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Lara jogou uma pá de terra sobre o caixão de sua irmã gémea Mabel, logo após seus pais
fazerem o mesmo. Ela fora assassinada com um tiro nas costas após ter sido brutalmente
espancada. Era o fim que todos esperavam que ela tivesse, afinal, a bela Mabel, com
apenas dezanove anos, se desviara a muito tempo dos bons caminhos. Cortejou a
criminalidade, usou drogas, roubou e se prostituiu. Motivos de sobra para que a jovem
fosse repudiada pelos vizinhos e até mesmo pela irmã. A jovem noviça Lara era o
completo oposto da irmã. A começar pela opção de vida, que decidira aos quinze anos,
quando se mudou para um convento. Disse ter tido uma revelação enquanto observava a
cidade de Nova York do alto do edifício Empire States.
Porém, resolveu abandonar o convento para prestar apoio aos pais naquele momento tão
triste de suas vidas. Enquanto se afastava do túmulo, foi interceptada por um homem
moreno, de sobretudo, que observava a cerimonia de longe.
- Boa tarde – disse amistosamente com sua voz alta e bem empostada – Tem um minuto?
- Para que?
- Sou o agente Stone, Peter Stone, da polícia de Nova York. Estou investigando o
assassinato de sua irmã.
Lara o fitou desconcertada pela sua aparência máscula. Então, meio que voltando a si,
respondeu o mais formal que pode, punindo-se internamente por tê-lo olhado com
cobiça:
- Nada mesmo. Estive até ontem em um convento em Ohio, revi meus pais hoje e ainda
nem conversamos sobre Mabel. E na verdade, nem quero conversar sobre isso. Peter
sorriu e a observou de alto a baixo. Seus cabelos ruivos e lisos, presos em um rabo-de-
cavalo, contrastavam bastante com sua pele branca e seus olhos azulados. Uma jovem
naturalmente bonita. Sem maquilhagem ou roupas bonitas, escondia seu corpo sob
vestes longas e escuras. Mas tinha um mistério em seu olhar que a tornava muito
interessante.
- Bem – continuou ele – vou deixar meu cartão com você. Se souber de algo, alguma
novidade, quiser ligar para falar qualquer coisa, meu número particular está aí.
- Não vou ligar agente Stone e para mim, esse assunto está enterrado junto com minha
irmã. Mabel atormentou muito meus pais, acabou com a minha família... Não quer saber
mais nada sobre ela e o que ela fazia.
E dizendo isso se afastou sem olhar para trás. Peter a acompanhou com os olhos sorrindo
maliciosamente.
Lara entrou no quarto de Mabel acompanhada de sua mãe. Não havia muita coisa ali já
que tudo de valor que ali existira fora trocado por drogas anteriormente. A jovem sentia
o clima pesado que pairava sobre o lugar e, para puxar assunto com sua mãe, falou a
primeira coisa que lhe veio à cabeça:
- Porque?!
- Os vizinhos nos odeiam. A Mabel aprontou muito por aqui. A Sra. Lupin, que mora há
duas casas daqui teve o carro roubado por ela.
- Eles não odeiam vocês. Odiavam a Mabel, mamãe, e agora que ela morreu tudo vai
ficar melhor.
- Espero que sim – olhou em volta com as mãos na cintura, mordendo os lábios – Se
importa em dormir aqui, Lara?
- Claro que não, mamãe. E não se preocupe, ela se foi. Só precisa da nossa oração, pois
não está em um bom lugar.
Pensou em gritar, mas a razão falou mais alto lembrando-a de seus pais, que já haviam
sofrido muito naqueles últimos dias. Não pretendia perturbá-los com sua imaginação.
Vestiu sua camisola o mais rápido que pode e enquanto secava o banheiro, sentiu a porta
sendo forçada. Empalideceu quase que automaticamente, assustada. A maçaneta girava
ruidosamente e à medida que era forçado, o trinco parecia querer se romper. Lara
- Mamãe! – Exclamou com um sorriso aliviado após reconhecer a voz. Então se levantou e
abriu a porta – Desculpe, eu me assustei.
- Eu me assustei, Lara – disse ela em tom enfático – Acabei de vê-la agora mesmo na
cozinha e você já está aqui.
- Não?! – Pareceu intrigada por alguns segundos e, como se quisesse negar algo, sorriu –
Bela tentativa, Lara. Mas se você não estava na cozinha, quem estava? Era você, não
era?
- Tudo bem – disse ela satisfeita com a resposta – Seu pai já dormiu e eu vou fazer o
mesmo. Engraçado, quando eu te vi lá em baixo, tive a impressão de ter visto os seus
cabelos cacheados como os de Mabel.
Lara nada disse, a observando se afastar. Mabel estava na casa, sem dúvidas. Mas o que
ela estava querendo?
- Não esqueça de fechar a janela do quarto, querida. Vai fazer frio essa noite – mexeu
negativamente a cabeça – Mabel gostava de mantê-la aberta para poder andar pelo
telhado quando estava drogada.
- Esqueça isso, mamãe; eu já fechei a janela. E além do mais, Mabel não está mais aqui.
Ainda abraçadas, Lara viu um rápido vulto se mover pelo corredor camuflado pela
escuridão. Apertou a mãe com mais força.
- Lara?
- Sim?
Sua mãe então entrou em seu quarto, deixando Lara sozinha no corredor olhando
apreensiva para a porta entreaberta do aposento de Mabel. A jovem se aproximou
vagarosamente do quarto e, parada diante da porta, ouviu alguns sussurros que fizeram
seu sangue gelar involuntariamente. Podia discernir claramente a voz de Mabel, que
parecia estar discutindo com alguém em baixo tom. Sentindo o coração pulsar, Lara
apurou os ouvidos para tentar ouvir melhor. Mabel parecia assustada, discutindo com um
rapaz, cuja voz Lara jamais ouvira antes:
- Aqui não, Josh! Meus pais podem ouvir. Vá embora, por favor!
- Eu to falando, Mabel, a gente sabe demais. E o Carl não gosta disso. Ele vai acabar com
a gente.
- Mas ele sabe que nós estamos juntos e que podemos o encrencar com o que sabemos.
- Aquela piranha era a filha do chefe do tráfico no Harlem. Filha única! E ele prometeu
um milhão em dinheiro a quem entregar o assassino dela.
- Certo, mas quem vai acreditar na gente? Ninguém dispensa tanto dinheiro dessa forma.
Ele vai matar a gente.
- Olha, quanto ao cérebro, essa parte é minha. Então deixa que eu resolva isso. Vou
conversar com ele e explicar tudo.
- Mabel, eu to falando, temos que fugir. Ele vai te matar e depois vai atrás de mim.
- Eu não vou fugir. Vou conversar com ele e ajeitar a situação. Agora vá embora e vê se
fica longe do Harlem por alguns dias, ok?
- Poderia se levantar, por favor? O Sr. não foi convidado e está sendo indelicado.
O homem se levantou e segurou seu braço, a olhando com uma expressão dura.
- Você vai ficar onde está, Mabel. Eu ainda pago muito bem, lembra?
- Me solta!
- Ah cale a boca.
Peter Stone então meio que surgiu porta adentro e segurou o homem pelo paletó,
falando em seu tom de homem da lei:
- Eu sou o agente de polícia Stone – disse mostrando o distintivo – e caso não saiba, está
machucando a irmã Lara Hunter.
- Uma freira?! – Exclamou ele surpreso a soltando – Mas tu lembra-me muito alguém!
- Sim.
- Era minha irmã – disse Lara sem emoção maior – e está morta.
- Talvez o Sr. saiba algo sobre isso – disse Peter largando seu paletó.
O homem saiu pelo restaurante resmungando. Lara olhou-o se afastar então se voltou a
Peter agradecida:
- Era apenas um dos pervertidos que andavam com sua irmã. Ele te machucou?
Lara mexeu negativamente a cabeça. Peter Stone parecia ainda mais bonito e
interessante se mostrando tão preocupado com ela.
- Não dá para entender, agente Stone – disse tentando disfarçar seu interesse – ela era
minha irmã, mas eu não conhecia nada sobre ela.
- Pode me chamar de Peter e não, eu não tenho irmãos. Sou filho único – a olhou nos
olhos e sorriu – Há quanto tempo está fora de Manhattan?
- Alguns anos.
- Não tive uma noite de sono! Mas são ossos do ofício - pegou um café para viagem sobre
o balcão, deixou uma nota de cinco dólares e antes de sair acompanhado de Lara, sorriu
para garçonete
– Obrigado, Felicity.
- São as lembranças que esse lugar me traz. Me remete à minha infância. Eu e Mabel
vínhamos muito aqui em Dezembro, patinar no gelo. Eu adorava.
- O que foi? – Perguntou ela com um sorriso intrigado – O que está olhando?
- Descobrimos quem ele era, quanto à prisão, não foi possível ser feita.
- Jóshua Walker. Ele estuprou e matou a filha do chefe do tráfico; deduraram ele.
Quando ele voltou, ao Harlem foi pego e queimado vivo até a morte ontem à noite. Eles
foram cruéis.
- Desculpe, não devia ter falado sobre isso. Tivemos uma tarde tão boa.
- Como?
- Não foi o Joshua. Ele não matou minha irmã nem a outra garota.
- Eu te levo!
Lara correu sem olhar para trás. Peter a observou até o momento em que sumiu de sua
vista; então respirou fundo e se sentou pensativo. Ao chegar em casa, a jovem foi logo
chamando pelos pais. Encontrou um bilhete colado na geladeira que dizia:
"Lara,
Em Albany . Dormiremos lá
Ah:
Lara amassou o bilhete e voltou para sala, sentando-se pensativa no sofá. Não queria
passar aquela noite sozinha. Não queria mais se lembrar do que vira e ouvira. Um
homem foi julgado e condenado pelos bandidos por dois crimes que não cometeu; e o
verdadeiro culpado continuava em liberdade. Não queria se envolver, mas aquela
história a estava enlouquecendo e por mais que negasse, queria que o verdadeiro
culpado pagasse pelo crime. Levantou-se nervosa, aproximando-se do espelho próximo a
escada e observou a si mesma, encarando-se assustada. E novamente voltou a sentir a
presença forte de Mabel no momento em que os pelos de seu braço e nuca se
arrepiaram.
Em resposta, passos foram ouvidos no andar superior, andando de um lado para o outro.
Lara mordeu os lábios.
Os ruídos no outro andar cessaram. Lágrimas escorreram pelos olhos de Lara, que
nervosa gritou:
Lara sentiu que seu corpo inteiro tremia enquanto procurava o lugar de onde se
originava a murmurante voz de Mabel.
Ela então se virou olhando o espelho. A voz surgia dali. E lá estava Mabel, acabada,
vitimada pelo brutal espancamento, encerrado pelo tiro que a matou. Aquela visão
aterradora de sua irmã a fez gritar. Foi a última coisa que lembra ter feito antes de o
espelho explodir em um estouro barulhento, espalhando centenas de cacos pelo chão.
Assustada, Lara se afastou caminhando de costas, protegendo seu rosto com os braços.
Então tropeçou no degrau inicial da escada e caiu perdendo o equilíbrio, batendo a
cabeça no corrimão de mogno. Perdeu os sentidos imediatamente, permanecendo
desmaiada sobre os degraus da escada. Então abriu os olhos com dificuldade. Não mais
estava na sala de casa, estava em uma rua suja e escura nos arredores da cidade. Um
local no qual nunca estivera. Havia uma melancolia no ar que unida a seu desconforto
interno, a faziam chorar. Caminhou pelas ruas vazias a procura de ajuda, alguém que lhe
ensinasse como voltar para casa, até que parou subitamente assustada. Mais adiante,
Mabel era violentamente surrada por um homem forte e loiro. Lara fez menção de
gritar, mas não conseguia articular palavras; estava sufocada. Olhava para todos os lados
e não via ninguém que pudesse ajudar. Soube então que estava ali para observar. Mabel
era esbofeteada e socada, enquanto tentava, sem sucesso, se defender. Em certo
momento, caiu aos pés do rapaz chorando:
- Eu odeio levar chifres, Mabel. Se fosse uma puta qualquer eu nem ligaria; mas você era
a minha preferida.
- Aconteceu quando eu estava alucinada, por causa da heroína, você sabe, eu ainda não
me acostumei.
- Comigo você tinha drogas de graça, dinheiro... E com aquele viciado vai ter, o quê?
- Viciada só ama as drogas, Mabel. Você não é diferente. Ta buscando droga fácil e a
merda toda é que você sabe demais.
- Fala da morte da Safira?! Eu não vou te entregar para o pai dela, juro!
- Você é perigosa, Mabel. E tem muito dinheiro na jogada. – Olhou em volta analisando o
lugar – Vou te dar uma chance. Some da cidade com o Josh e não apareçam mais aqui.
Quem sabe eu esqueça vocês.
- Isso não é problema meu, Mabel. Sumam! É a última chance que eu dou a vocês.
Chorando, Mabel se levantou e correu na direcção da irmã, sem vê-la. Carl então sacou a
arma. Lara viu e abanou as mãos, sinalizando para que Mabel se abaixasse. Mas ela não a
via. Corria sem olhar para trás, balançando seus cachos vermelhos, vestida com sua
calça e jaqueta de couro negro e um top branco por baixo. Houve apenas um disparo.
Mabel foi acertada nas costas e caiu morta aos pés da irmã, que viu Carl se afastar
fumando, como se nada tivesse acontecido. Lara a abraçou chorando. Acabara de
presenciar o assassinato de sua irmã. Se foi um sonho, ou alucinação, era real demais. E
agonizante também. Mabel sangrava muito no momento em que piscou os olhos,
murmurando:
- Não fala nada, Mabel – disse Lara tentando parecer forte, sem perceber que a voz
estava de volta - tudo vai ficar bem.
- Eu queria ajudar.
- E pode.
- Como?
- Me aceitando.
Lara a abraçou forte e se viu tomada por um ódio profundo. Uma angústia crescente
possuindo seu corpo. E tudo começou a rodar rápido, muito rápido. Viu pessoas que
nunca conheceu. Lugares onde nunca esteve. Gostos que nunca experimentou. Palavras
que nunca ouviu. Frases que jamais disse. E tudo girava rápido, muito rápido, muito
rápido... Então parou. E Lara acordou sobre as escadas, levantando-se sem dizer ou
sentir nada. Já era quase meia-noite. Estava frio, mas mesmo assim ela tirou as roupas,
ficando nua. Então riu. A risada mais debochada que já se ouvira, e a medida que fazia
isso, seu cabelos lisos iam se encaracolando aos poucos até ficarem à altura do ombros.
- I'm my own worst enemy; it’s bad when you annoy yourself, so irritating... – então
parou e dize em tom duro e Frio – Carl, vamos acertar as contas.
Não havia mais dúvidas. A presença forte de Mabel se apossara de Lara, possuindo a
irmã. A jovem abriu a janela e saiu, dançando enlouquecida pelo telhado sob a luz da
lua cheia. Parecia que o demónio dominava o corpo da jovem Lara, transformada, em
busca de vingança. Não passou despercebida pelas ruas do Harlem e nem esperava por
isso. Na verdade queria ser anunciada. Agarrou um garoto de mais ou menos treze anos
e, ignorando seus gritos, murmurou em seu ouvido:
- Avisa ao Carl, onde quer que ele esteja, que a preferida dele voltou do inferno.
O garoto correu assustado, enquanto ela andava calma e bem à vontade entre bêbados,
drogados e prostitutas.
- Hei, Mabel – disse uma delas, que estava ao lado de duas outras, encostadas em um
carro – falaram que tinham apagado você.
- Parece mais viva que antes – disse a negra com um sorriso que realçou seus dentes
brancos.
Mabel sorriu. Mas, ao tentar atravessar a rua, um carro quase a atropelou, parando com
uma freada brusca. O motorista colocou a cabeça para fora, gritando para que saísse da
frente, mas subitamente se calou assombrado ao reconhecê-la. A jovem o reconheceu
também; Peter Stone em sua viatura. Ele a fitou da cabeça aos pés, boquiaberto. Mabel
sorriu ironicamente se aproximando do policial, que saía do carro a olhando fixamente.
- O que houve, Peter? – Disse ela enrolando os dedos nos cachos vermelhos dos cabelos –
Viu algum fantasma?
- Certas coisas são reais, acredite você ou não nelas – se aproximou e o beijou
demoradamente – Eu também estava com saudades de você.
- Acho que, já que não está morta, tem muitas explicações a dar, Mabel.
Então Peter a virou para algemá-la quando observou seu braço esquerdo com mais
atenção. A puxou então com força, olhando dentro de seus olhos nervoso:
- Pode até se vestir como ela, andar como ela, mas esqueceu um detalhe. A pantera!
Mabel tinha uma pantera tatuada no braço.
- Meros detalhes! – Disse ela lhe dando um chute entre as pernas, o fazendo se curvar
arfando de dor.
A jovem então correu pela rua, sem direcção. Peter se levantou apoiando-se no carro,
gritando:
Peter a seguiu correndo e viu exactamente o momento em que a jovem, que corria
olhando para trás, foi atropelada por um carro azul. Ele então se aproximou, a
amparando nos braços.
Lara foi colocada desacordada no carro. Peter não sabia o que pensar, mas acreditava na
hipótese de Lara ter enlouquecido por causa da morte de sua irmã gémea. Então
disparou com o carro quase atropelando a multidão que se aglomerava em volta do local
do acidente. Lara acordou meio tonta na cama de um hospital. Inicialmente tudo
pareceu turvo, então sua visão se fixou melhor e ela reconheceu Peter diante dela.
Parecia meio nervoso enquanto ela estava muito confusa.
- Onde estou?
- E o que eu estou fazendo aqui, agente Stone? Onde estão meus pais?!
- Seus pais já passaram por aqui mais cedo. Vão voltar mais tarde com suas coisas.
- Ontem? Não sei... não lembro – o olhou seriamente – Que diferença isso faz?
- Você atravessou a cidade como se fosse sua irmã. Estava no Harlem, lembra? Por sorte
eu te encontrei antes que você fizesse alguma loucura.
- Isso é loucura, agente Stone. Não me lembro de nada disso e sempre tive boa memória,
no convento nós...
- Por mais que tente negar, Srta. Hunter, a morte de Mabel a afectou profundamente.
Você agiu como se fosse ela por um tempo.
- Não existe essa história de possessão, Srta. Hunter – voltara a usar o tom formal com
ela – Você só está impressionada com tudo o que anda acontecendo.
Lara então lembrou-se dos últimos acontecimentos da noite, até o momento em que
abraçou a irmã em seu subconsciente e disse assustada:
- Uma noviça não deveria acreditar nesse tipo de coisa – disse Peter irritado.
- Acredito no que vejo e não nego isso. Ela veio me avisar que Carlton Fiennes a matou!
- Um deles!
-... Todos sabiam que ela era a preferida dele. Além do mais, ele denunciou Joshua
Walker para os bandidos, pelo assassinato de sua irmã e Safira Brown.
- Joshua era inocente! – Gritou Lara – Não tenho como provar, mas eu sei...
- Cale-se, eu estou falando! Carlton cometeu os dois crimes e se livrou deles acusando
Joshua. Até ganhou dinheiro por isso. Um milhão, pelo que sei. E se você não agir rápido
ele vai fugir!
- E garanto que você sabe, não é? – Gritou ela em um tom irónico, porém descontrolado.
Dois enfermeiros então entraram no quarto após ouvirem os gritos, seguraram Lara e lhe
aplicaram um sedativo. A última coisa que Lara viu antes de adormecer foi um
enfermeiro afastar Peter do quarto, seguido por uma Mabel de aparência demoníaca.
Lara tentou avisá-los, em vão, pois em poucos segundos caiu em um sono profundo.
Peter dirigia intrigado com a discussão que tivera com Lara. Podia até ser que ela
estivesse mentindo, mas sabia de coisas demais e ele não conseguia explicar isso. Ela
parecia mesmo Mabel. E beijava como ela. Até sabia do caso secreto entre os dois.
Prendera Mabel há oito meses, mas seduzido pela sua beleza, tiveram um caso. Era pura
paixão e Peter não nega que tenha ficado completamente envolvido pela jovem.
Impetuosa e perigosa, Mabel nunca aceitou os limites que teria de respeitar namorando
um policial. Por essa razão, o romance teve fim em menos de três meses, deixando
Peter completamente obcecado. Porém suas tentativas em reconquistar a jovem não
alcançaram nenhum resultado. As drogas haviam ocupado um grande lugar em sua vida e
a destruíram. Só ele sabe o quanto sofreu com sua morte e o quanto andava confuso com
relação aos eventos recentes. Seu cepticismo o impedia de acreditar no mundo
sobrenatural, mas havia algo estranho em toda aquela história. Talvez estivesse apenas
com medo de acreditar nisso e era o que o estava deixando profundamente abalado.
Desceu do carro olhando em volta, como o habitual, e subiu rapidamente o lance de
escadas até seu apartamento sujo e malcheiroso no East Village. Uma mancha no bairro,
segundo Meridith, sua vizinha de cima. Para um policial jovem, transferido de
Washington, aquilo significava a sua independência e liberdade. Espalhou a roupa que
tirou do corpo pela sala e chegando ao quarto, se jogou na cama só de sunga e meias.
Não pôde evitar pensar em Lara e em suas histórias sobre a volta de Mabel. Por mais
estranho que parecesse aquilo, de alguma forma ela sabia do caso entre eles quando
ninguém mais sabia.
- Talvez Mabel tenha confidenciado isso à irmã – murmurou consigo – Por outro lado,
Lara disse que ela e a irmã não conversavam muito. Talvez...
- É ele! – Disse a voz murmurante atrás da porta e então tudo ficou silencioso.
O jovem policial sentiu um frio lhe subir pela espinha antes de abrir a porta com a arma
direccionada para quem quer que estivesse ali. Porém, a falta de um alguém a quem
culpar pelo susto, fez seu temor aumentar ainda mais. De repente riu alto:
Bateu a porta sem perceber que havia uma jovem ruiva atrás dela sorrindo. Mabel
Hunter. Jogou a sunga longe e entrou na box do banheiro, ligando a duche gelada
enquanto cantarolava "Born in USA" animadamente. Então a canção sufocou em sua
garganta quando ele ouviu a risada fria e debochada de Mabel ecoar pela casa, surgindo
de seu quarto. Sentiu o sangue gelar em suas veias, estarrecido, com o coração batendo
apressadamente. Podia ouvi-lo pulsar em seu peito. Com as mãos trémulas, apanhou um
calção azulado e a vestiu, correndo até seu quarto em seguida. O cómodo estava vazio,
rodeado por uma aura macabra que piorou ainda mais os seus temores, dando força a um
medo desconhecido que crescia a cada segundo. Então uma mão fria passeou
calmamente pela sua nuca o fazendo pular de susto, sufocando um grito de terror. Não
imaginara aquilo, sentira mesmo uma mão em seu pescoço e experimentou a terrível
sensação de ser tocado por um cadáver. Uma morta o tocara. Mabel estava ali. De
alguma forma estava ali. Peter não parou para pensar; vestiu suas roupas o mais rápido
que pôde, sem perceber que a blusa preta estava pelo avesso, e ao tentar sair pela
porta do quarto, encontrou Mabel. Sua primeira reacção foi a de olhar para o braço da
jovem. A pantera de olhos vermelhos estava lá. Era mesmo Mabel. Trajada com a roupa
com a qual fora enterrada: uma camisola lilás, sem mangas. Estava muito pálida.
Mortalmente pálida. As únicas coisas que pareciam vivas nela eram seus olhos. No fundo
daquela imensidão azul, havia um brilho avermelhado, como o fogo, e eles exprimiam
ódio.
Havia uma chave-inglesa em sua mão. Peter olhou aquilo assustado, já prevendo a
pretensão de Mabel. Resolveu tomar uma atitude e pegar aquele objecto de suas mãos à
força. Gritou, reunindo forças e investiu contra Mabel. Então caiu no chão tremendo de
frio. Ele não a tocara, a atravessara, e no momento em que o fez, sentiu uma angústia
no peito. Um desejo de vingança. Sentira o que Mabel estava sentindo e era uma carga
de dor muito pesada para um espírito. Não reflectiu sobre aquilo por muito tempo.
Mabel fizera o que pretendia; o golpeou na nuca com a chave-inglesa o fazendo perder
os sentidos. Lembrou de Lara antes de desmaiar e em como fora injusto.
- Você é bom, Peter. Eu sou má. Por isso nunca deu certo entre nós.
E gargalhou alto espalhando seu riso frio e debochado pela noite fria e escura.
- Já de pé Lara?
- Logo. O director Harrison está liberando os pacientes aos poucos. Hoje cedo ele deu
alta a uma menina que estava aqui desde os nove anos. Ela acreditava que um
espantalho de sua fazenda a perseguia.
Porém, no momento em que abriu a porta do quarto, sentiu seu corpo ser empurrado de
volta por uma força sobrenatural que a fez cair, soltando a seringa. Lara ficou em
pânico, sentindo uma presença macabra no quarto. A enfermeira então gritou chocada.
Lara estava se erguendo no ar, com os olhos esbranquiçados e um riso diabólico. Suas
vestes flutuavam acompanhadas por seus cabelos cor de fogo, que se encaracolavam
lentamente. Suas pupilas azuis foram voltando aos poucos a seus olhos, até que
encararam a apavorada enfermeira no chão. Era como se um demónio maligno tivesse
fugido das trevas e a olhava com aquele sorriso diabólico. Mais tarde ela diria à polícia
que antes na vida jamais vira algo de intenso horror como aquilo e jamais sentira
angústia e medo tão profundos. Foi sua última sensação, antes de Mabel pegar a seringa,
lhe aplicar o tranquilizante e sair calmamente pela porta do quarto. Com passadas leves,
porém determinadas, Mabel atravessava o submundo do crime com um destino em
mente. Prisioneira em seu próprio corpo, Lara assistia a tudo, incapaz de retomar o
controlo. Prisioneira não só do espírito perturbado da irmã, mas também de um ódio até
então desconhecido por ela. Atravessou vielas sujas, becos escuros, lugares tão
conhecidos que lhe passavam uma espécie de segurança. Apenas a ela. Somente uma
pessoa como Mabel Hunter poderia se sentir segura em um lugar tão pesado quanto
aquele. Encontrou então o pequeno prédio que procurava. Uma construção antiga, de
seis andares, já muito desgastada pelo tempo, com rachaduras e fixações malcriadas
escrita com jets e tintas. Entrou no prédio como se fosse a dona do lugar, sem que
ninguém oferecesse resistência, e subiu as escadas, degrau por degrau, até chegar
diante da porta do quarto 606. Calmamente encostou seu dedo indicador na fechadura
e, com um ruído fraco, ela se abriu. O apartamento estava bem quente, com a
calefacção ligada e até poderia ser um lugar aconchegante, se não fosse o sofá
esburacado, as garrafas de tequila espalhadas por entre cinzeiros abarrotados de pontas
de cigarro e o nauseante cheiro de mofo que estava impregnado no local. Mabel mal
notou esses detalhes, apressando-se em se armar com uma faca de fatiar carne deixada
sobre a pia da cozinha. Aproximou-se da porta do quarto, entreaberta, e pelos ruídos e
murmúrios, percebeu que Carl estava transando com alguma prostituta. Sem que isso a
impedisse, empurrou a porta com o pé e entrou no quarto, assustando o casal sobre a
cama.
- Mabel?! – Disse Carl se sentando – Quando me disseram que você estava de volta eu não
acreditei. Achei que tivesse te matado.
Nenhum ruído. Mabel os observava calada, sem qualquer expressão no rosto pálido. A
mulher, sobre a cama percebeu a faca em sua mão e gritou tentando correr nua. Mabel
simplesmente a segurou pelo braço, abriu um sorriso e disse, ignorando seus gritos:
Apavorada, a prostituta correu pelo corredor e bateu a porta ao sair. Mabel então
encarou o homem trémulo sobre a cama. Carlton gritou apavorado e pegou um revólver
escondido sob o travesseiro, apontando para Mabel.
- Quem sabe agora você morre de uma vez – disse ele atirando.
A bala parou, diante dos olhos de Mabel por alguns segundos, sem atingi-la, antes de cair
rolando pelo chão. Ela sorriu. Os olhos de Carlton se arregalaram de pavor e surpresa.
Vendo a inutilidade de sua arma, a jogou na cama e se ajoelhou aos pés de Mabel
tremendo.
- Que dinheiro?
- O que você ganhou por entregar o Jóshua por um crime que você cometeu.
Aquele tom o fez tremer ainda mais. Se levantou, tirou uma valise do armário e a
entregou a ela.
- O que pretende fazer com toda essa grana? – Perguntou ele pegando uma calça.
Ele apertou o gatilho nervoso, mas a bala engasgou e a arma falhou. Mabel então
segurou a faca com as duas mãos e a fincou até o cabo na barriga de Carlton, a subindo
lentamente, enquanto ele tremia sentindo a vida lhe abandonar aos poucos. A jovem
então puxou a lâmina, o fazendo cair ensanguentado, com os olhos abertos e sem vida.
Seis policiais, liderados por Peter Stone, com a cabeça enfaixada, invadiram o
apartamento e pararam estarrecidos diante da cena aterrorizante que presenciavam.
Com certeza teriam um relatório intrigante a entregar aquela noite. Subitamente, Lara
desabou no chão, desacordada, largando a faca. Mas Mabel continuou de pé, fitando os
policiais confusos com sua expressão de deboche.