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1

Título: PSM – QUATRO

Autor : carlos peres feio

Capa: Chinesa do Norte – Produções sobre desenho de carlos peres feio

© carlos peres feio e chinesa do norte produções , Janeiro 2009

Composição, paginação, impressão: chinesa do norte – produções, lda

Depósito nº : 0102806/09

2
é simples e reconfortante
sentir que a luz do passado
ilumina este meu anoitecer

carlos peres feio

3
anjos na praia

anjos na praia
do coral submerso
espera sem ponteiros
tédio no verso
asas sem voo
ouço e converso
rasto dos tempos
eco de lamentos
inesperada espera

fogo na noite
na maré cheia
sinais nas algas
sons nos rochedos
afastem os medos
anjos na praia
1998

4
chita

como todos os gatos


o encanto tem dois pólos
um olhar único –
o movimento do corpo
quando marcha

como todas as crias


trazem o encanto da vida
desordem nos movimentos
quando trepam pela Mãe

como todos os seres


precisam de ter sorte
que no viver natural
nunca se cruzem com o Homem
na savana desta vida
2008

5
Raiz do Tempo

o que procuro
esconde-se
levo já de vida o tempo suficiente
para ter vivido a realidade
e poder agora
procurar o que falta

ser microchip em viagem


pelo meu cérebro
ou turista pasmado
nas grutas do Dragão
nas entranhas da montanha
em busca de cristais

nesta viagem
pode-se estar no centro da Terra
e continuar a ouvir
um piano preto
nas harmonias sugeridas por um afinador
nas madeiras da estrutura
e no metal das cordas

a busca em liberdade
tem sempre o limite da mente
as grades da idade
a fragilidade dos tecidos
procuro hoje
um sinal de fim
os medos pressentidos
de tudo ou nada encontrar

quando me aproximo
deste sol interior
não há nuvens nem ventos
a paz é total
e sei que cheguei
à Raiz do Tempo
2008

6
as coisas boas da vida

é na cabeça que tudo se passa


logo acima dos olhos
no córtex cerebral

é o aroma que fica no ar


o teu perfume de sempre
as sombras do teu corpo
sonhar contigo ausente

a minha vida é meu fado


e é fácil entender
que à janela do mundo
com o desgosto lá fora
a água do duche ser tépida
já é uma coisa boa

respirar sem esforço


comer na hora certa
saber que os que partem
vão por ordem natural
conhecer gente de esperança
quando em nós não mora

perceber que entre os outros


há pessoas de bem
sentir a língua quente
da cadela que lambe a mão
olhar no boletim
o sol que nos vai aquecer

há ainda a felicidade
do bico deste lápis
resistir às minhas fúrias
2008

7
pintura

reinventar o mundo
nas cores que tem
nos contrastes apresentados
mas filtrados pelo nosso ser
condimentado pela filosofia
que fomos construindo
enquanto ele mundo
se transformava
e durante a nossa vida
a isso assistíamos

reinventar o mundo
é a minha pintura

2008

8
A rapariga do pescoço doce

É isso, escrevo muito porque sou uma


solitária!
Escrever faz-me bem.
Dizia isto a moça de uma
escola nocturna qualquer,
sentindo a verdadeira dimensão
de parecer rapariga
e ser mulher.
1990
9
a origem

o belo pode estar escondido


no amarelo-índia
pigmento feito
com mijo de vaca sagrada
alimentada em exclusivo
com mangas

o mundo lá fora
mostra o horror violento
no fundo
os nossos resíduos

felizmente
também eles escondem alguma beleza
a que resta
2008

10
sinais do tempo - sinais do corpo

a tentativa humana de originalidade


falha
o esboço de um estilo próprio
está condenado
levantar o canto esquerdo da boca
ao rir
retorcer as duas mãos face ao incómodo
daquela maneira
é a memória de uma era antes de nós
são os avós a falar dentro do tempo
e nada mais a fazer
do que cumprir

2001

11
urso na jaula

quando era menino


em visita ao zoológico
intrigava-me ver
as jaulas vazias

num segundo olhar


via o animal
a um canto
onde se enroscava

quando entram em minha casa


ouço vozes perguntarem
por mim

muitas vezes
no meu canto
― escondido

2008
12
visão de amor

sou capaz de te descrever


todas as visões que tenho
e penso serem de amor
(se não forem
paciência)

metralha-me com estrelas


para que sinta teus
abismos
e no vislumbrar
de teu rosto
minha alma vibre
em sismo profundo
donde sai canto de Verdi
em si libertador
e a quimera do princípio
seja mesmo Amor
1991
13
D. COXA

mulher a quem não davam crédito


dizia que o mar podia ser
metálico e ondulado
as ondas junto à praia, flocos de neve
reconheciam nela no entanto um dom
era única a entender
o canto das gaivotas
2008

14
quando

quando és levado a definir


felicidade
ficas sem saber se é
pergunta sem resposta
ou auto de fé

qual a maior importância?


versos de Mallarmé
ou filme a preto e branco
na cor da tua
imaginação?

perplexo
imploras auxílio
aos sábios de antigamente
mas talvez
apenas te responda
um pc
que fala contigo
mesmo quando estás só.
1998
15
VISITA

em sonhos recebi
a visita de mim próprio
vinha de um passado distante
onde o sofrimento me rodeava
sabia dele
não o conhecia

falo do meu país


português suave
amassado por indiferenças
por violências de violentos
escrevo sobre o sistema
brandos costumes
aparentes
a paz impossível
o inferno dos torturadores
o tormento da consciência
o ter de actuar

lembro-me que era


incómoda a minha apatia
decidi abandonar tudo
Pátria Família
quando a pressão apertou
e foi necessário assim fazer

dizem que tenho sorte


(assim foi toda a vida)
fui salvo de ser herói
por um Abril luminoso
2008
16
ano lectivo

só agora começou
quando da vida prática
nos desligámos

durámos até que um dia


parámos de o fazer
para aprender a viver

foram muitas as tarefas


cumpridas falhadas
e hoje somos
libertos de quase tudo
sem qualquer aspiração

a paz é total
só agora começou
o nosso ano lectivo
2008

17
Filha de Ryan

é preciso ver mais uma vez


a filha de Ryan
para sentir a doce agonia
do amor que assalta
toma
rasga-nos a alma
e mostra a seta
no teu sentido
2001

18
magia

enorme ironia reconhecer


que a magia
não mora sempre ao lado
pode estar na casa
onde crescemos
onde vemos crescer
alguém

cuidado
não percas o endereço da magia
por teres mudado para outro espaço
crê
pode escapar-te
a menos
que dela tenhas levado
a semente
que baixinho
nas noites de agonia
te diz
não te abandono
serena
continuo aqui
2008

19
crime

no começo roubamos
enciclopédias
mais à frente
dinheiro

é a ordem dita natural


das coisas
e das loisas
e das tragicomédias
1988

20
escolher o mar

vem, desejo de navegar


da raiz do pensamento
provoca a reunião de tudo o que
recebi na arca dos avós

levo o gato de menino


representante dos bons olhos
que tinha
a perene vontade
do regaço de minha mãe
para minha desorientação
a bússola cor de ouro
comprada na rua do arsenal
e para sem vergonha
mostrar minha origem
meu lastro de cultura
a espada de cana
que não fere não fende
não mata

vou para o mar


água e céu
com tubos de guache
pastilhas de aguarela
escolhidas as cores
azul verde branco
e na arca nada mais
na cabeça a liberdade
o cheiro dos teus cabelos
a falta da tua mão
2008
21
mundo perfeito

é o da dominação dos demónios


que convivem no nosso interior
com o leite que bebemos
o queijo de cabra comido
e as vibrações dos nossos tímpanos
quando Schubert nos entra na cabeça
ainda fica a dúvida
sobre a questão:
dominados
ou adormecidos?
2002

22
oferta de café

na vitrina o açúcar condenado


prateleiras com guloseimas
chocolate mal parado
em suportes garrafas fortes
de líquidos ainda
mais fortes
em travesti de sandes
tostas mistas sandwichs

na mesa
oferecida
cabelo curto
fuma olha sonda
a clientela
ao lado
no banco do bar
siamesa colega

na oferta e procura
vida fácil vida dura
passa a vida no café
e eu
ao pé
1994

23
Dedicatória

Foste ideia indefinida


Com arestas
Que não decifro.

Surges
Na noite renascida
Tornas-te nítida
e hesito.

No fim
A luz
Um foco nu.

Sinto-te
Reconheço-te
És tu.
1984
24
Cabelo ao vento

Cabelo ao vento,
a liberdade.
No pensamento,
uma igualdade.

Corre comigo,
ave-surpresa.
Conduz-me a ti,
mãe-natureza.

A ti cheguei,
mas, crueldade,
tu não és mais
a felicidade.
1971

25
o ciúme

o ciúme é um
cordão rastilho
onde o final é
explosivo
o bem estar
como é hoje
entendido
não é remédio
é só
adesivo

1988

26
T.

só porque há nuvens
não há lua?
só por te vestires
não andas nua?
só por não te ver
te esqueci?
cuidado!
igual amor ao que te tenho
e o desejo em si
também um dia
pode crescer
em ti.
1989

27
zona fabril

zona fabril bem


demarcada
foto no peito
já desbotada.

fato macaco
com zipes
cara feia de porteiro
com tiques.

ar esverdeado
poluição
homem com pulmão
na mão.

ouve-se calão
homens trabalham perto
morre o número dez
avança o onze, decerto.

tu, homem de tasco,


que o ar contamina,
serás teu carrasco
e tua guilhotina.
1980

28
Tchaikowsky

homem aparecido para a música


com o condão de nos mostrar
novo caminhar
para um belo, já conhecido.

vida torturada pelo desejo


que o impelia
para as relações
que ele próprio
achava serem notas dissonantes
na partitura desses tempos.

esqueçam os terrores e os amores


por que passou
e lembrem as melodias
que do seu sofrimento
brotaram
belas, únicas, inesquecíveis.
2002

29
receber

ao dizer meus versos aos outros


no dar minha escrita a quem passa
não sou muito diferente
do pedinte que nos aborda
que nos diz que não tem fome
mas insiste numa moeda
para o cafezinho

quando me ouvem
me referem a leitura
ao darem-me a palmada
nas costas
já me cheira a café
se sinto o olhar atento
então saboreio a bebida
em chávena aquecida

2008
30
à estrada

aconteceu não ter dinheiro


e as dores que vieram
só tinham um nome
paragem
um magnífico automóvel negro
feito para a estrada
pedindo viagem
mas com o tanque quase vazio
para voltas ao quarteirão
tinha o tédio dos marinheiros
em terra
Biarritz St Malo Bayeux
esperem por mim
ainda há esperança.
2002

31
negro mão de obra

chegada.
o branco é branco
o medo é preto
o pé pisa pisa
o pé é esqueleto
coqueiro está longe
mulher não tem rosto
o mar está no meio
voltar
é o meu gosto

mas há a aventura
existe a procura
mão de obra sou eu
mão de obra gemeu

------------------

eu gosto daqui
(tem branca bem feita)
eu gosto daqui
(comigo não deita)
1972

32
alto da serra

ex pastor

volta para teu pastoreio


e controla os teus desejos
protege teus pensamentos
dos lobos da inveja

alto da serra

prepara músculos para trabalho


enche peito para subida
eleva braços para recepção
une os nervos num feixe
concentra tudo num ponto
sente frio nas narinas
afasta instintos de guerra
e chega ao alto da serra

2001

33
grande mentira

no princípio era o dia luminoso


numa estrada sem fim
não me prometeram nada
a promessa era o que via

nem sequer me apercebi


que tinha o rio aos meus pés
cedo aprendi a estar bem
a encher os olhos da vista aérea
das plantas alinhadas
que faziam pela vida
a minha azul existência

quando descobri o mar


fui por ele rodeado
sei o que é o mar alto
antes de conhecer a praia
não chegou a ser dor
mas somente uma marca
a saudade na mão esquerda
na direita o novo mundo novo
2008

34
mãos

quero ir de mãos dadas


contigo
por todos os palácios edifícios
jardins e lugares
esplêndidos deste mundo.

a tua mão será a doce ligação


ao mundo do irreal
da pintura
dos livros
dos instrumentos musicais raros
mas o tempo foge
então
como já vi muitos desses lugares
sagrados
museus, museus, museus
e contigo já não irei a muitos
resta-me a tua mão
a tua imaginação
para de mão dada
fazer a viagem imaginada
de dar a volta ao mundo
sem limites
e encontrar nas tuas veias
o caminho para o sonho
e conseguir levar-te
a ligar
o teu pensamento aos nervos
dos meus olhos
e transferir de mim
antes que a memória esgote
as viagens armazenadas
para que delas desfrutes
e sejas
o meu duplicado
em amor autenticado.
1998

35
se me lembro?

estremeceu e parou
sentiu uma luz forte em cima
ouviu perguntar
lembras-te dela?
deviam estar a gozar
queriam o seu embaraço,
por certo.

cego pela luz


atordoado pela questão
repetiu
se me lembro?
e há algum minuto sem a ver
dentro da minha cabeça?
sua pele prometia sempre
seus olhos eram risadas
com o choro em fundo
seu corpo em geral
uma mistura de fêmea desejo e cor
seu andar
dramático ao afastar-se
ondulante à vinda
se me lembro?

sufocou, tudo andou à roda


e caiu, fulminado.
2001

36
E com a certeza, a dúvida

Pergunto.
Quem me responde?
Amplificação de meu cérebro
Em agonia de fome?
Estás comigo?
Estás comigo?
Escuto.
Ritmos compassos silêncios
Tempo de meditação
Memórias sonoras em vão
Estás comigo?
Estás comigo?
Digo.
Tens de estar.
Já te sinto. No espaço.
Na falta de tuas notícias
A certeza que caminhas
para mim.
E com a certeza, a dúvida:
Estás comigo?
Estás comigo?
1991

37
Carcavelos agora

ruas estreitas abstractas


corredores na folhagem
casas com jardim
fora de época ou talvez não
local resignado
da calma em contra mão
aceitar que assim é
nada esperar do que já foi
em sonhos descobrir restos
de quintas já sem verdura
paraísos condenados
monumentos de amargura
2008

38
responsabilidade do poeta

escreve sempre só
num acto único
pensa que um dia
alguém o ouve ou vê

essa folha essa voz


pode mudar a vida a outro
por isso se escreve de impulso
e depois se sofre

quem se expõe mais que o poeta?

só há uma poesia
a que transporta uma verdade
sem a impor

ao poeta por vezes são dadas


as ideias dentro da cabeça
mas pode acontecer
ter o palco por um minuto
e a mensagem fluir

daí a grande responsabilidade


de ser poeta
2008

39
mensagem

quero dizer-te que compreendo a tua fúria


que arrasta escolhos como eu
e produz a espuma alva
de um branco exasperado e manso
ponho-me no teu lugar sofro o balanço
de uma ira ora contida ora explodida
de um vazio amargo que não satisfaz
de uma azia de borrasca com cascos
deixando passar águas envenenadas
de fins insondáveis
que nos surpreende no nosso próprio emissor
por terem ódio
quando devia haver amor
pensa que visto a tua pele dez minutos
na fase do tornado
do vendaval dos resolutos
acredita que me sinto placa de cobre
onde o estilete do teu desagrado
grava as marcas ditadas pelo momento
e de seguida
banhos ácidos me envolvem
fica a garganta asfixiada
a mente neutralizada
e tudo porque nesse instante
entendo o cristal do núcleo
do teu descontentamento
1988

40
África na memória

a memória envolve e condena


volta em manhãs de coração frio
com feixes solares de luz
que no imediato me cegam

nos tornozelos o roçar das ervas


das canas dos ardores
nos olhos a confusão dos verdes
nas narinas o cheiro das queimadas

o interior da terra
longe do mar longe de tudo
deixa marcas africanas nos dias futuros
na tristeza de um não voltar

milagroso é o azul do Índico


tinta passando para outros mares
e nesta fronteira de Tejo Atlântico
revejo sinais mato saudades
2001

41
Pedra

A pedra que cai,


Sem o saber,
Rola como eu,
Sem querer.
Sonha com o meteoro
Donde se desprendeu
Lembra o espaço sideral
Onde se conheceu.

A pedra,
Essa,
Sabe que se vai desintegrar.
Eu,
Que te amo,
Sei que é esse amor
O meu fim
O meu destino
O respirar
O expirar.
1984
42
BEM-ME-QUER

odeio tratar-te mal


e mal tratar-te pode ser
não ter tempo para te dar

neste vaivém de emoções


vem sempre mais do que vai
e voltamos aos maus tratos

não precisamos mais da lua


nem das ondas longe da praia
para a condenação
de um destino
que não quis

este é um poema de amor


verdadeiro antídoto
para ter junto à cancela
parte iniciática do culto
aos vegetais
desta horta acolhedora
onde desejo que a minha
passagem
deixe um rasto de alfazema
2002

43
locais

não é dividida a casa onde vivo


a visita guiada organiza sem
querer
vários quartos
diversos interiores
e também um céu aberto

o interior mais importante


qual gás acabado de
despressurizar
ávido de expansão
tudo contamina
e chama-se imaginação

percorrer a casa
é trilhar escadas soalhos
pisados pelos presentes
é sentir que os ausentes
a não abandonaram
e nem as ideias deles

44
o céu aberto
começa no céu
desce à outra parte da casa
a rua
agora mais apetecível
o mesmo progresso
que a inundou de
comboios autocarros carros
determinou que as rotas do
necessário
se deslocassem quinhentos metros
e a vila voltou a ser vila

há ainda o armário
da divisão habitada
pelo sentimento
de que o que assim é
poderia ser diferente
mas este sentir sabe
que deve a sua existência
ao que foi acontecendo assim
e é numa das suas muitas
prateleiras que
quero arrumar-me
de vez
2oo8

45
porque

no fundo
considero catástrofe
cada vez que te perco
– sejas tu quem fores

o desvario
em que entro
é a vertigem oposta
das horas em máscara
de segundos
indo a bailes
doutros mundos
1989

46
registo

fica aqui escrito


num local sem referências
que tudo o que escrevo
não tem mais que reticências
o difícil é parar
a corrente que não vem
o fácil é conter
o que a vida não tem
registo no espaço curto
o que não quero dizer
pára a mente escreve a mão
com a força por reter
num repente de ilusão
o que a mente
mente à mão
1980
47
percentagem

quando estou no escuro


vejo melhor
as fracções de mim
consigo detectar
parte importante do passado
arrumado em gavetas
se uma toma a forma
de álbum fotográfico
outra a de objectos diversos
há ainda o fragmento
puro campo magnético
entre um ente querido
e um livro de infância
para sempre
encastrado na mente
48
que dizer daquela fatia
mais ausente que presente
responsável pelos filmes
que só correm na cabeça
feitos nos estúdios
do meu espaço mental
com filmagens exteriores
em todas as ruas e estradas
onde a mente se excede
e muito do décor interior
se passa em casas e hotéis
projectados para a felicidade
demolidos pela vida

mais um espaço é criado


pela vontade plena de viver
e esse não deixa ver o conteúdo
zonas há que adivinho importantes
com rótulos indecifráveis
mas sinto o seu peso
no chamamento das palavras
apagadas

estas as partes encontradas


― no meio delas
onde estou eu?
2002
49
tu e ela (Tuela)

apronta-te pela manhã


e sobre o teu bonito eu
coloca outra que não tu.

tens o disfarce feito


só que não podes
estar
a jeito

porque aprontar pela manhã


um outro eu que não o teu
deve ser contrariar
um génio-deus
de grau três
que em discurso de sapiência
informou
não querer ser incomodado
outra vez.
1990

50
garantia

garanto-te que quando me vires passar


no automóvel vermelho
lá dentro, pomposo, não vou eu.
juro-te que não.

eu seguia a pé
a olhar as folhas já caídas.
viste mal
não reparaste em mim
desculpo-te
não sou rancoroso.
1987

51
resumo

os clássicos
não conheciam o rei
mas amavam-no

na idade média
ninguém era só padeiro
mas sim o padeiro da aldeia

durante a renascença
a mãe educava os filhos
sem livro de instruções

Napoleão abriu
e fechou a época
das guerras regionais

os novecentistas descobriram
que ligar os povos era bom
para o bem criaram
a máquina a vapor
e o telégrafo
nunca tanta gente junta
foi tão feliz
parecia possível
a felicidade

quando já eram vinte séculos


pagou-se a factura
o bendito desenvolvimento
foi a morte de milhões de seres
em guerras e depressões

52
para onde vamos?
então onde estamos?

na época da mentira
da promessa feita e ouvida
sem ninguém acreditar
no tempo da eleição do líder
para o nomear inimigo
e o poder contestar

substituto de deus e ideais


agiganta-se novo mal
o contrato
guião apenas válido
quando assinado entre pais e filhos
clausulado no amor possível
e nos direitos do homem

cada indivíduo
não pertence à sociedade
só a si próprio pertence
e é sem esperança
que escrevo estas linhas
individualmente
2008
53
motim na cadeia do meu corpo

tantos anos de prisão


os nervos a obedecerem ao director cérebro
este a comandar tudo
as veias sem outra hipótese
levando-lhe submissas o precioso sangue
os membros garantindo que esse cérebro
estivesse presente em reuniões
mesmo em locais distantes
para o comandante se encher de louros
os olhos comprados a troco de umas lágrimas
contando tudo o que vêem
sem pestanejar
e muitos outros
com formas de cordões tubos e sacos
na prisão de tantos anos
dentro do meu corpo
veio o dia da revolta
provocada pelos dedos
que deixaram de agarrar
mas isso sem importância
o grave é nunca mais
uma carícia ser o que era
foram os dedos que iniciaram o motim
agora receia-se a turbulência
a grande revolta está em marcha
de mim para mim
quem semeia o motim
colhe o nada
2008

54
eu para escrever

eu para escrever
não devia trabalhar
no que dá trabalho

eu para escrever
devia concentrar
todo o meu ser
em ver

eu para escrever
como deve ser
terei de esperar
até
morrer
1997

55
a ti que amo

deixa escrever
expresso para ti
o que toda a gente vê
e eu sempre
senti.

paixão por ti
que mesmo quando a sinto branda
queima em fusão
interior
e então eu chamo-lhe
amor, em estertor.
1989

56
ponte do Freixo

novinha em folha
mais uma sobre o Douro
perguntaram ao Rio se a queria?
a ele que sonhava que
em cada uma das próximas décadas
lhe retirassem
uma a uma
todas as outras.

as pontes
normalmente são belas
mas o Rio era mais belo
e feliz
sem elas.
1995

57

só posso fazer coisas que tenham


hipótese de me agradar
em pleno
se forem coisas de que também
me possa arrepender
de as fazer

que felicidade
ouço jazz!
1989

58
NA MORTE DE UM POETA REVELADO
- antónio reis -

nas rugas de um olhar


preocupado
recebo vibrações da não existência
mas ao mesmo tempo
do nascimento do poeta-irmão
desconhecido.
de filmes retenho imagens
ar de outras paragens
das letras arrumadas
em poema
vejo o véu em rodapé
esvoaçar
ainda esboço
para se elevar
como só acontece
quando a poesia
move mentes
sentimentos
e ao quotidiano
ergue monumentos.
1991

59
sem título

prazer porque hoje visto sobretudo


agonia pelo dia de ontem
graça na surpresa do que virá
inércia pelo que veio
sorrir não custa o que diziam
as rugas ocorreram de vez
a viagem pode durar
estaremos à chegada?
1997

60
sobre o perfume

venham os ventos do Norte


as chuvas benéficas
as noites de lua e pensamentos
para que as flores
em botão se abram

de algumas é sina
não morarem em grinalda
botoeira ou bouquet
mas serem colhidas
para o supremo sacrifício

esmagadas combinadas depuradas


entram na grande roda
do fabrico das essências
pobres flores sem cor
perdidas do esplendor
em líquido convertidas

mas a história direita


nas tortas linhas escrita
vai a um final feliz
torna a ser bela a flor
quando espalha seu perfume
na pele de uma donzela
2008

61
TEATRO 90

sabes que existe, supões…


pensas, ousas e, talvez,
as ideias que tiveste uma vez
em ti morram num pós-parto,
então,
surpresa da noite,
no teatro tu encontras
frente a frente
a tua ideia com a fala do actor
e noite fora
ouves em bom som
o que tinhas pensado
numa tarde,
mas agora noutro tom,
vindo da voz doutro dono
para te pôr sem sono
Rei Lear em fim de Outono,
muito feliz!
1990

62
para um dia leres

és a quinta dimensão
numa vida de eixos dois
mas levas contigo o senão
de trazeres à vida
o bafo de fresco quente
que já tinha abandonado

num dia
de outros diferente
ditaste a esperança desesperada
e agora receio
como quem está em terra
e teme naufragar
1990

63
és fácil – és difícil

pelas letras te conheço


nas imagens te completas
enches-me a cabeça
com o que me adoça a vida

passaste a ser o molde


do meu novo formato
esqueci o que era dantes
olho para mim
através dos teus olhos

sei que me proteges


e em mim soltas
o doce pássaro
da juventude
é difícil conter-te nos versos
é fácil amar-te
2008

64
só a ti

amor é ter uma mulher


que, de chofre, te diz
passei as tuas calças a ferro
e, olha, fui feliz
é ter uma mulher
que te roga uma praga
mas por ti aspira, respira,
e anda magra
é ter uma mulher que, por chalaça,
diz à amiga: o meu homem
é quem me desgraça

porém só a ti garanto
que é o amor que está por trás
do meu pranto,
e que por ele sofro,
e sofri,
ah, mas isto só a ti digo
1990
65
luzes verdes

quem te enviou
vinda de uma Atlântida
já com o destino vector
de teus versos esmeralda
me acertarem?

não bendigo nem amaldiçoo


o destino arco de tensa corda
que na volta do século disparou
verdes preciosas pedras
contra o meu sossegado desespero

aceito sim esse acaso


momento de pura luz
no fulgor das tuas palavras
suaves embatendo
no realismo feroz das frases
que eu sou.
2001

66
ARQUITECTO

não me falem de estruturas


esqueçam as palas as torres
ou então
juntem tudo
e façam outra cidade
onde me sinta bem

um banco de jardim
um canteiro que promete
paragem de autocarro
para à noite
sob a chuva miudinha
regressar ao meu cartão
de sem-abrigo

arquitectura
é tudo o que acontece
entre um corpo
e outro
2008

67
Hino

meu amor
quando te vou comparar
viras matriz sozinha
és bela se risonha
mais bela quando triste
pois em ti
o que deveras te ilumina
é teres descoberto o amor
e tarde

a tempo, dirás tu!

meu amor
esforço-me por transformar
o negro asfalto de todos os dias
as horas escorridas a custo
em tempo de repouso
longa caminhada
viagem de eternidade
1996

68
ainda

ainda existe a cidade entre nós


onde a vida em rodagem continua
poderia procurar aqui avós
poderia procurar a verdade nua
rostos de um igual diferente
meu irmão meu igual
faces afinal de gente
onde parou o tradicional.
1971

69
aparição

tu és a inesperada
aparição
que tudo altera alivia
revela
medida da grandeza
é a tua entrega
tu pelo Amor
tocada
tudo ultrapassas

eu fui agente infiltrado


por querer
mas sem saber
que te despertava
que te provocava
a entrega e fusão
e o teres-me reduzido
a estado de Paixão
1991

70
de vez

de vez em quando sinto


a necessidade de olhar
um mapa, de ver em
riscos o mundo posto
em carta, de saber
que já estive ali e gostava
de ir aqui, de lembrar
que neste lugar deve estar
um amigo, recordar que
ao lado assinala um
ponto onde houve
encontro antigo
e, mais que tudo,
saber que há sítios
onde ir, onde voltar
ou puro sonhar.
voo, curvo ou navego
frente a um café
e em sossego.
1991
71
PAVILHÃO DE PORTUGAL

aqui há de tudo
uma vala, comum
muito negro
zé ninguém
bandos de mirones
capacetes
aturadas inspecções
pouco muro
muito murete

uma ponte, que flutua


em edifício que é barco
e um barco
que foi falua

na rectaguarda, tanto barulho


que silêncio na beira Tejo!

pavilhão de Portugal
um avião margem sul
meu país bem escuro
meu horizonte
muito azul.
1997

72
crise

com força, bate tuas pálpebras,


range teu esqueleto
na tempestade.
emana do teu cérebro o veneno
que paralisa
revolta-te, vomita, descansa.

a escolha é cíclica
mas abate-se em ti,
apontando o caminho − seguro,
e tu sonhas contigo
e sonhas com teus sonhos
estimulado por um ideal
que não existe,
que sentes real.

amaldiçoo a vida contabilizada


amaldiçoo a vida morta
amaldiçoo o esquema do dia a dia
o objectivo rasga, amputa, dilacera
mata.

acredito que mais felizes serão


chafurdando no sucesso
que antevejo
tento salvar a semente
que antes de tudo
está o fraterno beijo.

compilada com amarguras


de hoje − e já tão antigas,
editada por um desejo
de soprar
publico hoje a sombra
do meu estar
e sobre o destino
erijo
um marco-pilar.
1972
73
ALTER-EGO contra AVATAR

foi um momento sublime


aquele em que me libertei de Avatar
e assisti ao nascimento de William

descobri dentro de mim


esquecidas
necessidades de viagem
quando varria no chão
restos de asas cortadas

mais razoável
recorri então
às minhas mãos
torcidas
cravadas na vara
tentei elevar-me
num salto em altura

tarde de mais
nada a fazer
foi então
que tudo se iluminou
só pude dizer
William,
toma o testemunho
vai tu por mim.
2008

74
PÉS

Deixamos marcadas na areia


pisadas de desencanto
e, no entanto,
é nessa maravilha
do claro-escuro,
agora bem escuro,
que melhor apreciamos
a luz que nos fez
faz e fará vibrar,
salpicando o vindouro
tempo duro
de lembranças dos pés
na areia marcados.
Tomara que essas pegadas
não desapareçam nunca
para, num qualquer crepúsculo,
as poder comparar
com as marcas em mim
deixadas
e que me tornaram
tão diferente.
1990

75
Tomai nota

Quero contar-vos a odisseia


de uma vontade súbita
olhar pela janela
esperar ver Berlim
e, ai de mim,
ser Badajoz.
Mas, alegria suprema,
lugar comum de
nós os dois,
seria tê-la, ainda,
a sós,
em Berlim e Badajoz.
1989

76
VENENO

veneno
esperas por mim
sob muitas formas
és o trabalho que arrasta
és a bicicleta que não tive

veneno
bem podes esperar
disfarça-te de água ardente
bebo-te e sobrevivo
ébrio amaldiçoo-te

veneno
vejo-te como um touro
que avança em força
mas escondo-me no burladero
de mim mesmo

veneno
quantas vezes tenho de errar
até te convencer
que a dose fatal sou eu próprio
e sem antídoto

veneno
sai de teu covil
enfrenta-me
espera-me de frente
faz de mim um herói

veneno
tentemos tudo de novo
apaga rótulos
risca-te dos letais e parte
comigo à conquista do nada
2008

77
1986

Sou o poeta que jamais


escreverá
o que hoje pensou
não escreveu,
não registou.

Paciência.
Poesia arrasta a vida,
e leva os anos.
O caminho tem uma ida.
Paciência.
Não voltamos.

Juro solenemente
não escrever o que
não sinto.
Minto descaradamente
ao jurar
que nunca minto.
1986

78
Antilook

dedico estas linhas tortas


para direito te dizer
que estares fora de
moda
é o teu maior encanto
e que devia haver em
cada freguesia
uma estátua a quem
como tu
fosse autêntico
genuíno
simples

até comecei já a recolher


fundos para a tua
pois sei que
como toda a gente
procuras a felicidade
mas a uma velocidade
sem pressa
o que já não se usa

quero-te garantir
que vais ser muito feliz
já és feliz
e o que te ajuda
nessa difícil arte
é seres ingénua
não te promoveres
acreditares no Pai Natal
emocionares-te
seres fiel aos bons
princípios

desejo-te do coração
o maior bem estar
bastante paz na Terra
sempre sempre
a ver o mar
2000
79
Ter

pelo crivo da peneira


passo
minha vida
inteira
esgravato resíduos,
resultas tu.

talvez sejas destilação


fraccionada de um
percurso,
o éter mais fino,
um recurso.

se amor é descoberta
descobri-o em ti.
se entrega é dependência
dependo de ti.
o que se chama ter,
só te tenho a ti.
1996
80
tenta fazer hoje

cada boa acção vale por si


ser notada ou vista
não importa – é mais uma
em algum local desta galáxia
será registada como acto
único enorme

do tempo nada sabemos


dos princípios e dos fins
temos a magia do conforto
na crença num bem maior
uma cálida noção ―
serve o teu semelhante
pratica uma boa acção
2008

81
TÁBUA:

82
4 anjos na praia
5 chita
6 Raiz do Tempo
7 As coisas boas da vida
8 pintura
9 A rapariga do pescoço doce
10 origem
11 sinais do tempo – sinais do corpo
12 urso na jaula
13 visão de amor
14 D. Coxa
15 quando
16 visita
17 ano lectivo
18 Filha de Rayan
19 magia
20 crime
21 escolher o mar
22 mundo perfeito
23 oferta de café
24 Dedicatória
25 Cabelos ao vento
26 o ciúme
27 T.
28 zona fabril
29 Tchaikowsky
30 receber
31 á entrada
32 negro mão de obra
33 alto da serra
34 grande mentira
35 mãos
36 se me lembro?
37 E com a certeza, a dúvida
38 Carcavelos agora
39 responsabilidade do poeta
40 mensagem
41 África na memória
42 Pedra
43 BEM-ME-QUER
44 locais
46 porquê
47 registo
48 percentagem

83
50 tu e ela (Tuela)
51 garantia
52 resumo
54 motim na cadeia do meu corpo
55 eu para escrever
56 a ti que amo
57 ponto do Freixo
58 só
59 NA MORTE DE UM POETA REVELADO
60 sem título
61 sobre o perfume
62 TEATRO 90
63 para um dia leres
64 és fácil – és difícil
65 só a ti
66 luzes verdes
67 ARQUITECTO
68 Hino
69 ainda
70 aparição
71 de vez
72 PAVILHÃO DE PORTUGAL
73 crise
74 ALTER-EGO contra AVATAR
75 PÉS
76 Tomai nota
77 VENENO
78 1986
79 Antilook
80 Ter
81 tenta fazer hoje

84
Nota da editora

Com PSM-QUATRO, chega ao fim a organização dos versos de


carlos peres feio, publicados durante um pouco mais de cinco
anos, em http://podiamsermais.weblog.com.pt.

O Poeta, como sempre nos habituou, usará a sua zen-


benevolência e, perante as nossas eventuais falhas, sorrindo com
bonomia, murmurará: é o Destino!

Terminando, já prenhes de saudade, deu-nos vontade de reler a


tradução de C.H.Quevedo para citar, deformando, o final de
“Ítaca” de K. Kavafis

PSM não nos enganou.


Assim nos tornámos mais sábios, mais experientes,
teremos porventura percebido o que os PSMs significam.

Até sempre.

Lisboa, 6 de Janeiro de 2009.

85

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