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Quando me chegou à mão a lei n.º 45/96 - que altera o regime jurídico do tráfico e consumo
de estupefacientes decretado em Janeiro de 1993 - lembrei-me de um antigo professor de
História Institucional e Política que sublinhava o efeito perverso e contraditório das leis que
saíram da Revolução Francesa, que perseguindo uma finalidade ontológica que se
consubstanciava na preocupação com o exercício do direito de cidadania, determinaram o
rolar infinito de cabeças nas guilhotinas justiceiras colocadas no largo defronte das
Tulherias e que um paradoxo da História veio a entregar-lhe o nome de Place Concorde.
Vem isto a propósito do art. 59º daquela lei que tipifica as chamadas "condutas não
puníveis" e que começa da seguinte maneira:
"1 - Não é punível a conduta de funcionário de investigação criminal ou de terceiro
actuando sob controlo da Polícia Judiciária que, para fins de prevenção ou repressão
criminal, com ocultação da sua qualidade e identidade, acertar, detiver, guardar,
transportar ou, em sequência e a solicitação de quem se dedique a essas actividades,
entregar estupefacientes, substâncias psicotrópicas, precursores e outros produtos
químicos susceptíveis de desvio para o fabrico ilícito de droga ou precursor."
Á primeira vista estamos perante um passo significativo no combate ao tráfico de
estupefacientes. A lei permite infiltrações de agentes policiais nas redes de comercialização
da droga o que, do ponto de vista operacional, traz aparentemente mais valias na eficácia da
prevenção e da repressão criminal. É uma atitude aparentemente progressista e avençada.
Porém, no nosso entender, é uma disposição demagógica, populista e cujos efeitos podem
acabar nas guilhotinas da Place Concorde.
1 - A propaganda política
2 - O Agente infiltrado
Como se vê, a grande novidade do "Agente infiltrado", do ponto de vista prático, afirmou a
instituição do "informador" como uma figura parapolicial, o que significa que a norma não
comanda a vida. Condiciona-a, mas não a determina. Ao creditar identidade ao "terceiro",
i.e. ao "bufo" a lei veio recuperar uma prática policial que a moderna investigação criminal
nunca desprezou e que obrigou a dezenas de anos de mentiras em relação ao regime
jurídico, utilizando velhos formulários que começavam invariavelmente "segundo
informação anónima", "segundo um telefonema de pessoa que não se quis identificar" para
que fosse possível accionar mecanismos policiais. O "bufo" passava a informação ao
Agente, a troco de umas imperiais com tremoços, e depois da entrada na União Europeia,
ganhando a dignidade que ser europeu exige, a troco de imperiais com camarão, o Agente
passava a informação ao Chefe, este ao Inspector, este por sua vez ao Magistrado, e embora
todos soubessem que a matéria em apreciação vinha do "chibo", formalmente todos faziam
de conta que o tal "telefonema anónimo" era a poção mágica que permitia apreender 2, 3 ou
4 toneladas de haxixe.
É a única virtude do art. 59. Permite ao polícia assumir a sua relação com a informação
oriunda do mundo criminal sem mentir e, por outro lado, é o tardio mas sempre louvável
reconhecimento de que sem este mundo de informações clandestinas o trabalho de polícia é
uma abstracção.
Ninguém ignora, sobretudo quem conhece os estudos e as experiências mais avançadas
sobre a "infiltração de Agentes", particularmente aquelas que foram feitas pela DEA em
países da América do Sul e da América Central, que não é possível encarar uma política
séria de combate ao tráfico de estupefacientes que seja alheia á troca de informação, de
ajuda mútua, de colaboração recíproca entre as polícias de diversos países, elegendo como
tarefa central de toda a estratégia repressiva o desmantelamento das redes de
branqueamento de capitais.
Enquanto isto, é preciso penetrar no interior do fenómeno imbricando-o naquilo que o
potencia, que o anima e lhe garante a continuidade, ou seja a explosão demo-urbanistica
que nos últimos cinquenta anos modificou a geografia humana do mundo produzindo os
grandes concentrados metropolitanos. É certo que as drogas acompanham a humanidade há
séculos, mas é axiomática a constatação que foi no interior das grandes metrópoles que
cresceu de forma exponencial o consumo de heroína e cocaína e a partir daí, irradiou de
forma capilar a todo o país, sendo regra que se repetiu em todos os países desenvolvidos do
Ocidente.
Como assinala Ruffié, a necessidade de consumo droga nasce do garrote que asfixia os
mecanismos de coesão das sociabilidades. Emerge entre os interstícios deixados pelo vazio
dos laços psicoafectivos de solidariedade horizontal e vertical, surgindo a metrópole como
o palco desagregador de todas estas relações sociabilitárias e, por outro lado, como a
principal protagonista e destinatária do grande tráfico porque nela surgem as condições
psicológicas, afectivas, sociais e culturais que predispõem aos maiores consumos.
Discutir tráfico e consumo de droga iludindo a história que lhe determinou o protagonismo
que hoje assume no quadro das preocupações judiciais de todo o mundo, é ignorar que as
sociedades metropolitanas contemporâneas são o imenso receptáculo onde tudo se joga:
traficantes, polícias, consumidores, magistraturas têm aí o seu privilegiado terreno de
confronto, tal como é nas metrópoles que se jogam e se decidem as políticas criminais. Ora
é sabido que a política e polícia resultam do mesmo étimo - pólis. Se a política é a arte de
administração da cidade, a polícia não passa do instrumento auxiliar da política para a
administração da pólis. Pensar numa boa polícia com uma má política é inverter os dados
do problema. No caso da legislação sobre o "Agente infiltrado" a política criou condições
para que se desenhe uma má polícia, mas como étimos são étimos, a culpa não será da
polícia mas sim da política quando as guilhotinas da Place Concorde deceparem o direito de
cidadania que o populismo da propaganda garantiu ao produzir o texto legal em apreço.