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CONCEITO DE CRIME
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7.1 CONCEITOS
Até aqui se travou superficial contato com algumas figuras de ilícitos penais, de
crimes. Falou-se de homicídio, de aborto, de furto, de estupro, de sedução, de violação
de domicílio etc.
Cada um desses crimes tem suas características próprias, cada qual tratando de
bens jurídicos diversos, cada um com sua pena abstrata, ora mais severa, ora mais
branda. Num se protege a vida, no outro o patrimônio, ora protege-se a liberdade
sexual da mulher, ou a paz e a tranqüilidade da casa.
Essa é tarefa essencial, porque se constituirá na extração das notas que sejam
comuns a todos os crimes. Não se irá conceituar cada crime em particular, mas o crime
em geral, de modo que, ao final, será possível obter uma definição que se aplique a todo
e qualquer crime. Conceituando o crime, em geral, será dado um passo indispensável
para conhecer e compreender cada crime em particular.
(ogni azione legalmente punibile)1 ou, com HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, afirmar ser
“toda ação ou omissão proibida pela lei sob a ameaça de pena”2, ou, então, nas palavras
de MANOEL PEDRO PIMENTEL, “uma conduta contrária ao Direito, a que a lei atribui
uma pena”3. Para FRANCISCO MUÑOZ CONDE, “é toda conduta que o legislador sanciona
com uma pena”4.
Tais conceitos são insuficientes para o estudioso do Direito Penal que pretende
e deve debruçar-se sobre esse fenômeno de modo a conhecê-lo em sua inteireza, em sua
profundidade, porque não desnudam os aspectos essenciais do crime, ou, no dizer de
MUÑOZ CONDE, porque um conceito exclusivamente formal “nada diz acerca dos
elementos que deve ter essa conduta para ser assim punida”6. Não informam a
atividade legislativa, não limitam o poder estatal de punir e não explicam nada a
ninguém. Não servem ao operador do Direito, não servem ao estudante, não servem a
quem quer que seja.
2 Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 144.
6 Op. cit. p. 2.
7 Op. cit. p. 145.
Conceito de Crime - 3
Com base nesses conceitos, pode-se concluir que, para o legislador definir certo
fato humano como crime, deve, previamente, verificar se o mesmo é daqueles que
lesionam bens jurídicos, ou pelo menos expõem-nos a grave perigo de lesão, e se tais
lesões são de gravidade acentuada, de modo a serem proibidas sob a ameaça da pena
criminal. Do contrário, não poderá o legislador considerá-las crime.
Ocorre, todavia, que se tais conceitos, de um lado, servem para limitar a atuação
do legislador, são, por outro, insuficientes e incompletos, pois, como bem lembra
BETTIOL, nem todas as condutas humanas consideradas criminosas são daquelas que
comprometem as condições de existência da sociedade, como no crime de injúria, que
consiste na ofensa à dignidade de um indivíduo. No caso, apesar de não constituir grave
perigo para as condições de conservação da sociedade, trata-se de conduta que deve ser
proibida para a preservação de valores individuais cuja proteção constitui interesse
público da mais alta importância.
8 Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 241.
4 – Direito Penal – Ney Moura Teles
Além disso, será comportamento que significa lesão ou perigo de lesão para
interesses dos indivíduos (para proteger a segurança dos cidadãos, politicamente
danoso) e que possa ser atribuído a pessoa capaz de responder por seus atos
(moralmente imputável).
Trata-se, como se vê, de um conceito puramente formal, que nada explica, a não
ser quais penas correspondem ao crime e quais à contravenção penal.
9 Programa do curso de direito criminal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1956. v. 1, p. 48.
Conceito de Crime - 5
A definição de crime contida na lei penal, por exemplo, “matar alguém” (art.
121, Código Penal), ou “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (art. 155,
Código Penal), recebe da doutrina o nome de tipo. Tipo legal de crime.
Pois bem, se foi dito que nem todas as ações humanas são consideradas crimes,
mas apenas aquelas que estiverem, previamente, definidas em lei como tal, e se esta
definição recebe o nome de tipo, pode-se dizer que o crime é uma ação que se
identifica integral e totalmente com um tipo de crime. Correto afirmar com
tranqüilidade que o crime é uma ação que corresponde fielmente a determinado tipo.
Para existir crime, é necessário que a ação humana seja igual à ação descrita
num tipo, ou seja, que a ação humana corresponda exatamente a um tipo. Logo, pode-
se resumir dizendo que o crime é uma ação típica, isto é, adequada, ajustada, a um
tipo.
Por isso, afirma-se que o crime é um fato típico, o que significa dizer que é um
fato da vida, um acontecimento que se amolda, se ajusta, a um tipo legal de crime.
Com esse raciocínio, chega-se a uma primeira conclusão: todo crime é um fato
típico. Se não houver um tipo legal de crime que corresponda ao fato da vida, este não
pode ser crime, porque não é típico. Logo, a primeira característica do crime é ser ele
um fato típico.
Por exemplo, sabe-se que existe uma norma penal incriminadora proibindo a
prática de aborto – que é a interrupção da gravidez, com a morte do ser humano em
formação. Tal fato é típico, pois existem descrições na lei penal a esse respeito, nos arts.
124 (provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: pena –
detenção, de 1 a 3 anos), 125 (provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
pena – reclusão, de 3 a 10 anos) e 126 (provocar aborto com o consentimento da
gestante: pena – reclusão, de 1 a 4 anos) do Código Penal.
comportamento, em conseqüência, não se volta contra a ordem jurídica, não é por ela
proibido; ao contrário, é permitido, considerado justo e pode ser realizado. Não é,
portanto, um crime, apesar de ser um fato típico.
Para ser crime, de conseguinte, o fato típico, ao mesmo tempo, não pode estar
autorizado por uma norma penal permissiva justificante.
Quando o fato é autorizado, justificado, diz-se que ele, apesar de típico, é lícito,
pois não contraria a ordem jurídica. Inversamente, para que haja o crime, o fato típico
deve ser, a um só tempo, injustificado ou ilícito. Deve estar contrariando todo o
ordenamento jurídico.
Então, deu-se outro passo: todo crime é um fato típico e ao mesmo tempo
ilícito, proibido pelo Direito, injustificado, não permitido, proibido pela ordem
jurídica.
Para que haja o crime, é indispensável não só que o homem que praticou o fato
típico e ilícito seja capaz de responder por seus atos, mas, ainda, que seu
comportamento seja merecedor de censura, de reprovação do Direito. É que às vezes a
pessoa comete um fato típico e ilícito e, mesmo sendo plenamente capaz de entendê-lo,
não pode ser reprovada.
Por exemplo: um cidadão chega em sua casa e encontra sua mulher e filhos sob a
mira de armas pesadas, empunhadas por homens que exigem dele, chefe da família, que
volte ao Banco onde é gerente e de lá lhes traga certa quantia em dinheiro.
importância da qual tinha a posse (art. 168, CP). É igualmente ilícito, porquanto não
incide uma norma penal permissiva justificante, como a da legítima defesa ou a do
estado de necessidade, que serão estudadas adiante.
Esse fato típico é, ao mesmo tempo, ilícito, injustificado, proibido pelo Direito. O
gerente, maior de 18 anos, é plenamente capaz, é um cidadão mentalmente capaz de
compreender que seu gesto era proibido, mas, mesmo assim, não merecerá reprovação
do Direito Penal, não será censurado, pois agiu sob coação, de natureza moral, a que
não podia resistir.
Quando não se pode censurar o comportamento daquele que pratica o fato típico e
ilícito, quando não se pode reprová-lo, o Direito o desculpa. Nesse caso, igualmente,
não há crime.
Estudar o crime, então, é estudar essas três características: o fato típico, a ilicitude
e a culpabilidade, tarefa sobre a qual se debruçará daqui por diante.
7.1.6 Definições
A pessoa que pratica o fato típico, que realiza a conduta descrita na lei penal
incriminadora, é chamada de sujeito ativo do crime. No Direito brasileiro, somente o
ser humano pode ser sujeito ativo do crime. Ultimamente, muito se tem discutido
sobre a possibilidade de se responsabilizar, criminalmente, também a pessoa jurídica.
LUIZ FLÁVIO GOMES, com a ousadia que lhe é peculiar, apresenta sua visão a
esse respeito:
Contrapondo-se a essas idéias corajosas, RENÉ ARIEL DOTTI tem uma posição
muito clara: “A pretensão de atribuir a imputabilidade penal às pessoas jurídicas não
está em harmonia com a letra e o espírito da Constituição”, mostrando que restariam
violados os princípios da igualdade, da humanização das sanções, da personalidade da
pena, o direito de regresso e as regras de aplicação da lei penal, ofendendo, ainda,
vários princípios relativos à teoria do crime, ressaltando, a propósito, que “a conduta,
revelada através da ação ou da omissão, como primeiro elemento estrutural do crime, é
produto do homem”12.
Já LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, com seu inigualável equilíbrio, chama a atenção para
a necessidade de não se romper com princípios importantíssimos do Direito Penal,
especialmente o da culpabilidade, lembrando que “...no Direito Penal, a pessoa física e
a pessoa jurídica reclamam tratamento diferente”, e que “o Direito Penal, sublinhe-se
mais uma vez, contém princípios que só fazem sentido relativamente à pessoa física”,
mas que “nada impede, pragmaticamente, e disso há exemplos, repita-se, em outras
aprendizagem. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 11, p. 171-
172, 1995.
12 A incapacidade criminal da pessoa jurídica. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista
No Código Penal, o sujeito ativo é chamado de agente, ainda que o fato típico seja
relativo a um comportamento omissivo, negativo, um não fazer.
Assim que ocorre um fato típico, tem a autoridade policial a obrigação de iniciar
um procedimento destinado a investigá-lo, o chamado Inquérito Policial. Aí, o agente é
denominado indiciado. Quando se instaura o processo, costuma-se nomeá-lo de
13 Direito penal tribuátrio: observações de aspectos da teoria geral do direito penal. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 11, p. 182-183, 1995.
12 – Direito Penal – Ney Moura Teles
Objeto jurídico do crime é o bem jurídico visado pela conduta típica, o interesse
contra o qual o comportamento proibido se dirige. No tipo de homicídio, é a vida; no de
furto, o patrimônio; no de estupro, a liberdade sexual da mulher.
Objeto material do crime é a pessoa ou a coisa sobre a qual a conduta típica vai
incidir. No tipo de homicídio e no de estupro, o corpo humano; no furto, a coisa
subtraída.
Além de definir os fatos como crime, a lei penal confere-lhes um nome, pelo
qual podem ser identificados. “Matar alguém”, do caput do art. 121, é denominado na
lei de “homicídio simples”. O crime definido no art. 155 é denominado “furto”.
Os crimes que têm mesmo objeto jurídico são agrupados no Código Penal em
capítulos, e os mais específicos, em seções, recebendo, igualmente, denominações
genéricas, tais como: Crimes contra a Pessoa, Crimes contra a Vida, Crimes Contra a
Honra, Crimes contra o Patrimônio.
A lei penal brasileira, além de definir como crime certas condutas do homem –
cominando-lhe penas – define, sob o nome de “contravenção penal”, outros
comportamentos, cominando-lhes, igualmente, sanções penais.
Haveria alguma diferença, substancial, entre o que a lei considera crime e aquilo
que ela considera contravenção penal?
corporal ou a saúde de outrem” (art. 129, Código Penal), outro: “expor a vida ou a saúde
de outrem a perigo direto e iminente” (art. 131, Código Penal), e, finalmente, um fato
considerado contravenção penal: “Deixar em liberdade, confiar à guarda de pessoa
inexperiente, ou não guardar com a devida cautela animal perigoso” (art. 31, LCP).
Havendo lesão ou perigo objetivo, concreto, de lesão, deve haver um crime. Se,
todavia, o comportamento proibido chega apenas a criar uma situação subjetiva,
abstrata, de perigo, deve-se estar diante de uma simples contravenção penal. Por isso,
foi criado o tipo legal de crime, no art. 131 do Código Penal, uma vez que existe o perigo
objetivo, concreto, da ocorrência de uma lesão da saúde alheia.
Nada impediu, por exemplo, que a contravenção penal definida no art. 19 da Lei
das Contravenções Penais, “porte de arma”, fosse tornada crime pela Lei nº 9.437, de
20-2-1997. A matéria está regulada pela Lei nº 10.826, de 22-12-2003. Dependeu, tão-
somente, do legislador que, igualmente, pode considerar contravenção penal a “lesão
corporal” de que trata o art. 129, caput, do Código Penal.
Nunca se deve esquecer de que o Direito Penal só deve ser chamado em último
caso, quando os bens mais importantes necessitarem proteção mais rígida; diante de
certas lesões, é preciso ver que a construção de tipos de contravenção só pode ser
entendida como medida de política criminal destinada a divulgar, no seio da
comunidade, o interesse do Direito em proteger os bens que seleciona, por meio da
mais branda de suas sanções, que é a correspondente à contravenção penal.
14JESUS, Damásio E. de. Diagnóstico de legislação criminal brasileira: crítica e sugestões. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 12, p. 115, 1995.
16 – Direito Penal – Ney Moura Teles
autorização, anunciar meios abortivos, vias de fato, jogo do bicho, jogo de azar, loteria
não autorizada, exercício ilegal de profissão ou atividade, vadiagem e mendicância. Elas
estão definidas no Decreto-lei nº 3.688, de 3-10-1941.