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Viagem Incompleta
f\ EXPERlÊNCIA BRASILEIRA (1500..2000)
A GRful\,JDETRf\NSAÇAo
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"li:irios autores.
Bibliografia.
ISBN 85.7359-111-0
00-0077 CDD-981
EDITORA
C===:J CO-I'di. ão:
Índi~es I' .ra catálogo sistemático: senac
1. Bra,il: Histó.-ia: ~500-2000 981 00
SAoPAULO
SESC
SÃO PAULO
Rbreza, desemprego, violência, trabalho infantil, meninos de rua,
seca no sertão nordestino, favelas e criminalidade nos centros metropolita-
nos são imediatamente identificados pelo senso comum como problemas
sociais e, portanto, como uma questão social. Mas não é por acaso que neste
país questão social assim como cidadania e cidadão são no geral utilizados
de forma ambígua e imprecisa nos mais diferentes textos e contextos. É
exatamente esse o eixo que será perseguido no desenvolvimento deste tema
tão complexo: sintetizar os vários conteúdos - e suas conseqUências - que a
questão social assume no decorrer deste século, sem a ilusão de que se
logre ser menos ambíguo e impreciso, exatamente pela condição a que é
confinada de sempre constituir uma área-problema.
governos locais no sentido de enfrentar criativamente as questões sociais, doloroso processo de construção da cidadania no Brasil que a "questão -
promovendo políticas e programas estruturantes de novas práticas e identi- social" é equacionada, traduzida em programas e políticas sociais, e
dades sociais. implementada.
-
Por outro lado, é claro que essas duas dimensões ética e moral não - No final do século XIX, quando as aglomerações urbanas assumem
se manifestam dissociadas entre si, sendo mesmo extremamente difícil ou maior presença no país e apresentam um ritmo de crescimento mais acele-
quase impossível - dada a sua artificialidade quando confrontada com a rado, associado às reformulações de nossa economia e à exploração do tra-
realidade - identifIcá-Iasde forma isolada e estanque quando da classifica- balho livre, os problemas sociais são vinculados a dois elementos básicos:
ção de um determinado fenômeno social como ferindo - enquanto questão carência de recursos (materiais e intelectuais) que possibilitem a sobrevi-
social ou problema social- valores morais ou éticos. Até porque é sempre vência dos indivíduos por sua própria conta e, conseqUentemente, a pobre-
bastante estreita a associação que se tende a estabelecer entre a presença de za sendo um problema individual, o seu combate é também concebido como
determinada questão social e o que ela representa, em termos reais mas pertinente à esfera da responsabilidade privada e individual de cada um,
também potenciais, enquanto ameaça à segurança social. sendo valorizado sobretudo o caráter voluntário das ações então imple-
Senão vejamos: fenômenos como a pobreza, a fome, a velhice desam- mentadas. Problemas sociais são da esfera da responsabilidade da filantropia,
parada, a alta taxa de analfabetismo entre crianças em idade escolar (e toaa- à época estreitamente associada à Igreja Católica. O exemplo mais clássico
via significativamente bastante inferior à que se verifica entre os adultos) a respeito são as Santas Casas de Misericórdia, de longa tradição entre nós.
hoje no país tendem a ser concebidos como injustiças sociais, e como tal À esfera pública, e portanto ao Estado ou, na época, mais propriamen-
inaceitáveis; no entanto, a associação entre eles e a ameaça à ordem social te, aos estados, dada a autonomia dessas esferas subnacionais no então re-
ainda é indireta e longínqua no imaginário social, tornando-as então passí- cém-instaurado regime republicano, pertence a responsabilidade por
veis de ser socialmente toleradas. Já homicídios, violência no trânsito, la- controlar e prevenir exatamente aqueles episódios e eventos que ameacem
trocínio, por exemplo, tendem a ser imediatamente identificados pela a ordem pública, vale dizer, a segurança dos cidadãos. E quem eram estes?
sociedade como ameaça à ordem social e, portanto, à segurança individual Exatamente a elite econômica e política do país, a oligarquia agrária.
do cidadão, devendo como tal ganhar a prioridade dos governantes. Em resumo: q~estão social'é tida e havida como objeto da filantropia
Dessa forma, determinados fenômenos sociais tidos como mais ou (mais uma v~z das elites que dispunham recursos Pará tanto), à qual se asso-
menos indesejáveis, porém toleráveis, tendem a se tornar socialmente into- ciava pre~~íg!.~~oc::~a!;
~.d~vinculada do trabalhe:>:-I:'0~r.eéJáp criminoso, o
leráveis quando, e somente quando, associados à segunda bateria de fenô- vio!en.~0!.5~_queameaça..a ordem' pública e'vi:1Íde encon~rol1.osbons co.stu.-
menos sociais acima referidos. E como tal devem ganhar prioridade para o mes,
.~ dada sui;'sTtu~ã() de "carência"
~H no sentido
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seu imediato enfrentarnento. Exemplos não faltam em nossa sociedade: a ~i.~~~ç~<2-~l.e_p.riyA.ç,~?_~_~F~~ursos mater:!.~i.~.~~~2~J.a-~t? a~~.s~~c:ia de recllrso~
forma pela qual se relaciona a pobreza à violência; as crianças fora da esco- intelectuais ~lIJt~~aispr6pri"õs-cjüepermitam ao indivíduo superar por si
~.
la à pobreza e à violência; o consumo de drogas à pobreza, à Aids e à vio- mesmo tal estado d;privação.-Àq'~elã-éP'~~~:"port~~t~:'q~~stão s~cial era
lência; etc. Note-se que nesses casos o que sempre está em jogo é a complexa algo pertiriente'à esferap'rivada, devendo nesse âmbito ser tratada.
delimitação entre as dimensões legal e ilegal dessas práticas sociais, e por- Nas primeiras três décadas do século XX - até a Revolução de 1930-,
tanto sua natureza legítima ou ilegítima; ou ainda, em termos dos mores, o a questão social no país é sempre encarada como um fenômeno excepcional
que vem a ser socialmente definido como "o normal e o patológico". e episódico, demandando iniciativas porituais do Estado e largamente sob a
Essa associação entre pobreza e problemas sociais dominante no ima- responsabilidade da filantropia, e portanto uma vez mais como algo perti-
ginário brasileiro salta aos olhos numa simples conferência das principais nente à esfera privada. Recorde-se, no entanto, que as décadas de 10 e 20
notícias cotic;Iianasveiculadas pelos nossos meios de cOn,1unicação.No en- deste século foram marcadas por profundas mudanças econômicas e sociais
tanto, é a partir dessa associação básica - forjada através de um longo e no país, acelerando-se o processo de urbanização, intensificando-se o co-
388 AmélioCohn 389
A questão sociol no Brosil: o difícil construçóo do cidodonio
mércio exterior alavancado pelo café, e emergindo as primeiras iniciativas, e episódicos, mas como regulares e permanentes. vale dizer, assumidas como
nos grandes centros urbanos da época (São Paulo em particular), dos em- algo de caráter estrutural.
briões do que seriam posteriormente grandes unidades industriais produ-
ti vaso Esse processo de acelerada modernização da sociedade vem
acompanhado também de um vigoroso movimento dos novos segmentos Questão social e direitos sociais: cidadania e trabalho
sociais então emergentes nesse novo cenário social em constituição, e que
são as classes assalariadas urbanas. Associados a sucessivas políticas e Sem o risco de incorrer em erro e exageros, pode-se afirmar que no
medidas de incentivo à imigração, os primórdios desse setor industrial pas- Brasil a questão social tem como regra de ouro a ser religiosamente respei-
sam a contar com a força de trabalho européia, com fortes raízes na luta tada o não onerar os cofres públicos. Por outro lado, qualquer padrão de
operária em seus países de origem, em especial de inspiração anarquista. solidariedade social que se constitua em cada sociedade implica necessaria-
Assiste-se, então, nos "centros nervosos" desta nação do além-mar (as- mente o estabelecimento de um pacto distributivo dos recursos sempre -
sim considerados quer por critérios econômicos quer por critérios políticos), limitados e escassos -'existentes na sociedade para se enfrentar a questão
a um p~ríodo marcado por grandes movimentos de luta operária reivindican- dos gastos sociais. I Note-se, de imediato, que esse pacto distributivo no -
do um conjunto mínimo de direitos básicos no âmbito do mundo do trabalho. sentido estrito de origem, distribuição e alocação dos recursos - necessaria-
A síntese do teor das inúmeras greves que se verificam nesse período poderia mente não significa que se obedeça a um determinado padrão de justiça
ser esta: luta por melhores condições de vida e trabalho. social, vale dizer, que seja efetivamente redistributivo, tal como ocorre nos
É a partir de então que se cristaliza no país a concepção de que a modelos de Estado de bem-estar social dos países europeus, especialmente
"questão social", da ótica da responsabilidade pública por um patamar mí- os nórdicos. Como se verá adiante, o caso brasileiro não obedece, no pre-
nimo de bem-estar dos cidadãos, é algo que passa a ser estreitamente asso- sente, como não obedeceu, no passado, a esse padrão de proteção social
ciado ao trabalhú. Cidadão, portanto, distingue-se agora dos pobre's: questão civilizador, característico das sociedades modernas.
social dos trabalhadores, ou das classes assalariadas urbanas, passa a se Também pode-se afirmar que a questão social no Brasil, ao estar des-
constituir, a partir de 1930, como uma questão da cidadania; enquanto a de sua origem marcada pelo criv'o do vínculo do indivíduo ao mercado de
-
questão da pobreza, dos desvalidos e miseráveis exatamente por não esta- trabalho, e portanto não surgindo com o traço fundamental da cidadania
-
rem inseridos no mercado de trabalho continua sendo uma questão social
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que é a sua universalidade, trouxe consigo certos aspectos que se revelam
de responsabilidade da esfera privada, da filantropia. ~(',
~! ainda hoje determinantes do c~áter perverso das nossas póÍíticas sociais.
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É portanto via trabalho que determinados problemas sociais da reali- Assim, não é por outro motivo que os direitos sociais no Brasil até hoje
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dade brasileira transformam-se em questão social, e como algo pertineJ Ite à traduzem-se em políticas e programas sociais que se dirigem a dois públi-
esfera pública. Vale dizer, passa ao âmbito da política, uma vez que começa cos distintos: os cidadãos e os pobres. Cidadãos são aqueles que, por exem-
sistematicamente a ser remetida para a responsabilidade do Estado. Isso plo, estão cobertos por um sistema de proteção social ao qual têm direito
significa, em outros termos, que se assume aqui uma diferenciação bbsica porque cóntribuem para com ele. Os pobres são aqueles que, por não apre-
entre problemas e questões sociais: enquanto os primeiros dizem mais res- sentarem capacidade contributiva, uma vez que nem sequer apresentam ca-
peito a coisas e fenômenos indesejáveis, porém aceitáveis de com elf's se pacidade de formas autônomas de garantia de patamares mínimos de
conviver, as segundas remetém à esfera do reconhecimento de alguns .jen- sobrevivência, são alvo de políticas e programas sociais de caráter filantró-
tre esses fenômenos como leg(timos, e como tal devendo ser enfrentados
e
pela coletividade, constituindr. .se regulando-se assim determinados pa-
drões de solid~edade social. E mais que legítimas, as questões sociais pas- G. Esping-Andersen, Los tres mundos dei Estado dei Bienestar(Valência: lVEI, 1993) e G. Esping-
sam a ser conce')idas e de.:ifradas não mais como fenômenos excepcionais Andersen (ed.), Welfare States in Transition (Londres: SageIUNSRID, 1996).
391
A questão sacial na Brasil: a difícil construçõoda cidadania
390 Amélia
Cahn
Não é de surpreender. portanto. em nossa cultura política a frequência com que as lideranças.
sobretudo os governantes. são identificadas através de suas características pessoais. e não atra- Boletim do Ministério çioTrabalho, respectivamente n. 35, de julho de 1937. e n. 36. de agosto
vés do programa de governo. da legenda partidária. etc. Talvez a expressão mais cabal disso seja do mesmo ano. pp. 109 e 89. apud: Gisálio Cerqueira Filho. A "Questão social" no Bra.\'il-
a qualificação dada pelos eleitores a alguns candidatos a postos elegíveis no governo. tal como o político (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1982), p. 81.
crítica do discllr.1'O
célebre "rouba mas faz".
392 AmeliaCahn A questão social no Brasil: a difícil construção do cidadania
393
De fato, essa é a grande herança e o grande traço de nosso sistema de gios", tomando-se viáveis, sem muitas tormentas, reformas desse aparato
proteção social e que ainda hoje permanece: desde sua origem, por vincu- de proteção social que anulam direitos diferenciados conquistados histori-
lar-se ao trabalho, ou à ocupação como analisa brilhantemente Wanderley camente por distintos setores de trabalhadores, em nome de uma eqUidade
Guilherme dos Santos,4 a "questão social" é enfrentada de forma segmenta- que nivela tendo como parãmetro os patamares mínimos de benefícios soci-
da e fracionada, fazendo com que sua implementação, ao contrário de pro- ais que já vêm sendo praticados.
mover a inclusão social dos cidadãos, assuma o significado da diferenciação
e reprodução da subaltemidade das classes assalariadas do país.
Em resumo: o enfrentamento da "questão social" no país é sempre Questão social: cidadania e mercado
estreitamente vinculado à modemidade atribuída às nossas elites políticas,
e por conseqUência ao Estado brasileiro, que a regula e legitima segundo Este é um país em que os paradoxos não se restringem aos contrastes
seus próprios interesses, preservando assim sempre "por antecipação" a da natureza. O brasileiro, este "homem cordial", foi sendo assim moldado
ordem social vigente. através de nossa história tendo exatamente como um dos mecanismos cen-
É portanto a partir da década de 20 que a "questão social" no Brasil trais as políticas sociais. Trajetória essa tão paradoxal que, quando se acom-
passa 11ser incorporada pelo Estado, via trabalho, formalizando-se assim o panha a cronologia da implementação dos direitos sociais neste país,
estatuto de cidadania para determinados segmentos sociais, enquadrando-o constata-se que estes são estendidos a novos segmentos de trabalhadores
juridicamente num aparato que reunia e articulava legislação trabalhista, em períodos de regimes autoritários. Cuidado. no entanto, para inferências
legislação sindical e legislação previdenciária. Mas reforçada no entanto apressadas: esse fato por si só não autoriza que se depreenda que no caso
pelo próprio traço oligárquico e patrimonialista do Estado e da cultura polí- brasileiro os períodos autoritários e totalitários foram exatamente aqueles
tica brasileiros, verifica-se no país a consolidação de um sistema de prote- mais sensíveis e permeáveis à questão social. Pelo contrário. quando se
ção social que apesar de se desenvolver em duas vertentes paralelas a dos - debruça sobre os dados relativos a quem ou que segmentos sociais mais se
direitos sociais e a da filantropia -
não as diferencia quanto ao seu traço apropriam das políticas e dos b,enefícios sociais neste país, o que salta aos
paternalista e conservador, associando a "igualdade perante a lei" à política olhos é, de uma parte, o traço perverso de nosso sistema de proteção social,
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do favor, do compadrio, do favoritismo que; como registra Schwarz,s "se uma vez que quem mais se apropria dele são em primeiro lugar os não
tinha a vantagem de trazer para a frente alguns de nossos assuntos decisi- pobres, seguidos dos pobres, e estes dos mais pobres dentre os pobres.' e de
vos", não se deve esquecer que "uma doutrina autoritária, em que a família outra, exatamente seu traço autoritário e dominador.
dá o paradigma à sociedade, se entrelaçava com naturalidade às nossas tra- Em resumo, apresenta-se aqui a tese, compartilhada por numerosos
dições católicas e patriarcais". Em termos de direitos e cidadania, instaura- analistas e estudiosos das políticas sociais no país, de que no caso brasileiro
se a velha regra de que "para os amigos tudo, para os inimigos a lei", criando, elas não só reproduzem as desigualdades sociais já existentes (ao contrário
como assinala DaMatta,6 uma dupla rede de sociabilidade a do indivíduo - do que oporre nos países com os modelos clássicos de Estado de bem-estar
e a da pessoa -, ou o famoso "sabe com quem está falando 7". Compreende- social), como também reproduzem a subalternidade dos dominados. Quan-
se, portanto, a facilidade com que, nos dias atuais, direitos são interpretados to a estes últimos, as indicações são inúmeras e de distintos tipos Não é de
pelas elites politicas contemporãneas e socialmente aceitos como "privilé- se admirar, por exemplo, que prevale9a a representação social entre mora-
dores da periferia de uma metrópole como São Paulo, já em plena década
de 80, de que consiste direito social todo e qualquer benefício de caráter
Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania ejustiça (Rio de Janeiro: Campus. 1979).
Roberto Schwarz. Ao vencedor as batatas (Silo Paulo: Duas Cidades, 1977), pp. 63-5.
Roberto DaMatta, A casa e a rua ,- Espaço, cidadania, mulher e ;norte no Brasil (Silo Paulo: República Federativa do Brasil, Relatório Nacional Brasileiro - Clípula Mundial para o DeJ'en.
Brasiliense, 1985). vo/vimento Social, Copenhague, 1995. Relatora geral: Amélia Cohn.
395
A questõa sacial no Brasil: a difícil construçõo da cidadania
394 Amélia
Cahn
nóstico terapêutica vinculada ao atendimento hospitalar, para não mencio- co~ção de cidad_~()~~quanto
- capacidade de consu~o _e_~eP~~P~_~9a}~di-
nar a própria indústria farmacêutica. v~~~ O mercado, agora, passa a prevalecer como mercado de consumo: o
3) A partir da segunda metade da década de 90 assiste-se aos ensaios acesso à satisfação de necessidades sociais básicas diferencia-se dos direi-
de uma terceira modalidade de articulação entre cidadania e mercado: não tos, e torna-se função da capacidade de poupança individual de cada umo
prevalece mais o mercado de trabalho para definir as diretrizes de um novo o~.alta-se de um modelo 4..tUQH.Q!J.riÇ.9AQ~..~Q~!~!~~'p_~rfi1geracion~!i~t~~s/
padrão de solidariedade social, mas sim o mercado de consumo. Vale d1zer, inativos, o conceito e':1 si já ~~~otr_~f!1~rr1o~.nt~.!~fel~~Leara
a lel de "cada um
acompanha o processo de ajuste estrutural de nossa economia através da por si'\ retirando-se ~~sse siste~a de proteção socialto.~~~oq~~9..l!.:!~ará-
eleição por nossas elites dirigentes de um modelo de "ajuste passivo", utili- e
ter de solidariedade social redistributr"Oa compensatória das desigualdades
zando o termo de Maria da Conceição Tav ares ,10um ~ -
processo de desins- so~i!!io~oo o- 0-_o ."_0. 000.0000.' _00..000- - __"
passam a ser função da capacidade de p~uP~~ç~J1!c!L~~dualde cada ulTI! tam para a "opacidade social" que vem caracterizando a sociedade contem-
independentemente da sua condição no men::~49.Qetrabalho. A recente re- porânea, e sua conseqüência em termos de se equacionar na atualidade a
fOl1l1ado sistema previdenciário de 1999, por exemplo, desvincula a contri- "questão social".
buição previdenciária da relação de trabalho assalariada que garante a fonte Fitoussi e Rosanvallon, que utilizam o conceito de "sociedade opaca"
de renda, ao substituir para cálculo de apQsentadoria tempo de trabalho por para designar essa nova realidade, chamam a atenção para o desl~c_~rn.c::Il!.(,J
tempo dé contribuição. P~~~_prevalecer assiJ!1não mais o mer9do _çl~ que a que~tl!Q.§QÇjaLYe_m. s9XrenQ():~l.~qi!.m.que~<::"p'assoude uma análise
~ral:>alho~~_ capacidad~ contributiva de cada indivíduo, independente- glo~~Ld~_sistema (em termos de exploração, d; repartição:-etcS~ara.~ma
l1l~nte de estar ou não empregado, e independente de qualquer inserção p~!spectiva focalizada nos _ ~.,:~~~ntos m~i~vulne!~~~~~__~a.'p'()P . !-Ilação:E
forlTlalsua no mercado de trabalho, como vigia até recentemente. Registre- que, em decorrência, não sÓ"a luta contra a exclusão polarizou ã--atenção,
se, de passagem, que uma das maiores conquistas sociais de 1988, que foi a mobilizou as energias, provocou a compaixão", como também uma simpli-
concepção de seguridade social no texto constitucional, vem sendo gradativa ficação do social por parte do coletivo, reforçada pela perda da força das
e paulatinamente destruída, retomando-se, através do esquartejamento das identidades coletivas nessa nova ordem. Mas os autores chamam também a
refol1l1as da seguridade social reformas estanques e autônomas entre si da atenção para o fato de que as desigualdades, mesmo que não apresentem
previdência social, da assistência social e da saúde, à velha e arcaica con- mais necessariamente a amplitude do passado, não s6 permanecem acentua-
cepção de seguro social. das, como ainda a sua natureza mudou na atualidade. 16
. A "questão s0cial" no Brasil de hoje.passa a ser. ~~s.im_.!1~-,!.mais
uma Claro que a referência desses autores é a sociedade francesa contem-
questão de inclusão social via trabalho, fOrma clássica de re.guJ~s.~o~<?<;ial porânea. Mas debruçando-se sobre nossa realidade também com esse
no capitalismo moderno, mas via consllffiQ,2.9uefl1:z co~ qu.~pre.~~I.~9~m.' referencial, e sobretudo resgatando a atenção para o fato de os autores, como
sobretudo nos países "emergente~" (periféricos nas análises de antanho), tantos outros, apontarem que nas sociedades atuais não são mais as identi-
nõ\iõs padrões de regulação social e que consistem ~xata1!l~l'!tenum pro- dades coletivas relativamente estáveis que são necessárias de ser descritas e
cesso de desregulação dos direitos de cid~ania regulada até ~ntão vigentes incorporadas, mas que também os percursos individuais e sua variação no
e de ruptura de contratos sociais pr.eestabelecidos., l(:vando ao que Francis- tempo ganham importância, fica claro que na realidade brasileira as desi-
co de Oliveira naquele mesmo texto denomina "totalitarismo neoliberal", e gualdades brutais de renda que persistem e tendem a se acentuar, às quais se
Boaventura de Souza Santos, "fascismo social".'4 associam as condições da "velha" e da "nova" pobreza - aquela, a pobreza
estrutural, e esta fruto do ajuste estrutural de nossa economia -, configuram
.um quadro muito mais radical.
Questão social: a naturalização da pobreza Isso porque, ~ não mais prevalec<: o padrão de integração/exclusã?
~ocial pautado pelo trabalho, e ~~~__~C?~_..~~is
v~~~!!9..<? 95?!I1p'r.2~.a_daa
A literatura s::Jcio16gicaatual é farta e rica quando trata da comple}<i- impossibilidade
-..~ (reconhecida atualmente até pelo Banco Mundial) de se --
dade social com que hoje no:- defrontamos, nessa nova realinade global, em ~f~abelecer um padrão de integraçã.?_~~~~.~~~~_!TI.C?~~~<:!.<?-,_
as .~_~~~gu..~~~~~~
que, recuperando r)ff~, ISse ques.. ona até que ponto o trabrJho permanece sociais .endem a se manifest~vés de_o)Jtrasformas de polarização, ~~
como uma categor a sociol6rica chave. Esses autores, na sua maioria, apon- não mais somente a tradicional de classe. Essa "nova" polarização expres-
sa-se como: globalizáveis/não-globalizáveis (recuperando aqui um termo
de Fiori; incluídos/excluídos; e organizados/não-organizados. À opacidade
14 B..S. Santos. Pela mã I de Alice - () ~'oda/ e o po[(tico na pós-modernidade (São Paulo: Cortez,
1995).
u C. Orre, "Trabalho: a \;ategoria so :io1ógicachave?", em Capitalismo desorganizado (São Paulo: 16 J.P. Fitoussi & P. Rosanvallon, Le nouve/ âge des inegalités (Paris: Seuil, 1996), especialmente
Brasiliense, 1989). o capítulo 1.
.
400 Amélia
lohn 401
Aquestõo social no Brasil:o diffcil construçõoda cidadania
social associa-se assim a raJicatização das segmentações e desigualdades determinadas necessidades sociais básicas: família, vizinhança, filantropia,
sociais estruturalmente pre ,entes na sociedade brasileira. Dos inúmeros enfim, através de novas e velhas redes sociais, a ser revividas e construídas.
exemplos que nos saltam aos olhos talvez seja a violência em suas distintas No entanto, essa proposta vem sendo praticada numa sociedade com um
formas de manifef tação, praticada tanto pelos incluídos como pelos excluí- dos maiores índices de Gini, de 0,59, atestando uma situação de brutal desi-
dos, o mais paradigmático dentre eles. gualdade social, fruto da absurda concentração de renda vigente no país: ao
Naturaliza-se a pobreza. Ela agora faz parte de uma fatalidade, fruto se comparar o rendimento dos 40% mais pobres da população com os 10%
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da globalização, e portanto criada por um fator externo à nossa realidade. É mais ricos, verifica-se que a renda média destes é nada menos que 20,6
eSS.l a mensagem de nossas elites governamentais, 9ue associam na sua vezes maior que a daqueles.17
._-
~Ii~nça es>lítica represemtantes das oligarquias as mais tradicionais eâõS
setores industriais potencialmente mais modernos, numa estranha combi-
nação que favorece o retorn,) ao ~ssado: a questão da pobreza passa a ser
Só esse dado deixa suficientemente claro que ao mesmo tempo que se
fala na necessidade de políticas e programas de combate à pobreza - para
tanto criando-se fontes alternativas e no geral ad hoc de recursos -, e que
um "problema social" que ganha presença no cenário político quaQdo, e são aprésentados e implementados programas nesse sentido, tal realidade
somente quando, decodificada tecnicamente como "questão social'''. Po~r~-=-_) com tamanha desigualdade social demanda necessariamente a presença do
za é então enfren'ada por meio de ~íticas sociais focalizadas naqueles Estado, uma vez que sua função redistributiva torna-se central e crucial.._
grupos identificados segundo determinados parâmetros técnicos como "so- O que está em jogo portanto, hoje, não é a questão do tamanho do
cialmente mais vulneráveis", conclamando-se o setor privado e a sociedade Estado, mas sim de qual o Estado necessário para se enfrentar o desafio
para colaborarem nessa empreitada que busca promover o "alívio da pobre- representado pela crescente distância que vem se dando no país entre de-
za" em que vivem. mocracia formal e democracia real. Ou, noutros termos, o desafio hoje con-
Naturaliza-se a pobreza porque a questão social agora passa a ser re- siste em se bus~.,!_~o~as formas de se articular o binômio desenvolvimento
metida, no debate político, a esse campo restrito de alívio da pobreza, toma- _ e democraci~~~~!lf!.<?~~~_~!1to das desigualdades sociais, o que implica
da sempre em termos absolutos, e não em termos da desigualdade social .resgatar iic;ntralidade do Estado, e mais do que isso, a democratização do
vigente. As propostas de políticas de combate à pobreza advindas de nossas próprio Estado, até hoje não ati~gida, apesar de a "Constituição Cidadã" de
elites políticas vêm assim, na maioria das vezes, acompanhadas de dis- 1988 garantir ~números espaços de participação social sediados nos Conse-
cursos sobre a_=,~assez d.e recursos 0~9!l'?:~tá.ri()sp~r~.Ja.!1.to,_sol>..r~~... lhos Nacionais (e seus equivalentes estaduais e municipais) sobretudo na
ineficiência inerente a tudo o que venha a s~~e.statal, asdistorções qu~ área social.
inquestionavelmente existem na apropriação dessas políticas por par.te 9.0S..-)
.
distiritos segmentos sociais, se~pre em detrimen!.9 d~~ -m~~ p()br~s ~_d~~ I
pobres, e sobre a necessidade de _se.buscar nov~s.fo.r.mas çle solidarjç.cia.d~ \ Considerações finais: nem tudo está perdido
social, uma vez que "o Estado não pode fazer tud.Q'~,_ __)
É portanto pautado nesse ideário que se opõe o atrasado ao moderno, Em que pese a complexidade da situação atual, parece que, felizmen-
num jogo invertido, em que o que anteriormente era concebido como mo- te, nenhuma experiência contemporânea nega o fato de a história continuar
derno - os direitos sociais -, passam hoje a ser classificados como produto sendo produto das lutas sociais. O que se revela necessário então é exata-
do atraso, ou do que vem sendo denominado pelos governantes atuais como mente desenvolver a sensibilidade e o instrumental necessário para, de uma
sendo de uma obtusa postura de "fracassomania" por parte dos seus parte, se detectar e compreender os novos espaços de construção de identi-
opositores.
-' A política que vem sendo atualmente praticada consiste, pois, em trans-
por para a esfera da responsabilidade privada a garantia. da satisfação de 17 IBGE, Síntese de indicadores sociais - 1998, Rio de Janeiro, IBGE, 1999.
..
402 Amélia
Cohn A questõo social no Brasil: a difícil construçõo do cidadania 403
dades sociais que vêm se constituindo, e sua outra ponta, o Estado, sem Bibliografia selecionada
contudo se abandonar o arsenal teórico, e suas conseqüências empíricas
CASTRO,N. (org.). A máquina e o equilibrista. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
imediatas, relativo às dimensões estruturais de sua conformação. .h.