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Tenho certeza de que ontem vi este homem cujo cadáver encontraram hoje.
Ontem, por volta do meio-dia, creio eu. Foi a meio caminho entre Sekiyama e
Yamashina. Ele vinha a pé no rumo de Sekiyama, acompanhando uma mulher a
cavalo. Não podia ver o rosto dela, pois seu chapéu trazia um longo véu. Tudo o
que pude divisar foi a cor de suas vestes: púrpura sobre azul. Quanto ao cavalo,
parecia ser um alazão de crina aparada. Qual a altura do animal? Teria cerca de um
metro e trinta centímetros? Como sou monge, não saberia dizer. E o homem? Sim,
além da espada, também portava arco e flechas. Ainda agora me lembro muito
bem de ter visto cerca de vinte flechas em sua aljava laqueada de preto.
Sim, senhor. Aquele é o cadáver do homem com quem casei minha filha. Ele
não era da capital. Era um samurai do governo da província Wakasa. Chamava-se
Kanazawa-no Takehiro e tinha vinte e seis anos de idade. Não, senhor. Como era
muito gentil, jamais provocaria a ira de alguém. Minha filha? Ela se chama Masago,
tem dezenove anos. Sua personalidade é tão forte como a de qualquer homem; no
entanto, até agora sempre foi fiel a Takehiro. Seu rosto é pequeno e ovalado, a
pele amorenada, com uma pinta no canto do olho esquerdo.
Takehiro partiu ontem para Wakasa em companhia de minha filha. Mas que
infelicidade! Quem poderia imaginar uma coisa dessas? Mas o que teria acontecido
à minha filha? Quanto ao meu genro, até posso me conformar; no entanto, só de
pensar nela, fico doente. Suplico-lhe, é o único desejo desta velha: descubra o
paradeiro da minha filha, nem que para isto seja preciso revirar montanhas e
matas. Custe o que custar, encontre-a! Tajômaru… Como o odeio! Não somente o
meu genro, mas também a minha filha… (Lágrimas sufocam suas ultimas palavras.)
Confissão de Tajômaru.
Sim, fui eu quem matei aquele homem. Mas a mulher, não. Então, onde ela
está? Isso nem eu sei. Ei, esperem! Nenhuma tortura pode me fazer dizer o que
não sei! Além, do mais, nestas condições, não pretendo esconder-lhe nenhum
segredo à toa. Ontem pouco depois do meio-dia, deparei-me com o casal. Nesse
momento, com o sopro do vento, o véu se ergueu e pude ver, por alguns segundos,
o rosto da mulher. Por alguns segundo – foi um vislumbre, apenas isso. Pode ter
sido a brevidade da visão, mas o rosto daquela mulher me pareceu o de uma deusa
Boddisattva. Foi nesse instante que decidi possuí-la, mesmo que tivesse de matar o
marido
Ora, matar um homem não é lá grande coisa, como vocês pensam. De
qualquer forma, para tomar uma mulher, sempre é preciso matar o homem. A
diferença é que, quando mato, uso a espada que trago à cintura, mas vocês não.
Vocês matam com o seu dinheiro. Às vezes matam apenas com palavras, a
pretexto de que o fazem para o bem deles. É verdade que não corre sangue, que os
homens continuam vivendo, mas, mesmo assim, vocês os mataram. Mas, se
pudesse tomar a mulher sem matar o marido, tanto melhor. Aliás, meu estado de
espírito, naquela hora, era o de tomar a mulher e, se possível, não matar o
homem. Mas fazer uma coisa dessas na estrada de Yamashina era realmente
impossível. Por isso armei um plano para fazer o casal acompanhar-me montanha
adentro.
Sem tirar a vida do homem – é isso mesmo. Eu não tinha mesmo intenção
de matá-lo. Acontece que quando que, quando eu já ia fugindo do bosque,
deixando atrás a mulher em prantos, de repente ela agarrou-me o braço,
desesperada. Com gritos entrecortados de soluços, ela dizia: “Morra você ou meu
marido, morra um dos dois; expor a própria desonra a dois homens é pior do que a
morte”. E dizia ainda, ofegante, que se uniria àquele que sobrevivesse. Foi nesse
momento que fui tomado por um violento desejo de matar o homem. (Comoção
lúgubre.) Ouvindo-me falar assim, sem dúvida devo lhes parecer mais cruel do que
vocês. Mas isso é porque não viram o rosto daquela mulher. Principalmente porque
não viram o ardor que brilhava em seus olhos naquele instante. Quando vi aqueles
olhos, quis tê-la como esposa, mesmo que tivesse de ser fulminado por um raio.
Esposá-la – era tudo o que eu queria naquele momento. Não era por nenhum
desejo vil e licencioso, como vocês podem acreditar. Se tudo o que eu sentisse
fosse um desejo físico, certamente me contentaria em dar-lhe um pontapé e fugir.
E minha espada não teria se manchado com o sangue do homem. Mas, no
momento em que fixei o olhar no rosto dela, tomei a decisão de não partir dali sem
antes matar o seu marido.
Bem, não há necessidade de lhes contar o fim da luta. Minha espada lhe
atravessou o peito no vigésimo-terceiro golpe. No vigésimo-terceiro golpe! Não se
esqueçam disso… Porque essa façanha ainda hoje me impressiona. Foi o único
adversário em toda a minha vida a resistir a mais de vinte golpes. (Sorriso
satisfeito.)
— Não posso mais continuar com você depois de tudo o que aconteceu.
Estou decidida a me matar. Mas… Mas rogo-lhe que você também se mate. Você
presenciou a minha vergonha. Não posso permitir que continue vivendo após a
minha morte.
Isso foi tudo o que consegui dizer. E no entanto ele continuou a me olhar
com repulsa. O coração partido de dor, procurei sua espada. Entretanto, não
encontrei no bosque nem espada nem arco e flechas; o assaltante devia ter levado
tudo. Ainda bem que pelo menos pude encontrar o punhal, caído no chão.
Levantando-o sobre a cabeça, disse uma vez mais a meu marido:
Quando ele ouviu estas palavras, mexeu os lábios com dificuldade. Como
sua boca estivesse cheia de folhas, não se ouvia a sua voz. Mas, num olhar, entendi
o que ele queria dizer. Ainda me desprezando, balbuciou apenas uma palavra:
“Mate-me!” Como em meio a um sonho, cravei-lhe fundo o punhal no peito,
atravessando o quimono de seda azul. Devo então ter perdido novamente os
sentidos. Quando voltei a mim, meu marido, ainda amarrado, havia muito estava
morto. Através da mistura de galhos de bambu e cedros, o sol poente deixava
vagar um raio de luz sobre o seu rosto lívido. Sufocando os soluços, desamarrei a
corda do cadáver. Depois… O que aconteceu? Isso já não tenho mais forças para
contar. Enfim, faltou-me coragem para me matar. Feri-me na garganta com o
punhal, joguei-me no lago ao pé da montanha, tentei vários meios, mas, uma vez
que ainda estou viva, não vejo do que me orgulhar. (Sorriso melancólico.) Mesmo o
misericordioso Kannon Bossatsu deve ter-me abandonado, tão covarde que sou!
Mas eu, que matei meu próprio marido, que fui violentada, o que devo fazer? O que
posso eu… posso… (Soluços repentinos e violentos.)
Esse não foi o único mal que ela cometeu. Se fosse apenas isso, eu não
estaria sofrendo tanto nesta escuridão. Quando, conduzida pela mão do ladrão,
como num sonho, ia saindo do bosque, ela de repente empalideceu e apontou para
mim, ainda amarrado ao pé do cedro.
— Mate este homem! Se ele continuar vivo, não poderei viver com você!
Minha esposa, como se tivesse enlouquecido, gritou várias vezes:
O ladrão, com os olhos fixos na minha esposa, não respondia nem sim nem
não. No instante seguinte, derrubada por um violento pontapé, ela estava caída
entre as folhas de bambu. (Novo riso de escárnio.) O ladrão cruzando calmamente
os braços, voltou-se para mim:
— O que você quer que eu faça com ela? Mato-a ou deixo-a ir?… Basta
responder movendo a cabeça. Mato-a?
Depois, tudo foi silêncio… Não, ainda se ouvia o choro de alguém. Livrando-
me da corda, apurei o ouvido. Mas não, era eu mesmo que chorava… (Pela terceira
vez, um longo silêncio.)
Dezembro de 1921