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PROFETAS E SUA
IMPLICAÇÃO
PARA NOSSOS
DIAS
Um livro escrito pelo Pr. Isaltino
Gomes Coelho Filho
APRESENTAÇÃO
1
Também editado pela Exodus.
A preocupação das palestras foi mostrar como a ética pregada pelos
profetas tem validade para nossa sociedade, nossas igrejas e para os líderes de
nossas comunidades, muito mais os pastores (posto que as preleções foram
pronunciadas num Seminário). É uma ética atual, embora formulada em outra
época. Seus princípios são duradouros e ainda valem para nós.
A receptividade das preleções foi, sem ostentação, acima do que o preletor
pretendia. Não apenas os alunos do curso, mas seus professores e outros pastores,
alguns talvez até mesmo por bondade, mas outros apreciaram, estimularam-me a
colocar as palestras em registro, em forma de livro. Assim elas foram relidas,
tiveram acréscimos que não estavam nos originais, mas que foram desenvolvidos
em citações de momento e postas em forma mais redatorial e menos coloquial,
como sucede com palestras. Tomaram um corpo mais redatorial que de conversa.
Creio que uma das nossas maiores necessidades, presentemente, como
Igreja de Jesus Cristo, é a revalorização da ética. Houve tempo em que ser crente
era encarado pelo próprio mundo com respeito. Os crentes eram considerados
como pessoas austeras, sérias em sua vida, de integridade a toda prova. Uma igreja
evangélica estava acima de qualquer suspeita. Mas hoje, com tantos escândalos de
grupo alegados como evangélicos e de tantos pastores e missionários, a igreja
evangélica se tornou uma das instituições mais desacreditadas perante a sociedade.
E o pior é que, vivendo em um triunfalismo quantitativo, muitos de nós não nos
damos conta disso. A quantificação se tornou uma obsessão e, com isso, a
qualidade passou para um plano inferior. Nossa grandeza deixou de ser em
substância e passou a ser matemática. Ganhamos em número, o que é bom. Mas
perdemos o conteúdo, o que é lastimável.
Recordo-me que, quando seminarista, no Seminário onde estudei, um
missionário inglês pregou em um dos nossos cultos matutinos. Terminada sua fala,
cedeu espaço para eventuais perguntas. Sabendo-se que os batistas ingleses são
bem menos que os norte-americanos, um missionário norte-americano, em tom de
brincadeira, perguntou-lhe:
- Quantos batistas vocês são na Inglaterra?
Todos entenderam o que estava por trás da pergunta e por isso prestaram
atenção no inglês. Este, calmamente, olhando o interlocutor, declarou:
- Meu irmão, na Inglaterra nós não contamos os crentes. Nós os pesamos.
A capela explodiu em risos. Todos entenderam a resposta. Não sei se é
verdade que na Inglaterra há mais preocupação com a consistência do que com a
quantidade, mas a resposta deve nos servir. Precisamos mais pesar do que contar.
Precisamos prestar menos atenção nos números e mais no caráter. É tempo de
restaurar alguns valores que foram deixados para trás na pressa de crescer. Jesus
disse que a porta do céu é estreita e que seriam poucos os que entrariam por ela,
mas alguns estão alargando-a por conta própria. Arrependimento, abandono de
pecado, fé, santidade de vida, valores que sempre nos foram muito preciosos, estão
sendo deixados de lado.
Conta-se que quando Rafael pintava os afrescos do Vaticano, alguns
cardeais pararam por perto dele e reclamaram do seu trabalho:
- O rosto do apóstolo Paulo está vermelho demais - disse um deles.
A resposta de Rafael foi:
- Ele cora ao ver nas mãos de quem está a igreja. 2
Talvez se possa dizer, da mesma forma, que o Senhor Jesus esteja com o
rosto corado de ver escândalos em sua igreja. Vê ele cadeias de rádio e televisão
pretensamente a seu serviço, vê revistas bem apresentadas do ponto de vista
gráfico também pretensamente a seu serviço. Mas por trás de tudo vê competição,
promoção humana, o evangelho sendo vendido e apresentado como pretexto para
caravanas “à terra santa”, para sustento de ministérios pouco confiáveis do ponto
de vista administrativo, vê o mundanismo, a imoralidade, vê malversação
financeira e outras coisas mais, como vaidade, arrogância espiritual e pecados os
mais graves no meio do seu povo.
Há um clamor no mundo por ética. No Brasil, então, nem se fala. Estamos
cansados de políticos corruptos, de deputados que declaram candidamente (ou
cinicamente?) que se venderam, de gente que desvia dinheiro, da farra com
dinheiro público, de nepotismo e toda sorte de bandalheiras (termo forte,
deselegante, mas o único cabível aqui). Quando a Igreja de Jesus deveria se
levantar contra tudo isto, eis que ela é surpreendida com os mesmos erros em seu
meio. Os pecados do mundo também estão presentes na Igreja. Por isso,
precisamos levantar fortemente a nossa voz e clamar por ética no evangelho.
Necessitamos de igrejas transparentes, de pastores que não apareçam em páginas
policiais e de igrejas que não sejam conhecidas por atitudes condenáveis pelo
mundo. Necessitamos de santidade. Isto os profetas pregaram. E isto me proponho
a mostrar no presente livro.
Como dito, não produzi um tratado teológico exaustivo sobre o profetismo
nem sobre a ética dos profetas. Mas alguma coisa sobre a pregação profética e
como deve ser a nossa conduta à luz dessa pregação. Se isto alertar as pessoas para
uma vida mais séria e menos festiva, para uma religião de compromisso e não para
uma religião-show, sentir-me-ei realizado.
Com estas considerações, em suas mãos, A Ética dos Profetas e Sua
Implicação Para Nossos Dias. Faça bom proveito.
2
Wiersbe, p.29. Seu livro está alistado na bibliografia.
O PROFETISMO EM ISRAEL
3
Esta é, por exemplo a linha seguida por Hal Lindsey em A Agonia do Grande Planeta
Terra (veja bibliografia) num capítulo intitulado “Quando Um Profeta é Profeta?”.
de quem emite conceitos sobre a vida alheia com muita facilidade, não raro
descurando da sua.
O que, exatamente, é um profeta? O que é profecia? O que o Antigo
Testamento nos ensina sobre estes dois termos? No Novo Testamento, qual o
papel de um profeta? Os pastores evangélicos são, hoje, profetas? Que função tem
um profeta no corpo de Cristo?
EM BUSCA DE DEFINIÇÃO
A terminologia hebraica pode nos ajudar a responder algumas dessas
questões. Comecemos pelo primeiro homem chamado de “profeta”. E,
conseqüentemente, pelo primeiro termo hebraico, navi 4. É Abraão, em Gênesis
20.7, no testemunho que o próprio Deus dá a Abimeleque: “restitui a mulher a seu
marido, porque é profeta”. O primeiro homem visto como profeta nacional, navi
também, é Moisés. Ele se torna, inclusive, o padrão para os demais profetas. Em
Deuteronômio 18.15 se lê: “o Senhor teu Deus te suscitará um navi como eu, do
meio de ti, de teus irmãos. A ele ouvirás”. Esta palavra é digna de nota porque é a
única referência, na lei, à profecia como instituição. E no nosso caso, para
continuarmos as nossas observações, porque Moisés nos é mostrado como o
padrão profético.
O sentido do termo é grandemente disputado, mas parece vir do verbo
nivva, que teria vindo do acadiano navvu, que significa chamar, nomear. O verbo
nivva significaria, então, o ato de designar alguém como arauto. Neste sentido, o
primeiro significado bíblico para profeta, no Antigo Testamento, seria o de
proclamar, o de anunciar, fazendo assim o papel de um arauto. Seu uso acontece
um pouco mais que trezentas vezes, sendo que quase um terço das ocorrências está
em Jeremias.
Mas quando olhamos a vida de Abraão, não o vemos como um arauto. O
sentido de Gênesis 20.7 é muito mais o de um homem que tem uma relação
especial com Deus: “ele rogará por ti para que vivas”. E quando olhamos a vida de
4
As transliterações usadas nesta obra seguirão sempre a sugestão de Mitchel, cuja
obra está alistada na bibliografia.
Moisés vemos que a característica maior de sua vida não foi adivinhação. Ele, sim,
foi mais um arauto, embora faça alguns descortínios do futuro. Mas ainda não
temos, neste momento, no Antigo Testamento, a noção de profeta como um
descortinador do futuro, como veio a acontecer depois em Israel e como alguns
presumem, hoje, ser o sentido exclusivo da palavra. O primeiro navi tem uma
relação especial com Deus e é um peregrino. O segundo navi também tem uma
relação especial com Deus. É peregrino, também, mas já é arauto, o que o primeiro
não foi.
O segundo termo hebraico para “profeta” é ish Elohim, homem de Deus.
Não é um título auto-apregoado, que a pessoa aplicava a si mesma de forma
triunfal. Era um reconhecimento que os outros faziam do profeta. O termo aparece
76 vezes no Antigo Testamento e quase na metade das vezes é aplicado a Eliseu.
Não é que ele seja o padrão, mas parece ser o estilo do redator da história de Eliseu
o de apreciar o termo e empregá-lo com assiduidade. Parece mais questão de jeito
do autor bíblico se expressar. O ish Elohim é mostrado como uma pessoa de
confiança de Deus e as pessoas vêem isso na sua vida. Não é ele quem se proclama
assim. Na realidade, o profeta não alardeava sua condição de profeta. As pessoas
viam isso. O profeta, e valha-nos isso, tinha uma autoridade que o tornava alguém
credenciado. Ele não precisava de “carteirinha da Ordem dos Profetas”. A sua
apresentação devidamente credenciada era o seu caráter.
O terceiro termo, na realidade, é expresso por duas palavras hebraicas:
ro’eh e hozeh. Eles se intercambiam no uso e têm, ambos, o sentido de vidente.
Ro’eh, o termo mais comum, deriva do verbo “ver”. Algumas vezes seu uso é
depreciativo, como em Amós 7.12 onde Amazias chama a Amós de ro’eh, de
forma zombeteira: “Vai-te, ó vidente (ro’eh), foge para a terra de Judá, e ali come
o teu pão, e ali profetiza”. Mas nem sempre o termo está associado com vidência.
Algumas vezes é uma interpretação dos eventos ou a compreensão de algo mais
profundo numa visão banal. Jeremias vê um oleiro fazendo um vaso e
compreende a relação entre Iahweh e Israel (18.1-4). Vê uma vara de amendoeira
florescendo (1.11-12) e faz um trocadilho: ele vê uma “amendoeira” (shaqed) que
soa parecido com “vigilante” (shoqed). A amendoeira floresce quando capta o
aumento da umidade do ar. Está pronta para lançar as folhas, novamente. Ela
vigia, ela shoqed o ar. Assim Deus está shoqed com sua palavra. Ninguém veria
isso, mas o profeta vê. Ele vê uma panela fervendo, na parte norte (1.13-15).
Estava vazando. Ele vê a ira de Deus fervendo e pelo norte, de onde vem um
inimigo. Não tem sentido algum para o homem comum, mas tem para ele. O
profeta vê o que os outros não vêm. Chamaríamos isso, hoje, de discernimento. Lá
estão os homens a brincar com o pecado, a sociedade a relaxar seu padrão de
conduta, a moralidade baixar assustadoramente. Tudo normal. Pensa-se na união
conjugal de homossexuais, na descriminalização de drogas, na liberação total de
costumes, tudo isso mostrado como tolerância e progresso. O profeta vê as
conseqüências, vê o que os outros não conseguem ou não querem ver. Sabe que
isso trará a ruína da nação. O profeta é, quase sempre, uma voz contra a multidão,
um solitário, um rejeitado. O profeta é um crítico do seu tempo e muitas vezes é
rejeitado e incompreendido por causa disso. Jeremias é o modelo clássico do
profeta solitário. O capítulo 16 de seu livro, por exemplo, descreve-o como um
homem isolado, sem companhia humana calorosa, com quem repartir a vida: “não
tomarás mulher, não terás filhos nem filhas neste lugar” (v. 2). Era um símbolo da
solidão do povo, mas era sua vida pessoal que provava a solidão.
A LXX traduz os três termos, navi, ro’eh, hozeh por prophetês, vendo-os
numa direção, apenas. É o termo que o Novo Testamento utiliza quase cento e
cinqüenta vezes. O sentido é “falar por alguém”.
Também são usados, comumente, mas menos vezes mais três termos
hebraicos: sophi’im, significando atalaia (Jr 6.17; Ez 3.17; 33.2,6,7); shomer,
significando atalaia, sentinela, guarda (Is 21.11,12; 62.2) e raah, significando pastor
(Jr 23.4; Ez 34.2-10; Zc 11.5,16). Não têm, no entanto, a repetição e a singularidade
dos termos anteriores.
Já andamos um pouco em nossas considerações: o profeta é um homem de
Deus, por ele comissionado, é um homem que vê além dos demais, que tem
descortínio, que entende, que vem como arauto. É também um atalaia, uma
sentinela, um guarda de serviço e um pastor, que cuida do rebanho. Sabe como as
coisas devem ser e sabe das conseqüências de não serem como devem. Tem uma
relação de guarda com o povo de Deus, adverte e ensina. Nem sempre é benquisto,
mas mesmo assim segue com seu trabalho. Como Lutero, na sua famosa palavra
de ruptura com a Igreja de Roma, ao recusar retratar-se de seus escritos e
pregações, é cativo de sua consciência abalada pela palavra de Deus.
A FUNÇÃO DA PROFECIA
Devo este tópico a Archer 5, mas torna-se necessário fazer um reparo a seus
argumentos. Ele alista quatro funções básicas da profecia entre os hebreus. Elas
são válidas, apesar do reparo que pretendo fazer, e permanecem como balizadoras
da função profética em nosso tempo.
1ª) O profeta tinha a responsabilidade de encorajar o povo de Deus a
confiar exclusivamente na sua graça, no seu poder. Foi isso o que Moisés fez:
ensinou que a segurança de Israel estava no poder de Deus, não em Israel. Os
profetas das épocas de crise em Israel e Judá também: a nação deveria confiar em
Iahweh e não no Egito ou na Assíria. Veja-se, como exemplo, a insistência de
Oséias em afirmar que o Egito e a Assíria não salvariam Israel. Aliás, a Assíria
acabou destruindo Israel. O profeta é um encorajador do povo de Deus a confiar
nele, somente nele.
2ª) O profeta tinha a responsabilidade de avisar ao povo que sua
segurança dependia de fidelidade à aliança, ao berith. Moisés fez assim e os
grandes profetas também. Aliás, é bom afirmar que os profetas não pregaram uma
mensagem nova, mas reafirmaram os grandes conceitos da aliança. O profetismo
não trouxe uma mensagem inédita, mas apenas um chamado à fidelidade à aliança
firmada com Iahweh e que culminara na outorga da lei. Ele não criou conceitos,
mas revigorou os do passado. O profeta olhava para o passado, para a aliança. O
profeta contemporâneo também deve advertir a Igreja para que se mantenha fiel
ao novo berith, aquele que Jesus firmou com seu sangue (Mt 26.28).
3ª) O profeta devia encorajar Israel quanto às coisas futuras. Mesmo
anunciando o juízo, os profetas avisavam que haveria um remanescente, um grupo
que teria uma missão, a de trazer o messias ao mundo. O profeta era um criador de
esperanças, um anunciador de que o povo tinha um futuro, que devia se preparar
para ele. O profeta olhava para o futuro. Da mesma maneira, o profeta
contemporâneo deve avisar a Igreja sobre o seu futuro de glória, mesmo que no
momento presente seja ela enxovalhada pelo mau testemunho de alguns dos seus
membros e seja acuada pela pressão de um mundo ímpio.
4ª) A profecia se autenticava, em termos de previsão, quando se cumpria.
Archer mostra Deuteronômio 18.21-22: se o que o profeta falasse não se
cumprisse, a mensagem não era de Deus. Isto é óbvio, pois Deus não mente nem
se engana. Mas o simples cumprimento não basta para autenticar uma profecia.
Quem falou com Saul quando ele consultou a médium em En-Dor não foi,
obviamente, um profeta divino, mas o que a entidade consultada falou se cumpriu.
Deuteronômio 18.22 diz que quando o que for falado não se cumprir, isso não é de
Deus. Está certo. Mas o capítulo 13 mostra que se o profeta falar, o que ele falou
se cumprir e ele se aproveitar disso para desviar o povo da Palavra, ele deveria ser
morto. É o ensino presente em 13.6-9. O padrão para se avaliar a profecia e o
profeta não é o cumprimento do que foi falado, mas se aquilo que ele falou está em
conformidade com a Palavra de Deus. O padrão autenticador é a Palavra.
Isto nos põe diante de uma verdade que não se pode ignorar: o profeta deve
ser um escravo da Palavra. O profeta é o homem que se prende à Bíblia, fala o que
ela fala, não a diminui, não a ultrapassa. E deve encorajar o povo a permanecer fiel
no compromisso com Deus, a confiar nele e a se lembrar de sua missão neste
mundo.
No Novo Testamento encontramos profetas na Igreja e a profecia é
mostrada como sendo um dom. O contexto é diferente do encontrado no Antigo
Testamento e também diferente até mesmo do nosso tempo. Temos um profeta que
vaticina, mostrando o que aconteceria com Paulo (At 21.11-12) e vemo-lo
profetizando uma grave fome no Império Romano (At 11.27-30). mas o básico
está aqui: a Igreja está edificada sobre o fundamento dos “apóstolos e profetas” (Ef
2.20), como a comunidade do passado, Israel, estava edificada sobre “sacerdotes e
profetas”. O sacerdotalismo judaico, que é o levitismo do templo, cede lugar à
Palavra. Os profetas fazem o papel da Palavra ainda não concluída. Parece-me
que o papel do profeta hoje deve avançar além do esboçado nas páginas de Atos,
onde há uma igreja em formação. Não temos uma eclesiologia completa em Atos.
Aliás, não me parece nem mesmo que a tenhamos no Novo Testamento. Este se
encerra enquanto a Igreja ainda avançava, adaptando-se ao mundo, com novas
5
Veja sua obra alistada na bibliografia. Seu arrazoado está às página 334-337.
necessidades, diferentes das surgidas no livro de Atos. Parece-me que definir uma
eclesiologia em Atos seria fazê-lo com bases precárias. Mas voltando aos profetas
neotestamentários, eles eram a voz de Deus naquele momento. Temos a Bíblia
como voz de Deus hoje. O profeta deve saber interpretá-la e deve saber comunicá-
la. Nunca deve ultrapassá-la ou complementá-la. A menos que pense que ela está
incompleta ou que ele, o profeta, tenha revelações que se igualam aos ensinos dela.
Na realidade, o papel do profeta de hoje, creio que deve ser buscado mais no
Antigo Testamento, onde está mais sistematizado e cristalizado. E, mutatis
mutandis, buscar- a partir do encontrado no Antigo Testamento - e projetar para
como deve ser hoje. Muito do estilo de culto da igreja cristã foi calcado na
sinagoga surgida no período exílico. Muitas de nossas raízes devem ser buscadas
no Antigo Testamento e esclarecidas e ampliadas pelo Novo. Parece-me ser
também assim com o profetismo.
Embora nas listas de dons de 1Coríntios 12 e Efésios 4 se encontrem
referências aos profetas, deve-se notar que em lugar algum do Novo Testamento
alguém é estabelecido como profeta ou ungido ou separado como tal. Parece que o
ofício profético está mais ligado a uma comunidade local, a uma igreja local,
como edificador, em diferença do profeta do Antigo Testamento, que é um
andarilho, com visão e ministério além de sua “paróquia”. Pode-se aplicar
1Coríntios 14.4b aqui: “aquele que profetiza edifica a igreja”. Devemos ter em
conta que a palavra “igreja”, no Novo Testamento, nunca alude a uma instituição,
mas a uma comunidade local de cristãos. Este é o sentido prevalecente do grego
eklesia. O profeta era mais um edificador da igreja local do que um descobridor de
futuro. O Didaquê, uma obra da igreja primitiva que pode ser dada como de
produção ao redor do ano 90 de nossa era (parece anteceder, inclusive, ao
evangelho de João), e que é considerado como um manual de doutrina da igreja
primitiva, diz o seguinte, sobre o trabalho de mestres itinerantes na vida das
comunidades cristãs da época: “Todo apóstolo que venha vós seja recebido como
o Senhor, porém não permanecerá mais que um dia, e se houver necessidade, ainda
o outro dia; mas se permanecer três dias, é um falso profeta. E tendo saído o
apóstolo nada tomara para si, a não ser pão, até o próximo alojamento. Mas se
pede dinheiro é um falso profeta” (11.4-7). É evidente que não estou declarando o
Didaquê como inspirado, em pé de igualdade com os escritos do Novo
Testamento, mas reconhecendo-o como um documento histórico e como manual
de doutrina da igreja. A conexão que ele faz entre apóstolo, profeta e pregador
itinerante é interessante, bem como o método para descobrir se é falso o apóstolo
ou profeta ou pregador itinerante (sinônimos?) : se busca levar vantagem no
exercício de sua função.
TIPOS DE PROFETAS
Sem nos determos muito neste tópico, mas apenas para completarmos o
quadro, alisto aqui alguns tipos de profetas mostrados no Antigo Testamento:
1º) O vidente, aquele que vê coisas escondidas, como Samuel, por
exemplo. Ele sabia onde estava a jumenta extraviada de Saul (1Sm 9).
2º) O profeta individual, clássico, que mesmo não sendo convidado pelo
povo, adverte-o sobre seus pecados. Geralmente é o tipo que mais rapidamente
vem à nossa mente.
3º) Os profetas de corporações, produto das chamadas escolas de profetas.
Geralmente tinham um chefe ao redor do qual se agrupavam. Como foi com Elias,
chefe de uma escola (2Rs 2.3), e com Eliseu, que tinha também discípulos, como
Geazi, e uma escola (2Rs4.1). Há, neste aspecto, o caso de Saul, encontrado “no
meio dos profetas” (1Sm 19.18-24). Este episódio merece uma observação: o
Espírito de Deus veio sobre Saul, que despindo sua túnica, profetizou diante de
Samuel, e permaneceu deitado, sem ela, um dia e uma noite, diante de Samuel.
Mas a rigor, dizer que Saul profetizou, como um profeta bíblico, é algo
questionável. Valham-nos aqui as palavras de Hoof: “Não há nada que indique que
ele tenha profetizado como um profeta de Deus. A melhor alternativa é traduzir o
termo ‘profetizar’ nesta ocasião como ‘ficou em transe profético’” 6.
Havia grupos de profetas como este, cheios de zelo, “profetizando” ao som
de música e em dança(1Sm 10.5-13 e aqui, neste texto). No dizer de Bright, “eles
representavam um fenômeno muito comum no mundo antigo, com paralelos entre
os cananitas e até mesmo na Anatólia e na Mesopotâmia” 7. Tais grupos eram
autênticas ordens proféticas, com profundo senso político, vivendo em
comunidades (2Rs 2.3-5 e 4.38-44), sustentados por ofertas (2Rs 4.42),
comandados por um líder (2Rs 6.1-7), vestidos de pêlos (2Rs 1.8), que se tornaram
seu “traje oficial” e , possivelmente, identificados por uma marca na testa (1Rs
20.41). Enlevados pela música e pela dança, entravam em êxtases. Parece que o
clima altamente emotivo do grupo envolveu a Saul, cujo estado emocional já não
era dos mais seguros, mostrando o texto bíblico seu profundo desequilíbrio no
momento. Evidentemente que tal prática não pode ser tida como a modelar para os
profetas. Tais eventos representam um momento em que a Palavra do Senhor era
escassa. É o que se lê em 1Samuel 3.1. Deve-se lembrar que eruditos como o
citado Bright dão Samuel como fundador de tais ordens, surgidas exatamente pela
ausência de revelação.
No entanto, hoje em dia, os estudiosos têm questionado muito este
conceito de “uma escola de profetas”. Veja-se esta citação de MacRae:
“Não há evidências bíblicas da existência de
grupos de homens treinados para serem profetas.
Deus chamava os profetas como indivíduos. Isto
foi verdade com Moisés, Samuel, Isaías, Jeremias,
e em muitos outros casos onde há registro de
chamada. A obra profética era um atividade
individual, em que cada homem recebia uma
mensagem vinda de Deus e a transmitia ao povo
de Deus. Somente num sentido mais amplo é que o
termo ‘profeta’ se aplicava a grupos de pessoas” 8.
6
Hoof, p. 127
7
Bright, p. 241
8
Veja-se seu tópico “Prophets and Prophecy”, na obra de Tenney (ed.) alistada na
bibliografia.
fenômeno mais comum em Israel que em Judá. Eram muito mais agrupamentos
de pessoas ouvindo os ensinos dos profetas, e não, necessariamente, escolas no
sentido que o termo tem. No entanto, parece que nem sempre eram bem vistas,
posto que Amós fez questão de dizer que não era “filho de profeta” (Am 7.14-15).
Ele rejeitou a identificação com qualquer grupo, não vendo isso como mérito ou
credencial. Assim, me parece que aplicar o termo aos nossos seminários
teológicos não é um uso muito correto nem mesmo lisonjeiro. Não havia um
“seminário de profetas”, ensinando disciplinas curriculares. O ser profeta não
dependia de um curso, mas de uma chamada de Deus.
Havia, neste caso de profetas de corporações, os profetas da côrte, os
conselheiros do rei, que deveriam orientá-lo, mas que muitas vezes diziam o que o
rei queria ouvir. Veja-se a polêmica entre Amazias e Amós, como exemplo (Am
7). Amazias era um profeta da côrte.
4º) Os profetas do culto, parte do pessoal do templo. Alguns dos salmos de
louvor e de proclamação devem ter sido compostos por eles, como o 85, por
exemplo, onde se lê “salmo dos filhos de Corá”.
5º) O profetismo messiânico-escatológico, que não aparece muito no
Antigo Testamento, a não ser em Ageu e Zacarias (um pouco menos em
Malaquias), mas que originou os pseudepígrafos e que se revela de forma mais
ampla nos escritos de Qumran, com o chamado Mestre de Justiça.
9
Exemplos desta atitude podem ser vistos em duas obras populares, como O
Alinhamento dos Planetas, de Lawrence Olson (ver bibliografia), em que o satélite
artificial norte-americano, Skylab, chegou a ser mostrado como um sinal eminente da
volta de Cristo, e na obra já citada de Lindsey (Mundo Cristão), em que a falecida
União Soviética e a possível Comunidade Européia de dez nações (já são dezesseis)
são mostrados como sinais da volta de Cristo.
homem que vê para onde a história vai. Para nós, hoje, isto significa a necessidade
de formar uma cosmovisão bíblica, de entender a história pela Bíblia, de pesquisar,
ler, refletir. Já se disse que o verdadeiro teólogo tem a Bíblia em uma das mãos e o
jornal diário em outra. Isto não é para fazer previsões atabalhoadas, mas sim para
buscar entender o mundo pela Bíblia. O profeta é uma sentinela da história,
conhece a outra face dos acontecimentos humanos e sabe da transcendência do
acontecer e do fazer humano. Consegue ter uma visão global da história e dos
eventos, não os vendo de forma atomizada e descontínua.
3º) O profeta denuncia, acusa e condena. Ele se enche de indignação contra
os erros do mundo. Infelizmente, as denominações com mais capacidade de eleger
crentes para postos políticos são as neopentecostais ou baixo-pentecostais, quer
pela sua quantidade de membros quer pelo voto de cabresto ou, para não magoá-
los, o voto de “profunda solidariedade”. Mas a política é vista por eles como troca
de favores, como um ato de eleger despachantes eclesiásticos para beneficiar as
igrejas. Deveria ser vista como eleger pessoas que se aferrassem aos padrões
evangélicos, que os vivessem e que os proclamassem. Em Manaus, por exemplo, o
estádio de futebol tem alguns dos ingredientes mais modernos, como um placar
eletrônico importado da Europa. Mas não há futebol no estado. Ninguém torce
pelos clubes locais, salvo alguns poucos. Já houve jogo do campeonato sem
torcida pagante. O estádio serve para eventuais jogos da Seleção Brasileira e times
do eixo Rio e S. Paulo, com verbas altíssimas, vindas do poder público (assim
declaram os críticos), ou de empresários, alega-se. Mas nossos hospitais
apresentam deficiências e necessidades clamorosas. Esta postura deveria suscitar
sérias reflexões da classe política, principalmente por parte dos políticos
evangélicos. Mas a impressão que se passa é que todos foram cooptados pelo
sistema e absorveram algumas práticas, que precisariam ser analisadas
criticamente, com muita facilidade. Sem uma crítica a A ou B, qualquer leitor
assíduo dos grandes jornais brasileiros não subvencionados sabe que os políticos
da região só têm dimensão nacional quando citados em algum escândalo. A
explicação local, ao surgirem os ditos escândalos, é que os paulistas querem
destruir a Zona Franca. Por isso, a denúncia... Aí está a explicação dos órgãos de
imprensa da cidade. Quem se satisfizer com a explicação, aceite-a. A mim, parece
muito pequena. Mas o profeta tem visão social, tem consciência sensível aos
desmandos do poder, não se compra nem se vende, nem se aluga. Não se filia a
grupos ou partidos, mas tem consciência crítica. Por isso não deixa de sentir
indignação diante de acontecimentos políticos que vê não estarem corretos.
4º) O profeta é um consolador. Ao mesmo tempo em que anuncia o juízo e
chama ao arrependimento, ele traz a mensagem de Isaías 40.1: “Consolai, consolai
o meu povo”. Ele mostra as promessas de Deus, o que ele pode fazer para restaurar
os que sofrem. O profeta não é apenas anunciador de catástrofes, como alguns
presumem, mas é o arauto de um novo tempo, é pregoeiro do amor e da
misericórdia de Deus, mostra o que ele pode fazer na vida das pessoas. Tem uma
palavra de estímulo, também. E isto, em nosso contexto contemporâneo, é muito
necessário de praticar. O mundo sofre e necessita de esperança e de conforto.
O profeta tem, portanto, uma personalidade multifacetada, exibindo vários
ângulos. Sabe discordar, sabe denunciar, sabe condenar, sabe confortar, sabe
ensinar, sabe interpretar, sabe estimular. Não é um fanático ignorante deblaterando
coisas inúteis, mas um homem que entende o mundo e sabe como analisá-lo. E,
tendo convicção de que é assim que Deus deseja as coisas, prende-se a isto.
CONCLUSÃO
E nós, como ficamos?
Primeiro, se almejamos ser profetas, temos que compreender bem o que é
um profeta. Não é um megalomaníaco, exaltando suas virtudes ou criando um fã-
clube que o aplaude. Aliás, muitos dos “profetas” e “profetisas” contemporâneos
não têm rebanho, mas fã-clube. É chocante e deprimente o culto à personalidade
no cenário evangélico contemporâneo. Sou obrigado a concordar, in totum, com as
palavras de Wiersbe:
“O evangelho tornou-se um alto negócio, e toda a
sorte de estranhos pássaros estão empoleirados nos
seus ramos. O culto da personalidade tornou-se um
círculo vicioso, e estamos agora promovendo
ministérios e mercadorias do mesmo que o mundo
promove pasta de dentes e carros usados”. 10
O profeta não monta uma máquina publicitária para catapultar seu nome.
Não trabalha com seu nome em gás néon. É um homem de Deus, a serviço de
Deus, não a serviço de suas próprias idéias e sentimentos. Jeremias chorou a
mensagem que pregou. Como Jesus, que chorou por Jerusalém. O profeta é
escravo da Palavra e da mensagem. Subordina-se a elas. Ela o invade e domina.
Segundo, precisamos de integridade pessoal. Ser voz discordante, não ser
cooptado pelo sistema, ser uma voz denunciadora, tudo isso exige um caráter
sério. Não encontramos os profetas vivendo de maneira leviana. Nem buscando
vantagens ou riquezas pessoais. É oportuno retornamos ao Didaquê, agora no
capítulo 11, versículo 10: “ Todo profeta que ensina a verdade, se não pratica o
que ensina, é falso profeta”. Profetas autênticos são homens sérios, íntegros,
possuídos por convicções divinas, e de vida limpa. Não têm, como se diz
popularmente, “rabo preso” com ninguém. Não são cooptados pelo sistema nem se
subordinaram ao poder público.
Terceiro, precisamos entender o nosso tempo. Não se confunda profetismo
com possessão espírita. O profeta é um homem em posse de sua faculdades
intelectivas, consciente de si. Não é alguém possuído por uma entidade que o
deixa fora de si, como se fosse um médium espírita. Ser tomado pelo Espírito de
Deus não invalida a pessoalidade. “Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos
profetas” (1Co 14.32). Ser profeta não invalida estudar, refletir, amadurecer,
crescer espiritual e teologicamente. O profeta mantém-se como pessoa e deve se
esmerar para desenvolver-se como pessoa. Alguns profetas contemporâneos
deixaram de ser gente. Como criaturas humanas, são horrorosas.
Outra tragédia em nosso cenário, além do culto à personalidade, é o
narcisismo, com uma incrível exibição de arrogância espiritual. O que há de “santo
homem de Deus”, “canal especial de Deus”, “homem de palavra poderosa”
trombeteado em programas evangélicos de rádio e televisão e revistas evangélicas
é constrangedor e vergonhoso. Isto encobre as deficiências de “profetas” que mal
10
Wiersbe, página 33.
conseguem articular uma sentença gramatical correta, que emitem conceitos
desconexos, mas que se colocam acima do bem e do mal, imunes às críticas.
Afinal, têm “linha vermelha” com Deus e não precisam de mais nada. Como
gritam bem, providos que são de voz forte, diz-se deles que têm “poder espiritual”,
que os demais, “carnais”, não possuem. Além de tudo, dispõem de uma máquina
de comunicação, logo seu ponto de vista pessoal é o que prevalece.
Quarto, precisamos ser apaixonados pelo nosso ofício. Ser profeta é uma
atividade que só pode ser desempenhada de forma passional, feita com paixão,
com fogo interno. O “entranhas minhas, entranhas minhas” de Jeremias 4.19 nos
mostra um homem angustiado com o que tem que pregar, mas que prega, assim
mesmo. É sua paixão. O “ai de mim, se não pregar o evangelho” de Paulo (1Co
9.16) deve ser também o clamor de cada um de nós, que almejamos ser profetas.
Acima dos amores humanos, deve permanecer a lealdade para com a Palavra que
nos vem da parte de Deus.
Acima de tudo, o profeta que queira ser autenticamente bíblico, deve
compreender que sua vida é para glória de Deus e não para sua glória pessoal. Se
quisermos ser profetas, nossa vida deve ser vivida assim: para a glória de Deus.
11
Um exemplo desta dificuldade se vê numa nota de rodapé da Bíblia Vida Nova, logo
na introdução de Eclesiastes: “Opinam alguns que Salomão teria escrito o livro de
Eclesiastes, a fim de nos dizer o que devemos deixar de fazer....”. Seria, sem dúvida,
um estranho critério hermenêutico. Mas a observação mostra a dificuldade cristã em
lidar com um livro que trata de reflexão sobre a vida como ela é.
Assim sendo, os profetas refletiram sobre as injustiças e a imoralidade
social e não somente sobre os desvios do culto. No entanto, não escatologizaram
essas injustiças e imoralidades, mas viram-nas dentro de seu contexto e as
condenaram. A atitude de Jezabel em tomar a vinha de Nabote para alegrar seu
marido provocou indignação de Deus e fez Elias se dirigir a Acabe com veemência
inusitada, dizendo que os cães comeriam as carnes de Jezabel (1Rs 21). Em
contrapartida, a mensagem evangélica de hoje é completamente descarnada da
vida real das pessoas. Um triste exemplo: na sua edição 1.472, de 27.11.96, a
revista Veja trouxe um artigo intitulado “Tiro ao Pobre”. Nele aparece uma
coluna sob título “Matando em dúzias” que mostra o descaso pela saúde pública,
no Brasil: em março, 60 mortos no Instituto de Doenças Renais, em Caruaru,
Pernambuco. Em maio, 99 idosos mortos na Clínica Santa Genoveva, no Rio de
Janeiro. Em julho, 30 bebês mortos no hospital universitário Materno-Infantil, em
S. Luís, Maranhão. Em outubro, 11 bebês mortos no hospital universitário Antonio
Pedro, em Niterói, Rio de Janeiro. Em outubro, 36 bebês mortos no Hospital
Nossa Senhora do Nazaré, em Boa Vista, Roraima. E 51 mortos, até o dia
21.11.96, numa maternidade tida como modelo, em Fortaleza, Ceará. No dia 27 de
novembro, o jornal O Globo informava que já eram 60 os bebês mortos em
Fortaleza. Um quadro trágico. Nenhuma voz de qualquer organismo evangélico se
levantou contra o morticínio causado pelo caos da saúde pública. Os evangélicos
continuam expulsando demônios pelo rádio e televisão, de forma grotesca e
alienante. Crianças e velhos continuam morrendo pela incúria administrativa, os
hospitais que atendem a população carente são uma vergonha, mas isto nos é
secundário. A falta de visão social dos evangélicos brasileiros é algo chocante.
Meu amigo Rubem Amorese, cuja amizade me honra, contou o episódio de um
candidato evangélico a um posto eletivo, que indagado por um repórter sobre quais
os seus planos para eliminar o déficit habitacional, tendo que responder na hora,
pois o microfone estava em sua boca, fez uma citação bíblica: “na casa de meu
Pai há muitas moradas”. Uma deprimente falta de conteúdo! Isso deveria nos
envergonhar, pois mostra uma comunidade profundamente alienada da vida real
das pessoas. Mas, segundo Rubem, houve quem gostasse porque “a Palavra foi
proclamada e Palavra não volta vazia”. A mediocridade foi vista como
testemunho.
No passado, quem se preocupou em nutrir visão social ganhou o epíteto,
pouco imaginativo, de comunista. Hoje, recebe o de incrédulo. Ou de herege ou
liberal. Na melhor das hipóteses, de petista, o que não sou. Não sou, na realidade,
não sou de partido nenhum. Sou um cristão convicto de que o evangelho é “Jesus
salva” mas é muito mais, ainda, o que é suficiente para nos dar programa de
atividades bem cheio.
Os profetas do Antigo Testamento reagiriam com dureza a uma situação
dessas, de desprezo à vida de crianças e pessoas idosas. Quem leia Amós verá sua
pregação bem dura contra a exploração econômica por parte de uma elite
insensível aos sofrimentos do povo, e contra a corrupção e os desmandos sociais
dessa mesma elite.
Há uma profunda ênfase, na pregação dos profetas, na moralidade social.
Um exemplo: a função do rei não era a de locupletar-se, nem a de enriquecer seus
apaniguados, mas sim a de promover a justiça. Deuteronômio 17.14-20 é o único
texto da lei que trata da monarquia como instituição. Para aclarar nossa
compreensão, vejamos o texto a partir do versículo 16, que trata dos deveres do
rei: “Porém este não multiplicará para si cavalos, nem fará voltar ao Egito, para
multiplicar cavalos; pois o SENHOR vos disse: Nunca mais voltareis por este
caminho. Tampouco multiplicará para si mulheres, para que o seu coração se não
desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro. Também, quando se assentar
no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que
está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua
vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as
palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. Isto fará que o seu coração não
se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita
nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos
no meio de Israel”.
Fica bem claro, no texto, que o rei não deveria multiplicar para si riquezas
nem mulheres (exatamente o que Salomão fez, transgredindo assim a lei), deveria
obedecer à lei e não deveria se manter distante do povo. O ensino bíblico é bem
claro: o poder público não é para satisfação pessoal. É para serviço ao povo. A
função primordial do líder político é o bem-estar de seus liderados. Ele deveria
continuar no nível do seu povo. Isto a Bíblia ensina e precisamos recuperar como
conceito válido e proclamar aos homens. Vemos hoje uma classe política que
enriquece e que se mantém distante do povo, de quem se lembra apenas em época
de eleição. Não deve ser assim.
12
Para uma discussão mais ampla destes eventos como norteadores da moralidade
social em Israel, leia-se o livro de Trocmé, alistado na bibliografia.
O fundamento da moralidade social pode ser posto em poucas palavras.
Tudo é de Deus. A terra é dele, os homens são dele, a vida vem dele. Os homens
deveriam administrar com a consciência de que tudo era propriedade dele. A
chamada propriedade privada era subordinada ao conceito de propriedade divina.
Sobre todos os homens, sobre todas as classes sociais, pairava Deus.
OS DEVERES DO REI
Entre os muitos deveres do rei, um bem notado é o de promover a justiça.
Textos como Isaías 11.1-4 e Jeremias 33.15 mostram que o rei deveria aplicá-la,
agindo como juiz (1Rs 3.28) e preservá-la e proclamá-la (2Rs 23.2, 2Cr 17.6 e Jz
17.6).
O messias de Isaías 11 é o modelo do juiz que os reis deveriam ser. Diz o
v. 4: 1 “julgará com justiça os pobres e decidirá com eqüidade a favor dos mansos
da terra”. Ele deveria se vestir de justiça e de fidelidade (Is 11.5). Na mesma linha
de Isaías, o messias anunciado nos escritos de Jeremias fará aquilo que os reis
deveriam ter feito e não fizeram: executar juízo e justiça na terra (Jr 33.15). Na
realidade, a esperança messiânica mostrada por estes dois profetas acabou sendo o
produto de frustração com o desempenho de reis iníquos. Mas estes reis foram
duramente combatidos pelos profetas.
Amós denunciou com veemência as injustiças de seu tempo. Embora a
maior parte de seu discurso seja dirigido contra os empresários da sua época e
contra a religião vendida, voltada para o dinheiro, ele não poupou o rei Jeroboão:
“levantar-me-ei com a espada contra a casa de Jeroboão” (Am 7.9) é o recado que
Deus envia por meio dele. Amós não poupou a religião comercializada, bem
representada por Amazias. E, ameaçado por este, reagiu anunciando que a mulher
de Amazias se prostituiria e seus filhos seriam mortos (Am 7.17). O momento de
choque entre Amós e Amazias deve ser uma advertência para nós. Com muita
facilidade a instituição se apossa da idéia e a deforma. A instituição é criada para
viabilizar uma idéia, mas acaba tornando-se independente da idéia e um fim em si
mesma. Seus maiores esforços acabam sendo para sua auto-perpetuação. A
religião institucionalizada pode ser uma das coisas mais pervertidas do mundo e a
maior opositora da verdade religiosa. Jeremias enfrentou falsos profetas. Amós
também. Jesus teve choques com escribas e fariseus. Esta advertência se torna
mais necessária porque nós, evangélicos, somos grandemente influenciados pela
institucionalização e temos um apego enorme a nossas instituições. Mas elas são
estruturas humanas, facilmente contaminadas pelo pecado. E quando isto acontece,
as denúncias contra elas nunca são bem-vindas. O pastor que seja profeta como
Amós, denunciando a instituição, descobrirá que profetas assim não são bem
vistos. Perdem indicações para grandes igrejas e se tornam merecedores do epíteto
de “desintegrados”. Críticos do sistema religioso-denominacional são como
operários grevistas: perdem o emprego e têm dificuldade em conseguir outro novo.
Quando muito, destinam-lhes igrejas pequenas, de periferia, onde devem sumir da
área de influência. As estruturas religiosas, e as nossas, evangélicas, não são
exceção, desejam aplauso, adesão e conformação a elas. No entanto, a injustiça
muitas vezes, está dentro da própria instituição religiosa. Mas o profeta deve ser
profeta em casa, também. Corrupção e desonestidade, tráfico de influência e falta
de probidade administrativa devem ser denunciados, mesmo que achados na
instituição à qual ele está ligado.
Feita esta digressão, voltemos à linha de pensamento seguida. Miquéias
também teve choques violentos com a estrutura injusta e pervertida de sua época.
Logo no capítulo 2 ele está voltado contra os opressores dos pobres. Gente que
tomava suas casas e campos e que tinha o poder em suas mãos (vv. 2 e 1). Esta
corrupção era incentivada e não apenas tinha a conivência, mas tinha o apoio
mesmo, da classe profética e religiosa. Os capítulos 2 e 3 são chocantes ao
mostrarem como a religião pode se vender facilmente ao poder econômico
constituído. Isto sucede quando as igrejas evangélicas começam a enxergar
prefeitos, deputados, governadores e demais políticos como canais para
conseguirem verbas e favores. A política, em vez de ser bafejada pelo bom hálito
evangélico, vê este hálito se tornar mau hálito e é corrompida por ele. Com
Miquéias, a situação chegara a um ponto que até os juízes estavam corrompidos
(3.9). O castigo estava às portas, como ele mostra em 6.9 em diante.
Da mesma forma vemos o profeta Isaías. O trecho de 5.8-13 parece
copiado de Miquéias, tal a coincidência de conceitos. Transparece nele profunda
indignação contra a exploração do pobre. O texto de 5.29 mostra grande
coincidência com Amós, ao falar do leão, mas aqui como um adversário e não
como a voz de Deus.
Isaías denunciou nações violentas como Assíria, Síria, Babilônia e os
desvios morais de Judá. Na raiz de tudo ele identificou um problema sério: a
corrupção espiritual da nação, sacerdotes frouxos e comprometidos com o poder
constituído, absolutamente corrompido. É uma tragédia quando a liderança
religiosa se enamora do poder político. É uma ilusão pensar que estamos
exercendo influência na mente dessas pessoas. Somos iludidos e usadas por elas,
na realidade. Acabamos legitimando sua conduta, emprestando-lhes um apoio que
nunca deveríamos emprestar.
13
Marrou, p. 15.
a ética profética não honra os homens e sim mostra os padrões de Deus aos quais
todos devem se subordinar. Toda honra deve ser tributada a Deus. Corruptos e
pecadores não honram a casa de Deus. O que a honra é ele mesmo.
5º) Uma ética de defesa do oprimido. Basta ler os profetas sociais, como
Amós, Miquéias, Isaías e trechos de Jeremias para ver que havia grande
preocupação com os desfavorecidos na escala social. Eles deviam ser protegidos.
Usamos muito as palavras de Jesus, “os pobres sempre os tendes convosco” para
justificar o nosso imobilismo social. Mas o trecho é bem mais amplo que isso. Ele
continua, em Deuteronômio 15.11: “por isso, eu te ordeno: livremente, abrirás a
mão para o teu irmão, pra o necessitado, para o pobre na tua terra”.
6º) Era uma ética de condenação do opressor. Basta voltar aos chamados
profetas sociais para verificar isto. Para não fazermos uma afirmação genérica,
sem lastro bíblico, fiquemos com Amós 6, mais uma vez. É suficiente.
14
Schaeffer, p. 79.
15
Boris Casoy é âncora de programas noticiosos da televisão e se notabilizou pelo uso
desta expressão.
necessidade de uma experiência mais profunda com Deus, o que é excelente. Mas
devemos enfatizar o caráter e isto também é bom. Na realidade, em nosso
contexto, é extremamente necessário. Devemos trabalhar para que os membros de
nossas igrejas sejam cristãos de tempo integral, em todos os momentos e lugares.
Mas, acima de tudo que fiquem conosco as palavras de Miquéias 6.8: “Ele
te declarou, ó homem, o que é bom e que o que o Senhor pede de ti: que pratiques
a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus”. Que
assim façamos, todos. Que aceitemos a ética de uma vida social inatacável.
Creio que já deve ter ficado bem claro nossa linha de raciocínio: muito do
que entendemos por profetismo atual está distante do profetismo bíblico. Até
mesmo porque avulta aos olhos de qualquer pesquisador, mesmo que não seja ele
muito profundo, a diferença entre o profetismo bíblico e aquele que se vê em
alguns círculos ditos proféticos, hoje.
Muitos do que acontece hoje e é tido como profetismo é adivinhação
pessoal, uma espécie de horóscopo ou “leitura de mão” evangélicos. Por vezes,
aquilo que se costuma chamar em linguagem coloquial, de “chute”. Conheci um
homem não crente profundamente magoado com a igreja evangélica. Amava
profundamente sua esposa, mas uma “profetisa” da igreja que ela freqüentava lhe
afirmou, “em nome do Senhor”, que ele possuía uma amante. E ele não possuía.
Gostava de ir ao bar com amigos, de comemorar eventos e, como disse ele, de
“bebemorar” também. Isto é compreensível no seu estado de pessoa sem
compromisso com um grupo evangélico. Mas em sua vida sentimental só havia
lugar para sua esposa. Neste aspecto, era um homem íntegro. A “profetisa”
argumentou: se ele bebia em bar é porque não era um bom marido, se não era um
bom marido logo possuía uma amante. Seu casamento se desfez por causa de uma
“profecia” silogística. Ou de um “silogismo profético”.
Um colega meu de pastorado na mesma igreja que eu pastoreava, pregando
numa igreja desta linha, teve sua pregação interrompida por uma profetisa, que
depois de falar em línguas por uns dez minutos, traduziu ela mesma o que dissera:
“Deus deseja abençoar todas as crianças desta igreja”. O colega ainda não
entendeu ( e eu também não, confesso) como uma fala tão extensa, em línguas,
deu uma frase, apenas, em vernáculo. E qual a utilidade de uma profecia desta, tão
óbvia, sabida por todos? Por que ocupou tanto espaço no culto? Se não fosse dita,
diferença alguma faria na vida daquelas pessoas. E se fosse dita, em idioma
português, seria recebida logo, assimilada de imediato porque é banal, e o culto
seguiria seu rumo normalmente, sem grandes modificações. Nada se disse demais.
Ou de menos. Disse-se o trivial.
Os profetas bíblicos fizeram revelações pessoais, como Natã, ao acusar
Davi. Como Elias, indignado com Acabe e Jezabel por matarem Nabote para
tomar-lhe a vinha. Mas o grosso das profecias bíblicas se dá em nível macro,
muito mais que em nível micro. Salvo alguma exceção não recordada agora,
quando a profecia sucede em nível micro, é dirigida ao rei, como representante do
povo. No entanto, em ambos os níveis, a profecia bíblica faz grandes exigências
morais. Vimos, no capítulo anterior, a exigência profética de uma moral social.
Veremos, neste, a exigência profética de uma moral em nível individual. Não
poderemos descuidar das estruturas e das instituições, que foram contaminadas
pelo pecado humano, posto que elas são criação de homens pecadores. Mas
também não poderemos nos esquecer das exigências em nível de vida pessoal.
EM BUSCA DE DIFERENÇA
Esta compreensão da proclamação do caráter de Deus nos ajuda a entender
muitos aspectos do Antigo Testamento que parecem problemáticos, à luz de nossa
cultura. Um exemplo que se pode abordar aqui, neste contexto, é o episódio de
Acã, em Josué 7. Como é que, por causa de uma capa, duzentos siclos de prata e
cinqüenta siclos de ouro, Deus permitiu a morte de 36 soldados (Js 7.5) e a história
terminou com a morte de Acã, seus filhos e suas filhas, bois jumentos, ovelhas e
com a queima de sua tenda (estranhamente nada se fala da mulher de Acã) ?
Quando uma nação vencia uma outra nação, inimiga, saqueava seus bens.
Os moabitas pagaram tributos a Davi (2Sm 8.2). Os sírios também (2Sm 8.6).
Num hino composto para a entronização do rei de Judá, expressa-se o desejo de
que os reis de Társis, das ilhas, de Sabá e Sebá lhe paguem tributos (Sl 72.10). Ao
sair do Egito, os hebreus já tinham levado bens dos egípcios (Êx 12.35-36). Por
que agora não podiam levar nada?
Era a primeira batalha já na terra prometida. Era o primeiro contato com os
bens dos cananeus. Era o primeiro contato de Israel como povo de Deus, por ele
redimido, com pagãos condenados por Deus. Não trazer nada deles era uma
recomendação eivada de simbolismo: nada de convívio com os pagãos. Não se
podia fazer aliança com eles (Dt 7.1-2). Havia uma diferença de vida marcante.
Não era apenas a questão da crença em uma determinada divindade, mas práticas
abomináveis como sacrifícios humanos, prostituição cultual (cultual mesmo, de
“culto”, e não cultural, de “cultura”), adoração de animais, rebaixando assim o
próprio Criador. O princípio é ético: nenhuma ligação com este tipo de gente.
Nada destes povos deveria ser cobiçado. A cobiça produziria alianças para se obter
vantagens.
Pensemos nisto porque muitas vezes a Igreja de Jesus faz ligações pouco
confiáveis com pagãos. Adotamos métodos e atitudes que são a nossa capa
babilônica e nossos siclos de ouro e de prata. E muitas vezes não são métodos e
atitudes, mas são ouro e prata, mesmo. Há igrejas locais que trocam votos por
tijolos e cargos políticos, por exemplo. Há púlpitos que se tornam palanques
eleitorais de pessoas sem escrúpulos e sem o mínimo temor de Deus. Há muito de
Acã hoje, muito de ética da santidade transgredida em nossos arraiais. Quando um
pastor pede voto, de público, para um político que não é conhecido por sua
integridade, mas porque ele dará dinheiro ou facilitará as coisas para instituições
ligadas à sua igreja, temos aí um caso pior que o de Acã. A igreja em geral, e seus
líderes, em particular, como pessoas, devem ser íntegras. A maior dificuldade da
igreja evangélica hoje tem origens internas e não externas. Está na qualidade de
sua liderança, que muitas vezes procede como Acã, enamorando-se de bens e
negando seus valores morais e espirituais, pelos quais deve zelar.
Sem dúvida, a grande insistência dos profetas, além da chamada ao retorno
ao berith, o pacto entre Israel e Iahweh, foi a conduta pessoal correta. Se os
homens fossem maus, a sociedade não poderia ser boa. Os homens precisavam
modificar sua conduta.
E QUANTO A NÓS?
Há algumas lições para nós, que pretendemos ser profetas de Deus para
nosso tempo.
1ª ) A compreensão de que a conduta individual tem valor aos olhos de
Deus. Podemos contemporizar ou cuidar de denúncias em nível macro, pensando
que as coisas pequenas são irrelevantes aos olhos divinos. Sem resvalar para caça
às bruxas, usando o episódio de Acã, podemos dizemos que muita ruína vem sobre
nosso povo porque cobiçamos o mundo, porque o invejamos, porque não
guardamos as diferenças. A função do profeta é chamar as pessoas a viverem vidas
diferentes da vida do mundo sem Cristo. Mesmo que incompreendido como
Jeremias. Não precisa e, na realidade não deve, esbofetear pessoas, como Neemias,
mas deve chamar as pessoas a corrigirem suas vidas.
2ª) A prática da justiça deve ser proclamada pelo profeta atual. Ele deve
dizer aos patrões e empresários crentes que devem ser honestos, pagar
honestamente e não defraudar o salário. O cristianismo não é uma ética de
escravos, para manter as massas em obediência, mas traz preceitos para todos.
Neste sentido, Tiago, o autor da epístola que leva seu nome, no Novo Testamento,
é bem claro. Há deveres para patrões. Não é suficiente dizer ao empregado crente
que ele deve ser honesto. Deve-se dizer ao empresário crente que ele deve ser
honesto, também. Rubem Alves declara o protestantismo de criador de uma “ética
do funcionário” 16. Pois bem, devemos criar uma ética geral, pertinente a todos as
classes sociais, mesmo as mais ricas, que são dizimistas de peso nas igrejas.
3ª) O crente, em nível individual, precisa de retidão e de integridade. O
profeta deve dizer isso. Santidade está ficando fora de moda, em nosso meio. E,
quando é proclamada, isso é feito em termos de dons, de liturgia, de alarido, de
esquisitice. Mas santidade se evidencia em termos de caráter. É fácil ter dons. Ter
caráter é mais difícil. O profeta deve chamar as pessoas a obedeceram à Palavra e
a pautarem suas vidas pela Palavra.
4ª) O profeta deve cumprir em sua vida o que prega. Os profetas estavam
acima de suspeita. Não foram contestados em termos de “você não vive o que
prega”. Eram temidos. O poderoso Herodes temia a João, diz Lucas 6.20. Herodes
tinha os poderes político econômico e militar consigo. Mas o Batista tinha caráter,
o que Herodes não tinha. Para dizer aos indivíduos o que devem ser e o que devem
fazer, o profeta precisa ser correto e fazer o correto. E este é para nós o grande
desafio. Porque a nossa maior necessidade hoje é ter um caráter íntegro. Os
evangélicos brasileiros são mais conhecidos, presentemente, por escândalos que
por qualquer outra coisa.
16
No seu livro Dogmatismo e Tolerância, constante da bibliografia, página 128.
A ÉTICA PESSOAL DOS PROFETAS
17
A expressão consta de seu ensaio “Deus, Fé e Política”, publicado em Reflexões
Para O Futuro, editado pela revista Veja para comemorar seus 25 anos de circulação.
citada por Roberto Campos, a de comerciantes da fé. Pode se aplicar a estas
pessoas a palavra de Natã a Davi: “Porquanto com este feito deste lugar a que os
inimigos do Senhor blasfemem” (2Sm 12.14).
Por quebrar a orientação de Eliseu e pedir bens materiais a Naamã, Geazi
se tornou leproso (2Rs 5.27). Ficou com parte do dinheiro do pagão. Mas, em
contrapartida, ficou com a totalidade da sua doença. Que lição! Quando o profeta
é inescrupuloso, pega a doença do mundo: a lepra da cobiça, da ganância, da
voracidade por coisas. E um profeta moralmente doente é alguém inútil. Um
profeta moral e espiritualmente doente é um enorme prejuízo para o reino de Deus.
Um autêntico profeta age como Neemias. Os políticos que o antecederam
na função que ele desempenhava foram corruptos. Poderia ele alegar, como muitos
fazem hoje, que “todo mundo faz assim”, mas não o fez. “Eu assim não fiz, por
causa do temor de Deus” (Ne 5.15). O profeta não apenas prega que o povo deve
temer a Deus. Ele próprio teme a Deus. Nunca permitamos, nós que pretendemos
ser profetas de Deus ao mundo de hoje, que a familiaridade com as coisas santas
nos tornem hipócritas ou, ainda, desvalorizadores da ética. Com muita facilidade,
as pessoas que lidam com realidades espirituais se tornam insensíveis e até cínicas.
Há muita crueldade “em nome de Deus”. E muita maldade, em igrejas e
denominações, camufladas pela expressão “zelo santo”. A familiaridade pode
levar à perda de respeito para com Deus e falta de misericórdia para com os
irmãos. Mas sensibilidade à voz de Deus e temor diante dele são marcas
essenciais na vida de um profeta que se preze.
O PROFETA, UM HOMEM QUE NÃO BAJULA
Um dos problemas mais graves para o profeta contemporâneo é a tentação
da popularidade. Viver bem com a mídia, aparecer como pessoa bem relacionada e
como massageador de egos. Choca-me o alvoroço que as eleições públicas no
Brasil causam em certas igrejas. É um frisson, uma agitação, com a apologia de
políticos (alguns sabidamente desonestos) e um oportunismo vergonhoso. O Pr.
Ronaldo Didini, na ocasião líder da Igreja Universal do Reino de Deus, em
entrevista a uma revista de circulação nacional, declarou que sua Igreja apoiou um
determinado candidato ao Senado visando benefícios ao seu grupo. Agiu assim
porque temia ser prejudicada em seus projetos 18. O candidato, por conta disto, foi
endossado pela Igreja, cortejado por pastores e mostrado como o homem que
ajudaria a Igreja. Que estranho sentimento para uma denominação evangélica!
Não seria o caso de confiar ela em Deus, que cuida da sua Igreja e que nunca
permitirá que as portas do inferno prevaleçam contra ela? A Igreja precisa crer no
que prega e confiar no poder de Deus e nunca se envolver em alianças políticas
para receber ou ter privilégios mantidos. Como pregar para o povo confiar em
Deus se a Igreja confia em alianças políticas?
É triste quando a Igreja tem que cortejar homens para poder viver. João
Batista preferiu morrer a bajular. Sofrer hostilidade e perseguição por coerência e
fé é mais digno do que desfrutar benesses do poder. Em nosso machismo latino, se
uma mulher procedesse assim, chamá-la-íamos de prostituta, porque estaria se
vendendo. Quando é uma Igreja que procede assim, como chamá-la?
Em 2Crônicas 18.12-13, Micaías foi instado a falar coisas boas para
agradar Acabe. Mas Acabe era um homem de vida torta, pecador, idólatra, imoral
e cruel. Deus nada tinha de bom para dizer de bom a ele. Por isso Micaías foi
firme: “Tão certo como vive o SENHOR, o que o meu Deus me disser, isso
falarei”.
18
O candidato foi José Serra, do PSDB. A entrevista de Didini está na revista Veja,
de 20.8.97.
O resultado não se fez esperar. Foi uma reação imediata. Acabe, indignado
com a profecia de Micaías, manda encarcerá-lo e deixá-lo com escassez de pão e
de água, e o ameaçou: “até que eu volte em paz” (2Cr 18.26). Micaías, a caminho
do cárcere, ainda teve tempo de dizer: “Se voltares em paz, não falou o SENHOR,
na verdade, por mim” (v. 27). Manteve sua coerência até o fim.
O profeta não é nem pode ser bajulador, mas deve seguir sua consciência,
que nunca deve ser vendida. Não é nem pode ser interesseiro. Nada tem como
interesse a não ser “o que o meu Deus me disser, isso falarei”.
Por vezes, a situação demanda prudência. Assim é que o desconhecido
profeta de 2Crônicas 25.14-16, ameaçado por Amazias, quando o acusou de erro,
parou de denunciá-lo. Mas não se acovardou. Simplesmente lhe disse: “Sei que
Deus resolveu destruir-te, porque fizeste isso e não deste ouvido ao meu conselho”
(v. 16). Cautela, algumas vezes, é necessário. Mas vender-se, nunca. Bajular,
jamais.
19
“Bruxarias e Dízimos”, de Armindo Blanco, no jornal carioca “O Dia”, de 14.8.97.
Estamos vendendo ministérios e pessoas como quem vende mercadoria
mundana, a tranqueira eletrodoméstica que nos apresentam como a grande
novidade do momento. Promovemos pessoas que enriquecem às custas do
evangelho. Há gente colocando-se sob os holofotes. É o que um pastor de
Portugal, Renato Cordeiro de Souza, chama de a doença evangélica moderna:
“holofotite”. Cabem aqui as palavras de Wiersbe: “Uma das fraquezas da igreja
nos últimos anos tem sido a abundância de celebridades e a ausência de servos”.21
O profeta de Deus é servo, sempre servo. Não se promove, não busca o
primeiro lugar. Sua glória é aquela dita por Jesus. Depois de termos feito tudo,
devemos dizer: “Somos servos inúteis; fizemos somente o que devíamos fazer”
(Lc 17.10).
20
Trecho do artigo citado. “Serjão” é o apelido dado ao Ministro das Comunicações,
Sérgio Motta.
21
Wiersbe, p. 52.
poder que a nossa?”. Quando gritaria é mostrada como sendo um sinal do poder
de Deus na vida das pessoas é porque a mediocridade dominou de vez as mentes
dessas mesmas pessoas. Ou porque um dirigente esperto deseja criar um clima de
histeria emocional para poder manipular as pessoas. Num culto que dura sete horas
e todo ele processado aos gritos, a racionalidade se esvai por completo. Tal líder
deve ser doente...
O homem de Deus e a mulher de Deus mostram o que são pelo seu caráter,
não por dizerem eles mesmo isso de a seu próprio respeito. Nem por ostentarem
credenciais que julgam válidas, como falar sem ter língua ou gritar no culto, mas
que para o mundo nada significam, a não ser pretexto para nos ridicularizarem.
Porque é verdade! Muitas vezes, para o mundo, aquilo que pensamos ser
credencial é motivo de escarnecimento. A sunamita deu um belo testemunho
sobre Eliseu para o seu marido: “Vejo que este que passa sempre por nós é santo
homem de Deus”(2Rs 4.9). Infelizmente, o testemunho que o mundo tem dado dos
profetas atuais não é dos melhores. Fica para nós o desafio de que as pessoas
olhem para o nosso caráter, para o nosso viver, e de nós digam: “Vejo que este (a)
que passa por nós é santo (a) homem (mulher) de Deus”.
Profeta e profetisa de Deus, o mundo pode dar este testemunho a teu
respeito?
BIBLIOGRAFIA