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PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE
1959
ERGUNTE
e
Responderemos
ANO II
ÍNDICE
pag.
I. FILOSOFÍA E RELIGIAO
II. DOGMÁTICA
3) "A Biblia (Gen 6-9) ensina realmente que o diluvio fox urna
catástrofe universal, a qual terá recoberto a térra inteira e exter
minado todos os homens ?" '. *
IV. MORAL
V. HISTORIA DO CRISTIANISMO
CORRESPONDENCIA MIÚDA ui
I. FILOSOFÍA E
— 403 —
diante dos problemas capitais do espirito humano. Verdade é que,
quando hoje em dia se fala de existencialismo, freqüentemente se
entende a mentalidade atéia de Sartre. Nao há dúvida, o relativismo
deletério altamente fomentado pelos escritos de Sartre marcou pro
fundamente o ritmo do pensamento e da vida modernos; muJtos dos
nossos contemporáneos que nao professam teóricamente o existen
cialismo, na • prática respiram o ar do clima existencialista que
recobre o mundo atual. Principalmente o existencialismo francés,
afirmando-se pela arte, a literatura, o cinema e pela conduta de
vida excéntrica de seus representantes, tem penetrado na sociedade;
6, várifica-se que levou nao poucos de seus adeptos, após urna existencia
debochada, ao desespero e ao suicidio.
Consideremos agora
1) Estima do Desdém da
EXISTENTE ESSÉNCIA
CONCRETO ABSTRATA
CONTINGENTE NECESSARIA
TEMPORAL ETERNA
SINGULAR E INDIVIDUAL UNIVERSAL
— 404 —
Em outros termos, conforme o existencialista, o homem
é o que ele faz, nao o que ele pode ou deve fazer. O «poder
fazer» e o «dever fazer» pressupóem urna estrutura que define
e rege o homem antes que éste aja. Ao contrario, o «faz»
aponía para o homem existente, concreto, projetado na ordem
real. Ora.é a éste, e nao áquele, que o existencialista dá valor;
ele nao leva ériTeonta estruturas nem leis do ser anteriores
á atívidade concreta de tal ser; o .homem, para ele, nada
tem de eterno, de atemporal e necessário, mas é táo contin
gente qüanto o seu modo de agir; o modo de agir esgota
simplesmente a definigáo de homem.
Esta posigáo filosófica tem ampia repercussáo no plano
da Moral. O existencialista coerente com suas premissas nao
reconhece preceitos éticos perenes, válidos para todos os tem-
pos e todos os individuos, mas afirma que as categorías do
bem e do mal moral sao variáveis como as circunstancias em
que cada individuo se encontra ; é a situagáo do momento,
transitoria, que faz a ética de tal pessoa. ditando o que é bem
e o que é mal para essa pessoa (bem e mal que poderiam nao
ser tais para outro individuo humano). Nao existe «a Moral»
em si, mas existe apenas «minha Moral», como nao existe
«a Verdade», mas apenas «minha Verdade» (Jaspers). — É
essa a «Ética da situagáo», também dita «Existencialismo
ético».
— 405 —
á medida que o fim da vida se aproxima; a Marte ocasiona a
Angustia suprema. O existencialista ateu acrescentaria aqui: tentar
esquivar-se á angustia é entrar para o rol dos «tipos imundos» que
procurara refugio na religiáo, mas até nestes a angustia persiste,
á espreita... É preciso que o homem lute desapiedadamente contra
a tentacáo da felicidade; o sofrimento constitui, sim, a condicio
normal, verdadeiro mal incurável, do homem. Com a morte tudo se
acaba, íicando as tendencias inatas do homem frustradas no fim
déste currículo terrestre. O moribunda é urna b&lha que se extingue
no ar, é um laco que se desata no palco das tragedias humanas.
Sartre deu a tais idéias um acento particularmente carregado;
para ele, o aparecimento do homem no mundo, como o próprio
mundo em si, é algo de gratuito, absurdo. O homem vé-se aqui jogado
«sem razao, sem causa e sem necessidade»; conseqüentemente expe
rimenta a- asco da vida. Porque existe alguma coisa? «Tudo era
demais... Eu também era demais», responde Sartre; nao obstante,
continuaría ele, minha existencia é um fato, é urna aventura; queira
ou náó queira eu, tenho que me afirmar, pois o homem é essenciál-
mente um impulso, um «élan».
A náusea que Sartre experimenta neste mundo se traduz no
seu conceito de relagóes sociais. Nao procure o homem consoló
algum no convivio com os seus semelhantes, advertía ele; a frater-
nidade humana é ilusoria. O «outro» é inimigo e rival; rouba-me
o mundo. "A verde erva dos campos volta para o outro urna face
que eu nao conheco». E, multiplicando análises implacáveis, Sartre
pretende mostrar o odio irredutível que op6e os seres humanos
entre si, mesmo depois da morte. «O inferno sao os outros», assevera
ele simpiesmente.
Esta afirmacáo é bem ilustrada por famosa peca sartriana:
Huis-clos (A portas fechadas). Nesta aparece um quarto de hotel,
que por convencáo representa o inferno; contém tres assassinos,
mortos também éles de morte violenta: Estela, Inés e Garcia. Um
criado irrepreensível se mostra obsequioso ao extremo para com os
tres hospedes. A vida ai parece táo amena, até confortável, que
os tres clientes perguntam uns aos outros onde estáo os tormentos
que pensavam encontrar em punicáo de suas faltas: «Será isto
afinal o inferno?» pergunta um dos criminosos. «Nunca o pensei.
Recordai-vos? O enxófre, a fogueira, a grelha...»
Eis, porém, que Ssse quarto misterioso aprésenla duas notas
características: carece de espelhos e tem as portas inexorávelmente
fechadas. Ora basta isso para que a situacüo se torne verdadera
mente infernal. Sim, diz Sartre; o homem, ao agir neste mundo,
nunca encontra a si mesmo, nunca pode reíletir sobre si ou, corno-
acontece aos condenados de Huis-clos, nunca se pode mirar no
espélho. Doutro lado, os semelhantes com quem convivemos neste
mundo, estáo sempre a espreitar-nos e a formar um juízo a nosso
respeito. Em conseqüéncia, acontece que, de um lado, nao podemos
possuir-nos a nos mesmos e, de outro lado, estamos condenados a
ser possuidos pelos outros e a ser arrebatados a nos pela opiniáo
que os outros formulam a nosso propósito.
Vé-se destarte qual a pena a que estáo condenados os hospedes
de Huis-clos ou, sem simbolismo, os homens neste mundo: é a pena
de terem que viver em sociedade, sem se poderem isolar, tornando-se
por consegulnte objeto da opiniáo dos outros, que os conquista.'
Feita esta experiencia, os clientes de Huis-clos chegam a urna
conclusáo que Sartre qu'er incutir aos seus leitores: todo individuo
humano é demonio e carrasco para os outros; os homens que nos
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cercam sao «demais» e nos causam náusea: «O enxófre, a fogueira,
a grelha... ride! Nao há necessldade de grelhas: o inferno sao
os outros!» ,
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o que importa é comprometer-se («s'engager»), e isto, «numa noite
sem estrélas^ num caminho ladeado de precipicios».
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Deus nao existe, proclamaram éles, mas nao obstante nada será
mudado. — Muito ao contrario, responde Sartre com razáo, se Deus
nao existe, tudo está mudado. Nao há mais valores espirituais, nao
há mais nenhum bem necessário, nao há mais luz interior» (extraído
da revista «Esprit» julho de 1946, 97).
Em particular, Sartre reagiu contra a incoeréncia afirmando que,
se nao há Deus, o^ homem tem o direito de se tornar carrasco e
agougueiro, isto é, tem o direito de matar e roubar segundo seus
criterios pessoais (muitas vézes apaixonados); é com razao que
Sartre assim íala, porque nenhum homem estará jamáis habilitado
a coibir seu semelhante senáo (ao menos implícitamente) em nome
de Deus; cí. «P. R.» 21/1959 qu. 1. Claro está que um mundo
dominado pelo ateísmo coerente que Sartre apregoa, nao pode
deixar de parecer tremendamente absurdo, tornando-se assim ocasiao
de náusea e desespero. — Foi,-sim, para esta realidade que o
existencialismo apontou mui vivamente.
c) Os existencialistas modernos, afirmando a angustia do homem
sobre a térra, nao fizeram senáo abordar um problema táo antigo
como a historia do género humano: o problema da insuficiencia
de tudo que é criado, para saciar a sede que o homem tem do Bem.
Já o judeu autor do livro bíblico do Eclesiastes (séc. III a. C),
mais tarde S. Agostinho (t430) e, posteriormente ainda, o filósofo
Blaise Pascal (tl662) deram expressSo á inquietude ou á sede
da alma peregrina neste mundo. A filosofía budista, do seu modo,
faz eco a essa experiencia. Kierkegaard, Heidegger, Jaspers, Marcel
e Sartre sao outros tantos afautos da mesma necessidade humana.
— É sadio, é mesmo necessário, que o homem se dg por insatisfeito
com os bens que éste mundo lhe oferece; tal é o pressuposto de
qualquer auténtica procura de valores. Contudo o existencialismo
moderno, longe de ser construtivo como o dos autores anteriores e
encaminhar o problema para urna solugáo, só faz exacerbá-Io...
E porque? — i: o que passamos a examinar, considerando
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perdeu a consciéncia do seu próprio vigor. Ora isto significa deca
dencia, e decadencia semelhante á que se deu no fim da historia
da Filosofía grega (séc. II a. C. — séc. I d. O, quando, distanciando-se
dos grandes sistemas metafisicos de Platáo e Aristóteles, os pen
sadores se tornaram epicureus. cínicos e céticos...
— 410 —
má íé e de falsa consciéncia; estes personagens constituem urna
copia da realidade contemporánea, que Sartre, dolorosamente decepcio
nado, talvez queira denunciar como absurda e asquerosa. O tempo
possivelmente revelará a Jean-Paul o aspecto positivo da natureza
humana, pois Sartre nao é quicá um debochado cínico, como parece
á primeira vista, mas urna alma de idealista profundamente atormen
tada pela incoeréncia do mundo atual! Cf. F. Jeanson, Le probléme
moral et la pensée de Sartre. Paris 1947; E. Brisbois, Le sartrisme
et le probléme moral, em «Nouvelle Revue Théologique» 74 (1952)
30-48. 124-145.
Contudo, consideradas em si mesmas, as obras do principe do
existencialismo contemporáneo sao tremendamente deletérias; pelo
que o S. Oficio as colocou no Índice dos livros proibidos aos 6
de novembro de 1948.
d) Os outros grandes temas a respeito dos quais o existencia
lismo contemporáneo manifesta concepcSes erróneas, já foram
explanados em fascículos anteriores de «P. R.». Aissim a questáo
do valor perene dos preceitos moráis ou das categorías do bem e do
mal moral, em «P. R.» 7/1958, qu. 5; o tema do inferno, em "P. R.»
3/1957, qu. 5; o problema da liberdade de arbitrio com seus matizes,
em «P. R.» 5/1958, qu. 3, 6 e 7; 7/1958, qu. 5.
* * !»
H. DOGMÁTICA
MATEUS (Piauí) :
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1. O sacerdocio dos fiéis: fundamentos revelados
— 412 —
De novo estas palavras significan! que ao povo de Deus
(que é por excelencia o povo do Novo Testamento ou dos cris-
táos; cf. Gal 6,16 ; 1 Cor 10,18) compete em meio as demais
nagóes o papel que toca ao sacerdote em meio ao seu povo
próprio.
2. O Apostólo Sao Joáo, por sua vez, anuncia:
— 413 —
"Os íiéis cristaos também oíerecem a hostia divina, mas em
sentido diverso (isto é, nao como o sacerdote hierárquico). Isto já
ioi declarado abertamente por varios de Nossos Predecessores e por
Doutores da Igreja...
Também o rito e as oracGes do Sacrificio Eucarístico significan!
e mostram, nao menos claramente, ser feíta a oblacáo da vitima
pelos sacerdotes juntamente com o povo. Nao sómente depois do
oferecimento do pao e do vinho o ministro sacro, voltado para o
povo, diz com palavras significativas: 'Rezai, irmáos, para que o
meu e vosso sacrificio seja aceitável a Deus Pai Onipotente', mas
aínda as súplicas pelas quais a Deus é oferecida a hostia divina,
as mais das vézes sao formuladas no plural, e nelas está indicado,
nao apenas urna vez, participar o povo déste augusto sacrificio,
porque também o oferece...
Nem é para admirar serem os fiéis elevados a tamanha dignidade.
Pela ablucao do batismo. a um título geral, os cristaos se fazem
membros de Cristo Sacerdote no Corpo Místico, e pelo caráter que
em suas almas como que é insculpido, ficam destinados ao culto
divino, e désse modo participam, segundo a sua condicáo, do sacerdocio
do próprio Cristo» (ene. «Mediator Dei»).
— 414 —
Perguntemo-nos entáo: se o sacerdocio se deve concei-
tuar a partir da nocáo de sacrificio, que se entende própria-
mente por sacrificio ?
— 415 —
desenrola em fungáo da vida e da morte ou em fungáo do sa
crificio de Cristo.
Dada a posigáo central e decisiva que essa oferta ocupa
no curso dos tempos, ela vem a ser simplesmente o Sacrificio,
e o seu autor, Cristo, é o Sacerdote único, cuja agáo recobre
todos os sáculos e todas as regiñes. É por Cristo, e sómente
por Cristo, que os homens em qualquer época conseguem santa
comunháo com Deus Pai.
Ora o Senhor Jesús quis deixar sobre a térra um rito, a
Eucaristía ou a S. Missa, que, sob sinais prenhes de realidade,
perpetuasse a presenga do seu sacrificio ; mediante ésse rito,
Ele tinha em vista proporcionar aos homens, feitos membros
do Corpo de Cristo Místico pelo batismo, um meio de par-
ticiparem da oblagáo que outrora na cruz o Redentor fez de
Si mesmo ao Pai. Celebrando tal rito, toda a Santa Igreja e
cada um dos membros desta sao associados ao sacrificio do
Senhor. Sim; na Missa Cristo Sacerdote oferece nao apenas
como Individuo (á semelhanga do que se deu no Calvario),
mas como Cabega á qual estáo vinculados os membros do
seu Corpo Místico (a Igreja) ; na Missa Jesús também Se
oferece como Hostia, e Hostia á qual estáo unidos os membros
do Corpo Místico.
Destarte se vé em que sentido se pode falar do sacerdocio
dos cristáos. Como dizíamos, há um só Sacerdote — Cristo —,
o qual por si mesmo é agradável ao Pai; o seu sacerdocio,
porém, se estende em graus diversos aos homens que Ele
enxerta em seu Corpo Místico. Ésses diversos graus de en-
xérto em Cristo e, por conseguinte, de participagáo do sacer
docio e do sacrificio do Senhor sao assinalados pelos tres sacra
mentos que, como dizem os teólogos, imprimem caráter: o
Batismo, a Crisma e a Ordem.
— 416 —
ato de culto, se torna presente, como sabemos, em cada S.
Missa. Já o Batismo, pelo fato mesmo de ser o sacramento
da inidagáo, comunica o sélo do Senhor á alma, habilitando-a
a oferecer e a se oferecer com Cristo. A Crisma ou Confirma-
c.áo intensifica o dom do Batismo, comunicando como que a
maturidade espiritual, mormente o ánimo forte para se pro-
fessar a fé crista tanto com os labios como com atitudes prá-
ticas. Por fim, o sacramento da Ordem nao sómente corro
bora, mas amplia notávelmente a incorporagáo do cristáo em
Cristo, conferindo á criatura poderes de índole distinta de
quanto é dado pelo Batismo e a Crisma.
— 417 —
hierárquico, e, dentro déste, por excelencia convém ao presbítero
e ao bispo, que em grau máximo participam da missáo de Cristo
Apostólo (cf. Hebr 3,1). Diz-se popularmente, e com razao, que «o
padre representa o coragáo dos homens junto a Deus e o coracjio de
Deus junto aos homens». A tarefa de apostolado, porém, inerente
ao sacerdocio de Cristo estende-se aínda aos graus inferiores de
participagáo désse sacerdocio, ou seja, aos fiéis batizados e crismados;
a estes incumbe, sem dúvida, o dever de serem «sal da térra e luz
do mundo» (cf. Mt 5.13 s). Tal tarefa. os fiéis leigos a desempenham
segundo tres modalidades, que se podem assim discriminar:
— 418 —
escolhida, sacerdocio regio, nagáo santa, povo resgatado» (ene.
«Ubi arcano»).
O mesmo Pontífice assim escrevia ao Cardeal de Malines:
«Estejam persuadidos (os fiéis) de que sao chamados e esco-
Ihidos por graca singular de Deus a essa tarefa (do apostolado), que
nao fica muito abaixo da tarefa sacerdotal» (carta de 15 de aeósto
de 1928, em A. A. S. [1928] 296).
— 419 —
visto que, embora no conjunto Ela tenha crescido considerávelmente,
seu clero todavía nao aumentou em proporcáo. Ora o clero tem
necessidade de se poupar antes de tudo para o exercício de seu
ministerio própriamente sacerdotal, onde ninguém o pode substituir.
Um complemento fornecido pelos leigos ao apostolado é, portante,
de necessidade indispensável. Que ele seja de precioso valar, a
experiencia da fraternidade de armas ou de cativeiro ou de outras
provacdes da guerra ai está para dar testemunho. Ela atesta, princi
palmente em materia de religiáo, a influencia profunda e eficaz dos
companheiros de profissáo, de condicao, de vida. Ésses fatores e
muitos outros, devidos ás circunstancias de lugar e de pessoas,
tornaram muito largas as portas á colaboracáo dos leigos no aposto
lado da Igreja...
O apostolado dos leigos, no sentido próprio, está sem dúvida em
grande parte organizado na Acáo Católica e ñas outras instituigSes
de atividade apostólica aprovadas pela Igreja; mas, fora destas, pode
haver, e há, apostólos leigos, homens e mulheres, que olham o bem a
fazer as possibilidades e os meios de fazé-lo; e éles o fazem preocupados
'únicamente em conquistar almas para a verdade e a graca. Pensamos
também em tantos leigos excelentes que, ñas regi6es em que a
Igreja é perseguida como era nos primeiros séculos do Cristianismo,
substituindo da melhor maneira os sacerdotes encarcerados, pondo
mesmo em perigo a vida, ensinam ao redor de si a doutrina crista,
instruem acerca da vida religiosa e do justo modo de pensar católico,
conduzem á freqüéncia dos sacramentos e á prática das devogSes,
especialmente da devocáo eucaristica. Vos os vedes em acáo, a todos
ésses leigos; nao vos inquietéis em perguntar-lhes a que organizacáo
pertencem; admirai antes e reconhecei de bom grado o bem que
éles fazem» (texto transcrito da «Revista Eclesiástica Brasileira»
11 [1951] 967-71).
— 420 —
remos a narrativa escrituristica do diluvio com historias semelhantes
nao-bíblicas, para finalmente deduzir o ensinamento perene do texto
sagrado.
— 421 —
homens, e homens que por sua fidelidade ao Senhor mere-
ceram ser assim chamados. Tais homens, acrescenta a Escri
tura, em determinada época da historia se foram corrompendo,
deixando-se atrair pela beleza de mulheres indignas.
Como isto?
O fato mesmo de que Deus apareca no texto sagrado ditando
números para a construcáo da arca, dá testemunho da Providencia
e da benevolencia inesgotável do Criador; a arca construida em
conseqüéncia de tao carinhosa intervencao do Senhor deverá apresen-
tar-se aos olhos do leitor qual instrumento apto e bem seguro para
a salvacáo humana. É isto o que em primeiro lugar se deve inferir do
fato literario de que Deus dita as proporgoes da arca. Para inculcar
mais vivamente esta conclusáo, o autor sagrado quis indicar cifras pre
cisas : 300, 50 e 30 (cavados); sao cifras que obedecem a simetria e,
— 422 —
ncste contexto, nada mais signiíicam do que urna construgáo bem
equilibrada em si e adaptada á sua íinalidade. Em particular, sobre
a altura da arca, que é de 30 cóvados, note-se que representa o dóbro
da altura a que chegaram as aguas do diluvio (cf. 7,20) ; ara esta
proporcáo significa concretamente que a arca podía ílutuar livre e
soberanamente por todas as regióes inundadas.
É esta, alias, a interpretagáo que, já no séc. IV, dava S. Efrém :
«Isto nSo foi escrito por se terem realizado as coisas como as pala-
vras as insinuam, mas as indicagóes entendam-se conforme a lingua-
gem dos marujos ; estes sondam a profundidade das aguas com o
lio a prumo, e, caso encontrem menos dé 15 cóvados, julgam tal
paragem intransitável a urna nave» (In Gen 149).
— 423 —
época relativamente recente, pois nao se saberia determinar a data
do diluvio bíblico (cf. «P.R.» 17/1959, qu. 5) ; além do que, é certo
que existiram outrora animáis hoje desaparecidos.
É verdade que Deus podia ter superado tais dificuldades mediante
intervencáo milagrosa. Os teólogos, porém, ensinam que o Todo-Pode
roso nao costuma derrogar ás leis da natureza sem linalidade propor-
cionalmente grave e que as intervencóes extraordinarias de Deus
devem sempre ser provadas, e nao simplesmente pressupostas.
Estas consideracSes levam a concluir que o diluvio se restringiu
a urna porcáo apenas (e provávelmente pequeña) da térra; exigem
também a restricao do número de animáis recolhidos dentro da arca.
Na verdade, Deus terá mandado a Noé, salvasse consigo apenas a launa
necessária para que se reconstituisse imediatamente após o diluvio a
vida normal de campdnios na regiáo atingida pelas aguas; aquéle varáo
justo, por conseguinte, só terá levado para dentro da arca os animáis .
de utilidade cotidiana (de modo nenhum leras, aves de rapiña, ser-
pentes, etc.), animáis a cujo abastecimiento podiam satisíazer as oito
pessoas residentes na arca.
Esta conclusáo é corroborada e completada desde que se levem
em conta
b') Argumentos positivos derivados do próprio texto sagrado. O
diluvio, geográficamente restrito (como ácima íoi dito), nao afelou
a populacáo inteira do globo. É o que se depreende ja do lato de que,
a partir de Gen 4,1, o livro sagrado visa narrar apenas os leitos de
Caim e seus descendentes, de um lado, os de Sete e sua linhagem,
do outro lado; embora o autor aíirme que Adáo e Eva tiveram
numerosos íilhos e íilhas (el. Gen 4,4), ele deixa todos ésses descen
dentes e suas lamílias lora do seu horizonte de historiador (o motivo
desta restricao, vé-lo-emos abaixo); só íaz questáo de descrever algo
do que aconteceu entre os setitas e os cainitas, enquanto as demais
tribos irmás se iam multiplicando e expandindo normalmente sobre
a térra. É, pois, no quadro da historia dos setitas e cainitas apenas
que o autor coloca a historia do diluvio.
Nesta perspectiva, entende-se que as expressóes «todos os ho
mens» e «a térra inteira» sejam sugeridas únicamente pelo gósto
semitico de íalar em hipérboles. A S. Escritura usa nao raro dessas
expressdes universais em contextos que lhes dáo sentido evidente
mente restrito; assim
Gen 41, 54.57 lala de urna lome tal que «os povos da torra inteira
iam ao Egito para comprar trigo..., pois a lome pesava sdbre toda
a térra» (universalidade relativa!);
Dt 2,25: Deus promete aos israelitas incutir «a todos os povos
debaixo do céu» o terror diante de Israel (expressáo retórica, como
se deprende da compara cao com Dt 11,23-25);
At 2,5 : no dia de Pentecostés «achavam-se em Jerusalém judeus,
homens religiosos de todos os povos que há debaixo do céu».
No caso de Gen 6-9, o autor sagrado tinha em vista «a térra
inteira» e «todos os homens» nao no sentido geográfico nem no sen
tido etnológico, mas do ponto de vista religioso. Pois que quería des
crever nao simplesmente historia, mas historia religiosa, o género
humano, para ele, se reduzia ao povo ou aos individuos portadores
dos valores religiosos da humanidade; no nosso caso, reduzia-se aos
setitas e cainitas ou, também se poderia dizer, á íamília de Noé (úni
cos piedosos que perseveravam) e aos que lhe ficavam em torno e
com ela entravam em contato (ímpios). Homens e regi5es situados
lora déste círculo assaz restrito já nao contavam para o hagiógraío,
— 424 —
pois nao desempenhavam papel na historia do Reino de Deus, tendo-
-se alheiado a éste desde época muito remota, para se perder ñas vias
da idolatría e da corrupgáo; já que nao tinham mais contato com
os portadores da verdadeira fé, nem constituiam perigo para os
«filhos de Deus», carecería de sentido, nos designios da Providencia,
fazé-los perecer pelo diluvio.
Quanto a outros textos da S. Escritura que parecem insinuar a
universalidade absoluta do diluvio (Sab 14,6; Eclo 44,17s; Mt 24,37-39;
1 Pdr 3,19s; 2 Pdr 2, 5-7), entende-se que repitam o modo de falar
do Génesis, sem querer dar-lhe a interpretagáo auténtica.
Após o que acaba de ser dito, inútil seria frisar que as ragas
branca, negra e amarela de modo • nenhum devem sua origem aos
tres íilhos de Noé, respectivamente Sem, Cam e Jafé. Foi indepen-
dentemente do diluvio e da. familia de Noé que as ragas humanas se
diversilicaram sobre a térra ; cf. «P.R.» 7/1957, qu. 2.
— 425 —
cluir á dependencia de alguma das duas em relagáo a outra ; as
diíerengas tanto de teología como de minucias literarias se oporiam
á ccnclusáo. Sim ; o texto bíblico é essencialmente monoteísta, apre-
sentando um só Deus, que dirige o curso da natureza, enquanto os
documentos babilónicos póem em cena muitos deuses, os quais liti-
gam entre si, por fim se apavoram da catástrofe que desencadea-
ram e íogem para o céu mais elevado. Além disto, observe-se a
causa do diluvio na Biblia e fora desta: no Génesis, é a iniqüidade
dos homens, incompativel com a santidade de Deus, que suscita a
intervencao do Altissimo ; Éste castiga os culpados e salva os ino
centes ; o Deus que pune, é também o Deus moralmente íntegro e
perfeito. Ao contrario, na Babilonia os deuses decidem exterminar
os homens sem levar em conta os méritos déstes, mas apenas por
que a estirpe humana nao lhes agrada mais ; o homem que escapa
com sua familia, é o favorito de um dos deuses, o qual lhe ensina
a mentira: quer que engañe os seus contemporáneos, enquanto
esteja a construir a nave de salvagáo. — Estas diferengas básicas,
derivadas da «filosofía» dos autores (israelita e babilónico) levam
a excluir dependencia direta de urna tradigáo em relacáo á outra.
O problema, portanto, se há de resolver pela dependencia indi-
reta entendida nos seguintes termos :
Os israelitas, por meio de Abraáo, eram oriundos da Mesopo-
támia. Ora nesta regiáo se deve ter dado, em época muito remota,
urna catástrofe, na qual terá perecido grande número de homens
(alguns arqueólogos, em suas escavagóes nos últimos decenios, jul-
garam ter encontrado vestigios désse cataclismo ou do diluvio ba
bilónico ; além disto, sabe-se que as listas dos antigos reis babiló
nicos enumeram monarcas antediluvianas e pós-diluvianos). A me
dida que se passavam os tempos, os caldeus, habitantes da regiáo,
íoram em seus relatos ampliando as proporgóes do acontecimento,
ornando-o de pormenores adaptados as concepgóes religiosas (mi
tológicas, politeístas) e ao grau de civilizacao de épocas bem pos
teriores. Abraáo, ao emigrar da Mesopotámia, levou consigo a tra
digáo do diluvio; os seus descendentes, porém, os israelitas, agra
ciados pela revelagáo do verdadeiro Deus, refletiram sobre o relato
babilónico á luz da sua fé, e conseqüentemente o refundiram se
gundo as exigencias do monoteísmo que professavam; tiraram-lhe,
pois, todos os tragos de paganismo que trazia e, posslvelmente (de
acordó com a praxe literaria dos antigos povos, que procuravam
fazer da historia a mestra da vida), acrescentaram-lhe tragos que
servissem de ensinamento dogmático e ritual a nacáo israelita.
Assim a tradigSo popular caldaica, sem perder seu núcleo histórico,
tornou-se entre os filhos de Israel o veiculo de ensinamento reli
gioso e moral muito elevado.
Conseqüentemente pergunta-se qual seria
— 426 —
Deus é justo. Ao punir os maus, o Senhor salva os ino
centes.
Deus é clemente. Antes de exercer a justiga, oferece sem-
pre um prazo de misericordia para que o pecador se converta.
Foi, sim, durante cento e yinte anos (cifra provávelmente sim
bólica) que Noé construiu a arca. Além disto, o texto de
1 Pdr 3,19s dá a entender que varios dos pecadores obstinados
durante essa moratoria se converteram quando estavam pres
tes a perecer; foram tragados pelo diluvio, salvando, porém,
suas almas.
2) Noé aparece como novo pai da humanidade (consi
derada do ponto de vista religioso), á semelhanga de Adáo, e
como tipo de Cristo. Observe-se que Noé salvou a linhagem
humana (na medida em que era portadora da verdadeira fé)
mediante o lenho da arca ; ora foi também pelo madeiro que
Cristo crucificado salvou os homens. Com Noé, salvo das aguas,
Deus travou urna alianga, como a travara com o primeiro
homem e como a travaria com Cristo (a nova e definitiva
Alianga) ; cf. Gen 9,8-17 ; 2, 15-17 ; Hebr 9,15.
3) A arca, na qual se salvaram os justos, é tradicional-
mente considerada como tipo da Igreja, pela qual se salvam
todos os homens.
4) As aguas do diluvio, através das quais os justos so-
breviveram e em que os ímpios pereceram, sao figura do ba-
tismo, que pela agua dá a vida (vida eterna, simbolizada pelo
número «oito» dos que se salvaram no diluvio bíblico) aos
fiéis e apaga os pecados ; cf. 1 Pdr 3,20s.
5) O diluvio, qual nova criagao, prenuncia, conforme
2 Pdr 3,5-7.10, os céus novos e a térra nova que no fim da
historia se háo de constituir.
Sao estes os pontos que mais se deveráo gravar na mente
dos leitores da Biblia. Sao também os que ácima de tudo
deveráo ser incutidos pelos catequistas, ficando em plano bem
secundario as questóes de índole meramente arqueológica,
cronológica, etnológica, etc.
IV. MORAL
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tengas de autores nao católicos sobre a liceidade dos empreen-
dimentos bélicos.
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Tais teorías íavoráveis á guerra se inspiram em fatalismo cegó
sugerido por concepcdes mecanicistas e monistas do universo. — Bem
diversas eram as premissas do pensador católico Joseph de Maistre
(tl821), o qual, nao obstante, também procurou justificar as guer
ras, concebendo-as como algo de divino !... Os seres vivos seriam,
segundo tal autor, regidos pela lei da destruicáo até o silencio da
morte; De Maistre observava que os viventes superiores dominam
os inferiores, tirando-lhes a vida em seu proveito próprio. O homem
domina os demáis seres materiais, matando a todos pelos mais di
versos motivos: para comer, para se vestir, para se defender, para
se instruir, para se divertir. Nao estaría ele, por sua vez, sujeito a
morticinio ? — Sim, responde o filósofo ; e o carrasco do homem
é o próprio homem mediante as guerras; em furor entusiasta,
sem saber o que faz, o homem nos campos de batalha estaría obe-
decendo á lei do assassínio universal. De Maistre admitía assim
un «fatalismo providencial» (expressáo pouco coerente), recusando
por isto aplicar ás guerras os criterios da Moral.
Seja mencionado outrossim o positivismo jurídico, o qual reco-
nhece ao Estado o direito de recorrer á guerra por qualquer motivo
que lhe parega oportuno. O Direito internacional nao visaría definir
se ao Estado é lícito ou nao promover campanhas bélicas, mas
apenas procuraría regrar o andamento das hostilidades desde que
estas tenham sido desencadeadas.
Após éste rápido percurso introdutório, pergunta-se: em meío
a tantas sentencas diversas, como se configura a concepgáo cató
lica concernente á guerra %
2. A posicáo católica
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associadas entre si; o formulario da S. Missa a ser celebrada «em
tempo de guerra» pede, por sua vez, «sejamos isentos de toda a
maldade das guerras» (Secreta).
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3. Frisemos agora explícitamente tres condigóes que
devem ser necessáriamente preenchidas, para que uma
guerra possa ser considerada justa:
a) o conflito armado há de ter como motivo e finalidade
a defesa de direito gravemente violado ou a reparacao da
justa ordem de coisas burlada. Qualqüer outro motivo seria
incapaz de legitimar o recurso á violencia militar; remo-
vam-se, pois, as razóes de orgulho patrio, expansáo do poder
nacional, ambicio de dominio, interésse político, coibicáo da
prosperidade alheia, etc. A toda campanha armada empreen-
dida por tais motivos S. Agostinho atribui o título de «grande
latrocinio» (De civ. Dei IV- 6).
b) É preciso nao se possa salvar a justiga de outro modo
que nao pelas armas. Em outros termos: a guerra deve ser
recurso extremo, so utilizado após haverem falhado por com
pleto os meios pacíficos de solugáo.
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tendentes. Um direito duvidoso ou moralmente incerto nao poderá
ser, em hipótese alguma. evocado para legitimar o apelo &s armas;
os direitos duvidosos poderlo ser defendidos ou propugnados me
diante o recurso á arbitragem.
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Em resposta, dir-se-á que nao : sem nos demorarmos na
enumeracáo das múltiplas campanhas bélicas empreendidas
pelo povo de Israel, em conseqüéncia de urna ordem do pró-
prio Deus no Antigo Testamento (cf. Éx 17,11-16; Núm
21,3; 25,16s ; Dt 7,ls ; Jz 4,6-13), mencionaremos explícita
mente a resistencia armada que os irmáos Macabeus opuseram
aos invasores sirios, quando estes quiseram reduzir o povo
de Israel as condicóes de corrupcáo moral e degradagáo reli
giosa dos pagaos ; a campanha dos Macabeus, inspirada pelo
amor á verdadeira fé, mereceu os mais calorosos encomios
dos autores sagrados que a descrevem no 1* e no 2' livros
dos Macabeus.
No Novo Testamento, Sao Joáo Batista, ao pregar peni
tencia aos soldados romanos, nao lhes mandava abandonas-
sem a carreira militar, mas apenas recomendava nao come-
tessem injustica e se contentassem com o seu salario (cf.
Le 3,14). O próprio Jesús louvou a fé do centuriáo, oficial
romano, sem exigir que mudasse de profissáo (cf. Mt 8,8-13).
Também o centuriáo Cornélio, no livro dos Atos, foi elogiado
por S. Lucas, sem que a sua condicáo militar criasse obstá
culo a isto (cf. At 10,2}. Por fim, note-se como a epístola aos
Hebreus apresenta as Vitorias que os guerreiros de Israel obti-
veram, qual recompensa outorgada pelo próprio Deus á fé
désses justos (cf. Hebr 11,32-34).
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c) Jesús, na véspera de sua morte, nao permitiu que Pedro
usasse da espada para defender o Divino Mestre, porque «todo
aquéle que se serve da espada perecerá pela espada» (Mt 26,52;
cf. Jo 18,11).
Estas palavras de Cristo sao claramente norteadas pelas cir
cunstancias em que ioram proferidas: Jesús, que quería oferecer-se
como vltima pelos pecados do mundo (cf. Is 53,7), nao podia deixar
que os Apostólos recorressem a algum meio de resistencia no mo
mento da entrega aos adversarios; daí a proibicáo feita a Pedro.
O principio geral acrescentado pelo Senhor («todo aquéle que se
serve...») visa os homens que, sem autoridade própria nem encargo
superior, ousem recorrer ás armas para propugnar seus interésses
(cf. S. Tomaz, S. Teol. II/II 40, 1 ad 1).
d) Citam-se outrossim textos dos Profetas como :
«Os homens transformarlo suas espadas em relhas de arado e
as suas langas em foices. Urna nacáo nao levantará mais a espada
contra outra, e ninguém aprenderá mais a guerra» (Is 2,4 ; cf. 11,
13s ; Miq 4,3).
Tais oráculos nao fazem senáo exprimir a realidade das coisaS
no reino messiánico consumado. A guerra, como foi dito atrás,
supSe o pecado, a tal ponto que, enquanto houver pecado no mundo,
também haverá guerras. É claro, porém, que tal estado de coisas
desaparecerá quando a Redencáo tiver atingido o seu termo derra-
deiro no fim dos tempos ; entáo os corpos humanos ressuscitaráo e
a morte, conseqüéncia do pecado, será definitivamente cancelada...
É o que o profeta descreve em linguagem metafórica, afirmando
que as armas de guerra e morte (espada e langa) seráo transfor
madas em instrumentos de paz e vida (arados e foices).
V. HISTORIA DO CRISTIANISMO
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1. A escravatura : apreciado moral
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servos mesmos, correm graves riscos no plano moral e religioso
pelo fato de possuirem escravos.
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Para explicar a escrayidáo, ainda se apontara certos costumes
do juridismo romano antigo, os quais, porém, nao tém a mesma
Importancia que as tres fontes ácima indicadas :
1) em Roma o devedor incapaz de pagar as suas dividas era
vendido pelo credor fcrans Tiberim, além do Tibre, isto é, fora do
territorio da cidade;
2) o cidadáo que se eximisse do servico militar ou de um re-
censeamento público era, geralmente por ordem dos cónsules, tra
tado de modo semelhante ;
3) a mesma pena era infligida á mulher livre romana que ti-
vesse relac5es com um escravo, á revelia do patráo déste ;
4) era outrossim imposta a mesma sar.cao a quem fósse con
denado ad bestias ou ad metalla, isto é, á morte no anfiteatro ou
ao trabalho íorgado em minas.
2. Oriunda, como se vé, a diversos títulos, a escravidáo tomou
vulto notável tanto entre os povos do Oriente e do Egito antigos
como no mundo greco-romano. Já um dos mais velhos monumentos
da civilizacáo, o código de Hamurapi (séc. XIX/XVII a. C), atesta
a prática da escravatura na Mesopotámia.
Entre os gregos, a sociedade era preponderantemente aristocrá
tica ; urna élite privilegiada a representava, tendo abaixo de si, como
que para sustentá-la, os grupos de estrangeiros (também ditos «bár
baros»), libertos e escravos: o cidadao livre era tido como tipo in
teligente e belo, cuja alma nao podia ser afetada por preocupares
sórdidas nem o corpo deformado por trabalho manual. «A ociosi-
dade é irmá da liberdade?, teria dito Sócrates (t399 a.O, con
forme Eliano (Var. hist. X 14) ; o que significava que os escravos
é que deviam trabalhar para assegurar aos homens livres os meios
de ser ociosos. Assim fala Sócrates na expressao de Xenofonte :
«As artes chamadas mecánicas sao mal vistas, e é com razáo
que os governos fazem pouco caso délas. Estragam o corpo daqueles
que as praticam e se lhes dedicam, forgando-os a permanecer sen
tados, a viver na sombra, e por vézes mesmo a se deter habitual-
mente perto do fogo. Além disto, as artes manuais nao deixam tem-
po para se iazer coisa alguma em favor dos amigos ou do Estado,
de sorte que passamos por maus amigos e covardes defensores da
patria Por isto, em algumas repúblicas, principalmente ñas que
sao tidas como guerreiras, é proibido a todo cidadao exercer urna
profissao mecánica» (Econom. 4).
Por sua vez, Aristóteles (t322 a.C.) 6 autor da frase famosa
por sua dureza : «O escravo é incapaz de felicidade, como incapaz
é de livre arbitrio» (Ética a Nicdmaco III V II).
Dadas estas concepcóes, entende-se aue em Atenas, ao lado de
20000 cidadáos livres, tenha havido 400000 escravos: Corinto con-
tava 460.000 déstes, e Egino 470.000. No célebre mercado de Délos,
venderam-se em um só dia 10.000 eseravos...
No Imperio Romano, o estado de servidáo ainda tomou maior
vulto embora os romanos fdssem. capazes de atitudes muito mais
liberáis do que os gregos : um só cidadáo podia ter a seu servico
10.000 ou 20.000 escravos. As Vitorias dos romanos acarretavam a
vinda de multidóes de prisioneiros para Roma ; César, após a con
quista da Gália, vendeu mais de um milháo déles.
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israelitas herdaram de seus antepassados caldeus ésse cos-
tume. A Lei de Moisés, porém, tratou de mitigar as condicóes
de vida do escravo; é o que se depreende claramente da
comparagáo désse documento israelita com a legislagáo de
Hamurapi da Babilonia: enquanto esta favorece geralmente
o patráo, aquéle visa de preferencia os interésses dos servos.
A mitígagáo da sorte déstes em Israel se explica, em boa parte,
pelo fato de que os judeus, contrariamente a muitos povos
antigos, estimavam o trabalho manual, fosse o da industria,
fósse o dos campos: «Pois que comerás do fruto do trabalho
de tuas máos, serás feliz e prosperarás», exclamava o sal
mista (SI 127,2).
3. O Cristianismo e a escravatura
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a) mudar a mentalidade dos homens em relagáo á es-
cravatura, criando de maneira paciente e constante as pre-
missas e o ambiente favoráveis á eliminagáo da mesma. A
mudanqa de mentalidade seria trabalho lento, pois certos
fatos históricos, de que abaixo falaremos, contribuiram para
dar foros de liceidade a urna ou outra modalidade de servidáo.
Interessante é notar que no séc. IV houve urna seita — a dos
Eustacianos — que incitava os escravos ao odio de classe e á recusa
de obediencia ; tal escola, porém, nao prevaleceu na Tradicáo crista,
pois seus efeitos seriam destrutivos tanto no plano espiritual como
no material ou temporal.
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tia. Alias, durante todo o decorrer da historia da Igreja, enquanto
houve escravos, registraram-se empreendimentos altamente genero
sos em favor da llbertacáo dos mesmos: haja vista a íundagáo de
duas Ordens Religiosas que, durante seis séculos, se aplicaram a
remir os prlsioneiros de guerra feitos escravos — a Ordem dos Tri
nitarios, devida a S. Joáo da Matha em 1198, e a dos Mercedários,
iniciada por S. Pedro Nolasco e S. Raimundo de Penaforte em 1223.
O próprlo S. Vicente de Paulo deixou-se capturar pelos turcos, so-
frendo duríssimo tratamento de 1605 a 1607, a íim de resgatar es
cravos ; o seu exemplo foi seguido por seus discípulos Jean le Vacher
(mais de urna vez) e M. Poissant em 1741. Semelhante foi o proce-
dimento de outros Religiosos, como os dominicanos Estéváo de Lu-
signán, Angelo Calepino, um capuchinho confessor de D. Juan da
Austria; o jesuíta Pe. Mariano Mameri, que fea treze viagens a Ber
bería, e o Pe. Julio Mancinelli, que fundou urna Congregagao Reli
giosa em vista da redengáo de escravos.
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«O fato de que éste homem, e nao aquéle. seja servo, em si nao
se justifica por motivos naturais ; so se explica em vista de alguma
vantagem que possa decorrer da servidáo. Com eíeito, pode tor
nar-se útil a tal individuo ser regido por outro mais sabio, como a
éste outro pode tornar-se útil ser ajudado por aquéle» (S. Teol. II/II
q. 57, a. 3, ad 2).
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ciou a escravatura como «magnum scelus» (grave crime) e
mandou aos bispos infligissem censuras eclesiásticas a quem
a praticasse. O Pontífice Paulo m, em 29 de maio de 1537,
ordenou ao arcebispo de Toledo protegesse os indios da
América, e ameacou de excomunháo (cuja absolvigáo ficava
reservada ao Papa) quem reduzisse ésses homens á escrava
tura. Os Papas seguintes renovaram semelhantes admoesta-
góes. Note-se aínda que Bento XIV em 1741 escreveu ao bispo
do Brasil e ao reí de Portugal lamentando que as disposigóes
de seus predecessores sobre o assunto nao tivessem sido de-
vidamente observadas. Por sua vez, Gregorio XVI em 3 de
dezembro de 1837 publicou urna entíclica exortando os bispos
a fazerem tudo para obterem a supressáo da escravatura, que
desde o Congresso de Viena era oficialmente reconhecida pelas
nagóes como algo de indigno.
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nossos bispos fizeram ouvir suas vozes.em favor da abolícao, propondo
finalmente que esta fósse decretada em comemoracao do jubileu
sacerdotal do Papa Leáo XIII (1888), o que realmente se deu.
S. Santidade respondeu a éste gesto em carta congratulatoria dirigida
ao episcopado brasileiro, carta em que Leáo XIII recordava outrossim
quanto a Igreja havia feito em prol dos escravos.
— 443 —
CORRESPONDENCIA MIÜDA
D. ESTÉVAO BETTENCOURT O. S. B.
■ ■ .
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