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Caarolina Leitte1 

(...) um dos ben
ns da terra q
que para m
mim são cincco: 

o  co dância,  a  geenerosidade,  o  prazerr  do  amantte  e  a 


onhecimentto,  a  abund
aleggria de viverr. 
 
Maria Ga
abriela Llan
nsol, Lisboaleeipzig 1, 199
94: 85.                                   

INTRODU
N UÇÃO

A  ideia  lanççada  por  esste  colóquiio  sugere  uma 


u rara  ocasião 
o paara  interroggar  o 
conhhecimento  no  âmbito o  de  várioss  discursoss  disciplinaares  e  mesmo  para  além 
deless, o que sup põe a participação de contributo os vindos d de território os diversoss, não 
neceessariamente  sujeitos  às imposições  da  prrodução  acaadémica.  P Podemos,  assim, 
a
consstruir  algummas  interro ogações  a  partir  de  vivências 
v q
quotidianas s  e  das  dúv
vidas 
que eelas nos vãão sugerind do. Partindo o da experiêência individual, trataa‐se de obseervar 
o  alcance  das  certezas  cientificam mente  consstruídas,  na  sua  justteza  ou  naa  sua 

1 Profe
essora Associaada na Universidade do Minh
ho. mcarolina@
@ics.uminho..pt 
LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do 
conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias 
(Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 
 
desadequação, nomeando as margens que sempre transbordam, as da ignorância e 
do enigma.   

Se  tomarmos  o  corpo  como  campo  de  interrogação  –  essa  realidade  tão 
amplamente partilhada – e a ciência (ou a arte?) médica como campo de resposta, 
podemos confrontar a nossa experiência com as leituras, por vezes múltiplas, não 
raras vezes contraditórias, dos discursos autorizados, cuja autonomia e autoridade 
se  encontram  caucionadas,  quer  pelo  conhecimento  quer  pela  força  corporativa, 
quer por ambos. E nem sempre o ponto de vista da experiência encontra um lugar 
nesta  mecânica  do  saber  que  se  reduz,  na  nossa  sociedade,  a  um  privilégio  de 
especialistas.  

De facto, nada nos impede de ler o corpo, mas onde encontrar os instrumentos 
que  nos  dão  acesso  a  esse  texto,  familiar  e  enigmático,  previsível  e  capaz  das 
surpresas mais desconcertantes, obediente e rebelde, ora sofredor ora exultante? 
O  que  faz  o  corpo  individual  com  a  sua  pequena  história  de  gerações  familiares? 
Onde  esconde  os  segredos  que  se  abafaram,  os  medos  que  se  reproduziram  ou  a 
demasiada injustiça de repetidas opressões? Que sinais a revelar a intensidade da 
alegria vivida ou sonhada? 

E o corpo comum, isto é, a parte colectiva que habita o nosso corpo individual e 
não  apenas  a  sua  memória,  que  inscrições  restam  nele  da  sua  longa  história  de 
milénios? Onde estão os sinais de todas as perseguições à ideia e ao exercício de se 
ser livre no pensar e no agir? O que resta do paraíso prometido? Como se traduz, 
num corpo, a síntese de itinerários tão diversos, complexos e díspares? Trazemos 
sinais mais declarados e outros mais adormecidos? O que nos faz dizer de alguém 
ou de alguma situação que não faz parte do nosso mundo...e como reconhecemos os 
seres de uma mesma constelação, e quem escolhe? As afinidades electivas, quem as 
decide? Onde se inscreve o reconhecimento destas genealogias incertas? E quantos 
corpos, distintos na singularidade da sua herança, resultaram destes itinerários do 
diverso? 

Então o que é um corpo ou, como perguntava Espinosa, “o que pode um corpo”?  

Dito de outro modo, como aprender a ler? 

O CORPO FÍSICO E O CORPO DA ALMA, QUANTOS CORPOS


AFINAL?

Pensar o corpo 

Roland  Barthes,  em  Le  plaisir  du  texte,  interroga‐se  a  dado  momento  sobre  a 
natureza do corpo: “Quel corps? Nous en avons plusieurs; le corps des anatomistes 
et  des  physiologistes,  celui  que  voit  ou  que  parle  la  science:  c’est  le  texte  des 
grammairiens, des critiques, des commentateurs, des philologues (c’est le phéno‐

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LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do 
conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias 
(Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

texte). Mais nous avons aussi un corps de jouissance fait uniquement de relations 
érotiques, sans aucun rapport avec le premier: c’est un autre découpage, une autre 
nomination» (1973: 29). 

A  reprodução  do  saber  e  das  práticas  académicas  pede  aos  seus  membros  um 
determinado  modo  de  disciplinar  o  pensamento  que  cada  um  tenta  seguir,  na 
expectativa de poder construir, uma linha que seja, de conhecimento. Mas fazemo‐
lo sempre, numa certa medida, fora de nós mesmos. Isto é, faz parte do exercício, a 
tentativa de nos excluirmos dele, pelo menos aquilo que em nós ameaça a suposta 
objectividade  do  conhecimento.  Este  deve,  idealmente,  ser  construído  sem 
ingerências ou, em última analise, deve ser capaz de antecipar e minimizar os seus 
efeitos.  E  os  manuais  rivalizam  nas  receitas,  mas  também  nos  paradoxos,  para 
atingirmos este patamar da tão desejada transparência. Este princípio, sagrado nas 
ciências  sociais,  tem  engendrado  um  sem  número  de  efeitos  perversos  com  os 
quais nos confrontamos no quotidiano e de que evocaremos exemplos ao longo do 
texto. Não que o saber científico negue a experiência individual, pelo contrário, a 
sua  fundamentação  essencial  passa  justamente  pela  experiência  –  assim  é,  pelo 
menos  a  partir  do  séc.  XVII2.  Acontece  que  uma  vez  consagrado  um  qualquer 
princípio  de  saber,  a  imprevisibilidade  da  experiência  individual  tende  a  ser 
arrumada na categoria de excepção e menos na de móbil de curiosidade...científica. 
Gadamer  explicita  bem  esta  tentação  do  conhecimento  científico  para  estender  o 
seu  paradigma  de  verdade  a  todos  os  domínios  da  realidade:  “L’expérience, 
renouvelée  dans  les  sciences,  ne  présente  pas  seulement  l’avantage  d’être 
vérifiable et accessible à tout un chacun, elle revendique également de son propre 
chef  et  fonde  sur  sa  démarche  métodique  la  prétention  d’être  à  la  fois  l’unique 
expérience certaine et le seul savoir qui confère à toute expérience sa légitimité. Le 
savoir  humain  qui  s’accumule  en  dehors  de  la  «science»  sur  le  mode  de 
l’expérience pratique et de la tradition (…) il lui faut aussi (…) entrer de lui‐même 
dans le domaine de la recherche scientifique. En principe, il n’est rien qui ne soit 
soumis ainsi à la compétence de la science» (1990: 12). 

Um corpo sem alma, o que pode ser?    

Ora o corpo é um dos objectos que mais faz correr a ciência. E é longa a história 
da  tutela  exercida  sobre  o  corpo  e  reforçada  na  cultura  ocidental  pelo  efeito 
combinado  da  religião,  da  política  e  da  ciência.  Doutrina  e  ideologias,  filosofia 
compreendida,  conjugando‐se  num  discurso  de  poder,  único,  destinavam  a  todos 
os outros e seus autores o papel de bodes expiatórios de uma ordem que atribuía 
ao corpo o lugar de confluência de todos os medos. Corpo e espírito foram sendo 
progressivamente  entendidos  como  duas  realidades  de  natureza  incompatível,  o 
espírito  suscitando  uma  atitude  de  reverência  face  ao  corpo  que  desmere  tão 

2
 Edgar Morin, no seu ensaio Science avec conscience, lembra a importância da autonomia que ganhou a ciência 
nesta altura face aos poderes instituidos: «(...) il était fécond que la science au XVIIe siècle s’autonomise par 
rapport à la religion, par rapport à l’Etat et par rapport aux conséquences morales qu’entraîne la conaissance 
elle‐même. La science devait émanciper son impératif éthique propre et unique, «connaître pour connaître», 
quelles qu’en soient les conséquences» . (1990 : 116). 

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LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do 
conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias 
(Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 
 
ilustre co‐habitante e mais não espera do que o momento de consumar a infalível 
separação:  

«Par un tour de force spéculatif remarquable, les philosophes ont réussi à 
accréditer la réalité de l’âme et à discréditer celle du corps, de sorte que 
ce  qui  fait  l’objet  d’une  évidence  familière  pour  le  sens  commun  devient 
obscur et problématique pour le sujet qui désire sérieusement vaquer à la 
recherche de la vérité» (Jaquet, 2001: 3). 

Vale  a  pena  lembrar  que  esta  ordem  teve  excepções.  As  dissidências  tiveram 
lugar  mesmo  se  muitas  delas  foram  apagadas  pelo  fogo  da  intolerância.  Mas 
filósofos como Espinosa, por exemplo, fazem um entendimento do corpo que não 
exclui  a  alma,  interrogando‐se  à  margem  de  qualquer  rejeição  do  corpo  e 
afirmando:  “l’ignorance  de  la  nature  exacte  de  la  structure  du  corps  et  de  sa 
puissance»; e acrescenta: “Personne, il est vrai, n’a jusqu’à présent déterminé ce que 
peut  le  corps  (…)”  (Jaquet,  2001:  6).  Esta  apreciação  terá  suscitado  interesse  e 
adeptos. Mas não foi este o ponto de vista que prevaleceu no tempo; hoje mesmo, 
são por certo raros os que partilham a intuição que esta interrogação supõe. Muito 
mais  tarde,  Nietzsche  dirá  que  “Sans  le  fil  conducteur  di  corps,  je  ne  crois  à  la 
validité  d’aucune  recherche”,  insistindo  na  debilidade  da  nossa  consciência  se 
comparada  ao  corpo,  «à  l’extraordinaire  sûreté  fonctionnelle  du  jeu  des  pulsions! 
C’est  qu’elle  [la  conscience]  est  encore  enfant.  Ayons  donc  l’indulgence  de  lui 
pardonner ses enfantillages» (Wotling, 2005: 188, 189) Afirmação que não invalida 
a possibilidade de que a consciência pode crescer. 

O corpo doente, um corpo que fala? 

E chegamos assim ao paradoxo que explica a situação actual3, onde cada um de 
nós se sente impotente para compreender o seu próprio corpo, inclusivamente na 
linguagem dos seus sintomas, dos mais benignos aos mais ameaçadores. No desejo 
de ver o corpo restabelecido ao seu estado “natural”, a tendência vai no sentido de 
fazer  ou,  pelo  menos,  de  tentar  fazer  a  economia  da  sua  leitura.  Atacando  os 
sintomas,  como  tantas  vezes  ouvimos  dizer,  tentamos  vencer  a  guerra  e  muitas 
vezes com sucesso. E nesta guerra em que vencemos cada vez mais batalhas, o que 
se  deve  ao  desenvolvimento  científico  e  tecnológico,  bem  como  à  progressiva 
democratização  dos  serviços  de  saúde,  somos  forçados  a  concluir  que,  muitas 
vezes, o inimigo, afinal, não vinha declarar a guerra, apenas trazia uma mensagem, 
um  texto  a  pedir  a  atenção  de  uma  leitura.  Mas  uma  falsa  ideia  de  eficácia, 
“conquistada pelo combate”, acaba por engendrar um novo sintoma, reiniciando‐se 

3
  Edgar  Morin,  interrogando‐se  sobre  a  predisposição  para  o  seguidismo  e  a  ausência  de  consciência  critica 
sobre  as  nossas  acções,  sejam  as  do  homem  comum  ou  do  cientista,  afirma:  «Le  diagnostic  a  été  fait  il  y  a 
cinquante ans par Husserl dans une conférence sur la crise de la science européenne. Il a alors montré qu’il y 
avait  un  trou  aveugle  dans  l’objectivisme  scientifique :  c’était  le  trou  de  la  conscience  de  soi.  A  partir  du 
moment où s’est opérée la disjonction entre d’une part la subjectivité humaine réservée à la philosophie ou à 
la poésie, et d’autre part l’objectivité du savoir qui est le propre de la science, la connaissance scientifique a 
développé  les  modes  les  plus  raffinés  pour  connaître  tous  les  objets  possibles  mais  elle  est  devenue 
complètement aveugle sur la subjectivité humaine; elle est devenue aveugle sur la marche de la science elle‐
même…» (1990: 117, 118). 

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LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do 
conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias 
(Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

um  novo  ciclo  de  incompreensão.  Como  é  conhecido,  a  lógica  da  “guerra”  produz 
uma  litania  de  efeitos  perversos,  nem  sempre  visíveis  num  primeiro  tempo.  Este 
inimigo  imaginário  que  habita  o  mesmo  corpo,  merece  ser  identificado,  lido  e 
traduzido,  como  nos  sugerem  alguns  médicos  avisados  e  cada  dia  mais  raros, 
podendo‐se, nalguns casos, negociar, isto é, dar à palavra um papel de mediação e 
de tomada de consciência, um dos caminhos para prevenir a “guerra”. 

A  leitura  do  corpo  é  inseparável  do  seu  itinerário;  na  presença  do  médico,  a 
narrativa de um percurso, em particular, da sua dimensão emocional, é a matéria‐
prima do diálogo, e este é parte integrante da própria noção de consulta, isto é, do 
encontro  entre  o  médico  e  o  paciente.  A  distância  que  os  separa,  o  paciente  do 
especialista, pode ser ultrapassada se ambos forem capazes de criar um diálogo – 
“La  langue  ne  sera  jamais  tout  ce  qu’elle  peut  être  que  dans  le  dialogue  (...)  Le 
dialogue  est  déjà  un  traitement”  (Gadamer,  1998:  137).  Mas  são  muitas  as 
dificuldades  que  impedem  a  prática  desta  arte  que  é  a  ciência  médica/prática 
clínica. As condições materiais do seu exercício, num momento em que os serviços 
públicos  se  debatem  com  o  insustentável  aumento  das  despesas,  sem  um 
equivalente  aumento  da  riqueza,  constrangem  os  médicos  a  “mostrar  elevados 
níveis  de  produtividade”,  sem  que  a  qualidade  do  seu  trabalho  mereça  igual 
exigência e reconhecimento. Este esgotamento da ideia fundadora do processo de 
conhecimento  e  de  cura  do  corpo  acompanha  a  proliferante  invasão  de  recursos 
tecnológicos  e  a  pressão  de  consumo  da  poderosa,  e  muito  saudável,  indústria 
farmacêutica.  

Então,  por  que  não  devolver  a  cada  um  a  capacidade  de  se  iniciar  na  leitura  e 
aprendizagem do seu próprio corpo? Despoja‐lo de um vocabulário mínimo que o 
inicia  nesta  leitura  serve  algum  dos  interessados?  A  consulta  com  o  especialista 
não podera sair enriquecida com uma maior consciência do paciente?  

Se  é  verdade  que  a  escolha  da  “guerra”  como  meio  para  entender  o  corpo, 
corresponde  a  um  gesto  historicamente  compreensível,  vale  a  pena  lembrar  que, 
hoje, já nada nos impede de procurar, de inventar e de partilhar um outro ponto de 
vista pois a sua verdade, há muito deixou de ser única.       

O CORPO QUE FALA, E QUEM NOS ENSINA A LER?


A  diversidade  ou  mesmo  a  incompatibilidade  das  respostas  fazem  parte  do 
processo  de  qualquer  procura,  tal  como  o  reconhecimento  da  ignorância,  sem  o 
qual  não  nos  é  possivel  avançar para  uma  nova  questão.  No  entanto,  cada  um  de 
nós  já  experimentou  a  dificuldade  de  explicar  para  si  proprio  uma  determinada 
reacção ou sinal do seu corpo ‐”Le  corps a pourtant beau être  familier,  il demeure 
d’une  profonde  étrangeté”  (Jaquet,  2001:1)  ‐  e  de  secretamente  não  reconhecer 
validade  ao  discurso  do  especialista  que  nos  fala  e  que  nem  sempre  nos  ouve.  O 
facto  de  uma  dada  explicação  não  corresponder  à  nossa  convicção  intuída  não 
significa,  contudo,  que  cada  um  possa,  de  imediato,  compreender  o  processo  que 
está  a  viver.  Apenas  nos  cria  um  embaraço  suplementar:  ao  sintoma  junta‐se 

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LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do 
conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias 
(Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 
 
também  a  desadequação  da  resposta  de  quem  é  suposto  tê‐la  e  dá‐la  como 
verdadeira.  A  confiança  nos  especialistas  que  caracteriza  o  nosso  tempo4,  tida 
como  um  indicador  da  qualidade  de  vida,  é‐nos  apresentada  como  a  única 
mediação  possível  face  ao  complexo,  caro  e  movediço  mundo  da  tecnologia,  veio 
criar  novas  desigualdades  e  assimetrias  ‐  “Se  nada  é  tão  bem  sucedido  como  o 
sucesso, também nada engana como o sucesso. Ofuscando em prestigio e esgo­tando 
em recursos qualquer outra coisa que pertença à plenitude do homem, a expansão do 
seu poder é acompanhada por uma retracção da concepção que ele tem de si mesmo 
e  do  seu  ser.”  (Jonas,  1994:  42)  ‐  agravando‐as  mesmo  em  relação  à  experiência 
privada  que  é  a  de  ter  um  corpo.  Esta  usurpação  do  direito  individual  a 
compreender o seu próprio corpo e a dispor dos instrumentos que permitem a sua 
leitura, parece encontrar um antídoto fecundo num conceito de corpo que procura 
contemplar  uma  maior  amplitude,  mesmo  se  este  é  um  caminho  que  supõe  a 
surpresa de muitas e novas interrogações. Independentemente dos benefícios que 
a  grande  tecnologia  e  outros  dispositivos  trazem  à  prática  do  entendimento  do 
corpo e, em particular, do corpo doente, não parece existir nenhuma boa razão que 
invalide  o  conhecimento  de  si,  logo,  do  seu  próprio  corpo.  No  início  de  uma  das 
suas  conferências  sobre  os  problemas  relativos  à  saúde,  Gadamer,  citando  Kant, 
lembra  “Que  toute  notre  connaissance  commence  par  l’expérience,  cela  ne  fait 
absolument  aucun  doute”  (1998:  11).  O  valor  atribuído  à  experiência  supõe  a 
consciência  de  outros  factores.  Gadamer,  chama‐lhe  natureza:  “Et  le  médecin 
raisonnable  et  le  patient  savent  bien  tous  deux  que,  s’il  y  a  rétablissement,  c’est 
toujours à la nature qu’ils le doivent” (1998: 136) enquanto outros autores tornam 
a  noção  de  amplitude  extensível  a  outros  domínios.  No  seu  texto,  «Em  busca  do 
Mirocórdio»,  Augusto  Joaquim  chama  a  atenção  para  certos  sinais  físicos 
recorrentes,  associados  a  experiências  de  espiritualidade.  Explicitando  o  seu 
conceito de mirocórdio, isto é, “olhar ou auscultar o coração”, diz o autor que ele 
“produz efeitos físicos, mexe com os sensores da percepção, altera os corpos e orienta 
as vontades para a des‐medida”; e concretizando, afirma adiante, “Em suma, os dons 
são conaturais ao corpo. No meu estudo, identifiquei 36, mas garanto que são muitos 
mais.  Devo  acrescentar  que,  na  sua  grande  maioria,  não  provocam  qualquer  efeito 
visível,  embora  transformem  irreversivelmente  a  psicossomatica.  Na  realidade 
alteram  a  própria  noção  do  que  seja  um  corpo.  Podemos  ainda  considerar  que  as 
chamadas  ascese  e  mistica  são  apenas  balbuciamentos  no  processo  da  sua 
apreensão”  (2002:  6).  Se  olharmos  a  partir  de  outras  tradições  culturais,  o  corpo 
físico  é  entendido  como  o  mais  denso  de  uma  série  de  outros  corpos  que  nos 
acompanham.  Segundo  certas  concepções,  o  nível  de  experiência  mais  exterior  é 
vivido pelo corpo físico, seguindo‐se o corpo emocional, o mental, o astral, o etéreo, 
o  búdico  e  o  causal,  correspondendo  este  à  experiência  interior  mais  profunda 
(Brofman,  1999:  133).  Diferentes  interpretações  confirmam  que  estes  diferentes 
corpos subtis correspondem a bandas de energia que rodeiam e interpenetram a 
parte física. A fotografia resolveu, já a partir dos anos 50, graças ao casal Kyrlian, 
esta  intrigante  realidade,  a  partir  de  uma  folha  cortada:  através  de  um 

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 ‐ E o nosso tempo inclui o século passado, desde o seu inicio, basta pensarmos nas referências de Ortega y 
Gasset aos perigos da especialização que já então se anunciava; mais recentemente autores como Hans Jonas 
(1994)  ou  Edgar  Morin  (1990),  entre  muitos  outros,  denunciam  os  riscos  desta“ortopedia  humana” 
organizada..  

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LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do 
conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias 
(Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

procedimento novo, a banda de energia mantinha‐se intacta apesar da fractura da 
folha.  A  ciência  moderna,  na  sua  linguagem  própria,  dirá  que  o  corpo  humano  é 
composto de campos energéticos. Estas emanações energéticas do corpo incluem 
campos  eléctricos,  magnéticos,  sonoros,  luminosos,  electromagnéticos  e  de  calor. 
No  entanto,  cada  indivíduo  tem  um  sistema  energético  próprio;  também  o  modo 
como  cada  um  interage  e  opera  com  as  influências  subtis  circundantes  varia  de 
indivíduo para indivíduo (Andrews, 1991: 18,21).   

Estudos  recentes  dão  conta  de  experiências  de  relaxamento  corporal  e  mental 
que  conduzem  o  indivíduo  a  um  estado  modificado  de  consciência,  sendo‐lhe 
possível trazer à consciência factos e decisões de vida que podem estar na origem 
de  comportamentos  de  padrão  negativo  e  repetitivo.  Este  movimento  de 
identificação, através de uma tomada de consciência, de transtornos de tipo diverso 
bem  como  das  suas  causas  permite,  segundo  os  autores  (Peres,  1999:  215  e  ss.), 
reprogramar a decisão que desencadeava o comportamento repetitivo indesejado. 
Este  é  neutralizado  através  de  uma  redecisão  tornada  possível  pelo  processo  de 
tomada de consciência. 

Num  texto  anterior  (Leite,  2002)  demos  conta  de  outros  exemplos  que  nos 
colocam face a um entendimento do corpo que desloca as suas actuais fronteiras. E 
uma  vasta  literatura,  vinda  das  mais  diversas  áreas,  permite‐nos  hoje  sondar  ou 
mesmo  aprofundar  algumas  interrogações;  da  medicina  (Simões,  1997;  Fenwick, 
1997;  Lommel,  2001;  Caldas,  2004,  entre  muios  outros)  à  Psicologia  (Hellinguer, 
2001;  Masson,  2006)  à  Antropologia  (Durand,  1996),  passando  pelo  ensaio 
teológico (Joaquim, 2000) ou a filosofia (Dinis, Curado, 2004).  

CONCLUSÃO
Também  a  literatura  tem  aqui  uma  palavra  a  dizer.  Na  sua  primeira  lição  no 
Collège de France, Roland Barthes dizia, em determinado momento, “La science est 
grossière, la vie est subtile, et c’est pour corriger cette distance que la littérature nous 
importe”  (Barthes,  1978:  18).  Se  tomarmos  o  conhecimento  como  um  vasto 
território indiferente ao género que o produz, vale a pena confirmar a convicção de 
Barthes  e  concluir  com  um  texto  literário  ‐  Maria  Gabriela  Llansol,  Um  falcão  no 
punho  (1998).  A  liberdade  do  dom  poético  projecta‐nos  aqui  no  fulgor  de  um 
pensamento  capaz  de  interrogar  o  corpo  no  intimo  da  sua  subtileza  e  potência, 
como se, na realidade, um outro corpo daqui pudesse nascer:   

Olhando uma parede branca, é­me muito dificil pensar. 

Mas eu sei que a parede está guardando o meu olhar. 

Acordar alguém é acordar o qué? Dormindo, não estará na sua fase de lua 
cheia? 

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LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do 
conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias 
(Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 
 
Pintar  uma  parede  branca  é  esconder­lhe  o  olhar,  ou  permitir­lhe  olhar­
me com alguns dos seus matizes? 

Para pensar, não é preciso ter vigor? 

Que faz ao corpo um mau pensamento? 

A recta intenção faz parte do corpo, ou do espírito? 

Se o pensamento não ama o corpo, que forma terá o pensamento? 

Quando  dou  uma  forma  escrita  intensa  ao  meu  sofrimento,  não  estarei 
ainda a pesar mais sobre ele, como se houvesse um fundo e nele uma saída 
luminosa? 

Quando  o  corpo  e  o  espírito  são  dois  amantes  experimentados,  surge  a 


proporção  escondida,  sabem  extraír  de  quase  nada  o  ardor  imenso  de 
criar. 

Um  belo  corpo  e  um  pensamento  justo  poderão  coexistir  num  contexto 
caótico? 

Escrever na sombra é ir à busca de que potência? O visivel segue a curva 
do dia? O invisivel seguirá a curva inversa? 

Que  ser  é  esse  que  escreve  sobre  uma  mesa  onde  todo  o  vegetal  está 
ausente? 

O contexto é do corpo e do texto; o que está doente no homem se este só 
olha o corpo? Se só cuida do texto? O pensamento que abstrai do contexto 
não terá a intenção de definir o corpo? 

O corpo vivo é uma forma ininterrupta. 

Dizer­se que é matéria de imagens feita, como quando o medo sobrevém, e 
o paralisa. O medo vem de si, a paralisia é sua. 

Estou certa de que o Texto modificou o corpo dos homens.  

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