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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIN-E

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibitizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO IV

47
ÍNDICE
Pág.
I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "A pessoa psíquicamente anormal poderá pretender san


tificarse ?
Nao há individuos que, por sua constituig&o psico-somática,
estdo fadados a ser mediocres ou mesmo viciados durante a vida
inteira ?" 451

2) "Que dizer do caso do Pe. Surin S.J. ?


Terá sido iim místico ou um possesso do demonio ?... Ou, do
mesmo tempo, urna e oidra coisa ?
Poder-se-ia dal concluir algo sobre a apregoada afinidade .
entre doenca e genialidade ?" 459

n. DOGMÁTICA

S) "Os católicos costumam dizer que fora da Igreja nao há,


salvagao. Ora esta proposicáo parece mesquinha e intransigente.
Nao existe tanta gente boa fora da Igreja ? Será que Deus con
denará tais pessoas ?" 469

IIL SAGRADA ESCRITURA

i) "Para quem aborda as Escrituras Sagradas, •urna das di-


ficuldades que em primeiro lugar se poem, é a de admitir a
divina inspiraqño dessas páginas.
Como pode a Biblia ser Palavra inspirada, por Deus, quando
aprésenla tantas deficiencias do ponto de vista científico e
literario ?
Que vem a ser inspiragSo bíblica ?" 478

IV. MORAL

5) "Em que consistem o método térmico e o método de Doyle,


utilizados para a limitacño da natalidade ?" 486

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

6) "Entre os casos escabrosos da historia, mencionam-s» os


de Sóror Mariana Aleoforado, freirá tida como autora de famosas,
cartas de amor, e Junqueira Freiré, monge poeta impío.
Que há de certo a propósito de tdo ambiguas figuras ?" 488

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano IV — N' 47 — Novembro de 1961

I. CIENCIA E RELIGIAO

AUGUSTO (Rio de Janeiro):

1) «A pessoa psíquicamente anormal poderá pretender


santificar-se ?
Nao há individuos que, por sua constitiiicáo psico-somá-
tica, estáo fadados a ser mediocres ou mesmo viciados durante
a vida inteira ?»

Em nossa resposta, deveremos examinar primeiramente


o que, neste setor de estudos, se entende por «pessoas anor-
mais»; a seguir, consideraremos as maneiras como, de fato,
se podem santificar.

1. Normáis e anormais

O conceito de «pessoa anormal» nao é sempre definido do mesmo


modo pelos autores. Por isso torna-se necossário, antes do mais, deli
mitar com clareza o que entenderemos por «anormal» no presente
artigo. É o que vamos íazer por etapas.

1) Numa primeira aproximagáo, conceitua-se o individuo


anormal como sendo o contrario do normal.
Que vem a ser entáo a pessoa normal ?
Pessoa normal é aquela na qual todas as fungóes físicas
e psíquicas se exercem de modo regular ou de maneira con-
sentánea com a natureza. O estado normal, portante, é o de
harmonía ou de equilibrio mais perfeito possíyel entre as fa-
culdades do corpo e da alma de urna pessoa; já se disse com
razáo que ésse estado consiste «na espiritualizacáo mais ele
vada do que é camal, e na encarnacáo mais profunda do que
é espiritual» dentro do homem (B. Haering, La Loi du Christ
ni 321).
Pode-se afirmar que o individuo normal é muito raro ou
simplesmente nao existe; cada qual tem sua inclinacáo pre
ponderante, um tanto desequilibrada. Como quer que seja,
toma-se o individuo normal como padráo para avaliar os tipos
humanos que na realidade ocorrem.

— 451 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 1

E quais seriam ésses tipos que na realidade ocorrem ?

2) Existe o individuo totalmente alheio ao uso da razáo,


o qual vive em ininterrupta demencia... Claro está que tal
pessoa fica abaixo do plano da moralidade, pois é irresponsá-
vel por seus atos e, por conseguinte, incapaz de mérito. Caso
tal pessoa nunca tenha tido o uso da razáo, ela se salva como
as criancinhas que morrem antes de chegar á idade do juízo;
dado, porém, que alguma vez tenha usufruído do seu racio
cinio, será julgada por Deus na base do último ato Üvre e res-
ponsável que tenha praticado.

Nao é em torno désse tipo de anormais que versa a questao pro


posta no cabecalno déste artigo. A questao só tem cabimento caso se
possa supor no sujeito anormal um mínimo de responsabilidade moral,
condicionado pelo conhecimento de Deus e da sua Lei, pelo discerni-
mento do bem e do mal, assim como pelo gozo de certa liberdade de
arbitrio...

3) Pois bem; os anormais que ainda possuem ésse míni


mo de prerrequisitos, se enquadram com muita probabüidade
dentro de urna das seguintes categorías (a enumeragáo abaixo
ainda poderia ser prolongada):

a) Pessoas psíquicamente retardas, cujas facilidades


nao se desenvolveram até o nivel medio comum. Esforgam-se
por fixar a atengáo, mas difícilmente o conseguem; só se dei-
xam atrair por objetos concretos e sensíveis; tem entendi-
mento muito exiguo, memoria falha; e isto,... seja por efeito
de urna tara congénita, seja em conseqüéncia de molestia ou
acídente. Essas pessoas sao, por vézes, ditas «imbecis». Em.
sua conduta de vida, mostram-se geralmente impulsivas ou
movidas por seus instintos, já que sao pouco capazes de refle-
tir e deliberar. Tal anormalidade admite muitos matizes. Nao
poucos désses individuos ainda podem receber certa formagáo
moral e religiosa; aplicando-se-lhes métodos adaptados á sua
compreensáo mental, obtém-se déles amor a Deus, prática
de virtudes e correspondencia á grasa dos sacramentos, mor-
mente da S. Eucaristía. Em conseqüéncia, sao capazes de san-
tificar-se; tendo recebido um talento, fá-lo-áo frutificar na
proporcáo do possível.

b) Pessoas ditas histéricas. Sendo esta designagáo susce-


tível de mais de urna interpretado, entendemo-la aqui em sen
tido ampio, compreendendo
os individuos sugestionáveis, aos quais se podem incutir,
por via de autoridade, conviccóes, emogSes e mesmó alucinaeóes;

— 452 —
INDIVIDUOS ANORMAIS E SANTIFICADO

os megalomaniacos ou mitomaníacos, propensos a tomar


atitudes e desempenhar papéis totalmente alheios aos que lhes
competem por natureza; vivem num mundo irreal, engañando a
si e tentando ludibriar a sociedade (note-se, porém, que ésse
tipo de simulacáo ou mentira é, em última análise, doentio, ins
tintivo, pouco ou nada tendo de consciente; na grande maioria
dos casos, portante, nao constituí mentira moral ou pecami
nosa) .

Esta segunda modalidade de histeria está, de resto, Intimamente


ligada com a primeira, pois a megalomanía é produto de sugestáo...
e, nao raras vézes, de auto-sugestáo.

Que dizer da capacidade de santificagáo dessas pessoas ?


Varias délas atravessam fases em que parecem possuir
o dominio de suas faculdades e a devida lucidez da mente :
dir-se-ia que entáo praticam a virtude, mostrando-se dedicadas,
humildes, piedosas, etc.; nos seus coloquios com o diretor es
piritual, dáo a impressao de usar de franqueza, protestando
horror a toda especie de mentira. Pode-se crér que em tais
ocasióes exercam realmente obras meritorias pelas quais se
váo santificando.

Contudo será sempre muito dificil definir o estado de alma dessas


pessoas; sofrem inconscientemente a fascinacáo do maravilhoso; sao,
muitas vézes sem o saber, vitimas da necessidade de chamar a atencáo
para si mesmas, apresentando-se ou como santas pu como presas do
demonio ou como seres de algum modo éxcecionais. O seu comporta-
mentó prorrompe nao raro em flagrantes contradicSes, pois em meio
a veementes crises de megalomanía acontece que imprevistamente
aflore a sua verdadeira personalidade. Quem as considera nessas
situares, é inclinado a julgá-las possessas do demonio (urna das
duas nersonalidades que nelas se manifestam. seria a do Maligno);
a hinótese, porém, seria errónea, pois se trata de mero fenómeno
patológico.

Na prática, nao será lícito desconhecer a aptidáo dessas


pessoas para santificar-se, de sorte que seus diretores e mestres
deveráo sempre empregar os meios oportunos para induzi-las
ao exercício das virtudes e levá-las pelo caminho da perfeigáo
crista. Tais almas assim poderáo realmente ir subindo para
Deus ñas fases em que possuirem lucidez de mente e dominio
sobre si mesmas.

c) Pessoas dadas ao delirio sistemático.


Que é propiciamente o delirio ?
Delirio é o pulular doentio de imagens fantásticas e juí-
zos absurdos na mente de determinado paciente. Por vézes,
estes fenómenos carecem de concatenagáo entre si. Outras

— 453 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qU. 1

vézes, sao, ao contrario, coordenados, versando sobre um tema.


único e preciso; tem-se entáo o delirio sistemático, que se apre-
senta sob tres modalidades :

delirio alucinatório: o doente, por exemplo, ouve vozes correspon


dentes a um ou varios personagens, que multas vézes ele «identifica»,
dando-lhes nomes;
delirio interpretativo: o doente nada ouve de irreal, mas interpreta
os acontecimentos reais de modo a construir um enredo de perse-
guicáo exacerbada da qual ele se julga,vítima;
delirio imaginativo: a pessoa imagina cenas irreais, ñas quais
ela é geralmente a principal figura ou o herói.

O individuo que delira, nao está consciente da sua ano


malía; permanece envolvido no seu mundo imaginario, sem
poder emergir; é um «alienado» no sentido próprio da palavra.
Acontece, porém, que dentro désse mundo imaginario o deli
rante pode conservar as nocóes do bem e do mal, distinguin-
do-as nítidamente entre sí, teniendo pecar e procurando amar
a Deus; guarda também a liberdade de agir e nao agir. Por
conseguinte, nao lhe é impossível praticar a religiáo, nem há
de ser considerado inepto a aproveitar dos meios de santífi-
cagáo que esta lhe proporciona. Mas, como se cpmpreende,
também no caso de delirio, a escala dos graus de lucidez
mental e de liberdade de arbitrio é variegada, podendo-se en
contrar delirantes alucinados que nao possuem clareza de juizo
ou dominio sobre si.

d) Pessoas cujo temperamento é afetado por tendencia


perversa.

Há, sim, doentes que sofrem de propensao espontánea a


certos atos perversos ou certo vicio, mas, fora de tal setor,
parecem possuir um psiquismo intato. Sem poder deliberar nem
escolher livremente, sao impelidos a praticar atos nocivos ao
próprio sujeito e ao próximo, ou, na melhor das hipóteses, atos
desarrazóados, ridículos, ociosos... Tal fenómeno pode ocorrer
sob diversas modalidades:
Alguns, movidos por impulso irresistível, procedem mal
como se fóssem meros autómatos; o seu instinto cegó e desen-
freado desencadeia determinados atos, após os quais nao con-
servam recordagáo do que fizeram. Assim certos epiléticos du
rante suas crises. Tais pessoas nao estáo impossibilitadas de
levar vida moral e religiosa; esta contudo fica sujeita a inter-
rupcóes, devendo-se fazer o descontó dos períodos de incons
ciencia e cega obsessáo, durante os quais se pode supor que
os doentes se tornam totalmente irresponsaveis.

— 454 —
INDIVIDUOS ANORMAIS E SANTIFICACAO

Outras pessoas, ao contrario, cedem aos instintos 'sem


perder a consciéncia do que estáo cometendo. É o que se dá
com os pervertidos ou, em certo grau, tarados de nascenga:
mentem, roubam, espancam... únicamente pelo prazer de co
meter o mal e ver os outros sofrer; também se entregam com
a máxima calma a atos impúdicos de toda especie. Tais indi
viduos sabem, sím, o que estáo fazendo, mas nao o reconhecem
como ato mau; depois de o cometer, nao experimentan! horror
nem arrependimento; carecem de senso moral ou estáo total
mente anestesiados para as categorias da moralidade. Em urna
palavra: constituem o tipo do «criminoso nato». Qualquer es-
forco para os elevar ao nivel da moral e os santificar resulta váo
(suposto que tais individuos pertengam plenamente á catego
ría de anormais que acabamos de analisar).
Eis ainda um terceiro tipo de pessoas a enunciar nesta
serie: há doentes cujas facuidades mentáis se comportam to
das normalmente, exceto apenas o livre arbitrio (em certas
fases e ao se tratar de determinados assuntos). Tenha-se em
vista, por exemplo, o caso de um adulto milito digno, sincera
mente religioso e piedoso, que urna ou outra vez se sinta
tomado por verdadeira paixáo sexual. O atrativo lhe parece
irresistível, de modo que se entrega ao pecado. Ao ceder, ele
conserva a lucidez de espirito; nesse momento, porém, acon
tece que

ou nao vé a índole viciosa do ato que está cometendo (a sua


consciéncia moral é encoberta, enquanto a consciéncia psicológica
permanece intata),
ou reconhece perfeitamente a imoralidade do seu ato e a ele
assiste como testemunha impotente, desolada, envergonhada... a
qual é logo acometida de veemente consternacao. — Algo de semelhante
pode-se dar quando alguém profere blasfemias, injurias, impreca-
¿oes, etc.

Em geral, os moralistas recomendam que nao se admita


com facilidade ser tal ou tal impulso irresistível, de modo a
atribuir a vitima urna atitude meramente passiva e de todo
inculpada; os casos em que isto se dá, sao relativamente raros.
Mais freqüentes sao os casos de responsabilidade atenuada ou
de consentimento semi-deliberado; em última análise, só Deus
sabe julgar o íntimo das pessoas que se encontram em tais
circunstancias.
Como quer que seja, nao se tirará a essas almas a espe-
ranga de se santificar. Ó que lhes compete fazer, é lutar para
que nao se repitam as quedas e, caso ainda se renovem, nao
se renovem por negligencia ou moleza da pessoa; procure esta
eximir-se de qualquer conivéncia com as desordens da sua

— 455 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 1

natureza, e estará sendo sincera para com Deus. Tal sinceri-


dade dará entrada franca á graga do Senhor, a qual é capaz
de fazer aquilo que a criatura nao consegue realizar por si.
A Providencia pode permitir que as almas retas sejam até o
fím da vida acometidas por veementes tentagoes e caiam mes-
mo em faltas; estas, associando-se a grande fervor e á prática
heroica de muitas virtudes, vém a ser a garantía providencial
da humildade dos justos (contanto que nao sejam faltas vo
luntarias nem remotamente provocadas); elas fazem ver aos
bons que todo mérito é graga ou dom do Céu.
Para ilustrar essa situacjio, pode-se citar o caso imaginario des
crito por Graham Greene no seu romance «O poder e a gloria»: ai
aparece um sacerdote de humildade heroica, invencível espirito de
fe, caridade pronta a todo sacrificio, mas... dado a bebida. É o
«wisky-priest» !
Os moralistas, ao comentar esta figura literaria, nao negam que
ela se possa encontrar na vida real, mas lembram que, aos olhos da
Moral, ela representa um «caso-limite» (se nao é um caso inteira-
mente patológico, no qual já nao há nem responsabilidade nem culpa
moral): com efeito, a fé, a renuncia caridosa e a humildade, no ele
vado grau que Greene atribui ao seu herói, costumam corroborar o
dominio do individuo sobre si mesmo, de tal modo que nao é comum,
numa alma, táo estridente contraste entre o notável progresso das
virtudes em geral e a deficiencia de urna virtude em particular (a
temperanga, no caso). O adiantamento no caminho das virtudes em
geral nao pode deixar de ir amortecendo paulatinamente as paixóes
dominantes da pessoa.

e) Por fim, ainda devem ser levados em consideragáo na


presente lista

os psicasténlcos: pessoas desconfiadas, inquietas, escrupulosas, mais


ou menos obcecadas ;
os hiperemotivos: pessoas que riem ou choram por motivos insigni
ficantes; transpirara e enrubescem por nada;
os impulsivos: pessoas instáveis, inconstantes, como, por exemplo, o
jovem que tenta sucessivamente varios tipos de vida
religiosa e sacerdotal;
os neurasténicos: pessoas que fácilmente sucumbem ao esgotomento,
estáo sempre cansadas e moralmente deprimidas;
os abúlicos: pessoas sempre indecisas, que precisam de ser impelidas
para agir.

Essas pessoas tém, nao raras vézes, urna inteligencia muito


viva, urna pronunciada delicadeza de afetos, assim como agudo
sentido do dever. Nao há dúvida, atravessam fases em que a
lucidez do raciocinio e a liberdade de arbitrio lhes escapam,
em parte ou por completo. Ao lado dessas fases, porém, conhe-
cem suas horas de controle sobre si mesmas, horas em que se
podem consagrar ao servigo de Deus e do próximo sacrifican-

— 456 —
INDIVIDUOS ANORMAIS E SANTIFICAgAO

do-se e praticando o bem; podem entáo merecer algo e santifi-


car-se (como também pecariam, caso nessas horas violassem
deliberadamente a Lei de Deus). Existem estudos criteriosos
de psicología e espiritualidade que permitem a um diretor mi
nistrar a essas almas urna orientagáo segura, a fim de que,
através mesmo das suas vicissitudes, elas mais e mais se váo
aproximando de Deus.
Por conseguinte, nem mesmo as pessoas neurasténicas
estáo impossibilitadas de chegar a santidade !

É claro que, na realidade concreta, os tipos de anomalias que enun


ciamos (e aínda outros mais, que nao foram aqui apresentados) podem
aparecer combinados entre si segundo proporcóes variegadas. Nao
interessa prolongar a enumeracáo ácima; faz-se, antes, mister frisar
a conclusao otimista a que nos levam as consideracSes propostas:

Nem mesmo as pessoas que sofrem suas crises nervosas


e conhecem seus amargos momentos de depressáo, fazendo a
experiencia concreta do que é a miseria humana, estáo de ante-
máo excluidas do ideal da santidade. Na verdade, Deus nao lhes
pede mais do que podem dar; entreguem entáo generosamente
ao Senhor aquilo de que sao capazes, aproveitando com zélo
os poucos ou muitos momentos de dominio sobre si mesmas que
venham a ter. A santidade admite feitios diversos; ela se amol
da a cada individuo, pois consiste apenas em um «sim» profe
rido com magnanimidade pela alma do justo, todas as vézes
que éste perceba a inspiragáo da graga em seu coragáo. Note-se
bem: quem inspira as obras boas, quem faz o programa con
creto de santificagáo, é a graga de Deus ou o próprio Deus.
Ora o Senhor nao inspira coisas impossíveis. Se a criatura .
julga que nao O pode seguir e se furta á tarefa de sua
santificagáo, isto se deve á falta de fé e amor da parte do
homem, nao á inexeqüibilidade do programa ou á falta de
recursos naturais e sobrenaturais.

É obvio, porém, que o programa de santificacáo da* pessoa dita


anormal hade ser um tanto diverso do programa das pessoas plena
mente sadias. Importa-nos, portante, deter agora a nossa atencáo
sobre a maneira como se podem santificar os anormais.

2. A santifica^ao dos anormais

1. Em primeiro lugar, convém observar que os meios co-


muns e primordiais de santificagáo (como os sacramentos e
a oragáo) se impóem tanto as pessoas normáis como as anor
mais; fora dos seus momentos de crise, portanto, estas se con-
fessaráo, comungaráo e faráo suas oragóes.

— 457 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 1

2. Acontece, porém, que certas pessoas doentes, as quais


nao podem praticar jejuns, vigilias, nem grandes obras de
apostolado, podem encontrar na sua doenga mesma (ou na
sua anormalidade) fecunda fonte de santificagáo..-.
Na verdade; as anomalías sao provagóes sabiamente en
globadas dentro do plano da Providencia Divina. Consideradas
em si mesmas, constituem um mal; sao um mal, porém, do qual,
segundo os designios divinos, pode e deve sair algum bem. Para
que isto na realidade se dé, o doente deverá emancipar-se de úm
modo de ver naturalista e considerar a sua situagáo a. luz de urna
fé profunda. Tomará entáo atitudes semelhantes as que váo aqui
apresentadas.
Piedosa máe de familia, acometida de depressao melancólica, é
internada em casa de saúde. Nesta os seus dias decorrem em lágrimas;
julga ser a causa da desgraga do marido e dos filhos; imagina que
os seus pecados passados é que atrairam a infelicidade sobre ela e
os seus familiares; em suma, ela se considera um monstro na socie-
dade... Que íará doravante tal pessoa ? Abandonar-se-á ao seu desá
nimo ? — Nao; no primeiro momento de alivio, prorrompa do fundo
do seu abismo em um clamor a Deus, ao Deus dos pequeninos e atri
bulados (cf. SI 129); diga-lhe que, apesar de tudo, ela muito O quer
amar e que Lhe oferece os seus sofrimentos em uniáo com os do
Cristo Jesús para a expiacáo dos seus pecados e dos pecados do mundo.
Se conseguir isto, aínda que reclusa em sua clínica, terá feito um ato
de grande heroísmo, um ato que certamente muito a fará progredir
no caminho da santificacáo.
Um alucinado julga ouvir vozes que continuamente o chamam,
ameacam e injuriam, deixando-o em pánico constante. Todos, porém,
(inclusive o sacerdote, seu diretor) lhe afirmam que se trata de mera
Impressáo subjetiva e que nao há motivo de susto. Em lugar de recal
citrar, tente entáo ésse doente, num momento de mais calma, sair de
seu «mundozinho» pessoal: faga um ato de humildade, admitindó que
possa estar engañado e que as outras pessoas estáo com a razao.
Oxalá chegue mesmo a dizer no seu íntimo: «Sejam o que fórem, essas
vozcs me cansam e esgotam. Que martirio !... Estou, porém, recor
dado de que o martirio é excelente meio de santificacáo!...»

Tomemos ainda o caso dos escrúpulos de consciéncia. Embo-


ra se devam geralmente a urna enfermidade psico-somática,
S. Inácio de Loiola afirma que «aproveitam nao pouco (non
parum prodest)» á santificagáo do individuo. E como ? — A
norma capital dada a todo escrupuloso é a de rejeitar o próprio
juízo e se entregar, sem titubeio, á guia de um diretor espiri
tual (cf- «P. R.» 41/1961, qu. 5). Ora, para o paciente, isto
significa verdadeira renuncia: deverá sair de si, tapar os ouvidos
aos seus pareceres pessoais e tentar caminhar intrépidamente na
fé. Fois bem; que o doente conceba tal propósito nos momentos
de maior controle sobre si, e o execute com sangue frió ñas horas
oportunas ! E, com prazer, verá um dia superadas todas as suas
inquietudes, as quais, passando, lhe deixaráo um fruto : o fruto.

— 458 —
O PADRE SURIN: MÍSTICO OU POSSESSO DO DEMONIO ?

de urna fé mais viva e apurada, de um amor menos voltado


para si (egoísmo), e mais ardente para Deus.

Tais exemplos já de algum modo dáo a ver como as ano


malías do corpo e da alma nao constituem entrave decisivo
para a perfeigáo espiritual dos respectivos pacientes, desde que
estes gozem de momentos de lucidez e auto-controle; Deus lhes
dá a graga proporcional e necessária para que utilizem zelosa-
mente ésses preciosos intervalos. E lembremo-nos de que a
santidade nao consiste necessáriamente em jejuns, vigilias, pre-
gagóes apostólicas, mas, sim, únicamente, em conformidade
total com a santissima vontade de Deus, a qual se sabe adap
tar a cada um e sabe adaptar cada um a si mesma. Ninguém,
por mais fraco que se sinta, é fadado a ficar na mediocridade.
As idéias expostas no presente artigo se completaráo no
que se segué.

2) «Que dizer do caso do Pe. Surin S. J. ?


Terá sido um místico ou um posscsso do demonio ?... Ou,
ao mesmo tempo, urna e outra coisa ?
Poder-se-ia daí concluir algo sobre a apregoada afinidade
entre doenca e genialidade ?»

O Pe. Joáo José Surin constituí urna figura, sem dúvida,


surpreendente na historia da espiritualidade crista e mesmo
nos anais da Medicina e da Psicología. Apresenta inegáveis
aspectos de profunda uniáo com Deus e de ricas gragas sobre-
naturais, ao lado de certas expressóes de alma que outrora
foram classificadas como indicios de possessáo diabólica e, atu-
almente, sao tidas como fenómenos decorrentes de um psiquis-
mo desequilibrado ou doentio.
Abaixo procuraremos reconstituir brevemente o currículo
de vida e delinear as principáis manifestapóes de alma do Pe.
Surin; a seguir, tentaremos proferir um juízo sobre o estranho
caso.

1. O Pe. Surin : sua vida e suas expressóes características

Joáo José Surin nasceu aos 9 de feverei.ro de 1600 em Bordéus


(Franca) como íilho de um conselheiro do Parlamento da cidade.
Foi aluno dos Padres jesuítas, e estéye sob a influencia das car
melitas de Bordéus, que cultivavam intensamente a espiritualidade de
Santa Teresa. . ,
Aos V¿ de julho de 1616, entrou no Noviciado da Companhia de
Jesús. Deu logo provas de inteligencia lúcida e penetrante, que o
distinguía nos cursos de Filosofía e Teología; teve, porém, de inter-
romper repetidas vézes os seus estudos em conseqüéncia de saúde
precaria.

— 459 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 2

Ordenado sacerdote aos 11 de abril de 1626, foi-se ressen-


tindo cada vez mais de debilidade de saúde. Desde o inicio do
seu ministerio sacerdotal, dedicou-se á diregáo das almas, lo
grando notável éxito — o que nao surpreende, pois o Pe.
Surin possuia profunda vida interior e ardente amor a oragáo
perfeita ou mística.
Em 1632, deu-se um acontecimento que havia de teí*
extraordinaria repercussáo na vida de Surin : no convento das
Religiosas Ursulinas de Loudun, a Superiora, Madre Joana dos
Anjos, e em geral as Irmas da comunidade comecaram a ma
nifestar síntomas muito estranhos (convulsóes, ranger de den-
tes, lamúrias...), que a opiniáo comum, sem hesitar, passou
a atribuir ao demonio, do qual todas as Religiosas coletivamente
estariam possessas.

Nao interessa aqui discutir a verdadeira natureza désses fenó


menos; os historiadores, mésmo católicos, admitem que se tratava
predominantemente de casos psicopáticos e neuróticos (delirio conta
gioso, histeria, sugestionismo, etc.); naquela época os conhecimentos
de psicología e fisiología aínda nao eram suficientes para dar expli
cado racional a tais manifestagóes extraordinarias; por conseguinte,
tanto os eclesiásticos como os médicos julgavam que a causa dos
estranhos males devia necessariamente ser urna fórc.a oculta, ou seja,
o poder diabólico.

Já havia dois anos que tal situagáo se prolongava em


Loudun e nao havia prognósticos de melhoras, apesar dos múl
tiplos exorcismos já aplicados á comunidade; esta chamava a
atencáo das mais altas personalidades da nagáo. Foi entáo que
os Superiores religiosos, a pedido do Cardeal Richelieu (nao,
porém, sem hesitacáo previa), resolveram mandar para lá o
Pe. Surin, sacerdote muito conceituado por seu zélo, no encar
go de exorcista. Mediante preces e ritos asslduamente aplica
dos em público as Religiosas e, de modo especial, á Madre Prio
ra, o Pe. Surin devia tentar fazer voltar a tranqüilidade ao
convento, daí expulsando o demonio. Como se compreende, o
encargo, embora parecesse acertado para solucionar o caso de
Loudun, era assaz perigoso para quem, como o Pe. Surin, já
sofria dos ñervos; a atmosfera do convento de Ursulinas era
de pessoas sugestionadas e sugestionantes; o apelo ao demonio
só servia, no caso, para excitar ainda mais os ánimos e a
tensáo nervosa de quantos estavam envolvidos nos fenómenos
lá registrados.
Aos 15 de dezembro de 1634, Surin chegou a Loudun, onde
permaneceu até novembro de 1637, excetuando-se o período
de outubro de 1636 a junho de 1637, que ele passou em Bordéus.
Já afetado de neurose, com.34 anos de idade, o piedoso jesuíta

— 460 —
O PADRE SURIN: MÍSTICO OU POSSESSO DO DEM6NIO ?

nao estava eni condigóes de resistir aos choques psicológicos


que as suas atividades lhe acarretariam.
Eis como um dos biógrafos descreve o estado de saúde do Pe.Surin
por ocasISo de sua chegada a Loudun :
«Já havia alguns anos, estava prostrado sob penosos sofrimentos
de corpo e de espirito, que o tornavam quase inábil para qualquer
especie de trabalho. Ressentia-se de tanta fraqueza de corpo que nao
se podía aplicar a tarefa alguma sem experimentar muitas dores;
tampouco conseguía íazer a mínima leitura, por causa de continuas
enxaquecas; seu espirito, alias, estava imerso em sofrimentos e acha
ques tais que ele nao podia prever qual o seu futuro... Essas angus
tias o afligiam de modo especial havia dois anos, de sorte que sua
alma estava táo anuviada, aflita e oprimida, e seu corpo táo atetado...
que ele julgava nao poder viver ainda muito tempo nesse estado>
(Manuscr. do Pe. Surin, citado por Legué, Jeanne des Anges, pág. 31;
veja H. Brémont, Histoire littéraire du sentiment religieux en France
V. París 1933, pág. 197).

O Pe. Surin compartilhou candidamente a arenga em pos-


sessáo diabólica que dominava as Religiosas de Loudun; em
conseqüéncia, empenhou-se desde o inicio generosamente pela
libertagáo da comunidade «possessa» e, em particular, da Ma
dre Joana dos Anjos, que lhe estava especialmente confiada
(por parecer ser a maior vítima de todas); em vista do bom
éxito de sua missáo, achava-se disposto aos piores sacrificios,
mesmo ao de tomar sobre si os males que afetavam a Madre
Joana dos Anjos e assim humilhar-se, passando por louco aos
olhos dos seus contemporáneos.

Eis o que escreveu o próprio Padre :


«Um dia, enquanto eu rezava, nao me pude impedir de me ofe-
recer a Divina Majestade para ser portador da molestia dessa Reli
giosa (Joana dos Anjos) e experimentar tudo que ela experimentava,
até mesmo vir a ser possesso do demonio, contanto que aprouvesse
á Divina Bondade dar-lhe a graca de entrar sólidamente na prática
da virtude; eu nada desejava com tanta veeméncia como a libertagáo
dessa alma cativa do demonio».
Em outra passagem acrescentava:
«Há muito tempo que me entregue! a Nosso Senhor... em con-
seqüéncia de urna meditacáo de nossas regras, ém que nosso Pal
S. Inácio quer estejamos dispostos a ser tidos como loucos, sem que
todavia demos ocasiao a isto mediante alguma falta.
Tendo concebido tal desejo no mais intimo do meu corac&o, passei
a considerar ésse estado como grande felicidade que me devia tornar
semelhante a Jesús Cristo diante de Herodes. A ocasiao para isso se
apresentou; entáo Nosso Senhor me concedeu a graca de tomar a
mim o desprézo e o opróbrio públicos com um certo prazer; eu nao
nutria desejo mais ardente do que o de libertar essa alma cativa do
demonio» (Le triomphe de l'amour divin, pág. 106.223).

Com efeito. Quatro meses após ter chegado a Loudun, na


semana santa de 1635, o Pe. Surin comegou a ser vítima de

— 461 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 2

ataques convulsivos e de fenómenos anormais, que pareciam


auténticos efeitos de possessáo diabólica. Assim descreve ele
as suas impressóes :

«Jamáis se vira que os demonios se apossassem de um ministro


da Igreja durante os exorcismos. Já, parém, que eu os atormentava
de maneira nova... e nao me rendía a algum dos seus rogos, Leviatá'
recebeu de Deus a permissáo de se apossar de mim públicamente».
O demonio (segundo se dizia) deixava o corpo de Madre Joana
dos Anjos para entrar no do Pe. Surin :
«O que causava admiragáo a todos, é que o demonio deixava
repentinamente o corpo da Madre, para entrar no meu; entao a Madre
entrava no gozo de grande tranqüilidade e eu... (ao contrario). Um
día... quando era assim atormentado, urna das pessoas presentes ía-
lava á Madre, que estava muito calma. O exorcista entáo mandou
ao demonio que me abandonasse; logo o semblante da Madre se
alterou... Vendo-me aliviado, levantei-me para ir ao encalco do raeu
inimigo, que infestava a Madre; tendo conseguido expulsá-ío por al
gum tempo, permanecemos ambos em paz».

Em conseqüéncia de tais fenómenos, o teor de vida do P.e.


Surin, a partir de 1635, tomou-se de todo anormal, associando
em si aspectos aparentemente contraditórios. Entre outros tor
mentos, Surin, desde 1636 ou 1637, durante dez ou onze anos
foi continuamente assaltado pela tentagáo de suicidio. Ele mes-
mo assim descreve os seus estados de alma:

«Nao posso exprimir o que se dá dentro de mim. Nem sei dizer


como ésse espirito (o demonio) se une a mim, sem me tirar a liber-
dade ou o conhecimento de minha alma. O maligno se torna como que
um outro Eu dentro de mim, de modo que existo como se tivesse
duas almas, das quais urna... íica ao largo, considerando a outra,
que tomou posse do seu corpo; esta age no corpo como se fóra a
proprietária. Sinto que o espirito de Deus e o espirito do demonio
íazem do meu corpo e da minha alma o seu campo de batalha e que
cada um ai deixa suas impressSes. Da parte do demonio, experimento
movimentos de raiva e de aversáo a Deus, que me levam a desejar
impetuosamente separar-me d'Éle para sempre. Ao mesmo tempo,
porém, experimento grande suavidade, paz profunda, alegría celeste.
De um lado, parece-me que soíro a condenaeáo e que estou íerido pelas
pontas de eterno desespero; ao mesmo tempo, porém. sinto-me cheio
de confianca na bondade de Jesús Cristo...» (Le triomphe..., pág.
337-9).

O restante dos anos de Surin é abaixo caracterizado pelo


Pe. Cavallera no seu prefacio á edicáo dos «Fondements de la
vie spirituelle» (1930, pág. 9s) :

«Exteriormente o Pe. Surin perdeu como que todo o controle


sobre si mesmo; viu-se reduzido a nao poder agir livremente e a se
entregar, sem conseguir resistir, a urna serie de atos insensatos e
extravagantes. Contudo, o homem interior conservava admirável
acume e lucidez de consciéncia. Em conseqüéncia, pode ele na sua auto
biografía, redigida em 1663, descrever, com surpreendente abundancia

— 462 —
O PADRE SURIN: MÍSTICO OU POSSESSO DO DEMONIO ?

de pormenores,- as provacSes extraordinarias, as gracas de escol e


também — é preciso reconhecé-lo — as üusOes espirituais das quais
a sua alma foi o teatro durante aqueles dolorosos anos. Experimentou
assomos de desespero que o levaram em 1645 a urna tentativa de suici
dio, a qual o deixou manco para o resto da vida. Teve a persuasáo
de que era o objeto de implacável cólera divina e de que nenhuma
esperanca lhe íicava de escapar á condenacáo. Todavía, por vézes
também experimentou gracas de uniao que num instante o Ievavam
a esquecer tddas as suas miserias, proporcionando-lhe um antegózo
do céu (é preciso ler nos.origináis essas narrativas extraordinarias,
ás quais poucas se poderiam comparar em toda a literatura mística).
Por íim, após melhoras lentas e continuas, a saúde lhe voltou em
condic5es satisfatórias, principalmente a partir de 1656; com a saúde,
retomou a vida normal, ficando apenas de tempos em tempos alguns
atos anómalos a lembrar o seu passado. Durante os nove anos em
que sobreviveu (1656-1665), o Pe. Surin se dedicou com o mesmo entu
siasmo que outrora (embora nao com as mesmas foreas) ao servico de
Deus e do apostolado místico».

Os Superiores religiosos nao retdravam de Loudun o Pe.


Surin, porque éste alegava qu<? era o demonio quem sugería
tal medida; sim, o Maligno o quería ver longe do convento das
Ursulinas, porque Surin ali o atormentava deveras. Daí a con
veniencia de se insistir na permanencia do infeliz exorcista em
seu posto... Contudo em 1637, tendo-se tornado evidente que
o estado de saúde do Pe. Surin só se agravaría, caso aínda
ficasse em Loudun, houveram por bem transferi-lo. Para o
futuro, durante quase vinte anos, teve que ser vigiado como
crianga, devendo as janelas de seu quarto estar munidas de
grades. Os próprios Padres da Companhia de Jesús e, em geral,
os seus contemporáneos o tinham na conta de possesso; apenas
hesitavam a respeito da causa da possessáo: teriam sido os
pecados do Pe. Surin que o haveriam tornado vítima do demo
nio ? Ou tratar-se-ia de mera provacáo a que Deus quería sub-
meter o seu fiel servo ? Quem nao chegava a admitir possessáo
diabólica no caso de Surin, julgava ao menos que estava louco;
conjeturavam que Deus assim quisesse humilhar um servo que
Ele outrora agraciara e que se ensoberbecerá pelas gragas do
Senhor.

Urna vez passada a pior fase da crise, o Pe. Surin langava um


olhar retrospectivo sobre a mesma, concebido nestes termos :
«Um sacerdote de grande autoridade (o célebre e virtuoso Pe.
Jacquinot) aceitou ouvir toda a minha confissáo. Quebrei-me a cabe-
ca examinando e bisbilhotando a minha consciéncia; eu nao era capaz
de grande esfórco naquela época, por causa da fraqueza de meu
cerebro. O mais doloroso é que eu só tinha confiarla naqueles que
interpretavam as coisas da pior maneira. Realmente essas situacSes
sao terriveis, pois a alma, assim eníraquecida, íala como se dissesse
as coisas mais serias do mundo e o confessor... nao pode distinguir
o principio que a leva a agir assim...

— 463 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 2

Só havia um Padre que conhecesse adequadamente o meu estado


durante todo o tempo da minha tribulagáo (o Pe. Basíidio): zom-
bando do que diziam os outros, ele íazia todo o possível para me
fortalecer. Eu, porém, julgava que ele estivesse engañado, fugia
déle... e déle desconfiava como de um ilusor...
Um homem ponderado e muito provecto sustentava que se exer-
cia sobre mim um secreto julgamento de Deus, o qual me quisera
rebaixar, porque eu tentara subir dem&is. Outros acrescentavam
que... tendo eu desejado tomar as asas da contemplacáo, Deus
permitirá que eu lósse humilhado nesse cáminho espiritual, em que
tanta gente se perde. O único sacerdote que reconhecia meu verda-
deiro estado, nao merecía crédito da minha parte, de modo que meus
males ficavam sem remedio humano, a fim de que tudo dependesse
da misericordia divina» (Le triomphe... 257-259).

Finalmente aos 22 de abril de 1665 o Pe. Surin faleceu


em Bordéus.
Antes de passar a urna apreciapáo objetiva do caso, impor
ta-nos aqui por em evidencia mais alguns textos em que o
ardente amor do Pe. Surin a Deus e sua profunda tempera
mística bem se podem apreciar.

Assim escrevia ele num de seus dias mais acabrunhados:


«Todos os nossos interésses estáo perdidos; nada mais há qué
fazer. Contudo o interésse de Deus subsiste; é preciso trabalhar pela
causa de Deus. Meus pecados mereceram-me a condenacáo ao inferno,
onde já nao há amor... Todavía isto em nada diminuí o servico que
devo prestar ao meu grande Senhor» (Boudon-Bouix, pág. 119s, citado
por Brémont, Histoire... V 258s).
«Basta que Deus seja Deus para que seja digno dos nossos servi-
c.os» (Bouix, prefacio do «Traite inédit»; cf. Brémont, ob. cit. 258s).
Referindo-se aos escritos intitulados «Dialogues Spirituels», Su
rin observa o seguinte :
«Ditei o priméiro volume... meu espirito se dilatava cada vez
mais. Fui ditando ulteriormente. Um dia eu sentía em mim ardente
desejo de comunicar os meus pensamentos; sofría, porém, porque o
secretario estava tardando a chegar. Tomei entáo a pena com impe-
tuosidade e, embora já houvesse dezoito anos que eu nada escrevia,
redigi duas ou tres páginas, com tais caracteres que nao me pareciam
formados por máo humana, de táo confusos que eram. Por essa época,
um de meus amigos levou-me consigo para a sua casa de campo;
tomei entáo urna pena que se achava sobre a mesa na qual haviamos
almoeado e, continuando a obra, escrevi sem interrupcáo até a ceia.
Assim foram terminados os quatro volumes de «Diálogos Espirituais»,
que se tornaráo o que Deus quiser» (Le triomphe... 284.287).

2. Como julgar os fatos

O caso do Pe. Surin íoi tido até época recente como fenómeno
de possessáo diabólica. Hoje em dia, com o progresso dos estudos de.
Psicología, percebe-se que a explicagáo por recurso ao demonio é
supérflua pois se trata de síntomas ocorrentes em situacSes de dese
quilibrio nervoso ou de alienacáo mental. Por conseguinte, os estu
diosos modernos, mesmo católicos, já nao falam de possessáo no caso
de Surin, embora os observadores do séc. XVII e o próprio Pe. Surin

— 464 —
O PADRE SURIN: MÍSTICO OU POSSESSO DO DEMONIO ?

íizessem uso désta explicagáo (enganaram-se porque, como dissemos,


a ciencia humana ainda nao estava habilitada a esclarecer a estranhe-
za dos acontecimentos; o engaño nao envolve o magisterio infalível
da Igreja, que nao se manifestou sobre o assunto).

Quais seriam entáo os fenómenos psíquicos anómalos re


gistrados na historia do Pe. Surin ?

Seriam aproximadamente -os que apontamos ao abordar


a escrita automática (psicografia) em «P. R.» 43/1961, qu. 1.

1) Em primeiro lugar, verifica-se elevado grau de suges-


tionabilidade, a qual leva fácilmente a estados de delirio, alie-
nagáo ou histeria ( cf. a resposta n» 1 do presente fascículo).
Com efeito. No caso de Loudun a opiniáo pública, de
acordó com o modo de pensar da época, admitía, sem discutir,
que se tratava de possessáo diabólica coletiva; em conseqüén-
cia, travava contra o Maligno o mais aparatoso combate, le
vando para as igrejas da cidade as Ursulinas tidas como pos-
sessas a fim de serem exorcizadas em público. É o Pe. Surin.
quem atesta :

«Todas as igrejas de Loudun estavam ocupadas pelos exorcistas,


e a afluencia do povo era prodigiosa, para ver o que acontecía : nao
houve um só exorcista que nao fósse tomado em possessáo pelo de
monio; eu mesmo íiquei possesso em primeiro lugar».

Como se vé, a sugestáo era contagiosa. Naturalmente ela


afetou o Pe. Surin, que foi para Loudun com os ñervos já aba
lados e a saúde notoriamente debilitada. Nisso nada há de
misterioso.

2) O segundo fenómeno psicológico a registrar no caso


é o de desdobramentó ou redupucagáo da personalidade.
Horrorizado pelas sugestóes que pretensamente o Malig
no lhe incutia (sugestóes a pecados de luxúria e ao suicidio), o
Pe. Surin nao as podia assimilar a si; atribuia-lhes entáo um
sujeito próprio, um «Eu» diferente do seu próprio «Eu», ins
talado no seu íntimo, como se fósse urna segunda alma ou
urna segunda personalidade de Surin. Ésse novo «Eu» seria o
«Eu» diabólico, do qual o Padre se julgava possesso.

Também é Surin quem declara :


«Quando quero íazer, por movimento de uma dessas duas almas,
um sinal da cruz sobre a minha boca, a outra me desvia a máo com
grande rapidez e me agarra o dedo com os dentes a iim de me morder
de raiva».

Alias, como sabemos, a reduplicacáo da personalidade nao


é característica exclusiva dos pretensos possessos diabólicos, mas

— 465 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1951, qu. 2

se verifica também ñas manifestagóes de psicografia ou escrita


automática, na «descida de um espirito evocado» sobre o respec
tivo médium e em fenómenos congéneres.

Os casos de dupla personalidade tém sido mais e mais estudados


pelos psicólogos e médicos, que já os conseguem explicar satisfató-
riamente; em última análise, nao sao mais do que conflitos entre o
consciente e o subconsciente de determinado individuo. A persona
lidade dita «primeira» (Primus) é a personalidade social, que o indivi
duo forjou conscientemente por seu regime de educagáo e instrucáo; a
personalidade dita «segunda» (Secundus) é a que sobrevém,derivando-se
da atividade subconsciente do mesmo sujeito, atividade que costuma ser
muito mais rica e complexa do que a consciente; dado um choque
nervoso qualquer, essa atividade reúne alguns dados contidos na
subconsciencia e sugeridos pelas circunstancias do momento; proje-
ta-os entáo na consciéncia do individuo, vindo a manifestar-se como
um segundo «eu» frente ao primeiro. Em geral, verifica-se que entre
os dois «eu» há tendencias antagónicas (o segundo é muitas vézes
megalomaníaco, perverso, sexual,...) — o que dá a impressao de
que a pessoa está realmente dividida, dilacerada ou possuida por
outrem.

3) Ao contrario do que se dava e dá em muitos outoos


casos de obcecagáo nervosa, a idéia fixa de que sofría o Pe.
Surin nao lhe tirava a lucidez da mente para tratar de assuntos
de espiritualidade. Sendo assim, aínda que se julgasse possesso
e condenado, o Padre nao deixava de exprimir seus ardentes
anelos de uniáo com Deus : concatenava idéias e doutrinas refe
rentes á vida de oragáo e a experiencia mística de Deus; estava
mesmo em condigóes de expor tais idéias, elucidando as al
mas a respeito. Para tanto, bastava-lhe conservar o amor reto
e puro ao Senhor, que ele desde cedo na sua vida havia come-
gado a cultivar.

Os escritos de Surin sao numerosos, versando todos éles sobre


ascética e mística. Junto com os do Pe. Lallemant S. J., pertencem
ao genuino patrimonio da espiritualidade crista do séc. XVII; notável
íoi a sua influencia sotare posteriores escritores, como os PP. de Caussa-
de, Grou, de Cloriviéres (séc. XVIII); Bossuet e Fénelon, no séc. XVII,
muito os estimaram. Ainda hoje as obras de Surin sao lidas e sabo
readas com grande proveí to para as almas.

O caso désse famoso jesuíta é altamente significativo para


mostrar que os achaques de saúde, mesmo quando acometem
o psíquico (o que nao é raro em nossos días, cuja doenca carac
terística dizem ser a neurose), nao fecham ao cristáo o caminho
da progressiva uniáo com Deus. Surin, sofrendo de deficiencias
nervosas em grau extremo, sujeito a depressSes e angustias
cruciantes, se elevou pelas veredas da experiencia mística de
Deus. O segrédo de seu éxito consistía simplesmente em ser
dócil á vontade do Senhor, aceitando humildemente as dispo-

— 466 —
O PADRE SURIN: MÍSTICO OU POSSESSO DO DEM6NIO ?

sigóes da Providencia a seu réspeito; sempre que gozou de luci


dez de mente é dominio sobre si, procurou unir-se a Deus,
esquecendo-se ou perdendo-se a si mesmo mima total entrega
ao Pai Celeste. Éste nao pede o que a criatura nao está habili
tada a dar; Ele julga a cada um exclusivamente na base das
suas respectivas aptidóes. Por conseguinte, nenhum cristáo ce
derá á sugestáo de que está condenado á mediocridade ou ao
inferno; nem mesmo as debilidades físicas e psíquicas lhe faráo
perder a esperanga de crescente uniáo com Deus. O que se lhe
pode e deve recomendar, é que nunca desanime (já o desánimo
é vitória parcial de Satanás), mas, ao contrario, empregue os
esforcos necessários para bem utilizar os seus períodos de luci
dez mental; entregue-se entáo generosamente ao servico do
Senhor segundo as suas possibilidades. Vivendo assim, tal cris
táo permanecerá sob o influxo continuo da graga de Deus, que
nao deixará de o santificar.

3. Doenga e genialidade

Em complemento de quanto até aqui foi dito, os psi


cólogos observariam — e com razáo — que genialidade e
doenga sao valores intimamente associados entre si na vida dos
homens. Em outros termos: freqüentes sao os casos de grandes
heróis ou genios da humanidade que tiveram suas manifesta-
góes de desequilibrio ou anormalidade psíquica.
Entre outros, podem-se citar os casos seguintes :
O poeta francés Vítor Hugo (t 1885) pertencia a urna fami
lia profundamente marcada por anomalías nervosas : seu irmáo
Eugenio e sua filha Adélia foram alienados mentáis. O próprio
Vítor, principalmente depois dos seus cinqüenta anos, cedeu
a obsessóes, alucinagóes; nao obstante, gozou de excepcional
poder criador em literatura; as imagens jorravam na sua mente
com facilidade extraordinaria e eram expressas num estilo
poético aínda hoje admirável.
Algo de semelhante se deu na familia do filósofo alemáo
Ludwig Feuerbach (t 1872). Essa familia produziu tres gera-
góes de homens particularmente prendados : Anselm, famoso
perito em criminologia, seus cinco filhos (dos quais Ludwig
foi filósofo) e seu neto Anselm, pintor. Contudo as taras here
ditarias dessa linhagem sao notorias.
Podem-se citar outrossim as palavras do artista francés
Proust (t 1932), que aos 24 anos de idade assim escrevia :

«Quando eu era crianga, ncnhuma personagem da historia sagra


da me parecía ter sofrido sorte táo miserável quanto Noé, por causa

— 467 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 2

do diluvio, que o manteve detido na arca durante quarenta dias. Mais


tarde, estive muitas vézcs doente, e por longos dias a fio também tive
que permanecer na arca. Compreendi entáo que nunca pode Noé ver
melhor o mundo do que quando estava na arca, embora esta se
achasse fechada e houvesse noite sobre a térra» (citado por P:-H.
Simón, em «Les désordres de l'homme». Paris 1961, 195).

Com estas palavras, Proust exaltava o yalor da doenga


para agugar a intuigáo que o homem tem habitualmente sobre
o mundo e a vida. Tal valor se compreende bem : pondo em
xeque a vida do paciente, a doenga é apta a excitar a emotivi-
dade e a imaginagáo do enfermo que tenha temperamento mais
vibrátil: ela lhe proporciona urna experiencia inédita, um «arre-
pio» estranho; comunica-lhe, como se diz, «um novo índice de
refrac,áo», ou seja, urna visáo original do mundo, desvendan-
do-lhe aspectos despercebidos em condigóes normáis. Em con-
seqüéncia, o doente particularmente emotivo tenderá a expri
mir essa experiencia inédita em atitudes de conduta ou em
pegas de arte que sao ditas geniais; a sua genialidade assim
se terá desencadeado e manifestado por ocasiáo da doenga. Esta
vem a ser o elemento que catalisa o genio. Para o escritor
contemporáneo Tomaz Mann, o genio se manifesta em conse-
qüéncia de equilibrio precario entre vitalidade e enfermidade.
O mesmo Tomaz Mann concluí numa linguagem talvez
ousada, mas nao destituida de veracidade :

«Há conquistas da alma... que sao impossiveis sem a doenga,


sem a loucura...: os grandes enfermos sao pessoas crucificadas, sao
vítimas imoladas k humanidade e ao desenvolvimento desta... em
poucas palavras:... imoladas á melhora de saúde do género humano.
Dai a auréola religiosa que cerca táo evidentemente a vida désses
homens doentes... Dai também decorre nessas vítimas a consciéncia
de levarem urna vida monstruosamente exaltada em meio a todos
os sofrimentos» (citado por P.-H. Simón 201).

Apraz ainda lembrar as palavras de Séneca (f 66 d. C),


que, por sua vez, se referia a Aristóteles :

«Nullum magnum ingenium sine mixtura dementiae. — Nao há


grande genio sem mistura de demencia» (De tranquillitate animae).

Note-se que nesta frase a loucura é tida como urna das


componentes do genio, nao, porém, como equivalente ao mesmo.
Os depoimentos ácima bem parecem corresponder á rea-
lidade. A sua mensagem valiosa e altamente construtiva mere
ce toda a atengáo do leitor.

— 468 —
«FORA DA IGREJA NAO HÁ SALVACAO»

n. DOGMÁTICA

LUCIO (Rio de Janeiro) :


3) «Os católicos costumam dizer que fora da Igreja nao
há salvagao. Ora esta proposicáo parece mesquinha e intran
sigente. Nao existe tanta gente boa fora da Igreja ? Será que
Deus condenará tais pessoas ?»

O clássico axioma «Fora da Igreja háo há salvagáo» é


geralmente mal entendido, dando lugar a problemas que nao
existiriam caso houvesse melhor compreensáo da fórmula. Em
nossa resposta, examinaremos primeiramente algo do histórico
désse adagio; isto facilitará o discernimento do sentido autén
tico que se lhe deve dar.

A sorte postuma dos que vivem.fora da Igreja já foi sob outro


aspecto abordada em «P. R.» 1/1958 qu. 7.

1. Origem e histórico da fórmula

1. Segundo alguns autores, a fórmula «Fora da Igreja nao


há salvagáo» tem as suas premissas em certas afirmagóes da
Sagrada Escritura.
Quais seriam, pois, essas afirmagóes?
Citam-se, entre outras, as seguintes:

Em Me 16,16s, diz Jesús a seus Apostólos: «Ide pelo mundo in-


telro, e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e fór batizado,
será salvo; quem nao crer, será condenado».
Outrossim em Mt 10, 14s: «Se alguém nao vos acolher nem ouvir
as vossas palavxas, sai dessa casa ou cidade, sacudindo o pó de
vossos pés. Digo-vos em verdade: haverá no dia do juízo menos
rigor para a regiáo de Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade».

Á primeira vista, tais palavras podem despertar a idéia de que


realmente só há salvagáo para quem aceite a mensagem do Evangelho.
Contudo já se tem observado, e com razáo, que os dizeres do
Senhor só visam aqueles que recusam positivamente a pregagáo e a
Igreja; nao consideram o caso dos homens aos quais nao é dada noticia
do Evangelho; estes nao fazem parte da Igreja, mas também nunca
tiveram a possibilidade de a conhecer.
A propósito, há quem lembre a solene declaracáo de Sao Pedro :
«(Jesús) é a pedra rejeitada por vos, os construtores, a qual se
tornou pedra angular. Em nenhum outro se encontra a salvacáo, pois,
debaixo do céu, nenhum outro nome fói dado aos homens pelo qual
devamos ser salvos» (At 4, lis).

Estes dizeres parecem completar-se no seguinte trecho de S. Paulo:


Jesús Cristo é «a Cabeca Suprema da Igreja. A Igreja é o Corpo
de Cristo, a plenitude daquele que enche tudo em todos» (Ef l,22s).
Conseqüentemente, dizem, «comunháo com Cristo» implica «comu-
nháo com a Igreja», de modo que fora da Igreja nao há salvacáo.

— 469 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961. qu. 3

A conclusáo parece bem consentánea com o pensamento dos


Apostólos. Em que sentido preciso, porém, deverá ser entendida?
É o que vamos examinar, percorrendo os principáis teste-
munhos da Tradigao crista.

2. Nestes transparece desde cedo a tese de que aqueles que


recusam a autoridade doutrinária e disciplinar da Igreja se
excluem da salvagáo eterna.
Assim já Sto. Inácio de Antioquia (t 107) ensinava:

«Todos aqueles que pertencem a Deus e a Jesús Cristo, estáo


com o bispo. E todos aqueles que, arrependidos, voltam a. unidade da
Igreja, pertencem também a Deus... Nao vos engañéis, irmáos:
quem quer que introduza cisma (ruptura na Igreja), nao herdará o
reino de Deus» (Aos Filadelfos 3, 2s).

No século seguinte, por volta de 249-251, é Orígenes, fa


moso escritor cristáo de Alexandria, quem observa :
«Se alguém quer ser salvo, entre nessa casa (a Igreja)... Que
ninguém se iluda...: íora dessa casa, isto é, fora da Igreja, ninguém
é salvo; se alguém sair, tornar-se-á responsável da sua própria morte»
(In Iosue h. 3,5).

Contemporáneamente, em 251, observava S. Cipriano, bis


po de Cartago:

«Quem abandona a Igreja para aderir a urna (seita) adúltera, se


aparta das promessas íeitas á Igreja. Nao obterá as recompensas de
Cristo, aquéle que deixa a Igreja de Cristo... Nao pode ter Deus por
Pai aquéle que nao tenha a Igreja por Máe. Caso alguém tenha con
seguido salvar-se fora da arca de Noé. também íora da Igreja conse
guirá alguém salvar-se» (De catholicae Ecclesiae unitate 6)

Ficou célebre na literatura crista a imagem da arca de


Noé, fora da qual ninguém escapou á morte do diluvio: a Igreja
de Cristo seria a verdadeira arca da salvagáo...
Os escritores cristáos desenvolviam ainda mais claramente
o seu pensamento, quando afirmavam que pertencer a Cristo
e á Igreja significa outrossim, e necessáriamente, pertencer á
jurisdisáo de Pedro: o sinal concreto e imediato da adesáo a
Cristo seria a adesáo a Pedro e a seu sucessor visível. Eis como
S. Ambrosio (f 397) em Miláo se exprimía:
«Foi a Pedro que Cristo disse: 'Tu és Pedro, e sobre essa pedra
edificarei a minha Igreja'. Onde, pois, esta Pedro, ai estó a Igreja;
e, onde está a Igreja. já nao há mórte, mas a vida eterna. É por isto
que o Senhor acrescenta : 'As portas do inferno nao prevalecerao
contra ela, e eu te darei as chaves do reino dos céus's> (In Ps 40, 40).

Por volta de 374/379, Sao Jerónimo, escrevendo ao Papa


Sao Dámaso, fazia eco ao Doutor de Miláo :

— 470 —
«FORA DA IGREJA NAO HA SALVAQAO

«Quantd a mim, nao seguindo outro Chefe senáo o Cristo, uno-me


a Vossa Beatitude, isto é, á cátedra de Pedro. Foi sobre essa pedra,
bem o sei, que a Igreja ioi fundada. Todo aquéle que come o Cordeiro
íora dessá casa, é profano. Quem nao estiver na arca de Noé, pere
cerá quando vier o diluvio» (epist. 15,2).

3. Ésses textos, enfáticos como sao, nao podem deixar de


despertar no leitor a questáo : Como os respectivos autores en-
tendiam a adesáo á Igreja que éles assim recomendavam ?
Nao há duvida, na maioria dos casos tinham em mente a
adesáo explícita, ou seja, a adesáo mediante a recepcáo dos
sacramentos e a profissáo do credo cristáo. Nao se poderia,
porém, deixar de referir que na antigüidade mesma urna con-
cepgáo mais larga se fazia ouvir por meio de um ou outro autor.

O próprio Sao Cipriano, ^,or exemplo, embora afirmasse nao haver


salvacáo fora da Igreja, admitía a validade do mero desejo de Batismo
ou da simples conversáo do coracáo, no caso de nao se poder receber
o sacramento; tai se teria dado com o bom ladrao, que, tocado pela
graga na hora da morte, se arrependeu de seus pecados e ouviu de
Cristo a palavra de salvacáo. S. Agostinho (t 430) reaíirmou a mes
ma proposicao (cí. De baptismo contra Donatistas 1. IV, c. XXII 29).

Contudo um dos testemunhos mais explícitos em favor do


«Batismo de desejo» ou do desejo de Batismo é o de S. Ambro
sio : em 392 o Imperador Valentiniano II morrera assassi-
nado, sem ter tído o tempo de receber o sacramento do Batismo,
a que ele ardentemente aspirava; foi entáo que em sua oracáo
fúnebre o bispo de Miláo assim se manifestou :

«Quanto a mim, perdi aquéle que eu ia gerar para o Evangelho.


Ele, porém, nao perdeu a graca que pediu... Estou consciente da
vossa afligáo por nao ter ele recebido os misterios do Batismo. Mas
dizei-me: que temos nos em nosso poder se nao apenas a vontade
e o desejo ? Ora em tempos passados ele manifestou o desejo de ser
iniciado (no Cristianismo) antes de entrar na Italia, e declarou seu
designio de receber logo das minhas maos o Batismo... Deixou ele
entáo de receber a graca que ele desejou e pediu ? Nao pode haver
dúvida de que, se a pediu, ele a receben» (De obitu Valentiniani
consolatio 29. 51).

Éste depoimento de S. Ambrosio é de importancia notável,


pois muito serve ao estudioso moderno para conceber o reto
sentido do adagio «Fora da Igreja nao há salvacáo».

4. Passando agora á Idade Media, notamos que os teste


munhos que se possam colhér sobre o assunto nessa época,
ineuleam geralmente a necessidade da adesáo visível á Igreja
de Cristo. — A esta altura, alias, convém lembrar urna nota
bem característica da mentalidade medieval que contribuirá
para explicar tal posicáo teológica : os medievais nao se preo-

— 471 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 3

cupavam muito com os povos que habitassem fora dos confins


do mundo cristáo. Isto está longe de significar que nao tinham
caridade; apenas quer dizer que nao possuiam o senso da his
toria e da geografía em grau muito apurado. Em outros termos :
nao eram «curiosos» de focalizar e estudar o que se dava entre
os homens fora dos confins do Cristianismo.

Alguns estudiosos modernos lembram que, por vézes na Idade


Media o habitante de térras longinquas pagas era dito popularmente
«o Etíope» (Aethiops), figura em torno da qual havia mais rumores
e boatos fantásticos do que conhecimentos seguros. Raros eram os
relatos de viagem que missionários provenientes do Oriente entre
gavam ao público europeu (dentre tais documentos destacava-se a
narrativa de Asselino e Joáo Plancarpino, que em 1245 contavam o que
haviam visto na Pérsia e no Turquestáo; contudo sómente os mais
informados dos europeus tinham conhecimento de tal relatório).
Inegávelmente, essa falta de intercambio assíduo entre europeus
e náo-europeus de regioes distantes possibilitava, entre os ocidentais,
a formacáo de conceitos lendários concernentes aos asiáticos e afri
canos, dificultando qualquer reflexáo seria sobre a dignidade e a
eterna salvacao de tais individuos.

O que os autores medievais conheciam bem, era urna socie-


dade crista que tendía a ser a «Civitas Dei» (a Cidade de Deus),
na qual o «nao pertencer» á Igreja visível se dava geralmente
por motivo de heresia, apostasia ou delito contra a fé ou a
moral, supondo culpa grave na consciencia do individuo; á vista
disto, compreende-se, os medievais eram fácilmente levados a
crer que quem se separasse da Igreja se colocava forá da arca
de Noé e se entregava á ruina espiritual.

Para ilustrar estas afirmacSes, citamos aqui dois textos, nos


quais ocorre o axioma «Fora da Igreja nao há salvacao»... Ocorre
justamente visando herejes medievais (principalmente valdenses e
cataros); ésses herejes eram geralmente cristáos batizados que, em
determinada "época de sua vida, haviam apostatado da íé, cedendo ao
orgulho e &s paixóes; em vista de tais casos é que a advertencia
severa se formulava.
Assim para os valdenses que desejassem voltar á Igreja. foi
composta a seguinte profissao de fé, submetida a Durando de Osea,
chefe da seita, e aos seus correligionarios, aos 18 de dezembro de 1208:
«Cremos de coracáo, e confessamos com os labios, urna so Igreja,
r.üo a dos herejes, mas a que é santa romana, católica e apostólica, fora
da qual cremos que nincruém é salvo (extra quam neminem salvar!
credimns)» (Denzinger, Enchiridion 423).
O IV Concilio do Latráo em 1215. tendo em vista outrossim os
herejes da época, declarava: «A Igreja universal dos fiéis é única,
fora da qual absolutamente ninguém se salva (extra quam nuilus
omnino salvatur); nela Jesús Cristo mesmo é simultáneamente sacer
dote e vítima...» (Denzinger, ob. cit. 430).

Estas observacóes já elucidam de algum'modo a menta-

— 472 —
«FORA DA IGREJA NAO HÁ SALVACAO»

lidade dos medievais referente á salvagáo dentro e fora da


Igreja.

5. Veio o séc. XVI com as suas grandes descobertas geo


gráficas ... Estas puseram os cristáos em contato com grande
número de povos até entáo desconhecidos; a existencia de tan
tas e tantas geragóes de homens que até aquela época aínda
nao tinham sido evangelizados, levou paulatinamente os pen
sadores cristáos a focalizar atentamente a questáo de sua sal-
vagáo eterna: poder-se-ia aplicar, sem mais, a ésses povos o
criterio antigo e, em conseqüéncia, asseverar que, pelo fato de
nao haverem pertencido visivelmente á Igreja, estavam para
sempre rejeitados por Deus ? A essa conclusáo parecía opor-
-se, entre outros argumentos, a índole honesta e reta de muitos
pagaos; ademáis, alguns mestres cristáos eram propensos a
julgar que o sacrificio do Filho de Deus na cruz ficaria váo, se
táo grande multidáo de almas, apesar de táo rica Redengáo, se
fósse perder eternamente.
As surprésas decorrentes déste novo panorama, manifes
tado na Asia, na África e na América, eram acrescidas pela
nova situagáo religiosa da Europa mesmo, que até o séc. XVI
fóra homogéneamente crista. Eis que, desde a cisáo introducida
pelo Protestantismo (1517), os católicos viam a seu lado familias
e populagóes inteiras que nao pertenciam á Igreja e que, desde
muito talvez, só conheciam a Reforma e suas seitas. Mais ainda :
nos séc. XVIII e XIX, a face religiosa da Europa foi ulterior
mente modificada pelo indiferentismo do pensamento, a igno
rancia religiosa e a conseqüente descristianizagáo que invadiram
as massas humanas. — Poder-se-ia julgar sumariamente que
estavam de má fé tantos e tantos homens ? Cada um daqueles
que viviam fora da Igreja (protestantes ou simplesmente ho
mens ignorantes, mal formados em questóes religiosas) estaría
realmente lutando contra os ditames da sua consciéncia, obsti-
nando-se culpadamente contra a luz de Deus e as inspiragóes
da graga ? Nao haveria muita gente que com sinceridade pode-
ria estar julgando que nao devia aderir á Santa Igreja ?
Essas interrogagSes foram calando na mente dos pensadores ca
tólicos. Assim incitados, os teólogos aproíundaram o sentido da fór
mula «Fara da Igreja nao há salvacáo», de modo que hoje em dia a
doutrina católica sobre o assunto se apresenta mais matizada do que
antigamente; ela compreende varios itens, correspondentes a índole
complexa do problema, itens que váo abaixo discriminados.

2. O sentido genuino da fórmula

1. O axioma «Fora da Igreja nao há salvagáo» há de ser


entendido á luz das distingóes seguintes :

— 473 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 3

1) Há um modo visível de pertencer á Igreja e nela obter


a salvacáo : é o que. se dá pela profissáo do símbolo de fé e
a participacáo dos sacramentos, principalmente do Batismo e
da Eucaristía. Tal é o modo normal de pertencer á Igreja: esta,
sendo urna sociedade visível, é natural que os seus membros
se denunciem por certas notas visíveis e características. Con-
seqüentemente entende-se que é pela adesáo explícita e pública
á Igreja de Cristo que os homens se devem, em condigóes ordi
narias, encaminhar para a salvacio eterna.

2) Contudo pode também alguém pertencer á Igreja de


modo invisível, ou seja, pelo desejo de ser membro da Igreja.

Tal desejo, por sua vez, pode ser :

a) desejo explícito. Supóe-se, no caso, que alguém tenha


conhecimento direto de Cristo, da Igreja (que o prolonga no
tempo) e da porta de entrada na Igreja (que é o Batismo)...;
dado que tal pessoa se disponha a receber o Batismo, mas, por
motivo independente de sua vontade, nao chegue a ser balizada,
diz-se que é membro da Igreja por ter o desejo explícito de
Batismo ou o Batismo de desejo. Já S. Ambrosio professava
esta doutrina na oragáo fúnebre de Valentiniano (citada atrás).

De resto, o conceito mesmo de Justiga Divina exige, seja válido


para a salvagáo o desejo do Batismo, desde que nao se torne possivel
receber o próprio sacramento: o Senhor nao pode condenar urna alma
que Lhe esteja unida pela íé e pelo amor, mas á qual nao é dado
cumprir tudo que ela em sua fidelidade desejaria cumprir.

Contudo nao sómente o desejo explícito é capaz de agregar


alguém a Santa Igreja... Hoje em dia os teólogos reconhecem
igual eficacia ao que chamam

b) desejo meramente implícito.


Como entender isto ?
Admita-se que alguém ignore por completo Cristo e a
Igreja ou que só os conheca de maneira inadequada, de modo
a nao poder sequer conceber a idéia de que a Igreja seja por
tadora da verdade. Em conseqüéncia, vive de inteira boa fé,
aderindo a um credo religioso náo-católico, cujas prescrigóes
procura seguir á risca. Essa pessoa é sinceramente movida por
um único desejo : o de se aproximar mais e mais de Deus. Se
tivesse evidencia de que o caminho para Deus é outro que nao
o seu, abragaria ¡mediatamente essa nova vereda. Diz-se entáo
que tal individuo adere á Igreja de Cristo sem o saber, pois
que a Igreja representa realmente o objeto de suas aspiragóes;

— 474 —
«FORA DA IGREJA NAO HA SALVACAO»

se ele simplesmente a conhecesse ou se a conhecesse mais


auténticamente, prestar-lhe-ia sua adesáo explícita.

Ora urna situacáo dessas pode ser até mesmo a de um adversario


da Igreja: com efeito, pode acontecer que um homem muito reto
sinta que sua consciéncia se revolta contra a doutrina do primado de
Sao Pedro, por exemplo; umá serie de equívocos e preconceitos faz-lhe
ver apenas um aspecto dessa doutrina, dando-lhe a crer que se trata
de desvirtuamento do Evangelho. Pois bem; se tal pessoa é sincera e
humilde, ressentindb-se apenas de falta de conhecimentos claros sobre
o assunto (sem que tenha culpa da sua ignorancia), tal pessoa é
membro invisível da Igreja visível de Cristo; está assim a caminho da
salvagáo eterna, e essa salvacáo lhe será dada por intermedio da
Igreja (da Igreja hierárquica, chefiada por Pedro, que ela rejeita), pois
a Igreja, prolongando Cristo na térra, é o canal único pelo qual Deus
comunica aos homens toda e qualquer graga de salvacáo.

Destarte se vé que muitas e muitas almas que estejam de


inteira boa fé fora da Igreja visível, pertencem invislvelmente
á Igreja sem o saber e sem que a própria Igreja o saiba. A boa
fé, no caso, nao desculpa própriamente a pessoa de estar fora
da Igreja, mas, antes, faz que tal pessoa nao esteja fora da
Igreja: pertence, sim, invisivelmente á Igreja.
Por conseguinte, o sentido do adagio «Fora da Igreja nao
há salvagáo» vem a ser: a salvagáo só é concedida dentro da
Igreja ou por intermedio da Igreja.

Merece atengáo o fato de que o Papa Clemente XI, em 1713, conde-


nou a proposigáo de Quesnel, famoso jansenista : «Fora da Igreja
nao é concedida graca alguma. — Extra Ecclesiam nulla conceditur
pratia» (Denzinger, Enchiridion 1379).
A intengáo do Pontífice, ao proferir a condenagáo, era a de incul
car a seguinte proposito : fora da Igreja nao se pode dizer que nao
há graca sobrenatural; tenha-se por certo, porém, que toda graga ai
existente é derivada da Igreja e volteda ou tendente para a Igreja.

2. A doutrina ácima exposta é nao raro apresentada sob


a forma da.distincáo seguinte : os que professam a verdadeira
fé e segundo ela vivem, pertencem ao corno da Igreja. Quanto
aos que professam um credo erróneo com sinceridade absoluta
ou com toda a boa fé, pertencem á alma da Igreja.
Tal distingáo, porém, nao é oportuna, porque na verdade
nao há corpo vivo sem alma; própriamente quem pertence ao
corpo, pertence á alma da Igreja. Melhor é falar de «modo
visível» e «modo invisível» de pertencer á Igreja.

3. Ao passo que o desejo explícito do Batismo desde os


primeiros séculos foi tido como suficiente para salvar quem nao
possa receber o próprio sacramento, a eficacia do desejo implí
cito (nos termos que acabamos de expor) só em época relati
vamente recente foi reconhecida pelos teólogos.

— 475 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961. qu. 3

Pode-se dizer que foi o Papa Pió IX quem em 1854 deu auto-.
ridade a ésse novo ponto de vista. Assim se exprimía Sua
Santidade:

«É preciso considerar como verdade de íé que, lora da Igreja


apostólica romana, ninguém pode ser salvo : que esta é a arca única
da salvagüo e que os que nela nao tiverem entrado, perecerao pelo
diluvio.
E é preciso igualmente ter por certo que os que estáo na igno
rancia da verdadeira religiáo, disto nao tém culpa aos olhos do
Senhor, caso essa ignorancia seja invenclvel. Quem, porém, seria táp
presuncoso que ousasse indicar os limites de tal ignorancia, dados
os caracteres e as diversidades dos povos, das regióes, dos espiritos
e de inumeráveis outros íatóres ? Nao há dúvida, quando, libertados
dos vinculos do corpo, virmos a Deus tal como é, compreenderemos
quáo estreito e maravilhoso é o liame que une a Misericordia e a Jus-
tica divinas. Mas, enquanto vivemos na térra, acabrunhados por este
peso mortal que abate a alma, professemos firmemente que só há
um Deus, urna fé. um Batismo (Ef 4,5); indagar além disto, já nao
é licito. De outro lado, na medida em que a caridade o requer, formu
lemos preces assíduas para que todas as nac.3es, de quaiquer das
partes do mundo, se convertam a Cristo; e trabalhemos com todas
as nossas fórcas para a salvacáo comum de todos os homens. Com
efeito, o braco do Senhor nao se tornou exiguo (Is 50,2), e jamáis os
dons da graga celeste faltaráo aos que desejam e pedem, com um
coragáo reto, ser reconfortados por Sua luz» (Denzinger 1647s).

É de notar que nessa alocugáo o Sumo Pontífice frisa bem a difi-


culdade de se estabelecerem os limites da boa fé e da culpabilidade nos
individuos; nao há para isso um criterio universal, aplicável aos ho
mens de todos os tempos e todas as regióes, mas o julgamento exato
das consciéncias é obra de Deus só. De resto, já os teólogos anterio
res a Pió IX faziam a mesma advertencia: Suarez (t 1617) e os
autores de Salamanca (séc. XVIII), por exemplo, julgavam que, mesmo
num pais onde a fé católica é professada sem oposigao, pode haver
herejes ou infléis que estejam fora de toda influencia do Catolicismo
e.por conseguinte, nao concebam dúvida sobre a veracidade da sua seita.

É de crer que, ñas seitas heréticas é cismáticas, a massa do povo,


pouco instruida, segué de boa fé seus pastores religiosos e nao se
propóe o problema da «verdadeira religiáo». Entre os estudiosos é mais
fácil surgirem dúvidas sobre a autenticidade de sua seita, dúvidas que
naturalmente tiram a boa fé; todavía Newmann podia afirmar que
vivera muitos anos como erudito teólogo anglicano. sem jamáis ter
concebido a mínima hesitagáo sobre a veracidade de sua religiáo. Diz-se
que a quase totalidade dos herejes e cismáticos que nao se ocupam
com a Igreja Católica, está de boa fé.

Perspectivas muito consoladoras sao essas... Nem se po-


deria conceber que a verdade fósse outra. Com efeito, se Cristo
veio ao mundo para salvar e nao para condenar (cf. Jo 3,17),
a existencia da Igreja visível de Cristo nao poderia ser motivo
de condenacáo para a maioria do género humano, que talvez
nao lhe pertenga visivelmente, mas certamente Ihe pfertence
invisivelmente.

— 476 —
«FORA DA IGREJA NAO HÁ SALVACAO»

4. A historia contemporánea, de resto, contribuiu para


ilustrar e corroborar as vistas largas da teología no tocante
á salvagáo fora da Igreja visível.
Com efeito. Em abril de 1949, o Pe- Reitor de «Bostón Col-
lege» (U. S. A.) despediu tres professóres leigos do seu edu-
candário por ensinarem obstinadamente que, para ser salvos,
todos os homens tém que se tornar membros professos da
Igreja Católica. O Pe. Leonardo Feeney S. J., que entáo dirigía
a Casa dos Estudantes Católicos junto á Universidade Harvard,
de Cambridge (U. S. A.), resolveu tomar publicamente a defesa
dos tres citados professóres, reafirmando a - sentenga teoló
gica estreita dos mesmos. Freqüentemente admoestado a rever
tal ponto de vista erróneo, Feeney nao se rendeu, pelo que foi
finalmente excomungado aos 13 de fevereiro de 1953. Inte-
ressa-nos frisar aqui o fato de que o S. Oficio de Roma se
aproveitou do ensejo para dirigir urna carta ao Cardeal Cushing,
arcebispo de Bostón, expondo o auténtico pensamento da Igreja
sobre o assunto (o documento datado de 8 de agosto de 1949
só foi tornado público em 1952, poucos meses antes da exco-
munháo de Feeney). Eis um dos trechos mais salientes de
tal carta:

«Entre os mandamentos de Cristo nao é de pouca importancia


aquéle que preceitua, nos incorporemos pelo Batismo ao Corpo Místico
de Cristo, que é a Igreja, e prestemos nossa adesáo a Cristo e ao seu
Vigário, (Vigário) pelo qual o próprio Cristo na térra governa, de
modo visivel, a Igreja.
■ Por conseguinte, nao se salvará quem, consciente de que a Igreja
íoi divinamente instituida por Cristo, nao obstante se recuse a se
Ihe submeter e denegué obediencia ao Romano Pontífice, Vigário de
Cristo na térra...
Todavía, para que alguém possa obter a salvacáo eterna, nao se
requer sempre que seja atualmente incorporado á Igreja como membro,
mas é necessário, ao menos, que Ihe esteja unido por desejo e voto.
Éste desejo, porém, nao deve ser sempre explícito, como ele o é
nos catecúmenos. Dado que o ho.nem esteja envolvido em ignorancia
invenclvel, Deus aceita igualmente o desejo implícito, o qual é assim
chamado por estar incluido naquelas boas disposicoes de alma que
levam alguém a querer conformar sua vontade com a eontade de Deus.
Estas verdades sao claramente ensinadas na Carta Dogmática «A
respeito do Corpo Místico de Jesús Cristo», publicada pelo Sumo
Pontífice o Papa Pió XII aos 29 de junho de 1943...
No fim dessa Encíclica, o Sumo Pontífice, movido de profundo
afeto, convida á unidadc os que nao pertencem ao Corpo da Igreja
Católica; menciona entao «os que por certo e inconsciente desejo e
almejo estáo voltados para o Corpo Místico do Redentor»; estes
tais, Sua Santidade de modo nenhum os exclui da salvacáo eterna;
afirma, porém, que se acham em condicSes « ñas quais nao podem
estar certos de sua salvacáo eterna... visto que permanecem priva
dos dos muitos dons e auxilios celestiais dos quais sómente na Igreja
Católica se pode usufruir».

— 477 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 4

Com estas sabias palavras, tanto reprova aqueles que excluem


da salvagáo eterna os que, por dosejo implícito apenas, estáo unidos
á Igreja, como rejeita os que falsamente asseveram que os homens
podem ser salvos tüo bem numa religiáo como em qualquer outra...»
(Carta publicada em «The American Ecclesiastical Review» 127 [1952]
307-315).

Como se vé, o axioma «Fora da Igreja nao há salvagáo»,


devidamente entendido, está longe de significar estreiteza e
mesquinhez. Ele nao é mais exigente do que a Verdade é
exigente !

m. SAGRADA ESCRITURA

INTERESSADO (Goiánia) :
4) «Para qucm aborda as Escritoras Sagradas, urna das
dificuldades que em primeiro lugar se poem, é a de admitir a
divina inspiracao dessas páginas-
Como pode a Biblia ser Palavra inspirada por Deus, quan-
do apresenta tantas deficiencias do ponto de vista científico
e literario ?
Que vcm a ser inspiracao bíblica ?»

Para responder devidamente a tais questóes, procuraremos,


antes do mais, delimitar a nogáo de inspiracao bíblica, dizendo
o que ela nao é. A seguir, consideraremos positivamente
o conceito de inspiragáo. Por fim, examinaremos algumas im
portantes conseqüéncias da inspiragáo bíblica.

1. O que a inspiracao bíblica nao é

Faz-se mister estabelecer clara distingáo entre inspiracáo


bíblica e dois conceitos afins:

a) Revelacáo. Na Revelacáo religiosa, Deus comunica ao


homem verdades que éste nunca poderia ter aprendido, ou de
fato nunca aprendeu, na escola de seu tempo. Sob o efeito da
revelagáo divina, um arauto sagrado, por exemplo, prediz o
futuro, desvenda misterios, sem que se possa assinalar urna fonte
humana para o seu saber. Tal foi, sem dúvida, o caso do profeta
Isaías (7,14), quando predisse o parto virginal de María mais
de sete sáculos antes que ocorresse; falava entáo estritamente
por efeito de revelagáo divina.

Ora a inspiracao bíblica nao implica necessáriamente .revelagáo


de verdades desconhecidas ao autor sagrado. Éste, sob o dom da
inspiragáo divina, conserva simplesmente o cabedal (rico ou pobre)

— 478 —
EM QUE CONSISTE A INSPIRACAO BÍBLICA?

de nocóes científicas, históricas ou religiosas, que ele tenha ad


quirido na escola de sua gente; o Senhor Deus nada acrescenta a
essas nocdes. — Eis o que por ora nos interessa relevar.

Digamos aínda que inspiracáo bíblica tambám nao é

b) Assisténcia meramente extrínseca. Pela assisténcia me


ramente extrínseca, o Espirito Santo apenas preserva de erro
o trabalho humano de um pregador ou escritor sagrado, de
modo tal que o raciocinio e a formulagáo das idéias exprimam
certamente a verdade.

Ora a inspiracáo bíblica, se, de um lado, é menos do que reve-


lacáo sobrenatural, de outro lado 6 mais do que assisténcia meramen
te extrínseca. Positivamente entao, que vem a ser?

2. O que é a inspiracáo bíblica

1. Diziamos que, pela inspiracáo bíblica, o Senhor nada


revela ao autor sagrado. Deixa-o, portanto, desenvolver toda
a atividade necessária para adquirir a verdade e formulá-la
com clareza (e essa atividade foi assaz ardua para certos auto
res sagrados, como atestam os prólogos do Evangelho de S.
Lucas {1,1-4} e do 2* livro dos Macabeus [2,26-31], assim como
a conclusao do Eclesiastes [12,10-12]).
Pois bem. Em se tratando da redagáo de um livro, a ativi
dade do autor abrange tres etapas :

1) tareía da inteligencia, que procura angariar conhecimentos,


investigar e estudar a materia a ser explanada no livro;
2) tarefa da vontade, que deve decidir (e decidir com firmeza e
perseveranca) redigir tal e tal livro, correspondente as verdades ad
quiridas pelo estudo previo;
3) tareía das potencias executivas do escritor, que deve conse
guir o material (papiro, estilete, etc.) e manejá-lo (ou mandar ma-
nejá-lo por um secretario) dé tal modo que se origine o livro como
expressáo fiel da verdade.

Ora, no caso da inspiragáo bíblica, o Senhor Deus, de um


lado, nao dispensa ésse trabalho humano nem, de outro lado,
lhe assiste apenas de maneira extrínseca, mas (por assim dizer)
penetrado e percorre-o juntamente com o escritor sagrado. O
que quer dizer:

1) ilumina, de maneira especial, a inteligencia do hagió-


grafo (= autor sagrado) a fim de que éste, dentro do patri
monio cultural (religioso e profano) que possui, possa estabe-
lecer urna selegáo entre as nogSes que condizem com a mensa-
gem de Deus e as que nao condizem. Iluminado pelo Espirito
Santo, o hagiógrafo vé, com a certeza do próprio Deus, serem
tais e tais proposigóes (adquiridas na escola de seu tempo)

— 479 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 4

aptas a exprimir os designios de Deus, ao passo que tais e tais


outras nao o seriam. Assim a inspiragáo bíblica, sem revelar
coisa alguma, garante, nao obstante, a autenticidade da men-
sagem.

2) Além de iluminar a inteligencia, o Espirito Santo forta


lece a vontade do escritor humano, a fim de que éste, sem
vacilagáo nem infidelidade, queira escrever a verdade, e sómen-
te a verdade. — Enfim, pelo dom da inspiragáo bíblica
3) O Senhor faz que a execugáo da obra nao dé lugar a
fenganos e falhas que perverteriam a mensagem sagrada.

Em conseqüéncia, o livro assim oriundo pode e deve ser


dito, todo ele, obra do homem e simultáneamente obra de Deus;
é mensagem ou palavra divina envolvida dentro dos moldes
da palavra humana, numa antecipagáo e numa prolongafiáo
estupendas do misterio da Encarnagáo, que ocupa o centro da
historia do mundo.

Voltándo ao sxemplo do parto virginal de Maria, lembraraos que,


além do profeta Isaías, também o Evangelista Sao Lucas (2,6s) nos
relere o fato; contudo Sao Lucas o narrou depois de ocorrido... já
nao por efeito da revelaba© divina (revelacáo de que gozou o pro
feta Isaías para o poder consignar mais de sete sáculos antes do
acontecimento), mas Cínicamente sob o efeito da inspiracao bíblica
(pois S. Lucas foi informado do acontecimento por auténticos teste-
munhos humanos; o Senhor Deus, pelo dom da inspiracjio, apenas
tornou evidente a S. Lucas que ésses depoimentos eram fiéis á rea-
lidade histórica, podendo por conseguinte ser utilizados para a re-
dacáo de urna página bíblica).

2. Observe-se agora que a finalidade da inspiragáo bíblica


é «comunicar mensagem religiosa, nao doutrinas profanas (de
astronomía, geología, biología, etc.)». Contudo, já que a men
sagem religiosa se dirige a homens que vivem no,tempo e no
espago, a Escritura Sagrada tem que aludir aos objetos do
tempo e do espago (objetos dos quais tratam as ciencias pro
fanas) ; alude a isso, porém, de maneira pré-científica, popular,
servindo-se dos modos de falar aceitos entre os homens de de
terminada regiáo e época. Tais modos de falar («o sol nasce,
a baleia é um peixe, o morcego é urna ave..-.») nao resistem
sempre a um exame rigoroso da ciencia; contudo nao iludem
o lei^or, o qual sabe muito bem que a intengáo do escritor nao
era ensinar ciencias profanas, mas apenas chamar a atengáo
para tais objetos e mostrar o sentido religioso dos mesmos, a
luz de Deus e da eternidade.

Por conseguinte, distinga-se na Biblia Sagrada entre


a) objeto primario, diretamente visado pelo dom da ins-

— 480 —
EM QUE CONSISTE A INSPIRACAO BÍBLICA?

piragáo : é a doutrina religiosa. Esta é exposta com veracidade


absoluta e em termos perenes ;
b) objeto secundario, indiretamente apenas visado pela
inspiragáo bíblica : sao as nogóes de ciencia profana. Estas vém
mencionadas segundo o modo de falar comum (nao científico,
mas também nao engañador), modo de falar suficiente para
levar a mente do leito a apreensáo de verdades superiores.

Assim tenha-se em vista, por exemplo, a narrativa da criagao do


mundo em Gen 1,1-2,4... O autor sagrado nao intencionava dizer em
quantas etapas (días ou eras) ela se deu nem em que ordem de suces-
sáo apareceram os minerais, os vegetáis e os animáis sobre a lace da
térra. Essas noc,5es todas sao de pouca importancia para a sálvagáo
eterna do homem; a pesquisa das mesmas íicou, por isto, entregue
ao trabalho da inteligencia humana' no decarer dos tempos... Mas o
que o autor sagrado quería dizer é o que o mundo e o homem (assim
e assim discriminados pelo vocabulario pré-cientifico de um judeu
do séc. XIII a.C.) valem á luz de Deus e da eternidade. Donde se
vé que nao seria licito querer deduzir da narrativa bíblica teses de
cosmología ou biología (tais como «.o mundo foi feito em seis eras,
o genero humano tem cinco ou sete mil anos de existencia, há evolu-
Cáo ou nao há evolucáo dos seres vivos...»); mas apenas se de-
preenderáo verdades de índole religiosa cujo valor paira ácima de
qualquer cultura ou vocabulario; tais verdades sao:
o mundo nao é eterno, mas comegou no tempo;
há um Criador, Deus bom, de todas as coisas;
as criaturas nao sao más por si (nem mesmo as materiais), mas
sao obra boa de um Deus Bom;
nao há, portanto, dualismo cósmico ou dois seres supremos (o
Principio Bom, da Luz, e o Principio Mau, das Trevas) que disputem
entre si a historia do mundo;
o mal entrou no mundo, porque o homem abusou da liberdade
que Deus lhe deu, desíazendo a harmonía inicial da criacáo.
Tais verdades (e estas so) constituem a mensagem da Biblia no
tocante á origem do mundo; é sobre elas que recai diretamente o
dom da inspiracáo bíblica; as proposicSes de ordem profana liga
das com tais verdades tém na Escritura significado relativo, isto
é, destinam-se a ser veiculo (ou vestiario inteligivel á luz da men-
talidade do povo de Israel antigo) que nao deve deter a atengáo do
leitor e, sim, levá-lo ao entendimento da mensagem religiosa. Cf.
«P.R.» 26/1960, qu. 4.
Na Biblia, portanto, os meios ou veiculos de éxpressao podem
ter sua «moda», podem ter perdido seu uso na linguagem moderna,
nao, porém, as proposicSes religiosas assim expressas, as quais sao
eternas.

3. O conceito de inspiracao bíblica é bem ilustrado pela


analogía do homem que, com um pedago de giz, escreve sobre
o quadro-nejjro. O efeito produzido na pedra se deve atribuir
tanto ao escritor como ao seu instrumento; um sem o outro
nao o produziria. E nesse efeito encontram-se inevitavelmente

— 481 — .
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961. qu. 4 '

os vestigios de um e outro agente : ao homem se devem atribuir


os pensamentos expressos, ao passo que ao giz se deve reduzir
a forma visivel dos mesmos na pedra (cor, grossura, certa
graciosidade, etc.); um só pensamento pode mesmo tomar con-
figuragóes bem diversas conforme os diversos tipos de giz usa
dos. Análogamente se reiacionam Deus e o hagiógrafo na com-
posigáo dos livros sagrados : as idéias ensinadas pela obra pro-
vém primariamente de Deus, Autor principal da Biblia; todavía
a forma literaria, a veste, que serve para exprimir tais idéias,
é condicionada pelo hagiógrafo; o que quer dizer: fica subordi
nada á educagáo e as categorías culturáis de um escritor huma
no; mais precisamente :... de um judeu que viveu no Oriente
há dois ou tres milenios atrás, ignorando muita coisa das
ciencias e das artes que hoje em dia se conhecem, possuindo,
nao obstante, sua cultura própria e nao desprezivel. E note-se
que cada hagiógrafo, como individuo, deu os seus pressupostos
pessoais, o seu cabedal, rico ou pobre, de cultura humana, para
exprimir a verdade divina na Biblia.
Assim o profeta Isaías deu o seu ánimo nobre e culto de corte-
sáo dos reis de Judá em Jerusalém; o profeta Jeremías deu a sua
tempera aíetiva e sofredora; o profeta Amos, sua índole de pastor
de ovelhas, rústico amigo das cenas da natureza; o Apostólo Sao
Joáo, a sua mente contemplativa; Sao Paulo, o seu caráter de mes-
tre e polemista ardoroso, etc.
«Em vista da redacáo dos livros sagrados, Deus se servia de
todos os elementos que Lhe eram úteis; em particular, serviu-se das
aptidoes pessoais dos escritores. Nao escolheu um emotivo para
escrever os textos jurídicos do Pentateuco, nem um espirito meti
culoso para compor o Cántico dos Cánticos. Todas as condicóes
sociais, todas as culturas, todos os temperamentos puderam assim
ser aproveitados» (Robert-Feuillet, Introduction k la Bible I. 1929,
25).

Destas consideragóes depreende-se que, na interpretagáo


da Sagrada Escritura, é preciso discernir bem veste, forma lite
raria, e o seu conteúdo, a fim de nao se confundir a verdade
infalível, divina, com a sua forma contingente de expressáo.
É mister, pois recorrer as leis de literatura dos antigos povos,
a fim de se perceber com exatidáo como falavam e apurar o
que o hagiógrafo, em nome de Deus, quería dizer na Biblia.
Tenha-se por principio firme que sómente quando entendidas
no sentido intencionado pelo autor sagrado (nao, pois, como
nos, modernos, as poderíamos entender numa leitura superfi
cial) é que as afirmagóes da Sagrada Escritura sao isentas de
erro.
Eis a advertencia de Pió XII:
«Com todo o esmero, recorrendo aos resultados das mais re
centes pesquisas científicas, procure o exegeta averiguar o caráter

— 482 —
EM QUE CONSISTE A INSPIRACAO BÍBLICA?

pessoal e as circunstancias de vida do escritor sagrado; examine a


época em que vivéu, quais as íontes oráis ou escritas que tenha uti
lizado, quais os modos de expressao de que se tenha servido. Assim
podera o exegeta reconhecer adequadamente quera foi o hagiógrafo
e o que intencionou exprimir mediante os seus escritos» (Ene. «Di
vino afilante Spiritu» n» 19).

Voltemo-nos agora para a consideragáo de algumas impor


tantes

3. Conseqiiéncias da inspiracao bíblica

De quanto foi até aqui dito, decorrem quatro corolarios


importantes:

1) Na Sagrada Escritura, existem géneros literarios


diversos.
Que se entende por esta expressao?

«Género literario» é o conjunto de regras de estilo e vocabula


rio a que os homens de determinada época ou regiáo costumam obe
decer quando querem escrever s&bre certo assunto. Assim há o gé
nero literario do jurista (estilo muito conciso, evitando íiguras e
termos ambiguos), o do historiador (estilo por vézes prolixo, minu
cioso, destituido de artiíicios; vocabulario, por vézes, popular, adap
tado ao modo de falar dos personagens da historia), o do poeta
(extremo oposto ao do jurista: liberdade de expressóes, íiguras li
terarias, irases inacabadas, intuicoes subjetivas...), etc. — É obvio
que cada um dos géneros literarios deve ser interpretado de modo
consentáneo com as suas leis e propriedades: caso o leitor se des
cuide disto e queira ler um texto de poesia como lé urna página de
leis arrisca-se a nao perceber a mensagem que o texto quer exprimir.

A propósito dos géneros literarios bíblicos, cf. «P.R.» 29/1960,


qu. 5.

Quem pela primeira vez propós a existencia de géneros


literarios dentro da Sagrada Escritura, foram os críticos racio
nalistas do sáculo passado, os quais mediante ésse recurso visa-
vam afirmar que na Biblia existem mitos, lendas e outras
narrativas que derrogam á autoridade e á dignidade do Livro
Sagrado. Daí surgiu entre os exegetas católicos da primeira me-
tade déste sáculo a desconfianza para com a tendencia a admitir
géneros literarios na Biblia. Hoje em dia, porém, principalmente
após a encíclica «Divino affiante Spiritu» (1943) de Pió XII,
vé-se claramente que a inspiracáo bíblica nao excluí, antes
mesmo supóe, o uso de géneros literarios; na verdade, os auto
res sagrados, mesmo sob o influxo da inspiracáo bíblica, nao
daixaram de escrever como os demais autores de sua época,
adaptando-se, portante, as convencóes de estilo e vocabulario
vigentes para cada assunto. A inspiracáo divina apenas garan-

— 483 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 4

tiu que nada de indigno, grosseiro ou mentiroso (como lendas


e mitos) entrasse na Escritura Sagrada.

2) A inspiragáo biblica se estende a todos os temas e mes- .


mo a todos os vocábulos coñudos na Sagrada Escritura.
Nos últimos decenios mais de um exegeta restringía a ins
piragáo bíblica aos trechos concernentes á fé e aos costumes;
assuntos profanos, portante, nao teriam sido atingidos' pelo
influxo da inspiragáo.

O Cardeal Newmann (t 1890), por exemplo, julgava que a alu-


sáo ao cao que abanava a cauda, no livro de Tobias 11,9, ficava Isen-
ta da inspiracáo biblica; da mesma forma, a mencáo do manto es-
quecido por Sao Paulo em Tr&ade e a ordem, dada a Timoteo, de o
levar de novo ao Apostólo (2 Tim 4,13)...

Contudo tais distingóes sao vas... Para prová-lo, sirvamo-


-nos do exemplo já introduzido neste artigo : numa palavra
escrita com giz em quadro-negro (como também numa estatua
burilada por um artista com cinzel em mármore) nao há trago
algum que se deva exclusivamente ao autor principal (o homem
que escreve ou burila) ou ao instrumento apenas (giz, cin
zel...); mas todo e qualquer aspecto da escritura ou da estatua
se deve reduzir integralmente a agáo conjunta da causa prin
cipal e do instrumento respectivo. Assim também na Sagrada
Escritura qualquer passagem, no seu teor preciso, versando
sobre tal ou tal tema, com tal ou tal vocabulario, se reduz por
inteiro á agáo conjunta de Deus e do autor sagrado; nada fíca
entregue apenas ao autor humano, como nada fica entregue
ao instrumento apenas (o cinzel) na confecgáo de urna estatua.
Entáo nao há na Biblia tema nao inspirado ? — Nao; nao
o há. A possível surprésa que esta conclusáo talvez provoque,
se esvanecerá desde que se tenha em vista que «inspirado» nao
quer dizer «revelado, comunicado por Deus ao autor humano
de maneira extraordinaria». «Tema inspirado» quer dizer, no
caso, apenas : «tema que, considerado á luz de Deus, apareceu
ao hagiógrafo como condizente com a mensagem divina da
Biblia». Assim entraram na Escritura muitos assuntos total
mente indiferentes ou neutros do ponto de vista religioso (ár-
vores genealógicas, mapas geográficos, catálogos de povos, etc.);
contudo nao ficaram isentos do influxo da inspiragáo, pois tais
assuntos estavam naturalmente ligados com outros temas (te
mas religiosos) na mente do autor sagrado; servem de vigas
ou través de conexáo entre os assuntos religiosos da Biblia;
cbntribuem destarte para constituir o «arcabougo» da Escri
tura Sagrada.

— 484 —
EM QUE CONSISTE A INSPIRACAO BÍBLICA?

Em particular com referencia as palavras mesmas da


Biblia, deve-se dizer que nao há alguma que haja sido escolhida
pelo autor humano apenas, sem a colaboragáo do Espirito Santo
ou do dom da inspiragáo. Lembremo-nos, porém, mais urna vez
de que «palavra inspirada», no caso, nao quer dizer «palavra
caída do céu» ou «palavra que prorrompe repentinamente no
espirito do autor humano», mas apenas «palavra já Contida no
vocabulario do hagiógrafo, a qual com certeza infalível apareceu
aó autor humano como veículo capaz de exprimir a mensagem
divina». — Note-se bem que, segundo a psicología humana, nao
há na mente verdades dissociádas de determinado vocabulario ou
expressionismo; todas as nossas idéias, mesmo quando nao pro
feridas com os labios, estáo sempre unidas a urna linguagem
qualquer interior que as suporta e carrega. Por isto será váo
ou contrario as leis da psicología querer distinguir entre idéias
e palavras na Biblia, como se aquelas fóssem objeto de inspira
gáo, e estas nao. Toda idéia, toda verdade existe no homem
associada a palavras mentáis, e a agáo do Espirito Santo res-
peita éste estado de coisas, apenas garantindo que por essa via
nao se introduzam erros de doutrina.
3) Nao há na Escritura Sagrada páginas «mais inspiradas»
e páginas «menos inspiradas». A agáo do Espirito Santo e de
seu instrumento humano (o autor sagrado) se exerce igualmen
te em toda e qualquer página da Biblia, como a agáo do artista
e a do cinzel se exercem igualmente na configuragáo de qual
quer trago da estatua de mármore.
4) A luz de quanto dissemos, .também se percebe nao ser in-
compativel com a inspiracáo a existencia de fontes literarias da Bi
blia. Os documentos-fontes teráo sido redigidos independentemente
da inspiragáo bíblica por quem quer que seja (judeu, pagáo, na Pa
lestina ou no estrangeiro); quando, porém, o autor bíblico resolveu
utilizar tais documentos, transcrevendo-os ou adaptando-os de al-
gmn modo para redigir urna página da Escritura Sagrada, íoi ilumi
nado por Deus, a fim de distinguir com certeza iníalivel o que havia
de verídico e consentáneo com a mensagem divina nessas fontes, e
o que havia de náo-consentáneo ou nao-auténtico. O que o autor sa
grado entao tirou dessas fontes. passou a ser garantido pela prer
rogativa da inspiracáo biblica. Cf. «P. R.» 26/1960, qu. 5.
Admitem-se também acréscimos sucessivamente feitos ao texto-
de determinados livros bíblicos; tais acréscimos, muitas vézes, pas-
saram a constituir partes do conteúdo oficial ou canónico da Sagra
da Escritura (assim, por exemplo, o «estatuto do Rei» em Dt 17,14-20
é pelos críticos modernos atribuido a um autor do tempo da mo
narquía em Israel, posterior a Moisés, embora o estatuto apareca
num discurso de Moisés). A vista disso, deve-se dizer que todos os
escritores que de algum modo concorreram para dar a configura-
cao definitiva do texto bíblico canónico gozaram do dom da inspi
racáo bíblica.
* * *

— 485 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 5

As considerares propostas já bastam para evidenciar o


sentido das «deficiencias» do texto bíblico. Sem afetar de algum
modo a verdade (o que é de importancia capital), elas consti-
tuem a face humana da Palavra de Deus; sao conseqüéncias
do misterio da descida do Divino ao humano, misterio que
culminou, na Encarnagáo do Filho de Deus ou em Jesús Cristo.
A Sagrada Escritura é, por isto, dita «um sacramental», ou
seja, um sinal sensível que comunica a graca, estendendo os
beneficios da Redengáo a quem a use com fé e amor.

IV. MORAL

5) «Em que consistem o método térmico e o método de


Doyle, utilizados para a limitagao da natatidade ?»

1. Tratando-se de limitacáo da natalidade, convém, antes do


mais, lembrar quanto íoi dito em «P. R.x> 45/1961, qu. 3: nao é licito
aos cónjuges recorrer a meios artificiáis e processos esterilizantes
a. íim de realizaren! a cópula matrimonial sem o risco de conceber
prole. A lei natural, anteriormente a qualquer determinacáo posi
tiva da Igreja, rejeita tal conduta, pois equivale a um desvio da
ordem instituida pelo Criador: a íuncáo sexual é, por si e. essen-
cialmente, destinada á reproducáo da especie de modo que excluir
esta finalidade essencial e, nao obstante, realizar o ato conjugal
equivale, em última análise, a ceder á concupiscencia desregrada,
mediante violáceo das íungaes naturais. A Igreja é mera porta-voz
desta ordem natural; nao lhe compete retocar as leis do Criador.
Caso, porém, haja motivos serios para evitar prole, é licito aos
cónjuges observar os períodos em que a natureza é por si mesma
infecunda: só usaráo do matrimonio em tais dias, praticando a con
tinencia nos periodos em que puderem prever a fecundidade. Esse
recurso é lícito porque nao implica intervencáo artificial na ordem
instituida pelo Criador; guarda-se assim o respeito á natureza.

Como, porém, calcular os períodos de esterilidade e fecun


didade da mulher? — Para satisfazer a éste intento, a tabela de
Ogino-Knaus é de grande valor.

Verdade é que freqüentemente tanto os casáis como os médicos


<3esconfiam dos resultados da tabela. Esta desconfianca é devida, em
parte, a certa margem de oscilacSo, inevitável no caso, pois se trata
de um método estatístico; julga-se, porém, que a maior parte das falhas
da tabela deve ser atribuida á imperíeita aplicacáo do método. Na Euro
pa muito se insiste na conveniencia de se procurar a assisténcia de
um médico perito no uso da tabela de Ogino-Knaus a fim de se evl-
tarem engaños de cálculo e decepc5es.

2. A técnica moderna, porém, já possui dispositivos de


mais precisáo do que o cálculo feito conforme a tabela: há
meios de testar diretamente, dia por dia, o organismo da pessoa

— 486 —
MÉTODO TÉRMICO E MÉTODO DE DOYLE

interessada, de modo que se pode acompanhar de muito perto


o processo de ovulagáo na mulher.
Um désses dispositivos já foi apresentado em «P. R.»
45/1961, qu. 3: é o da medigáo da temperatura .Com efeito, está
hoje em dia comprovado que a temperatura do organismo femi-
nino oscila em fungáo da respectiva ovulagáo. Após mais de vin-
te anos de pesquisas sobre centenas de casos, o médico holandés
Dr. J. Holt conseguiu estipular as normas que permitem inter
pretar o ciclo de temperatura, de modo a se averiguaren!, com
seguranga até agora desconhecida, as fases de fecundidade e
esterilidade da mulher. As instrugóes para a aplicagáo déste
processo foram publicadas pelo Dr. J. Holt no seu livro «Het
Getij» (3» edicáo em 1960), livro que já foi traduzido para o
francés, o inglés, o alemáo e o polonés, aguardando-se para
breve as respectivas edicóes espanhola, italiana, finlandesa,
japonesa e árabe. Em portugués, apareceu recentemente um
resumo da obra intitulado «O ritmo da fecundidade», podendo
as encomendas ser dirigidas ao tradutor: Pe. José Afonso Ca-
telijns M. S. C, Praga Washington Luís. 4-51, Bauru (SP).
Médicos e enfermeiras costumam afirmar que o'método térmi
co é o mais seguro recurso utilizado no Brasil para controlar o ritmo
femlnino e possibilitar aos casáis necessitados o uso do ato matri
monial sem derrogacao ás leis da natureza.

3. Fora do Brasil, principalmente nos EE. UU. da América


e na Franga, tem sido aplicado nos últimos tempos mais um
teste do organismo feminino que, assodado ao método térmico,
concorre para proporcionar tranqüilidade ás.pessoas interessa-
das : é o método do «Cromotestador» ou da medigáo da glicose,
que o Dr. Doyle estudou cuidadosamente e apresentou ao
público.

Já que tal processo está muito pouco difundido no Brasil só po


demos íornecer aqui as informacóes essenciais sobre o mesmo, as
quais foram colhidas da revista «La sage-femme catholique», feve-
reiro de 1961, pág. lis:

Há alguns anos atrás, o Dr. Doyle, ginecologista do Hos


pital Santa Elisabete, de Bostón (U. S. A.), descobriu que, dois
ou tres días antes da ovulagáo, aparece certa quantidade de
glicose ñas secregoes cervicais (ou do coló do útero). Essa
cota aumenta até a ovulacáo; deptiis decresce aos poucos. Cons
ciente disto, Doyle concebeu um processo muito simples para
averiguar a presenga e a quantidade de glicose ñas mencionadas
secregoes : consiste em por em contato com o líquido cervical
(do coló do útero) urna tira de papel devidamente impregnada
de reagente cor de rosa, o qual se torna azul em presenga da

— 487 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 6

glicose (tal reagente se compóe principalmente de resina de


guaiaco). O aparelho que contém a lingüeta de papel devida-
mente condicionada é chamado «Cromotestador» (testador da
cor), sendo a sua manipulagáo surpreendentemente fácil- Como
se compreende, o Dr. Doyle propós as normas precisas para se
interpretar a curva da quantidade de glicose resultante da
medigáo regular; a interpretagáo dirá quais os dias em que,
sem risco de conceber, a mulher pode satisfazer ao débito
conjugal. Na Franga, o uso do cromotestador é associado nao
raro ao do termómetro «Cyclotest» (para medigáo da tempe
ratura) de modo que os resultados do eromotestador podem
ser fácilmente controlados e, se necessário, corrigidos. Nos
EE.UU. da América, os estudiosos afirmam que a nova tática
já ultrapassou a sua fase de experimentagáo, podendo hoje
em dia ser tida como processo muito exato.

Nao seria preciso irisar aue o cromotestador nada tem que ver
com métodos anticoncepcionistas: é simplesmente ura recurso a mais
para se averiguar o estado fisiológico da mulher e, na base de dados
seguros, permitir ao casal interessado a aplicagáo dos principios pe
renes da Moral crista.

Eis as informagóes que nos foi possíyel colhér sobre o


assunto. Numa palavra : os pareceres médicos sao favoráveis
ao novo método, considerado do ponto de vista científico,
enquanto a consciéncia crista nada tem a lhe opor, desde que
naja motivos válidos para que um casal nao possa aceitar a
responsabilidade de ter mais filhos.

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

GLIO (Rio de Janeiro):


6) «Entre os casos escabrosos da historia, mencionam-se
os de Sóror Mariana Alcoforado, freirá tida como autora de
famosas cartas de amor, e Junqueira Freiré, monge poeta ímpio.
Que há de certo a propósito de tao ambiguas figuras?»

Analisaremos abaixo com serenidade o que os documentos


mais seguros atestam nos dois citados casos.

As pesquisas históricas de modo nenhum abalam o conceito de


santidade da Ipreia, pois, como repetidamente temos observado, a
Igreja nao se identifica com algum de seus filhos, nem mesmo com
ciárteos e Religiosas. Embora todos procurem aproximar-se do ideal
da «Esposa de Cristo sem mancha nem ruga» (cf. Ef 5.27), cada qual,
em grau maior ou menor, fica aquém désse Exemolar; a Iereja mesma
é a primeira a reconhecer e repudiar as faltas de seu,s filhos. pronta
a corrigi-las com solicitude materna. Em conseqüéncia. vé-se aue as
destoantes atitudes dos católicos nao afetam a autenticidade da Igreja,

— 488 —
MARIANA ALCOFORADO E JUNQUEIRA FREIRÉ

a qual continua a ser, para o mundo, a depositaría e administradora


dos meios de Redengáo; é Cristo, e nao sao os homens, quem garante
a genuinidade das manifestares oficiáis da Igreja.
Ao lado disso, deve-se observar que váo sendo transmitidas narra
tivas tendenciosas, baseadas em mal-entendidos ou mesmo na má. íé de
escritores que se querem servir da historia para desprestigiar a Igreja.

Estas breves premissas já sugerem a atitude de ánimo


oportuna para considerarmos devidamenfti os dois citados nomes
de Religiosos literatos.

1. A escritora apaixonada...

1. Mariana Alcoforado nasceu em Beja (Portugal), onde


foi batizada aos 22 de abril de 1640, como filha de Francisco da
Costa Alcoforado e Leonor Mendes. O pai exercia naquela
cidáde as fungóes de executor do almoxarifado. Muito jovem,
Mariana entrou no Convento de Nossa Senhora da Conceicáo
em Beja, onde morreu aos 28 de julho de 1723, com 83 anos
de idade.
É a essa Religiosa que se atribuem cartas de amor publi
cadas em francés no ano de 1669 sob o título de «Lettres portu-
gaises» (a primeira edigáo nao saiu nem em Portugal nem na
Franga, mas em Amsterdam na Holanda, o que nao deixa de
ser estranho). *

As cartas foram traduzidas para numerosas línguas modernas e


amplamente comentadas, dando lugar a que se falasse do «mazoquis-
mo psíquico de Sóror Mariana Alcoforado» (Asdrúbal de Aguiar, Sepa
rata do «Arquivo de Medicina Legal», 1" volume em 1922).

Essas missivas teriam sido dirigidas pela Religiosa portu


guesa ao capitáo francés Noel Bouton, conde de Saint-Léger,
depois marqués de Chamilly (1636-1715), o qual fazia parte
das tropas francesas enviadas a Portugal em auxilio contra a
Espanha. Bouton, permanecendo em Portugal de 1665 a 1667,
terá conhecido Mariana no seu convento- Esta, quando soube
que se concluirá a paz e que o oficial estava para voltar á
Franga, ter-lhe-á escrito sucessivamente por meio de interme
diarios militares, pedindo-lhe instantemente que a levasse con
sigo. A quanto parece, Bouton se mostrou assaz indiferente
as súplicas, só enviando urna carta em resposta... Tendo ele
regressado á Franga, partiu de novo em expedigáo militar para
Candia (Creta) no ano de 1669; gravemente ferido, ainda par-
ticipou de varios combates, falecendo em 1715.
2. Que dizer de tais cartas?
Assemelham-se a apaixonados brados de desespero, nos

— 489 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961, qu. 6

quais a crítica tem observado certos tragos típicos do estilo


francés.
Por isto, julgam os comentadores mais benignos que ao
menos certos trechos de tal epistolario náp sao da autoría de
Mariana. Bouton, que nao concebeu escrúpulos em publicar as
cartas, ter-lhes-á acrescentado frases que, entre outras coisas,
visavam lisonjear a sua vaidade.
Outros estudiosos váo mais longe, chegando a denegar a
Mariana ou a alguma mulher a autoría das cartas. Estas teráo
sido redigidas originariamente em francés, e nao em portugués.
O fato é que, se forara escritas em lusitano, o texto original se
perdeu por completo, só existindo hoje em retroversóes ou sim-
plesmente em tradugóes do francés para o portugués.

Antes da morte de Mariana, conheciam-se mais de cinqüenta edi-


coes francesas, além de urna traducáo para o inglés e outra para o
italiano (para só íalar de Londres, registraram-se ai edicdes das mis-
sivas em 1678, 1693, 1701, 1808, 1893, 1897 e 1903). O assunto entrou
até no teatro, principalmente por obra de Julio Dantas, que o drama-
tizou em versos na peca «Sóror Mariana».

Como se vé, seria váo conceber escándalo ou criticar a Reli-


giáo sobre base táo incerta como é o tal epistolario amoroso de
Mariana Alcoforado. Que o leitor sincero volte sua atengáo
para outros assuntos sobre os quais seja possivel formular um
juízo mais seguro e construtivo!

2. E Jungueira Freiré ?

Luís José Junqueira Freiré nasceu na Babia aos 31 de de-


zembro de 1832. Em 1851, com menos de vinte anos de idade,
entrou no Mosteiro de Sao Bento da cidade do Salvador, onde
emitiu os votos religiosos no ano seguinte (1852), com o nome
de Frei Luís de Santa Escolástica. Em 1854, os Superiores
queriam mandá-lo para o Rio de Janeiro; entáo sua máe, que,
ficaria a sos na Bahía, pediu ao filho obtivesse a dispensa dos
votos e com ela permanecesse. Junqueira Freiré obteve essa li-
cenga dita de «secularizagáo», passando a residir com sua ge-
nitora e sua irmá, numa existencia que em breve se deveria
extinguir por efeito de molestia cardíaca, aos 24 de junho de
1855; faleceu com pouco mais de 22 anos de idade.
A situagáo de Junqueira Freiré perante o Direito Canó
nico era legal; saiu do Mosteiro com a devida dispensa dos votos.
Nao chegou a ser ordenado sacerdote, pois a ordenacáo, além
do Noviciado (que se concluí com os votos), supóe anos de
estudo de filosofía e teología. Ora o dito monge se deteve dois
anos (ao máximo) no mosteiro após a profissáo religiosa. Por

— 490 —
MARIANA ALCOFORADO E JUNQUEIRA FREIRÉ

consaguinte, seria injusto ter ésse personagem na conta de


apóstata da vida religiosa ou sacerdotal. O que nele há a la
mentar é a brusca mudanga de mentalidade e de género de
vida, pois o ex-monge se tornou veementemente sarcástico con
tra a Religiáo. Alias, de maneira geral ñas suas produgóes lite
rarias, ele se manifesta inquieto, desalentado e revoltado- Ana-
lisando de mais perto os escritos e o currículo de vida (táo
breve e táo pouco amadurecida) do poeta, os críticos julgam
que a entrada de Junqueira para a vida monástica nao foi mo
tivada por auténtica vocacáo, mas por decepgóes seníimentais
e conselhos de pessoas estranhas; além disto, a mudanza ideo
lógica do poeta se deve á sorrateira influencia que ele foi lenta
mente sofrendo por parte da filosofía e da literatura da sua épo
ca. Ora está claro que concepgóes vacilantes, motivos negativos
e traumas afetivos nao bastam para sustentar urna vida mo
nástica.

Assaz ilustrativas sao as seguintes declarares do próprio autor:


«Urna educacao christá, porém llvre, que minha máe soube dar-me,
imprimio-me entre seus ósculos maternos o sentimento religioso lá
bem no amago de meu coracáo.
As minhas poesías orthodoxas, portarito, pertencem a minha máe.
Sao sua inspiracSo. '
O ardor da juventude, a ambicSo da ciencia, a sociedade corrom
pida, degeneraran! em mim o homem íeito por minha máe. A propor-
cáo que estudava, ia-me tornando mais philosopho, isto é, mais valioso,
mais ignorante, mais incrédulo.
As minhas poesías philosophicas pertencem a esses accessos de
loucura.
Entrou-me quasi n'esse tempo essa visáo encantada, essa halluci-
nacáo febril, que mata o coracáo e o espirito, depois de té-Ios bem
gasto. O amor! ■ .
As minhas poesías eróticas pertencem a esses segundos accessos de
loucura» (Contradiccoes poéticas, prólogo).

Em suma, as consideraccies ácima bem mostram que o caso


de Junqueira Freiré nao tem o significado religioso ou anti-
-religioso que alguns historiadores lhe querem atribuir- É, an
tes, a historia da fraqueza de um homem (cuja consciéncia nao
nos compete julgar), historia que está longe de esvaziar ou des
virtuar o imenso valor do conceito de Deus e de prática religiosa:
Deus, Cristo e a sua Igreja aínda pairam por cima da tragedia
e lhe sobrevivem.
Note-se apenas que a Igreja pode conceder a dispensa de
obrigacóes monásticas e sacerdotais, pois essas obrigagóes sao
de instituicáo eclesiástica; dependem de leis positivas, nao de
leis naturais. E quem é legítimamente dispensado, está habili
tado a viver em paz com Deus dentro da Igreja,... caso nao
tenha voluntariamente abandonado a fé!

— 491 —
¿PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 47/1961.

CORRESPONDENCIA MIÜDA
JOSÉ (Itaguaí): A narrativa a respeito da qual V. S. pede expli-
cacáo carece de fundamento histórico ; é pura lenda. Nao há ñas fontes
de biografía de S. Tomaz de Aquino men?áo alguma de "cordáo de origem
misteriosa, confeccionado de materia desconhecida pelos dentistas".

MARIANO (Rio de Janeiro): O meio de reerguer o ánimo de seu


bom amigo é excitar-lhe o espirito de fé ; vej& ele na situacáo de celi-
batário forcado em que se acha, a disposigáo da Providencia Divina a
fim de que se santifique. Tal solucáo nao é utópica nem abstrata demais,
pois sómente aderindo a Deus sem ressalva é que o homem consegue
aprumar-se e orientar-se na vida.
Qualquer outro recurso (tratamento médico, leí turas, divertimen-
tos...) será mero paliativo assaz ilusorio ou mesmo inútil; como diz
S. Agostinho, "Deus nos fez para Si, e inquieto é o nosso coracáo en-
quanto nao repousa néle". Pelas suas palavras de fé, oportunamente pro
feridas, é que V. S. conseguirá restaurar a alegría e a coragem do irmáo;
procure também aproximá-lo de um sacerdote.

DESORIENTADOS (Sao Paulo): Ao fato de ter sido retirada do


calendario litúrgico universal a festa de Santa Filomena nao se deye
atribuir significado demasiado ampio. A Igreja, tomando tal medida, nao
se quis pronunciar sobre a existencia ou a náo-existéncia de Sta. Pilo-
mena ; fica a criterio de cada fiel julgar se os documentos da arqueo-
logia sao suficientes para fazer crer na historicidade de Santa Filomena
(cf. "P.R." 44/1961); caso julgue serem, tais, pode prestar veneracáo á
santa; é por isto que continua em alguns lugares a devocáo a Sta.
Filomena. ■ .
A respeito das formas de devocáo usuais na cidade de Sao Paulo,
nao estamos habilitados a julgar.

ESTUDANTES (RS): A propósito do momento em que Deus cria


e infunde a alma humana, veja-se "P.R." 3/1957, qu. 3. A sentenga
mais moderna e provável ensina que isto sé dá por ocasiáo da fecundagáo
do óvulo, nao havendo portante o intervalo (de 40 ou 80 dias) que os
antigos admitiam entre a fecundagáo do germen e a infusáo da alma
humana.
Sobre a igualdade das almas, esperamos escrever resposta mais
extensa em um dos próximos números de "P.R.".

D. ESTfiVAO BETTENCOURT O.S.B.

«PEEGUNTE E RESPONDEREMOS»

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Número de ano atrasado Cr$ 35,00
Cole?5ó encadernada de 1957 Cr$ '400,00
Col. encadernada de 1958, 1959, 1960 Cr$ 550,00 (cada urna)

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