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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESEISTTAQÁO
DA EDKJÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
AGOSTO
1958

ERGUNTE
e

Responderemos

ANO /
ÍNDICE

PAR.
I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Como se devem julgar a doutrina de Freud e a psicanálise


em geral ?" •«'

II. DOGMÁTICA

2) "Que <! a fe" ? Porque há misi trios e dogmax de fé ? Niío


derrogam a razño e. a dignidade do Iwmem ?" •iH¡

S) "Desejaria um eselarecimento sobre a fé fiducial, que alguna


crentes querem basear no texto de Hebr 11J: 'A fé é o firme
fundamento das coisas que se esperam, e a prova das eoisas
se nao véetrí (trad. de Ferreira de Almeida)" 332

í) "Que é um altar privilegiado ? E como se justifica ésse pri


vilegio ?" - S2J>
S) "E que dizer do privilegio das Missas gregorianas, após as
qtiais urna alma seria imediatamente libertada do purga
torio ?" S25
8) "Como se explieam as promessas anexas ao escapulario do
Carmo? A Justica Divina poderia,. simplesmente em ateneño
a r.xxa insignia, permitir que um pecador endurecido váo sr.jn
condenado '?" nr

m. SAGRADA ESCRITURA

7) "Visto que os antigos freqüentemente admitiam o nascimento


virginal de seus heróis, nao seria o propalado nascimento
virginal de Cristo mero produto da imaginacáo de seus dis
cípulos ?" ., m

IV. MORAL

S) "Qual o significado da figo. ? E como julgar, do ponto de


vista moral, o uso désse objeto ?" SS8

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

9) "Joana d'Arc foi urna santa autinticai urna heroína nacional


ou urna alucinada visionaria ? E a Igreja nao se comportan
injustamente no easo, a ponto de se querer retratar no século
XX, declarando santa a jovem que ela mesma condenou V 31,0

CORRESPONDENCIA MIODA W

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano I — N? 8 — Agosto de 1958

I. CIENCIA E RELIG1ÁO

I. D. (Sete Lagoas) :

1) «Como se devem julgar a doutrina de Freud e a psica-


nálise em geral?»

Comcgaremos por recordar sumariamente as principáis


teses de Freud, para poder proferir um juizo sobre elas.

1. A ideología de Freud

O médico de Viena Segismundo Freud (1856-1939) enea-


beca urna corrente de psicoterapia que ensina serem as neuroses
o produto de fatores ocultos e inconscientes a mover o individuo;
a descoberta e o reconhecimento de tais fatóres seria um dos
principáis remedios que o médico possa fornecer ao paciente
a fim de que se liberte de estados mórbidos e desenvolva h armo
niosamente sua vitalidade.
Essa corrente psicoterapéutica é comumente chamada «a
Escola Psicanalitica» ou simplesmente «Psicanálise» (— exame
da alma); depende da «Psicología das profundezas» (= ciencia
dos elementos encerrados ñas profundidades ou no subcons
ciente da alma). Verdade é que Freud e seus discípulos orto
doxos querem reservar para seu sistema característico o nome
de «Psicanálise»; do seu lado, psicoterapeutas náo-freudianos,
embora recorram a métodos análogos, preferem designar-se
por outro título, a fim de se distinguir bem dos freudistas.
Nao obstante, o termo «Psicanálise» (tomado no sentido etimo
lógico) tem significado mais ampio que o de «Freudismo»; éste
representa u'a modalidade da psicanálise, modalidade bem mar
cada por sua Filosofía.

Qual seria entáo essa Filosofía?


Para Freud, os processos psíquicos (atos e sentimentos do
homem) sao rigorosamente determinados por fórgas afetivas
ou, mais claramente, pelo instinto sexual, que técnicamente
é chamado libido (= desejo violento, paixáo, em latim). Esta
libido, conforme o freudismo, move a criatura humana desde
a .infancia; já certos atos do bebé, entre os quais o de comer
tém significado sexual, sao «erotizados» (Eros = amor, em

— 311 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 1

grego). Crescendo em idade, o individuo dirige seus desejos


sexuais para a pessoa de seus pais; a seguir, para o próprio
corpo (fase de «narcisismo» e masturbacáo) ou para pessoa do
mesmo sexo; finalmente toma o seu aspecto normal, voltando-se
para o outro sexo.
Pode dar-se, porém, no individuo um desenvolvimento
sexual anormal, devido em parte a recalques (repressócs) e
supressoes que a pessoa exerce sobre si em virtude de «precon-
ceitos» do mundo externo (éste, com suas categorías de pudor,
exige que cada membro da sociedade ande controlado). Famoso
exemplo de abcrracño ó o chamado «complexo de Édipo» (con
forme a lenda grega, Édipo, filho do rci c da rainha de Tebas,
matou seu pai para esposar sua máe, enredado que estava
em circunstancias fatais): todo menino, diz Freud, ama natu
ralmente sua máe e vé em seu pai um rival; acontece, porém,
que, ao crescer .em idade, o rapaz nao passe dessa primeira
fase sexual; nao podendo entáo satisfazer seu desejo erótico
com a pessoa de sua máe, transfere-o (expressáo técnica) para
outro termo, ou seja, para outra mulher, para a escola, para
a patria, etc. Se se trata de u'a menina (que em estado infantil
seria voltada para seu pai), o complexo de Édipo, ou melhor,
«de Electra» (outra personagem da literatura grega, famosa,
por haver vingado a morte de seu pai, que ela muito amava)
se transfere para o mestre, o guarda policial, o médico, etc.,
gerando atitudes mescladas de amor, admiracáo, respeito, odio
para com tais pessoas. Assim a atividade psíquica do adulto
nao seria senáo sexualidade infantil reprimida!...
Freud enumerava ainda, como outros fatores de estados
psíquicos anormais, o complexo de castracáo, os instintos da
vida e da morte (éste com suas duas modalidades : o masoquis
mo, tendencia do individuo a se maltratar, e o sadismo, ten
dencia a infligir pena aos outros), a forga da «censura», etc.
Muito importante no freudismo também é a divisáo da
psyché (alma) em tres partes: o Id (Es, em alemáo), sujeito
neutro, que vem a ser.o cabedal ou reservatório de instintos
inatos que cada individuo inconscientemente traz em seu íntimo;
o Ego, que representa a personalidade consciente, sujeito dos
pensamentos, afetos e movimentos humanos; o Super-Ego, que
é o poder.censor e orientador do individuo; aparece geralmente
aos cinco anos de idade e equivale á chamada «consciéncia
moral», constituindo-se, em parte, de foreas inconscientes que
se recalcam ou que se sublimam (termo técnico), aplicando-se
a objetos mais nobres do que os normáis.
Freud nao hesitou em avaliar á luz déstes principios todas
as manifestagóes da vida humana, inclusive as da religiáo, as
da cultura e da civilizagáo. Urna das vías que ele mais explorou

— 312 —
QUE PENSAR DA PSICANALISE ?

para desvendar o subconsciente, foram os sonhos («via regia»,


como di2da); estes constituirían! manifestagóes de desejos laten
tes, apresentados sob falsas vestes de modo a burlar o poder
de censura do próprio individuo; por conseguinte, interpretar
os «símbolos» que aparecem nos sonhos, é tarefa de primeira
importancia para o psicanalista freudiano.
Tais proposites já bastam para que possamos passar a urna
apreciagáo da posigáo doutrinária de Freud.

2. Um juízo sobre a questáo

No nosso julgamento devemos distinguir entre o Freudismo


estritamente dito e a Psicanáliso, conceito mais largo, de que
falamos atrás.
a) O sistema de Freud, na verdade, vem a ser mais do
que um método de técnica psicoterápica; equivale a urna con-
cepgáo geral do homem e do mundo. Com efeito, o Freudismo
toca as questóes capitais: «Quem é Deus? Quem é o homem?».
Ora da resposta dada a estas duas perguntas depende a solugio
de todos os problemas moráis, religiosos e filosóficos que o
homem possa formular.
Á primeira das duas grandes questóes responde Freud,
segundo os principios ácima enunciados, que Deus nao é urna
realidade objetiva, mas apenas urna idéia subjetiva, mero pro-
duto da mente humana afetada por um complexo doentio.
Os freudistas apresentam mais de urna tese para explicar o
surto dessa idéia. Uns julgam que provém do deslocamento da
atitude da crianga para com seus pais : o pequenino concebe
os genitores como entes cheios de bondade, sabedoria e poder,
que lhe incutem seguranga na vida; em idade mais adiantada,
procurando ainda gozar da mesma sensagáo de seguranga,
evoca em sua mente outra figura cheia de bondade, sabedoria
e poder, e projeta-a chamando-a «Deus». Outros afirmam que
a nogáo de Deus nao é senáo a projegáo do Super-Ego interior
e um produto de sublimagáo da libido.
Quanto ao homem, diz-nos Freud, numa quase-definigáo,
que é um animal sexual ou, mais precisamente, «bissexual».
Ao identificar o psiquismo humano com a sexualidade, o
sabio austríaco julgava propor ao mundo a terceira grande
descoberta registrada pela antropología recente ou o terceiro
desmentido á megalomanía do homem clássico : o primeiro
desmentido teria sido o de Copérnico, o qual provou ao homem
que ele nao habita o centro do universo, pois a Térra nao é
senáo um astrozinho a girar em torno do Sol; o segundo se
deveria a Darwin, que fez descer o homem da sua posigáo
privilegiada de «rei da criagáo» para o nivel dos demais animáis;

— 313 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 1

o terceiro, o de Freud, subtraía finalmente ao individuo humano


o último título de garbo, fazendo-lhe crer que nao é senáo o
joguéte de seus instintos mais baixos, instintos dos quais muitas
vézes nem é consciente. Estranha insistencia em humilhar o
homem!
Se, porém, se perguntasse a Freud como provaria essa
concepgáo antropológica, respondería tranquilamente que a
única prova consiste em se aceitar a doutrina já formulada. O
fato de que alguém nutra dúvidas a respeito das teses da Psica
nálise, ensina o mestre, provém de preconceitos; e, para que
o homem se liberte désses preconceitos que induzem ao erro,
ó nccessário se submcta á Psicanálise; cm conscqüéncia,
ninguém, antes de se render a um Iratamento freudiano, é
apto para julgar a doutrina de Freud e lhe opor alguma objegáo
válida. O douto autor se encastelava assim num fortim apa
rentemente irredutível. Fechava a porta á discussáo, dis-
tanciando-se de todos os sistemas da ciencia humana, os quais
recorrem a criterios objetivos para obter a aceitagao do público.
A posigáo freudiana, porém, equivale a urna afirmagáo gratuita,
coisa que é pouco convincente. Ademáis bons médicos, depois
de submetidos á Psicanálise por Freud mesmo ou por algum
de seus discípulos, recusaram aceitar integralmente as teorías
do mestre (é o que referem os dois autores Vanderveldt e
Odenwald na notável obra «Psychiatrie et Catholicisme». París
1954,217).
Na verdade, o pan-sexualismo de Freud é erróneo; rejei-
tam-no psiquiatras cada vez mais numerosos, admitindo, como
independentes do instinto sexual, outros agentes da vida psí
quica, quais as tendencias <a ambigáo, á inveja, ao egoísmo, á
cobiga de riqueza e fama, etc... Dentre os próprios discípulos
de Freud, houve quem cedo abandonasse a tese do pan-sexua
lismo (assim em 1912 Alfred Adler, Cari Gustav Jung); outros
se afastaram*mais tarde, como Bleuler, Stekel. O testemunho
déstes dentistas é corroborado pelo de S. Santidade o Papa
Pió XII num discurso proferido aos membros do I Congresso
Internacional de Histopatologia do sistema nervoso, em 14 de
setembro de 1952:

«Nao está provado, é mesmo inexato, que o método pan-sexual


de certa escola de Psicanálise seja parte integrante indispensável
de toda a psicoterapia seria e digna déste nome; que o íato de se
ter no" passado descurado éste método tenha causado graves males
psíquicos, erros de doutrina e de aplicacSes em educacáo, em psicote
rapia e também em pastoral; que urja preencher essa lacuna e
iniciar todos aqueles que se ocupam com questSes psíquicas, ñas
idéias diretrizes e mesmo, se fór preciso, no manejo prático dessa
técnica da sexualidade» (transcrito da «Revista Eclesiástica Brasileira»
XH [1952] 949).

— 314 —
QUE PENSAR DA PSICANALISE ?

Vá é outrossim a afirmagáo de que o homem é animal nao


simplesmente sexual, mas bissexual. Os casos dos individuos
simultáneamente heterossexuais e homossexuais nao bastam
para sustentar tal proposigáo; o comportamento de certos ado
lescentes, que parece argumento mais persuasivo, explicar-se-ia
melhor se se admitisse que sao assexuais.
Passando agora ao setor da educagáo, verifica-se que os
principios de Freud dáo frutos nocivos : o pedagogo que os
adota, toma por norma «nao criar inibigóes para nao produzir
neuroses»; em conseqüéncia, pais e mestres receiam impor
disciplina aos jovens a fim de nao criar néles um «recalque»
qualquer; nao dizem mais que algucm esquccc alguma coisa,
mas que a «retém», e a retém por razóes de libido; os erros
da linguagem e da escrita, os atos desajeitados, os devaneios da
fantasía, as pilhérias sao análogamente explicados como expres-
sóes de um instinto oculto propulsor e conseqüentemente sub-
traídos ao foro da moralidade; o Freudismo os aprecia princi
palmente enquanto sao indicios reveladores dos complexos
psicológicos do respectivo sujeito. Assim Freud se colocou num
plano semelhante ao de Nietzsche, seu contemporáneo, plano
em que sao desvirtuadas ou pretensamente ultrapassadas as
categorías do bem e do mal (o que vem a ser grave erro nao
sómente de Ética, mas também de Metafísica; cf. «Pergunte
e Responderemos» 7/1958 qu. 5). Reconhega-se, porém, que o
sabio austríaco até o fim da vida manteve urna conduta moral
irrepreensivel, mostrando-se marido atencioso e pai dedicado
de seis filhos.
As consideragóes ácima evidenciam que o Freudismo re
dunda em materialismo, reduzindo o ser humano a urna de suas
expressóes mais baixas, mais remotas da dignidade intelectual
e livre, característica de nossa especie. Nem Deus nem destino
transcendente tém cabimento dentro dessa ideología.
Ñas suas aplicagóes psicoterápicas, o Freudismo tem tido
conseqüéncias nao raro daninhas, deformando a personalidade
do paciente, uicutindo-lhe nogóes erróneas, que lhe suscitam
problemas novos' e vaos. Um médico destituido de consciéncia
moral fácilmente se tornará destruidor da consciéncia do pró
ximo mediante as idéias que irá comunicando ao seu cliente.
b) Eis, porém, que as concepgóes filosóficas de Freud
sao separáveis do método terapéutico que éste médico (honra
lhe seja feita) instaurou na psiquiatría moderna. A existencia
de fatóres inconscientes a motivar o comportamento humano é
hoje em día comumente reconhecida, de sorte que a pesquisa
dos mesmos mediante a técnica psicanalista se justifica sem
dificuldade.

— 315 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 2

Contudo, como dizíamos, nem todos os psicanalistas (no


sentido etimológico da palavra) interpretan! os resultados da
análise segundo os principios filosóficos de Freud : muitos sao
fiéis á mais pura crenga religiosa, recbnhecedores da dignidade
espiritual da alma, do destino transcendental do paciente e, em
particular, da graga de Deus na cura de um estado patológico.
Pondo os resultados da Psicanálise a servigo de sá filosofía,
só podem contribuir para o reerguimento espiritual dos que
sofrem, e exercer assim urna fungác muito próxima á do
sacerdote. Será, pois, importante desfazer-se a concepgáo, hoje
muito propalada, de que a Psicanálise por si excluí a Religiáo
e nao pode reconhecer o valor das noyóes de Dous e da alma,
como se fóssem construgóes imaginativas geradas por «comple
xos». A fim de nao citar muitos nomes, lembraremos apenas
que, para Jung, a Religiáo, longe de ser urna ilusáo subjetiva,
constituí a expressáo mais significativa e respeitável da vida
psíquica.
Por último, convém notar que a confissáo sacramental é
independente de Psicanálise, pois a sua eficacia se deriva essen-
cialmente de fator sobrenatural ou da agáo da graga de Deus,
de que o sacerdote é mero ministro. Nao há dúvida, porém,
de que muito poderá lucrar o ministerio sagrado se o confessor,
além de habilitado canónicamente, estiver outrossim munido
de conhecimeíitos psicológicos que o habilitem a constituir no
penitente um fecundo receptáculo natural da graga sobrenatural.

II. DOGMÁTICA

A. C. V. (Belo Horizonte) :

2) «Que é a fé? Porque há misterios e dogmas de fé?


Nao derrogam á razao e a dignidade do homem?»

Antes de propor urna definigáo ou quase-definigáo da fé,


procuremos descrever as notas características desta.

1. A fé nao é a conclusáo de um raciocinio que leve o


pensador a aderir a urna verdade plenamente compreensivel
para o intelecto humano. É, ao contrario, a adesáo a um teste-
munho, e a testemunho prestado por urna autoridade superior
ao homem.
Tal autoridade, no caso, vem a ser Deus, que falou por
Jesús Cristo, Legado Divino, e fala pela Igreja, Corpo prolonga
do de Cristo (nao para acrescentar novas proposigóes á Reve-
lagáo feita por Cristo, mas para transmitir esta Revelagáo de
forma autentica; cf. Mt 28,20).

— 316 —
FÉ, DOGMA E MENTALIDADE MODERNA

2. Disto se segué que a fé tem necessáriamente por


objeto verdades que, embora nao sejam contraditórias á razáo
humana, ultrapassam o alcance da mesma; sao verdades sobre-
naturais, evidentes a Deus, a Deus só, que se dignou revelá-las
ao homem, nao para o constranger e humilhar, mas para lhe
manifestar seus designios sabios e benévolos. Estas verdades
ficaráo sempre semi-obscuras para a criatura peregrina na
térra, penetráveis, sim, até certo ponto, mas nao totalmente.
Chamamo-las «misterios da fé» ou «dogmas» («dogmas», por
que apresentadas por autoridade); tais sao : a SSma. Trindade,
a Encarnagáo do Filho de Deus, a S. Eucaristía, etc. A existencia
dfisses misterios nao surprccndc o pensador; é inórente ao con-
ccito mesmo de «Religiáo», visto que a Religiáo (e só há urna
verdadeira) poe o homem em contato com um Ser cuja sabe-
doria é transcendente, ou seja, com Deus; urna religiáo r?em
misterios deixaria a criatura no plano meramente humano, seria
obra do bom senso apenas ou até da fantasía.
3. Conseqüentemente verifica-se que a adesáo ás propo-
sigóes de fé nao se impóe por si á inteligencia (como, por
exemplo, a conclusáo de urna demonstragáo matemática); mas,
visto que o objeto da fé fica semi-obscuro, é, em última análise,
a vontade que move o intelecto a dizer «Sim.» a Revelacáo
divina. O homem tem fé desde que o queira (suposta natural
mente a graca de Deus, que a ninguém é denegada).
Em outros termos: para ter fé, basta ñ pessoa fazer urna
profissáo explícita do Credo (depois que se tenha certificado
de que esta é plausível e razoável) e viver coerentemente com
tal profissáo; o próprio Deus, a seguir, se encarregar-á de
mostrar ao seu fiel que ele nao se enganou. Tenha-se por
certo que «querer ter fé» já é «ter fé». Quem diz nao ter fé,
nao julgue que esta lhe vira por urna iluminacáo extraordinaria
da inteligencia («um estalo») nem pense que a fé coincide com
o entusiasmo sensível ou o deleite natural que o sujeito possa
experimentar diante de urna verdade sobrenatural; a fé é
movida pela vontade, independentemente das reagóes da sensi-
bilidade; é, pois, plenamente compatível com a aridez ou a
noite dos sentidos; cf. «Pergunte e Responderemos» 5/1957
qu. 2.
4. Mas entáo será o papel da razáo humana desprezado e
removido pela fé?
Nao. Todo homem tem o direito (e, ás vézes, até obrigagáo)
de saber porque deve aderir ou adere a tais e tais misterios.
Em vista disto, aplicará sua inteligencia ao exanie das creden-
ciais que tornam aceitável o testemunho da Revelagáo; assim
toca á razáo averiguar qual a autoridade de Jesús, qual a

— 317 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» S/1958. qu. 2

autoridade da Igreja, quais os frutos produzidos pela verdade


revelada, etc.; toca-lhe também analisar os termos dos artigos
de fé e verificar se nao sao absurdos em si mesmos. O homem
de fé, portanto, nao renuncia á dignidade de sua inteligencia;
ao contrario, é esta mesma que o leva a ver que mais razoável
é crer do que nao crer;... que se desvia da razáo aquéle
que nao eré, ao passo que quem eré, apenas vai além da razio,
prosseguindo, porém, na mesma direcáo. É a própria razáo
humana que exige do homem desejoso de alcancar a verdade
em plenitude, ultrapasse a si mesmo e dé assentimento a ver
dades divinas, desde que estas se apresentem devidamente cre-
denciadas.
Para ilustrar quanto acabamos de dizer, consideremos o
caso de quem acredita, por exemplo, haver arranha-céus em
Nova Iorque. Tal pessoa, embora afirme algo de que ela
mesma nao tem evidencia direta, nao desdiz a sua nobreza
de ser racional; no caso, a sua razáo nao investiga os edificios
daquela cidade nem a capacidade dos arquitetos norte-america
nos, mas apenas a autoridade das testemunhas que lhe asseve-
ram haver tal género de construcóes em Nova Iorque; uma vez
comprovada essa autoridade, a própria razáo afirma ao homem
ser razoável (e até necessário) crer, e ser desarrazoado ou
absurdo nao crer. Assim também nao cabe a razáo humana
provar diretamente que o Senhor está presente na Eucaristía
nem que o sacramento da Penitencia apaga os pecados, mas
toca-lhe assegurar-se de que Cristo afirmou realmente estas
coisas e de que Cristo merece toda a confianga (esta seguranga,
uma vez obtída, já é suficiente para que o individuo diga o seu
«Sim» sem renunciar ia sua dignidade humana).
Na base destas observagóes, podia S. Tomaz afirmar:
«Ninguém acreditaría se nao visse que deve acreditar».
Quanto ás íredenciais que nos manifestam a autoridade divina
de Cristo, veja-so «Pergunte e Responderemos» 8/1957, qu. 1. Sobre
a autoridade dos Evangelhos e da Igreja Católica como transmissores
da genuina Palavra de Cristo, veja-se «P. e R.» 7/1958, qu. 2-4.
5. Ainda parece oportuna uma ulterior observagáo sobre
o sentido dos misterios da fé. Costuma-se sublinhar que sao
«verdades transcendentes ou elevadas demais para a nossa
compreensáo». Assim o seu aspecto negativo e quase esmagador
é realgado, ao passo que se focaliza pouco ou insuficientemente
o caráter luminoso dos mesmos misterios.
Na verdade, todo misterio da fé, ao mesmo tempo que
vela ou encobre, revela e manifesta; sim, o misterio «localiza e
delimita o inexplicável», tornando-se assim fonte de explicagáo
para o conjunto da realidade. Notemos que, já no terreno do
saber meramente humano, as explicagóes ditas «científicas», con-

— 318 —
FÉ, DOGMA E MENTALIDADE MODERNA

sistem muitas vézes em «localizar ou (indicar) o inexplicável»;


assim, para dar conta dos fenómenos eletrónicos, os cientistas
recorrem aos fatores «eletricidade» e «magnetismo» e as leis
de sua atívidade, sem que contudo saibam explicar exatamente
em que consiste o próprio «misterio» da eletricidade; para
dar conta dos fenómenos químicos, recorrem á nogáo de afini-
dade entre os elementos e «localizam» a aplicagáo desta, sem
que, porém, saibam indicar plenamente o que é tal afinidade;
para dar conta dos movimentos dos planetas, apelam para a
atragáo vigente entre os corpos e para a sua atuagáo precisa
em tal ou tal fenómeno, sem que, porém, possam indicar a razáo
última do fenómeno mesmo da atragáo.
Análogamente, as fórmulas dos misterios da fé nos permi-
tem fixar e delimitar o que é transcendente ou os objetos que
nao podemos conhecer como os demais. Ora esta delimitagáo
nao pode deixar de produzir clareza sobre o conjunto da rea-
lidade. Nao negaremos, por conseguinte, que a criagáo, a Trin-
dade, a Encarnagáo sao misterios, mas reconheceremos outros-
sim que tais misterios ajudam a compreender o sentido do mundo
e da vida humana.
6. A fim de ilustrar esta afirmagáo, aparentemente pa-
radoxal, seja aqui recordado um fato particularmente ex-
pressivo.
O misterio mais especulativo e, á primeira vista, mais
árido da fé crista ó o da SS. Trindade : um só Deus em tres
Pessoas.
Pois bem. Consideremos o panorama religioso contemporá
neo. Só há atualmente urna religiáo monoteísta: a da Revelagáo
judaico-cristá (o monoteísmo islámico nao é senáo urna deriva-
gáo do judaismo e do cristianismo fundidos com antigás crengas
árabes) (1). Em torno do monoteísmo cristáo, encontram-se
hoje em dia o politeísmo (crenga em muitos deuses), com suas
múltiplas variedades (fetichismo, animismo, totemismo...) oú
o panteísmo, sistema que identifica Deus com o mundo, conce-
bendo a Divindade como substancia neutra que evolui na natu-
reza e no próprio homem.
Ao passo que o politeísmo é comum entre os povos selva-
gens, o panteísmo vem a ser o apanágio principalmente das
escolas orientáis (o budismo, o hinduismo e as formas modernas
déste : a teosofía, o rosacrucianismo...) e de alguns sistemas
filosóficos modernos (o spinozismo, o hegelianismo...).
(1) Nao levamos em conta aqui o «Deísmo», monoteísmo filo
sófico dos racionalistas dos séculos XVII/XVIII e dos contemporáneos
Nao lhe cabe consideracáo á parte, pois já se tem dito — com razáo —
que toda a filosofia ocidental após Cristo sofre a influencia, positiva
ou negativa, do Cristianismo. É o caso do «Deísmo», que representa
urna oposicáo ao Cristianismo.
. — 319 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 2

Nao há dúvida de que o politeísmo e o panteísmo represen-


tam graus de pensamento aberrante, que nao se poderia con
frontar com a posigáo monoteísta. O politeísmo, com efeito,
esfacela a nogáo de Deus, que por si mesma significa «Absoluto,
Infinito»; ora o Absoluto ou Infinito nao pode ser parcelado
porque nao tem partes ,(cada parte diz por si limitagáo, e nao
é o acumulo de limitagóes que faz o Ilimitado). Do seu lado,
o panteísmo, identificando a Divindade com o mundo, admite
evolugáo e transitoriedade em Deus ou no Absoluto, o que é
contraditório (o Absoluto repele, por seu concertó mesmo, qual-
quer mudanga e contingencia).
Dito isto, observemos que o monoteísmo, única posigáo reli-'
giosa coerente com o conceito de Deus e com a razáo humana,
está, no decorrer da historia, indissolüvelmente associado ao
misterio da SS. Trindade (o monoteísmo judaico estava todo
orientado para o monoteísmo cristáo, a título de escola previa;
depois que veio Cristo, o vigor religioso de Israel se esvaneceu;
haja vista o moderno Estado de Israel). É, pois, o misterio da
Trindade SS. que, de fato, na historia da Religiáo, tem
garantido e garante a profissáo desta verdade táo natural e
racional que é o monoteísmo. De passagem, notemos que esta
associagáo de monoteísmo e misterio da SS. Trindade se ex
plica sem dificuldade pelo fato de que o misterio da Trindade,
longe de ser adventicio ao conceito de Deus Uno, decorre da
esséncia de Deus; cf. «P. R.» 1/1958, qu. 3.
Onde nao se professa o misterio da SS. Trindade, veri-
fica-se que também nao se professa o monoteísmo, verdade
meramente filosófica ou natural (reconhegamos que a reali-
dade poderia ser outra, mas de fato é esta); o homem cai ñas
contradigóes do panteísmo e do politeísmo, deixando de usar
sadiamente da sua razáo (1). — Chega-se entáo a estupenda
conclusáo: o Cristianismo, com o misterio da SS. Trindade,
ainda é mais Fazoável e humano do que os sistemas que, desem-
baragados de dogmas e misterios, professam o panteísmo e o
politeísmo.
Por isto é que se diz que os misterios da fé sao luminosos;
embora em si mesmos nao sejam plenamente penetráveis á
fraca razáo humana, projetam em torno de si a luz necessária
para se chegar a um entendimento coerente do mundo e do

(1) O espiritismo moderno, na medida em que é religiáo, nao


constituí senáo um derivado (aberrante) do Cristianismo; era na
linha déste que Alian Kardec se colocava codificando a «Terceira
Revelacáo» (a primeira teria sido dada, por meio de Moisés, aos
judeus; a segunda, aos cristáos, por meio de Cristo). Se a ideología
espirita professa o monoteísmo sem aceitar o misterio da SS. Trin
dade, professá-o porque retém parte das doutrinas que aprendeu na
escola do Cristianismo.
— 320 —
FÉ, DOGMA E MENTALIDADE MODERNA

homem, entendimento que nao se obtém nos sistemas religiosos


alheios aos misterios da fé crista (urna falsa nogáo de Deus há
de acarretar desvíos em todos os demais setores da filosofía).
Os misterios da fé sao, portante, como um sol, táo brilhante
que náó pode ser fitado em si, mas táo luminoso que tudo é
por ele iluminado. Daí a pergunta significativa de Jacques
Riviére :
«Será lícito dizer que nao se compreende aquilo (o misterio)
sem o qual tudo mais se torna incompreensivel?» (A la trace de
Dieu 44).
O mundo o o homem sem os misterios da fé se tornam
muito mais misteriosos do que ésses mistónos mesmos.
7. Depois de tais consideracóes, já se pode resumir o
que é a fé, na seguinte fórmula elaborada pelo Concilio do
Vaticano (1870) :
«A fé é urna virtude sobrenatural,
Mediante a qual, prevenidos e auxiliados pela graca de Deus,
Temos como verdadeiras as proposicSes que Deus revelou,
Nao por havermos percebido com nossa razáo a veracidade
intrínseca das mesmas,
Mas por causa da autoridade de Deus,
Que nao pode engañar a Si nem engañar a nos».
(Denzinger, Enchiridion 1789).
Nesta definicáo interessa-nos explicar a cláusula por
vézes mal entendida : «prevenidos e auxiliados pela graca».
Significa que a fe é dom de Deus; o que bem se entende, pois
constituí auténtica participacáo do homem no conhecimento
com que Deus conhece a Si. Tal dom a ninguém em absoluto
é recusado, pois «Deus quer que se salvem todos os homens»
(1 Tim 2,4). Apenas se exige da criatura um ánimo aberto
á graga, desembaragado do apego as paixóes e, em particular,
livre do orgulho.
Muitas vézes o problema da fé se traduz no dilema seguinte:
é preciso optar
ou pelo orgulho, que quer limitar o homem ao que ele
«compreende» ou julga compreender (e isto é táo pouca coisa!);
o orgulho fecha, portante, o individuo em si e o torna anáo
intelectual e moral;
ou pela humildade, que exige da pessoa, ultrapasse a si
mesma e se entregue a um Ser maior e mais nobre.
É sómente optando por éste segundo alvitre, o alvitre da
fé, que o homem quebra os grilhóes do próprio Eu e se desenvolve
e engrandece normalmente.
A fim de que se tenha a coragem para dar éste passo, a
primeira arma a que se há de recorrer será a oracáo :
«Se nao és atraído, ora para que venhas a ser tal» (S. Agos-
tinho).

— 321 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 3

FIDELENO ESPERANZOSO (Rio) :

3) «Desejaria um esclarecimento sobre a fé fiducial, que


alguns crentes querem basear no texto de Hebr 11,1: 'A fé é o
firmo fundamento das coisas que se esperam, e a prova das
coisas que se nao véem' (trad. de Ferreira de Almeida)».
1. A chamada fé fiducial se baseia em idéias de Lutero,
que assim se concatenam :
O pecado de Adáo afetou a natureza humana a ponto de
a tornar definitivamente ferida. Donde se segué que todas as
obras que o homem realizo por suas fórcas naturais, sao radical
mente viciadas. A concupiscencia desregrada, que todos recebein
como heranga de Adáo, deve ser identificada com o pecado;
ela é o pecado mesmo a residir no homem. A concupiscencia
é invencível; pelo que se torna váo falar de «livre arbitrio» ou de
liberdade para praticar o bem; alias já Sao Paulo exclamava:
«Miserável homem que sou! Quem me livrará do corpo desta
morte?... Assim eu mesmo com o entendimento sirvo a lei
de Deus, mas com a came á lei do pecado» (Rom 7,24s).
Que acontece entáo quando o homem se converte, conce-
bendo a contrigáo de suas culpas e a fé no Redentor?
Nessas circunstancias, o Pai do céu se digna nao imputar
á criatura o pecado que nela reside e continuará a residir; o
crente é revestido dos méritos de Cristo, sem, porém, dcixar
de ser pecador, como Jaco foi revestido com os trajes de Esaú,
sem deixar de ser Jaco, o Suplantador fraudulento. O Pai do
céu, portante, declara a criatura justificada ou agraciada em
termos meramente jurídicos, sem que por isto ela seja renovada
interiormente.
Prosseguindo na sua explanagáo, diria Lutero que o meio
preciso pelo qual o pecador se reveste do manto de Cristo, é a fé.
Esta consiste em crermos, cheios de confianca, que Deus nos
quer gratuitamente perdoar os pecados e salvar por Cristo.
A fé assim concebida vem a ser movimento afetivo muito mais
do que assentimento do intelecto a proposigóes reveladas; é a
fé fiducial. Alguns protestantes do século passado, como Schlei-
ermacher, chegaram a conceber toda a vida crista fundada sobre
urna fé sem dogmas, meramente emotiva e sentimental: «Fé em
Cristo significa apego a Cristo, emogáo forte de amor e gra-
tidáo» (Sanday, Comentario da epist. aos Rom. XLVI).
Como se vé, um dos esteios do concertó protestante de
fé fiducial é a tese de que a concupiscencia e o pecado nao
podem ser superados nem cancelados no homem. Bem diversa
é a posigáo doutrinária do católico (e da Sagrada Escritura...).
Éste sabe que a natureza humana é atingida e sanada interior-

— 322 —
A «FÉ FIDUCIAL» PROTESTANTE

mente pela graga do Redentor; o Batismo realiza urna renova-


gáo ontológica no neófito, tornando-o «participante da natureza
divina» (2 Pdr 1,4), «filho de Deus, nao apenas de nome, mas
no mais íntimo do seu ser» (cf. 1 Jo 3,1). Em conseqüéncia,
a fé, para o católico, nao é própriamente um ato de confianga
cega na mensagem da salvagáo gratuita, mas é primariamente
a adesáo da inteligencia as verdades que Deus reveiou (entre
as quais está sem dúvida a mensagem de renovagáo intrínseca da
natureza contaminada pelo pecado). O Cristianismo é Revelagáo
da Verdade, possui um conteúdo intelectual destinado a ser
aprcendido como tal. A fe, poróm, nao pode ficar no plano mera
mente intelectual, pois a Palavra de Deus vem ao encontró do
homem exalando amor; por conseguinte éste só Ihe pode res
ponder cabalmente exalando, também ele, amor, isto é, con
fianga e entrega generosa ao Pai do céu.
2. O texto de Hebr 11,1 é citado como um dos funda
mentos da doutrina da fé fiducial. Examinemos, pois, o seu
significado preciso.
a) O autor sagrado diz primeiramente que a fé é a
hypóstasis dos bens que esperamos.
Qual será a acepgáo do termo grego hypóstasis?
Ao pé da letra, esta palavra significa «o que se coloca
debaixo»; por conseguinte, «suporte, base, fundamento». Na
linguagem tardía dos papiros (que corresponde :a época em
que foi redigida a epístola aos Hebreus), designava freqüente-
mente «propriedade» ou «direito de posse» ou «garantía de
posse»; podía também indicar o conjunto de documentos depo
sitados nos arquivos a fim de atestar um auténtico direito de
propriedade. Á luz destas notas filológicas, bons exegetas nao
hesitam em entender o termo hypóstasis de Hebr 11,1 no
sentido de «posse antecipada» ou «garantía objetiva, caugáo,
penhor» das realidades invisíveis, eternas, que esperamos des
frutar em plenitude após a morte. A fé vem a ser, portante,
a realidade celeste a nos outorgada na térra sob a forma de
germen. Quem possui urna caugáo, possui o tesouro mesmo a
que ela corresponde, ñas condigóes, porém, de um papel ou
documento de aparéncia vil; assim quem tem a fé, tem os bens
celestes, mas ainda encobertos pelos véus aparentemente vis
dos sacramentos e dos misterios da vida presente. Contudo
fé e visáo de Deus face a face estáo na mesma linha, formam
um só todo continuo; a fé se vai desenvolvendo aos poucos
neste currículo terrestre até desabrochar na contemplagáo
direta da Divindade. — Nao seria preciso repetir muito que
a fé assim entendida é a fé viva, nao meramente teórica, mas
traduzida em conduta prática coerente.

— 323 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 4

Foi Erasmo de Rotterdam no séc. XVI quem pela primeira


vez propós para o vocábulo hypóstasis de Hebr 11,1 o sentido de
«sólida confianga», «seguranga». Seguiram-no o reformador
Zwingli e muitos autores protestantes posteriores : Melanchton,
Grócio, Tholuck, Delitzsch, Holzmann, Robinson, etc. Tal modo
de traduzir, porém, .nao se impóe necessáriamente ao filólogo
(note-se que a Biblia de Ferreira de Almeida, geralmente
usada pelos protestantes, dá a hypóstasis a acepgáo de «firme
fundamento»).
b) O hagiógrafo afirma outrossim que a fó ó o «lonchos
das coisas que nao se véem. Élcnchos em grego vem a ser
«aquilo que torna certo ou seguro...»; é o argumento, a prova,
o titulo que gera conviecáo. Assim entendido, o segundo termo
da frase completa o sentido do primeiro. A fé nao é sómente
garantía objetiva de posse, mas é também o elemento que em
nos produz a persuasáo de que existem as realidades invisíveis
que esperamos atingir. A fé fornece permanentemente ao cristáo
a demonstracáo e a evidencia do Invisível; destarte ela concorre
para aumentar a energía de conduta, corroborar a paciencia,
suscitar o esfórco do discípulo de Cristo.
Eis como o autor da epístola aos Hebreus descreve a fé
numa visáo grandiosa e profunda, que nao seria lícito interpre
tar á luz de teses teológicas preconcebidas.

PERTURBADO (Rio de Janeiro):

4) «Que é um altar privilegiado? E como se justifica ésse


privilegio?»

A resposta a esta questáo supóe o que foi dito sobre o pur


gatorio em «Pergunte e Responderemos» 8/1957 qu. 3, e sobre
as indulgencias em «P. R.» 2/1958 qu. 2.
Resumindo o que se refere as indulgencias, lembraremos
que os méritos de Cristo (os quais frutificam .nos da Bem-aven-
turada Virgem Maria e dos Santos) constituem o chamado
«tesouro da Igreja». Éste depósito sagrado está confiado a
Esposa de Cristo qual mandatária do Senhor e depositaría dos
meios da salvacáo; ela pode dispor de tal tesouro segundo o
seu justo criterio. Na verdade, ela o faz associando a certas
obras a remissáo de penas devidas a pecados já perdoados. Táo
liberal remissáo se chama «indulgencia». As indulgencias podem
ser lucradas em favor de quem age ou do seu próximo aqui na
térra; podem outrossim ser oferecidas a Deus em sufragio dos
fiéis defuntos que alguém queira beneficiar, obtendo-lhes a re
missáo da pena expiatoria postuma.

— 324 —
QUE fi ALTAR PRIVILEGIADO?

Ora acontece que entre as obras enriquecidas de indul


gencias está a celebragáo da S. Missa em «altar privilegiado».
Éste, por definigáo, proporciona indulgencia plenária {remissáo
total das penas do purgatorio) ao defunto pelo qual se celebra
a S. Missa. A Santa Igreja, constituindo um altar privilegiado,
geralmente visa chamar a atencáo dos fiéis para tal verdade
ou tal fato histórico que se relacionem com o mencionado altar
— o que deve redundar em beneficio da piedade dos cristáos.
Nao se poderia, porém, deixar de notar que a aquisigáo
de indulgencias fica sempre sujeita a incertezas, pois supóe, da
parte de quém age, contrigáo e caridade tais que ninguém pode
asscgurar que de fato as possui (cf. «Perpunte e Respondere
mos» 2/1958, qu. 2). A aplicae,áo de indulgencias aos fiéis de-
funtos ainda está envolvida em maiores dúvidas, pois os mortos
já nao pertencem á jurisdigáo da Igreja militante na térra;
Cristo nao nos revelou a maneira como Inés aplica os nossos su
fragios, como nota o conceituado teólogo P. A. Michel:
«Quando se lucram indulgencias por via de sufragio pelos mortos,
a incerteza aumenta... Já nao estamos aqui no setor da justica
pura e simples como... seria o caso se alguém satisfizesse por si
mesmo e porque o deve; quem oferece a Deus o sufragio em favor
dos defuntos, procura agir sobre outra alma que nao a sua própria.
A cota penitencial, que já é incerta no tocante a nos, é entáo aplicada
á realidade de além-túmulo, que para nos é o misterio quase absoluto»
(Indulgences, em «Dictionnaire de Théologie Catholique» VII 2. Paris
1930, 1622).
Sendo assim, entende-se que, no caso particular do «altar
privilegiado», a Santa Sé, por meio da Sagrada Congregacáo
das Indulgencias, haja declarado em 1840 :
«Por indulgencia anexa a um altar privilegiado, se se considera
a mente de quem a concede e o uso habitual do poder das chaves,
entenda-se urna indulgencia plenária, que liberta a alma ¡mediata
mente de todas as penaa do purgatorio; se, porém, se considera a
aplicacao dos frutos, entenda-se urna indulgencia cujas proporcóes
correspondem ao beneplácito e á aceitacáo da misericordia divina»
(Decreta authentica 283).
Como se vé, falso seria crer que o altar privilegiado produz
efeito mecánico. No caso, a Santa Igreja faz uso legítimo do
chamado «tesouro da Igreja»; nao se sabe, porém, em que me
dida os cristáos na térra estáo aptos para obter e os defuntos no
purgatorio capacitados para receber táo liberal aplicacáo dos
méritos do Redentor.
5) «E que dizer do privilegio das Missas gregorianas, após
as quais urna alma seria ¡mediatamente libertada do purga
torio?»
É comum afirmar-se que urna serie de trinta Missas cele
bradas, urna por dia, sem interrupgáo alguma, merece para
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 5

determinada alma do purgatorio a remissáo de toda a pena


temporal.
Para se julgar o valor desta crenga, é oportuno recordar
a sua origem.
Está baseada remotamente numa narrativa de S. Gregorio
Magno, Papa (t 604), o qual, antes de subir ao Pontificado,
foi Abade do Mosteiro de S. André em Roma, ande relata ter
ocorrido o caso seguinte :
Na comunidade de Gregorio, um dos monges guardava,
as ocultas e á revelia da Regra comum, tres moedas de ouro
em seu poder. Veio, porém, a adoecer gravemente; em conse-
qüéncia, os irmáos que o tratavam, chegaram a descobrir o
dinheiro escondido. O Abade entáo, desejoso de despertar a
consciéncia dos monges e impedir se repetisse tal infragáo,
determinou que, caso falecesse o transgressor, seria sepultado
com o seu dinheiro fora do cemitério comum. Com efeito, o
enfermo, após haver-se arrependido de sua falta, morreu, e
foi enterrado á parte, o que muito impressionou a comunidade.
Após isto, o Abade Gregorio, que vivia solícito pela sorte do
defunto, julgando-o no purgatorio, mandou a um de seus reli
giosos iniciasse urna serie ininterrupta de trinta Missas em
sufragio do irmao. A ordem estava sendo executada sem que
alguém pensasse em contar os dias de celebragáo, quando numa
noite a alma do monge transgressor apareceu a quem por ele
celebrava, dizendo-lhe que até cntáo sofrera, mas acabava de
ser admitido na mansáo celeste. Foi por essa ocasiáo que os
irmáos pensaram em calcular o número de Santas Missas ofere-
cidas, verificando com surprésa que a aparigáo se dera justa
mente após a trigésima celebragáo.
Éste episodio, narrado por S. Gregorio sem a intengáo de
deduzir daí alguma regra, aos poucos na Idade Media foi sendo
considerado como normativo: a Abadia beneditina de Cluny
(séc. X/XI) conservou entre os seus costumes a praxe das trinta
Missas «gregorianas», a qual se difundiu no povo cristáo, jun
tamente com a conviegáo de que o Senhor, por sua Misericordia,
concedía a remissáo das penas do purgatorio á alma a quem
fósse aplicada a serie sagrada. Ao lado, porém, das trinta Missas
gregorianas, os medievais costumavam celebrar series de 3, 5,
6, 7, 9, até mesmo de 41, 44 e 45 Missas pelos defuntos, series
nao raro inspiradas em narrativas análogas á que ácima citamos.
A Igreja nunca definiu a eficacia especial de alguma dessas
series de Missas. No séc. XVI, quando se efetuou urna reforma
da Liturgia, as autoridades eclesiásticas houveram por bem só
permitir para o futuro a serie das Missas gregorianas, cance
lando as demais congéneres; com esta atitude, porém, a Igreja
nao intencionou em absoluto garantir a crenga popular concer-

— 326 —
MISSAS «GREGORIANAS»

nente aos frutos das Missas gregorianas. Nao há na Tradigáo


crista fato nem documento algum que possa servir de base ple
namente segura a tal crenga; o próprio S. Gregorio Magno, nar
rando o caso ácima referido, nao visava tirar do mesmo alguma
conclusáo geral. Em favor da praxe está apenas o fato de que a
Igreja a aprovou e aprova, sem, porém, decidir algo sobre os
efeitos a ela anexos.
A título de ilustragáo, pode-se acrescentar que, aos 17 de
margo de 1934, o Santo Oficio rejeitou o uso, recentemente
instaurado na Polonia, de celebrar 44 Missas por urna pessoa
ainda viva, a fim de que sua alma fósse, conforme urna pretensa
«Revelncíio Divina», libertada do purgatorio tres dias após a
morte. Tal praxe e crenga foram julgadas supersticiosas.

6) «Como se ©xplicam as promessas anexas ao escapulario


do Carmo? A Justiga Divina poderia, simplesmente em atencáo
a essa insignia, permitir que um pecador endurecido nao seja
condenado?»

Dividiremos a resposta em tres etapas : 1) origem do es


capulario como tal; 2) privilegios anexos ao escapulario do
Carmo; 3) valor histórico e significado religioso dos rñesmos.

1. Origem do escapulario

O escapulario (do latim scapula, espádua) é urna longa


pega de paño que das espáduas desee sobre o peito e as costas
de quem a traja, recobrindo a respectiva túnica. Inicialmente
servia de aventál durante o trabalho manual. Muito usado entre
os monges, tornou-se urna das insignias características das
Ordens monásticas e religiosas em geral.
Na Idade Media as Ordens Religiosas própriamente ditas
foram criando em torno de si o que se chama «as Ordens Ter-
ceiras» (ou as familias de «Oblatos» e «Oblatas»), compostas
de pessoas seculares desejosas de viver em contato assíduo
cotn os mosteiros e conventos (a «Ordem Segunda» era o ramo
feminino, enclausurado, de urna Ordem masculina dita «Pri-
meira»). Os Terciarios e Oblatos receberam, como distintivo
de seu estado, o escapulario. Aos poucos, éste foi sendo adotado
até pelas Confrarias, associagóes remotamente vinculadas a
determinada Ordem. Entáo, para facilitar o uso da insignia, os
Superiores religiosos resolveram admitir, ao lado do escapulario
grande, o escapulario pequeño, que consta de dois retángulos
de paño de lá ligados entre si por duas fitas, de sorte a poder
ser trazidos pelos irmáos dia e noite sobre o peito e as costas.
É esta a forma hoje em dia mais comumente adotada pelos fiéis
que vivem no mundo.

— 327 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958. qu. 6

Distinguem-se atualmente varios tipos de escapularios se


gundo as diversas Ordens Religiosas e as modalidades da piedade
crista; o mais famoso é o escapulario marrón ou negro da Ordem
do Carmo, ao lado do qual se podem citar : o escapulario branco,
da SS. Trindade, propagado a partir de 1200; o escapulario
negro, das Sete Dores de María, devido aos Servitas, a partir de
1255; o escapulario azul, da Imaculada Conceigáo, concedido
em 1691 e 1710 aos Teatinos; o escapulario vermelho, dedicado
a Paixáo do Senhor, difundido pelos Lazaristas e aprovado
em 1847.
O uso do escapulario nao visa apenas ornamentar o res
pectivo portador. Ao contrario, tem valor religioso digno de
nota: significando a filiagáo a urna Ordcm ou Confraria, im
plica, em quem o traz, o desejo sincero de praticar os conselhos
evangélicos (cf. Mt 19,21), na medida em que sao aplicáveis
á vida no sáculo. Além disto, significa participagáo nos bens
espirituais de.que goza a respectiva familia religiosa; costuma
ser bento e entregue aos fiéis segundo determinado ritual,
tornando-se assim um sacramental, ou seja, objeto que comunica
a graga em quem o usa com fé e caridade. Vé-se, por conse-
guinte, que, embora sejam múltiplos os tipos de escapulario,
tém todos a mesma finalidade : significar e, ao mesmo tempo,
fomentar o servigo aprimorado de Deus, que é a grande devogáo
de todos os cristáos.

2. Os privilegios anexos ao escapulario do Carmo

Dentre os favores espirituais ortorgados ao uso do esca


pulario, sobressaem os que se prendem ao da Ordem do Carmo.
Quais sao precisamente?
Enunciam-se dois : a) o privilegio de urna boa morte; b) a
pronta libertagáo do purgatorio.
a) A ^graga da boa morte teria sido prometida pela
SS. Virgem numa aparigáo a S. Simáo Stock, sexto Superior
Geral dos Carmelitas (1242-1265), em Cambridge, aos 16 de
julho de 1251. Trazendo em máo o hábito da Ordem, teria dito
a excelsa Senhora : «Eis o privilegio que dou a ti e a todos os
filhos do Carmelo : todo aquéle que morrer, revestido por éste
hábito, será salvo».
b) O privilegio «sabatino» afirma que a Virgem SS.
liberta do purgatorio os irmáos filiados á Ordem do Carmelo
no primeiro sábado após a morte de cada um. Éste favor, dizem,
foi revelado pela própria Máe de Deus ao Papa Joáo XXII, pro-
vávelmente na véspera de sua eleigáo. O mesmo Pontífice terá
anunciado aos fiéis tal graca e varias outras concedidas á Ordem

_ 328 —•
O ESCAPULARIO E SEUS PRIVILEGIOS

do Carmo mediante a bula «Sacratissimo uti culmine» de 3 de


margo de 1317.

3. Valor histórico e significado religioso de tais privilegios


a) Os documentos sobre os quais se baseia a afirmagáo
dos dois privilegios tém despertado a atengáo dos estudiosos,
levando-os a perguntar se sao fontes históricas de todo fide
dignas.
Examinemos o que consta.
O primeiro documento que refere a aparigáo da Bem-
-aventurada Virgem a S. Simáo Stock, data do ano de 1430
aproximadamente; é chamado «Viridarium» do Prior Geral
Carmelita Joño Grossi (cf. Daniel a S. Vii'R. Maria, Spcculum
Carmelitarum I. Antverpia 1680,131). Entre o ano cm que se
terá dado a visáo (1251) e a data ácima, a historia nao apre-
senta documento algum que relate o caso.
No ano de 1642 apareceu pela primeira vez era público,
por iniciativa do Pe. Provincial Joáo Chéron O. C, urna carta
circular de Simáo Stock aos religiosos de sua Ordem, carta
em que o Prior Geral referia a aparigáo e as palavras de Maria.
Éste documento teria sido ditado pelo Santo a seu secretario,
Pe. Swanyngton. Denegam fé a ésse instrumento os historiado
res modernos, inclusive os Carmelitas (cf. Annales Ord. Carm.
1927 e 1929).
Quanto ao privilegio «sabatino», desde o séc. XVII contes
ta-so a autenticidade da bula de Joáo XXII que o anuncia ao
mundo cristáo. Entre a data que éste documento traz (1317) e
o ano de 1461 nao há mengáo da bula na tradigáo. O primeiro
autor que a deu a conhecer foi o Carmelita Balduíno Laersius
(f 1483). Hoje em día nao há quem afirme a autenticidade de
tal documento. O próprio Pe. Zimmermann na sua colegáo de
documentos referentes á Ordem do Carmo (Monumenta histó
rica Carmelitana I 356-363) renunciou a defendé-la. — No texto
mesmo da bula paira dúvida sobre urna das passagens princi
páis : lé-se no original latino que a Virgem SS. libertará do
purgatorio súbito (em breve, sem demora) ou, conforme outros
códigos, sabbato, no sábado seguinte a morte, as almas dos
seus fiéis.
Ademáis notam os historiadores que até o séc. XV os mem-
bros da Ordem do Carmo nao atribuiam maior importancia ao
uso do escapulario do que os filhos de outras Ordens.
Eis o que, do ponto de vista historiográfico, se poderia dizer
sobre as promessas anexas ao escapulario do Carmo.

b) Pergunta-se agora : que resulta disso tudo para a pie-


dade dos fiéis?

— 329 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 6

Deve-se reconhecer que urna serie de Papas, a partir do


séc. XVI, tem favorecido o uso do escapulario do Carmp, enri-
quecendo-o com novas indulgencias e permitindo sejam anun
ciadas aos fiéis as duas promessas ácima. Ao fazer isso, porém,
nenhum Pontífice intencionou dar definigáo dogmática sobre o
assunto; os Papas apenas quiseram fazer da piedosa crenca vi
gente um estímulo para a piedade dos fiéis. As promessas anexas
ao escapulario do Carmo, por conseguinte, ficam pertencendo ao
setor das revelagóes particulares, que cada cristáo é livre de
admitir ou nao, seguindo os criterios que lhe paregam mais
fidedignos.
Observe-sc, porém, que o privilegio da boa morte (a pri-
meira das duas promessas) jamáis poderá ser entendido em
sentido mecánico, como se o uso mesmo do escapulario, inde-
pendentemente do teor de vida moral do cristáo, fósse sufi
ciente para garantir a salvacáo eterna. Nao; o portador do
escapulario deverá cultivar as virtudes cristas para que a dita
insignia lhe possa valer como penhor de especial tutela de
María SS. ,na hora da morte. Foi o que o Papa Leáo Xm
quis inculcar, quando, ao aprovar o Oficio de S. Simáo Stock
para os católicos ingleses, mandou inserir no texto respectivo
urna palavrinha que nao se achava no original apresentado a
S.' Santidade : «Todo aquéle que morrer piedosamente trajando
ésse hábito, nao sofrerá as chamas do inferno». Conseqüerfte-
mente comenta J.-B. Terrien :

«Certamente os antigos consideravam o escapulario como penhor


de predestinado, mas nao chegavam, como pensó, ao ponto de dizer
que nao restem dúvidas justificadas a respeito da salvacáo de um
pecador que na hora da morte rejeite o amparo da religiáo, embora
tenha trazido até o último suspiro a veste sagrada de María» (La
Mere de Dieu et la Mere des hommes IV 304).

As boas disposigóes espirituais sao também exigidas por


um comentario do privilegio, comentario atribuido a S. Simáo
Stock :

«Conservando, meus irmáos, esta palavra em vossos coraedes,


«sforcai-vos por assegurar vossa eleicáo mediante boas obras e por
jamáis desfalecer; vigiai em agáo de gracas por táo grande beneficio;
orai incessantemente a fim de que a promessa a mim comunicada
se cumpra para a gloria da SS. Trindade... e da Virgem sempre
bendita» (cf. Bento XIV, De festis B. V. c. VI § § 7-8).

No tocante ao segundo privilegio, devem-se observar os


termos precisos segundo os quais a Santa Sé se tem referido
a ele. Um decreto do S. Oficio datado de 15 de fevereiro de
1615 (sob o Papa Paulo V) e renovado pela S. Congregagáo
das Indulgencias a Io de dezembro de 1885 assinala a atitude

— 330 —
_ O ESCAPULARIO E SEUS PRIVILEGIOS

definitiva do magisterio da Igreja sobre o assunto : sem proferir


palavra acerca da autenticidade da controvertida bula de Joáo
XXII, admite que a Virgem Maria recobrirá com a sua protegió
materna, principalmente no sábado (fórmula devida á ambi-
güidade do texto ácima referido : súbito... sabbato...?), dia
consagrado ao seu culto, as almas daqueles que na térra tive-
rem sido seus fiéis servos.
Aos 4 de julho de 1908, a S. Congregagáo aprovou urna
Súmula de indulgencias e privilegios concedidos a Confraria
do Escapulario do Carmo, em que se lé verbalmente o seguinte :

«O privilegio comumente chamado sabatino, de Joáo XXII, apro-


vatio e confirmado por Clemente VII, Ex clem<!nüs, aos 12 de agosto
de 1530, por Pió V, Superna tlispositinnc, aos 18 de fevereiio de
1566, por Gregorio XIII, Ut laudes, aos 18 de setembro de 1577, e
por outros, assim como pelo decreto da S. Inquisigáo Romana sob
Paulo V, aos 20 de Janeiro de 1613, declara : 'É permitido aos Padres
Carmelitas pregar que os fiéis podem admitir a piedosa crenga no
auxilio concedido após a morte aos Religiosos e confrades da Asso-
ciacáo de Nossa Senhora do Monte Carmelo*. Com efeito, é permitido
crer que a SS. Virgem socorra ás almas dos Religiosos e conírades
íalecidos em estado de graca, contanto que tenham trazido durante a
vida o escapulario, tenham guardado a castidade do seu estado e
recitado o Oficio Parvo da Virgem ou, se nao sabem ler, tenham
observado os jejuns da Igreja e praticado a abstinencia de carne
ás quartas e sábados, a menos que a festa de Natal cala num désses
dias. As oragoes continuas de Maria, seus piedosos sufragios, seus
méritos e sua especial protegáo Ihes sao assegurados após a morte,
principalmente no sábado, que é o dia consagrado pela Igreja á
SS. Virgem».

Neste documento chama a nossa atengáo, de um lado, o


fato de nao serem mencionadas nem a aparicáo da SS. Vir
gem nem a bula de Joáo XXII «Sacratissimo uti culmine»;
de outro lado, verifica-se que, independentemente désses tópicos,
a Santa Sé aprecia a fidelidade ao escapulario do Carmo, men
cionando especial protegió de Maria para os verdadeiros devotos
do mesmo (o que certamente exclui o porte meramente mecá
nico de tal insignia); o documento, porém, nao fala de libertagáo
do purgatorio no primeiro sábado após a morte, preferindo a
fórmula mais geral; «especial protegáo». — Como quer que seja,
a idéia de sábado no purgatorio teria que ser entendida em sen
tido largo ou transíate, visto que a sucessáo de dias da semana
só pode ser criterio na térra, onde o tempo é medido pelo movi-
mento dos corpos; no purgatorio há apenas almas separadas de
seus corpos.
As consideragóes e conclusóes ácima talvez causem surprésa
em um ou outro dos nossos leitores. Foram contudo ditadas pela
objetividade dos documentos e fatos. Nao acarretam, de modo
algum, detrimento para a piedade. Muito ao contrario; esta

— 331 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 7

tanto mais forte e frutuosa é quanto mais alicergada sobre


a verdade e o «sentiré cum Ecclesia», sobre as normas e decla-
ragóes da Esposa de Cristo. A cada cristáo fica a liberdade
de se santificar dando fé as promessas anexas ao escapulario
do Carmo. A finalidade destas linhas era apenas a de remover
qualquer concepgáo teológicamente errónea a respeito da tradi
cional devogáo.

BIBLIOGRAFÍA

A. Michcl, Scapulaire, cm «Dictionnaire de Théologie Catholique»


XIV 1. Paris 1039, 1254-9.
K. Hihlmoyor. SUapuliiT, cm -.Loxikon fiír Thoolofíio und Kirclu^
IX 617.
N. Paulus, Geschichte des Ablasses im Mittelalter II. 1923.
Berlinger-Steinen, Les indulgences. Paris 1925.

ffl. SAGRADA ESCRITURA

M. C. S. (Rio de Janeiro) :

7) «Visto que os antigos freqüentemente admitíam o


nascimento virginal de seus heróis, nao seria o propalado nasci-
mento virginal de Cristo mero produto da iniaginacáo de scus
discípulos?»

A resposta apresentará primeiramente os fundamentos


bíblicos da crenga na maternidade virginal de Maria; a seguir,
examinará as hipóteses que tentam explicar essa crenga qual
mito inspirado pelas antigás concepgóes pagas; por fim, proferir-
-se-á um juízo sobre a questáo.

1. Os fundamentos bíblicos da fé
no nascimento virginal de Cristo

a) É principalmente o texto de Le l,34s que interessa


ao exegeta no caso. Eis o que se sucedeu a primeira comuni-
cagáo feita a Maria, de que daria á luz um filho (v. 31) :
34 «Disse Maria ao anjo: 'Como se fará isso, pois que nao
conhego varüo?'
35 Respondeu-lhe o anjo : 'O Espirito Santo descera sobre ti e
o poder do Altíssimo te recobrirá com a sua sombra; por isto o menino
que de ti nascer, será santo; será chamado Filho de Deus1».

A pergunta formulada no v. 34 por Maria nao significa


dúvida a respeito da promessa de Deus, mas versa sóbre_ a
maneira como poderá dar a luz : Maria nao conhece varao.
A expressáo, no texto grego de S. Lucas, tem sentido corres-

— 332 —
O NASCIMENTO VIRGINAL DE JESÚS

pondente ao da locugáo paralela hebraica: designa as relacóes


conjugáis (cf. Gen 19,8; Núm 31,17; Jdt 11,39). María, portante,
afirma ao anjo que ela nao vive conjugalmente de sorte a poder
conceber (é própriamente virgem, conforme Le 1,27) e parece
ter feito o propósito de permanecer neste estado, pois nao vé
como se poderá tornar máe, embora haja sido dada em casa
mento a José (com o qual deverá comegar a coabitar em breve).
Bons exegetas entendem as palavras de María no v. 34 como
reafirmagáo de um voto de virgindade própriamente dito
(admitirla esta sen tenca, aerescentar-se-á quo María aceitou o
matrimonio com Sao José a fim de se eximir do solicitagóes im
portunas, tendo naturalmente entrado em acordó previo com o
futuro esposo).
A resposta do anjo assegura á Virgem que pode estar
tranquila, pois conceberá sem concurso de varáo e, sim, por
intervengáo direta de Deus: o Espirito Santo prepararía suas
entranhas puríssimas para receber o Filho de Deus, e o poder
do Altíssimo a recobriria com a sua sombra. O «recobrir com
a sombra» é expressáo baseada na descrigáo das solenes inter-
vencóes de Deus ou teofanias do Antigo Testamento (cf.
£x 40,35; Núm 9,22; também a narrativa da Transfiguragáo em
Le 9,34s); significa de maneira delicada a agáo de Deus entre
as criaturas. Em resumo, pois, o anjo afirma a María, evitando
todo antropomorfismo grosseiro, que ela será preparada a gerar
Jesús por agáo extraordinaria do Todo-Poderoso, agáo que dis
pensará toda a colaboragáo marital.
b) Faz eco a Le l,34s o texto de Mt 1,16. 18-23.
Em Mt 1,16 o Evangelista rompe o estilo da serie genealó
gica apresentada, conforme o qual deveria dizer : «Eliud gerou
Eleazar, Eleazar gerou Mata, Mata gerou Jaco, Jaco gerou
José, José gerou Jesús, que é chamado Cristo». Embora a
versáo siria sinaítica (e esta só, dentre a multidáo dos manus
critos nnligos do texto sagrado) dé a ler tal construyo de frase,
nao há crítico contemporáneo que nao reconhega ser esta uma
forma náo-auténtica do texto evangélico (explica-se pela va
riante encontrada em varios códices gregos : «... José, ao qual
estava esposada Maria, que gerou Jesús». A omissáo do segundo
pranome relativo nesta frase deu origem á variante singular
da versáo siria). Pode-se afirmar que S. Mateus intencional-
mente se afastou do esquema estilístico para dizer: «... Mata
gerou Jaco, Jaco gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu
Jesús, que é chamado Cristo» (Mt 1,16); o Evangelista quis,
pois, conscientemente excluir José da paternidade física em re-
lagáo a Jesús.
A seguir, o mesmo autor, como que completando o seu
pensamento, acentúa que Maria foi encontrada grávida por
— 333 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 7

obra do Espirito Santo antes que coabitasse com José; isto


surpreendeu e perturbou o esposo, o qual, porém, foi logo
tranquilizado por um mensageiro do céu : «Nao receies levar
contigo María, tua esposa, pois ela concebeu do Espirito Santo»
(1,20).
c) Ao lado déstes dois testemunhos de que María foi
fecundada de modo sobrenatural, há outro do qual se depreen-
de que deu a luz sem perder a sua integridade virginal. S. Lucas,
com efeito, atesta que o parto de Maria foi isento dos incómodos
da geragáo natural, pois foi a própria mñe do Jesús quem, ime-
tiiatamente após haver dado á luz, prestou a seu filhinho os
primeiros cuidados de que necessitava : «Gerou seu filho primo
génito, envolveu-0 em panos e reclinou-0 nu'a mangedoura»
(2,7). — É nestes termos sobrios que o Evangelista refere a
virgindade de Maria no parto. Cf. «Pergunte e Responderemos»
6/1958, qu. 7.'
d) A Escritura e a Tradigáo ensinam outrossim que
Maria se canservou virgem por todo o resto da vida. Veja-se
a éste respeito o que está dito sobre os «irmáos de Jesús» em
«Pergunte e Responderemos» 3/1957, qu. 13.
Hoje em dia a crítica reconhece que os Evangelhos de Mt,
Me e Le foram redigidos poucos decenios após a Ascensáo (por
volta de 50/63) na base de fontes, oráis e escritas, anteriores.
Donde se deduz que a crenca no nascimento milagroso de Cristo
foi desde a primeira geragáo de cristáos professada na Igreja;
é, pois, antiqüissima (váo seria dizer que as secgóes concernen-
tes a virgindade de Maria foram tardíamente interpoladas no
texto dos Evangelhos, pois em absoluto nao há indicio disto na
tradigáo dos manuscritos).
Sendo assim, pergunta-se : a fé no nascimento milagroso
de Jesús corresponderá la auténtica realidade histórica ou será
mera expressáo da fantasía dos primeiros cristáos, inspirada
por antigos mitos pagaos?
2. As tentativas de expUcacao por influencias nao cristas
A partir do sáculo passado, autores liberáis mais e mais
tém chamado a atengáo para o fato de que «o mito da Virgem
Máe» nao é raro ñas crencas religiosas e na mística da anti-
güidade. Assim dizia-se que Perseu, o herói grego, nasceu da
virgem Danaé, depois que Júpiter, sob a forma de urna chuva
de ouro, a quis fecundar. Referia-se que os filósofos Pitágoras,
Platáo, os Imperadores Alexandre Magno e Augusto eram filhos
dos deuses, concebidos e gerados por vía milagrosa. Na base
destas observagóes, perguntam os críticos se a crenga no nas
cimento virginal de Cristo nao vem a ser senáo a forma judaico-
-cristá do antígo mito.

— 334 —
O NASCIMENTO VIRGINAL DE JESÚS

Em resposta, observar-se-á quanto segué :


1) É relativamente fácil estabelecer paralelos entre certas
realidades históricas, de um lado, e mitos ou lendas, de outro
lado. Basta as vézes considerar isoladamente um trago da reali-
dade que se estuda, para se verificar que, separado do conjunto,
lembra um mito ou urna lenda inteira. Assim já houve quem
asseverasse que a vida do Imperador Napoleáo (por muito pró
xima que esteja dos nossos tempos) nao é senáo a expressáo de
um mito solar!...
No terreno da crítica científica, para se poder afirmar de
pendencia doutrinária, nao basta verificar semelhanga de traeos
entre os episodios que se comparam, mas é preciso averiguar
se há ou nao afinidade de mentalidade ou ideologia entre duas
narrativas (um mito e um suposto mito). Ora entre a menta
lidade pressuposta pela fé no nascimento virginal de Cristo e
a mentalidade que inspira os mitos ou as lendas aparentemente
congéneres da Asia ou do Imperio greco-romano, verifica-se que
nao sómente nao há convergencia, mas existe mesmo incompati-
bilidade radical.
2) Com efeito; duas das características que mais chamam
a atencáo ñas narrativas evangélicas sao : a) a parcimónia de
pormenores e b) o elevado nivel moral em que versam.
A conceicáo e o nascimento virginal sao expressos em
termos breves, cheios de reverencia, quase com timidez por
parte dos Evangelistas; nao se mencionam milagres que
acompanhem o nascimento do Menino-Deus, ao passo que na
quarta Écloga de Virgilio, por exemplo, as circunstancias que
cercam o nascimento do Menino maravilhoso sao idealizadas
em alto grau : a térra treme, a vegetagáo se torna exuberante,
as flores cercam o bergo do recém-nascido; perecem animáis
e vegetáis venenosos; algo de semelhante se observa na historia
do nascimento de Alexandre Magno. Ao contrario, a narrativa
do Evangelho é toda subordinada a reais circunstancias histó
ricas : José e María sobem a Belém para cumprir um decreto
de recenseamento de César Augusto; a viagem deve ter sido
penosa; mas nao aparece anjo para facilitá-la nem para garantir
um lugar congruo para o casal em um albergue; é paradoxal-
mente numa gruta ou mangedoura que se dá o nascimento
estupendo (como o Evangelista se importa pouco com a acen-
tuagáo do prodigio!); os anjos que entram em cena, dirigem-se
aos pastores, mas silenciam precisamente o parto virginal,
e indicam como sinais distintivos do Salvador a mangedoura
e os respectivos panos; após o nascimento, a crianga e sua
máe se sujeitam as leis judaicas da circuncisáo e da purifica-
Cáo. O divino, o transcendente assim aparecem muito «encar
nados» na realidade histórica, na humildade humana, a ponto
— 335 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 7

de se julgar difícil que os tragos milagrosos de tais narrativas


hajam sido forjados a semelhanga dos mitos antigos.
Observa-se outrossim, na descrigáo evangélica, preocupa-
gáo com pureza de costumes; nao há ai vestigio do amor erótico
ou apaixonado que nos mitos move a Divindade em demanda
da virgem (em geral, pode-se dizer que o erotismo e a con
cupiscencia costumam inspirar as aventuras de que nos fala a
literatura mitológica paga). Diz a lenda grega, por exemplo, que
Alexandre Magno se gloriava de haver nascido de sua máe
Olimpia fecundada por Júpiter; ao que Olimpia, tida conseqüen-
tcmenlc como prevaricadora, respondía : «Alexandre rulo quer
deixar de me caluniar junto a Hera (a esposa de Júpiter na
mitología)!». Alexandre, filho de Júpiter, haveria sido filho da
paixáo desregrada do grande Deus... De outro lado, é obvio
que nao teria cabimento falar de amor sexual entre o
Altíssimo e a Virgem María .no Evangelho; esta responde preci
samente ao mensageiro do alto : «Eis a serva do Senhor; faga-se
em mim segundo a tua palavra» (Le 1,38).
3) Ademáis será preciso levar em conta que tanto os
judeus como os cristáos faziam questáo de guardar puras as
suas crengas, preservando-as de qualquer contaminagáo paga
nizante. É demasiado conhecida a mentalidade fechada dos
judeus da Palestina para que nela aquí insistamos. Quanto aos
cristáos, verifica-se que durante tres séculos foram perseguidos
a título de «inimigos do género humano», «réus de lesa-pátria
e lesa-majestade», justamente porque nao queriam tomar parte
ñas instituigóes, domésticas ou públicas, que tivessem o mínimo
sabor de paganismo; incompatibilizavam-se com os próximos
familiares e com as autoridades do govérno justamente para
afirmar absoluto repudio da mentalidade politeísta (Tertuliano
narra, por exemplo, em 211 o caso do soldado cristáo que, tendo
vencido urna competigáo, rejeitou trazer a respectiva coroa de
louros na cabega, porque era tida como símbolo religioso pagáo;
cf. «De corona militis»). Sendo assim, nao se entendería que os
discípulos de Cristo, já na sua primeira geragáo, tenham aceito
dos pagaos utti mito : o mito da «Virgem-Máe». Donde se concluí
que, se professaram a crenga no nascimento virginal de Jesús,
esta nao pode ter sido importada como elemento heterogéneo,
mas deve ter pertencido, desde o inicio do Cristianismo, ao patri
monio da fé revelada.

3. A harmonía das Escrituras Sagradas

O bom senso leva finalmente a concluir que mais absurdo


é recorrer a alguma das explicagóes racionalistas para explicar
o pretenso «mito» do nascimento virginal, de Jesús do que

— 336 —
O NASCIMENTO VIRGINAL DE JESÚS

aceitar simplesménte a realidade sobrenatural que um tal nas-


cimento implica.
Éste resultado é robustecido por um novo dado de exegese
bíblica. A Escritura Sagrada, desde as suas páginas mais
antigás, parece preparar a idéia da natividade maravilhosa do
Messias, fazendo que esta aparecerá ao leitor moderno como
genuino fruto do depósito religioso judaico-cristáo. Sim; o
texto bíblico refere como alguns dos homens de Deus foram
dados ao mundo em circunstancias que excediam todas as
expectativas humanas, prefigurando assim a vinda virginal de
Cristo.
1) Isaquc, um dos remotos antcpassados de Jesús, nasceu
de máe estéril, á qual Deus quis dar prole maravilhosamente
abengoada (cf. Gen 21,1-8).
2) Sansáo, um dos «salvadores» (Juizes) antigos do
povo de Deus, nasceu de Manué e sua mulher infecunda, aos
quais Deus, por meio de um anjo, quis anunciar a próxima
conceigáo (cf. Jz 13,1-25).
3) Samuel, outro dos grandes chefes de Israel, foi igual
mente fruto de ventre estéril. Ana, ao receber tal prole, reco-
nheceu num cántico (que é o arquetipo do de María, em
Le 1,46-55) a intervengáo soberana de Deus, prenuncio da
restauracáo messiánica (cf. 1 Sam 1,1-2,10).
4) No fim da historia antiga, nasceu Joáo Batista, preco
nizado pelo arcanjo Gabriel a seu pai Zacarías, que a principio
nao quis crer na possibilidade do portento (cf. Le 1,5-25).
5) É a todos ésses casos que se sobrepóe a natividade
do Messias; anunciado a María pelo mesmo arcanjo, foi virgi
nalmente concebido e gerado (cf. Le 1,26-38; 2,1-7). Táo estu
pendo nascimento vinha bem credenciado pelos episodios seme-
lhantes que, segundo harmoniosa disposigáo da Providencia, o
haviam precedido.
Sao, por conseguinte, ésses quadros paralelos do Antigo
Testamento, sujeitos a um plano de Deus sabio e retilíneo,
que devem ser evocados para ilustrar o sentido do parto vir
ginal de María. Poder-se-á contudo reconhecer que a Provi
dencia Divina, permitindo a formulacáo de certos mitos entre
os pagaos, tenha. intencionado suscitar no mundo politeísta o
anelo de um Personagem extraordinario, assinalado como tal
desde o seu nascimento; por tais fábulas exprimia-se infantil
mente um prenuncio do Cristo Jesús, prenuncio que preparava
os povos a receber finalmente a mensagem do Evangelho (haja
vista principalmente a quarta Écloga de Virgilio, redigida por
cérea de 41/40 a.C).

— 337 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 8

IV. MORAL

JOROLO (Santos) :
8) «Qual o significado da figa? E como julgar, do ponto
de vista moral, o uso desse objeto?»
1. A figa pertence a urna categoría de símbolos em grego
chamados phallói (no singular, phallós; em latim e ñas línguas
modernas, habitualmente phallus), símbolos aos quais os pagaos
atribuíam valor religioso. Deviam significar a Vida e a Fecun-
didade (tidas como Divuidades), representando, sob aspectos
que variavam conforme as regióos c as épocas, um membro
humano.
Os phallói eram estimados quais meios apotropéicos, isto
é, aptos para afugentar influxos daninhos a vida, ou para repe-
lir a má sorte e o fascinum (o mau-olhado da linguagem
popular contemporánea); os pagaos tinham por certo que urna
fórga superior habitava nesses emblemas, de sorte que quem
trouxesse um pequeño phallós consigo (dentro do bolso ou pen-
durado ao pescogo) se revestía do poder inerente ao mesmo.
Ñas festividades do deus Baco (deus do vinho e das fórgas
fecundas da natureza), um phallós era solenemente levado em
procissáo (phalliphoria), o que se dava de preferencia na prima
vera, época em que a vida parece renascer; julgava-se entáo
que a exposicáo e a veneracáo de tal símbolo acarretariam
fecundidade para todos os seres vivos. Nao será necessário
frisar que a lascivia se introduzia fácilmente em tais formas
de culto.
2. Dos diversos tipos de phallói antigos persistiu até
«nossos dias a figa, de uso muito popular. É, sem dúvida, um
remanescente do paganismo. Nos primeiros séculos da nossa
era, os bispose pregadores cristáos impugnavam fortemente o
recurso a tar emblema (assim como aos phallói em geral); a
opiniáo pública ainda conservava a consciéncia da ideología
pouco sadia que tais símbolos representavam, de sorte que o
seu uso podia fácilmente sugerir reminiscencias impúdicas.
Hoje em dia, porém, a figa é usada por pessoas que em geral
ignoram a origem e o significado primitivo de tal símbolo. Por
conseguinte, parece que se deve lamentar nao própriamente
o caráter lascivo do uso (caráter que na maioria dos casos é
inexistente), mas, antes, a índole supersticiosa de que se reveste
o emprégo da figa.
3. A superstigáo é u'a modalidade aberrante e decadente
do culto religioso. Explica-se (mas nao se justifica) pelo desejo,
inato em todo homem, de encontrar as causas dos fenómenos
misteriosos que o cercam. Nao raro a lei do menor esfórgo

— 338 —
FIGA E SUPERSTICAO

impele a massa a nao raciocinar muito para procurar razóes


exatas; a gente simples entáo atribuí certos efeitos estranhos
a causas que sao totalmente inadequadas para os produzir; daí
o culto de amuletos, talismás, «bentinhos», textos conjuratórios,
que passam a ser estimados como se fóssem detentores de poder
divino.
Precisando um pouco mais, deveremos dizer que a supers
tigáo é urna fuga do homem a si mesmo e á sua dignidade.
Com efeito, admita-se o caso de urna pessoa que esteja diante
de urna seria opgáo a tomar na vida; deverá comprometer-se
segundo determinado alvitre. Acontece entáo que muitos, dese-
josos, consciente ou inconscientemente, de declinar a responsa-
bilidade, preferem entregar a decisáo a um elemento indepen-
dente da vontade humana; procuram sair do seu embarago
apelando para urna solugáo do tipo seguinte : «Se me ocorrer
um corcunda ou um caolho, ... ou se tiver que entrar em
alguma combinacáo com o número 13, desistirei de tal negocio.
Se, ao contrario, encontrar urna ferradura de cávalo ou um
trevo de quatro fólhas, prosseguirei confiante!».
Para um cristáo, tal associacáo de causas e efeitos é ilícita,
pois equivale a atribuir poder superior (dir-se-ia : sobrenatural
ou divino) a criaturas que por si mesmas nao o tém; implica,
pois, em derrogagáo ao conceito e ao culto do único Deus.
Voltaire, que tanto errou em sua filosofía, ao menos percebeu
acertadamente que «a superstigáo se relaciona com a religiáo
como a astrologia (demanda de oráculos aos astros) com a
astronomía (investigagáo científica e objetiva dos astros) : é
a filha muito tola de máe muito sabia».
Notam os historiadores que principalmente em épocas de
guerra a superstigáo prolifera. Muitos, nao sabendo mais como
se defender razoávelmente das ingentes calamidades que os
ameacam, recorrem a solugóes irracionais ou a objetos apotro-
péicos (espantalhos do mal) : tenham-se em vista as famosas
mascotes do exército inglés. Em tempo de guerra acontece
também que particularmente graves sao as decisóes que os
homens devem tomar; as energías, porém, costumam estar
esgotadas. Em conseqüéncia, nao poucos tendem a definir-se,
guiados nao propiciamente pelo raciocinio, mas pelo encontró de
sinais que éles indevidamente julgam reveladores de um plano
superior ou divino.
Compreende-se que a superstigáo assim concebida leve ao
fatalismo, que é a doutrina «preguigosa» por excelencia, expres-
sáo típica da lei do menor esfórgo: ensina ser inútil lutar
contra..., e mais convir a aceitagáo pacata do «irrevogável»
destino (!). Certamente nao foi Deus quem ensinou isto aos
homens!

— 339 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 9

É dentro déste quadro que se deve considerar e reprovar


o uso, ainda hoje persistente, da figa. Embora geralmente
destituido de culpa grave, dada a quase inconsciencia da maioria
das pessoas que o praticam, tal uso continua a representar em
si mesmo um depósito de idéias de todo alheias á mentalidade
crista.

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

BAHIANO (Jequitibá) :
9) «Joana d'Arc foi tima santa auténtica, urna heroína
nacional ou unía alucinada visionaria?
E a Igreja nao se comportou injustamente no caso, a ponto
de se querer retratar no século XX, declarando santa a jovem
que ela mesma condenou?»
A historia de Joana d'Arc é dessas em que entram em
jógo elementos peculiares de urna época (século XV, no caso),
que o historiador moderno deve absolutamente levar em conta
a fim de nao proferir um juizo sumario e injusto sobre o pas-
sado. Procuraremos, por conseguinte, primeiramente recons
tituir a trama dos acontecimentos que se deram com a santa
heroína, para depois formular urna apreciagáo, táo objetiva
quanto possível, sobre os mesmos.

1. A trama da historia

De 1337 a 1453 a Franca se viu envolvida na chamada


«Guerra dos Cem Anos» contra a Inglaterra. A partir de 1413,
os ingleses foram conquistando o norte da Franga e chegaram
até o rio Loire; o monarca francés era desde 1422 Carlos VII,
figura tímida, que seus amigos nao ousavam chamar «Rei»,
mas «Delfirn» (pois nao recebera o sacro), e que seus adver
sarios, por irania, designavam como «Rei de Bourges». Em
outubro de 1428 os ingleses empreenderam o céreo da cidade
de Orléans ta margem do Loire, criando para a resistencia fran
cesa urna situagáo desesperada. Já o assédio durava cinco meses
e parecía aproximar-se do seu fim coroado de éxito, quando
imprevistamente entrou em cena a donzela Joana d'Arc, com
seus dezoito anos de idade ainda incompletos. •
Joana nascera em 1412 (data mais provável do que 1410)
na aldeia de Domrémy, de familia camponesa. Pastora até os
16 anos, nao aprenderá a ler nem escrever. Era, porém, dotada
de piedade profunda; desde os treze anos de idade, via-se inci
tada a virtude por aparigóes e vozes, que ela atribuía a S. Miguel
Arcanjo, a Sta. Catarina e a Sta. Margarida; ao reconhecer os
auténticos emissários de Deus, fez voto de virgindade.

— 340 —
O PROCESSO DE JOANA D'ARC

A éste propósito já se póe urna questáo debatida : as reve-


lagóes que Joana antuiciava e que se repetiram até a sua morte,
nao teráo sido mero fenómeno de alucinagáo? — Note-se que
a alucinagáo significa um estado patológico, fonte de falsos
juízos e de comportamento moral descontrolado. Ora em toda
a conduta de Joana d'Arc nao há vestigios de prostracao física
nem de aberracáo intelectual ou de incoeréncia de dizeres e
atitudes; ao contrario, clarividencia e firmeza notáveis se mani-
festam. Torna-se, por conseguinte, difícil, se nao ilógico, susten
tar a tese «das alucinacóes»; esta aparece, antes, como afirma-
«io gratuita ou produto de um preconceito, ao qual contradizem
os falos documentados.
Em 1428 o arcanjo mandou a Joana fósse ter com o capitáo
de Baudricourt em Vancouleurs e se prontificasse a socorrer a
Franga. Depois de hesitar bastante, a donzela obedeceu; repelida
na primeira visita, foi finalmente bem sucedida na segunda;
Baudricourt, impressionado pela energía da jovem, pós-lhe á
disposicáo urna escolta de seis homens, que a acompanharam
através de estradas perigosas, infestadas pelos inimigos, até a
corte de Carlos VII em Chinon. O Delfim a principio também se
mostrou cético; tendo mandado submeter Joana a interrogato
rios sobre a sua fé e as suas intengóes, resolveu por fim colocá-Ia
á frente de pequeño batalháo destinado a ir socorrer a sitiada
cidade de Orléans. Fato estranho : contra toda expectativa, os
ingleses levantaram o céreo e se retiraram aos 8 de maio de
1429. Para consumar a sua missáo, Joana levou o Delfim a
Reims, onde foi devidamente sagrado e coroado aos 17 de iulho
de 1429.
Dava por finda a sua tarefa, quando o reí lhe pediu con-
tinuasse a guerra. Joana muito se empenhou entáo pela recon
quista de París, mas veio a cair prisioneira perto de Compiégne
em 1430; Joáo de Luxemburgo, que a tinha em seu poder,
vendeu-a por 10.000 francos áureos aos ingleses, os quais a Ieva-
ram para Ruáo, onde a heroína havia de ser julgada; na ver-
dade nao Ihes bastava manter Joana encarcerada, mas era pre
ciso destruir o seu prestigio aos olhos do público.

Para se entenderem as maquínagdes entáo postas em jógo, torna-se


muito importante reconstituir a mentalidade de ingleses e franceses
naquela ocasiáo :
1) Joana dera á sua missáo bélica um caráter religioso, dizendo
que Deus quería por seu intermedio expulsar da Franca os invasores
(veremos abaixo que sentido possa ter ésse encargo religioso). A
astucia dos inimigos, portante devia demonstrar que Joana de modo
nenhum podia ser enviada de Deus, por estar sob a influencia do
demonio, como hereje, bruxa, impostora, etc. — Caso se comprovasse
isto, também o rei Carlos VII perdería a sua autoridade; seria evidente
que se aliara a urna íilha de Satanaz, por obra da c;ual fóra coroado;

— 341 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 9

os franceses poderiam entSo abrir máo de sua confianca na vitória


final.
Estas circunstancias dáo a ver que os ingleses tinham o máximo
interésse em servir-se da religiáo contra Joana d'Arc, a fina de promo
ver a sua causa nacional.
2) A mentalidade popular da época era levada a crer que vitória
obtida em guerra era sinal de que Deus apoiava o vencedor. Ora os
ingleses haviam conseguido um triunfo retumbante em Azincourt
(1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda a cavalaria
francesa, lutando um soldado contra seis cavaleiros. Táo fulgurante
vitória, pensava-se, só teria sido alcancada com a colaboragáo do céu;
donde podiam muitos concluir que Joana contradizia ao curso dos acon-
tocimcntos sobro o quíil Dous já proferirá o scu juízo.
3) A prúpria condula da donzela se proslava ü dolurpagño...
As calamidades que assolavam a Franca havia cérea de 75 anos,
excitavam a imaginagáo popular, provocando o surto sucessivo de falsos
taumaturgos e visionarios. Como naquela hora confusa se distingui
ría Joana de urna Catarina de la Rochelle ou do pastor Guilherme
de Gévaudan, comprovadas vítimas da Uusáo? — Além disto, o espi
rito medieval se podia fácilmente escandalizar com a figura de urna
donzela vestida de cavaleiro a cavalgar junto com urna tropa de sol
dados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém concebía que urna virgem
crista se pudesse apresentar nesses termos. Compreende-se assim que
muitos dos contemporáneos da heroína se tenham podido iludir a seu
respeito.
4) Será preciso levar em conta outrossim a colaboracáo da Uni-
versidade de Paris, setor de grande autoridade, que os ingleses ganha-
ram para a sua causa. O espirito que entáo animava os professóres
dessa entidade, nao era muito sadio (em breve haviam de propor a falsa
doulrinu do "Conciliarismo*, conforme a qual se arropavam o podor
de depor o Papa). Tendiam a considerar-se os luzeiros da Sla. Igreja;
os mais moderados dentre éles ficavam céticos ao ouvir falar de
Joana; muitos, porém, Ihe eram enérgicamente contrarios; a pobre
camponesa, com seus poucos anos de idade, deixaya-se guiar por
pretensas visóes mais do que pelas ideáis dos professóres; quería pas-
sar por mais perita do que os capitáes do exército, sem pedir venia nem
autorizacáo aos doutos lentes!
A luz destas características da mentalidade da época, analisemos
agora o desfecho da historia de Joana d'Arc.

Os ingleses, tendo que apelar para motivos religiosos na


sua acáo contra a donzela, encontraram apoio valioso na pessoa
do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, todo devotado á causa
dos invasores e, por isto, refugiado em Ruáo, territorio possuído
pelos ingleses.
Nao foi difícil encontrar pretexto para se iniciar um pro-
cesso contra Joana : as suas apregoadas mensagens celestiais
forneciam fundamento a acusagóes de bruxaria e heresia!
Cauchon foi constituido presidente do respectivo tribunal, pois
se dizia que Joana havia sido presa nos territorios de sua
jurisdigáo (na verdade, Compiégne pertencia á diocese de
Soissons, nao á de Beauvais, nem á de Ruáo). Para dar ao
júri o aspecto e a autoridade de tribunal da Inquisigáo (tribunal

— 342 —
O PROCESSO DE JOANA D'ARC

oficial da Sta. Igreja), chamaram a participar da mesa o Vice-


-Inquisidor de Ruáo, Jean Lemaítre. Cauchon convidou aínda
grande número de assessores e jurados, aos quais o govérno
inglés fez saber que tinha meios para os coagir, caso rejeitas-
sem participar do processo; 113 juristas aceitaram a intimacáo,
dos quais 80 pertenciam á Universidade de Paris...
O júri era de todo ilegítimo, pois Cauchon nao tinha sobre
Joana nem a autoridade de bispo diocesano nem a de legado
pontificio. A Santa Sé nao fóra em absoluto informada da cons-
tituicáo de tal tribunal...
Contado o processo foi cncaminhado. A donzola sofreu maus
tratos físicos e moráis; .submelida a inlerronalórios capciosos,
que visavam arrancar-íhe a confissáo de heresia e supersticáo,
respondeu sempre com simplicidade e nobreza; chegou mesmo
a apelar para o Santo Padre: «Peco que me levéis á presénga
do Senhor nosso, o Papa : diante déle responderei tudo que tiver
de responder». Em váo, porém, apelou urna e duas vézes...
Posta sob pressáo para confessar que caira em erro, Joana
resolveu declarar que 1) se submetia ao juízo da Igreja Uni
versal; 2) suplicava a S. Miguel lhe desse o conselho oportuno
na situacáo; 3) nada revogava, a menos que isto fósse do agrado
de Deus. Nao foi possível, até o fim, arrancar da heroina qual-
quer confissáo de heresia.
Finalmente, após peripecias varias, Joana foi dolosamente
condenada qual hereje, relapsa, apóstala, idólatra. Entregue
ao braco secular, sofreu a morte pelas chamas aos 30 de maio
de 1431, enquanto olhava para o crucifixo e orava. O próprio
Cauchon entrementes derramava lágrimas, assim como outros
dos espectadores.
A opiniáo pública se viu profundamente abalada pelo ocor-
rido. Apesar de todas as acusagóes, a massa do povo ainda tinha
Joana na conta de vitima da injustiga de seus inimigos. Con-
seqüentemente, pouco depois de entrar solenemente em Ruáo
(dezembro de 1449), o rei Carlos VII deu inicio a urna revisáo
do processo condenatorio, revisáo que terminou favorável á
jovem. Seguiu-se em 1445 o inquérito pontificio, já que Joana
fóra abusivamente sentenciada em nome da Inquisigáo : após
numerosos interrogatorios, o arcebispo de Reims, aos 7 de julho
de 1456, perante numerosa assembléia de clérigos e leigos em
Ruáo, publicou a conclusáo do «processo do processo», reabili-
tando a memoria da donzela.
O dia em que se encerravam os trabalhos da reabilitagáo
estava longe de ser o ponto final de triste aventura. A opiniáo
popular, venerando mais e mais a jovem heroína, foi anteci-
pando novo processo a ser realizado pela Sta. Sé... : aos 27

— 343 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 9

de Janeiro de 1894, Leáo XIII introduziu a causa de beatifica-


gáo de Joana d'Arc, causa esta que se concluí em 1920 com a
canonizagáo da Santa por Bento XV.
Porque tanto se fez esperar essa completa reabilitacáo?
Os tempos que se seguiram ao ano de 1456, foram de reacáo
contra o espirito e a vida da Idade Media : na época da Renas-
cenca o adjetivo «gótico» vinha a ser sinónimo de «bárbaro»;
quebravam-se os vitrais das catedrais para substituí-los por
vidracas brancas; o famoso poeta Pierre de Ronsard (f 1585),
imitador dos clássicos gregos e latinos, qualificava o período me
dieval de «sceulos grosseiros»; mais tardo Voltaire (t 1778) (e
aínda Anatole Franco, t 1924) mostravam-so dirctamenlc inten
sos á donzela de Domrémy. Foi preciso que a opiniáo pública
em geral proferisse um juízo mais objetivo sobre a Idade Media
para se pensar em exaltar a figura táo característicamente me
dieval de Joana d'Arc.

2. Um juízo sobre os acontecimientos

a) A historia nos aponta um fenómeno interessante para


o estudo da questáo «Joana d'Arc» : a partir de inicios do
séc. XIV foram-se afirmando tendencias nacionalistas, em parte
absolutistas, entre os reis cristáos, sendo que neste movimento
a dianteira coube ao monarca Filipe o Belo da Franca (1285-
-1314). As autoridades e os juristas civis comegaram entáo a ver
com maus olhos o tribunal da Inquisigáo, que até aquela época
funcionava no reino por autoridade do Sumo Pontífice, aplicando
sua legislagáo própria. Na mente de nao poucos magistrados
surgiu a questáo : será que, em vez de auxiliar a Inquisigáo
eclesiástica, a autoridade civil nao poderia inverter os papéis e
servir-se déla como de um instrumento do reino?
É esta a tendencia que, de fato, domina a historia da Inqui
sigáo nos séc. XIV/XV : o poder dos reis procurava, mediante
as sentengas da Inquisigáo, atingir os inimigos da monarquía
como se fóssem os inimigos de Deus; nao poucos abusos se foram
cometendo sem o conhecimento ou até á revelia dos Pontífices
Romanos (haja vista o famoso processo dos Templarios logo no
. inicio do séc. XIV).
Pois bem; o processo de Joana d'Arc no comégo do séc. XV
é mais um processo désse tipo. Parece que urna análise serena
dos acontecimentos permite concluir que a condenagáo da don
zela foi obra de um govérno civil desejoso de promover os
interésses temporais de sua nagáo, ou seja, da Inglaterra. Ao
processo civil foi, sim, dada urna capa religiosa, acentuada pelo
fato de que alguns eclesiásticos, cedendo >á fraqueza humana, se
prestaram ao papel de juízes de Joana d'Arc.

— 344 —
O PROCESSO DE JOANA D'ARC

Na verdade, a Santa Sé nao teve parte nem nos prelimi


nares nem no andamento do processo. Assaz significativo é
o fato de que, um mes antes da condenagáo de Joana, ou seja,
em fins de abril de 1431, o Papa Eugenio IV escrevia a seu
legado na Franca, o Cardeal de Santa Cruz, intimando-o a
procurar a reconciliacáo dos reis da Franga e da Inglaterra;
ñas instrugóes que deu, nao se encontra urna só mengáo do
processo de Joana d'Arc, que certamente figuraría na ordem
do dia, se o Papa tivesse conhecimento da causa. Eugenio IV
só soube do que se dera, depois que Joana fóra queimada viva.
Mas ontáo que dizer das figuras eclesiásticas que colabora-
ram para ¡i candenagáo da heroína? Nao sao rosponsúveis o
culpadas?
Tenha-se por certo que nao representavam a Igreja como
tal. O bispo Pedro Cauchon nem era o prelado diocesano de
Joana nem recebera delegacáo canónica para agir como tal;
sua autoridade lhe vinha toda do rei da Inglaterra. Por conse-
guinte, perante o Direito eclesiástico inválidos eram os poderes
que ele pretendeu exercer e comunicar aos seus assessores,
inclusive ao Vice-Inquisidor, que agia sob a sua dependencia.
Sem querer penetrar ñas consciéncias (que só Deus pode pers-
crutar), reconhecer-se-á que o comportamento externo de Cau
chon e de quantos com ele cooperaram, foi expressáo de fraqueza
de ánimo. Entre os historiadores modernos, há quem alegue
boa fó c circunstancias atenuantes em favor do bispo de Beauvais
e de seus jurados : tais sao M. de Pigné, que se fez quasü o
hagiógrafo do prelado, e Pierre Tisset, historiador e jurista ao
mesmo tempo, autor de trabalhos intitulados «Le tribunal de
Rouen était-il compétent?» e «Quelques remarques á propos de
Pierre Cauchon». — Como quer que seja, o cristáo sabe que a
Igreja nao se identifica plenamente com nenhum de seus filhos,
por mais altamente colocado que esteja; cada um déles se dis
tancia da Igreja Santa na medida em que é pecador.
Sñhrc a responsabilidad^ da autoridade suprema da ffíreja nos
processos da inquisigáo medieval, vejam-se mais ampias noticias em
«Perpunte e Responderemos» 8/1957, qa. 9.
b) Urna ulterior questáo, porém, se póe : porque quis a
Igreja enumerar Joana d'Arc entre as santas virgens, quando a
figura desta donzela é principalmente a de urna heroína militar
e nacional?
Certamente nao foram títulos meramente naturais que
levaram a canonizar Joana d'Arc; para tanto, só so ponderam
criterios sobrenaturais, dos quais o primeiro é a heroicidade
das virtudes. Eis, porém, que, independentemente de bravura
e faganhas bélicas, a figura de Joana d'Arc aparece ornada de
notáveis dons do Espirito Santo.

— 345 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958, qu. 9

A sua conduta de vida foi <náo sonriente irrepreensivel até


o fim, mas constituí eloqüente testemunho de urna fé fora do
comum, fé que, realmente, como afirmava a donzela, devia ser
robustecida por gragas especiáis da Providencia. Nos mais pe
nosos embates de seu processo, Joana, sutilmente interrogada
sobre temas teológicos, nao cometeu um só erro (veja-se a
propósito : Y. Pirat, Jeanne d'Arc devant ses juges. Lyon 1942);
além disto, sempre teve a clarividencia sobrenatural para distin
guir entre os seus juízes e a Igreja; embora aqueles se mostras-
sem injustos, a donzela nao perdía a fé na Igreja, para cuja
auloridade suprema cía apelava. Táo firme atitudc sobrenatural
é certo testemunho de ánimo profundamente unido a Deus, pode
rosamente movido pelo Espirito Santo.
Talvez, porém, reste ainda urna dúvida : porque terá a Pro
videncia associado táo intimamente em Joana gragas sobrenatu-
rais e missáo patriótica? O Senhor nutrirá partidos nacionais,
privilegiando um povo com detrimento para outro?
Nao. A tarefa de Joana d'Arc, embora parega meramente
nacional, tinha significado religioso : visava, sim, soerguer mo-
ralmente um povo cristáo, libertá-lo de urna situagáo política
que, segundo se pode crer, privaría a gente de Franga do seu
papel de nagáo sempre católica desde a conversáo do rei Clóvis
no séc. V (ainda o séc. XVII foi na Franga urna época de santos
e de grandes figuras católicas). Sucumbindo ao dominio inglés
ñas vésperas do grande cisma anglicano, ter-se-ia a Franga
preservado do mal da ruptura religiosa? Nao há dúvida, ser-
-nos-á sempre difícil discernir com precisáo os designios do
Altíssimo na historia dos povos e assinalar os motivos de cada
urna de suas disposigóes; nao pode restar dúvida, porém, de
que a missáo de Joana d'Arc, inspirada e sustentada como foi
pela fórga do Alto, teve caráter digno da justiga e da sabedoria
de Deus.
Por conseguinte, após urna refloxáo objetiva sobro o caso
da danzela de Domrémy, rejeite o leitor sincero os seus escrú
pulos «teológicos» e nao deixe de afirmar a santidade de Deus
e da sua Igreja. Faga como a própria Joana, que nao poucos
querem defender acusando a Igreja : a heroína nao censurou
a Igreja nem mesmo incriminou os seus juízes, mas soube até
o fim distinguir entre a Igreja como tal, sempre pura e santa,
e os membros da mesma, homens fracos, que, ao sucumbir á
miseria humana, nao desvirtuam, por isto, a fórga do Corpo
Místico de Cristo. Éste santifica e santificará em todo o tempo
qualquer dos fiéis que lhe preste a sua adesáo incondicional,
admitindo com todas as conseqüéncias o inaudito misterio da
Encamagáo de Deus!

— 346 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 8/1958

CORRESPONDENCIA MIÜDA

ZAQUEU (Rio de Janeiro) : No fascículo 9/1958 de "P.R." sairá


resposta á pergunta concernente á teoría de Teilhard de Chardin.
Sobre a Divindade de Jesús Cristo, o amigo encontrará urna expla-
nac,áo em "P.R." 8/1957, qu. 1. Nao todo e qualquer fenómeno extraor
dinario pode ser tido como sinal do sobrenatural; o milagre que ateste
a intervencáo de Deus, deve preencher certos requisitos, além de impres-
sionar ou maravilhar os espectadores (os fenómenos paranormais, em-
bora surpreendam, podem ser meros efeitos do psiquismo humano); cf.
"P.R." 6/1958, qu. 1. Os portentos realizados por Cristo sao auténticos
milagres, pois excedem a capacidade das fórcas naturais e foram feitos
cm vista de urna finalidad»; nstritamr.-ntc religiosa (haja vista a rcssur-
reic.iio du mortos i!, cm particular, a rcasurrci^iio du iiróprio Cristo).
Contudo nao sao apenas os milagros que dáo tcstumunho da Divin
dade de Cristo, como V. S. poderá depreender do artigo^ ácima citado.
A respeito das aparentes colisóes entre a Biblia c a Ciencia, podem-se
ler os livros de E.B.: "Ciencia e Fé na historia dos primordios" e "Para
entender o Antigo Testamento", editora AGIR, Rio de Janeiro.
A propósito da Encarnac.áo do Filho de Deus em tal época e em
tal planeta deve em breve aparecer resposta em "P.R.".
VIRGINIA (Beto Horizonte): A existencia de Cristo, assim como
o culto que Lhe atribuiam seus discípulos, sao atestados por escritores
pagaos; cf. "P.R." 7/1957, qu. 10. A ressurrei?áo do Senhor nao é ex
plícitamente mencionada por ésses autores, porque desprezavam o povo
judaico e suas' manifestacóos, por mais grandiosas que parecessem; a
Palestina era um pobre rincáo do Imperio, e os judeus desde a época
anterior a Cristo, eram objeto da zombaria dos senhores romanos; por
dsto as narrativas dos "Nazarenos" ou dos Cristáos referentes ao Mestre
Jesús Cristo devem ter sido interpretadas, no primeiro secuta, como
expressóes de fantasía e superstijáo de gente fanática.
JOAO (Jaú): O método de Doyle .nao visa intervir na fisiología
humana, nao mutila o funcionamento da natureza. Serve únicamente
para se veríficarem os períodos de fecundidade e esterilidade. Esta veri-
ficacSo em si nada tem de ilícito. A liceidade ou iliceidade moral recaí
únicamente sobre a abstencao do ato conjugal durante os períodos de
fecundidade. Caso haja motivos serios (penuria financeira, precario
estado de saúde, dificuldade de educagáo...) que desaconselhem o au
mento numérico da prole de um casal, tal abstenc.ao é moralmente licita;
cf. "P.R." 5/1957, qu. 4. — Por conseguinte, a aplicado do método de
Doylc ó equiparada, do ponto <fo vista moral, a do método de Ogi.no-
-Knaus.
CHEFE DE FAMILIA (Belo Horizonte): A imposisáo que lhe pa
rece absurda, pode ser, com muita probabilidade, julgada absurda. Sendo
assim prdeure um sacerdote que, sem dificuldade, lhe dará a comuta-
eáo oportuna. Nao seria lícito, porém, dispensar-se déste ulterior recurso.
O autor destas linhas fica a seu inteiro dispor; caso ele tenha seu
enderezo, poderá ajudá-lo mais eficazmente.
CATARINA (Rio de Janeiro) : Sobre a queda dos anjos, encon
trará resposta em "P.R." 6/1958, qu. 5.
RELIMANI (Santa Alaria): Nao há perigo de se confundirem fenó
menos espiritas com auténticos milagres, se se atende ao que está dito
em "P.R." 6/1958, qu. 1 ; 2/1957, qu. 2.

D. ESTÉVAO BETTENCOURT O.S.B.

— 347 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual de 1962 C* gJ


Assinatura anual de 1962 (via aérea) Cr$ 680,00
Número avulso de 1962 Cr$ 80,00
Número de ano atrasado Cr? 35,00

SSffi
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Rio de Janeiro Tel. 26-1822 - Rio de Janeiro

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