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um território em disputa
RESUMO
A ocupação e apropriação do Cerrado Goiano são frutos das relações humanas, que, por
conseguinte espelham as suas histórias de vida na espacialidade. Portanto, ora o Cerrado
Goiano é objeto de exploração, ora ele é objeto de preservação, ora é tradicional, ora é
contemporâneo. Existem contradições entre norma e vida. O capital por meio do mercado de
consumo tende a transformar tudo em mercadoria: eis os pressupostos mediantes os quais este
trabalho foi realizado. Contou-se ainda com duas vivências de campo (sudoeste e sudeste
goiano), com participações em congressos e reuniões desenvolvidas com membros da
academia e organizações não governamentais. Todas estas atividades conduziram a seguinte
síntese: o cerrado é um território em disputa, que estão envolvidas as questões materiais e
imateriais em uma relação dialética.
INTRODUÇÃO
1
Mestre em Geografia pelo Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiás e
Presidente da ONG Cultura, Cidade e Arte. E-mail: marciarhmt3@terra.com.br.
2
Doutor em Geografia Humana pela USP e professor adjunto do IESA/UFG. E-mail: eguimar@hotmail.com
1
ambientais – IESA -, da Universidade Federal de Goiás. Esses trabalhos recuperam
predicados enunciados por Almeida (2005), compreendendo o cerrado como ecossistema;
como região de incorporação de capital; como cenário paisagístico; como mito etc.
Embora existam todas essas compreensões, temos esforçado para analisar o
desenvolvimento econômico e a preservação ambiental como duas expressões de força
imaginária e ideológica, na atualidade, quando o assunto é o Cerrado. Por outro lado, assiste-
se a implantação de programas, por parte dos setores públicos e privados, que intentam,
promover ações e iniciativas que apresentem produtividade e avanços econômicos capazes de
desenvolver as projeções da balança comercial, bem como a exportação, incrementando o
PIB, o IDH, e tantos outros índices almejados que levem o Estado de Goiás a se inserir no
mercado globalizado. É a partir dessa conexão mercantil que a idéia de sustentabilidade,
descritos na Agenda 21, será implantada. Assim descreve um expoente do agronegócio:
De acordo com as idéias desse ator, o uso do cerrado para a economia baseada no
agronegócio é o expediente de sustentabilidade. Mas ao contrário disso, o território do
Cerrado goiano, é alvo hoje de várias significações, empreendidas por outras visões de
mundo. Deve ser observado que, segundo dados estáticos da Seplan (2005), esse ecossistema
compreende a segunda maior riqueza em diversidade biológica do país, abrigando vários
cursos d'água formadores de grandes bacias hidrográficas sul americanas.
Nesse território encontram-se, além da rica biodiversidade, os principais aqüíferos
subterrâneos deste continente, o que o torna indispensável para o fornecimento de água para
América do Sul. Mas até meados do século XX ele era considerado um bioma de terras pobres
2
e improdutivas, vegetações deformadas e feias e do lugar dos tempos lentos3 que deveria
ceder á modernidade, conforme afirma Silva (2005 p.24):
A predicação negativa recebida pelo imaginário economicista como um bioma que era
pobre e improdutivo que se caracterizava por uma ocupação rural onde se desenvolvia,
basicamente, pecuária extensiva aliada à agricultura de subsistência4 e se tornou um dos hots
pots de biodiversidade do planeta (ALMEIDA, 2005), faz com que se pergunte: por que o
cerrado tornou-se uma das principais molas propulsora do agronegócio?
O objetivo deste estudo é analisar os fatores que levaram a esta alteração de conceito e
importância sobre o Cerrado Goiano, bem como a relação destes fatores com as
transformações socioespaciais que foram ocorrendo no seu processo de ocupação e
apropriação.
Para isso, entende-se que qualquer estudo e/ou pesquisa hoje em dia que for abordar
este tema terá que considerar a importância da construção de uma leitura do Cerrado a partir
do material e do imaterial, de um olhar espacial abrangente, de natureza transdisciplinar e
capaz de enxergar além das fronteiras impostas pela fragmentação entre o físico e o humano
e/ou a natureza e a sociedade. Temos chamado essa perspectiva de visão integrada do cerrado.
Esse olhar espacial integrado que permitirá deparar-se com o local e o global, com as
contradições entre norma e vida.
3
Segundo Santos (2001) [...] tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônica e
tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados. A economia pobre trabalha nas
áreas onde as velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as
firmas hegemônicas.
4
Segundo Estevam (2004, p. 16) “Agricultura e pecuária em Goiás não podem ser vistas, no contexto do século
XIX, como atividades estanques ou separadas. A agricultura explorada no território era a agricultura” camponesa
“caracterizada pela fraca utilização de insumos e pela predominância do trabalho familiar”.
3
A compreensão de que o olho que olha implica no objeto olhado, nos faz conceber o
olhar integrado que perceba que os impactos gerados no processo de ocupação do Cerrado
Goiano, no século XX, afetaram as riquezas materiais e imateriais. Parte-se do entendimento
que o Cerrado não é composto apenas de biodiversidade, mas também da sociodiversidade5 e
que, por seguinte, não foram apenas as suas riquezas naturais e biológicas que sofreram
impactos e alterações, mas a cultura e a memória dos povos que ali habitavam. O que era rural
se transformou em agrícola alterando, desta forma, as estruturas materiais e as socioespaciais,
em um período histórico denso e curto. Estevam (2004 p.185) esclarece:
5
Este termo é usado por Santos (2000) no livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal.
4
territórios, promovem adaptações, interações e integrações de suas práticas socioculturais e
por seguinte, se reterritorializam.
Por esta via se propõe verificar a relação entre as dimensões política e cultural na
constituição dos territórios modernos, pois ela é imprescindível para a compreensão da
reconfiguração socioespacial do Cerrado Goiano. E averiguar o sentido social de suas
disputas.
Desse modo, considera-se que o Cerrado é um território, mais que um palco onde se
manifestam as relações humanas e sociais. Ele se transforma em território disputado6 por
diversos grupos sociais que misturam suas territorialidades na estrutura deste espaço,
constituindo elementos sociais cristalizados no tempo e no espaço (SANTOS, 2004). Por
conseguinte, é na materialização da territorialidade, produzida por um longo processo
histórico que envolve as mais variadas formas de relações humanas, que desdobram os vários
sentidos da disputa do cerrado.
Esses componentes são utilizados pela política territorial da gestão do espaço. Essa
política é precedida de elementos culturais.
6
Esse conceito de território disputado pode ser entendido a partir de Haesbaert (2002, p. 121), quando ele afirma
que [...] o território é o produto de uma relação desigual de forças, envolvendo o domínio ou controle político-
econômico do espaço e sua apropriação simbólica, ora conjugados e mutuamente reforçados, ora desconectados
e contraditoriamente articulados. Sendo assim, o território seria o resultado do entrecruzamento de múltiplas
relações de poder, sejam aquelas mais diretamente ligadas a fatores econômico-políticos, isto é, de ordem mais
material, sejam aquelas relacionadas às questões de caráter mais cultural, com ênfase no poder simbólico. Essa
perspectiva, de acordo com Haesbaert (2004), somente é possível a partir da compreensão do espaço como um
“[...] híbrido entre natureza e sociedade, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e idealidade,
numa complexa interação tempo-espaço” (p. 79) e, portanto, um espaço múltiplo e nunca indiferenciado. Desse
modo, essa abordagem relacional do território conforma-se enquanto tal não apenas pela definição deste dentro
de um conjunto de relações histórico-sociais, mas também por abarcar uma complexa relação entre processos
sociais e espaço material.
5
sociedades nacionais, é, do ponto de vista cultural, da mesma forma
como vimos para a dimensão política, um movimento ambivalente,
concomitantemente desterritorializador e reterritorializador
(HAESBAERT, 2004)
6
extensiva e agricultura de subsistência (fazenda goiana7), marcha rumo a modernização
capitalista.
Vê-se então, a partir de 1930 com a política de integração do governo Vargas a
ocupação do Cerrado Goiano como uma prioridade nacional. Inserida num projeto que, no
âmbito regional, buscava articular as regiões produtivas do Estado de Goiás, principalmente
as regiões sul e sudoeste e, no âmbito nacional, buscava adequar o país a um novo ritmo de
produção capitalista (OLIVEIRA, 2006).
Neste sentido, a apropriação e ocupação do Cerrado, neste período, se dão de maneira
planejada e com interesses e funções políticas e econômicas bastante definidas. Era o Brasil
integrando o sertão ao litoral, através da Marcha para o Oeste. Era a possibilidade de
modernização de Goiás, que poderia sair do “adormecimento” e tornar-se o coração do Brasil.
A viabilização desse projeto requisitou inúmeras estratégias para as quais foram
usados vários recursos. Desde acordos políticos, econômicos a campanhas publicitárias que
tinham como objetivo difundir a necessidade de modernização. O novo era a proposta. Para
isso nada melhor que um projeto arrojado e moderno que vislumbrasse a integração e o
desenvolvimento, era inserção do sertão nos tempos modernos. O Goiás das “Tropas e
Boiadas”, de Hugo de Carvalho Ramos, deveria se render ao traçado de Versalhes de Atílio
Correia Lima.
Essas mudanças que tiveram como objetivo tornar o Cerrado produtivo e lucrativo
alterou de forma significativa à configuração socioespacial do território goiano. A antiga
paisagem do cerrado foi se modificando e transformando predominantemente em grandes
plantações e em empresas agropecuárias. O que era rural tornou-se agrícola em espaço/tempo,
historicamente muito curto e denso.
O solo que até então era considerada “de baixa produtividade”, com os incrementos
técnicos científicos (calcários, máquinas agrícolas de últimas gerações, pivôs, etc) se
transformar em terra de primeira e conseqüentemente torna-se um “paraíso” para a
implantação do agronegócio (grandes plantações de grãos e mais recentemente da cana de
açúcar). Vale ressaltar os subsídios e as facilidades propiciadas pelo governo através de linhas
de créditos específicas, incentivos fiscais, infra-estruturas, dentre outras coisas.
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Segundo Estevam (2006, p.64) [...] a fazenda goiana apresentava [...] características peculiares; não se utilizava
predominantemente do trabalho servil e a escravatura [...] A organização não apresentava características básicas
de formação de classes e não promovera até então, divorcio entre meios de produção e a força de trabalho. Com
esses elementos característicos [...] contrastava com a fazenda cafeeira, unidade básica mercantil. Também
diferentemente da fazenda açucareira- de rígida hierarquia tradicional – as fazendas tradicionais goianas
organizaram-se de maneira peculiar, engendrando uma ordem social bastante singular.
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Vê-se assim pela lógica do mercado de consumo global e do capital transnacional a
mais brusca transformação socioespacial do cerrado goiano. A antiga paisagem do cerrado foi
se modificando e transformando predominantemente em grandes plantações e em empresas
agropecuárias. A transformação do rural em agrícola mecanizado em um período histórico tão
curto gerou impactos econômicos, sociais, culturais e espaciais que hoje se pode perceber
claramente. Pode-se dizer que o Cerrado Goiano, hoje, presencia vários tempos em um
mesmo espaço (SANTOS, 2002).
Em recentes trabalhos de campo realizado no sudoeste (coordenado pelo Professor
Manoel Calaça) e sudeste goiano (coordenado pelo Professor Marcelo Mendonça),
respectivamente, pudemos presenciar o outro lado da modernização. A ema figura principal
do Parque Nacional da Ema, agora vive nas lavouras de soja. Encontra-se em cidades como
Mineiros e Jataí uma enorme disparidade socioeconômica que antigamente era característica
exclusiva das grandes metrópoles. Sem falar da criação de cidades totalmente verticalizadas,
como o caso de Chapadão do Céu e das empresas transnacionais com tecnologia e
mecanização de ponta, algumas já robotizadas, concentra a maior parte de sua produção para
o mercado externo. A geração de empregos em grande escala, como comumente é
anunciando, é mais um dos inúmeros factóides que se cria para atrair mão de obra barata das
regiões menos favorecida do país.
Segue abaixo imagens (figuras 1, 2 3 e 4) que demonstram as disparidades
socioeconômicas vivenciadas na cidade de Mineiros:
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Figura 3 e 4: Casas de luxos em Mineiros, conhecido popularmente por condomínio aberto.
Fonte: MENDES, Rodrigo 2007.
8
A referida agroempresa há quatro anos atrás foi notificada por trabalho semi-escravo pelas precárias condições
que abrigavam os seus trabalhadores. Esta notificação influenciou dentre outras coisas na imagem comercial da
empresa, o que implica em menos lucratividade.
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verdadeiras vilas operárias nas “antigas fazendas” e a construção de alojamentos que reportam
a organização militar e ao modelo fordista de produção.
Abaixo as figuras 5 e 6 que corroboram com este argumento.
10
Barthes (2001, p. 208, 216), ao se referir sobre a semântica dos objetos, diz que o
objeto é o homem agindo sobre o mundo, modificando o mundo, estando no mundo de
maneira ativa; o objeto é uma espécie de mediação entre a ação e o homem e, portanto, não é
inócuo, sempre fornece sentidos. Nesta perspectiva, ao analisar as figuras 5 e 6, percebe-se
que, muito mais que um estilo arquitetônico moderno, essas construções simbolizavam um
novo modelo de vida. É a tentativa de normatização da vida por meio dos modelos
arquitetônicos. É a sobreposição sociocultural. É a forma moderna tentando se impor e
contrapor aos padrões e valores tradicionais através de modelos de moradas, práticas
alimentares dentre outras coisas.
Neste sentido, ao avaliar as transformações materiais e imateriais, de acordo com os
trabalhos de campo, pode-se afirmar que o território goiano é ao mesmo rico e miserável,
tradicional e contemporâneo, lento e rápido. Enfim as contradições do capital estão nítidas em
sua paisagem e em suas espacialidades. Mas como essas transformações influenciaram o
imaterial? Qual a conseqüência destas transformações na cultura e na memória dos chamados
povos tradicionais? Por que o Cerrado é um território em disputa?
A chegada de migrantes do Sul do país; a transformação do modo de produção e
empreendimento no Cerrado; a mudança do rural para o agrícola aliado ao processo de
urbanização da contemporaneidade, dentre outros fatores; fizeram e/ou fazem que o Cerrado
(população e paisagem – objetos e ações) seja um território em disputa. Onde a aparência
pode ser moderna e cosmopolita, mas a essência ainda é tradicional. Há, aqui, a fusão de
tempos desiguais num mesmo território.
Grande parte das comunidades rurais migrou para as cidades levando com elas seus
costumes, tradições, crenças e modo de vida, passando pelo processo de desterritorialização e
reterritorialização (Haesbaert).Esse processo também acontece com os migrantes e com as
populações que já eram consideradas urbanas. Existe um movimento constante de trocas,
mudanças e enraizamento. Existe o confronto diário do local e o global, como existe também,
tal como foi anteriormente abordado, a sua fusão em determinados momentos.
E é por isso que apesar da modernização do Cerrado ainda existe e persiste uma
cultura tradicional cheia de símbolos de origem histórica antiga. Seja ela: rural, tradicional, ou
moderna, ambas vivem esta complexidade que hoje se apresenta no Cerrado.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
CHAVEIRO, Egmar Felício. Goiânia, Uma Metrópole em Travessia. 2001. 321 f. Tese.
(Doutorado em Geografia Humana) – Departamento de Geografia, USP, São Paulo, 2001.
DUARTE, Laura Maria Goulart; SANTANA, Maria Lúcia (Orgs). Tristes Cerrados:
sociedade e biodiversidade.Brasília: Paralelo 15, 1998.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
Hucitec, 1996.
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_______.Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
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