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A Inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 43 da Lei n.

º
14/2002, de 26 de Junho

Carlos Manuel Serra

Maputo, Maio de 2009

Relatório apresentado no âmbito do


seminário de Justiça Constitucional
ministrado no 1º ano do 1º Programa
de Doutoramento conjunto do Instituto
Superior de Ciências e Tecnologia de
Moçambique e da Faculdade de Direito
da Universidade Nova de Lisboa.

1
2
INDÍCE

Introdução --------------------- 7
I. Contextualização --------------------- 7
II. A problemática --------------------- 8
III. Objectivos --------------------- 9
IV. Metodologia --------------------- 10
V. Estrutura --------------------- 10
Capítulo I - Do quadro jurídico-legal do --------------------- 12
sector das minas à norma do n.º 2 do
artigo 43 da Lei de Minas
1.1. O advento do quadro jurídico-legal do --------------------- 12
sector das minas
1.1.1. A primeira Lei de Minas e --------------------- 12
regulamentação regulamentar
1.1.2. A consolidação do quadro jurídico- --------------------- 13
legal para a actividade mineira
1.2. O quadro jurídico-ambiental da --------------------- 14
actividade mineira
1.2.1. As bases ambientais da Lei de Minas --------------------- 14
1.2.1.1. O princípio das boas práticas --------------------- 14
mineiras
1.2.1.2. Padrões de qualidade ambiental --------------------- 15
1.2.1.3. O princípio do desenvolvimento --------------------- 15
sustentável
1.2.2. A opção por um quadro jurídico- --------------------- 16
ambiental específico
1.3. A qualificação do uso e aproveitamento --------------------- 17
dos recursos minerais como prevalecente
sobre os demais usos
1.4. Consequências práticas da aplicação --------------------- 21
literal da norma do n.º 2 do artigo 43 da Lei
de Minas
Capítulo II. A norma constante no n.º 2 do --------------------- 24
artigo 43 da Lei de Minas à luz do
princípio fundamental do
desenvolvimento sustentável e do regime
jurídico-constitucional de protecção do
ambiente
2.1. O princípio fundamental do --------------------- 24
desenvolvimento sustentável
2.1.1. Os limites da noção de crescimento e o --------------------- 24
advento do conceito de desenvolvimento
sustentável

3
2.1.2. O princípio do desenvolvimento --------------------- 29
sustentável como princípio constitucional
2.1.3. Os pilares subjacentes do princípio ------------------------- 32
fundamental do desenvolvimento sustentável
2.1.3.1. O pilar económico ------------------------- 32
2.1.3.2. O pilar social ------------------------- 33
2.1.3.2. O pilar ambiental ------------------------- 34
2.1.4. Densificação ordinária do princípio de --------------------- 35
desenvolvimento sustentável
2.1.4. A inconstitucionalidade da norma --------------------- 38
constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de
Minas em função da opção fundamental do
desenvolvimento sustentável
2.2. A constitucionalização do bem jurídico --------------------- 40
ambiente e respectivas dimensões
fundamentais
2.2.1. A Constituição Ambiental --------------------- 40
2.2.2. O direito fundamental ao ambiente --------------------- 42
equilibrado
2.2.3. A consagração do interesse público da --------------------- 47
protecção do ambiente
2.2.4. A inconstitucionalidade da norma --------------------- 49
constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de
Minas em função do regime jurídico-
constitucional de protecção do ambiente
2.3. O silêncio constitucional em torno da --------------------- 50
valoração de usos sobre os recursos naturais
Capítulo III - Interpretação da norma --------------------- 53
constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de
Minas no quadro da Constituição da
República
3.1. Os caminhos da interpretação --------------------- 53
3.2. Interpretação conforme à Constituição --------------------- 54
3.2.1. Conceito --------------------- 54
3.2.2. Princípios relevantes --------------------- 57
3.2.2.1. Princípio da prevalência da --------------------- 57
Constituição
3.2.2.2. Princípio da conservação das --------------------- 58
normas
3.2.2.3. Princípio da proporcionalidade 59
3.3. Requisitos para a interpretação --------------------- 59
conforme `a Constituição
3.3.1. Pluralidade de significados da norma --------------------- 59
infraconstitucional
3.3.2. Rejeição de norma inconstitucional ---------------------

4
cujo sentido decorra de interpretação
conforme a Constituição
3.3.3. Respeito mínimo pelo texto da lei --------------------- 60
3.3.4. Respeito mínimo pelo objectivo do --------------------- 61
legislador
3.3.5. Necessidade 52
3.4. Diferença em relação a outros conceitos --------------------- 62
3.4.1. Interpretação constitucional --------------------- 62
3.4.2. Interpretação integrativa da lei com a --------------------- 63
Constituição
3.5. Interpretação proposta da norma --------------------- 63
constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de
Minas
3.6. Interpretação conforme à Constituição --------------------- 66
em sede da fiscalização da
constitucionalidade das leis
3.6.1. A Justiça Constitucional --------------------- 66
3.6.2. Interpretação conforme à Constituição --------------------- 68
em sede da fiscalização abstracta da
constitucionalidade
3.6.2.1. Fiscalização preventiva da --------------------- 69
constitucionalidade
3.6.2.2. Fiscalização sucessiva da --------------------- 70
constitucionalidade
3.6.2.3. Contornos da interpretação --------------------- 72
conforme à Constituição em sede da
fiscalização abstracta da constitucionalidade
3.6.3. Interpretação conforme à Constituição --------------------- 74
em sede da fiscalização concreta da
constitucionalidade
3.6.3.1. Conceito e regime da fiscalização --------------------- 74
concreta
3.6.3.2. Contornos da interpretação --------------------- 76
conforme a Constituição em sede da
fiscalização concreta da constitucionalidade
Conclusões --------------------- 78
Bibliografia --------------------- 82

5
“O desenvolvimento sustentável (…) aponta para um
modelo de desenvolvimento dentro dos limites
ambientais conhecidos, num dado momento, e tido
como capaz de preservar o equilíbrio geral e o valor
do meio e dos recursos naturais mundiais,
assegurando a sua repartição e uso equilibrado”

CONDESSO, Fernando dos Reis,


Direito do Ambiente, Almedina, Coimbra, 2001, p. 81.

6
Introdução

I. Contextualização

A Lei n.º 14/2002, de 26 de Junho, a nova Lei de Minas, tem como


finalidade central “a regulação dos termos do exercício dos direitos e
deveres relativos ao uso e aproveitamento de recursos minerais com
respeito pelo meio ambiente, com vista à sua utilização racional em
benefício da economia nacional”. Esta Lei revogou assim a Lei de Minas
anterior, a Lei n. ° 2/86, de 16 de Abril, por se encontrar desajustada em
função das “transformações económicas em curso no país e o
desenvolvimento do sector mineiro”1.
Segundo o n.º 2 do artigo 43 da nova Lei de Minas, “o uso da terra
para operações mineiras tem prioridade sobre outros usos da terra
quando o benefício económico e social relativo das operações mineiras
seja superior”. A justificação da inclusão da referida norma decorre,
desde logo, do entendimento de que o sector de minas foi (e é)
considerado como um dos motores do desenvolvimento em Moçambique.
Este entendimento do legislador ordinário ocorre dois anos antes
de ter sido aprovada a nova Constituição da República de Moçambique
(2004) que consagrou um autêntico interesse público de protecção do
ambiente, consubstanciado em diversas normas constitucionais, para
além de ter acolhido o princípio fundamental do desenvolvimento
sustentável. O legislador constituinte procedeu igualmente a um reforço
da posição jurídica do cidadão no que diz respeito ao bem jurídico
ambiente, através do fortalecimento do quadro de direitos e deveres,
conforme veremos adiante.

1 In. Preâmbulo da Lei de Minas.

7
O legislador ordinário, por seu turno, tem vindo a exercer um
papel de notória actividade na aprovação de legislação sobre a protecção
e conservação do ambiente, através da elaboração de regulamentos
específicos da Lei do Ambiente e de legislação ambiental complementar,
bem como da adesão e ratificação de convenções e protocolos
internacionais versando sobre o ambiente.
Na realidade prática, no decurso dos processos de licenciamento
de actividades económicas, bem como de atribuição do direito de uso e
aproveitamento da terra, têm vindo a emergir alguns conflitos derivados
da interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas,
principalmente num contexto em que a actividade mineira tem vindo a
conhecer um rápido e dinâmico crescimento, merecendo uma atenção
particular por parte do Governo, mas em que, no território, há vários
anos que decorrem projectos de actividade em diversas áreas, de cariz
público ou privado, com especial destaque para os programas de
conservação da Natureza.
Importa agora saber em que medida a referida norma se encontra
conforme ao quadro jurídico-constitucional e se, caso a resposta a esta
questão venha a ser negativa, quais os passos a tomar no âmbito do
acesso à justiça constitucional para garantir a necessária conformidade
com a Constituição.

II. Problemática

A previsão da norma constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de


Minas tem vindo a causar alguma polémica junto dos diversos
operadores pré-existentes nas áreas que têm vindo a ser concessionadas
para actividades mineiras, que invocam, principalmente, o carácter
relativo da superioridade dos eventuais benefícios económicos e sociais
decorrentes da exploração de recursos naturais, numa perspectiva a
médio e longo prazo, em relação a investimentos efectuados em áreas

8
consideras sustentáveis, como é o caso da conservação. Por outro lado,
algumas vozes se levantam contra a previsão do legislador,
principalmente por consubstanciar um retrocesso em relação ao quadro
jurídico-legal de protecção do ambiente, bem como uma prerrogativa
para os órgãos competentes da Administração Pública fazerem uso de
terras que, de outra forma, não fariam, e que estão a ser utilizadas para
fins de protecção e conservação do ambiente e da biodiversidade.
Torna-se necessário averiguar até que ponto o legislador ordinário
terá procedido em conformidade com a Constituição da República de
Moçambique, principalmente, quando, por parte do legislador
fundamental, foi consagrado o princípio ao desenvolvimento sustentável,
bem como um regime reforçado de protecção do ambiente.

III. Objectivos

Constitui objectivo geral do presente Trabalho analisar a eventual


inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas, no contexto
da consagração constitucional do princípio do desenvolvimento
sustentável e do bem jurídico ambiente e, no caso afirmativo, demonstrar
os possíveis caminhos no acesso à justiça constitucional, incluindo a
prerrogativa hermenêutica de uma interpretação conforme à
Constituição.

Para alcançar o objectivo geral previamente definido, foram


definidos os seguintes objectivos específicos:

i. Apresentar e analisar o quadro jurídico-legal que rege o sector


de minas e, especialmente, a norma constante no n.º 2 do artigo
43 da Lei de Minas;

9
ii. Realizar a leitura da referida norma à luz dos interesses
públicos do desenvolvimento sustentável e da protecção do
ambiente constitucionalmente consagrados;
iii. Propor um modelo de interpretação conforme à Constituição da
norma constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas, bem
como analisar a interpretação conforme à Constituição em sede
da fiscalização da constitucionalidade.

IV. Metodologia

Para a realização do Trabalho será utilizada diversa metodologia,


nomeadamente:

i. Revisão bibliográfica sobre assuntos com relevância para o


desenvolvimento do tema, especialmente em sede do Direito
Constitucional e do Direito do Ambiente.

ii. Levantamento e análise do quadro jurídico-legal em vigor no


País, principalmente no que diz respeito ao sector das minas,
bem como à área do ambiente.

iii. Interpretação jurídica do n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas em


conformidade com a Constituição, bem como o respectivo
tratamento em sede da fiscalização da constitucionalidade

V. Estrutura

Depois da Introdução, o presente Trabalho será estruturado em


três capítulos, sendo que no primeiro se tratará da apresentação e breve
análise sumária do quadro jurídico-legal do sector de minas, incidindo
particularmente na norma constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de

10
Minas; no segundo capítulo far-se-á a leitura desta norma à luz do
princípio do desenvolvimento sustentável e do regime jurídico-
constitucional de protecção do ambiente, determinando em que medida
se verificou uma inconstitucionalidade; no terceiro e último capítulo,
será tratada a interpretação conforme à constituição, com especial
referência ao conceito, princípios e requisitos para a sua utilização,
propondo-se, em concreto, a sua aplicação à norma constante no n.º 2
do artigo 43 da Lei de Minas, para, no fim, se indicarem e analisarem os
caminhos para acesso à justiça constitucional dirigidos a assegurar a
interpretação conforme à Constituição. Finalmente, serão apresentadas
as conclusões.

11
Capítulo I - Do quadro jurídico-legal do sector das minas à norma do
n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas

1.1. O advento do quadro jurídico-legal do sector das minas

1.1.1. A primeira Lei de Minas e regulamentação regulamentar

Ciente da importância da contribuição do sector para o


desenvolvimento da economia moçambicana, o legislador ordinário tem
sido particularmente interventivo e dinâmico na construção de um
quadro jurídico-legal dirigido a regular o uso e aproveitamento dos
recursos minerais, salvaguardando o respeito pelos princípios
fundamentais da sustentabilidade ambiental.
Em 1986 foi aprovada a Lei n.º 2/86, de 16 de Abril, a primeira lei
de Minas, e que, de acordo com o respectivo preâmbulo, tinha como
finalidade central, à luz da Constituição e das directivas fundamentais
para o desenvolvimento económico e social, definir o quadro regulador e
impulsionador da actividade mineira. De acordo com o artigo 3, esta lei
visou “disciplinar e regular o direito de uso e aproveitamento dos
recursos minerais tendo em vista o seu aproveitamento eficaz e os
interesses da economia nacional”.
Um ano depois, foi aprovado o Regulamento da Lei de Minas,
aprovado pelo Decreto n.º 13/87, de 24 de Fevereiro. Seguiram-se outros
instrumentos, entre os quais o Regulamento do Certificado Mineiro,
aprovado pelo Diploma Ministerial n.º 77/94, de 25 de Maio, o
Regulamento de Comercialização de Minerais e Metais Preciosos,
aprovado pelo Decreto n.º 31/95, de 25 de Junho e as Normas de
Comercialização de Minerais e Metais Preciosos, aprovadas pelo Diploma
Ministerial n.º 77/96, de 21 de Agosto. No regime fiscal aplicável à
actividade mineira, destacam-se a Lei n.º 5/94, de 14 de Setembro, e o
Decreto n.º 53/94, de 9 de Novembro.

12
O Governo, através da Resolução n.º 4/98, de 24 de Fevereiro,
aprovou a Política Geológica e Mineira, que constituí o principal
instrumento político e programático que rege o sector, contendo
directrizes programáticas nos domínios da cartografia de base e
cobertura geológica, reabilitação e desenvolvimento mineiro,
aproveitamento e industrialização local, reforço industrial e
reestruturação do sector empresarial do Estado.

1.1.2. A consolidação do quadro jurídico-legal para a actividade


mineira

Assim, foi aprovada uma nova Lei de Minas em 2002, a Lei n.º
14/2002, de 26 de Junho, visto que, de acordo com o respectivo
preâmbulo, “as transformações económicas em curso no País e o
desenvolvimento do sector mineiro, impõem a revisão da legislação
aplicável à actividade mineira, de modo a adequá-la aos objectivos da
política económica”. Foi assim expressamente revogada a anterior Lei de
Minas, a Lei n.º 2/86, de 16 de Abril, bem como a demais legislação que
eventualmente contrarie a Lei n.º 14/2002, de 26 de Junho2.
Esta Lei tem vindo a ser objecto de regulamentação, tendo sido
aprovado, em primeiro lugar, o Regulamento Ambiental para a Actividade
Mineira, através do Decreto n.º 26/2004, de 20 de Agosto; seguiram-se
Regulamento de Comercialização de Produtos Minerais, aprovado através
do Decreto n.º 16/2005, de 26 de Junho; o Regulamento de Segurança
Técnica e de Saúde nas Actividades Geológico-Mineiras, aprovado através
do Decreto n.º 61/2006, de 26 de Dezembro; o Regulamento da Lei de
Minas, aprovado pelo Decreto n.º 62/2006, de 26 de Dezembro; e as
Normas Básicas de Gestão Ambiental, aprovadas pelo Diploma
Ministerial n.º 189/2006, de 14 de Dezembro.

2
Cfr. Artigo 46/1, da Lei n.º 14/2002, de 26 de Junho (Nova Lei de Minas).

13
Simultaneamente, atendeu-se ao enquadramento fiscal da
actividade mineira, procurando acautelar da componente ambiental e da
componente social, passo significativamente dado com a aprovação da
Lei n.º 11/2007, de 27 de Junho. O n.º 1 do artigo 11 constitui um
marco assinalável, por ter instituído que uma percentagem das receitas
geradas na actividade mineira deve ser canalizada para o
desenvolvimento das áreas onde se localizam os projectos mineiros.

1.2. O quadro jurídico-ambiental da actividade mineira

1.2.1. As bases ambientais da Lei de Minas

1.2.1.1. O princípio das boas práticas mineiras

Segundo o artigo 2 da Lei de Minas, que versa sobre os objectivos


deste instrumento legal, o direito de uso e aproveitamento dos recursos
minerais é condicionado à “harmonia com as melhores e mais seguras
práticas mineiras, com observância dos padrões de qualidade ambiental
legalmente estabelecidos e com vista a um desenvolvimento sustentável
de longo prazo”.
O princípio das boas práticas mineiras constitui um dos pilares do
programa de gestão ambiental que cada actividade mineira deve
observar, e traduz-se na aplicação do princípio da utilização e gestão
racional dos componentes ambientais, consagrado na alínea a) do artigo
4 da Lei do Ambiente (Lei n.º 20/97, de 1 de Outubro), e que constitui
manifestação expressa de um repensar e reequacionar em torno da
intervenção na exploração dos recursos naturais existentes no Planeta,
no geral, e em Moçambique, em especial.
Na decorrência deste princípio, realce-se o dever que cabe aos
titulares das diferentes licenças sectoriais previstas para a exploração de
recursos minerais (designadamente a concessão mineira, o certificado

14
mineiro e a senha mineira) de cumprir com as exigências de protecção,
gestão e restauração ambiental, nos termos da legislação em vigor3.

1.2.1.2. Padrões de qualidade ambiental

Os padrões de qualidade ambiental, previstos genericamente no


artigo 10 da Lei do Ambiente, enquanto níveis máximos de contaminação
toleráveis em termos de ruído e em relação ao ar, água, solos e
ecossistemas naturais, são fixados pela Administração Pública, em sede
de regulamentação, devem salvaguardar, à partida, um impacto
ambiental considerado pouco significativo, possibilitando ao ambiente,
por si próprio, mitigar os efeitos esperados, sem prejuízo da saúde
humana.
Neste domínio, importa atender ao Regulamento sobre Padrões de
Qualidade Ambiental e de Emissão de Efluentes, aprovado pelo Decreto
n.º 18/2004, de 2 de Junho, bem como ao Regulamento sobre a
Qualidade da Água para o Consumo Humano, aprovado através do
Diploma Ministerial n.º 180/2004, de 15 de Setembro.

1.2.1.3. O princípio do desenvolvimento sustentável

Finalmente, a opção pelo princípio do desenvolvimento sustentável


representa um desafio de contornos fundamentais, na medida em que
deverá guiar o decisor no processo de tomada de decisões,
nomeadamente no que diz respeito ao licenciamento das actividades
mineiras.
Importa portanto salientar ter havido lugar a uma tripla
preocupação de acautelar o interesse público de protecção do ambiente
em sede das disposições gerais de uma lei dirigida à regulação do direito

3
Cfr. Artigos 15/6 h), 18/2 d) e 22/1 c), da Nova Lei de Minas.

15
de uso e aproveitamento de uma categoria de recursos naturais, o que,
em abono de verdade, constitui um marco digno de evidenciação. O
enquadramento jurídico ambiental da actividade mineira é aliás vincado
logo na definição da Lei de Minas, no n.º 1 do artigo 1, ao se estabelecer
que “os termos do exercício dos direitos e deveres relativos ao uso e
aproveitamento de recursos naturais com respeito pelo meio ambiente,
com vista à utilização racional e em benefício da economia nacional”.
Sublinhe-se que da leitura que se fez da Lei n.º 14/2002, de 26 de
Junho, não se têm dúvidas de que, no domínio da protecção ambiental,
esta significou um salto qualitativo em relação à anterior Lei de Minas,
desde logo porque, a mesma contém, na sua estrutura orgânica, um
capítulo específico dedicado à gestão ambiental da actividade mineira.

1.2.2. A opção por um quadro jurídico-ambiental específico

No entanto, a legislação ambiental que rege a actividade mineira


possui uma característica particular – o legislador optou por criar
normas específicas em relação ao regime geral pelo Regulamento do
Processo de Avaliação do Impacto Ambiental, o que decorre,
imediatamente, do próprio n.º 2 do artigo 16, da Lei do Ambiente,
segundo o qual “os moldes da avaliação do impacto ambiental para cada
caso, assim como as demais formalidades, são indicados em legislação
específica”. Partiu-se, portanto, do pressuposto que cada actividade
económica possui natureza e um grau de exigência específico,
merecendo, por parte do legislador regulamentar, um tratamento
O Regulamento sobre o Processo de Avaliação do Impacto
Ambiental, aprovado pelo Decreto n.º 45/2004, de 29 de Setembro,
reforçou este entendimento, na medida em que remeteu expressamente
para legislação específica a regulação dos “estudos de impacto ambiental

16
para actividades de prospecção, pesquisa e produção de petróleos, gás e
indústria extractiva de recursos naturais”4.
Esta opção foi igualmente tomada aquando do processo de
elaboração e aprovação da Lei de Minas, a qual delegou para o Conselho
de Ministros a incumbência de “aprovar os regulamentos ambientais
para a actividade mineira”5.
Julgamos que subjacente à opção do legislador no tratamento
específico encontra-se não somente uma preocupação com a
especificidade técnica das actividades mineira e petrolífera, mas também,
fundamentalmente, ao contributo potencial que estas significam para a
economia nacional, justificando que, ainda que não oficial e
deliberadamente, possuam uma espécie de estatuto jurídico privilegiado
em relação às demais actividades económicas, facto que vai ter
repercussão, conforme veremos de seguida, na concepção da norma
constante n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas.

1.3. A qualificação do uso e aproveitamento dos recursos minerais


como prevalecente sobre os demais usos

Segundo o n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas, “o uso da terra para


operações mineiras tem prioridade sobre outros usos da terra quando o
benefício económico e social relativo das operações mineiras seja
superior”. Conforme se viu, a justificação da inclusão da referida norma
decorre, desde logo, do entendimento de que o sector de minas foi
considerado como um dos motores do desenvolvimento económico em
Moçambique. Nesse sentido, o Plano Quinquenal do Governo para 2005 –
2009, aprovado pela Resolução n.º 16/2005, de 11 de Maio, proclamou
que “o Governo continuará a priorizar o aproveitamento sustentável dos

4
Cfr. Artigo 2/2, do Regulamento sobre o Processo de Avaliação do Impacto Ambiental,
aprovado pelo Decreto n.º 45/2004, de 29 de Setembro.
5 Cfr. Artigo 44 c) da Lei de Minas.

17
recursos minerais como forma de promover a crescimento económico e
melhorar a balança de pagamentos do País”6.
Não tendo tido acesso aos trabalhos preparatórios que
antecederam a nova Lei de Minas, apesar de diversas diligências
efectuadas, procurámos em outras fontes a base determinante para a
opção do legislador ordinário. Na primeira Lei de Minas (Lei n.º 2/86, de
16 de Abril), determinou-se que “o uso e ocupação de terrenos
necessários à realização da actividade mineira, rege-se pelas disposições
que regulam o uso e aproveitamento da terra (…)”, sendo que “as infra-
estruturas, construções e benfeitorias integrantes ou auxiliares da
actividade mineira regem-se pelo estabelecido em regulamento a esta lei
(…)”7.
No Regulamento da primeira Lei de Minas, aprovado pelo Decreto
n.º 13/87, de 24 de Fevereiro, encontra-se um artigo referente às
restrições ao direito de uso e aproveitamento da terra, o artigo 66, com
destaque para o disposto no n.º 1, segundo o qual “as actividades dos
utentes ou ocupantes da terra que se situem em áreas sujeitas a licença
ou concessão não devem impedir as operações conduzidas ao abrigo do
respectivo título mineiro”.
Contudo, o legislador regulamentar acautelou a necessidade de os
direitos atribuídos para o exercício da actividade mineira serem exercidos
de modo a afectar o menos possível os direitos dos utentes ou ocupantes
das terras localizadas abrangidas pelo título mineiro8. Por outro lado, do
disposto no n.º 3 do artigo 64 do Regulamento em causa, decorre a
prerrogativa da Administração Pública, através da entidades
competentes, permitir a realização de actividades mineiras em locais sob
regime específico, incluindo zonas de protecção total e parcial.

6 Cfr. Ponto 2.3.11, do Plano Quinquenal do Governo para 2005 – 2009, referente aos
recursos minerais.
7
Cfr. Artigo 16/1 e 3 da primeira Lei de Terras.
8
Cfr. Artigo 64/1 do Regulamento da primeira Lei de Terras.

18
Conclui-se que, da leitura do primeiro regime jurídico-legal sobre
uso e aproveitamento de recursos minerais, não obstante a evidência da
importância que o legislador ordinário atribuiu à actividade mineira,
impondo restrições aos titulares do direito de uso e aproveitamento da
terra, não se previa nenhuma norma de natureza semelhante à do n.º 2
do artigo 43 da nova Lei de Minas.
De seguida, procurar-se-á interpretar o sentido e alcance da
referida norma, através do respectivo desdobramento e análise casuística
dos componentes que a integra.
Em primeiro lugar, o legislador refere-se ao uso da terra para fins
mineiros relativamente aos demais usos, nomeadamente para fins de
habitação, agricultura, pecuária, turismo, conservação, turismo,
indústria, etc. De acordo com a terminologia constitucional e legalmente
correcta, o que se pretendeu foi aludir não ao uso enquanto tal, mas sim
ao direito de uso e aproveitamento da terra para fins mineiros. Sendo a
terra propriedade do Estado moçambicano, nos termos do n.º 1 do artigo
109 da Constituição da República, é reconhecido às pessoas, singulares
ou colectivas, um direito ao uso e aproveitamento da terra.
Em segundo lugar, a norma faz referência às operações mineiras,
importa equacionar em que estas consistem, pois não estão em causa
todas e quaisquer operações, mas sim aquelas que venham a ser
definidas na Lei de Minas, mais concretamente, no respectivo Glossário.
Segundo o n.º 26 do Glossário da Lei, as operações mineiras são todos os
“trabalhos realizados no âmbito de qualquer actividade mineira”. Mais
uma vez se torna necessário remeter para o referido Glossário, pois urge
atender à definição de actividades mineiras, para, no respectivo n.º 1, se
entenderem como “operações que consistem no desenvolvimento, de
forma conjunta ou isolada, de acções como o reconhecimento,
prospecção, pesquisa, mineração, processamento e tratamento”.
Ora, em terceiro lugar, a prevalência do uso para operações
mineiras só deve ser determinada “quando o benefício económico e social

19
relativo das operações mineiras seja superior”. Há aqui um efectivo e
amplo espaço de discricionariedade atribuído à Administração Pública,
que, através do órgão competente, deverá verificar, caso a caso, quando é
que do uso para operações mineiras decorrem, relativamente, benefícios
económicos e sociais superiores àqueles susceptíveis de alcançar com a
atribuição do direito de uso e aproveitamento da terra para outros fins.
Com esta norma, o legislador estabeleceu expressamente uma
cláusula geral de preferência do direito de uso e aproveitamento da terra
para fins mineiros sobre os demais usos, de acordo com critérios de
ordem exclusivamente economicista e social, remetendo para a
Administração Pública o papel determinante na averiguação casuística
da prevalência dos benefícios, entre os quais não se encontra qualquer
alusão às implicações ambientais da decisão que venha a ser tomada, o
que, conforme se verá de seguida, tem implicações práticas e jurídicas
altamente discutíveis e deveras preocupantes. Uma das principais
objecções decorre da não contabilização económica dos componentes
ambientais, através do cálculo das chamadas externalidades ambientais
negativas, que torna totalmente erróneo o exercício meramente
quantitativo que se realize em tornos dos eventuais benefícios
económicos e sociais. Se os custos eventuais da degradação ambiental de
determinada actividade fossem contabilizados no processo de tomada de
decisão, recorrendo-se a um horizonte temporal mais lato,
equacionando-se a médio e longo prazo, o quadro final assumiria, muito
certamente, uma configuração diferente, conduzindo a que uma
actividade de conservação possa ser económica e socialmente mais
sustentável em relação a uma actividade de mineração.
Curiosamente, não se encontra na Lei de Petróleos, Lei n.º 3/2001,
de 21 de Fevereiro, qualquer norma similar, não obstante a importância
que a descoberta deste recurso assumiria para a economia
moçambicana, bem como todos os esforços que têm vindo a ser
realizados na prospecção e pesquisa petrolífera. De acordo com o n.º 2 do

20
artigo 1 da Lei de Minas, “o uso e aproveitamento de petróleo são regidos
por diploma próprio”. Assim, da leitura realizada da Lei de Petróleos
enquanto lei específica, não se encontra nenhum dispositivo que
privilegie o direito de uso e aproveitamento dos recursos petrolíferos,
principalmente no artigo equivalente – o artigo 20, referente ao “uso e
aproveitamento da terra e servidão de passagem”.
A este respeito, o artigo 20 do Regulamento das Operações
Petrolíferas, aprovado pelo Decreto n.º 26/2004, de 20 de Agosto,
determinou que a “atribuição de direitos relativos ao exercício das
actividades de reconhecimento, pesquisa e produção e construção e
operação de oleodutos e gasodutos não é, por regra, incompatível com a
prévia ou posterior atribuição de direitos para o exercício de actividades
respeitantes a outros recursos naturais”, sendo que, “havendo
incompatibilidade dos direitos (...) os ministros que superintendem as
actividades em conflito decidirão qual o direito que deve prevalecer, de
acordo com o interesse nacional”.

1.4. Consequências práticas da aplicação literal da norma do n.º 2


do artigo 43 da Lei de Minas

Uma das consequências da norma do n.º 2 do artigo 43 da Lei de


Minas é o entendimento veiculado por alguns sectores, nomeadamente
as empresas de consultoria ambiental, em relação ao respectivo alcance,
inclusivamente na defesa da extensão à legislação de petróleos o
princípio da prevalência do direito de uso e aproveitamento de recursos
mineiros. Assim, de acordo com a empresa de consultoria Impacto Lda,
no seu relatório sobre o Estudo de Impacto Ambiental do projecto de
pesquisa de hidrocarbonetos no Delta do Zambeze, citado pelo jornal
“Noticias”, determinou-se que “a Lei de Minas e a Lei de Petróleos são
tida como leis fortes, o que quer dizer que, em caso de conflito
determinado pela eventual descoberta de petróleo ou gás natural no

21
Delta, é a Lei dos Petróleos que se vai sobrepor a todas as restantes que
possam ser chamadas em defesa da biodiversidade”9.
O risco da generalização de semelhante percepção é maior junto
das autoridades associadas aos procedimentos de tomada de decisões,
fazendo com que, por exemplo, todo um processo de investimento em
uma área económica não mineira possa ser deitado abaixo de um
momento para o outro, apenas porque o decisor entende que os
respectivos benefícios económicos e sociais são inferiores àqueles que
resultariam do exercício de determinada actividade mineira. Há,
portanto, um espaço de discricionariedade demasiado lato para a
Administração Pública, com implicações práticas potencialmente
danosas.
A respeito da discricionariedade, João Caupers escreve que esta
“não resulta de um esquecimento ou de uma incapacidade de previsão do
legislador, mas de uma opção deste: considerou que, para melhor
prosseguir um determinado interesse público, a administração pública
deveria poder escolher um de entre vários conteúdos decisionais – aquele
que, no entender do órgão decisor, melhor prosseguisse tal interesse. O
legislador quis que este dispusesse de uma certa margem de liberdade de
decisão, por forma a poder adaptar esta à diversidade da condições da
vida que poderiam justificar a sua tomada”10.
Existe aqui, portanto, um espaço de discricionariedade demasiado
excessivo, susceptível de conduzir ao arbítrio por parte da Administração
Pública, e, consequentemente, à violação de outros interesses públicos,
bem como de interesses privados. Este espaço é reforçado através da
inclusão de uma palavra aparentemente simples, mas que, em termos
práticos, pode levantar imensos problemas – referimo-nos à expressão
benefício “relativo”. Temos efectivamente alguma dificuldade em

9 Veja-se artigo intitulado Alarme no Delta, de Júlio Manjate, publicado no suplemento


“Economia e Negócios”, do jornal Notícias, do dia 23 de Maio de 2008.
10 CAUPERS, João, Introdução do Direito Administrativo, 9.ª Edição, Âncora, Lisboa,

2007, pp. 77 – 78.

22
entendermos a razão da sua inclusão, mais a mais pensando que não se
exige um benefício sólido, substancial, significativo, mas tão-somente um
benefício relativo, que pode ser entendido como algo ligeiro ou levemente
superior. Em termos reais, significa colocar nas mãos do decisor a
possibilidade de atribuir prevalência ao uso mineiro apenas porque, nos
termos de estudo de viabilidade, este possa vir a criar, a curto prazo,
vantagens relativamente superiores em relação a um outro qualquer uso
pré-existente.
A eventual inconstitucionalidade da norma contida no n.º 2 do
artigo 43 da Lei de Minas constitui uma tese, para muitos,
eventualmente complexa de defender, principalmente no contexto em o
Governo traçou para Moçambique, no campo das políticas públicas, um
conjunto de metas no combate à pobreza absoluta e no estimular do
desenvolvimento rápido da economia.
Contudo, importa realizar uma ponderação dirigida a identificar as
desvantagens e constrangimentos de uma aplicação literal da referida
norma, nomeadamente à luz da Constituição da República de
Moçambique, que contém igualmente a consagração de um conjunto de
interesses dignos de tutela, especialmente de natureza pública.

23
Capítulo II. A norma constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas
à luz do princípio fundamental do desenvolvimento sustentável e do
regime jurídico-constitucional de protecção do ambiente

2.1. O princípio fundamental do desenvolvimento sustentável

2.1.1. Os limites da noção de crescimento e o advento do conceito


de desenvolvimento sustentável

Passamos a realizar a leitura e análise da norma constante no n.º


2 do artigo 43 da Lei de Minas à luz princípio fundamental do
desenvolvimento sustentável, e que, entre outros aspectos, revela um
autêntico interesse público, consagrado no n.º 2 do artigo 117, da
Constituição da República de Moçambique, aprovada no dia 16 de
Novembro de 2004 e que entrou em vigor no dia 21 de Janeiro de 2005,
de modo a verificar a sua eventual conformidade.
O conceito de desenvolvimento sustentável, constitucionalmente
consagrado, é considerado como uma resposta aos limites dos conceitos
precedentes, e que dominaram o pensamento económico durante um
largo período temporal, designadamente o de crescimento e, mais tarde,
o de desenvolvimento (socioeconómico).
O conceito de crescimento é sinónimo de mero crescimento
económico, isto é, basicamente, o crescimento de determinada economia
em termos numéricos. Emerge uma preocupação meramente
quantitativa, no sentido de se gerar riqueza por riqueza, sem quaisquer
outras preocupações de ordem material ou qualitativa, e à custa dos
recursos naturais que se revelarem indispensáveis à realização de tal
fim, ainda que venham a se esgotar ou a degradar-se irreversivelmente.
Nesta linha de raciocínio, só haverá crescimento à custa do ambiente, e
proteger o ambiente constitui um recuo inegável no caminho do
progresso.

24
O conceito de crescimento económico “contabiliza a riqueza
nacional ignorando a existência e o estado de conservação dos recursos
naturais”11. Não obstante reflectir-se positivamente na riqueza nacional,
quando desenfreado e sem consideração com a questão ambiental,
resulta em poluição e degradação dos componentes ambientais, o que
contribuirá negativamente para o próprio bem-estar social12.
Tal conceptualização decorre das limitações inerentes à teoria
económica clássica, a chamada teoria do crescimento ilimitado, como é o
caso do pressuposto equívoco da gratuidade dos elementos da natureza,
ou da equiparação do quantitativo ao qualitativo13. Note-se que esta
teoria começou a ser posta em causa principalmente na sequência da
crise do petróleo no decurso da década de setenta, na qual a
problemática ambiental foi finalmente assumida ao nível das classes
dirigentes da comunidade internacional.
Ao contrário do simples crescimento, o conceito de
desenvolvimento abrange igualmente uma componente social, traduzida
na melhoria das condições de vida de determinado país ou região. O
desenvolvimento pressupõe uma noção profundamente diferente, na
medida em que, à preocupação numérica e quantitativa, que não
desaparece, principalmente no contexto de uma economia de mercado,
se junta um conjunto de valores de ordem qualitativa, como a justiça
social, a redistribuição da riqueza, entre outros. Por conseguinte, não
haverá desenvolvimento à custa da miséria de uma maioria ou da
exclusão social de muitos, e, em termos positivos, lutar contra a pobreza
constitui uma das dimensões fundamentais do conceito de
desenvolvimento.

11 CANOTILHO, J.J. Gomes (Coordenação científica), Introdução ao Direito do Ambiente,


Universidade Aberta, Lisboa, 1998, p. 87.
12
Idem, p. 88.
13
CONDESSO, Fernando dos Reis, Direito do Ambiente, Coimbra, 2001, p. 72.

25
Esta foi aliás uma conquista decorrente da constatação de que,
primeiro, “o desenvolvimento económico não era possível sem uma
acentuadíssima componente social, quer introduzindo justiça na
repartição dos bens, quer assegurando uma afectação preferencial da
riqueza criada à satisfação das necessidades de todos os homens; depois,
que o social não bastava para arrastar, enquadrar e dar sentido ao
económico, que era necessário também o cultural, mais eminentemente
qualitativo, porque já não tinha que ver sequer com a afectação e com a
repartição da riqueza, mas com valores que enfermam o modo como os
homens, aproveitando da riqueza para a sua felicidade, e criando-a o
melhor que podem, tentam ser, em conjunto, felizes, livres e solidários; e,
no fim, de algum modo a teoria do desenvolvimento dessa fase pode
dizer-se que se esgotou ao referir que o processo económico do
desenvolvimento só estava completo se fosse completado pela dimensão
social, de fosse acompanhado de um desenvolvimento cultural e, em
última instância, fosse colocado inteiramente ao serviço do Homem – a
ideia de que o desenvolvimento só existe se for concebido como de todo o
homem, de todos os aspectos da vida humana e de todos os homens,
portanto, se for concebido para toda a humanidade”14.
Por seu turno, o conceito de desenvolvimento sustentável vai mais
longe dos que as anteriores perspectivas de progresso, na medida em que
integra uma dimensão já não mais considerada antinómica – a
protecção, conservação e valorização do ambiente, sem a qual não se
poderá falar de desenvolvimento. O desenvolvimento sustentável
enquanto princípio integra três pilares fundamentais: (1) o
desenvolvimento económico, (2) o desenvolvimento social e a protecção
do ambiente.

14
FRANCO, ANTÓNIO SOUSA, Ambiente e Desenvolvimento, In. Textos – Ambiente,
Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1994, pp. 264 – 265.

26
O conceito de desenvolvimento sustentável foi oficializado, através
do famoso Relatório Brundlant15, de 1986, tornando-se desde então
mundialmente conhecido e aplicado, que resultou do trabalho realizado
por uma Comissão nomeada pelo Secretário-geral das Nações Unidas,
para realizar um estudo aprofundado sobre os principais problemas
ambientais que ameaçam e obstam ao desenvolvimento da maioria dos
países do Sul16. Este Relatório serviu como um dos documentos
preparatórios da Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e
Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, de 3 a 14 de Junho de
1992 (“Conferência do Rio”).
Na Declaração de Princípios que os chefes de Estado e de Governo
assinaram, encontramos subjacente a diversos princípios o conceito de
desenvolvimento sustentável. Assim, nos termos do Princípio III, “o
direito ao desenvolvimento deverá ser exercido por forma a atender
equitativamente as necessidades, em termos de desenvolvimento e de
ambiente, das gerações actuais e futuras”. Por seu turno, segundo o
princípio IV, “para se alcançar um desenvolvimento sustentável, a
protecção ambiental deve constituir parte integrante do processo de
desenvolvimento e não pode ser considerada separadamente”.
Este conceito foi construído sobre três perspectivas fundamentais:
a superação do binómio ambiente e desenvolvimento, a ideia da
sustentabilidade, equidade ou racionalidade no uso dos recursos
naturais e a visão intergeracional.
Quanto à primeira perspectiva, dá-se a superação do aparente
antagonismo entre os conceitos de desenvolvimento e ambiente, que não
são mais entendidos como realidades inconciliáveis, bem pelo contrário,
só há desenvolvimento se o mesmo não foi alcançado à custa da
degradação ambiental. Aos se fundirem dois pólos teoricamente opostos

15 Esta comissão foi presidida pela então primeira Ministro norueguesa, Gro-Harlen
Brundlant.
16
CONDESSO, Fernando dos Reis, ob. cit., p. 80.

27
da relação dicotómica – ambiente e desenvolvimento, encontrou-se uma
nova abordagem de evolução da sociedade global, que passa não mais
pelo crescimento económico, pelo desenvolvimento exclusivamente
económico, mas pelo desenvolvimento sustentável. Tem-se em vista
“conciliar a preservação dos recursos naturais e o desenvolvimento
económico. Pretende-se que, sem o esgotamento desnecessário dos
recursos ambientais, haja a possibilidade de garantir uma condição de
vida mais digna e humana para milhões de pessoas, cujas actuais
condições são humilhantes”17.
Sobre a segunda perspectiva, trata-se de salvaguardar a
sustentabilidade no uso dos componentes ou dos recursos naturais,
preservando a biodiversidade, as espécies, os ecossistemas e habitats, as
relações fundamentais ao equilíbrio ecológico, e, principalmente, a não
retirar do Planeta mais do que aquilo que este nos permite dar de uma
forma sustentável18. Fundamentalmente, trata-se de garantir que a
pegada ecológica de cada habitante, calculada em função dos recursos
necessários à sua sobrevivência e da quantidade de resíduos por
emitidos, não constitua factor de desequilíbrio irreversível e
eminentemente problemático.
No tocante à última perspectiva, pretende-se, fundamentalmente,
abandonar a tendência egoística de perspectivar os recursos a curto
prazo, sem atender à sua finitude e, portanto, refutando-se a
possibilidade de as gerações futuras poderem usufruir dos mesmos
recursos. Aliás, por causa de tal carácter finito, Paulo Bessa Antunes
afirmou que o conceito de desenvolvimento sustentável é tudo menos
simples, sendo extremamente ingénuo considerar que se podem usar os

17
ANTUNES, Paulo de Bessa, Direito Ambiental, 8.ª Edição Revista, Ampliada e
Atualizada, Lumen Juris Editora, Rio de Janeiro, 2005, p. 14.
18
Segundo Gomes Canotilho e outros, “a utilização razoável e racionada dos recursos
escassos, os quais são condição absoluta de sobrevivência da nave, é de vital
importância tanto para o homem como para toda a vida terrestre”. Cfr. CANOTILHO,
J.J. Gomes (Coordenação científica), Introdução ao Direito do Ambiente, Universidade
Aberta, Lisboa, 1998, p. 90.

28
recursos naturais sem o risco de esgotamento19. Sousa Franco fala de
“justiça intergeracional”, no sentido de que: “uma geração não tem o
direito, nem de desperdiçar aquilo que recebeu, em de se satisfazer sem
limites no tempo da sua vida atirando com os custos disso, mediante a
dívida, para o futuro”20. Portanto, subjacente a esta ideia está a
assunção de que os recursos naturais são escassos e finitos, e não
eternamente disponíveis e absolutamente livres como durante muito
tempo se pensou e equacionou21.
Por fim, segundo Fernando Condesso, o desenvolvimento
sustentável “aponta para um modelo de desenvolvimento dentro dos
limites ambientais conhecidos, num dado momento, e tido como capaz
de preservar o equilíbrio geral e o valor do meio e dos recursos naturais
mundiais, assegurando a sua repartição e uso equilibrado”22.

2.1.2. O princípio do desenvolvimento sustentável como princípio


constitucional

A Constituição da República consagrou aquilo ao qual


chamaríamos princípio fundamental do desenvolvimento sustentável,
integrando, conforme veremos, os três pilares aos quais nos referimos
anteriormente – o económico, o social e o ambiental.
Antes de mais, este princípio é, em nosso humilde entendimento,
um autêntico princípio fundamental, ainda que, da leitura de inúmeros
trabalhos doutrinários sobre direitos estrangeiros, não tenhamos
encontrado qualquer alusão. No entanto, apesar de à partida, estarmos
diante de um constrangimento derivado de ausência de suportes teórico-
valorativos e jurídico-dogmáticos, tomaremos partido pela consagração,
19 ANTUNES, ob. cit., p. 14.
20 FRANCO, António Sousa, Ambiente e Desenvolvimento, In. Textos – Ambiente e
Consumo, Vol. I, CEJ, Lisboa, 1996, p. 22.
21
CANOTILHO, J.J. Gomes (Coordenação científica), ob. cit., p. 89.
22
CONDESSO, Fernando dos Reis, ob. cit., p. 81.

29
em sede da Constituição da República de Moçambique, de um autêntico
princípio fundamental do desenvolvimento sustentável, tendo presente,
não apenas a importância nuclear que o desenvolvimento apresenta em
face do actual estado do País, para o qual os recursos naturais
representam uma base dominial essencial à promoção do bem-estar
social e espiritual e qualidade de vida dos cidadãos moçambicanos, mas
também a notável e destacada relevância que o legislador constitucional
atribuiu à protecção do ambiente enquanto pressuposto de
desenvolvimento sustentável.
Importa igualmente ter presente que acolhemos a definição de
Gomes Canotilho, que define os princípios como “normas que exigem a
realização de algo, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas”,
em contraposição às regras, entendidas como normas que, verificados
determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em
termos definitivos, sem qualquer excepção23.
Jorge Miranda chama-nos a atenção para o facto de os princípios
não se colocarem acima do Direito (positivo), porque fazem igualmente
parte do ordenamento jurídico e normativo, isto é, são também normas –
as chamadas normas-princípios, em contraposição com as normas-
regras24.
Nota de destaque para a importância dos princípios
constitucionais, na medida em, mesmo não contendo um preceito de
carácter imediato, que possa ser aplicado sem intervenção do legislador
ou do julgador, possuem um papel fundamental na interpretação e
integração da Constituição, bem como na criação, interpretação e
integração das leis ordinárias25.

23
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição,
Almedina, Coimbra, 2003, p. 1255.
24
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo II – Constituição, 6.ª Edição,
Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 263.
25
CANOTILHO, Gomes, MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, Coimbra
Editora, Coimbra, 1991, p. 50.

30
Para o efeito, entendemos que o princípio de desenvolvimento
sustentável enquadra-se na categoria de princípios gerais fundamentais,
que concretizam e densificam os chamados princípios estruturantes da
Constituição (o do Estado de Direito, o Democrático, o Republicano e o
da Justiça Social) na medida em que determina a constituição e
indicação de ideias directivas básicas de toda a ordem constitucional26.
No caso em apreço, o princípio do desenvolvimento sustentável
constitui densificação do Princípio estruturante do Estado de Justiça
Social, ou, segundo o legislador de alguns ordenamentos jurídicos,
Princípio do Estado Social, que, no caso da Constituição de 2004,
encontra-se patente logo no artigo 1, que configura a República de
Moçambique como Estado independente, soberano, democrático e de
justiça social.
Assim, a opção constitucional significa que este princípio não se
reduz a uma mera tarefa administrativa a cargo do Estado, mas antes
perfilha-se como autêntico princípio estruturante do próprio Estado,
postulando a “constitucionalização das premissas normativo-
constitucionais da justiça social, abertas a desenvolvimentos vários nos
domínios económico, social e cultural concretos”27.
Antes de passarmos para a descrição e análise detalhada dos seus
componentes à luz da Constituição, destacamos a alusão ao princípio,
ainda que em termos indirectos, no artigo 11, da Lei Fundamental, sobre
os objectivos fundamentais do Estado moçambicano, entre os quais,
entre outros, consta o da “promoção do desenvolvimento equilibrado,
económico, social e regional do país”28. Para além de encontrarmos
patentes os três pilares de que nos temos vindo a referir (o ambiental
está implícito à “desenvolvimento equilibrado”), há uma dimensão não
menos importante de um novo bem jurídico que emerge na Constituição

26 Idem, pp. 1173 – 1174.


27
CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, Coimbra
Editora, Coimbra, 1991, p. 86.
28 Cfr. Artigo 11 d) da Constituição da República de Moçambique.

31
de 2004 – o ordenamento do território, que resulta da combinação entre
desenvolvimento equilibrado e desenvolvimento regional.

2.1.3. Os pilares subjacentes do princípio fundamental do


desenvolvimento sustentável

2.1.3.1. O pilar económico

O desenvolvimento económico ganhou uma dignidade


constitucional reforçada como interesse público a partir da entrada em
vigor da Constituição de 2004. Sendo assim, o n.º 1 do artigo 101
determina que o Estado promove, coordena e fiscaliza a actividade
económica agindo directa ou indirectamente para a solução dos
problemas fundamentais do povo e para a redução das desigualdades
sociais e regionais”. Importa sublinhar que o papel do Estado, na tripla
vertente acima referida, tem um objectivo expressamente social – isto é,
dirige-se à resolução dos problemas fundamentais que afectam os
moçambicanos, dos quais se destacamos a pobreza.
O n.º 2 deste artigo é igualmente importante, na medida em que o
legislador constituinte condiciona o investimento do Estado ao
impulsionamento do “desenvolvimento equilibrado”. É precisamente no
conceito de desenvolvimento constitucionalmente consagrado que
encontramos uma das principais bases da nossa argumentação.
Entendemos que a opção pelo referido conceito não foi um mero exercício
leviano, antes pelo contrário, marcou a tomada de uma decisão
fundamental e, consequentemente, de repercussões fundamentais na
condução das actividades de desenvolvimento.
Veja-se que, desde logo, se afastou qualquer equiparação do
conceito de desenvolvimento a um mero crescimento económico. O pilar
económico é um dos pilares da noção de desenvolvimento, não

32
assumindo também qualquer posição de prevalência em relação aos
demais pilares – o social e o ambiental.
O conceito de desenvolvimento sustentável encontra-se também
presente no n.º 1 do artigo 128, sobre o Plano Económico e Social, ao se
determinar que este instrumento “tem como objectivo orientar o
desenvolvimento económico e social no sentido de um crescimento
sustentável, reduzir os desequilíbrios e eliminar progressivamente as
diferenças económicas e sociais entre a cidade e o campo”. Neste caso, o
legislador fundamental não foi muito feliz quanto ao vocábulo utilizado,
pois, em vez de “crescimento”, deveria ter utilizado a palavra
“desenvolvimento”.

2.1.3.2. O pilar social

O pilar social constitui decorrência lógica da configuração da


República de Moçambique como Estado Social ou de Justiça Social.
Conforme nos ensina Bacelar Gouveia, deste conceito advêm três novas
preocupações: (1) “uma preocupação de justiça distributiva, não apenas
uma justiça formal e meramente comutativa”; (2) “uma preocupação de
bem-estar social, pela qual o Estado passa a lutar, realizando um novo
conjunto de incumbências, assim como através da categoria dos direitos
fundamentais sociais”; (3) “uma preocupação de intervenção económica,
encarando a actividade da economia como um domínio submetido à
relevância jurídico-constitucional”29.
Quanto ao pilar social, existem referências expressas ou implícitas
ao longo do texto da Constituição de 2004, incluindo o artigo 128 acima
aludido, mas realça, desde logo, à vista, o disposto no artigo 1,
relativamente à configuração da República de Moçambique como Estado

29
GOUVEIA, Bacelar, Manual de Direito Constitucional, Volume II, 2.ª Edição Revista e
Actualizada, Almedina, Coimbra, 2007, p. 937.

33
de Justiça Social. Este princípio foi reforçado através da alínea c) do
artigo 11, segundo o qual o Estado moçambicano tem como um dos
objectivos fundamentais “a edificação de uma sociedade de justiça social
e a criação do bem-estar material, espiritual e qualidade de vida dos
cidadãos”.
O pilar social decorre igualmente do capítulo V, referente aos
direitos económicos, sociais e culturais, que, ao reforçar
significativamente as posições jurídicas subjectivas dos cidadãos,
atribuiu ao Estado uma responsabilidade acrescida na implementação
das acções e medidas necessárias à efectivação dos direitos sociais
constitucionalmente consagrados. Este papel do Estado foi
complementado com a previsão, no Capítulo III, relativo à organização
social, do Título IV (Organização económica, social, financeira e fiscal), de
um conjunto fundamental de atribuições públicas, consubstanciando
autênticos deveres de intervenção na sociedade para a realização de
direitos económicos, sociais e culturais dos cidadãos.

2.1.3.2. O pilar ambiental

A norma constitucional mais importante, em nosso entender, foi a


que consignou o conceito de desenvolvimento sustentável – referimo-nos
ao artigo 117, referente ao “ambiente e qualidade de vida”, enfatizando o
pilar ambiental. Assim, segundo o n.º 2 do referido artigo, com vista a
garantir o direito ao ambiente no quadro de um desenvolvimento
sustentável, o Estado adopta politicas para alcançar diversos objectivos,
entre os quais destacamos o constante na alínea d), e que dirige-se a
assegurar o “aproveitamento racional dos recursos naturais com
salvaguarda da sua capacidade de renovação, da estabilidade ecológica e
dos direitos das gerações vindouras”.
Nesta alínea encontramos igualmente duas das dimensões
importantes do conceito de desenvolvimento sustentável, uma referente à

34
racionalidade do uso e aproveitamento dos recursos; e a segunda alusiva
ao carácter intergeracional, isto é, em que o uso dos recursos seja
susceptível de satisfazer os recursos não apenas da geração presente,
mas igualmente da geração futura.

2.1.4. Densificação ordinária do princípio de desenvolvimento


sustentável

O princípio de desenvolvimento sustentável foi consagrado em


diversos instrumentos legais, anteriores e posteriores à aprovação da
Constituição de 2004. A base para materialização ordinária do conceito
ocorreu com a aprovação da Política Nacional do Ambiente, através da
Resolução n. ° 5/95, de 3 de Agosto, instrumento de carácter
programático perspectivado como “a base para um desenvolvimento
sustentável de Moçambique, viando a erradicação progressiva da pobreza
e a melhoria da qualidade de vida dos moçambicanos bem como a
redução dos danos sobre o ambiente”. Por seu turno, foi definido como
grande objectivo geral da Política Nacional do Ambiente “assegurar um
desenvolvimento sustentável do país, considerando as suas condições
específicas, através de um compromisso aceitável e realístico entre o
progresso socioeconómico e a protecção do ambiente”30.

30
Para além da Política Nacional do Ambiente, importa fazer menção do Plano
Quinquenal do Governo para 2000 – 2004, aprovado pela Resolução n.º 4/2000, de 22
de Março, que traçou como um dos quatro objectivos centrais do Executivo “o
crescimento económico rápido e sustentável, focalizando a atenção à criação do
ambiente económico favorável à acção do sector privado”, o que, no domínio do
ambiente, “pressupõe uma adequada utilização dos recursos naturais, garantindo deste
modo as necessidades actuais de crescimento socioeconómico e das gerações
vindouras”. Mas foi no Plano Quinquenal seguinte (2005 - 2009), aprovado pela
Resolução n.º 16/2005, de 11 de Maio, que o conceito ganhou o significado e alcance
que lhe são atribuídos, tendo sido estabelecido como objectivo central do Governo “a
redução da pobreza absoluta, através da promoção do desenvolvimento social e
económico sustentáveis”. No que diz respeito ao ambiente, reconheceu-se que “no
contexto dos três pilares de desenvolvimento sustentável, nomeadamente o
desenvolvimento económico, social e a conservação do ambiente, o Governo continuará
a considerar os aspectos ambientais como sendo de maior relevância em todos os
processos de formulação de políticas, planos e projectos, rumo ao desenvolvimento

35
A Política serviu de fonte de direito aquando da elaboração da Lei
do Ambiente, a qual incluiu o conceito de desenvolvimento sustentável
no n.º 10 do artigo 1 da Lei do Ambiente, Lei n.º 20/97, de 1 de Outubro,
definido como “o desenvolvimento baseado numa gestão ambiental que
satisfaz as necessidades da geração presente sem comprometer o
equilíbrio do ambiente e a possibilidade de as gerações futuras
satisfazerem as suas necessidades”.
Esta Lei tem, aliás, como objectivo último a materialização de um
sistema de desenvolvimento sustentável, através da “definição das bases
legais para uma utilização e gestão correctas do ambiente e seus
componentes”31
O legislador criou, no artigo 6 da Lei do Ambiente, o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Sustentável (CONDES), órgão consultivo do
Conselho de Ministros, cuja atribuição fundamental consiste em garantir
a “efectiva e correcta coordenação e integração dos princípios e das
actividades de gestão ambiental no processo de desenvolvimento do
país”, funcionando igualmente como “fórum de auscultação da opinião
pública sobre questões ambientais”.
O conceito de desenvolvimento sustentável tem vindo a ser
reforçado no esforço de regulamentação da Lei do Ambiente,
encontrando-se previsto, em termos expressos, no Regulamento sobre o
Processo de Avaliação do Impacto Ambiental, aprovado pelo Decreto n.º
45/2004, de 29 de Setembro32, instrumento determinante no processo
de tomada de decisões com impactos positivos e negativos no património
ambiental moçambicano.
Esta definição foi acolhida integralmente no n.º 10 do artigo 1 da
Lei de florestas e Fauna Bravia, Lei n.º 10/99, de 7 de Julho. O artigo 2,

sustentável, tendo sempre como prioridade a equidade de género, o bem-estar social, a


prevenção e o combate à degradação ambiental, uso sustentável dos recursos naturais
e uma planificação participativa e democrática”.
31
Cfr. Artigo 2 da Lei do Ambiente, que definiu o objecto.
32
Veja-se o n.º 12 do artigo 1 do Regulamento sobre a Avaliação do Impacto Ambiental.

36
por seu turno, definiu o objecto da Lei, estabelecendo “os princípios e
normas básicos sobre a protecção, conservação e utilização sustentável
dos recursos florestais e faunísticos no quadro de uma gestão integrada,
para o desenvolvimento económico e social do país”, no qual se
encontram os pilares fundamentais do conceito de desenvolvimento
sustentável.
No que diz respeito à legislação sobre recursos naturais, o
destaque vai, precisamente, para a Lei de Minas, na medida em que, logo
no artigo 2 alusivo aos objectivos, se estipulou que o direito de uso e
aproveitamento dos recursos minerais tem em vista “um desenvolvimento
sustentável de longo prazo”. Este entendimento foi reforçado através do
artigo 2 (objecto) do Regulamento Ambiental da Actividade Mineira,
segundo o qual o mesmo visa “o estabelecimento de normas para
prevenir, controlar, mitigar, reabilitar e compensar os efeitos adversos
que a actividade mineira possa ter sobre o ambiente, com visa ao
desenvolvimento sustentável desta actividade”.
A seguir à aprovação da Constituição de 2004, importa fazer
alusão à Lei do Ordenamento do Território (LOT), Lei n.º 19/2007, de 18
de Julho, que, para além de ter acolhido integralmente o conceito de
desenvolvimento sustentável tal como consta na Lei do Ambiente,
fortaleceu sobremaneira o entendimento em relação a cada um dos
pilares que o compõem – económico, social e ambiental. Isto acontece,
desde logo através da definição do objectivo geral da LOT - “assegurar a
organização do espaço nacional e a utilização sustentável dos seus
recursos naturais, observando as condições legais, administrativas,
culturais e materiais favoráveis ao desenvolvimento social e económico
do país, à promoção da qualidade de vida das pessoas, à protecção e
conservação do meio ambiente”33.

33 Cfr. Artigo 5/1 da Lei do Ordenamento do Território.

37
Foi indicado, em especial, como objectivo específico da LOT, o de
“compatibilizar e articular as políticas e estratégias ambientais e de
desenvolvimento socioeconómico, respeitando as formas actuais de
ocupação do espaço”34.
Este instrumento não procedeu a qualquer hierarquização dos
possíveis usos do território, sendo, no entanto, e a seguir à Constituição,
a sede mais indicada para o efeito. Há, no entanto, um notório
predomínio do objectivo da protecção e conservação do ambiente,
reflectido em quatro dos oito objectivos específicos da LOT35.

2.1.4. A inconstitucionalidade da norma constante no n.º 2 do artigo


43 da Lei de Minas em função da opção fundamental do
desenvolvimento sustentável

Chegados a este ponto, somos do entendimento de que a opção


tomada pelo legislador ordinário, no âmbito da Lei de Minas, no que diz
respeito à prevalência do uso mineiro sobre os demais usos, sempre que
este configure, em caso concreto, benefícios económicos e sociais
superiores, se encontra desconforme com o disposto na Constituição da
República de Moçambique, designadamente em relação à opção
constitucional de consagrar o princípio fundamental do desenvolvimento
sustentável, enquanto objectivo nuclear e fundamental do Estado
moçambicano.

34 Cfr. Artigo 5/2 da LOT.


35 Artigo 5/2 da LOT. d) “Preservar o equilíbrio ecológico da qualidade e da fertilidade
dos solos, da pureza do ar, a defesa dos ecossistemas e dos habitats frágeis, das
florestas, dos recursos hídricos, das zonas ribeirinhas e da orla marítima,
compatibilizando as necessidades imediatas das pessoas e das comunidades locais com
os objectivos de salvaguarda do ambiente”; e) “Defender, preservar e valorizar o
património construído e da paisagem natural ou transformada pelo homem”; f)
“Compatibilizar e articular as políticas e estratégias ambientais e de desenvolvimento
socioeconómico, respeitando as formas actuais de ocupação do espaço”; e g) “Optimizar
a gestão dos recursos naturais para que o seu uso e aproveitamento bem como a defesa
e a protecção do meio ambiente, se processe com a estrita observância da lei”.

38
Note-se que o juízo de inconstitucionalidade pressupõe sempre um
juízo de incompatibilidade entre um princípio ou norma constitucional e
uma norma ordinária, requerendo, por conseguinte, a interpretação não
apenas da Constituição como também da norma infraconstitucional em
causa36.
Ao se prever, em sede ordinária, a prerrogativa de a Administração
Pública proceder à ponderação dos eventuais benefícios económicos e
sociais de cada um dos usos em eminente conflito, significa, em termos
jurídicos, uma verdadeira e autêntica desconformidade em relação à
Constituição de 2004, consubstanciando uma inconstitucionalidade
material superveniente, dado que a Lei de Minas é anterior à lei
Fundamental.
Acreditamos que muito provavelmente a redacção da norma
ordinária que suscitou a dúvida da constitucionalidade possuiria
contornos diferentes na sequência da opção fundamental do legislador
constitucional no que diz respeito à consagração do princípio
fundamental do desenvolvimento sustentável, que pressupõe, para além
dos pilares económico e social, um não menos importante pilar
ambiental, sem o qual haverá, tão-somente, um mero crescimento
económico ou, então, um desenvolvimento sócio económico, mas nunca
um desenvolvimento sustentável.

36
CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, Coimbra
Editora, Coimbra, 1991, p. 270.

39
2.2. A constitucionalização do bem jurídico ambiente e respectivas
dimensões fundamentais

2.2.1. A Constituição Ambiental

Para além do reconhecimento do desenvolvimento sustentável, a


consubstanciou a protecção do ambiente como interesse público,
reforçando significativamente, em termos qualitativos e quantitativos, o
regime jurídico-constitucional de protecção do bem jurídico ambiente,
cujos marcos constituem os artigos 90 (direito ao ambiente) e 117
(ambiente e qualidade de vida), que consubstanciam os pólos subjectivo e
objectivo da “Constituição Ambiental” moçambicana.
A Constituição Ambiental37, enquanto conjunto de princípios e
normas jurídicas fundamentais de protecção do bem jurídico ambiente,
encontra enquadramento no conceito defendido por alguns autores no
sentido da existência de um autêntico Estado Constitucional Ecológico,
associado à ideia de democracia sustentada. Conforme Gomes Canotilho,
“o que se pretende com estes enunciados ou fórmulas é isto: (1) o Estado
constitucional, além de ser e dever ser um Estado de Direito democrático
e social, deve ser também um Estado regido por princípios ecológicos; (2)
o Estado ecológico aponta para formas novas de participação política
sugestivamente condensadas na expressão democracia sustentada”38.
Vasco Pereira da Silva refere ao Estado Pós-Social como autêntico
“Estado de Ambiente”, que resultou da crise do Estado-Providência
(Estado Social), obrigando a «repensar e renovar o “pacto social”, numa
tentativa de reequacionamento do papel do Estado na sociedade e de

37 Veja-se, a respeito do significado e alcance do conceito de “Constituição do Ambiente”

ou “Constituição Ambiental” FERNANDEZ, Maria Elisabeth Moreira, Direito ao Ambiente


e Propriedade Privada (Aproximação ao Estudo da Estrutura e das Consequências das
Leis-Reserva Portadoras de Vínculos Ambientais), Stvdia Ivridica, Boletim da Faculdade
de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Coimbra, 2001.
38
CANOTILHO, José Gomes, Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada,
Revista do CEDOUA, n.º 8, CEDOUA, Coimbra, 2001, p. 9.

40
procura de resposta para as necessidades acrescidas de defesa dos
particulares em face das novas ameaças de poderes públicos e privados,
a “questão ecológica” (como outrora a “questão social”) vai implicar a
assunção de novas tarefas estaduais»39.
Por seu turno, de acordo com José Pureza, “para o Estado
Ambiental a questão decisiva não é (como sucedia com o Estado liberal e
com o Estado social) a intensidade da intervenção económica do Estado
mas sim o primado do princípio do destino universal dos bens no espaço
e no tempo, o que impõe como tarefa fundamental a subtracção de certas
actividades e de certos recursos ao domínio da economicidade e o
controlo jurídico do uso racional do património natural. Em suma, o
Estado ambiental já não se contenta com a lógica limitativa transportada
pelos modelos anteriores e assume abertamente o património natural e o
ambiente como bens públicos, objecto de utilização racional”40.
Jorge Miranda refere, no entanto, que são poucos os Estados que
poderão arrogar-se da qualidade de Estados ambientais, visto que a
universalização do processo de constitucionalização do bem jurídico
ambiente não significa, por si só, efectividade ou implementação das
normas41.
A Constituição moçambicana inspirou-se nitidamente na
Constituição Portuguesa de 1976, na qual o ambiente recebeu um
tratamento de duplo alcance: objectivo (enquanto elemento institucional
e organizatório) e subjectivo (como direito fundamental de todo o
cidadão)42.

39
SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente,
Almedina, Coimbra, 2002, pp. 24 – 25.
40
PUREZA, José, Tribunais, Natureza e Sociedade: O Direito do Ambiente em Portugal,
Cadernos do CEJ, Centro de Estudos Judiciários, pp. 27 – 28.
41
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV – Direitos Fundamentais,
3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 533.
42
Idem, pp. 535 – 536.

41
2.2.2. O direito fundamental ao ambiente equilibrado

Tal como na Constituição de 1990, o legislador fundamental


consagrou, no n.º 1 do artigo 90, o direito fundamental ao ambiente
equilibrado e correspectivo dever de o defender. Este artigo encontra-se
integrado no Capítulo V (Direitos e deveres económicos, sociais e
culturais) do Título III (Direitos, deveres e liberdades fundamentais),
correspondendo na íntegra ao artigo 72 da Constituição de 1990.
A constitucionalização do direito fundamental ao ambiente ao nível
internacional decorre da Declaração de Princípios que resultou da
Convenção das Nações Unidas sobre Ambiente Humano, realizada em
Estocolmo, na Suécia, em 1972 (“Conferência de Estocolmo”),
considerada um marco histórico para o processo de construção do
Direito Internacional do Ambiente. Assim, nos termos do princípio I “A
pessoa humana tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e a
condições de vida satisfatórias, num ambiente cuja qualidade lhe
permita viver com dignidade e bem-estar. Cabe-lhe porém o dever solene
de proteger e melhorar o ambiente para as gerações actuais e vindouras
(...)”
Trata-se do chamado pilar subjectivista da Constituição Ambiental,
que consubstancia uma posição jurídico-subjectiva do cidadão enquanto
sujeito de direitos e deveres no tocante ao relacionamento com o
ambiente43. O conceito de ambiente equilibrado enquanto
intrinsecamente associado aos conceitos de qualidade de vida e de bem-
estar material e espiritual, consignados, entre outros, na alínea c) do
artigo 11 da Constituição, referente aos objectivos fundamentais da
República de Moçambique. Podemos deduzir que, de acordo com
legislador fundamental, a criação de condições para a efectivação de um

43
Sobre a natureza, significado e alcance do direito fundamental ao ambiente veja-se
CONDESSO, Fernando dos Reis, Direito do Ambiente, Coimbra, 2001, pp. 472 – 476.

42
ambiente equilibrado é condição peremptória para a realização integral
do ser e personalidade de cada indivíduo.
Esta opção constitucional significa que, não obstante o inegável
valor societário ou colectivo do ambiente como bem jurídico, tendo
presente a enorme importância que o mesmo assume para a comunidade
politicamente organizada, determinando a consagração de um autêntico
interesse público na sua protecção, “essa natureza não prejudica (mas,
pelo contrário, reforça) a circunstância de o ambiente dever ser também
assumido como direito subjectivo de todo e qualquer cidadão
individualmente considerado”44. E mais, “o ambiente, apesar de ser um
bem social unitário, é dotado de uma indiscutível dimensão pessoal”45.
Por outro lado, o reconhecimento de um determinado valor como
direito fundamental pressupõe o entendimento de que a sua protecção e
efectivação constitui pressuposto essencial para uma existência livre e
condigna de cada indivíduo.
Gomes Canotilho e outros salientam que “na caracterização do
ambiente como direito fundamental, deve também destacar-se o seu
entendimento como direito da personalidade humana, bem como a sua
autonomia”, e que este “é protegido com autonomia em relação a outros
direitos que lhe são próximos (por exemplo o direito à saúde ou o direito
de propriedade)”46. Isto é, o ambiente é tutelado directa e imediatamente
e não apenas como meio de efectivar outros direitos com ele
relacionados”47.
Ora, o reconhecimento do direito fundamental ao ambiente assume
uma dupla dimensão: negativa e positiva. Negativa enquanto direito à
abstenção, por parte de sujeitos terceiros, Estado ou particulares, de

44
CANOTILHO, J.J. Gomes (Coordenação científica), Introdução ao Direito do Ambiente,
Universidade Aberta, Lisboa, 1998, p. 27.
45
Idem.
46
Ibidem, p. 28.
47
DIAS, José Eduardo Figueiredo, Direito Constitucional e Administrativo do Ambiente,
Cadernos CEDOUA, CEDOUA/Universidade de Coimbra, Almedina, Coimbra, 2002, p.
16.

43
quaisquer actos de carácter nocivo susceptíveis de lesar o bem jurídico
ambiente48. O direito ao ambiente é assim configurado como um direito
de autonomia ou de defesa das pessoas perante os poderes, públicos e
sociais. E positiva, na medida em que se perspectiva como um direito à
realização de uma série de prestações positivas por parte do Estado, e
que, conforme veremos, encontram assento, em termos não taxativos, no
artigo 117 da Constituição, realçando-se a sua dimensão enquanto
direito económico, social e cultural49.
Conforme se depreende da redacção do n.º 1 do artigo 90, ao
direito ao ambiente corresponde um dever de defender o ambiente, a
cargo de toda e qualquer pessoa, pública ou privada, singular ou
colectiva. O legislador constitucional moçambicano reforçou
significativamente a responsabilização do cidadão em relação ao
ambiente, o que acontece desde logo com a integração do artigo 45
(deveres para com a comunidade), que não tem qualquer
correspondência no texto constitucional anterior, o qual consagrou, para
além de outros, o dever essencial de todo e qualquer cidadão para com a
comunidade, “de defender e promover o ambiente”.
A consagração de um conjunto de deveres fundamentais na
Constituição de 2004 decorre, desde logo, do disposto em alguns
instrumentos de Direito Internacional em vigor na ordem jurídica
moçambicana, entre os quais destaque-se a Declaração Universal dos
Direitos Humanos50 e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos
Povos51. Segundo Jorge Miranda, “estes deveres são (…) de natureza

48
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV – Direitos Fundamentais,
3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. p. 540.
49
Idem, p. 541.
50
Segundo o n.º 1 do artigo 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
“indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e
pleno desenvolvimento da sua personalidade”.
51 Segundo o n.º 1 do artigo 27 da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos,

ratificada pela Resolução n.º 9/88, de 25 de Agosto, “Cada indivíduo tem deveres para
com a família e a sociedade, para com o Estado e outras colectividades legalmente
reconhecidas e para com a comunidade internacional”.

44
jurídica (ainda que nem todos equivalham a deveres na tradição ou na
acepção própria do Direito Privado) – porque criados por verdadeiras
normas jurídicas, as normas constitucionais”52.
Por conseguinte, há lugar “a um fortalecimento da componente
responsabilidade partilhada, isto é, não obstante caber ao Estado
moçambicano, sem margem para dúvida, o papel crucial de promoção,
protecção, valorização destes bens, é indiscutível que sem o envolvimento
e adesão do cidadão individualmente considerado, por um lado, e da
comunidade no seu todo, por outro lado, não haverá qualquer sucesso
significativo no que toca à implementação das políticas públicas. O
cidadão é, portanto, não apenas um mero destinatário das políticas,
normas e decisões do Estado, mas, fundamentalmente, sujeito
determinante na respectiva implementação”53.
Da consagração do direito fundamental ao ambiente equilibrado
decorre como consequência lógica, enquanto pressuposto de tutela, o
direito de acesso à justiça, incluindo o acesso aos tribunais e às demais
instâncias de resolução de conflito, nos termos legalmente admissíveis.
Neste domínio, vejam-se os artigos 62 (Acesso aos tribunais), 69 (Direito
de impugnação), 70 (Direito de recorrer aos tribunais), 79 (Direito de
petição, queixa e reclamação) e 81 (Direito de acção popular). Estamos
diante de um autêntico direito a protecção jurisdicional efectiva, no qual
“os cidadãos terão assim abertas as portas dos tribunais, para reclamar
a tutela do ambiente quando tal direito seja violado por outros
particulares ou por entes e organismos públicos”54.
Finalmente, a norma jurídica que consubstancia o direito ao
ambiente equilibrado, encontrando-se integrada no capítulo respeitante

52
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV – Direitos Fundamentais,
3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 177.
53
SERRA, Carlos/CUNHA, Fernando, Manuel de Direito do Ambiente, 2.ª Edição, CFJJ,
Maputo, 2008, p. 132.
54
DIAS, José Eduardo Figueiredo, Direito Constitucional e Administrativo do Ambiente,
Cadernos CEDOUA, CEDOUA/Universidade de Coimbra, Almedina, Coimbra, 2002, pp.
31 – 32.

45
aos direitos económicos, sociais e culturais, pressupõe efeitos jurídicos
dignos de destaque, não obstando não conferir directamente aos
cidadãos um direito à sua prestação efectiva, e que importa referir55:

i. Implicam a interpretação das normas ordinárias segundo um


significado mais conforme com ela. Neste caso, o chamado
princípio da democracia económica e social é um elemento
fundamental e obrigatório na interpretação conforme à
Constituição56.
ii. Implica a inconstitucionalidade das normas legais que realizem
um direito em termos diferentes daqueles que tiverem sido
constitucionalmente previstos e definidos ou “que contrariem a
realização legal anteriormente atingida”; isto é, conforme Gomes
Canotilho e Vital Moreira referem, «as normas constitucionais
que reconhecem direitos económicos, sociais e culturais de
carácter positivo têm pelo menos uma função de garantia da
satisfação adquirida por esses direitos, implicando uma
proibição de retrocesso, visto que, uma vez dada satisfação ao
direito, este transforma-se, nessa medida, em “direito negativo”
ou “direito de defesa”, isto é, num direito a que o Estado se
abstenha de atentar contra ele»57. O princípio da proibição do
retrocesso social postula que quaisquer intervenções ordinárias
devam obrigatoriamente observar o núcleo essencial dos
direitos económicos, sociais e culturais58.

55 Veja-se CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição,


Coimbra Editora, Coimbra, 1991, p. 131.
56 CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição ob. cit., p. 341.
57
CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, ob. cit., p. 131.
58 CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição ob. cit., p. 340.

46
2.2.3. A consagração do interesse público da protecção do ambiente

Foi na afirmação de um autêntico interesse público de protecção


do ambiente que o legislador deu um passo significativo e substancial em
relação à Constituição anterior, a qual fazia menção, através do artigo
37, em termos genéricos e tímidos, a uma obrigação do Estado na
tomada de medidas dirigidas à valorização do bem jurídico ambiente.
O pilar objectivista da Constituição Ambiental, enquanto segundo
grande eixo do regime de protecção jurídico-constitucional do ambiente,
encontra-se presente em duas normas constitucionais – o artigo 117
(Ambiente e qualidade de vida) e n.º 2 do artigo 90 (sobre o direito ao
ambiente).
Com a epígrafe “ambiente e qualidade de vida”, o artigo 117
encontra-se integrado no Capítulo III (organização social) do Título IV
(Organização económica, social, financeira e fiscal). Segundo o n.º 1 do
referido artigo, o legislador constitucional estabeleceu a regra geral
segundo o qual compete ao Estado a obrigação de adopção de iniciativas
dirigidas a garantir: (1) o equilíbrio ecológico e a conservação e
preservação do ambiente, (2) com vista à melhoria da qualidade de vida
do cidadão.
Encontramos expressa na referida norma clara opção pelo
postulado filosófico do antropocentrismo, no sentido de que, a protecção
do bem jurídico ambiente enquanto tal, tendo presente a importância
ecológica de cada um dos componentes ambientais e as relações que se
estabelecem entre os mesmos, deve-se fundamentalmente à necessidade
de garantir a qualidade de vida de cada ser humano, enquanto valor
intrinsecamente associado à realização da pessoa.
O legislador não se ficou pela mera estipulação de uma regra geral,
tendo definido um conjunto de obrigações específicas, em termos não
taxativos, na medida em que não obstam à realização de todas as acções

47
que se revelaram fundamentais a “garantir o direito ao ambiente no
quadro de um desenvolvimento sustentável”, nomeadamente:

i. Prevenir e controlar a poluição e a erosão;


ii. Integrar os objectivos ambientais nas políticas sectoriais;
iii. Promover a integração dos valores do ambiente nas políticas e
programas educacionais;
iv. Garantir o aproveitamento racional dos recursos naturais com
salvaguarda da sua capacidade de renovação, da estabilidade
ecológica e dos direitos das gerações vindouras;
v. Promover o ordenamento do território com vista a uma correcta
localização das actividades e a um desenvolvimento
socioeconómico equilibrado.

Assim, no que diz respeito à consagração do interesse público de


protecção do bem jurídico ambiente, assiste-se à definição de um
conjunto de determinadoras de fins ou tarefas, no sentido “de preceitos
constitucionais que, de uma forma global e abstracta, fixam
essencialmente os fins e as tarefas prioritárias do Estado”59.
Por seu turno, nos termos do n.º 2 do artigo 90, determinou-se que
“o Estado e as autarquias locais com a colaboração das associações na
defesa do ambiente, adoptam políticas de defesa do ambiente e velam
pela utilização racional de todos os recursos naturais”. Há aqui uma
dupla responsabilização do Estado: em primeiro lugar, o Estado incorre
na obrigação de adoptar políticas e estratégias de sustentabilidade
ambiental, que pugnam pela uso e aproveitamento racional dos recursos
naturais; em segundo lugar, resulta da referida norma constitucional o
dever de trabalhar em estreita articulação com as associações de defesa

59
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição,
Almedina, Coimbra, 2003, p. 1172.

48
do ambiente, combinando-se meios, recursos e esforços em prol de uma
causa que se quer comum.

2.2.4. A inconstitucionalidade da norma constante no n.º 2 do artigo


43 da Lei de Minas em função do regime jurídico-constitucional de
protecção do ambiente

A inconstitucionalidade (material e superveniente) da norma no n.º


2 do artigo 43 da Lei de Minas traduz-se na violação do regime jurídico-
constitucional do ambiente, dado que, ao permitir-se que a
Administração possa tomar uma decisão concreta, aprovando uma
actividade, sem pesar as vantagens e desvantagens ambientais, coloca-se
em cheque o direito subjectivo de cada membro da colectividade a um
ambiente equilibrado, ainda que a mesma actividade possa acarretar, na
avaliação realizada, benefícios económicos e sociais superiores, mas
compromete igualmente as normas que consubstanciam um interesse
público na protecção do ambiente, não somente em termos de abstenção
ao cometimento de agressões directas e indirectas nos componentes
ambientais, mas também na imposição de tarefas ou condutas positivas
dirigidas à sua salvaguarda e valorização.
Por outro lado, a norma ordinária em causa, que consubstancia a
realização do bem jurídico desenvolvimento económico,
constitucionalmente consagrado, pressupõe um sacrifício significativo e
desproporcional de um outro bem jurídico com assento e dignidade
constitucional – o ambiente, na sua dupla dimensão – subjectiva e
objectivo, não decorrendo de um exercício de ponderação ou
balanceamento de bens constitucionais.
Por seu turno, há aqui uma nítida inobservância do princípio da
proibição do retrocesso social, que determina a obrigatoriedade de o
legislador ordinário observar o núcleo essencial dos direitos económicos,

49
sociais e culturais60. Assim, «o núcleo essencial dos direitos sociais já
realizado e efectivado através de medidas legislativas (…) deve
considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais
quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas
alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa
“anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo
essencial»61

2.3. O silêncio constitucional em torno da valoração de usos sobre


os recursos naturais

Um aspecto não menos importante e que, por essa razão, necessita


de afloramento, prende-se com o facto de, em sede constitucional, não se
encontrar nenhuma norma jurídica que consagre a prevalência ou
preferência de determinado recurso natural sobre os demais, ou, em
alternativa, do respectivo direito de uso e aproveitamento.
O artigo 98 da Constituição versa sobre os regimes da propriedade
do Estado e sobre o domínio público. No primeiro caso, o artigo 1
determina que “os recursos naturais situados no solo e no subsolo, nas
águas interiores, no mar territorial, na plataforma continental e na zona
económica exclusiva são propriedade do Estado”. Trata-se do princípio
fundamental da propriedade estatal dos recursos naturais, que foi
densificado ou concretizado em diversos instrumentos ordinários,
nomeadamente no artigo 2 da Lei de Florestas e Fauna Bravia (Lei n.º
10/99, de 6 de Junho); no artigo 4 da Lei de Minas (Lei n.º 14/2002, de
26 de Junho)62; no artigo 6 da Lei dos Petróleos (Lei n.º 3/2001, de 21 de

60 CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 340.


61
Idem, p. 340.
62
“Os recursos minerais que se encontrem no solo e subsolo, nas águas interiores, no
leito do mar territorial, na zona económica exclusiva e na plataforma continental da
República de Moçambique, são propriedade do Estado nos termos da Constituição”.

50
Fevereiro)63, no artigo 1 da Lei das Águas (Lei n.º 16/91, de 3 de
Agosto)64 e no artigo 4 da Lei das Pescas (Lei n.º 3/90, de 26 de
Setembro)65 e no artigo 10 da Lei do Património Cultural (Lei n.º 10/88,
de 22 de Dezembro)66.
Por seu turno, o n.º 3 do artigo 98, que prevê três categorias de
domínio público: o domínio público do Estado propriamente dito, o
domínio público Autárquico e o domínio público Comunitário.
Em relação ao domínio público do Estado, encontra-se associado a
interesses públicos de índole essencialmente nacional, fundamentais
para a construção e desenvolvimento do Estado moçambicano enquanto
um todo integrado. “Sendo proprietário destes bens, o Estado define as
regras e as condições do respectivo uso e aproveitamento por parte dos
particulares, emitindo licenças e autorizações, exercendo a actividade de
fiscalização e retirando as mesmas quando o interesse público assim o
determinar, quando aquele uso e aproveitamento se efectue contra o
disposto na lei ou quando se atinja o limite dos prazos legalmente fixados
não havendo propósito da sua renovação”67.
À luz do n.º 2 do artigo 98, constituem domínio público do Estado:
a zona marítima, o espaço aéreo; o património arqueológico; as zonas de
protecção da natureza; o potencial hidráulico; o potencial energético; as

63 “Todos os recursos petrolíferos enquanto recursos naturais situados no solo e no


subsolo, nas águas interiores, no ar territorial, na plataforma continental e na zona
económica exclusiva, são propriedade do Estado”.
64 “As águas interiores, as superficiais e os respectivos leitos, as subterrâneas, quer

brotem naturalmente ou não, são propriedade do Estado, constituindo domínio público


hídrico”.
65 “Os recursos pesqueiros das águas jurisdicionais de Moçambique são de domínio

público, cabendo ao Estado regulamentar as condições do seu uso e aproveitamento”.


66 “São considerados propriedade inalienável do Estado, os seguintes bens do

património cultural, conhecidos ou que venham a ser encontrados no território


nacional:
a) Estações e objectos arqueológicos;
b) Pinturas rupestres;
c) Construções ou outras obras representativas das sociedades pré-coloniais como
amuralhados, zimbabwes, aringas, centros de mineração e centros de poder,
aglomerados populacionais, entrepostos comerciais e lugares de culto”.
67 SERRA, Carlos/CUNHA, Fernando, Manual de Direito de Ambiente, CFJJ, Maputo,

2088, p. 138.

51
estradas e linhas férreas; as jazidas minerais; e os demais bens como tal
classificados por lei. Assim, os recursos minerais compõem assim
domínio público do Estado, mas também o são os recursos energéticos,
hídricos e os demais recursos naturais existentes nas zonas de protecção
da natureza.
Entendemos que a opção no sentido da prevalência do uso mineiro
sobre os demais usos deveria acontecer no quadro jurídico-normativo da
Constituição, enquanto lei mãe de uma comunidade politicamente
organizada, e na qual são plasmados, em termos sistemáticos e
racionais, os princípios e normas por esta considerados fundamentais
em determinado momento histórico. Tendo presente o tipo, importância,
significado e alcance da opção em causa, não deveria ter sido realizada
em sede ordinária, principalmente numa lei considerada “sectorial”, isto
é, referente a um determinado sector de actividade e a uma categoria
específica de recursos naturais – os recursos minerais.
A ser admitida a opção ordinária, que mesma tivesse lugar em sede
da Lei do Ordenamento do Território, enquanto instrumento jurídico-
legal dirigido à materialização física das opções fundamentais em torno
do território.

52
Capítulo III - Interpretação da norma constante no n.º 2 do artigo 43
da Lei de Minas no quadro da Constituição da República

3.1. Os caminhos da interpretação

Coloca-se entretanto a questão de verificar como resolver


juridicamente a inconstitucionalidade da norma constante no n.º 2 do
artigo 43 da Lei de Minas. Para o efeito, recorreremos à interpretação
jurídica como mecanismo adequado para a resolução do problema
identificado na introdução do presente trabalho.
A interpretação significa, de acordo com Syvio Motta e Willian
Douglas, em termos simples, “nada mais do que desvendar o real
significado da norma, buscar aquilo que o legislador efectivamente quis
dizer, aquilo que pretende que aconteça”68.
Gomes Canotilho e Vital Moreira definem a interpretação como
“um discurso ou processo complexo que incide sobre um enunciado
linguístico. Tem como objecto uma disposição, sendo o seu resultado
uma norma”69.
A interpretação jurídica encontra-se indissociavelmente ligada com
a aplicação do Direito, como finalidade última do exercício hermenêutico,
destinando-se à real “conformação da vida pela norma” e não
simplesmente à “enunciação abstracta de conceitos”70.
Não estando em causa a interpretação de uma norma jurídica em
sede da Constituição, objecto da chamada interpretação constitucional,
que será definida em sede própria, mas sim de uma norma

68
MOTTA, Sylvio/DOUGLAS, Willian, Direito Constitucional: Teoria, Jurisprudência e
1000 Questões, 16.ª Edição, Revista e Ampliada, Editora Campus, Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005, p. 10.
69
CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, Coimbra
Editora, Coimbra, 1991, p. 51.
70
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo II – Constituição, 6.ª Edição,
Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 303.

53
infraconstitucional, recorreremos à interpretação conforme a
Constituição.

3.2. Interpretação conforme a Constituição

3.2.1. Conceito

A doutrina define como um dos princípios fundamentais na


interpretação de normas infraconstitucionais - a interpretação conforme
à Constituição, que, no que diz respeito à jurisprudência constitucional,
inspira-se no velho princípio da jurisprudência norte-americana segundo
o qual os juízes devem interpretar as leis em harmonia com a
Constituição71.
Bacelar Gouveia escreveu sobre a razão de ser desta modalidade de
interpretação que a mesma se prende “com o reconhecimento do carácter
supremo do texto constitucional, que como tal não só se impõe como
ditame cujo respeito é forçoso como igualmente se mostra passível de ser
um elemento auxiliar na tarefa interpretativa das fontes infra-
constitucionais, numa posição especial que deve assumir no contexto do
elemento sistemático, através do qual se deve vislumbrar a fonte infra-
constitucional integrada no sistema jurídico global, que tem como seu
cume precisamente o texto constitucional”72. Assim, a Constituição
enquanto lei suprema será utilizada como elemento auxiliar no exercício
interpretativo de fontes infra-constitucionais; dai que esta actividade
nem sempre possa culminar em êxito, dado que um dos resultados
possíveis seja, efectivamente, a eliminação da fonte infraconstitucional
em virtude da declaração de inconstitucionalidade73.

71
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 1310.
72
GOUVEIA, Bacelar, Manual de Direito Constitucional, Volume I, 2.ª Edição, Almedina,
Coimbra, 2007, p. 662.
73
Idem, pp. 662 – 663.

54
Segundo Jorge Miranda, a interpretação conforme a constituição
visa “conceder todo o relevo, dentro do elemento sistemático da
interpretação, à referência à Constituição. Com o efeito, cada norma legal
não tem somente de ser captada no conjunto das normas da mesma lei e
no conjunto da ordem legislativa; tem outrossim de se considerar no
contexto da ordem constitucional”74.
No que diz respeito à intervenção casuística em termos de acesso à
justiça, o mesmo autor defende que “todo o tribunal e, em geral, todo o
operador jurídico fazem interpretação conforme com a Constituição.
Quer dizer: acolhem, entre vários sentidos a priori configuráveis da
norma infra constitucional, aquele que lhe seja conforme ou mais
conforme; e, no limite, por um princípio de economia jurídica, procuram
um sentido que – na órbita da razoabilidade e com um mínimo de
correspondência verbal na letra da lei”75.
No que diz respeito à última parte da citação acima colocada, a
sujeição da interpretação conforme a Constituição a um requisito de
razoabilidade significa, fundamentalmente, que haja um mínimo
enquadramento base na letra da lei, determinando em que ponto a
norma interpretada conforme a Constituição fique privada de efeito útil,
ou então, onde inquestionável que o legislador ordinário optou por
critérios e soluções opostas ou contraditórias àqueles que tenha sido as
opções constitucionais76.
Jorge Miranda vai mais longe quando defende que a interpretação
conforme a Constituição não consiste apenas e fundamentalmente na
escolha entre os vários sentidos de determinando preceito, aquele que
seja mais conforme a Constituição, mas sim determinar, na chamada
fronteira ou limite da inconstitucionalidade, o sentido considerado

74
MIRANDA, Jorge, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra,
2002, p. 659.
75 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI – Inconstitucionalidade e

garantia da Constituição, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 81.


76
MIRANDA, Jorge, Teoria do Estado, ob. cit., pp. 660 – 661.

55
necessário e possível em virtude da força conformadora da Constituição,
utilizando-se diversas vias, nomeadamente, “desde a interpretação
extensiva ou restritiva à redução (eliminando os elementos
inconstitucionais do preceito ou do acto) e, porventura, à conversão
(configurando o acto sob a veste de outro tipo constitucional)77.
Alexandre de Moraes escreveu, a respeito da interpretação
conforme à Constituição, que “a supremacia das normas constitucionais
no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e
actos normativos editados pelo poder público competente78 exige que, na
função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja
sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à
Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias
significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que
apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando a sua
declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do
ordenamento jurídico”79.
Para Gomes Canotilho, o princípio da interpretação das leis em
conformidade à Constituição tem como objectivo fundamental assegurar
a própria constitucionalidade na tarefa de interpretação das normas,
nomeadamente quando a aplicação dos diversos elementos
interpretativos se torna insuficiente à obtenção de um significado
inequívoco entre os vários significados possíveis da norma ordinária,

77
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo II – Constituição, 6.ª Edição,
Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 313.
78
Este princípio significa que “Há uma presunção iuris tantum de que toda a lei é
constitucional até prova em contrário, ou seja, até que o Poder Judiciário, exercendo o
controle típico de constitucionalidade, a declare expressamente inconstitucional”. Cfr.
MOTTA, Sylvio/DOUGLAS, Willian, Direito Constitucional: Teoria, Jurisprudência e 1000
Questões, 16.ª Edição, Revista e Ampliada, Editora Campus, Rio de Janeiro: Elsevier,
2005, p. 19.
79 MORAES, Alexandre, Direito Constitucional, 17 Edição, Editora Atlas S.A., São Paulo,

2005, p. 11.

56
quando esteja em causa, portanto, uma norma polissémica ou
plurisignificativa80.
No que diz respeito ao campo dos direitos fundamentais, esta
técnica significa a interpretação mais favorável aos direitos
fundamentais, isto é, “em caso de dúvida, deve prevalecer a interpretação
que, conforme os casos, restrinja menos o direito fundamental, lhe dê
maior protecção, amplie mais o seu âmbito, o satisfaça em maior grau”81.

3.2.2. Princípios relevantes

3.3.2.1. Princípio da prevalência da Constituição

Na interpretação conforme à Constituição serão tomados em linha


de conta diversos princípios, dos quais se destaca, em primeiro lugar, o
princípio da prevalência ou supremacia da Constituição, impondo que,
entre as diversas possibilidades de interpretação da norma ordinária, se
deva optar por aquela que não seja contrária ao texto e programa da
norma constitucionais82. Decorre da configuração da Constituição como
Lei Fundamental, Lei Mãe ou Lei das Leis, o vértice do triângulo que
caracteriza hierarquização, organização e sistematização do ordenamento
jurídico.
Segundo Jorge Miranda, este princípio significa que não é a
Constituição que deve ser interpretada em conformidade com a lei; pelo
contrário, é a lei ordinária (aliás, todo o Direito infraconstitucional) que
deve ser interpretado em conformidade com a Constituição83.

80
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição,
Almedina, Coimbra, 2003, p. 1226.
81
CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, Coimbra
Editora, Coimbra, 1991, p. 143.
82
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 1226.
83
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, ob. cit., p. 307.

57
3.3.2.2. Princípio da conservação das normas

Em segundo lugar, realça-se o princípio da conservação de normas


(também denominado de princípio do aproveitamento dos actos jurídico-
políticos ou de manutenção da lei84), segundo o qual, note-se, “uma
norma não deve ser considerada inconstitucional quando, observados os
fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a
constituição”85.
Subjacente à interpretação conforme a Constituição, encontra-se a
finalidade de evitar a retirada da norma infra-inconstitucional do
ordenamento jurídico, através da declaração de inconstitucionalidade,
desde que, repita-se, haja mais do que uma interpretação possível e que
uma destas possa ser harmonizada com a Constituição86. Contudo, há
que evitar uma eventual tendência em resumir a interpretação conforme
à Constituição a uma mera interpretação em favor da lei, isto é, em a
usar como um meio para, fundamentalmente, conservar a manutenção
de determinada norma no ordenamento jurídico (resumindo-se ao
princípio de conservação de normas), pois aquele princípio traduz-se em
“um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas
constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o
conteúdo intrínseco da lei” (reforçando o princípio de integração
hierárquico-normativa)87.

84
MORAIS, Carlos Blanco de, Justiça Constitucional, Tomo II – O Contencioso
Constitucional Português entre o Modelo Misto e a Tentação do Sistema de Reenvio,
Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 331 e p. 885.
85
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 1226.
86
MOTTA, Sylvio/DOUGLAS, Willian, Direito Constitucional: Teoria, Jurisprudência e
1000 Questões, 16.ª Edição, Revista e Ampliada, Editora Campus, Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005, p. 20.
87
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 1310.

58
3.3.2.3. Princípio da proporcionalidade

Associado ao princípio aflorado no parágrafo anterior temos o


princípio da proporcionalidade, do qual decorre a obrigatoriedade de
recorrer à opção da inconstitucionalidade como solução extrema ou de
última instância88. Segundo Carlos Blanco de Morais, “a interpretação
conforme à Constituição recolhe nos diversos corolários da
proporcionalidade (como os da necessidade e da proibição do excesso)
uma justificação importante, já que o sistema repudia sanções de
intensidade repressiva com carácter desnecessário ou exorbitante”89.

3.3. Requisitos para a interpretação conforme à Constituição

A interpretação conforme a Constituição está sujeita a


determinados requisitos, sob risco de poder derivar numa usurpação dos
poderes legislativos pelo poder judicial, e, portanto, numa violação do
princípio a separação dos poderes. Isto é, não compete à justiça
constitucional o papel de fazer ou refazer o Direito, mas sim,
fundamentalmente, garantir o respeito pelo quadro jurídico-
constitucional vigente.

3.3.1. Pluralidade de significados da norma infraconstitucional

Posto isto, em primeiro lugar, sublinhando o que já se disse


anteriormente, a interpretação conforme a Constituição só é legítima
quando existe um “espaço de decisão” ou de interpretação aberto a
diversos significados possíveis, em conformidade e em desconformidade
com a Constituição. Deverá ser escolhida aquela que for mais conforme

88
MOTTA, Sylvio/DOUGLAS, Willian, Direito Constitucional, p. 886.
89
MORAIS, Carlos Blanco de, Justiça Constitucional Tomo II, p. 334.

59
com a Lei Fundamental90. Portanto, urge que determinando norma possa
ser materialmente divisível em dois ou mais sentidos com carácter
alternativo, ou seja, deve haver aquilo que Carlos Blanco de Morais
denomina de “divisibilidade material do enunciado normativo”91.

3.3.2. Rejeição de norma inconstitucional cujo sentido decorra de


interpretação conforme a Constituição

Em segundo lugar, como critério guiador, uma vez decorrida a


actividade interpretativa da norma jurídica, se vier a alcançar um
resultado em inequívoca ou inquestionável contradição com a
Constituição, deve haver lugar à rejeição da mesma por
inconstitucionalidade, tarefa a cargo do poder judicial em sede da justiça
constitucional, proibindo-se a sua correcção ou reformulação pelo
tribunal, sob risco de se assistir a uma violação do princípio da
separação dos poderes92.

3.3.3. Respeito mínimo pelo texto da lei

Este critério significa que a interpretação conforme a Constituição


não pode redundar numa mera interpretação “contra legem”, tal como.
Alias, se encontra previsto no n.º 2 do artigo 9 do Código Civil, segundo o
qual, “não pode (…) ser considerado pelo intérprete o pensamento
legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência
verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
Carlos Blanco de Morais refere, a respeito deste princípio, que “o
Tribunal Constitucional, sendo o supremo intérprete da Constituição,
não é, contudo, o máximo interprete do direito ordinário, pese o facto de

90
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 1227.
91
MORAIS, Carlos Blanco de, Justiça Constitucional Tomo II, p. 335.
92
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 1227.

60
não se encontrar dependente, na concepção e na motivação das decisões,
da interpretação realizada pela jurisdição comum”93.
Por seu turno, Jorge Miranda refere que não obstante a
interpretação conforme com a Constituição implicar uma “posição activa
e quase criadora do controlo constitucional e de relativa autonomia das
entidades que a promovem em face dos órgãos legislativos”, por razões de
razoabilidade, “implica o mínimo de base na letra da lei; e tem de se
deter aí onde o preceito legal, interpretado conforme com a Constituição,
fique privado de função útil ou onde, segundo o entendimento comum,
seja incontestável que o legislador ordinário acolheu critérios e soluções
opostos aos critérios e soluções do legislador constituinte”94.

3.3.4. Respeito mínimo pelo objectivo do legislador

Finalmente, a interpretação das leis conforme à Constituição


deverá ser preterida sempre que, em vez do resultado pretendido pelo
legislador, se alcança uma regulação ou regime totalmente novo e
distinto, em contradição com o objectivo claramente pretendido pelo
legislador através da norma95.
Não obstante a interpretação conforme à Constituição pressupor,
em termos práticos, uma certa conformação do conteúdo da norma
interpretada, tal exercício não deverá ser realizado de forma
excessivamente desfasada da vontade do legislador ordinário,
descurando, por completo, os fins pretendidos aquando da elaboração do
enunciado normativo96. Basicamente, pretende-se dizer que a vontade do
legislador plasmada na construção normativa terá que ser
necessariamente sacrificada, porém, o sacrifício será sempre em termos
parciais, nunca totais.

93
MORAIS, Carlos Blanco de, Justiça Constitucional Tomo II, p. 336.
94
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, ob. cit., pp. 313 - 314.
95
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 1227.
96
MORAIS, Carlos Blanco de, Justiça Constitucional Tomo II, p. 336.

61
3.3.5. Necessidade

Este critério pressupõe que, diante da existência de dúvidas acerca


da constitucionalidade em torno do conteúdo de determinada norma que
seja susceptível de uma pluralidade de significados, deva haver lugar a
uma interpretação conforme à Constituição, evitando-se o recurso à
retirada da norma do ordenamento jurídico através da decisão da sua
inconstitucionalidade, perspectivada como solução de último recurso97.

3.4. Diferença em relação a outros conceitos

3.4.1. Interpretação constitucional

Importa atender que não se deve confundir esta modalidade de


interpretação com a chamada “interpretação constitucional”, visto que,
segundo Jorge Miranda, esta ocorre em sede da própria Lei
Fundamental, com vista a alcançar a necessária visão unitária,
harmónica e coerente de ordenamento, com apelo ao elemento
sistemático, resolvendo eventuais contradições de princípios,
determinando e densificando os eventuais conceitos indeterminados e
efectuando uma realização das normas constitucionais através da
atribuição de um sentido que mais eficácia lhes dê98. Nas palavras de
Bacelar Gouveia, traduz-se na “busca de um sentido normativo que
esteja ínsito ou fique subjacente às fontes normativas por que tenha de
partir-se para o encontro de uma solução para um problema a ser
resolvido pelo Direito Constitucional”99.

97
Idem, p. 338.
98
MIRANDA, Jorge, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra,
2002, pp. 654 – 657.
99
GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional, Vol. I, 2.ª Edição Revista e
Actualizada, Almedina, Coimbra, 2007, p. 660.

62
Gomes Canotilho refere que “interpretar uma norma constitucional
consiste em atribuir um significado a um ou vários símbolos linguísticos
escritos na constituição com o fim de se obter uma decisão de problemas
práticos normativo-constitucionalmente fundada”100.
Esta modalidade de interpretação não, portanto, tem como objecto
a Constituição propriamente dita, mas antes uma fonte de natureza
infraconstitucional.
Encontramos em sede da activa actuação do Conselho
Constitucional, através da leitura dos acórdãos proferidos no período de
2003 a 2008, um recurso significativo à interpretação constitucional,
ajudando a compreender o significado e alcance de muitas das normas
constitucionais.

3.4.2. Interpretação integrativa da lei com a Constituição

A interpretação conforme a Constituição também não deve ser


confundida com a interpretação integrativa da lei com a Constituição,
segundo a qual se procura interpretar determinada lei que contenha
preceitos insuficientes, e, porventura, inconstitucionais, recorrendo à
respectiva integração com preceitos da Constituição que versem sobre o
mesmo objecto e que lhe sejam directamente aplicáveis, abrindo espaço
para as chamadas decisões aditivas dos tribunais constitucionais101.

3.5. Interpretação proposta da norma constante no n.º 2 do artigo


43 da Lei de Minas

Coloca-se a questão se saber qual então a interpretação mais


conforme a Constituição que deve ser efectuada em relação à norma
constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas.

100
CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 1200.
101 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, ob. cit., p. 313.

63
Em primeiro lugar, deverá tomar-se em consideração que esta
norma é anterior à vigência da Constituição de 2004, pelo que
poderíamos estar diante de um caso de inconstitucionalidade
superveniente, isto é, quando uma norma não era inconstitucional no
momento da sua formação, mas que, em virtude da mudança do
parâmetro constitucional, se torna inconstitucional102. Sem pretender
entrar na discussão da eventual inconstitucionalidade à luz da lei
Fundamental de 1990, porque exigiria uma análise de idêntica dimensão
para a qual não temos espaço e tempo, partiremos do pressuposto que a
norma constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas configura um
caso de inconstitucionalidade material superveniente.
Tendo identificado um “vício substancial de conteúdo”, reflectido
na inconstitucionalidade material decorrente da desconformidade da
referida norma em relação ao princípio fundamental do desenvolvimento
sustentável e com o regime jurídico-constitucional sobre a protecção do
ambiente, com especial destaque para o direito fundamental ao
ambiente.
Julgamos que o problema poderá ser resolvido em sede da
interpretação conforme à Constituição, dado ser possível encontrar um
sentido da norma ordinária, entre os vários possíveis, que permita a
prevalência da Lei Fundamental, sem necessidade de retirá-la do
ordenamento jurídico através da declaração de inconstitucionalidade no
contexto do acesso à justiça constitucional, permitindo-se a sua
manutenção.
Um dos possíveis sentidos ou significados decorre do próprio
elemento literal, no qual o intérprete conclui que o legislador ordinário
pretendeu estabelecer através da norma em causa uma autêntica
cláusula de prevalência do uso mineiro sobre os demais usos sempre que

102 CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, Coimbra


Editora, Coimbra, 1991, p. 268.

64
acarretar benefícios económicos e sociais superiores,
independentemente, portanto, de eventuais benefícios ambientais do uso
preterido. Este significado, conforme vimos, encontra-se em
desconformidade com o disposto na Constituição da República de 2004.
Um outro significado pode ser retirado da interpretação da norma
em causa e que se prende fundamentalmente com o conceito de Estado
Social, o qual inclui, na actual fase de evolução histórica do Estado, a
preocupação com as questões ambientais, nomeadamente com o
equilíbrio ecológico, com a protecção da biodiversidade e com o
saneamento do meio. Vigora o entendimento que a realização e o bem-
estar de cada indivíduo dependem, entre outros aspectos, da existência
de condições ambientais satisfatórias, sem as quais não existirá,
sublinhe-se, um “ambiente equilibrado”. Por essa razão, o legislador
constitucional inseriu o direito fundamental ao ambiente no Capítulo V
respeitante aos “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”, do
Título III (Direitos, deveres e liberdades fundamentais).
Nesse sentido, poderá entender-se que, durante a avaliação dos
benefícios sociais de determinado uso da terra, se considerem
necessariamente os benefícios ambientais. Este entendimento é, aliás,
reforçado quando se tem em consideração o processo de avaliação do
impacto ambiental (AIA), procedimento administrativo destinado a
averiguar os impactos ambientais e sociais, positivos e negativos, de
determinada actividade, cujo Regulamento foi aprovado pelo Decreto n.º
45/2004, de 29 de Setembro.
Sendo assim, diante de usos eventualmente conflituantes,
nomeadamente para operações mineiras e para fins de conservação, a
Administração deverá identificar, avaliar e ponderar os benefícios
económicos, sociais e ambientais de cada um dos mesmos, de modo a
proferir uma decisão conforme o princípio fundamental do
desenvolvimento sustentável constitucionalmente consagrado e, em
especial, o regime jurídico-constitucional de protecção do ambiente.

65
3.6. Interpretação conforme à Constituição em sede da fiscalização
da constitucionalidade das leis

3.6.1. A Justiça Constitucional

O Conselho Constitucional foi criado através da Constituição de


2004, cujo regime encontra-se consubstanciado no Título XII,
compreendendo os artigos 241 a 248. Segundo o legislador
constitucional, compete especialmente ao Conselho Constitucional
enquanto órgão de soberania103 administrar a justiça em matérias de
natureza jurídico-constitucional104.
Como órgão de soberania, o Conselho Constitucional assenta nos
princípios de separação e interdependência de poderes consagrados na
Constituição, devendo igualmente obediência à Lei Fundamental e
demais leis105.
Naquilo que releva para o tema, constitui competência do Conselho
Constitucional, entre outras igualmente relevantes, “apreciar e declarar a
inconstitucionalidade das leis e a ilegalidade dos actos normativos dos
órgãos do Estado”106.
Em 2006, foi aprovada uma nova Lei Orgânica do Conselho
Constitucional, a Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto, que revogou a Lei n.º
9/2003, de 22 de Outubro, aprovada à luz da Constituição de 1990,
dada a necessidade de tomar em consideração as alterações significativas
na concepção deste órgão, bem como nas suas competências,

103
Para além do Conselho Constitucional, constituem ainda órgãos de soberania, nos
termos do artigo 133, o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo
e os tribunais.
104
Cfr. Artigo 241/1 da Constituição e artigo 1 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto (lei
Orgânica do Conselho Constitucional).
105
Cfr. Artigo 134 da Constituição.
106 Cfr. Artigo 244/1 a) da Constituição e artigo 6/1 a) da Lei n.º 6/2006, de 2 de

Agosto (Lei Orgânica do Conselho Constitucional).

66
introduzidas pela Constituição de 2004107. Através da Lei n.º 5/2008, de
9 de Junho, foram introduzidas alterações pontuais aos artigos 35, 43,
48, 49, 51, 52, 57, 58, 61, 76, 89, 117 e 118 da Lei n.º 6/2006, de 2 de
Agosto.
Uma nota importante para o carácter de cumprimento obrigatório
dos acórdãos do Conselho Constitucional para todos os cidadãos,
instituições e demais pessoas jurídicas, para a insusceptibilidade de
recurso e para a prevalência sobre todas as demais decisões108.
O Conselho Constitucional tem vindo a exercer com notável zelo e
brio técnico-profissional uma actividade jurisprudencial desde o ano da
sua criação, tendo já contribuído consideravelmente para a divulgação e
consolidação do papel da justiça constitucional no ordenamento jurídico
moçambicano e para a afirmação do Estado Moçambicano como Estado
de Direito. Contudo, da leitura dos acórdãos proferidos pelo Conselho
Constitucional no período de 2003 a 2008, não encontrámos nenhuma
alusão à técnica da interpretação conforme à Constituição.
Urge referir que a justiça constitucional não constitui monopólio
exclusivo da actuação do Conselho Constitucional, dado que os tribunais
(todos e cada um dos tribunais) têm um papel determinante ao se
encontrarem vinculados à cláusula constitucional de proibição de
aplicação de eventuais leis ou princípios que atentam contra a
Constituição109. A diferença reside no facto de o Conselho Constitucional
possuir o exclusivo no que diz respeito à fiscalização preventiva e à
fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade, julgando ainda
os recursos das decisões dos tribunais; por seu turno, os tribunais
decidem sobre as questões de constitucionalidade que possam vir ao de

107 Cfr. Preâmbulo da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto.


108 Cfr. Artigo 248/1 da Constituição e artigo 4/1 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto.
109 Cfr. Artigo 214 da Constituição, segundo o qual “nos feitos submetidos a julgamento

os tribunais não podem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição”.

67
cima em casos concretos, das quais cabe remessa obrigatória em sede de
recurso para o Conselho Constitucional110.
O legislador moçambicano optou, assim, sob nítida influência do
Direito Português, por um modelo misto de fiscalização da
constitucionalidade, no qual a fiscalização da constitucionalidade foi
atribuída não só aos tribunais comuns enquanto instâncias
independentes de natureza judicial (sistema americano do “judicial
review”), mas também a um tribunal especializado, que, no nosso caso,
recebeu a designação de Conselho Constitucional (sistema austríaco)111.
Importa ter presente que, segundo Gomes Canotilho e Vital
Moreira, “a fiscalização da constitucionalidade traduz-se, assim, na
garantia do respeito pela hierarquia normativa. Todas as normas devem
respeitar as de hierarquia superior. Ora, a Constituição é a norma
suprema do país, logo, todas as demais normas devem respeitar”112.

3.6.2. Interpretação conforme à Constituição em sede da


fiscalização abstracta da constitucionalidade

Antes de abordar a interpretação conforme à Constituição em sede


da fiscalização abstracta e concentrada da constitucionalidade, importa
referir que esta última desdobra-se em dois tipos ou modalidades
distintos: a fiscalização preventiva e a fiscalização sucessiva. Ambos tipos
baseiam-se no chamado “poder funcional de iniciativa”, isto é, o poder de
requerer ao Conselho Constitucional a apreciação da constitucionalidade
de normas jurídicas113.

110
Veja-se CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, ob. cit.
pp. 239 – 240.
111 Idem, 243.
112 Ibidem, p. 237.

113 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI – Inconstitucionalidade e


garantia da Constituição, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 247.

68
3.6.2.1. Fiscalização preventiva da constitucionalidade

A fiscalização preventiva consiste num processo de controlo de


constitucionalidade, e subsidiariamente, da legalidade, que incide sobre
certas normas jurídicas antes de se encontrar concluída a sua formação,
podendo de um eventual juízo de inconstitucionalidade das mesmas (…)
resultar a preclusão da respectiva existência jurídica”114.
Desempenha duas funções importantes e distintas: em primeiro
lugar, visa obstar à entrada em vigor de normas eventualmente
inconstitucionais e, portanto, a produção dos respectivos efeitos; e, em
segundo lugar, pretende-se afastar ou reduzir as reservas de
inconstitucionalidade que sobre as mesmas normas possam ser
levantadas, enfraquecendo a sua legitimidade e eficácia115.
Nos termos do n.º 1 do artigo 246 da Constituição e do artigo 54
da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto, o Presidente da República tem
competência para requerer ao Conselho Constitucional a apreciação
preventiva da constitucionalidade de qualquer diploma que lhe tenha
sido enviado para promulgação.
No caso de o Conselho Constitucional se pronunciar no sentido da
inconstitucionalidade de determinado diploma, o Presidente da República
deve proceder ao respectivo veto116 e consequente devolução à
Assembleia da República117. Um dos efeitos da decisão declaratória da
inconstitucionalidade será, portanto, a não promulgação do diploma em
causa.

114
MORAIS, Carlos Blanco de, Justiça Constitucional, Tomo II – O Contencioso
Constitucional Português entre o Modelo Misto e a Tentação do Sistema de Reenvio,
Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 15.
115
CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, ob. cit. p. 241.
116
Veja-se o artigo 163 da Constituição, referente às competências do Presidente da
República no que diz respeito à promulgação e veto das leis.
117 Cfr. Artigo 246/1 da Constituição e artigo 54/1 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto.

69
3.6.2.2. Fiscalização sucessiva da constitucionalidade

O processo de processo de fiscalização sucessiva “consiste num


tipo de controlo abstracto de validade de normas exercido por via directa
ou principal e que tem por finalidade essencial, a eliminação do
ordenamento, quer de normas jurídicas já publicadas que sejam julgadas
inconstitucionais ou ilegais, quer de efeitos que as mesmas hajam
produzido no passado”118.
Bacelar Gouveia considera a fiscalização abstracta da
constitucionalidade como “o mais importante de todos os tipos de
fiscalização, dado ser esta a fiscalização que concita o maior número de
fontes aplicáveis, assim como absorve a primazia das mais sofisticadas
soluções doutrinais tidas por aplicáveis, o que bem se compreende pela
potência dos respectivos efeitos no quadro geral da ordem Jurídica”119.
Nos termos do n.º 1 do artigo 245 da Constituição, que versa sobre
a solicitação da apreciação da constitucionalidade, “o Conselho
Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a
inconstitucionalidade das leis e a ilegalidade dos demais actos
normativos dos órgãos do Estado, em qualquer momento da sua
vigência”.
À luz do n.º 2 do artigo citado, poderão solicitar ao Conselho
Constitucional a declaração de inconstitucionalidade das leis ou de
ilegalidade dos actos normativos dos órgãos do Estado:

i. O Presidente da República;
ii. O Presidente da Assembleia da República;
iii. Um terço, pelo menos, dos deputados da Assembleia da
República;

118MORAIS, Carlos Blanco de, Justiça Constitucional, Tomo II, ob. cit., p. 151.
119GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional, Volume 2, 2.ª Edição
Revista e Actualizada, Almedina, Coimbra, 2007, p. 1363.

70
iv. O Primeiro-Ministro;
v. O Procurador-Geral da República;
vi. O Provedor de Justiça;
vii. Dois mil cidadãos.

Uma notável singularidade do legislador constitucional


moçambicano reside na possibilidade que os particulares têm de aceder
directamente ao Conselho Constitucional, no âmbito da fiscalização
abstracta sucessiva, desde que, para o efeito, se reúnam duas mil
assinaturas, mediante observância do regime definido na Lei Orgânica do
Conselho Constitucional, com as alterações pontualmente introduzidas
pelas Lei n.º 5/2008, de 9 de Junho. Trata-se de uma espécie de recurso
do amparo, que em muito contribui para a construção de uma justiça
constitucional ao serviço de todos os cidadãos120.
Nos termos do n.º 2 do artigo 61 da Lei Orgânica do Conselho
Constitucional, com a redacção introduzida pela Lei n.º 5/2008, de 9 de
Junho, o pedido submetido por cidadãos deve ser instruído com os
seguintes elementos:

i. Requerimento subscrito por pelo menos dois mil cidadãos;


ii. Reconhecimento notarial de assinaturas dos recorrentes;
iii. Fotocópia autenticada de bilhete de identidade ou outro
documento que certifique a qualidade de cidadãos121;
iv. Designação de mandatário, com indicação de domicílio para
efeitos de notificação.

120 Este meio foi utilizado pelo menos uma vez, quando deu entrada no Conselho
Constitucional um pedido de declaração de inconstitucionalidade do Decreto n.º
9/2007, de 30 de Abril, que aprovou o Regulamento das Empresas Privadas de
Segurança, acompanhado de assinaturas de mais de 2000 cidadãos, tendo dado origem
ao Acórdão n.º 5/CC/2008, de 8 de Maio.
121
Este constitui um requisito que não constava na redacção original da Lei Orgânica do
Conselho Constitucional, tendo sido aditado pela Lei n.º 5/2008, de 9 de Junho, com o
claro intuito de controlar a seriedade do pedido e a adesão consciente dos cidadãos ao
mesmo.

71
No que diz respeito aos efeitos, a declaração de
inconstitucionalidade tem força obrigatória geral e produz efeitos desde a
entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, determinando a
repristinação das normas revogadas122. Contudo, tratando-se de
inconstitucionalidade superveniente, a declaração só produz efeitos
desde a entrada em vigor da norma posterior123. No entanto, importa ter
presente que, quando, por razões de segurança jurídica, equidade ou
interesse público de excepcional relevo124, devidamente fundamentadas,
o Conselho Constitucional poderá fixar os efeitos de
inconstitucionalidade com alcance mais restritivo em relação ao que se
disse anteriormente125.

3.6.2.3. Contornos da interpretação conforme à Constituição em


sede da fiscalização abstracta da constitucionalidade

A decisão do Conselho Constitucional que contenha a pronúncia


da inconstitucionalidade de uma norma possui eficácia jurídica
vinculativa (“força obrigatória geral”), nos termos do n.º 1 do artigo 245
da Constituição e do n.º 1 do artigo 60 da Lei Orgânica do Conselho
Constitucional. Porém, a decisão que consubstancie um juízo de não
inconstitucionalidade de uma norma jurídica, no decurso de uma
interpretação conforme à Constituição, não produz qualquer eficácia
jurídica vinculativa
Por conseguinte, para Jorge Miranda, no caso da legislação
portuguesa, que claramente inspirou o legislador constitucional
moçambicano, “se o Tribunal Constitucional não concluir pela existência
de inconstitucionalidade com base em certa interpretação conforme a
122 Cfr. Artigo 66/1, da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto
123
Cfr. Artigo 66/2, da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto
124
Sobre o alcance dos conceitos de segurança jurídica, equidade e interesse publico de
excepcional relevo, veja-se GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional,
Volume II, ob. cit., p. 1371.
125
Cfr. Artigo 66/3, da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto

72
Constituição, esta não obrigará nenhum tribunal ou nenhuma
autoridade e, assim, poderá uma interpretação não querida pelo Tribunal
vir a ser adoptada na prática. O Tribunal Constitucional não pode
decretar, com força obrigatória geral, que certa norma com certo alcance
é inconstitucional e, ao mesmo tempo, que com alcance diverso não o
é”126. Dai que este autor nos chame a atenção para o eventual uso em
termos perigosos e contraproducentes, devendo ser tomadas cautelares
adicionais no respectivo emprego127.
Gomes Canotilho e Vital Moreira não levantaram dificuldades no
que diz respeito à fiscalização abstracta (ao contrário dos reparos que
teceram em torno da fiscalização concreta), referindo que, nesta sede
quando é o próprio Tribunal Constitucional a proceder à tarefa de
confrontar duas normas, sem ter que atender à decisão anterior de um
tribunal a quo, não haverá quaisquer barreiras a que a norma só seja
declarada inconstitucional, no caso de nenhum dos significados possíveis
se encontrar conforme à Constituição128.
Carlos Blanco de Morais defende a este respeito três importantes
considerações: em primeiro lugar, a decisão proferida pelo Tribunal
Constitucional que interprete determinada norma conforme à
Constituição, não a declarando inconstitucional, não se encontra
investida de força obrigatória geral; em segundo lugar, o facto de não
possuírem força obrigatória geral não significa que a decisão judicial
interpretativa de rejeição seja indiferente para o ordenamento jurídico,
podendo actuar como uma espécie de “precedente argumentativo” ou
como “orientação jurisprudencial”; terceiro e último, tendo presente a
ausência de efeitos “ex tunc” na componente da decisão que diz respeito à
interpretação conforme à Constituição, deixa de fazer qualquer sentido a

126
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, ob. cit., p. 316.
127 Idem.
128
CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, ob. cit. p. 270.

73
objecção ao uso de tal juízo hermenêutico em sede da fiscalização
abstracta129.

3.6.3. Interpretação conforme à Constituição em sede da


fiscalização concreta da constitucionalidade

3.6.3.1. Conceito e regime da fiscalização concreta

A fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade de normas


e da legalidade de leis “consiste num instituto de controlo da validade de
actos normativos, susceptível de ser exercido por qualquer tribunal
sempre que os mesmos actos sejam aplicáveis a um caso singular que se
encontre por ele a ser julgado num processo jurisdicional comum”130.
Designa-se de fiscalização concreta “porque, incidindo sobre fontes
normativas já formadas, surge a propósito da sua aplicação a uma
situação da vida que o tribunal é chamado a resolver, estando impedido
de aplicar fontes consideradas inconstitucionais”131.
Este tipo de fiscalização assenta no dualismo da função
jurisdicional, isto é, quando, num primeiro momento, é realizada pelos
tribunais em geral, para, num segundo momento, ser exclusivamente
realizada pelo Conselho Constitucional132.
Em termos de regime jurídico, determina o artigo 214 da Lei
Fundamental que, “nos feitos submetidos a julgamento os tribunais não
podem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição”.
Por seu turno, segundo o n.º 1 do artigo 247 da Constituição,
conjugado com o n.º 1 do artigo 67 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto,

129
MORAIS, Carlos Blanco de, Justiça Constitucional, Tomo II, ob. cit., pp. 347 - 353.
130
MORAIS, Carlos Blanco de, Justiça Constitucional, Tomo II, ob. cit., p. 549.
131 GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional, Volume II, ob. cit., p.

1356. Remetemos para este autor a leitura das razões invocadas que fundamentam a
sua posição por razões de economia, cientes que, em futuros estudos, deverão ser
afloradas mais aprofundadamente.
132 Idem, p. 1357.

74
devem ser remetidos oficiosamente para o Conselho Constitucional, os
acórdãos e outras decisões com fundamento na inconstitucionalidade
quando se recuse a aplicação de qualquer norma com base na sua
inconstitucionalidade, com efeitos suspensivos. Esta obrigatoriedade
constitui uma originalidade do legislador constitucional moçambicano.
Os efeitos da decisão judicial decorrente da apreciação de recursos
dos tribunais, restrita à questão da inconstitucionalidade suscitada (o
objecto do recurso é sempre a constitucionalidade de uma norma e não a
constitucionalidade de uma decisão judicial, ou, conforme veremos, uma
determinada interpretação de uma norma considerada inconstitucional),
serão os seguintes133:
Em primeiro lugar, no caso de o Conselho Constitucional der
provimento ao recurso, mesmo que parcialmente, os autos baixam para o
tribunal a quo que deverá reformular a decisão em conformidade com a
decisão da instância jurisdicional de recurso no que diz respeito à
questão da inconstitucionalidade.
Em segundo lugar, se o tribunal a quo se tiver recusado a aplicar
uma norma com base em determinada interpretação, e o Conselho
Constitucional pronunciar-se, em juízo, sobre a constitucionalidade de
referida norma, deverá tal norma ser aplicada com a interpretação
realizada pelo órgão jurisdicional de recurso. O objecto do recurso acaba
sendo a interpretação realizada pelo tribunal a quo de uma norma
considerada inconstitucional134 Assim, o Conselho Constitucional não se
encontra vinculado à qualificação feita pelo tribunal a quo em relação à
aplicação ou não aplicação de determinada norma em razão da sua
constitucionalidade, pois tem uma faculdade de apreciação plena135.

133
Cfr. Artigos 72 e 73, da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto
134 GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional, Volume II, ob. cit., p.
1358.
135
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, ob. cit., p. 223.

75
Em terceiro e último lugar, a decisão do Conselho Constitucional
faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade
suscitada.
Concluímos sublinhando Bacelar Gouveia, segundo o qual “as
características processuais da fiscalização concreta da
constitucionalidade implicam que as respectivas decisões apenas possam
ser vistas nos estritos limites do caso sub iudice, sem qualquer
possibilidade de dele extravasarem, embora não seja de rejeitar a
importância das orientações da jurisprudência constante, em todo o caso
jamais em termos de se transformarem em decisões normativas
gerais”136.

2.5.2. Contornos da interpretação conforme a Constituição em sede


da fiscalização concreta da constitucionalidade

No caso da fiscalização concreta da constitucionalidade, a decisão


que venha a ser tomada pelo tribunal, ou objecto de recurso para o
Conselho Constitucional, só produz efeitos no caso concretamente levado
a juízo, e, por conseguinte, qualquer interpretação realizada conforme à
Constituição terá um alcance limitado ao caso137.
Gomes Canotilho e Vital Moreira levantam uma dificuldade sobre a
interpretação conforme à Constitucionalidade em sede da fiscalização
concreta, derivada do facto de este exercício poder ser realizado por
qualquer tribunal comum e tendo presente que o Tribunal Constitucional
não aprecia a questão da constitucionalidade em termos abstractos, mas
somente pela via de recurso, sempre no quadro da decisão recorrida,
cabendo o papel de a confirmar ou revogar no que diz respeito à solução
dada à questão da constitucionalidade. Estes autores equacionam: O
136
GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional, Volume II, ob. cit., p.
1362.
137
Nesse sentido, MIRANDA, Jorge, MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional,
Tomo II – Constituição, ob. cit., p. 315.

76
Tribunal Constitucional pode fazer uma interpretação conforme à
Constituição quando o tribunal a quo não o fez, revogando a decisão
recorrida que julgou determinada norma inconstitucional? Ou, em
termos inversos, pode o Tribunal Constitucional decidir pela
inconstitucionalidade de uma norma por considerar não ser possível
realizar a interpretação conforme à Constituição efectuada pelo tribunal
a quo?138.
Os mesmos autores respondem defendendo, com apoio e suporte
jurisprudencial, que “a resposta mais conforme com o sentido do recurso
constitucionalidade e com a autonomia dos tribunais comuns na
aplicação do direito ordinário é em princípio negativa, não devendo o
Tribunal Constitucional afastar-se, senão excepcionalmente, do
entendimento que o tribunal recorrido fez da norma fiscalizada”139.

138 CANOTILHO, Gomes/ MOREIRA, Vital, Fundamentos da Constituição, ob. cit. p. 271.
139 Idem, p. 271.

77
Conclusões

A actividade mineira tem vindo a constituir uma das actividades


mais activas e promissoras no desenvolvimento da economia
moçambicana, tendo crescido significativamente nos últimos anos, com a
entrada em cena de centenas de novos operadores, entre pequenos a
grandes, tendo, imediatamente, se despoletado o problema do acesso às
terras ricas em recursos minerais.
Ora, em uma parte significativa das terras ricas onde se localizam
os recursos minerais existem direitos de uso ou aproveitamento da terra
para os mais diversos fins: habitação, conservação, turismo, agro-
pecuária, pesca, serviços, entre outras. Coloca-se, assim, uma
importante questão: qual o valor e peso do direito e uso aproveitamento
mineiro sobre os demais usos e direitos tendencialmente concorrentes ou
conflituantes?
Para o efeito, o legislador ordinário, aquando da elaboração da
nova Lei de Minas (Lei n.º 14/2002, de 26 de Junho), tomou a decisão de
incluir neste instrumento uma norma jurídica que definisse a
prevalência do uso da terra para operações mineiras sobre todos os
demais usos da terra sempre que o benefício económico e social das
operações mineiras seja considerado superior. Esta norma traduz
notoriamente uma posição do legislador na perspectivação da actividade
mineira como actividade crucial para o desenvolvimento de Moçambique.
Esta opção legislativa gerou imediatamente controvérsias e acesos
debates em torno da eventual constitucionalidade e legalidade da referida
norma, tendo presente o retrocesso em relação aos avanços alcançados
em sede do regime jurídico de protecção do ambiente, permitindo-se, por
exemplo, que um projecto de natureza ambiental possa ser preterido sob
o argumento que acarreta benefícios económicos e sociais de menor valor
em relação a determinado projecto de mineração, mas também o

78
comprometimento de investimentos de largos anos em actividades não
mineiras.
Entretanto, foi aprovada, em 2004, uma nova Constituição, que
nada trouxe no que toca ao estabelecimento de uma cláusula de
prevalência dos usos mineiros sobre os demais usos, nem muito menos
uma hierarquização dos recursos naturais, no qual poderiam emergir os
recursos minerais, dissipando-se quaisquer dúvidas que possam surgir
na prática em caso de conflito de usos. Em contrapartida, o legislador
constitucional consagrou o princípio do desenvolvimento sustentável
como princípio fundamental da República de Moçambique, conforme se
depreende da leitura conjugada dos artigos 1, 11 e 117, para além de ter
reforçado significativamente o regime constitucional de protecção do
ambiente, atribuindo uma importância notória a tal bem jurídico, sob
um dupla dimensão: subjectiva, com a consolidação da posição jurídico-
subjectiva dos cidadãos no relacionamento com o ambiente (direito/dever
ao ambiente equilibrado); e objectiva, através do reconhecimento de um
papel determinante do Estado no protecção, conservação, salvaguarda e
valorização do ambiente.
Sendo assim, propusemo-nos a analisar a constitucionalidade da
norma constante no n.º 2 do artigo 43 da Lei de Minas, tendo concluído
que, por se tratar eventualmente de uma construção jurídico-normativa
anterior à Constituição de 2004, entra em colisão com o disposto na Lei
Fundamental, em dois prismas fundamentais:
Em primeiro lugar, a referida norma colide com o conteúdo e
significado do princípio fundamental do desenvolvimento sustentável, na
medida em que este postula a realização de três pilares nucleares: o
desenvolvimento económico, o desenvolvimento social e a protecção do
ambiente. A referida norma abre a possibilidade de, perante um caso
concreto de concorrência ou conflito de usos, a Administração Pública
decidir favoravelmente em prol do de natureza mineira sob pretexto de
acarretar benefícios económicos e sociais relativamente maiores.

79
Em segundo lugar, a aludida norma fere igualmente o quadro
jurídico-constitucional de protecção do ambiente, representado
fundamentalmente pelo binómio direito/dever fundamental a um
ambiente equilibrado e interesse público na protecção do ambiente. Na
realidade, permitindo à Administração Pública uma decisão que não
toma em consideração as mais-valias ambientais de cada uso em
eventual ou real conflito, relegando para segundo plano todas as
conquistas alcançadas em sede constitucional no capítulo da protecção
do ambiente. Em especial, destaca-se a violação do princípio da proibição
do retrocesso social.
Concluindo pela inconstitucionalidade da norma constante no n.º
2 do artigo 43 da Lei de Minas, propomos, como mecanismo de resolução
jurídica do problema, a sua interpretação conforme à Constituição, tendo
presente os princípios da prevalência da Constituição, da conservação
das normas e da proporcionalidade, e com respeito pelos critérios que
deverão nortear a actividade interpretativa, nomeadamente, a existência
de uma pluralidade de significados da norma infraconstitucional, a
rejeição de norma inconstitucional cujo sentido decorra de interpretação
conforme a Constituição, o respeito mínimo pelo texto da lei, o respeito
mínimo pelo objectivo do legislador e a necessidade. A interpretação
proposta traduz-se no entendimento de que, ao aludir aos benefícios
sociais, o legislador ordinário está necessariamente a tomar em
consideração também os benefícios ambientais, dado que estes são
pressupostos daqueles.
Para o efeito, torna-se necessário aceder à justiça constitucional
com o propósito de fixar, em sede de acórdão, a interpretação acima
defendida, e que seja a mais conforme com o disposto na Constituição, o
que poderá ser efectuado nas modalidades de fiscalização abstracta
(preventiva e sucessiva) e concreta da constitucionalidade.

80
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