilidades, de aflições e dores. O vazio


205

está mais além de toda qualificação possível, mais além de uma cadeia infinita de

dependências. E este mais além é o nirvana.

No item 10, quando se diz que a existência não tem princípio, as pessoas

pensam que existe algo como ausência de princípio e, às vezes, se apegam a

esta idéia. Ficam então dois pólos: aqueles que acreditam em um princípio, em

uma origem e os que não acreditam em princípio, em origem. São duas posições

antagônicas, duas defesas intelectuais e não vivências. Por isso Suzuki fala em

“vazio do ilimitado”, vazio da ilimitação, vazio do não limite. A grande verdade do

Vazio é que ele está acima de todas esses antagonismos. O ser humano se perde

em dicotomias, em inícios e ausências de inícios, mas o que este item quer nos

dizer é que o Vazio está muito além de qualquer definição relativa. O Vazio está

acima dos opostos e, contudo, também está com estes opostos, também está

dentro destes opostos. E é por isso que Buda falava tanto em Caminho do Meio.

A 11ª forma em que o vazio se manifesta é o “Vazio da dispersão”. Neste

mundo ao mesmo tempo que as coisas são simples, de um ponto de vista, elas

são complexas de outro ponto. Como tudo está em constante mutação, em

constante transformação, dizemos que tudo é Vazio, porque as coisas caminham

para essa dissolução ou transmutação. Podemos ver tais mudanças como

dispersão. Tudo vai se decompondo, se dispersando, se diluindo. Vejamos as

instituições políticas, as instituições civis, as instituições religiosas, as instituições

econômicas. Os questionamentos são muitos. Parece haver uma certa unidade de

dispersão em todas as coisas, mesmo assim, podemos ver que esta dispersão é

vazia, também encaminha-se para a dissolução, não há sustentação e por isso é

que ela é vazia.


206

A 12ª forma de vazio, o pensador japonês chama de “vazio da natureza

primária”. Nos antigos textos budistas se diz que esta característica é que indicava

a natureza das coisas. Por exemplo, é este tipo de vazio que faz com que o fogo

seja quente e a água seja fria. É a natureza primária de cada objeto individual, em

si. Quando o Buda afirma que estas formas primárias são vazias é que elas são

constituídas de coisas transitórias em suas essências. Por exemplo, por maior que

seja um fogaréu, um incêndio, mas ele passa, ele muda, ele acaba, ele se

transforma. Do mesmo modo a água. Por maior que seja um rio ou um oceano,

eles estão sempre em movimento, não param. Quer pela ação do homem que

modifica o curso dos rios ou faz aterros em partes do oceano, quer pela ação da

natureza, esta natureza primária é dinâmica, não é parada e não tendo substância

em si, os budistas chamam de vazia. A própria idéia de natureza primária já é

vazia pois, implicitamente, deduz-se que se há uma natureza primária, há uma ou

mais de uma natureza secundária, terciária, quaternária etc. Então é um conceito

e sendo um conceito é vazio. Todas as coisas são produtos de várias causas e

condições. Não há nada auto-originante, a não ser o próprio Vazio. E aqui

chegamos à grande questão. O Vazio é Deus? O Vazio é o Da-sein? São

questões, não queremos responder, não queremos fechar, queremos deixar em

aberto para pensarmos. A chamada natureza primária de todas as coisas não é

isolada, não é solitária, logo está inserida em um contexto, tem ligações com tudo

o mais na rede a que Manuel Antonio de Castro se refere, logo a natureza primária

de todas as coisas também é vazia.

Chegamos então à 13ª forma de vazio, como ele se manifesta, e temos

então o “vazio do eu”. Vamos dizer que o eu é o lado inteligível de cada aspecto
207

individual, ou seja, cada pessoa. Com isso podemos pensar que em cada aspecto

individual há um lado não inteligível e outro inteligível e ambos atuam; às vezes

um, às vezes outro, às vezes os dois concomitantemente. O Buda nos diz que os

aspectos externos e perceptíveis das coisas estão e são vazios, porque são meras

aparências resultantes de complexos fatores.

O item 14 “vazio das coisas” nos diz que a afirmação de que todas as

coisas estão e são vazias é muito ampla e quando, realmente, compreendemos

que, de fato, estão e são vazios aspectos e coisas não necessitamos de

detalhados comentários posteriores. Essas constantes repetições são

contribuições para que melhor se apreenda o ensinamento sobre o Vazio, pois, ao

mesmo tempo em que é relativamente fácil de se compreender, é difícil de se

aceitar que tudo é, de fato, vazio, não tem substância perene e sofre “n”

transformações ao longo da vida e a vida é um processo, um continuum infinito.

Segundo o Buda, todas as coisas estão dotadas das seguintes características,

todavia, tais características, referidas a seguir, são em sua mais intrínseca

natureza, vazias:

a) Existencialidade – é a característica, é a qualidade de que as coisas, as

pessoas, o fatos, as situações, a rede, o ecossistema existe. Tudo o que nos é

visível, existe. E, de certa forma, ainda que não possamos provar, totalmente, o

que é invisível “existe”, mas em outra dimensão, que não a dimensão física. Esta

última afirmação é discutível, entretanto, faz parte do campo de atuação da

existencialidade.

b) Inteligibilidade – tudo o que existe tem uma certa inteligência. Esta

inteligência nos seres inanimados se manifesta como uma funcionalidade, uma


208

objetividade, um para que serve. Por exemplo. A funcionalidade de uma cadeira é

que ele serve para sentar. Já os seres vivos tem uma inteligência que se

manifesta na preservação da espécie, na força da vida, no instinto. E o ser

humano tem as várias inteligências conhecidas.

c) Perceptibilidade – nós estamos vendo que é uma seqüência. Primeiro a

coisa existe, depois ela tem a sua forma, a sua maneira de ser inteligente, a seguir

estes três fatores são perceptíveis. Claro, tudo o que existe, tudo o que é tem a

sua maneira de mostrar-se, de evidenciar-se, de fazer-se perceptível e de ser

percebido.

d) Eficiência – é o bom funcionamento, é o fluir das coisas que estão

sempre fluindo. Qual é a eficiência de uma cadeira? É que ela sirva para

sentarmos. Que ela esteja firme, não quebre, esteja inteira. Assim, as demais

coisas são ou devem ser. Inclusive, nós, seres humanos, somos cobrados, e nós

cobramos esta eficiência.

e) Causalidade – nós estamos imersos em um mundo de causalidades.

Estamos sempre procurando as origens, as causas para coisas que são finitas.

Tudo o que existe, tudo o que vem sendo colocado nesta listagem está no plano

da finitude, já o vazio é infinito. Não se pode medi-lo, não se pode mensurá-lo.

Nos encontramos em um plano finito, assim estamos sempre procurando a causa,

a origem, a essência, entretanto, também nos encontramos em um plano infinito.

É o macrocosmo no microcosmo e vice-versa.

f) Dependência – somos interdependentes. A imagem da rede se encaixa

perfeitamente nesta característica. A rede nos diz que um fio (consideremos uma

teia de aranha) está intimamente, visceralmente ligado com o outro. Um puxa o


209

outro, um diz respeito ao outro. Deste modo, estamos inseridos em um contexto

de interdependência.

g) Mutualidade – como se fosse o elo de uma corrente, cada item destas

características estão encadeados, assim é fácil ver que se há uma dependência

há uma mutualidade, as coisas são mutuais, quer dizem, vem e vão, vão e voltam.

h) Dualidade – é o tradicional bem e mal, feio e bonito, alto e baixo, gordo e

magro. Mas a proposta do Budismo é ultrapassar esta dualidade. Estamos

imersos em um mundo dual, mas através dos ensinamentos do Buda, vamos

compreender que estes conceitos são finitos, são relativos e precisamos ir além.

Chegaremos então a um momento, que é conhecido como “iluminação” que estas

dicotomias já não fazem mais sentido. Percebemos que os textos de Heidegger

também nos propõem semelhante atitude desafiadora, situarmo-nos além destes

conceitos e outros semelhantes.

i) Multiplicidade – se olharmos bem, as coisas são múltiplas. Nós somos

múltiplos. Buda percebeu isso muito cedo. Ele entendeu que nós somos uma

reunião de aspectos físicos, mentais, emocionais, sociais, econômicos, afetivos

etc e cada um pode ser desmembrado. Por exemplo, no aspecto físico temos pele,

ossos, órgãos, sangue, músculos etc e nos demais aspectos também. Somos uma

multiplicidade que se manifesta no item seguinte e só assim podemos existir. Ao

compreendermos esta dialética viveremos melhor.

j) Individualidade – apesar de todo esse pluralismo somos únicos, mesmo

gêmeos univitelinos não são iguais. São muito parecidos, mas igualdade neste

sentido não existe. Igualdade talvez seja uma utopia e aplicada ao campo social e

política foi muito mal interpretada. Somos indivíduos e uma boa forma de talvez
210

experenciar essa proposição seja a conhecida fórmula macrocosmo no

microcosmo. Entretanto, pelo fato de ser conhecida não quer dizer que seja

repetitiva, pois se for deixa de ser vida, deixa de ser poesia, deixa de ser poética.

As dez características acima, de acordo com os textos budistas não têm

permanência nem estabilidade, são relativas, fenomênicas. Na verdade, são

características, pelas quais nos apegamos, entretanto, se olharmos a fundo

veremos que são vazias. O senso comum não consegue ver dentro da natureza

de todas as coisas, ver na origem, ver na essência, e por isso se apega à idéia de

uma realidade parada, inerte, eterna, mas o que caracteriza a Eternidade é o seu

dinamismo, a sua dinamicidade. Não estar parada, estar sempre em movimento.

O item 15, o “vazio do inexeqüível”. Esta categoria de vazio se conhece

como inalcançável. Não é que a mente seja incapaz de fazer, de realizar aquilo

que se quer ou se pretende, mas sim que, na realidade, não há nada que seja

objetivamente compreensível, entendível. Este tipo de vazio nos faz lembrar que,

justamente por esse fato relatado, não há nada objetivamente compreensível,

entendível, e que nos remete às diversas leituras, interpretações. O vazio sugere

o nada, mas quando o qualificamos como inexeqüível ele deixa de ser uma

proposição negativa. É inexeqüível precisamente porque não pode ser um

pensamento do pensamento relativo. Nesse instante, para a compreensão,

precisamos acessar a sabedoria. Para os sábios budistas, este vazio é uma

realidade, é o real.

Os itens 16, 17 e 18, o pensador japonês Daisetz Teitaro Suzuki afirma que

podem ser vistos juntos. Todos os dezoito itens são complementares, um contém
211

o outro, mas estes três últimos representam uma unidade de vazios que se

apresentam como um tríduo: “vazio do não-ser”, “vazio da auto-natureza” e “vazio

do não ser da auto-natureza”, respectivamente 16, 17 e 18 nos falam que a

natureza aqui é considerada desde o ponto de vista do ser e do não-ser e estes

dois critérios, já estão por si só, vazios. O vazio é o resultado de uma intuição, de

uma experiência, de uma experienciação.

Toda esta teoria budista do vazio que nos leva a uma experiência da

intuição nos sugere que estamos inseridos em um círculo, como se fosse os elos

de uma corrente, um puxando o outro e dando lugar ao seguinte, sem esquecer os

anteriores. O vazio é impensável. O pensamento discursivo, conceitual não pode

demonstrá-lo, a lógica se mostra falha, caso queiramos utilizá-la para falarmos do

vazio.

Para encerrar este capítulo sobre o vazio queremos fazer uma citação de

Heidegger. Em O princípio do fundamento4, o pensador alemão declara: “Nada é

sem fundamento”. Isto coincide com a proposta de gênese condicionada do Buda.

Há sempre algo anterior que gerou o fato. Temos a ação e a reação, o agir e o re-

agir. Na página 14 dessa obra o filósofo completa: “talvez o princípio do

fundamento seja o mais enigmático de apenas todos os princípios possíveis”.

Realmente, algumas leis que o Buda sugeriu como o vazio são enigmáticas e

reais.

Seguindo esta reflexão chegaremos ao salto mortal, ao abismo abismal, o

sem fundo. E mais uma vez nos lembramos do Zen. Há um treinamento budista

que se faz nas montanhas. Os monges ficam pendurados nos abismos, em

situações difíceis. Para vencer o medo da morte...


212

Notas do Capítulo 8

1 – HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro, Tempo

Brasileiro, 1978, p. 33.

2 – SILVA & HOMENKO. Budismo: psicologia do autoconhecimento. São Paulo.

Pensamento, s/d, p. 167.

3 – Ibid., p. 53.

4 – HEIDEGGER, Martin. O princípio do fundamento. Lisboa, Instituto Piaget,

1999, p. 14.
213

Conclusão

Inevitável diálogo

Como dissemos no início, nossa tese é de principiante, no sentido filosófico

e budista do termo. Tentamos demonstrar que há uma proximidade muito grande

entre o pensamento de Heidegger e o pensamento de Buda, por isso trouxemos a

questão de que Buda também é um pensador originário.

Inspirados em Heidegger, criamos alguns neologismos e fizemos outras

provocações na grafia, na forma de escrever. Inspirados em Buda, pensamos o

Budismo como um método, como uma filosofia, como um pensar, como um

pensamento que vem ao longo desses 2550 anos, comemorados recentemente,

uma questão instigante em áreas contemporâneas do saber. E vamos ficar só na

filosofia.

Tentamos aproximar pensamento oriental e ocidental. Procuramos ler a

obra de Heidegger também como um texto budista. Queremos deixar esta questão

em aberto. Não estamos afirmando categoricamente, não é nosso propósito fazê-

lo. Vemos a obra do pensador alemão como um oceano de possibilidades e dentre

estas possíveis leituras, identificamos o Budismo.

Começamos a tese com uma epígrafe de Heidegger onde ele fala do

inevitável diálogo com o mundo do Extremo Oriente. E aqui entra o pensamento

budista. Ou seja, é impossível ignorarmos o pensamento de Buda e toda uma

cultura que se desenvolveu a partir daí. Fica evidente em nosso texto que o

pensador da Floresta Negra conhecia o pensamento budista e reconhecia a sua

importância para o saber ocidental.


214

Se estamos em tempo de rede, e sempre estivemos, só que agora esta

reflexão se torna mais necessária do que nunca, é tempo então de olharmos com

outros e melhores olhos a filosofia oriental.

Na segunda epígrafe mostramos um trecho, de 1240, do monge Dogen,

fundador da filosofia no Japão. Avaliamos então que a proximidade entre os dois

pensares é notória.

Na terceira epígrafe constatamos o encanto, o enlevo que Heidegger sentia

pelo mundo japonês. Muito importante ele ter escrito isso. A formação do Japão

está intimamente ligada ao Budismo. É impossível separar um e outro. Ao travar

conhecimento com um, automaticamente se trava conhecimento com outro.

No filme em questão, Rashomon, cremos que o religioso que tem as vestes

rasgadas e envelhecidas é um monge budista. Primeiro tem a cabeça raspada,

como a grande maioria dos monges budistas, depois o estilo de roupa, o corte do

tecido, do manto, nos faz pensar nas roupas que os clérigos budistas usam. A cor

preta é outro indicativo, se bem que essa cor não é prerrogativa só das roupas do

Budismo. Outras religiões também usam.

A tradução do filme coloca o termo “padre”, como são caracterizados os

religiosos do cristianismo. Acreditamos que deve ser um equívoco do tradutor. Ou

talvez o termo tenha sido colocado assim para alcançar o grande público.

Interessante que o religioso não tem nenhuma aura de santidade ou de diferença

com os demais personagens e isso pode indicar que os religiosos são pessoas

comuns passíveis de todos os erros como os demais, inclusive o fato de estar

enganado ou então mentir propositalmente.


215

Pode indicar também que a verdade religiosa é falível. E assim estamos

todos a pro-cura da verdade. E que a verdade pode ser um quebra-cabeça a ser

montado, um enigma, na linguagem zen, um koan a ser des-vendado, desvelado.

Ao longo desta tese, várias vezes falamos em koan. Vamos ver mais um:

O Buda contou uma parábola em um


sutra:
Um homem que viajava através de um
campo encontrou um tigre. Ele correu, e o tigre o
perseguiu. Chegando a um precipício, ele
agarrou a raiz de uma videira selvagem e atirou-
se no abismo. O tigre o farejava lá de cima.
Tremendo, o homem olhava para baixo, onde,
bem lá embaixo, um outro tigre estava esperando
para comê-lo. Somente a videira o sustentava.
Dois camundongos, um branco e outro
preto, pouco a pouco começaram a roer a
videira. O homem viu um saboroso morango
perto dele. Segurando a videira com uma mão,
ele arrancou o morango com a outra. Como era
doce o seu gosto!1

Este koan é um resumo da vida. Não é uma pergunta no sentido tradicional,

mas é a grande questão da vida humana na Terra, de nossa travessia por esta

existência. A viagem pelo campo é o nosso dia-a-dia. O primeiro tigre bem pode

ser o Tempo, as experiências e os obstáculos que encontramos a cada momento.

Neste sentido, a questão se transforma em perguntas conhecidas: o que fazer?

Como agir? Como seguir, como continuar vivendo, como continuar sendo?

Os dois camundongos são o dia e a noite, a claridade do dia e o escuro da

noite que vão corroendo o nosso Tempo de passagem, nossa travessia. O

segundo tigre é a morte, mas que fazer para sobreviver ou conviver com o

espectro da morte? Só mesmo saboreando o morango da vida ! Só isto.


216

Para um koan, “Há muitas respostas certas e também não há nenhuma”2.

Tentamos ler a obra do pensador alemão como um koan. Não vimos respostas,

vimos questões e abordamos o Sagrado como outra questão... quesTAO.

Zeljko Loparic, em seu livro Heidegger 3, afirma que as obras completas do

filósofo da Floresta Negra, que estão sendo publicadas, constituem-se em 102

volumes. Cerca de dois terços são conhecidos, mas ainda há muito o que esperar.

Nos seus pensamentos, Heidegger


procurou paisagens ainda mais distantes. O
Oriente, o Japão e, em particular, a China foram
os lugares que visitou dessa forma. Para o Japão
o chamavam os seus alunos japoneses, as
pinturas de Van Gogh e a poesia de Bashô.
China era a terra onde se falou em Tao4.

Mais adiante, na página 39, Loparic é bem claro: “Heidegger era leitor de

Lao Tse. Em plena crise de 1945-46, ele tentou traduzir partes do Tao Te King”.

Nesta tese, já falamos, rapidamente de Lao Tse, o lendário mestre de

Chuang Tzu. Quanto ao Tao Te King, que tem várias traduções em português, é

obra atribuída a Lao Tse e sintetiza o Tao, o Caminho, a Vida. Como também já

vimos, os três são sinônimos e lembram muito o originário pensamento zen-

budista.

Portanto, esta é a nossa tese: o ilustre professor Heidegger conhecia, e

muito bem, o pensamento de Buda. Quem sabe, nos mais de 30 volumes que

ainda faltam sair na Alemanha, não tenhamos nesta área, no inevitável diálogo

com o mundo do Extremo Oriente, agradáveis surpresas?


217

E com isso queremos propor à academia um outro olhar sobre o que

chamamos de Filosofia Oriental, também conhecida como Pensamento Asiático. É

uma tentativa de contribuição, de colaboração. É um início do inevitável diálogo. E,

como somos, filosófica e budisticamente, principiantes, concordamos com

Heidegger na primeira epígrafe deste trabalho porque “trata-se de um diálogo que

mal se acha preparado”. Estamos no Caminho, estamos a Caminho, mas apesar

de estarmos “mal” preparados temos consciência da inevitabilidade desta

conversa.

Lançamos mão do Sagrado, e o vimos, o lemos sob a ótica búdica. Falar do

Sagrado é falar do Vazio, por isso, iniciamos nossa tese com uma folha em

branco, e terminamos com uma folha em branco, não apenas sugerindo o vazio,

as possibilidades e potencialidades que ele implica, mas também o originário da

questão do ser.

Na página 87 do diálogo entre o pensador e o japonês Heidegger5 declara:

“O vazio é então a mesma coisa que o nada, isto é, o vigor que procuramos como

o outro de toda a vigência e de toda ausência?” e o japonês responde: “De certo.

É por isso que no Japão logo entendemos a conferência O que é metafísica? Que

nos chegou em 1930, numa tradução feita por um estudante japonês, seu ouvinte.

Ainda hoje estranhamos que os europeus pudessem ter caído na armadilha de

interpretar niilisticamente o nada discutido na conferência. Para nós, o vazio é o

nome mais elevado para se designar o que o senhor quer dizer com a palavra

ser...”.

Eis6 tudo.
218

Notas da Conclusão

1 – REPS, Paul. Histórias zen. Brasília, Teosófica, 1999, p. 34.

2 – Ibid, p. 93.

3 – LOPARIC, Zeljko. Heidegger. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.

4 – Ibid. p. 33.

5 – HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis e Bragança

Paulista. 2003, p. 87.

6 – Eis * – qual é o tempo deste eis? Trata-se do poema de Hölderlin, Como em


dia de festa, onde se podem ler os dois versos seguintes (20-21):

Mas eis o dia! Esperava-o, vi-o chegar


E o que eu vi, que o Sagrado seja a minha palavra.

Este tempo designa a vinda do Sagrado (...) O Sagrado mais antigo do que os
tempos e acima dos deuses funda, com a sua vinda, um outro começo duma outra
História. O Sagrado decide decisivamente e previamente no que respeita aos
homens e aos deuses – se são, quem são, como são e quando são. (...) O
Sagrado faz dom da palavra (Wort) e vem ele próprio nessa palavra. A palavra é
advento do Sagrado (das Wort ist das Ereignis dês Heiligen). (...) A sobriedade é o
acordo fundamental, sempre pronto, da abertura ao Sagrado.

(*) HEIDEGGER, Martin. Approches de Hölderlin. Citado por TROTIGNON, Pierre.

Heidegger. Lisboa, Edições 70, 1990, p. 95 e 96.


219

BIBLIOGRAFIA

ABADÍA, José Pedro Tosaus. A Bíblia como literatura. Petrópolis, Vozes, 2000.

AGUIAR, Werner. O mito e as questões da arte. In: CASTRO, Manuel Antonio de

Castro (org.). A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro, Sete

Letras/Faculdade de Letras/UFRJ, 2005, p. 65.

ALMEIDA, Sérgio Rubens Barbosa de. Manifestações do sagrado na épica

medieval. Londrina. Universidade Estadual, 2000.

ARENDT, Hannah & HEIDEGGER, Martin. Correspondência, Rio de Janeiro,

Relume Dumará, 2001.

BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos. O grau zero da escritura. São Paulo,

Cultrix, 1974.

BENVENISTE, Émile. O vocabulário das instituições indo-européias. 2 vols.

Campinas, Unicamp, 1995.

BETO, Frei. A obra do artista. São Paulo. Ática, 1997.

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,

1997.

BLOOM, Harold. O livro de J. Rio de Janeiro, Imago, 1992.

BOFF, Leonardo. Mestre Eckhart. Petrópolis, Vozes, 1985.

BORNHEIM, Gerd. Metafísica e finitude. São Paulo, Perspectiva, 2001.

BOUTOT, Alain. Introdução à filosofia de Heidegger. Mira-Sintra, PEA, 1993.

BOWKER, John & HOLM, Jean. Mito e história. Mira-Sintra, PEA, 1997.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 3 vols. Petrópolis, Vozes, 1997.

------. Dicionário mítico-etimológico, Petrópolis, Vozes, 1993.


220

BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Brasília, UnB, 1998.

BUZZI, Arcângelo. Introdução ao pensar. Petrópolis, Vozes, 2003.

CAILLOIS, Roger. El hombre y lo sagrado. México, Fondo de Cultura, 1976.

CALVANI, Carlos Eduardo. Teologia e MPB, São Paulo, Loyola/Umesp, 1998.

CAMPBELL, Joseph. Isto és tu. São Paulo, Landy, 2002.

------. Mitos, sonhos e religião. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001.

------. O poder do mito. São Paulo, Palas Athena, 2000.

CAMPOS, Haroldo de. Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo, Cultrix,

1977.

CASSIRER, Ernest. Linguagem, mito e religião. Porto, Rés, s/d.

CASTRO, Manuel Antonio de. O acontecer poético. Rio de Janeiro, Antares, 1982.

------. Tempos de metamorfose. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1994.

------. A questão da interpretação. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras – UFRJ,

2000.

------. O homem provisório no grande ser-tão. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,

1976.

------. A obra como caos poético. Rio de Janeiro, Ensaio, 2000.

------. Representação e modernidade. Artigo. Faculdade de Letras, UFRJ, 2001.

------. Nosso tempo – pequena reflexão. Artigo. Faculdade de Letras, UFRJ, 2001.

------. Édipo e a representação. Artigo. Faculdade de Letras, UFRJ, 2001.

------. Sobre Descartes. Artigo. Faculdade de Letras, UFRJ, 2001.

------. A poética do diálogo e da distância, Rio de Janeiro, Caderno de Letras,

1997.

------. Poética da leitura e ensino da literatura. Faculdade de Letras, UFRJ, 2002.


221

------. Poética da Leitura. Faculdade de Letras, UFRJ, 2003.

------. Sinais da pós-modernidade. Artigo. Faculdade de Letras, UFRJ, 2003.

------. O mito cura: o apelo e escuta da pro-cura. Artigo. Faculdade de Letras,

UFRJ, 2004.

------. O canto das sereias: da escuta à travessia poética. Artigo. Faculdade de

Letras, UFRJ, 2004.

------. Poética. Revista Vidya. Santa Maria, RS, jan/jun 2000.

------. Ensino da literatura e libertação. Cadernos de Letras, UFRJ, 2003.

------. A violência no religioso e no profano. Cadernos de Letras, UFRJ, 2002.

CASTRO, Manuel Antônio de (org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro,

7 Letras/Faculdade de Letras-UFRJ, 2004.

------. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro, 7 Letras/Faculdade

de Letras-UFRJ, 2005.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense Universitária,

2000.

CLÉMENT, C. & KRISTEVA, J. O feminino e o sagrado. Rio de Janeiro, Rocco,

2001.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo, Ática, 2000.

COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. São Paulo, Cultrix, 1978.

CRESPI, Franco. A experiência religiosa na pós-modernidade. Bauru, Edusc,

1999.

CUNHA, Helena Parente. Mulheres inventadas, 2 vols. RJ, Tempo Brasileiro,

1997.

DARTIGUES, André. O que é a fenomenologia. Rio de Janeiro, Eldorado, 1973.


222

DASTUR, Françoise. Hölderlin – reflexões. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994.

DERRIDA, Jacques & VATTIMO, Gianni. A religião. Lisboa, Relógio D’Água, 1997.

DOWELL, João A. Mac. A gênese da ontologia fundamental. São Paulo, Loyola,

1993.

EAGLETON, Terry. A função da crítica. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

------. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo, Martins Fontes, 2003.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo, Martins Fontes, 1999.

------. Imagens e símbolos. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

------. Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva, 2000.

------. Mito do eterno retorno. São Paulo, Mercuryo, 1992.

FEDIER, François. Heidegger: anatomia de um escândalo. Petrópolis, Vozes,

1989.

FUNDAÇÃO Casa de Rui Barbosa, A crônica. Campinas, Unicamp, 1992.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis. Vozes, 1999.

GLEISER, Marcelo. A dança do universo. São Paulo. Cia das Letras, 2000.

GMEINER, Conceição Neves. A morada do ser. São Paulo, Loyola, 1998.

GONÇALVES, Magaly Trindade & BELLODI, Zina C. Teoria da literatura

“revisitada”. Petrópolis. 2005.

GOTO, Tommy Akira. O fenômeno religioso. São Paulo, Paulus, 2004.

GUATTARI, Félix. Caosmose. Rio de Janeiro, 34, 1992.

GUIGNON, Charles. Poliedro Heidegger. Lisboa, Instituto Piaget, 1998.

HAAR, Michel. A obra de arte. Rio de Janeiro, Difel, 2000.

HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002.

------. A origem da obra de arte. Lisboa, Edições 70, 1991.


223

------. A caminho da linguagem. Petrópolis, Vozes, 2003.

------. Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.

------. Os conceitos fundamentais da metafísica. RJ, Forense Universitária, 2003.

------. Língua de tradição e língua técnica. Lisboa, 1999.

------. Nietzsche, metafísica e niilismo. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000.

------. Caminhos de floresta. Lisboa, Gulbenkian, 2002.

------. Carta sobre o humanismo. São Paulo, Moraes, 1991.

------. A essência do fundamento. Lisboa, Edições 70, 1988.

------. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo, Nova Cultural, 1991.

------. Todos nós... ninguém. São Paulo, Moraes, 1981.

------. Serenidade. Lisboa, Instituto Piaget, 2000.

------. Seminários de Zollikon. Petrópolis, Vozes, 2001.

------. De camino al habla. Barcelona, Serbal, 1987.

------. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967.

------. Ser e tempo. 2 vols. Petrópolis, Vozes, 2001.

------. Ser e tempo. Petrópolis, Vozes, 2006.

------. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978.

------. O princípio do fundamento. Lisboa, Instituto Piaget, 1999.

------. Hinos de Hölderlin. Lisboa, Instituto Piaget, 2004.

------. Que é isto – a filosofia? Petrópolis/São Paulo. Vozes/Duas Cidades, 2006.

------. Carta sobre o Humanismo. São Paulo, Centauro, 2005.

------. A origem da obra de arte. Tradução de AZEVEDO, Idalina dos Santos &

CASTRO, Manuel Antonio de. Rio de Janeiro, Mimeo. Faculdade de Letras, UFRJ,

2006.
224

------. A doutrina de Platão sobre a verdade. Tradução de Antonio Jardim. Rio de

Janeiro, Mimeo. Faculdade de Letras, UFRJ, s/d.

------. Hölderlin y la esencia de la poesia. Heidegger en castellano.

www.heideggeriana.com.ar

------. El origen de la obra de arte. Madrid, Alianza, 1996.

HÖLDERLIN, Friedrich. Hipérion. Petrópolis, Vozes, 1994.

HOMENAGEM a Martin Heidegger. 2 vols. Rio de Janeiro, PUC, 1996.

HEISENBERG, Werner. A parte e o todo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1998.

HÜHNE, Leda Miranda (org.). O poetar pensante. Rio de Janeiro, Uapê, 1994.

HUMMES, D. Cláudio. Metafísica: O princípio do fundamento (ou da razão

suficiente). Mimeo, 1964.

HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. S. Paulo, Martins Fontes, 2000.

INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura. 2 vols. Rio de Janeiro, 34, 1999.

JAMMER, Max. Einstein e a religião. Rio de Janeiro, Contraponto, 2000.

JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro, 7

Letras/Faculdade de Letras-UFRJ, 2006.

JENNY, Laurent et al. Intertextualidades. Coimbra, Almedina, 1979.

JUNG, C.G. Psicologia e religião oriental. Petrópolis, Vozes, 1982.

KERMODE, F. & ALTER, R. Guia literário da Bíblia. São Paulo, Unesp, 1997.

KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O sagrado existe. São Paulo, Ática, 1994.

KURZ, O. & KRIS, E. Lenda, mito e magia. Lisboa, Presença, 1988.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. 2 vols., Petrópolis, Vozes,

2001.
225

LOBO, Luiza et alii. Fronteiras da literatura. Rio de Janeiro, Ciência da Literatura,

UFRJ / Relume Dumará, 1999.

------. Globalização e literatura. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Ciência da

Literatura, UFRJ / Relume Dumará, 1999.

------. O haikai e a crise da metafísica. Rio de Janeiro, Numen, 1993.

LOPARIC, Zeljko. Heidegger réu. Campinas, Papirus, 1990.

LYOTARD, Jean-François. Heidegger e os judeus. Petrópolis, Vozes, 1994.

MAGRIS, Cláudio. Utopia y desencanto. Barcelona. 2001.

MANZATTO, Antonio. Teologia e literatura. São Paulo, Loyola, 1994.

MARIA, Luzia de. Leitura & colheita. Petrópolis, Vozes, 2002.

MARIN, L. e CHABROL, C. Semiótica narrativa dos textos bíblicos. Rio de Janeiro,

Forense, 1980.

MARQUES, Marcelo Pimenta. O caminho poético de Parmênides. São Paulo,

Loyola, 1990.

MAY, Reinhard. Heidegger’s hidden sources. London, Routledge, 1996.

MICHELAZZO, J.C. Do um como princípio ao dois como unidade. São Paulo,

Annablume, 1999.

MINER, Earl. Poética comparada. Brasília, UnB, 1996.

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

MOORE, Charles A. (org.). Filosofia:Oriente e Ocidente. São Paulo, Cultrix, 1978.

NUNES, Benedito. Passagem para o poético. São Paulo, Ática, 1992.

------. O Nietzsche de Heidegger. Rio de Janeiro, Pazulin, 2000.

------. Heidegger & ser e tempo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.
226

NUNES, Cassiano. Literatura e vida. Brasília, UnB, 2004.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas, Unicamp, 1992.

OTT, HUGO. Martin Heidegger: biografia. Lisboa, Instituto Piaget, 2000.

PADEN, William E. Interpretando o sagrado. São Paulo, Paulus, 2001.

PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa, Edições 70, 1999.

PAQUOT, Thierry. A utopia. Rio de Janeiro, Difel, 1999.

PARKES, Graham. Heidegger and asian thought. Honolulu, University of Hawaii,

1990.

PAZ, Octávio. Sendas de Oku – Matsuo Bashô. São Paulo, Roswitha Kempf,

1983.

------. Conjunções e disjunções. São Paulo, Perspectiva, 1979.

------. Vislumbres da Índia. São Paulo, Mandarim, 1997.

------. A dupla chama. São Paulo, Siciliano, 2001.

PESSOA, Fernando. Poesias ocultistas. São Paulo, Aquariana, 1995.

------. A voz do silêncio. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969.

PORTELLA, Eduardo et al. Teoria literária. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,

1976.

PORTELLA, Eduardo. O intelectual e o poder. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,

1983.

------. México: guerra e paz. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001.

PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. São Paulo, Paulinas, 1984.

PUCHEU. Alberto. Literatura, para que serve. In: CASTRO, Manuel Antonio de

(org.). Rio de Janeiro, Sete Letras/Faculdade de Letras-UFRJ, 2004.

REE, Jonathan. Heidegger. São Paulo, Unesp, 2000.


227

RESWEBER, Jean-Paul. O pensamento de Martin Heidegger. Coimbra, Almedina,

1979.

REVISTA Tempo Brasileiro nº 50. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1977.

RICOEUR, Paul. Outramente. Petrópolis, Vozes, 2001.

------. O conflito das interpretações. Rio de Janeiro, Imago, 1978.

ROCHA, Antonio Carlos. O que é budismo. São Paulo, Brasiliense, 1984.

------. A essência do nirvana. Rio de Janeiro, Ediouro, 1987.

------. A sabedoria de Sidarta – o Buda, Rio de Janeiro, Ediouro, 1985.

------. As pedras do Zen. Rio de Janeiro, Ediouro, 1986.

------. A sabedoria do lamaísmo. Rio de Janeiro, Ediouro, 1986.

------. Desperte com alegria. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1987.

------. O caminho da autoperfeição. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1991.

------. O poder do dragão. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1993.

------. Thien – a sabedoria do Vietnã. Rio de Janeiro, 1988.

------. Vibrações de harmonia e prosperidade. Rio de Janeiro, Pallas, 1991.

------. Zen-Budismo e a Literatura, São Paulo, Madras, 2004.

ROGER, Jérôme. A crítica literária. Rio de Janeiro, Difel, 2002.

RORTY, Richard. Pragmatismo. Belo Horizonte, UFMG, 2000.

------. Ensaios sobre Heidegger e outros. Lisboa, Instituto Piaget, 1999.

SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger. São Paulo, Geração, 2000.

SAID, Edward W. Orientalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

SAMUEL, Rogel et alii. Manual de Teoria Literária. Petrópolis. Vozes, 1984.

------.(org.). Literatura básica. 3 vols. Petrópolis, Vozes, 1985.

SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literária. Petrópolis, Vozes, 2004.


228

------. A linguagem e a idéia no discurso poético. Rio de Janeiro, Mimeo., 1978.

------. Crítica da escrita. Rio de Janeiro, Particular, 1981.

SCHLLEIERMACHER, Friedrich D.E. Hermenêutica. Petrópolis, Vozes, 1999.

SCHUBACK, Marcia Sá Cavalcante. Para ler os medievais. Petrópolis, Vozes,

2000.

SHELDRAKE, R. et al. Caos, criatividade e o retorno ao sagrado, São Paulo.

Cultrix, 1994.

SILVA, Anazildo V. da. Formação épica da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Elo,

1987.

SOARES, Angélica et alli. Ecologia e literatura. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,

1992.

------. Perspectivas 3 – modernidades. Faculdade de Letras, UFRJ, 1988.

------. Perspectivas: ensaios de teoria e crítica. Faculdade de Letras, UFRJ, 1984.

SOARES, Angélica. Gêneros literários. São Paulo, Ática, 2000.

------. A paixão emancipatória. Rio de Janeiro, Difel, 1999.

------. Ressonâncias veladas da lira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989.

------. O poema, construção às avessas. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978.

SOUZA, Eudoro. Mitologia, vols. I e II, Brasília, UnB, 1995.

SOUZA, Ronaldes de Melo e. Filosofia e literatura: o trágico (p. 115). Rio de

Janeiro, Jorge Zahar, 2001.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro, Tempo

Brasileiro, 1975.

STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre,

Edipucrs,2002.
229

STEINER, George. Heidegger. México, Fondo de Cultura, 1999.

SUZUKI, D.T. Mística cristã e budista. Belo Horizonte, Itatiaia, 1976.

------. A doutrina zen da não-mente. São Paulo, Pensamento, 1989.

------. Manual de budismo zen. Buenos Aires, Kier, 1981.

------. Introdução ao zen-budismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.

------. Viver através do zen. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.

------. Ensayos sobre budismo zen. 3 vols. Buenos Aires, Kier, 1973.

------. The training of the zen buddhist monk. New York, University Books, 1959.

------. The field of Zen, New York, Perennial, 1970.

TADIÉ, Jean-Yves. A crítica literária no século XX. Rio de Janeiro, Bertrand, 1992.

TANAHASHI, Kazuaki. A lua numa gota de orvalho, São Paulo, Siciliano, 1993.

TORRANO, Jaa. Teogonia – a origem dos deuses. São Paulo, Iluminuras, 2003.

TROTIGNON, Pierre. Heidegger. Lisboa, Edições 70, 1990.

VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,

1999.

------. Acreditar em acreditar. Lisboa, Relógio D’Água, 1996.

------. A sociedade transparente. Lisboa, Relógio D’Água, 1989.

------. As aventuras da diferença. Lisboa, Edições 70, s/d.

------. Introdução a Heidegger. Lisboa, Edições 70, 1989.

------. A tentação do realismo. Rio de Janeiro, Lacerda, 2001.

------. Depois da cristandade. Rio de Janeiro, Record, 2004.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo, Difel, 1972.

WHEELER, C.B. & GABEL, J.B. A Bíblia como literatura. São Paulo, Loyola, 1993.

YUAN, Chang Chung-, Tao: A new way of thinking. New York, Perennial, 1977.
230

ROCHA, Antonio Carlos Pereira Borba. Heidegger e o Sagrado. Uma leitura

budista. Rio de Janeiro. Faculdade de Letras - UFRJ, 2007, Tese de

Doutoramento em Ciência da Literatura – Poética.

RESUMO

Nossa proposta de trabalho é tentar mostrar que há profundas semelhanças

entre o pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, na primeira metade do

século XX, e o pensamento de Sidarta Gautama, que, desde o século VI aC. ficou

conhecido, ao longo desses dois milênios e meio, como “o Buda”, “o iluminado”, “o

desperto”.

Frisamos o verbo “tentar” porque a nossa intenção não é fechada, não está

pronta, não é acabada. Aliás, tal visão determinista não se coaduna com os

princípios tanto da obra do pensador alemão quanto do Budismo. Levantamos

questões, assinalando a proximidade de abordagens ante a vida, o real e a arte.

Da extensa obra de Heidegger destacamos o livro Serenidade, inédito no

Brasil, mas publicado em Portugal. Nos pareceu um verdadeiro manual de

meditação, eivado com o jargão filosófico próprio de Heidegger, que criou toda

uma linguagem originária, quase um idioleto; hermético, acessível a iniciados,

eleitos e afins. Os três textos que compõem este volume datam dos anos 1944/45,

1954 e 1955 quando na Europa e no Ocidente o Zen-Budismo estava em “moda”.

Outro texto que destacamos é o capítulo “De uma conversa sobre a

linguagem entre um japonês e um pensador”, do livro A caminho da linguagem. No

diálogo fica evidente que o pensador da Floresta Negra teve alunos japoneses,
231

sabia da existência de alguns filósofos (monges) budistas japoneses e conhecia

até um pouco da cultura nipônica através do filme Rashomon, do cineasta japonês

Akira Kurosawa.

Da obra básica de Heidegger, Ser e tempo tentamos fazer um paralelo com

o livro O ser-do-tempo, do monge budista japonês Dôgen (1200-1253),

considerado o fundador do pensamento filosófico no Japão. Uji, que é o título

original dessa obra na língua japonesa, foi escrito em 1240.

A originalidade da nossa tese reside no fato de que, até prova em contrário,

não conhecemos no âmbito acadêmico brasileiro “uma leitura budista da obra de

Martin Heidegger”. Em toda a bibliografia citada e consultada, inclusive em

algumas bibliotecas importantes do Rio de Janeiro, como as conceituadas

Biblioteca Nacional e a Biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ, bem como

alguns bancos de teses, não encontramos nada parecido.

É uma provocação, no sentido acadêmico, o que estamos propondo. De

certa maneira, reconhecemos, até uma audácia “ler” Heidegger sob a ótica do

Oriente, mas foi assim que os seus textos se nos mostraram.

O Ocidente tão antropocêntrico, tão cartesiano, tão lógico, precisa, em

tempos de globalização, aceitar a contribuição do pensamento do Oriente, e em

nosso caso, do pensamento budista. Eis a nossa colocação para o debate.

Repetimos, não estamos fechados, prontos nem acabados, estamos com esta

tese iniciando o debate na universidade brasileira.


232

ROCHA, Antonio Carlos P. B. Heidegger and the Holy. A buddhist reading. Rio de

Janeiro. Letters College - UFRJ, 2007, PhD thesis in Literature Science – Poetics.

ABSTRACT

Our thesis's proposition is to try to show the deep similarities between the

thoughts of the german philosopher Martin Heidegger, in the first half of the XXth

century, and Sidarta Gautama, who since the VIth century bC. and all along these

two milleniums and a half is known as “the Buddha”, “the illuminate”, “ the awaken”.

We emphasize the verb “try” because we do not have a closed, a finished, a

concluded intention. By the way, such a determinist point of view does not agree

with the principles neither of the german thinker's work nor of the Buddhism. We

raise questions and we signalize the closeness of some approaches concerning

life, reality and art.

Among the vast work of Heidegger we detach the book Memorial Adress,

yet unpublished in Brazil but edited in Portugal. It seemed to us an authentic guide

of buddhist meditation, full of the philosophical jargon that distinguishes Heidegger,

who created a whole original language, almost a dialect; hermetic, accessible to

the initiated, the chosen ones. The three texts that compose this volume date from

1944/45, 1954 and 1955, when the Zen-budhism was in “fashion” in Europe and in

Occidental world.

Another text that we detach is the chapter “A dialogue on language”, from

the book On the way to language. In the dialogue it remains evident that the thinker

from the Black Forest had japanese students, that he knew about the existence of
233

some japanese buddhist philosophers (monks) and that he experienced even a

little bit of the nipponic culture through the film Rashomon, from the japonese

motion picture director Akira Kurosawa.

We tried also to make a parallel between the Heidegger's basic work, Being

and time, and the book The time being, from the japanese buddhist monk Dôgen

(1200-1253), considered as the founder of the philosophical thinking in Japan. Uji,

the japanese original title for this work, was written in 1240.

The originality of our thesis resides in the fact that, until a contrary proof, we

do not know “any buddhist reading of the Martin Heidegger's work” in the brazilian

academic field. We did not find anything similar in any mentioned and consulted

bibliography, including some important libraries in Rio de Janeiro, as the

considered National Library and the Library of the Letters College of UFRJ, and

also several thesis database.

What we are suggesting here is a provocation in the academic meaning. In

a certain way, we recognize that “to read” Heidegger under the Oriental optics is an

effrontery, however it was in this form that his texts appeared to us.

The so anthropocentric, cartesian, logical Occidental world needs to accept

the contribution of the Oriental thinking, and particularly, of the buddhist thoughts,

moreover during this globalization times. Here is our position for the debate. We

repeat that we are not closed, neither ready nor finished, we are beginning, with

this thesis, the discussion in the brazilian university.


234

O Vazio
235

S-ar putea să vă placă și