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A VIDA DE FRANCISCO DE ASSIS1

I
[5]

Por 1182 nasceu em Assis, em casa de um rico negociante de panos, um menino a


que a mãe, senhora de nobre família provençal, pôs o nome de João. O pai estava ausente
em França, numa das suas costumadas viagens; todos os anos partia a fornecer-se dos
tecidos preciosos que fabricavam os franceses, depois vinha expô-los ante os olhos ávidos
das damas de Assis; outras vezes, demorando-se um pouco mais, ia de castelo a castelo,
anunciava às sentinelas, que velavam no alto dos adarves, as mercadorias que levava e logo
na sala grande fazia valer o brilho, o quebrar, os tons quentes ou mimosos, a macieza e a
trama subtil dos panos que vendia; quando já os fardos diminuíam sobre o lombo dos
machos e avultavam os sacos de dinheiro, largava para a Úmbria, onde o esperava a
mulher, risonha e branda.
No regresso, mudou Pedro Bernardone o nome da criança; João parecia-lhe
demasiado grosseiro e vulgar para um moço de fortuna ante cujos meios se abriam os [6]
caminhos mais belos; cavaleiro, homem de Igreja, ou mercador como ele, sempre um nome
fino e harmonioso o havia de ajudar; além de tudo, não lhe desagradava marcar a sua
simpatia pela doce França, a dos valentes guerreiros e das damas formosas; quis, pois, que
o menino se chamasse Francisco; o nome raro e aristocrático o levaria às empresas maiores.
Absorvido nos seus negócios não pôde dedicar muito tempo à educação de
Francisco; deixou-o em quase total liberdade e o pequeno teve por companheiros mais
assíduos os garotos de Assis; com eles fez expedições pelo campo, na rebusca de fruta, se
banhou nos rápidos riachos, trepou pelas encostas dos montes; aprendeu os nomes das
árvores, das flores e das aves, os costumes de receio e manha ingénua da bicharada dos
bosques; conheceu a alegria de caminhar por um campo batido de sol, sob o céu vasto e
profundo, a finura dos orvalhos que rebrilham à clara luz da madrugada, a calma silenciosa
do dia que termina de leve, manso e puro, como uma pomba que desfalece.
Quando foi tempo de ir à escola, a natureza revoltou-se; nunca os mestres
conseguiram que Francisco fosse um aluno atento, aplicado e dócil; entrou mal no latim,
não o interessava a tarefa de ler e de escrever, sempre a mão lhe ficou tarda e difícil no
traçado das letras. Só mostrou gosto pelo francês que lhe ia ensinando a mãe e que apurou [7]
nas viagens em que Pedro Bernardone o levou de companhia.
Pelos franceses conheceu a poesia dos trovadores; toda a sensibilidade poética que
lhe vibrava no espírito se entusiasmou e o alou a regiões de beleza imorredoura; prendeu-
lhe a alma, na harmonia dos versos, no ritmo caricioso da linguagem, o amor constante,
purificador, religioso, que animava os provençais, lhes acendia o peito num fogo de
perfeição e de divinos anseios. Depois, entrou no mundo místico e guerreiro de Carlos

1
A Vida de Francisco de Assis, Lisboa, Seara Nova, 1938.

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Volume III: VIDAS DE HOMENS CÉLEBRES (1937-1946)
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Magno e dos cavaleiros do Rei Artur; soube de cor a morte heróica de Rolando e venerou,
com todo o ardor da mocidade, o imperador das longas barbas brancas que os condes
adoravam e temiam os pagãos; mais alto ainda lhe aparecia o Rei Artur e com ele os castos,
imaculados cavaleiros que buscavam o Graal; povoaram-se-lhe os sonhos de armaduras
doiradas, de corcéis impetuosos, das barcas de cristal que deslizam sobre os lagos de
florestas encantadas.
Quando voltava a Assis, ficava a trabalhar na loja do pai, a dirigir os caixeiros e a
atender a freguesia que se apresentava; como era cortês, sorridente e punha no mínimo
gesto uma amabilidade que prendia, todos queriam ser servidos por Francisco; tomados do
encanto que envolvia o moço e dele irradiava, nem reparavam nos preços que pedia, na
astúcia com que os levava a comprar o que lhes não agradava ou a despender o dinheiro
que tinham reservado para outros fins. A loja prosperava e Pedro Bernardone cada vez [8]

sentia mais sólidos os seus projectos de um futuro brilhante para o filho; e mesmo sua
mulher, tão mesurada e calma, afirmava às amigas que Francisco ainda viria a ser um
grande homem. Todos animavam os planos e sinceramente desejavam que o rapaz
trouxesse um dia para Assis a glória de ter visto nascer um grande guerreiro ou um ilustre
cardeal, talvez um papa.
Entretanto, Francisco ia gastando grande parte do dinheiro que fazia ganhar ao
negociante de panos; tinha-se formado à sua volta, atraído pela riqueza do espírito e pela
riqueza da bolsa, um círculo que juntava todos que, pela fortuna, pela bravura, pela
inteligência, pela elegância, se tornavam notados entre os moços da cidade; pelos
numerosos amigos espalhava sem contar os punhados de moedas; oferecia-lhes magníficos
banquetes, espectáculos de danças e de cantos, cavalhadas e momos; toda a despesa que se
fazia, ele a pagava, como um grande senhor; generosamente lhes dava para fatos os tecidos
mais sumptuosos e lhes adquiria as jóias mais caras; nenhum dos que andavam com ele dei-
xaria, por sua culpa, de se apresentar luxuoso e belo; e tão afeiçoado se lhes tornava que,
muitas vezes, quando já se sentara à mesa com o pai e a mãe, os abandonava de súbito para
seguir o bando, que o buscava.
Depois dos banquetes percorriam cantando as ruas da cidade, entre as casas [9]
adormecidas, e todo o ar ressoava de louvores dos rostos formosos que encantavam os
moços ou das glórias de Bretanha e das Marcas francesas. Elegante e discreto, reprimia
Francisco nos seus amigos todo desejo de entoarem as canções que não pudessem escutar
os mais puros ouvidos; sabiam-no tão firme nesse ponto que ninguém ousava contrariá-lo;
os mais grosseiros lhe obedeciam e por amor dele calavam as palavras soezes, sufocavam
os instintos que os levavam para as brutas acções; jamais lhe tinham ouvido uma frase
incorrecta, jamais o surpreenderam num momento de abandono; e todos tinham visto
como, nas situações embaraçosas, era Francisco o primeiro a dominar-se, a buscar outro
local ou outro assunto de conversa, sempre delicado e sorridente, mas com mais viva cor
no rosto pálido.

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Às vezes, tinha um acesso de extravagância; passeou pelas praças de Assis e assistiu


a festas com um vestuário de caríssimo pano a que mandara coser, como um remendo, um
pedaço de linhagem; pasmaram os burgueses quando o viram, insensível aos risos e aos
comentários divertidos, percorrer a cidade com um fato de jogral, metade duma cor,
metade doutra; rompia a seriedade dum negócio para tomar o barrete e correr ligeiro pelos
caminhos que metiam para os campos, enquanto o outro pacientemente esperava que
voltasse para fecharem o contrato; em actos solenes, em que o silêncio era de regra, o seu [10]
canto se elevou, forte e claro, numa alegria irreprimível, ante o espanto de todos, e acabou
por os vencer no turbilhão de heróica energia, da esplêndida vitalidade que todo o animava.
Pedro Bernardone não deixava de o repreender e de lhe apontar que não era aquele
o processo melhor de conseguir o bom lugar que certamente desejava; podia dar a
impressão de que era louco e nunca houvera o costume de confiar a loucos as posições que
dominam o mundo; por outro lado não achava Francisco que seria bom suprimir certas
despesas, ser menos descuidado na administração dos seus bens? Certamente eram ricos,
mas havia a contar com os possíveis desastres, com os anos de velhice, e todo o futuro
desconhecido; além de tudo, gastava muito mal gasto o seu dinheiro; os vadios que juntava
à sua roda não mereciam que os tratasse tão bem; na maior parte, detestavam o trabalho e
queriam viver das fadigas dos outros; devia tratar de os ir afastando, deitá-los ao desprezo
que mereciam, fazer o possível por que cada qual se colocasse no seu lugar.
Havia outra questão em que pai e filho se encontravam em completo desacordo.
Não vinha nenhum pobre à loja sem que Francisco lhe desse uma moeda de oiro; quando
ia pela rua os mendigos acorriam e bondosamente lhes despejava nas mãos tudo que trazia
consigo; mandava socorrer os pobres que não tinham coragem de andar no peditório, os [11]
doentes abandonados, as viúvas sem amparo, os órfãos de quem ninguém queria saber.
Pedro aprovava que se dessem esmolas, mas censurava o exagero; a caridade demasiada é
um defeito; manda o bom senso que por amor dos pobres não fiquemos como eles;
conviria, portanto, que Francisco se moderasse, se não mostrasse tão pródigo, não caísse
numa espécie de loucura; ainda há pouco, tinham os fregueses notado como ele saíra da
loja, a correr, para entregar a sua esmola a um pobre a quem por distracção a tinha
recusado e humildemente lhe pedira perdão da falta involuntária.
Mas conselhos e reprimendas, tudo ficava inútil; o rapaz continuava na mesma e a
todos os pobres acolhia com respeito e carinho, todos levavam o dinheiro que lhe pediam.
Só os leprosos lhe repugnavam e o faziam fugir sem voltar-se sequer; nunca pudera
suportar a vista das faces deformadas, os buracos roídos do nariz por onde o pus escorria,
os olhos raiados de sangue e sem pálpebras, as mãos sem dedos e aquele jeito contínuo de
coçar as feridas; adivinhava de longe o cheiro pesado e nauseante dos leprosos e quando
passava pela gafaria que se estabelecera perto de Assis, metia o cavalo a galope e apertava
as narinas, numa revolta de todos os sentidos, numa incapacidade absoluta de os olhar de
perto e os socorrer como aos outros; quando os via, atirava-lhes a esmola e largava a correr [12]
o mais depressa que podia.

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Chegava aos 20 anos quando a política em Assis tomou aspectos graves; a luta entre
os nobres e a burguesia, que o povo secundava, vinha já de longe; uns defendiam os seus
privilégios feudais, os outros tentavam libertar-se do jugo que principiava a pesar-lhes; de
quando em quando, estalava uma rixa a que a Igreja procurava pôr cobro firmando o seu
prestígio de medianeira e vendo se lhe seria possível obter dos nobres a autoridade que
perdiam e dos burgueses a autoridade que buscavam; nos últimos tempos, a rivalidade fora
tornando-se mais áspera e já várias vezes a multidão amotinada fizera cerco às casas
fortificadas dos nobres; se contavam desastres e muitos tinham ficado estirados pelas setas
ou esmagados pelos cavalos de guerra, também se orgulhavam de vitórias e recordavam os
dias em que as chamas tinham devorado as riquezas dos palácios ou se tinham
desmantelado, a picareta e maço, as muralhas dos castelos.
Quando o impulso das massas populares se tornou mais forte e viram os nobres de
Assis que lhes não poderiam resistir, chamaram em seu auxílio os de Perúgia; diante das
ameaças dos burgueses sempre tinham dito que punham, acima de tudo, a tranquilidade e a
integridade de Assis: se combatiam as pretensões do povo era simplesmente porque elas
ameaçavam a segurança da cidade; mas agora, perante os interesses em perigo, não [13]
hesitavam em solicitar o socorro da gente perugina. A batalha entre as duas forças deu-se
na Ponte de S. João, a meio caminho entre Assis e Perúgia; logo ao primeiro embate, a
cavalaria rompeu as fileiras do povo e cada um procurou a salvação na fuga; poucos
combateram até a última; no grupo que resistiu mais tenaz, disposto a não ceder ao inimigo
o campo de luta, contava-se Francisco; bateu-se enquanto pôde; por fim, quando já o braço
fraquejava, a rendição dos companheiros impossibilitou-o de continuar a defesa;
prenderam-no e conduziram-no com os outros ao cárcere de Perúgia.
A derrota abatera todos os espíritos; os vencidos, pelas frestas estreitas, olhavam
com melancolia a paisagem onde tudo era livre; outros, estendidos sobre os leitos de palha,
abandonavam-se a todos os desalentos, deixavam-se tomar das tristezas mais fundas. Só
Francisco conservara a sua alegria, o brilhante olhar, o constante sorriso dos banquetes de
Assis e das corridas pelo campo; estava batido e preso: mas uma entusiástica confiança no
futuro, a certeza de dias melhores, um rebate de mundo a construir o enchiam de júbilo, o
tornavam infatigável junto dos camaradas mais soturnos. Quando surgiram as disputas, ele
foi de homem a homem e de bando a bando, exortando-os à reflexão, ao sossego, ao
perdão das recíprocas injúrias, a fazerem despertar na alma o mesmo alto pairar que lhe [14]
animava a sua; e tal era o poder dos seus rogos, o mágico efeito da optimista simpatia, que
o mais bravio dos guerreiros detidos, orgulhoso e rude, se tornou condescendente, manso e
delicado.
Passado um ano, soltaram-no. Todos o acolheram em Assis com o alvoroço e o
calor de quem recebe um amigo; a sua acção na cadeia aumentara a estima que tinham pelo
carácter de Francisco e que tão facilmente lhes fazia perdoar as excentricidades em que o
moço caía. De novo os bandos ruidosos percorreram as ruas, as músicas alegres ressoaram
nos banquetes, os rapazes se sentiram renascer para a vida; o desastre esquecia, todos criam

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efémera a vitória dos nobres; um dia venceriam e até lá se iriam preparando, pela força do
corpo e pela força do espírito; o que não convinha era tomarem, depois da derrota, os ares
de abatimento do escravo que vê impossível a libertação que sonhara; afastam-se os
triunfos de quem os vê inatingíveis e bem lhes dissera Francisco, no desconforto da prisão,
que a alma heróica acaba sempre por vencer, que o ideal a que muito se quis e se olhou
realizado, a despeito de tudo, sempre se impõe e toma corpo e se firma, esplêndido e
perfeito.
Um dia, porém, uma notícia veio cortar o ânimo de todos: Francisco adoecera; os
médicos abanavam a cabeça e não mostravam grande esperança de o salvar; a febre não [15]
deixava o doente, as horas se passavam sem um indício de melhoras; de noite a noite se
estendia ininterrupta a modorra em que entrara Francisco; já o davam por perdido quando,
no fim de semanas, o mal principiou a ceder; depressa pôde receber as breves visitas dos
amigos, com um sorriso que, parecia, se tornara mais acolhedor e doce; finalmente, pôde
descer à loja, dar pelas terras, abordoado à bengala, o seu primeiro passeio. Tudo que via
era novo a seus olhos; as árvores e os regatos que conhecia desde pequeno ganhavam
agora, depois da incerteza, das fadigas da doença, um ar de discreta alegria, de ternura, de
bom acolhimento, de amiga saudação ao companheiro que ressurgia; as andorinhas e
cotovias passavam em rápidos voos, e chilreando, piando, o rodeavam com amor; e os
montes longínquos, num recorte azulado, lhe enviavam, como de eras antigas, a sua
mensagem de pacíficas, suaves harmonias.
Sentado junto às águas frescas que murmuravam, na sombra espessa e carinhosa
dos ulmeiros, pensava Francisco na sua vida passada, no que ela tinha de ruidoso e de
superficial num mundo que se lhe ia revelando feito de meditações silenciosas, de
actividade obstinada e profunda; com o jeito que aprendera nos passos cautelosos e
poderosos da febre, descia até o fundo da sua alma e procurava descobrir o que nela
deixaram os anos em que fora, entre os moços de Assis, o senhor da fortuna e do luxo; mas [16]
o seu andar ressoava como num palácio abandonado; um imenso vazio se revelava a cada
porta aberta, a voz que soltava a ele voltava repercutida pelos ecos, um momento ainda ia
vibrando nos ares, depois fugia para sempre, e o silêncio oprimia-o; nem uma grata
recordação, nem um dia mais firme, nem um sonho mais belo; e ante o seu abatimento,
toda a natureza em volta tomava a doçura, a piedade, o resignado movimento das mães que
embalam, num último consolo, uma criança morta.
E, no entanto, ao passo que a sua existência se desenrolava como uma vã agitação,
quantas vidas belas se tinham construído no mundo; quanto heroísmo, quanta santidade
surgira a erguer o padrão dos homens verdadeiros; ao lado das horas que esses tinham
aproveitado para edificação sua e dos outros, o tempo que Deus lhe concedera, ele o
gastara na tarefa mesquinha da loja, a engodar os clientes, na constante preocupação do
dinheiro, que depois gastaria sem contar em jóias e vinhos, iguarias e vestidos. Como
louco, estragara todo o bem que o céu acumulara no seu peito; uma força íntima o impelia
para grandes empresas e jamais a atendera, jamais pensara nos meios a fornecer-lhe para

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que se pudesse empregar e expandir; à fortuna da alma fizera pior que à fortuna do corpo:
deixara-a enterrada e inútil, como tesouro de avarento; urgia reparar, na medida do
[17]
possível, o erro cometido, tentar o caminho verdadeiro que o pensamento lhe mostrava.
Admiraram-se os amigos de ver que Francisco aparecia menos pelos festins;
quando conseguiam alcançá-lo, notavam que donde a onde mergulhava num súbito silêncio
e os olhos se lhe perdiam como numa visão que o transportava muito além da sala do
banquete; mas bastava uma exclamação para que ele voltasse ao ar habitual e fosse o mais
amável de todos os convivas. Na loja pouco o viam; saía, por vezes ao romper da manhã, e
voltava já com as estrelas a fulgirem no céu; sabia-se que passava horas a olhar o horizonte,
tão preso no seu meditar que raro dava pelos caminhantes que o saudavam. Todas as vidas
possíveis se lhe representavam no espírito; viu-se frade beneditino, nas abadias omni-
ponentes e prósperas, curvado sobre os seus manuscritos, e repeliu a ideia; não o prendeu
ser lavrador rico, com seus campos sem fim, as dezenas de bois, os servos obedientes aos
mandados, a trabalhar de sol a sol, depois, no tempo das colheitas, a abundância de pão e
vinho e fruta dos pomares; começava a detestar o comércio, o ambiente das lojas, a luta
áspera pelos ganhos, a usura e o cálculo; subitamente, a imagem de um cavaleiro lhe surgiu
tão nítida, tão clara e atraente no cortejo de visões que se levantou de salto e correu para a
cidade. Encontrara a perfeição que lhe convinha.
Justamente por esse tempo retumbava pela Itália o clamor da guerra e por toda a [18]
parte se espalhava a fama de Gauthier de Brienne, que valorosamente combatia os alemães;
uma fúria contra o estrangeiro percorria a península e de todas as cidades os soldados
partiam a juntar-se às tropas do valente Gauthier; na própria Assis um fidalgo recrutava a
sua gente e a ele se dirigiu Francisco, a pedir-lhe que o levasse consigo; o nobre recebeu-o
com prazer e disse-lhe que se fosse preparando, porque dentro em pouco partiriam.
Facilmente obteve do pai a licença que pediu; não desagradava a Bernardone que o filho
seguisse a carreira das armas; a família era rica, precisava de ser nobre, depressa a coragem
de Francisco conseguiria o ambicionado privilégio. Toda a barreira se aplanava diante dos
desejos de Francisco, todas as portas se lhe abriam, vencidas pelo entusiasmo que o moço
punha na empresa; verdadeiramente, devia ser aquela a rota que Deus queria que seguisse.
Não podia pensar senão nas futuras batalhas, na tomada dos castelos à escala viva,
em tardes de glória, nos triunfais desfiles pelas ruas de cidades conquistadas; o esplendor
dos torneios confundia-se com o burburinho dos combates; não saía das lojas dos
armeiros, escolhendo as melhores peças; todos os cavalariços de Assis tinham recebido
recado de lhe trazer, para que escolhesse, os cavalos mais fogosos e belos que pudessem
descobrir. Os dias lhe pareciam curtos para os preparativos que ainda tinha que fazer, de [19]
noite acordava a pensar nos pormenores da armadura, os projectos corriam em rápidos
quadros pela mente excitada.
E sonhou que o levavam a um palácio magnífico que se erguia no meio de um
jardim de maravilha; as rosas curvavam-se ao passar o moço cavaleiro, as ramarias
segredavam ao vento os seus prodígios de generoso valor; subiu as escadas de oiro e

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mármore, as grandes portas se abriam à voz de quem o ia guiando; debalde procurava ver-
lhe a face: só ouvia as palavras rolarem num tom sereno e majestoso; numa sala, um monte
de armas brilhava, em reflexos doirados e lucilações de pedrarias; e, a uma pergunta de
Francisco, a voz respondeu que todas aquelas armas lhe haviam de pertencer, lá para o fim
das batalhas; umas guardaria para si, as outras daria ao numeroso exército que havia de
segui-lo.
Animado pelo sonho, mais ardente foi o seu zelo no dia seguinte; tomou mestres de
armas, que lhe revelavam os golpes secretos e os processos infalíveis que anos de
experiência lhes tinham ensinado; encontrado o corcel que convinha para tão impetuoso
guerreiro, galopou sobre ele pelas ruas de Assis, com terror dos passeantes, que se
encostavam às paredes ou se metiam pelas portas; percorria as estradas em torno da cidade
e voltava coberto de poeira, moído, mas radiante, já num antegosto das fadigas da guerra.
[20]
Acabava um dia de recolher o cavalo e caminhava deslumbrante, com as armas que
espelhavam ao sol, levando após ele os olhos das damas, quando encontrou um
companheiro que se alistara também para combater os alemães; mas era pobre, e o subsídio
que lhe dera o fidalgo não chegava para comprar o equipamento necessário; mesmo o que
pudera adquirir era velho e nenhuma diligência fazia desaparecer as manchas de ferrugem e
o abolado das lâminas; o rapaz saudou Francisco e considerou com tristeza e inveja as
armas esplêndidas do amigo; Francisco ia seguir, mas percebeu o que se passava no ânimo
do outro; foi-o levando para uma ruela escura e solitária e, ante o espanto do moço, trocou
pelas dele as armas que trazia.
Poucos dias depois, partiram para a Apúlia; ao chegarem a Spoleto, toda a excitação
de Francisco se abateu bruscamente e a fadiga em que andava, mal curado ainda da outra
doença, prostrou-o de novo; os camaradas seguiram, deixando-o sozinho em Spoleto, e, no
quarto inconfortável da hospedaria, depois do desespero de ver irrealizável o seu sonho,
uma reflexão entrou com ele; foi uma ideia vaga, que mal se formava, depois se desvanecia,
se entremostrava, se perdia, reaparecia confusa no turbilhão da febre; a pouco e pouco se
precisou e de momento a momento se afirmou sobre as outras; finalmente, toda a sua
atenção se lhe prendeu ao novo pensamento e foram, no silêncio da noite, à luz incerta da [21]
candeia, as meditações que o tomavam acima da doença e lhe ocupavam todo o espírito,
como poucos meses antes, à beira do regato.
Decerto era bela e útil a vida de guerreiro, elevada para além do vulgar, toda
ocupada no amor da glória e no culto da justiça; bater-se pelos oprimidos, pelas donzelas
indefesas, pelas viúvas e pelos pobres era, sem dúvida, uma nobre tarefa; o desinteresse e o
altruísmo, a valentia e a pureza levavam a alma do cavaleiro às regiões onde só chegam os
melhores; mas sentia que, para cima dessa existência de sacrifício e de luta, outra se abria
mais perfeita, mais digna de lhe solicitar o espírito; mal a ia definir, logo ela lhe fugia, se
furtava; a cada momento, parecia aproximar-se a revelação desejada e a cada momento a
percebia distante, inutilmente se esforçava por dar forma à nuvem caprichosa que vogava
no azul; as suas pobres mãos não chegavam ao céu e o sonho seguia, indeciso, tentador;

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por vezes, adivinhava perto de si o vulto do futuro, tinha o confuso sentimento dos
contornos, quase o tocava e possuía; mas era em vão, não chegara ainda a hora dos
triunfos; entretanto, a luta se tornava furiosa, ameaçava abatê-lo para sempre; precisava de
amparo e de conselho e não via ninguém que o ajudasse, ninguém que percebesse o transe
doloroso.
Mal pôde, levantou-se e regressou a Assis; foi um espanto na cidade, logo seguido
[22]
dum comentário risonho; não havia mais que esperar de um extravagante como Francisco;
certamente não fizera todos aqueles preparativos de guerra senão para chamar as atenções;
um puro gosto de originalidade o levara a substituir pela armadura doirada o pano grosseiro
que mandava coser nos vestuários; a cavalgada fora em vez dum banquete. O pai admirou-
se do rápido regresso e de novo Francisco teve de ouvir os seus conselhos; era preciso
fixar-se, não dar aos outros a ideia de que era um indeciso ou apenas viera ao mundo para
realizar os seus caprichos, por mais caros e perigosos que fossem; os amigos tomaram-no
também à sua conta; uns troçavam discretamente, outros se alegraram, no íntimo, de que
Francisco não tivesse conquistado a glória; mas aos conselhos, às zombarias e às vitórias
secretas, só respondia que outra cavalaria o estava esperando, mais nobre e famosa; um dia
o veriam.
Mais e mais se lhe afirmava a certeza de encontrar o seu caminho. Decididamente,
nenhuma das vidas que o mundo lhe mostrava já feitas o podia atrair; a dificuldade no
início da marcha estava em que ele próprio tinha de talhar, no espesso matagal que
ninguém conhecia, a estrada que o havia de levar ao palácio verdadeiro e às armas perfeitas;
já se não punha agora, como em outros tempos, o problema da escolha; só tinha de esperar
a ocasião favorável, o sinal que aos outros passaria oculto, mas que os seus olhos do
[23]
espírito, já abertos, facilmente veriam. Entretanto, os dias não corriam sem luta; todo o
antigo, todo o gosto das frívolas horas morreriam para sempre; nada, porém, viera tomar o
lugar inocupado e a sua alma era como os abismos em que se tomba nos sonhos, em que se
cai, como uma pena, nos últimos limites dos espaços; um vácuo absoluto se lhe fizera no
peito, nada o interessava, nada o prendia com demora.
Em certos momentos vinha-lhe o desejo de se aturdir, de se embriagar de barulho,
de música e de cantos, de sentir-se viver sem um esforço, levado pelas ondas de um mar
encapelado, atirado de vaga para vaga, entre o estrondo e a espuma. Ofereceu de novo as
festas e banquetes e toda a mocidade de Assis reconheceu Francisco no rapaz que bebia e
cantava e dançava e se ria; mais ainda do que outrora se mostrava ruidoso e alegre; parecia
que toda a aventura lhe renovara as forças de viver e se via no mundo mais ágil e desperto,
aplaudindo toda a ideia caprichosa que acudia aos camaradas, inventando ele próprio tudo
que uma fantasia rica e desesperada pode produzir de extravagante. Os burgueses, com um
sorriso de indulgência, murmuravam que a idade não dava mostras de acalmar os ímpetos
de Francisco, e só alguns mais severos lamentavam a pouca sorte do mercador de panos.
Uma noite resolveu celebrar o começo de Verão com a festa mais bela e
dispendiosa que se tinha dado em Assis; todos os amigos e conhecidos receberam convite [24]

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para o banquete magnífico; partiram correios à procura dos mais finos manjares e dos
vinhos mais raros; na mesa, entre flores, brilhavam os cristais, distinguiam-se os tons
macios e sumptuosos da baixela de prata; os veludos, as rendas e as jóias, os bordados a
ouro dos trajos dos convivas faziam à roda uma cercadura opulenta e variada; os melhores
músicos da Úmbria tocavam sobre um estrado e, de quando em quando, um jogral,
acompanhando-se à viola, dizia as queixas dos cavaleiros enamorados e as tristezas da
pastora abandonada. O ruído das conversas e dos risos enchia a sala do festim; Francisco
era de todos o mais vivo, o mais fino, o mais ardente na réplica, o mais pronto no coro às
cantigas do jogral; quando já o banquete ia findando, elegeram-no rei da juventude,
arranjaram-lhe um ceptro; depois saíram em cortejo pelas ruas.
Fora, na calma, perfumada noite de Maio, Assis inteira resplandecia ao luar; uma
paz imensa se estendia sobre as casas, as igrejas, as praças desertas, ganhava, mais longe, os
montes e os vales, os campos e os bosques; o céu cobria a terra adormecida com um véu
luminoso; aqui e além, um campanário se erguia e a sua mancha mais branca subia, pura e
fina, como o vulto de um anjo; para os lados da serra, três ciprestes isolados levantavam, à
luz claríssima, a estatura elegante e austera, num exemplo de recolhimento e de esforço [25]
interior. Toda a beleza da noite feriu de súbito a alma de Francisco, num instante a
arrancou ao ambiente de artifício e de loucura em que se tinha mergulhado; o canto alegre
dos amigos pareceu-lhe profanar o sonho em que o mundo se embalava; foi deixando que
se adiantassem, breve o último rumor se perdeu numa rua distante; então, todo banhado
em suavidade, em bondade, em amor, rogou Francisco que Deus lhe desse uma vida assim
bela, consoladora e ampla como a noite sem par.

II

Era-lhe impossível concentrar as forças de alma, que sentia necessárias para


alcançar a desejada revelação, na vida ocupada e dispersa de Assis. O trabalho da loja,
depois as reuniões e as festas, tomavam-lhe todo o tempo e de tal modo o distraíam que
poucos eram os momentos em que o espírito se podia totalmente dedicar ao que lhe
aparecia como a empresa maior. Via claramente que só o homem solitário encontra os
caminhos do futuro, que só na meditação recolhida, no silencioso isolamento se vão
apurando os rijos aços que abrem depois, irresistíveis, as selvas encobertas. Começaram a
tê-lo menos pelo balcão de Bernardone e pelas salas dos amigos; sabia-se que em quase
todas as manhãs saía da cidade para os lados do monte e só voltava pela noite fechada; [26]
muitas vezes se demorava por fora e já a mãe, inquieta, mandava procurá-lo, quando
chegava sorridente e calmo.
Só um amigo de maior confiança o acompanhava nalguns dias; esse mesmo não
penetrava nas grutas escuras e húmidas da montanha onde Francisco se sumia; paciente,
esperava que o companheiro saísse e entretinha-se a olhar os voos ritmados e dourados das
pombas, os carreiros que passavam pela estrada do vale; quando Francisco lhe surgia, nem

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ousava perguntar o que estivera fazendo; grande mistério devia ser e a sua discrição
impedia-o de o querer penetrar; vagamente adivinhava que a ocupação era complexa e
estranha; havia no rosto do amigo, quando aparecia à entrada da cova, uma expressão mista
de alegria, de confiança, de reflexão e de angústia; os olhos perdiam-se numa contemplação
que os fazia resplandecer de juventude interior, mas a testa se vincava, dolorosa, como na
busca de alguém que se furtava ou num pensamento que o pungia; não havia, porém, uma
palavra de abandono e confidência.
Dificilmente poderia Francisco explicar ao companheiro o que se passava no seu
espírito durante as meditações da gruta; até agora, nenhuma solução lhe aparecera para o
grande problema; havia a mesma incerteza quanto ao ponto último que atingiria na viagem;
só podia assegurar que a tinha começado, que a sua existência até aí, que todos os sonhos [27]
de outrora se iam perdendo na distância, cada vez mais velozes, cada vez mais longínquos.
A alma lhe ia adquirindo unidade e fervor; o tempo dos acasos e das horas sem rumo
acabava de vez; uma energia determinada o tornava robusto e o impelia incansavelmente;
todo o ser se empregava na tarefa, com tenacidade e confiança; sorria dos dias em que
julgava que poderia alcançar o alvo desejado sem ter primeiro disciplinado a férvida
vontade, imposto ordem aos desejos que rompiam apressados e confusos; não sabia ainda
para onde marchar, mas. já sentia, prontos para tudo, os fortes pés de andarilho.
Só um cuidado de quando em quando o vinha perturbar; o pai estava de novo
ausente e havia que atender à administração da casa, vigiar os caixeiros, tratar dos
fornecimentos, receber as contas, perder o seu tempo em miúdas questões comerciais;
quantas vezes teve de interromper as suas reflexões para voltar ao mundo do dinheiro,
disputar com outros lojistas sobre fazendas e contratos, ter de novo o seu sorriso e a sua
cortesia com um freguês renitente que o empregado não conseguia convencer. Como se
sentiria feliz, se não tivesse que tratar de tais assuntos, se não fosse o dono daquela loja que
só via como obstáculo no caminho que era o seu; chegou a invejar os mendigos que,
sentados na escadaria das igrejas, tomavam o sol e podiam livremente dispor do seu dia,
sem enredos de negócios e de contas; e ainda vagos sobre as paredes da gruta, sobre as [28]
árvores do bosque, sobre o céu e a terra, lhe surgiam, como a imagem radiosa e casta de
uma noiva, o vulto atraente, os encantos subtis da Senhora Pobreza.
Frequentava agora mais os homens da Igreja; como todos em Assis, eles o acolhiam
com aprazimento e bondade; o moço esmoler, caridoso, afável, respeitador, lhes ganhava as
simpatias; nunca havia na sua boca uma palavra que os pudesse ferir e a sua devoção era
sem mácula; submisso aos conselhos dos sacerdotes, atentamente os escutava e cumpria
sem demora todo o pedido que lhe faziam; notavam o crescente afastamento da vida
mundana que o prendera; dias inteiros o encontravam meditando a um canto obscuro das
igrejas e suspeitavam os mais sensíveis de que algum grande movimento se operava na alma
de Francisco; sobretudo o recebia com brandura e afecto inteligente o bispo Guido;
delicadamente o encorajava a conservar-se longe do seu ideal de outros tempos, a voltar-se
para Deus com deliberação e firmeza; sempre o teria ao seu dispor para o ajudar nos

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momentos difíceis, nas horas em que o mundo e a dúvida se juntam para as grandes
batalhas.
O conhecimento superficial que até aí tivera das ideias e figuras cristãs ia-se
tornando mais profundo; atentamente, ouviu e leu o Evangelho e cada palavra maravilhosa
[29]
o penetrava, lhe dava novas forças, parecia ir abrindo à sua frente a cerrada floresta que o
havia detido; cada instante sentia menos confuso, menos perdido na funda névoa, o
modelo por que teria de se formar; a vida desses tempos distantes da Judeia lhe surgia
despida de tudo quanto detestava na sua própria vida; o bando humilde e pobre que seguia
de aldeia para aldeia, que pescava nas águas tranquilas dos lagos e pregava nas tardes
luminosas, ia-o levando consigo a pouco e pouco, no encanto das palavras de consolação e
de esperança, todo atraído por aquele ideal de mansidão, de ternura discreta, por aquele
desprezo sorridente dos bens do mundo, de toda a sua frivolidade, de toda a sua agitação,
indelicada e inútil.
Tão fundo o tomava o livro divino, tão vivo o quadro se lhe representava na mente,
que foi como se tivesse vivido nesse tempo, como se tivesse com os outros percorrido o
distante país e se sentisse agora todo preso na saudade de Jesus; recordava-lhe as palavras
repassadas de bondade, o peito carinhoso que acolhia os pequeninos e estancava as
lágrimas dos que choravam os mortos, o zelo infatigável que o levava contra o publicano e
o hipócrita, o calmo, poderoso entusiasmo com que falava do reino de seu pai e o queria
estabelecer, duradoiro, fraterno, harmonioso, entre os homens rudes que o repeliam e
troçavam; por um momento tinha brilhado no mundo a pura luz do espírito; mas logo [30]
ventos bravios tinham corrido sobre ela e a tinham apagado; os últimos apóstolos
perdiam-se nos séculos; só ele ficara, senhor do sentido das palavras de Jesus, animado
duma leve centelha do grande fogo de amor que ardia na alma heróica do Nazareno.
Senti-la e calar-se era trair o Mestre, era faltar ao que devia à bondade com que
sempre o acolhera, à verdade que lhe tinha revelado; faltar também ao que devia aos seus
irmãos homens, perdidos nas mesquinhas tarefas da sua vida diária, sem uma voz que lhes
dissesse o universo ideal, pleno de beleza, que podemos construir dentro de nós mesmos,
sem um gesto que os viesse consolar de todos os desastres, sem uma palavra que os guiasse
pelo caminho do bem; conservar-se como estava, naquele egoísmo, naquela indiferença
pelo mal que o rodeava, naquela criminosa ingratidão por quem o tinha recolhido e
salvado, fundamente repugnava à sensibilidade, à cavalheiresca honestidade, ao ardor de
acção da alma de Francisco; havia, pois, que procurar de que maneira poderia servir Jesus,
trazer de novo ao mundo a viva recordação do seu apostolado magnífico.
Mas teria forças para tanto? A pergunta angustiosa torturava-o, punha-o horas
inteiras desvelado no leito, ocupava o maior do seu tempo de meditação nas grutas e nas
igrejas; nada fizera que o preparasse para a imensa tarefa, que adivinhava difícil e perigosa; [31]
tudo fora nele dissipação, descuidado dia a dia, contínuo improvisar; sentia-se fraco de
corpo e de alma para erguer o rude fardo; Jesus dissera aos que se propunham segui-lo que
tomasse cada um a sua cruz, e Francisco via-se débil para o madeiro que devia carregar

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pelas ásperas veredas, sob o sol impiedoso, entre as vaias do povo, até calvários ignorados,
mas seguros; certamente não seria bastante todo o desejo de se dedicar, de minorar as
dores, de levar um perdão a cada crime, de ungir de um bálsamo de amor as feridas mais
cruéis; outras forças se tinham de encontrar, outra robustez de espírito que o levasse a
dominar tudo o que o mundo lhe pusesse de barreira e amargor.
Daí por diante, toda a oração de Francisco foi uma busca enérgica e implacável dos
fundamentos em que havia de firmar todo o futuro proceder; dissecou a sua alma, desceu
às profundidades mais remotas, como os homens que procuram, entre os lodos dos rios, o
granito inabalável em que têm de assentar as pontes ideadas; no contínuo exercício do seu
querer, na tensão interior que vai esculpindo a rocha mais rebelde, encontrou o primeiro
alicerce; à luz clara que lhe rompia da consciência, agora sólida, do seu objectivo, distinguiu
os defeitos que precisava de combater, iluminou os inimigos, despojando-os das trevas que
tinham sido a sua arma mais forte; a redobrada meditação nos princípios que descobrira, o
contacto diário com o que havia de mais puro, de essencial, na faina que tomava sobre si, [32]
começavam a animá-lo; a empresa parecia-lhe menos impossível do que julgara nos
primeiros tempos; quando se sentisse mais seguro ainda, largaria, confiado, como uma ave
que se lança no azul, senhora de si e senhora dos ares.
A meditação, no entanto, não lhe absorvia todo o tempo; o amor de Jesus não lhe
permitia que, todo entregue à contemplação das suas perfeições, desprezasse os lugares em
que o adoram os homens; por sua diligência, tiveram as igrejas de Assis flores frescas em
todos os altares, alfaias que brilhavam, roupas de preço, paramentos em que o ouro novo
resplandecia às luzes; o dinheiro de Bernardone correu amplamente para as caixas
eclesiásticas, com a recomendação expressa de que se empregasse em tudo que pudesse
alindar, enfeitar os templos, torná-los mais dignos de serem a habitação do Senhor;
mandaram-se lavrar ferros novos para estampar as hóstias e marcá-las com um fino
desenho que avultava delicado na imaculada alvura; em tudo exigia Francisco a nitidez, a
perfeição, a religiosa elegância, a fina graça em que idealmente envolvia Jesus; o descuido
grosseiro, o luxo brutal, a sordidez e a avareza pareciam-lhe igualmente impróprios de uma
alma cristã.
Com tudo isto, naturalmente, sofriam os negócios de panos; a loja, abandonada aos
caixeiros e à tímida, hesitante direcção da mãe de Francisco, não dava o rendimento que se [33]
devia esperar; já por duas vezes, o pai, ao voltar das viagens, se queixara do modo por que
as coisas corriam; encontrara em Francisco deferência e submissão, as maneiras de sempre,
medidas e corteses; mas partira com a suspeita de que havia naquilo tudo um mistério que
não queria revelar-lhe; porventura uma história de amor; bem insistira, bem pusera em
marcha habilidades e rudes modos; mas o moço sorria, pousava nele os olhos tranquilos e
calava-se. O que mais o fizera supor qualquer mudança importante fora o saber que nos
últimos meses não tinha ido nem a uma festa, nem a um baile; os companheiros não
conseguiam apanhá-lo, tão fugitivo andava sempre, tão alheado de tudo que fizera a sua
vida; em Francisco nascia um homem novo que ninguém reconhecia.

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Subitamente, com uma breve palavra de aviso à mãe — que o estranhava como os
outros, mas brandamente se calava, sem perder a confiança no seu grande futuro — largou
a caminho de Roma. Levava-o o desejo de visitar os túmulos dos Apóstolos, de ir meditar
junto das pedras que guardavam os restos dos que tinham visto Jesus, dos que tinham
lidado perto dele na tarefa em que também queria tomar parte. Meteu-se na fila dos
peregrinos e o sumptuoso vestuário tornou-o logo notado por todos: admiraram os finos
cambiantes, o brilho dos cetins, as pedras que cintilavam nos adereços de Francisco; a mão [34]
pousava, delicada, no punho duma adaga com embutidos de oiro. A princípio estivera
Francisco todo cheio da emoção de se encontrar tão próximo dos túmulos; depois reparou
nos olhares que o procuravam, no murmúrio de homenagem que corria na boca dos mais
próximos; sem o querer, tomou uma atitude mais galante, fez valer a riqueza do fato, do
colar e dos anéis; quando chegou a sua vez, atirou, pela janela gradeada do recinto, um
grande punhado de oiro, que saltou, tilintou, rolou sonoro pelo lajedo.
Então, foi como se tivesse despertado dum sonho; partiu confuso da igreja, esteve
um momento escondido na penumbra da portada, varado pelo espanto de o ter vencido
uma louca vaidade, depois saiu ao adro; uma multidão de mendigos assediava os
peregrinos; rapidamente, pediu a um que o seguisse e, logo que viu o sítio próprio,
propôs-lhe que trocassem os fatos; o pobre olhou-o e, tomando-o por um doido, decidiu
aproveitar a ocasião que lhe ofereciam. Quando Francisco voltou a visitar os túmulos,
nenhum dos homens que o tinham visto havia pouco seria capaz de o reconhecer no
pedinte que se embrulhava numa capa esfarrapada e caminhava descalço, apoiado a um
pau; foi longa a oração que rezou, prostrado no solo, junto do túmulo dos Apóstolos;
acabada a sua prece, veio reunir-se aos outros que se atropelavam no adro e pediu esmola
humildemente, na doce língua francesa que tanto amava e lhe parecia a mais própria para [35]
exprimir toda a alegria que lhe inundava a alma; comeu o rancho dos mendigos numa
escudela de madeira e cantou, ante o pasmo dos outros, os harmoniosos versos provençais.
Agora lhe parecia possível que a Senhora Pobreza o quisesse um dia receber por esposo.
Voltou a Assis e, poucos dias depois, saiu a cavalo num passeio pelo campo; mal
transpusera as portas da cidade, quando um leproso que se dirigia ao lazareto se lhe pôs
diante, a pedir esmola; Francisco puxou a rédea do cavalo, para o meter num galope e fugir
do monstro repelente; mas uma força interior, dominadora, o deteve no gesto: Jesus ficaria;
ficou também, numa tremura de todo o corpo, silencioso e imóvel, ante o leproso, que
continuava de mão estendida, olhando-o fito; a face desaparecia-lhe em pústulas, todo ele
escorria sangue e pus; um cheiro hediondo tornava o ar irrespirável; sem desviar a vista do
rosto repugnante, tomou Francisco a bolsa e, fazendo o cavalo avançar um passo mais, foi
depô-la na pobre mão mutilada; o leproso, porém, não se mexera; parecia meditar e
Francisco claramente leu nos olhos que o fitavam a imensa miséria, o inexprimível
desespero daquele homem que todos repeliam; o seu irmão leproso não reclamava só a
esmola, reclamava também a compaixão e o amor; então desceu Francisco do cavalo,

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tomou a mão do infeliz e beijou-lha num beijo demorado; depois, aproximando-se mais, [36]
pôs-lhe na face o mesmo beijo heróico e fraternal.
Prosseguiu o leproso o seu caminho para os lados onde ficava a gafaria e Francisco
ficou na estrada, sem nada ver, todo mergulhado no que se passava no seu espírito; Deus
lhe dava as forças para empreender a missão que desejava, nada havia agora que não
pudesse tentar; já era digno de seguir de longe, humildemente, o exemplo de Cristo, de o
ver como o modelo que se tem de imitar; a mão do Senhor o tomara, o salvava da vida
inútil e perigosa a que parecia condenado, lhe mostrava a mais bela das estradas que
poderia percorrer; como a um novo filho pródigo o acolhiam depois dos erros, e com tanta
bondade, com tanta piedade, com tão grande empenho de o fazerem nobre o ensinavam e
guiavam, que a alma se lhe enchia de agradecida ternura e toda se queria abandonar,
sorridente e feliz, cheia de uma pura alegria, aos desígnios do céu; como um servo diligente,
jubiloso havia de servir o espírito imortal, proclamar o seu reino pelo mundo, lançar-lhe as
raízes profundas no coração dos homens.
Impetuoso e ardente, trepou à gafaria, sorriu ao irmão leproso que veio abrir a
porta, beijou-lhe a mão como fizera ao outro; os leprosos, admirados, juntaram-se-lhe à
volta, e a todos renovou o gesto caridoso; o dia inteiro empregou em limpar-lhes as feridas,
em banhá-los, em mudar-lhes as roupas, em dar a toda a casa um ar mais acolhedor e [37]
confortável; deixou-lhes todas as jóias que trazia, todas as moedas que pôde reunir,
prometendo que na manhã seguinte ali o teriam de novo, com mantimentos, dinheiro e
finos panos de que os queria vestir; foi sempre tão amável, tão alegre, tão hábil em lhes
vencer as desconfianças que já todos os leprosos o tratavam como amigo e celebravam
aquele dia em que, pela primeira vez, depois que a doença os atacara, alguém lhes dava mais
do que a esmola repugnada que se atira de longe; e tinha fechado há muito a noite quando
Francisco, cantando e rindo, meteu em direcção a Assis.
Uma nova admiração tomou os parentes e amigos de Francisco; viam-no agora
sempre contente, resplandecente de vida, sem um instante de abatimento, sem uma hora
em que se lhe amortecesse o fogo do olhar ou se deixassem de abrir os lábios num sorriso;
comia à pressa, levantava-se de súbito, encontravam-no em cabelo pelas ruas, quase
correndo, outras vezes tão absorto no pensamento que o levava que ia esbarrando com
todos que encontrava, sem atentar nos gestos de espanto ou nas duras palavras que o
seguiam; despreocupado e feliz, saudava os caixeiros e os fregueses, mas não parava, como
outrora, a examinar fazendas e a discutir os preços; continuamente cantarolava e tanto se
enlevava na melodia que o tinham surpreendido a dançar sozinho pela casa.
[38]
Tinham julgado a princípio que se tratava da eterna extravagância de Francisco e
que dentro de alguns dias o acesso tomaria outra forma; mas as semanas foram passando e
o rapaz continuava na mesma, se não era que os sintomas lhes pareciam agravados.
Aventuraram alguns mais íntimos as perguntas que a todos acudiam; quiseram saber as
origens daquele contentamento inesgotável, as razões que o levavam a correr, e a dançar e
cantar; certamente nalguma gruta das que frequentava encontrara um tesoiro magnífico e

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não lhes queria revelar a existência para que não o roubassem; ou então, vira a noiva que
lhe convinha e todo se revendo em felicidade nem dizia o nome de quem o cativara; mas
renunciavam a penetrar o mistério quando Francisco, afectuoso, entusiasta e irónico,
assegurava a uns que tinha de facto encontrado um tesoiro esplêndido, aos outros que
dentro em pouco lhes poderia mostrar a sua noiva.
De tudo se esquecia, menos dos pobres e das igrejas. Acumulava no seu quarto
quantidades de pão que mandava ou ia ele mesmo distribuir pelos mendigos da cidade;
mais do que dantes espalhava as bolsas de oiro por todo o chapéu e todo o manto que se
lhe estendia diante; deu colares, armas tauxiadas, cintos bordados a pérolas miúdas,
chapéus emplumados, uma tarde em que ele mesmo se viu pobre por ter entregue tudo que
levava consigo, a própria camisa que vestia. O que não dava aos mendigos, que se [39]
precipitavam em bandos mal o viam, ia depô-lo nos templos; nada lhe parecia suficiente em
boa qualidade e em beleza para oferecer às igrejas; grande era a sua dívida com Deus e
jamais a poderia pagar; só dava, a pedintes e aos lugares de culto, as migalhas do grande
banquete que se sentia obrigado a oferecer-lhes, desde que a vida se lhe revelara no seu
verdadeiro e puro sentido.
Frequentemente se deixava ficar pela igrejinha de S. Damião; mal luzia a
madrugada, já Francisco ouvia a missa que o padre velho e lento dizia para os poucos
camponeses que habitavam nas cercanias; quando eles retiravam, ficava ainda horas inteiras
ajoelhado junto do altar em que se erguia um crucifixo; tudo era paz e frescura no interior
da capela, com as rosas que ele próprio renovara, as luzes de cera que ardiam altas e
direitas, as toalhas de linho que alvejavam docemente. Tinha encontrado a igreja bem suja e
descuidada; agora mesmo, as paredes ameaçavam ruína, largas fendas se abriam entre as
pedras, as andorinhas entravam livremente pelas aberturas do telhado; já no que pudera
remediara o abandono: tinha enchido de flores as velhas jarras, trazido molhos de velas,
varrido ele mesmo o chão poeirento, lavado com amor as obras de madeira; tinha dado ao
padre o dinheiro bastante para que houvesse sempre azeite e se pudessem pagar todas as [40]
despesas do culto, mas o bom homem, timidamente, vira ainda em Francisco o original do
costume e receara a cólera do mercador Bernardone.
Nada, porém, do que fizera pela capela satisfazia Francisco; os pequenos arranjos,
os enfeites mimosos podiam encantar por uns momentos os olhos dos fiéis, tornar mais
agradável o ambiente do templo; mas eram inúteis no que respeitava à solidez da igreja: o
amor da vida cómoda levara gerações de padres a não cuidarem dela como o deviam fazer,
como lho impunha a sua condição de servidores de Cristo; num dia que talvez não viesse
muito longe ela ruiria de todo e os espíritos do mal triunfariam sobre os destroços; mais
que todas lhe parecia urgente a tarefa de se reconstruir a igreja, de lhe dar uma nova
segurança, de a mostrar renascida a todos que a buscassem; e pensava nas almas que se
teriam perdido porque a igreja os afastara com o seu aspecto decadente e desprezível; o
padre, seu amigo, a quem tratava tão bem, a quem se mostrava tão reverente e humilde,
decerto lhe permitiria que lançasse mãos à obra e a levasse a bom termo.

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Precisava, no entanto, de ter dinheiro para comprar os materiais necessários; tanto


gastara que já pouco tinha de que pudesse dispor; mas a loja era rica, e logo Francisco foi
apartando as peças de fazenda que mais poderiam render; depois, pelo meio da noite,
preparou-se para ir vendê-las à feira de Foligno; estabeleceu o seu lugar e o negócio correu [41]
bem: todo o dia Francisco se bateu por que a mercadoria produzisse o máximo possível;
regateou, insistiu, louvou a qualidade, recusou as ofertas, manteve-se nas suas posições;
como os tecidos eram, de facto, os melhores que apareciam na feira, acabou por os vender
e por ter junto de si um grande saco de moedas; por fim, pôs em praça o cavalo: custou-lhe
vender o animal que o levara a Spoleto e estivera no encontro com o leproso; mas o
interesse da igreja assim o exigia; e foi a pé, fatigado da longa caminhada e do dia de luta,
que Francisco regressou a S. Damião e entregou ao sacerdote o que ganhara na feira; o
padre, com os receios de sempre, recusou-se a recebê-lo, foi colocar o dinheiro no vão de
uma janela, disposto a restituí-lo logo que passasse a Francisco o seu ataque de loucura.
O pai, entretanto, regressara de França e dera pela falta de Francisco, do cavalo e
das fazendas; inquiriu do que se tinha passado e soube pela mulher e pelos caixeiros que o
rapaz há muito tempo ficava dias inteiros fora de casa, abandonando a loja e meditando
pelas paragens de S. Damião; um vizinho que estivera na feira informou-o da venda dos
panos e cavalo e de como Francisco tomara alegremente a estrada que levava à capelinha.
Bernardone, cego pela grossa cólera que o invadia, correu a S. Damião, quase bateu no
padre que mal o olhava, cheio de susto; Francisco, ao pressentir o pai, fugira para o mato, [42]
fora esconder-se numa gruta, irresoluto sobre o que havia a fazer naquele transe; quando,
animado pelo silêncio que se fizera na capela, se decidiu a voltar, o padre contou que dera a
seu pai todo o dinheiro e o metera, já mais consolado, pelo caminho de Assis.
Os dias seguintes, passou-os Francisco na gruta, perto da igreja; nem aparecia para
comer na pobre casa do padre; e era este quem, tomado de piedade, já suspeitoso de que
não havia no rico senhor da cidade um simples capricho passageiro, lhe ia levar os
alimentos; sempre o encontrou a orar e era-lhe difícil despertar Francisco da meditação
profunda em que mergulhava; às vezes falava-lhe: e o padre, enlevado no misterioso
encanto da voz fina e comovida que lhe dizia a bondade, a mansidão de Cristo, ficava-se a
ouvi-lo, esquecido das horas que passavam, levado também ele em espírito aos tempos
remotos em que Jesus viera ao mundo e no mundo sofrera; às palavras ardentes lhe
surgiam as manhãs de esperança e a noite lívida, com as três cruzes sobre o céu; pela
primeira vez, na sua existência de sacerdote, o Evangelho lhe aparecia actual e forte, com
um novo esplendor, como a flor que ia murchando e a água diligente reabriu para a vida,
em perfumes e cores.
Todo penetrado de Cristo, vendo a sua figura delicada e heróica como o único
modelo que era digno servir, não havia agora na alma de Francisco uma só dúvida quanto à [43]

sua vocação: seria, até a hora da morte, o apóstolo, o cavaleiro do Senhor. Mas sentia que
nem toda a resistência da sua vida anterior estava inteiramente quebrada: se não saía da
gruta, se não queria afastar-se de S. Damião, era menos por se encontrar sozinho, livre para

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pensar e preparar-se, do que para não afrontar toda a gente de Assis; adivinhava o que
diriam se o vissem aparecer emaciado pelas privações, com a barba mal cuidada, o fato sujo
e roto; ninguém, decerto, saberia o que se passara no seu íntimo e o desprezo geral cairia
sobre ele. Verdadeiramente era um covarde; o juízo do mundo em nada lhe devia importar,
nem quando o louvassem, nem quando o censurassem; na sua vida actual o importante era
o juízo de Deus, o que lhe dissesse a apurada sensibilidade interior, a forte base moral que a
meditação tinha feito surgir; urgia ir à lide e vencê-la.
Então, pálido, trémulo de emoção, mau grado seu, esperando com angústia o
primeiro grito, desceu de S. Damião, encaminhou-se para a cidade, atravessou a porta da
muralha e, lentamente, foi percorrendo as ruas; o primeiro homem que encontrou olhou-o
com espanto, voltou-se a considerá-lo, sem acreditar no que via; aos brados de outros
chegou gente às janelas, raparigas e damas; vieram à porta das oficinas operários
encarvoados que suavam; a uma esquina, um grupo de garotos saltava os marcos de pedra [44]
entre alaridos e logo, ao darem com Francisco, começaram a puxar-lhe pelo fato e a gritar
que estava doido; atraído pelo tumulto, o rapazio acorreu de todas as ruelas; atiraram-lhe
insultos, encheram-no de lama e de bosta, e já voavam as primeiras pedras, quando
Bernardone surgiu na soleira da loja e reconheceu no louco o Francisco dos seus sonhos de
outrora, o valente guerreiro e o papa poderoso; foi tão vivo o rugido que soltou, tão
colérico o salto, que os garotos, assustados, debandaram, e ele pôde arrastar para dentro de
casa, furiosamente, o moço que nem tentava libertar-se.
Ante o silêncio estarrecido dos caixeiros, chamou-lhe o pai doido e ladrão; em
palavras que se atropelavam misturou os seus projectos, as ilusões da mãe, S. Damião e a
feira de Foligno; dava rudes passadas pela loja, espumando, com grandes repelões à barba e
ao cabelo; por duas vezes foi junto do filho e o sacudiu duramente, com tal ímpeto que
Francisco gemeu; subitamente, teve um soluço, as lágrimas bailaram-lhe nos olhos, ante
aquele derruir de todo o futuro que arquitectara; mas a cólera foi mais forte, secou-lhe o
choro num momento, pô-lo de novo diante de Francisco, com os olhos fuzilantes e as
mãos cabeludas levantando-se, convulsas; sentia um bruto desejo de esmagar o miserável
que o desonrava e que o olhava, muito branco mas firme, as mãos nervosamente enlaçadas,
os lábios a murmurarem uma prece; cerrando as pálpebras, para o não ver e o não estender [45]
redondo, agarrou-o Bemardone por um braço, arrastou-o para a escada, atirou-o para uma
adega, escura e lôbrega; depois, fechando a porta com violência, ordenou que o pusessem a
pão e água, para justo castigo.
Daí a poucos dias, ainda todo alquebrado pela cena, partiu o mercador para França.
Logo que o viu longe, desceu a mãe de Francisco à adega em que o filho continuava preso,
e com tal carinho, com tal ternura o abraçou e beijou, que o coração de Francisco se sentiu
abalado; rogou-lhe a mãe que atendesse os desejos de Bernardone e que abandonasse aquela
vida estranha; o filho, brandamente, recusou, disse que lhe era impossível qualquer outra;
pediu-lhe que o soltasse, o deixasse regressar a S. Damião a seguir o caminho que Deus lhe
mostrava; a mãe hesitou uns instantes, tão severas tinham sido as ordens do marido; mas,

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com um último beijo, sempre deixou que Francisco voltasse à sua gruta. Quando
Bernardone entrou de novo em casa, contaram-lhe que o filho, aproveitando um momento
de descuido, tinha conseguido fugir; contra o que esperavam, não se encolerizou o
mercador; saiu da loja, foi ter com os governadores da cidade e pediu-lhes que
interviessem; mas as autoridades nada puderam fazer; Francisco declarava-se desligado do
temporal e recusava-se a obedecer à intimação que lhe mandavam.
[46]
Dirigiu-se então Bernardone ao bispo Guido; submisso às ordens da Igreja,
Francisco deixou S. Damião e apresentou-se ante o pai no palácio episcopal; depois da
prova de Assis, todo o medo lhe desaparecera da alma: vinha sereno e decidido, disposto a
todas as recusas e aos mais ásperos sacrifícios; o bispo Guido, rodeado dos seus dignitários
e das testemunhas que Bernardone trouxera consigo, ouviu as queixas do mercador, depois
perguntou a Francisco se era verdade tudo o que o pai dizia; Francisco respondeu que era
verdade, mas que não podia aceder ao que dele pretendiam; consagrara-se a Cristo, não lhe
era possível atender ao mundo; bem lera no Evangelho que não se servem dois senhores, e
a sua escolha estava feita: pedia a seu pai que se resignasse a considerar desfeitos todos os
planos que formara; outro Pai mais poderoso lhe indicava novos rumos. Mas Bernardone
lançou mão dum derradeiro argumento: o filho lhe devia obediência, porque ele o vestira,
ele o calçara, ele lhe dera todo o dinheiro de que precisava; então, ante o bispo que se
levantara, pálido de espanto, ante o pai que recuava surpreendido, Francisco, num impulso,
despiu-se todo, atirou as roupas, em monte, aos pés do mercador; cobriu-o Guido com o
seu manto e abraçou-o a chorar; Bernardone, vencido e confuso, sem saber o que fazia,
apanhou os vestidos e saiu vacilante; quebrara Francisco os últimos laços que o prendiam
ao mundo. [47]

III

Quando se viu sozinho pelo monte, todo o encheu o sentimento infinito, divino, da
sua liberdade. Levava a cobri-lo um capote que lhe dera o jardineiro do bispo, calçava umas
sandálias rotas; nas costas do capote desenhara a giz uma grande cruz que brilhava, sobre o
pano velho, ao sol da Primavera. Toda a natureza saudava a sua entrada na vida do Senhor:
os regatos, ao verem-no passar, corriam com mais rápido murmúrio, as árvores
ramalhavam no ar puro, a brisa mais leve e branda se tornava; o céu brilhava num azul
acariciador e profundo, as montanhas distantes se recortavam nítidas e finas, cobertas de
bosques e casais; um grande bando de cotovias se ergueu de súbito na borda de uma leiva,
veio revoar alegremente sobre o caminho de Francisco; as andorinhas fendiam o espaço
ligeiramente, perseguiam-se, brincavam, fugiam na altura com chilreios joviais; para os
lados de Assis os sinos tocavam e as vozes graves e as vozes argentinas voavam de monte
para monte; e mesmo junto de Francisco, a celebrar as suas núpcias com a Senhora
Pobreza, um gaio lançou, na festa universal, a sua nota clara e jubilosa.

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Seguia apressado, diligente, sem fim certo para a sua viagem, tomado pelo gosto de
caminhar entre a compreensão, a amizade, a amável bondade das coisas e dos bichos;
cantava em francês e, quando mais se embrenhou na floresta, a voz ressoou, no subtil [48]
silêncio, entusiástica e forte. Ouviram-no uns ladrões que repousavam de surtidas
nocturnas e correram a espreitar o viajante; suspeitavam boa presa: quem assim cantava,
tão feliz na vida, devia possuir fartas riquezas; quando o viram, toda a esperança se desfez:
certamente se tratava de um doido, mas sempre apareceram, a perguntar-lhe quem era;
Francisco, num brado, com a face inundada de alegria, respondeu-lhes que era o arauto do
grande Rei; os ladrões riram, divertidos com a loucura do vagabundo; depois, para de
algum modo se vingarem do descanso perturbado, atiraram-no com gargalhadas para um
fosso onde a neve ainda não tinha derretido; com o mesmo riso alegre, levantou-se
Francisco, sacudiu a neve, continuou o seu caminho, satisfeito por ter dado algum prazer
aos seus irmãos ladrões.
Ao anoitecer, bateu à porta de uma abadia beneditina que, no alto de um monte,
dominava, como um palácio e um castelo, todo o terreno em volta; logo ao porteiro
desejou que houvesse paz naquela casa: e foi repetindo o seu voto a todos os frades a quem
teve de expor que saíra de Assis para servir Cristo e lhes pedia que o recolhessem aquela
noite; os monges olharam-no desconfiados, porque também eles serviam Cristo, mas sem
desvairos, bem agasalhados e com próspera mesa, tranquilos na serra solitária; por fim, ante [49]
a insistência, mandaram-no trabalhar para a cozinha, depois de terem feito aos criados a
expressa recomendação de que vigiassem com cuidado o possível malfeitor.
No dia seguinte, continuou a caminhada, sempre pelas veredas da montanha, até ir
parar a Gubbio; um amigo quis recolhê-lo, mas Francisco recusou e foi passar todo o seu
tempo na gafaria da terra, a cuidar dos leprosos, como fizera em Assis; a sua paciência, a
ternura de que os cercava, as palavras em que lhes falava de uma vida de espírito, alada e
superior, que pairava acima das misérias da carne, tornava a existência mais suportável aos
desgraçados; acolhiam-no como um amigo, contavam-lhe as suas melhores recordações
dos tempos de outrora, as graças dos filhos pequeninos de que não mais tinham sabido, as
casas asseadas entre tufos de árvores e canteiros de flores para onde tinham levado suas
noivas, mais longe ainda as horas em que eram amimados pelos pais e ouviam, sentados
nos joelhos, as histórias de cavaleiros e de fadas e da princesa real que tinha na testa a
estrela de oiro. Os olhos de Francisco enchiam-se de lágrimas, mas breve, dominando a
comoção, a sua voz se erguia a consolar, a confortar, no que lhe era possível, as dores
imensas; o seu carinho a cada momento se tornava mais desvelado, se apurava em
delicadeza e brandura. E humildemente pediu perdão a um leproso que uma vez se queixou
[50]
de que o estava magoando; rogou-lhe que atendesse a que era novo no ofício, prometeu
que dali em diante seria mais cuidadoso no limpar das feridas; tão arrependido se mostrou
da sua falta de cautela que o leproso o abraçou chorando, vencido pela mansidão, pela
simplicidade de Francisco.

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Mas, no meio das suas ocupações, vinha de quando em quando salteá-lo a saudade
de S. Damião; pensava como a igrejinha, sem ninguém que dela cuidasse com inteira
devoção, estaria agora novamente com os altares cobertos pelas pétalas secas, as paredes
esverdeadas de bolor, o chão poeirento da terra que traziam consigo os sapatorros dos
campónios. Se pudesse voltar, repartiria os seus dias entre a meditação na gruta e a
reconstrução da capela; não se tratava somente de trazer rosas frescas para as jarras e de
varrer o soalho; havia que firmar as paredes, alargar as janelas, renovar o telhado, substituir
as tábuas podres em que se abriam buracos. Um dia, o desejo de rever S. Damião e de
iniciar o trabalho pôde mais que a amizade dos leprosos; abalou de Gubbio, atravessou de
novo a floresta, correu ao ouvir de longe o sino da capela badalar palreiro, e num momento
ajoelhou aos pés do padre a pedir-lhe a sua bênção.
Quando acabou o trabalho do dia e o interior da igreja teve outra vez o aspecto
limpo e moço que adorava, pensou no que havia de comer; certamente o padre lhe daria
[51]
lugar à sua mesa, mas Francisco sabia-o pobre e não queria pesar-lhe; faria em S. Damião o
que fizera no caminho e algumas vezes em Gubbio, quando as esmolas para a gafaria não
tinham sido suficientes: mendigaria o seu jantar pelas choupanas dos camponeses; pediu
emprestada uma tigela, depois foi de porta em porta, sempre desejando a paz na casa,
como Jesus recomendara, e rogou que lhe dessem uma côdea de pão; todos acederam e
vasaram na tigela que Francisco estendia um resto de comida; quando teve o bastante
sentou-se e uma náusea o tomou, ante o aspecto da refeição, semelhante à lavagem que se
dava aos porcos, na casa de seu pai; um instante lhe passou na mente a recordação dos
manjares apetitosos dos banquetes; mas, vencendo-se, com um esforço que o fazia vibrar,
despejou a escudela até a última gota, depois deu graças a Deus do favor imerecido.
Mal rompeu a manhã seguinte desceu a Assis a arranjar pedra para a reconstrução
da igreja; já se sabia por toda a cidade do que se passara no palácio do bispo e os olhares
respeitosos seguiam a figura nervosa e magra de Francisco, que se dirigia à praça do
mercado; muitos o acompanharam, a ver o que fazia; quando chegou, subiu a um degrau e
anunciou, fitando-os um por um, com ternura e simpatia, que vinha arranjar dinheiro para
comprar os materiais de que precisava para reparar S. Damião. Tirou das mangas do hábito
dois paus roliços; um encostou ao ombro, a fingir de viola, o outro foi passando de leve, [52]
como um arco; o povo contemplava-o espantado, mas, quando principiou a cantar, à
maneira dos jograis, a voz foi direita ao coração de todos, numa súbita e funda comoção; o
espectáculo estranho enchia-os duma grande alegria, de um pacífico embalo, de uma
imensa piedade; cantava Francisco e os ouvintes choravam, abalados no mais íntimo do ser;
ao acabar, todas as mãos que se ergueram para o jogral de Deus ofereciam moedas para a
obra da capela.
Logo Francisco iniciou a tarefa; de sol a sol, trabalhou de pedreiro, empoleirado
nos andaimes, amassou a argamassa, esquadriou as pedras que pudera comprar; cantava
infatigavelmente, harmonioso na harmonia dos límpidos dias de Verão; as toutinegras, os
cardiais, os tentilhões e os piscos faziam à roda da capela uma música divina que nem o

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deixava sentir cansaço; as alvéolas, confiadamente, vinham comer as migalhas que lhes dava
e que os pombos disputavam, entre os risos de Francisco; já mesmo a pardalada mais arisca
ousava acercar-se do irmão pedreiro e reclamava, piando, a sua parte. Nas horas quentes da
tarde, todos os pássaros se acolhiam, em silêncio, à ramaria das árvores, uma calma pesada
descia sobre toda a natureza; o ar faiscava ao sol ardente, os montes perdiam-se numa
névoa leitosa; então, no sossego da terra sonolenta, só o canto de Francisco e o estridor da
[53]
cigarra, colada ao tronco das oliveiras, se erguiam a par, ambos ardentes, inebriados de
amor e de sol, louvando ao Criador.
Quando algum caminhante parava a escutá-lo ou a ver a obra, Francisco, todo sujo
de argamassa, de poeira e de cal convidava-o a ajudá-lo; alguns acediam, trabalhavam uma
larga hora, contentes de terem posto mão numa faina que decerto seria agradável ao
Senhor; muitos ficavam até mais tarde, a ouvirem como Francisco lhes falava da vida de
Jesus, do ensinamento de humildade e de paz que deixara entre os homens, da obrigação de
todos porem na vida o gosto alegre de a viverem; a tristeza convém aos que estão
possuídos de artifícios diabólicos e sentem perder-se a sua alma; mas quem, de dia para dia,
a via subir mais ligeira no azul, compreensiva de todas as misérias, fraternal a tudo que
Deus pusera sobre o mundo — aves e águas e pedras, e as fogueiras da terra e as estrelas
do céu —, não devia reprimir o júbilo que o tomava, o fazia animado para todas as tarefas
e sobranceiro a todos os revezes; era um dever de gratidão e, porventura, a mais bela
maneira de rezar.
Em certos dias, deixava Francisco o trabalho e entrava em Assis, a esmolar para a
sua igreja; tudo lhe davam de bom grado; as casas a que vinha enchiam-se de suavidade, ao
brando ritmo da sua fala; e os moradores, ao desejar-lhes a paz, sentiam que efectivamente
a paz lhes penetrava na alma; recompensavam-no com braçados de flores, com cera e [54]
incenso, toalhas e palmitos; os mais pequenos traziam-lhe migalhas para distribuir à
passarada ou a fruta madura, a escorrer mel, que os pardais bicavam com delícia; em todas
as casas, ricas e pobres, entrava Francisco com a mesma cortesia, a mesma humildade, o
mesmo passo tranquilo. Só uma vez, ao sentir o rumor de um banquete, teve vergonha de
se apresentar a pedir esmola, no palácio de um amigo, de se mostrar naquele trajo aos
convivas luxuosos; hesitou, retrocedeu, fugiu de novo, até que, a um esforço mais duro,
surgiu na sala, confessou a luta que travara, feliz em revelar a sua imperfeição, e esmolou o
azeite que, nessa mesma noite, puramente ardeu em cima dos altares.
A contínua vigilância, por vezes a severidade que empregava consigo próprio, iam
vencendo o que ainda tentava revoltar-se e lhe dourava em certas horas a visão da sua vida
passada; mas na luta era sempre a sua determinação que acabava por obter a vitória e o
levava grau a grau, passo a passo, no caminho do bem; o mundo alargava-se ante os olhos
animados de outra luz, todas as criaturas se mostravam em aspectos novos e mais amplos;
tão finamente penetravam no espírito os traços de beleza e os ímpetos de amor, que o
riscar de uma asa na límpida corrente de um regato, o verde macio e esperto de uma folha,
o abrir dos botões, as teias perladas do orvalho, o zumbir dos besouros, o colorido adejar

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das borboletas, o rastejar das lagartas, que afastava das veredas para que não as [55]
esmagassem, o mergulhavam em êxtase, lhe davam a felicidade incomparável de medir toda
a grandeza, todo o poder de Deus; a estrada era segura e bela, iluminada no esplendor da
vida, delicada e graciosa, alegre e forte; seguindo-a, salvaria a sua alma.
Ao olhar, porém, os outros homens, uma grande amargura o penetrava; lamentava-
lhes a existência, toda feita de ásperas e mesquinhas batalhas, de ambições em volta do
dinheiro, de manhas inferiores, de medíocres interesses; para alcançar a opulência ou o
mando abandonavam o que havia de mais alto na vida, deixavam que o amor do oiro ou de
verem outros homens curvados ante os tronos de ilusões lhes fechasse a vista para o divino
espectáculo do mundo; a maior parte ia morrer sem que uma só vez lhe tivessem tocado o
coração a finura e a beleza que o criador acumulou no Universo; para eles, era como
tesouro encerrado nas arcas de um avaro; passavam ante a riqueza verdadeira, esfarrapados
e famintos, sem um esforço para a gozar, sem um arranco que lhes desse a liberdade;
Francisco lastimava as pobres vidas que se desenrolam nas trevas, e, na solidão da gruta, as
lágrimas corriam pela desgraça dos homens; queria salvá-los, mas não sabia o que fazer,
não encontrava o meio poderoso de os guiar, os trazer ao esplêndido caminho.
[56]
Ora, um dia, em Fevereiro de 1209, dirigiu-se Francisco a ouvir missa na Capela de
Santa Maria dos Anjos; dizia-a o padre de S. Damião e só os dois se encontravam na igreja;
era ainda muito cedo e desde o princípio da noite a neve caíra sem cessar; os lumes
bruxeleavam, com bruscos ressaltos que deixavam depois em volta mais cerrada a escuridão
da capela. Quando o padre leu o Evangelho, Francisco sentiu que as palavras do livro
inteiramente respondiam às perguntas ansiosas: Jesus ordenava aos discípulos que
percorressem o mundo, a anunciar a boa nova; partiriam sem dinheiro e só com o vestuário
que traziam no corpo, sem esperança e sem vontade de encontrarem farta mesa para a
fome e leito confortável para o cansaço da jornada; iriam por aldeias e cidades, infa-
tigavelmente cheios de indulgência e de humildade, a despertar as almas que dormiam, a
incitá-las a seguirem uma vida mais nobre, a expulsarem os demónios que dividem os
espíritos, a firmarem em cada peito a paz do reino do Senhor.
Mal acabou a missa, tomou Francisco a bênção do padre; depois descalçou-se, tirou
o cinto que lhe prendia o hábito, substituiu-o por uma corda em que entalou um crucifixo
e, feita uma breve oração, abriu a porta da capela; fora, só uns flocos raros caíam ainda de
quando em quando, mas céu e terra se confundiam na brancura pardacenta; para os lados [57]
do nascente havia um primeiro livor de madrugada e, na orla do bosque, fumegava a
chaminé de uma cabana; um grande silêncio envolvia a terra inteira, um vento fino e frio
descia da montanha, regelava Francisco, que seguiu pela estrada de Assis; os pássaros,
abrigados sob o rebordo das pedras, ou apertados uns contra os outros nas ramarias das
poucas árvores que não tinham perdido a folha, não saudavam agora o irmão que tiritava
na aspereza da manhã; os regatos tinham gelado; e, ao olhar a neve fofa que tudo recobria,
Francisco pensava na tristeza das irmãs formigas, no terror que, no fundo do buraco, se
devia ter apoderado do irmão grilo, tão amigo dos encantos do Verão.

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Quando se deteve para falar no adro duma igreja, depois de obtida a licença do
padre, alguns homens que passavam embuçados pararam a escutá-lo; esperavam um
sermão e já iam a seguir, mal ouvidas as palavras de início; mas Francisco dizia os encantos
da paz entre os homens, o amor que devia ligá-los, a superioridade de uma vida em que
todos se sentissem irmãos, prontos a auxiliarem-se, a mutuamente se desculparem injúrias e
ofensas; ficaram presos do entusiasmo e da simplicidade com que Francisco lhes falava,
como um amigo que conversa, sem pretensão de lhes fazer admirar o saber e a eloquência,
mas todo animado do desejo de lhes tornar melhores as almas; quando terminou
chegaram-se a darem-lhe dinheiro; Francisco agradeceu e recusou com um sorriso, afável e [58]
modesto, depois continuou o seu caminho, ante o espanto dos outros, habituados à avidez
da gente da Igreja; aquele era diferente em palavras e actos.
Todas as ruas de Assis o viram então, subido em pedras ou nas soleiras das portas,
pregar ao povo, que acorria para ouvi-lo; muita vez interrompeu a sua tigela de caldo para
falar à gente que o cercava e recomendar-lhe, com afectuosa insistência, que fossem bons
para todos, a todos tratassem com amizade fraternal e dessem na sua vida alguns
momentos à contemplação das perfeições de Deus; louvava as alegrias da pobreza, a
liberdade, o redobrado impulso de elevar-se que dá ao espírito o ter-se abandonado o
cuidado das riquezas materiais; todos o escutavam em silêncio e imóveis, capazes naquele
instante de todo o desinteresse e de toda a bondade; mas a boa semente perdia-se entre os
espinhos e pedras; no momento seguinte a vida habitual tomava-os no seu giro, o que
tinham ouvido era apenas uma recordação vaga e distante; decerto aprovavam os preceitos
de Francisco: mas não tinham a coragem suprema de os passarem para a prática.
Só dois homens vieram ter com Francisco, a confessar-lhe o cansaço da existência
que tinham levado até aí, a pedir-lhe que lhes indicasse o caminho que deviam percorrer; a
um deles, Bernardo de Quintavalle, conhecia Francisco já há muito; fora seu companheiro [59]
de banquetes e festas e, como o pai, dedicava-se ao negócio de tecidos; habitava numa casa
opulenta e a sua fortuna era das mais sólidas de Assis; o outro, Pedro dei Cattani, era jurista
e cónego: fatigado dos tribunais, das batalhas com juízes, advogados e réus, não encontrara
na religião formalista e seca o amparo que buscava a sua consciência, o seu anseio de uma
vida mais bela; mas encontrara Francisco e logo decidira solicitar-lhe que o tomasse em sua
companhia e o guiasse; Francisco hesitava em acolhê-los, receoso de que não aguentassem
a transformação de que pareciam desejosos; por fim, resolveu-se a confiar no juízo de
Deus; os Evangelhos, consultados à sorte, aconselharam os dois a despojarem-se de todos
os bens e a seguirem a sua vocação.
Correram Pedro e Bernardo a desfazer-se das casas, a distribuir pelos mendigos e
gafos todos os fatos, todos os móveis, todo o dinheiro que puderam reunir; o povo
juntava-se à porta dos palácios, comentava o estranho facto, não se falava por toda a cidade
senão nessa brusca vontade de ser pobre que Francisco despertara no coração dos dois
amigos; a muitos se afigurava loucura o que estavam fazendo, a outros levava a
murmurarem a consciência de que não tinham coragem para realizarem o mesmo; assim

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aconteceu com o P.e Silvestre, que, na altura em que Francisco adquirira pedras para S.
[60]
Damião, lhas vendera baratas; ao passar no mercado, viu os três a darem ouro aos pobres;
aproximou-se e gritou que seria melhor pagarem pelo preço que deviam as coisas que
compravam; Francisco sorriu, estendeu-lhe um punhado de moedas que o padre aceitou;
mas o gesto mudo e o desinteresse feriram-no fundo: meses depois, o P.e Silvestre pedia a
Francisco que o recebesse como seu irmão.
A conversão de Bernardo de Quintavalle e de Pedro dei Cattani impressionara toda
a gente; muitos, sem se lançarem em tão grave decisão, tomavam consigo mesmo o
compromisso de serem para o futuro menos rapaces e brutais em questões de dinheiro, de
tratarem o seu semelhante com menos aspereza e rispidez; nalgumas almas, porém, o
exemplo lavrava; Egídio, um moço que ouvira falar do caso, saiu certa madrugada sem
avisar ninguém, ouviu missa na Igreja de S. Jorge, depois largou para o campo, à procura de
Francisco; encontrou-o e disse-lhe a que vinha: tão sinceras e ardentes foram as suas
palavras que Francisco o acompanhou logo à cidade a arranjarem o pano para o hábito; no
caminho, uma velha pediu esmola, mas Egídio não trouxera consigo nem sombra de
dinheiro; Francisco olhou-o sorrindo, como esperando a sua decisão; Egídio despiu o rico
fato que levava e entregou-o à velha.
Estabeleceram a sua habitação junto de Santa Maria dos Anjos, num terreno que o
povo chamava a Porciúncula; era dos frades beneditinos, que logo tinham acedido ao rogo [61]
dos irmãos pobres de Assis; na capela ouviam missa, sempre que o padre a podia dizer,
porque nenhum deles tinha as ordens requeridas; para meditarem e passarem a noite
tinham construído uma cabana de ramarias de árvores e de barro, por cujas fendas entrava
o sopro gelado do Inverno e em que mal podiam mexer-se; para se sentarem tinham o
chão, por onde, na época das chuvas, a água corria ou empoçava; deitavam-se na terra mal
batida, com um tronco por travesseiro, sem coberta que os tapasse; só mais tarde os de
saúde delicada tiveram um saco velho ou uma pouca de palha, de que faziam a sua cama; a
comida esmolava-se em Assis ou nas cabanas dos arredores, sempre abertas à bondade e ao
doce modo dos frades.
Havia, porém, que alargar a sua acção; o mundo não se resumia a Assis, vastas
regiões esperavam, para além das linhas de cumeada, que lhes levassem a palavra de Deus e
ensinassem os homens a serem caridosos, desinteressados, cumpridores dos mandados da
sua consciência. Pregar em Assis, entre o carinho, o bom acolhimento de todos, era
empresa fácil em que adormeciam e, finalmente, se apagariam as forças, se abateria a alta
chama do zelo; tinham de ir pela Itália inteira, mais tarde pelo mundo, a incitar a uma vida
cristã. Decidiram um dia que partissem a pé pelas estradas, como outrora o bando de Jesus;
falariam a todos que encontrassem, parariam mais largamente nas cidades e vilas, [62]
infatigáveis repetiriam os preceitos evangélicos; mais uma vez lhes recomendou Francisco
que fossem pacientes, tolerantes, todos ardendo no amor do próximo e de Deus, tenazes
na missão que tinham tomado sobre si, mas não esquecendo nunca que só lhes eram
permitidas as armas da persuasão e da bondade.

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Ao chegar a cada terra, logo Francisco se dirigia à autoridade eclesiástica e lhe


solicitava que o deixasse pregar; queria mostrar bem claramente a sua obediência à Igreja,
não se confundir com os hereges que pululavam e iam abalando o edifício católico;
cumpria humildemente as ordens dos padres, respeitava a proibição, se acaso lha faziam,
mas tanto insistia que sempre acabava por obter a permissão que desejava. Certamente
reconhecia como os outros que havia vícios na Igreja; mas não cria que fosse possível
debelar o fundo mal com as acções exteriores e violentas que chamam ao combate; das
tarefas difíceis, a mais difícil é ser um bom clérigo; não é de admirar que hesite, se revolte,
caia em erros a fraca natureza humana; com afecto se tem de chamar a atenção dos maus
padres, com discrição se lhes deve fazer notar a péssima vida que levam; quando
encontrava alguma igreja mal cuidada, afastava-se com o padre e pedia-lhe que tratasse
melhor o templo que lhe tinham confiado; reverente, delicado, tomando as almas pela [63]
suavidade e a alegria, todos o escutavam com respeito e lhe satisfaziam os pedidos.
A reforma a fazer na Igreja não podia vir de fora, porque o mal era interno; não
residia na organização defeituosa, nem na pompa dos edifícios, nem no luxo dos vestuários,
nem na temporalidade das preocupações de cardeais e bispos; tudo se podia modificar à
força de proibições e de severa vigilância; mas o homem interior ficava o mesmo e só esse
importa para os jogos de Deus; fosse possível reformar em cada um a sua vida de espírito,
trazer-lhe o pensamento e a vontade a um caminho cristão, e tudo havia de se transformar;
sobre os homens melhores repousa um mundo melhor; o grande trabalho não está em
destruir as instituições que se abatem por si, mas em fazer centelhar mais vivo o lume que
se eleva para os céus; as más leis se desfazem e renovam; é o sangue que tem de circular
cada vez mais ardente e mais rico, alargando e afinando o vaso que o conduz; o trabalho
vital não é de oposição e de batalhas, mas de compreensão e de contínuo superar, de
inteligência e de amor.
As pregações de Francisco eram modestas e simples; acostumados à retórica
complicada, aos efeitos de palavras, ao saber pesado dos oradores habituais, todos seguiam,
a princípio com espanto, depois dominados pelo tom fraterno, as falas de Francisco;
tinham diante de si um amigo que vivamente conversava, lhes penetrava na alma, lhes [64]
sorria como a velhos companheiros, os ia levando, afectuosamente, cheio de ternura e de
perdão; Francisco pregava e, aos olhos dos assistentes, se abria uma vida de harmonia e de
beleza, de completo entendimento, uma vida calma, uma vida pura, sensível a toda a
alegria, a todo o fino ritmo, a toda a variedade delicada ou heróica do imenso Universo;
sentiam-no convicto e sincero e a íntima força lhes arrastava a indolência e a fraqueza;
Francisco nunca fingia entusiasmo nem se obrigava ao êxito fugaz; quando a inspiração lhe
faltava, abençoava o povo que se reunira para escutá-lo e retirava-se pacífico e risonho; só
as fontes vivas da alma são dignas da grande sede humana.
Percebia, além de tudo, e não se cansava de o repetir aos seus frades, que a grande
pregação é o exemplo; bem dizia o Evangelho que os médicos se devem curar a si próprios
antes de tentarem a cura dos restantes; só o exemplo é eficaz perante os que, justamente,

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desconfiam do vão ruído das palavras; ser bom gera a bondade, ser paciente gera em volta a
paciência, como nunca o poderão fazer os discursos mais cuidados, as frases mais perfeitas;
ninguém segue o homem que se limita a mandar e não cumpre ele mesmo o preceito
estabelecido; sobretudo lhe falta o calor de verdade que funde todos os gelos, o acento
essencial que produz as músicas futuras; não arrasta os outros às acções duradouras — as
[65]
únicas que valem — quem se não pôs primeiro à prova e não lançou para a empresa o ser
inteiro, a vida total de que se sente animado; se queriam que o reino de Deus se viesse a
estabelecer, tinham de ser eles mesmos generosos, amáveis, pobres de toda a pobreza,
jubilosos de todo o júbilo.
Jamais exigia Francisco que fossem como ele; era muito mau cristão para se apontar
como modelo, demasiado imperfeito para se atribuir a santidade; com razão se ririam os
seus ouvintes se, depois de lhes ter contado as maravilhas do reino de Deus que pretendia
ver na Terra, se mostrasse a si próprio como cidadão da perfeita república; ainda se
reconhecia muito longe do ideal que sonhara, para se separar do rebanho comum e
marchar como um guia que, por bondade, os viera buscar. Depois, não queria magoar os
irmãos homens, falando-lhes nos seus defeitos, comparando a miséria em que viviam com
a existência que poderiam levar; a ninguém pretendia humilhar, mas sim erguer; dizia-lhes o
melhor que sabia as palavras que Jesus caridosamente lhe ensinava e deixava que eles
mesmos, no remanso da sua consciência, fizessem o confronto necessário e se decidissem a
mudar o seu rumo, a ser homens verdadeiros.
E não era de mais toda a mansidão e humildade para ir vencendo as resistências que
se erguiam; a pobreza dos irmãos, o seu total desinteresse pelos bens do mundo, aquele [66]
jeito afável de esmolarem, gratos à côdea mais dura e seca e ao palheiro mais imundo, iam
levantando na maior parte um movimento de desconfiança; os mais sagazes, os mais
descrentes na pureza da vida, suspeitavam ocultas, temerosas intenções; já nalguns sítios os
tinham corrido à pedrada, noutros, vendo-os sempre tão resignados e contentes, os tinham
tomado por idiotas: então puxavam-lhes os capuzes, faziam-nos tropeçar em paus que lhes
atiravam, arremessavam-lhes grandes chapadas de lama e esterco; e como alguns, movidos
pelas palavras de Francisco, começavam a segui-lo, dispostos a deixarem o século, os
parentes, despeitados e coléricos, levantavam intrigas e perseguições contra os frades de
Assis.
A insistência, no entanto, sempre havia de vencer: à hostilidade do início sucedeu,
noutras viagens, um acolhimento mais cristão; na verdade, nada tinham que dizer contra
Francisco e os irmãos: jamais tinham visto alguém tão paciente, tão disposto a pagar o mal
com o bem, tão afectuoso e tolerante, tão cheio de um contentamento radioso que
transparecia em cada fala e cada gesto; diligentes, percorriam as casas à procura de trabalho
e nenhum recusavam, por mais servil que fosse; só se negavam a aceitar os cargos em que
fosse preciso mandar, dirigir outros homens, vigiar-lhes a faina; para o resto, arranjo de
cozinha, lavagens de sobrados, serventia de pedreiro, sementeiras e ceifas, ali os tinham, [67]

satisfeitos e activos, a lidarem e cantarem por todo o santo dia; quando iam a pagar-lhes

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recusavam cortesmente, depois pediam, como mendigos, que lhes dessem uma tigela de
sopa ou um pedaço de pão duro.
Amigos uns dos outros, nunca os surpreenderam numa disputa; seguiam pelas
estradas a conversar ou a cantar ou meditando, com os capuzes puxados para o rosto; o
que era de um era de todos, cada qual procurava para si a comida mais ordinária e o mais
rude alojamento, contentes de cederem aos irmãos o que arranjavam de melhor; o seu
exemplo de vida fraternal ia penetrando nas famílias, ungindo o coração dos desavindos de
um bálsamo fragrante, sanando os ódios, acalmando as revoltas; na verdade, era a paz que
traziam consigo como a única riqueza, o tesouro inesgotável que a mãos ambas espalhavam
pelos homens; e sempre o faziam com o seu modo indulgente e risonho, num perpétuo
exercício de interior alegria e de rosto lavado de severidades e tristezas; só o hipócrita se
tem de mergulhar na aspereza e nas rudes penitências — repetia Francisco; a face do
homem que se entregou a Deus continuamente resplandece de felicidades e de brandura.
As dificuldades, contudo, ainda surgiam em grande número, de eclesiásticos e
leigos; os mais fechados continuavam a desconfiar dos companheiros de Francisco, os [68]
maliciosos renovavam armadilhas e enredos; Francisco seguia, crente em que Deus é
poderoso e em que tudo aplanam as vontades obstinadas e pacientes. Mas, de facto, a
certas horas uma dúvida o tomava; ninguém lhe podia garantir que não era uma loucura o
que tentavam, que não era um sonho vão em que perdiam as vidas aquela reforma do
mundo pela pregação afectuosa e pelo exemplo contínuo; era possível que tivesse razão
toda a gente que os troçava, os desprezava, lhes batia ou, como alguns padres, os queria
trazer a caminhos menos ásperos. Logo, porém, a segurança flamejava de novo, o
abatimento passava após uns dias de oração solitária pelos bosques ou pelas covas dos
montes; e outra vez os pobres de Cristo surgiam, de casal a casal, renovadas as forças, a
consolar e ajudar os irmãos homens.

IV

Breve a cabana da Porciúncula foi insuficiente para conter todos os homens que
desejavam seguir a vida de Francisco; acorriam de campos e cidades, tocados pelas palavras
evangélicas, desejosos de inteiramente se entregarem a uma faina pura e santa; expunham a
Francisco as suas pretensões, ele examinava-os com um olhar penetrante que lhes
adivinhava os mais secretos pensamentos; muitos eram trazidos por uma resolução [69]
momentânea, por um passageiro tédio da vida, por imaginarem que a existência dos frades
estava talhada para eles; a esses brandamente aconselhava Francisco que voltassem às suas
ocupações e que, embora aproveitando do impulso quase irreflectido o que dele poderiam
extrair para aperfeiçoamento das almas, não cedessem a um capricho, a um movimento
superficial de que se arrependeriam depois; só recebia quem lhe dava garantias de poder ser
bom cavaleiro de Cristo, bom companheiro da nova Távola Redonda.

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Quando o número de frades lhe impôs que mudassem de local, escolheu Francisco
para sede da irmandade uma casa meio derruída que uns religiosos seus amigos possuíam
em Rivotorto; agradavam-lhe o abandono e o desconforto do recinto, as paredes fendidas,
o chão batido, como no abrigo da Porciúncula; continuavam a não ter capela, faziam todas
as suas orações diante de um grande crucifixo, levavam a mesma dura vida da cabana. Os
religiosos, na intenção de os auxiliarem o mais possível, tinham querido ceder-lhes por
completo a casa de Rivotorto; Francisco rogou-lhes que o não fizessem e continuassem a
considerar-se como seus proprietários; desejou mesmo que se pagasse uma renda em
géneros, para se lembrar sempre de que não era o dono da casa; e, todos os anos, Francisco
subia ao convento dos frades, a entregar ele próprio, humildemente, a renda combinada e a [70]
agradecer uma vez mais a bondade que mostravam com ele e seus pobres irmãos.
Agora, era plenamente a Senhora Pobreza a companheira da sua vida; com
insistência, com amor redobrado, dizia aos frades as suas perfeições, contava-lhes como o
ideal casamento lhe dera as possibilidades de mais puramente contemplar a grandeza de
Deus; nenhum cuidado de riqueza o solicitava para o mundo; nenhum desejo de afirmar
quaisquer direitos de propriedade o levava a opor-se aos outros homens, a entrar em rixas e
discórdias; os bens pessoais trazem consigo a corrupção da alma, geram a desconfiança, a
brutalidade e o ódio; para os defender se inventaram os tribunais e as armas, se dividiram
os que deviam ser irmãos em exércitos que mutuamente se exterminam; infatigável lhes
mostra Francisco, frente ao quadro de miséria e de baixeza, a paz inefável, o encanto, a
tranquila superioridade de nada possuir, de ser pobre e livre para a vida da alma.
Hão-de passar na terra como peregrinos, como hóspedes, de uma hora que,
fugitiva, se desprende e morre; toda a complicação da vida exterior os tornará mais inábeis
para as graças do espírito; os sapatos de oiro, que se calçam por ambição e por prazer,
inutilizam a força das asas que levam para o céu; Francisco lamenta os irmãos ricos que se
deslumbram com o pó, que, absorvidos nos seus misteres, sedentos de tesoiros, febris no [71]
jogo, não têm um momento que dediquem a Deus, em que todos os penetrem a radiosa
alegria, a finura, a beleza do Universo; quereria arrancá-los à terrível escravidão,
mostrar-lhes como a fortuna que eles julgam elevá-los os torna inferiores aos seres que
nada possuem e nada querem possuir; mas estão surdos os ouvidos e fechados os peitos;
mais duramente terá Francisco de se esforçar para que a débil voz algum dia os acorde.
Forças para a empresa, ele as há-de encontrar na contínua, persistente meditação; a
mansa coragem de Jesus, o seu desprezo de todas as fadigas, de novo se abrirão na sua
alma, como um fogo que reacende, flameja e aquece; a contemplação do grande exemplo
de tenacidade, de paciência, de confiança e de amor o ajudará como um viático que vence
todas as agruras e consola de todas as tristezas; para si mesmo há-de guardar os momentos
de desânimo e reduzi-los à chama que através dos séculos cada vez brilha mais alto; tentará
descer ainda mais fundo no seu espírito, até se firmar no solo inabalável, até achar, por um
trabalho insistente, as terras que não cedem; no pensar mergulhará a raiz das acções; saberá

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dividir a sua vida pelas horas de Marta e pelas horas de Maria, enriquecer pelo contacto a
oração e o agir.
Ainda vem longe a madrugada já Francisco medita; quando passa cauteloso entre os
irmãos que dormem, para que nenhum, despertando, o veja sair àquela hora e o tenha em [72]
maior conta do que realmente merece, todo o coração de Francisco vai ardendo no desejo
de conversar com Deus, de lhe abrir o seu espírito, amplamente, para que o Possa penetrar
e encher; ninguém o perturba na sua solidão, os frades zelosamente vigiam para que o
irmão Francisco possa rezar com plena tranquilidade. Ao despontar do sol, uma nova
energia o impele para a sua missão; mais uma vez compreendeu que o lugar entre os anjos
se conquista labutando entre os homens, que Deus se serve entre as suas criaturas,
animando os que desalentam, aconselhando os que procuram o seu caminho, ajudando
bondosamente os pecadores, tirando das plantas as folhas secas que as desfeiam, libertando
os cordeirinhos das mãos dos magarefes, dando um pouco de pão a toda a fome e uma
gota de água a toda a sede.
Os irmãos partiam em grupos, depois de abençoados por Francisco, que escolhia
um deles por companheiro e com ele percorria as casas a oferecer os seus serviços; havia
sempre alguma coisa que arrumar ou que limpar, um campo para a rega, um rebanho que
tinha de ir ao pasto; Francisco aceitava o trabalho que lhe davam e afectuosamente, com
gratidão e com amor, guiava pelas veredas poeirentas, a vara ao ombro, os carneiros e
ovelhas que baliam e se demoravam taliscando, pelas bermas; ou então, abrindo-lhe
caminho pelos regos, com o bordo da enxada, ia levando a água diligente, murmurante, ao [73]
pé de cada planta que o sol fortíssimo abatera; os animais eram todos seus amigos e
choravam ao deixá-lo, na água punha todo o seu amor da humildade, da modesta
prontidão, da castidade e da pureza.
À tardinha, junto do lume no Inverno, à doçura do ar nos crepúsculos de Verão,
contava aos lavradores a vida de Jesus, comentava uma palavra do Evangelho; jamais o
abandonavam a simplicidade e a cortesia, cuidadosamente disfarçava a fadiga do trabalho
que tivera, pouco a pouco a ia esquecendo, todo animado na evocação da figura do seu
Mestre ou entusiasmado pelo nobre plano de existência que expunha aos campónios que o
escutavam; um ambiente de outra vida ia envolvendo todo o grupo, a suavidade da noite
que descia ou o franco rebrilhar do fogo na lareira davam-lhes o desejo de serem bons e
humanos, de perdoarem a quem os tivesse ofendido, de auxiliarem os mais fracos, de
serem, como o pobre que falava, desprendidos dos interesses mesquinhos, todos virados a
um norte de fraternidade e indulgência.
À medida que melhoravam e aumentavam a admiração e o respeito entre quem o
conhecia ou dele ouvia falar, sentia-se Francisco mais longe da perfeição que sonhara; o
mundo ideal fugia à sua frente, cada vez mais longínquo, cada vez mais tentador;
desfaziam-se os últimos toques de imprecisão, apuravam-se os contornos, como uma [74]
paisagem que se liberta da vaga névoa que a distância lhe pôs; mas aqui a estrada
alongava-se interminavelmente, era uma fita imensa que crescia de dia para dia. Uma

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dúvida lhe surgia por vezes: não tinha o direito de andar pregando, de aconselhar, de incitar
os outros, quando tão bem se dava conta das suas deficiências, quando todo o trabalho
seria pouco para ele próprio se educar; porventura seria preferível, ao encontrar-se com a
preparação insuficiente, abandonar a tarefa a outros mais perfeitos, recolher ao silêncio, ao
apagado viver que lhe convinha.
Mas pensava em Egídio, em Bernardo, em Pedro dei Cattani, nos outros novos que
tinham chegado, no P.e Silvestre, em Masseo, o irmão atlético, elegante, eloquente, em
Leão, que tão bem se entendia na arte de escrever, em Genebro, malicioso e ingénuo, em
todos que a sua palavra sem valor e a sua vida sem altura despertaram para o amor de Deus
e o amor das criaturas; outros esperavam, talvez, pelo mundo a sua hora de renascerem, o
toque exterior que lhes abriria os tesouros do espírito, o mínimo impulso que ele mesmo
lhes poderia dar, com toda a imperfeição, toda a rudeza dos seus recursos; mais um
sacrifício se lhe impunha, o de se lançar em uma acção para que não estava plenamente
construído; faria tudo que estivesse dentro das suas possibilidades, prepararia o terreno
para que outros mais generosos, mais humanos, mais amplamente criadores [75]
transformassem o mundo no reino incomparável.
Certamente era grande o número de pecadores, talvez ainda mais vasto e com mais
enraizados males do que podia supô-lo; a tarefa ia ser longa e difícil, o mundo resistiria,
oporia a sua hostilidade ou a sua inércia à força que tentava modelá-lo; mas quanto mais
alto fosse o obstáculo tanto mais querido e concentrado devia ser o esforço; Francisco
sentia na oposição o grande escultor que obriga a ser perfeito, a fornecer as energias que
sem ela nem chegariam a surgir; uma gente rebelde ao ensinamento e ao exemplo era o
melhor auxiliar que teria desejado para a sua própria construção: com ela aprenderia as
virtudes da paciência, da tenacidade, da vontade sorridente, da marcha alegre, sem
desfalecimentos e sem recriminações; não acreditava que, perante a acção contínua, os
homens não cedessem e não acabassem por escutar a mensagem da paz; mas que fosse só
um a salvar-se no meio de todos, como Egídio ou Masseo, e todo o trabalho teria sido útil,
toda a vida se teria empregado numa faina nobre e frutuosa.
O essencial, não condescendendo com o mundo nos fins a atingir, querendo
transformá-lo e não apenas habitá-lo, era não lhe ceder nem um momento nos meios a
empregar; as empresas que, diferentes do viver comum, a ele recorrem e se adaptam, cedo
ou tarde vêem quebrado o nervo que as movia e se nivelam com as terras a que eram [76]
sobranceiras; ter a coragem de se conservar igual ao impulso de princípio equivaleria a
obter a vitória; o mundo, embora o pareça, não é persistente e acaba por se prostrar ante a
alma, que se bate com armas superiores; a surpresa de verem tentar uma reforma pela
mansidão, pela acção pacífica, sem gritos de rancor, sem gestos de ódio, havia de passar,
como já ia passando, ao acatamento e à submissão; mas, ai deles!, no dia em que entrassem
pelo caminho do compromisso e do entendimento: reconhecê-los-iam, não diferentes, mas
iguais a si próprios, feitos das mesmas fraquezas e das mesmas secretas ambições,

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extravagantes numa hora, para logo na seguinte se revelarem seus irmãos de espírito e de
corpo.
Jamais deviam quebrar a sua fidelidade à pobreza e à maneira afectuosa; uma lhes
dava o sossego da alma para a meditação e a prece, a agilidade espiritual que os fazia
despertos a todo o rasto de beleza e de alegria, a energia que não cansa, a despreocupação
dos cuidados do mundo, a grande força do exemplo; a outra lhe depunha nas mãos a mais
perfeita chave das almas, levava todos a escutá-los com atenção e respeito, lhes permitia ir a
pouco e pouco limando os pequenos defeitos, preparando os ouvintes para as verdades
maiores; só se poderia considerar bom frade quem nada possuísse, e mais ainda, quem
tivesse estancado no seu peito todo o desejo de possuir; e repetia-lhes Francisco que o puro [77]
amor dos homens, a felicidade mais alta de quem pretende servi-los, resplandecem quando
não somente se perdoam as injúrias, mas se recebem como um favor; a única tristeza
perante a ofensa deve ser a de pensar como a alma do que a pratica se está a corromper e a
perder.
Firme na sua vontade de paz, obediente à palavra do Evangelho que ouvira em
Santa Maria dos Anjos e que o mandava expulsar os demónios das cidades e das casas,
Francisco percorria a Itália a sanar as discórdias, a reconciliar os inimigos, a estabelecer a
colaboração e o acordo onde reinavam a desconfiança e o ódio. Em Assis, em Arezzo, em
Siena, em Perugia, faz esquecer as inimizades particulares e públicas; ao ouvirem-no pregar,
os adversários abraçam-se chorando, a alegria e a vida renascem de súbito, os corações
transbordam de afecto irreprimível; estabelecem-se acordos entre nobres e plebeus que
tornam possível a existência para ambas as classes, firma-se a paz entre as cidades que
rancores de anos separavam. Nunca, porém, a sua acção toma uma cor política; é ao
indivíduo que se dirige, é à alma de cada um que rumam as palavras de fraternidade e de
perdão; alheio às disputas de partidos e de seitas, só quer que melhore quem neles se
alistou, se torne mais compreensivo, mais consciente, mais humano.
A uma única organização Francisco venera e acata; a Igreja tem-no sempre como [78]
filho obediente e humilde, por toda a parte proclama que à Igreja se deve respeito e
carinho. É a necessidade interior de ver autorizada pelos poderes supremos da Igreja a sua
missão de pregador que o leva a Roma, para falar com o papa e solicitar-lhe a aprovação da
sua vida; até agora, fora de bispo a bispo e padre a padre e lhe pedira licença para pregar no
adro ou no púlpito das igrejas; bem sabia das queixas que se levantavam contra o viver do
clero e por toda a parte encontrara sinais de indiferença, de desprezo ou de ódio; o
pensamento de que a Igreja traíra Cristo e fora para o lado do fariseu andava no espírito de
muitos; mas Francisco persistia na sua ideia de que as reformas verdadeiras nascem de
dentro e de que mais se consegue pela mansidão, pelo conselho oportuno, pela paciente
submissão, do que pela revolta e pelo ataque violento; o papa vê-lo-ia como um súbdito fiel
e como um amigo que se apresenta para servir e ajudar.
Ingenuamente se dirige ao pontífice numa galeria do palácio, quando o chefe da
Igreja saía de audiência; o papa teve um olhar superior e desdenhoso para o vagabundo, o

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miserável que se ajoelhara e lhe pedira a bênção; deu-lha de leve, marcando bem a diferença
que existe entre um pobre doido e um senhor importante e apressado. Francisco teve de
[79]
recorrer ao cardeal João de S. Paulo, para quem o bispo Guido lhe dera uma carta de
apresentação; o cardeal falou ao papa, que se mostrou pouco disposto a conceder licença
para o que lhe parecia a fundação de uma ordem nova; as ordens e conventos estavam
sendo a praga da Igreja e o pontífice recusava autorização às frequentes iniciativas; João de
S. Paulo insistiu, fez ver ao papa como a Igreja ficaria em posição difícil se recusasse a
qualquer homem licença para viver segundo o Evangelho; Francisco nada mais queria; e a
negativa da Santa Sé seria uma arma excelente na mão hábil e poderosa dos seus inimigos
religiosos e políticos.
Por outro lado, um grupo como o de Francisco e seus companheiros, pobres,
humildes, verdadeiros discípulos de Cristo, sem outro fim do que a paz e o amor, seria, a
todo o tempo, se o papa lhe negasse apoio, um argumento contra a vida dos prelados,
contra o luxo das festas e a sumptuosidade dos templos; convinha, pois, à Igreja ter dentro
de si, como uma defesa que seria difícil transpor, aqueles homens que pugnavam por ela,
que a respeitavam, lhe obedeciam; em qualquer altura se apresentariam como prova de que
a Igreja não degenerara desde os tempos primitivos, que eram os mesmos o esplendor e a
vivacidade da chama cristã dos apóstolos; e, embora Francisco continuamente afirmasse a
sua fidelidade à Igreja, não era prudente submetê-lo à dura experiência de lhe recusar a
licença que pedia; os heterodoxos eram já bastante numerosos para que se corresse o risco [80]
de uma nova heresia.
Os argumentos e a tenacidade de João de S. Paulo, que inteiramente cativara,
dominaram por fim as resistências do papa e dos outros cardeais; veio a autorização e
Francisco partiu logo para a Úmbria com os irmãos que o tinham acompanhado a Roma; a
jornada foi difícil, no calor implacável do Verão, entre a poeirada das estradas, por lugares
que nem uma árvore sombreava; nas primeiras léguas só de onde a onde se encontrava uma
cabana e os frades passavam fome e sede; quando chegaram a Orte, o sítio aprazível, os
bosques silenciosos, os regatos que fugiam entre os troncos, as frutas que pareciam
aguardar os eremitas, despertaram em todos o desejo de repousarem das fadigas; por um
momento hesitou Francisco entre a vida calma, sossegada, de perfeita contemplação, que
Orte lhe oferecia, e a vocação de pregador; o amor dos homens foi mais forte e venceu;
após uns dias de descanso, o grupo recomeçou a marcha para Assis.
Uma tarde, pouco depois de terem voltado a Rivotorto, os irmãos que rezavam
juntamente com Francisco ouviram um campónio que parara à porta dizer para o burro
que levava à arreata que lhe ia dar uma boa casa, bem abrigada e confortável; os frades,
suspendendo a oração, olharam-se interditos, a tempo que já o campónio ia guiando o
animal para o canto em que estavam os frades; iam a protestar contra a incorrecta invasão e [81]
a fazer valer os seus direitos à casa, quando Francisco os olhou sorrindo e logo todos se
lembraram dos votos de pobreza e do propósito de se considerarem os hóspedes do
mundo; depois Francisco abençoou o camponês, acariciou o burro e partiu seguido dos

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irmãos em busca de outro refúgio; resolveram estabelecê-lo na Porciúncula; alojaram-se em


cabanas de ramos e de barro, dividindo-se em grupos, para que todos coubessem; à volta
das cabanas puseram uma sebe baixa de verdura e de flores.
Da Porciúncula saíam os padres para as missões de pregação que lhes designava
Francisco; a grande lanço semeava por toda a Itália a palavra divina, mostrando a todos
como era possível traduzir em actos os preceitos evangélicos, como se podia infundir vida
nova no que a pouco e pouco se fora transformando em seco ritual; a corrente de
desinteresse, de abnegação, de pobreza e de amor ia engrossando dia a dia; havia agora a
certeza de que se não perderiam os anos de fadiga, que uma era diferente surgia para o
mundo; todo receio ou inimizade das populações desaparecera por completo e as
autoridades eclesiásticas, informadas da resolução do papa, acolhiam-nos como os seus
melhores auxiliares; despovoavam-se as aldeias e vilas para ver e ouvir Francisco, que
passava pregando; de muito longe vinha gente à Porciúncula pedir-lhe conselho, rogar-lhe [82]
que os auxiliasse a abandonar uma vida que não os contentava.
A consciência de que finalmente o ouviam não o pusera diferente do Francisco de
S. Damião e da gafaria de Gubbio; sempre nele encontravam a mesma modéstia, as
mesmas maneiras elegantes e discretas, o sorriso acolhedor, a imensa piedade e a fé no
poder que tem a alma de se elevar até Deus pelo esforço contínuo da vontade; cada tristeza
e cada júbilo encontravam no seu espírito um eco de simpatia e de afectuosa ressonância;
com igual simplicidade e cortesia escutava o camponês, que vinha oferecer um boi como a
única fortuna de que podia dispor, e o conde poderoso, que lhe dava, para retiro dos seus
frades, um monte inteiro; o alto mundo a que subira, a pureza ideal em que a alma se
banhava, mais vibrátil o pusera à graça universal; o abrir duma rosa, o voar duma pomba, o
balido longínquo dum cordeiro, todo o enchiam de ternura, de louvores à magnificência e à
beleza das criações do Senhor.
Nenhum pecador se aproximava dele sem que levasse o perdão e o conselho; jamais
o ouviram, como a tantos outros pregadores, flagelar o vício com as duras palavras que
humilham e abatem; o seu fim não era mergulhar no desespero, mas conduzir à libertação,
à luz sagrada por que os espíritos ansiavam; o castigo do mal não lhe aparecia como
agradável a Deus, nem o podia aceitar quem só escutava os ensinamentos de Jesus; ajudar o [83]
criminoso a ser bom, dar-lhe o meio de se salvar das ondas que o jogam de crista para
crista — eis a grande missão dos que pretendem reformar o mundo; a justiça que
cegamente fere com a sua espada, implacável e quase feroz, não é a justiça do reino que se
queria fundar, mas a dos homens que nela satisfazem um instinto de vingança e de
brutalidade; os ladrões e os assassinos tiveram sempre em Francisco um amigo seguro que
os mandava alimentar, se tinham fome, e brandamente os ia guiando, com paciência e
humildade, a caminhos melhores.
Nenhuma alma, por mais rude, por mais fechada que se apresente, deixa de albergar
dentro de si as infinitas possibilidades de dirigir-se ao seio de Deus; a tarefa pode ser longa
e é sempre difícil, delicada, mas quem totalmente se lhe entregue há-de acabar por

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descobrir à luz do Sol os tesouros escondidos; a base da redenção, todo o espírito a possui
e, confiadamente, com zelo infatigável, a buscava Francisco; com o brando jeito, o gesto
leve e cauteloso de quem desperta uma criança, ia mostrando, como um clarão distante, aos
que andavam nas trevas, as auroras que mais tarde lhes resplandeceriam na vida; sabia
como é essencial não magoar o amor-próprio; não ser brusco na marcha, marcar o passo
pelo do companheiro caprichoso e débil, só pouco a pouco ir descobrindo tudo o que dele
[84]
se exige, acender-lhe o desejo de mais amplos horizontes, para finalmente o levar à
contemplação das verdades supremas.
Frequentemente, vinha Francisco pregar às igrejas de Assis. Ora vivia por esse
tempo na cidade uma menina de família nobilíssima chamada Clara; o pai e a mãe, embora
tivessem mais filhos, depositavam nela as suas melhores esperanças; era Clara de uma
beleza sem rival, no esplendor dos seus cabelos loiros, dos olhos que irradiavam mocidade
e alegria, dos lábios que se abriam num sorriso carinhoso e ingénuo; na rua, todos se
voltavam para lhe admirar a estatura elegante e fina, o jeito leve de caminhar, a
graciosidade, a gentileza que não tinham igual em toda Assis; a fortuna dos condes
proporcionava-lhe os vestidos mais ricos e as jóias mais raras; nos bailes, deslumbrava, e os
moços da cidade não se cansavam de olhar o doce rosto de Clara, de a ouvir falar, com o
seu fio de voz tranquilo e musical; eram numerosos os pretendentes, mas à maior parte
logo afastava a condição social da menina; os pais esperavam, no entanto, casá-la dentro
em pouco com um grande senhor, abastado e fidalgo.
Modelarmente cumpria Clara os seus deveres religiosos; não faltava a nenhuma
festividade, todos os dias ouvia missa na capelinha da casa ou numa das igrejas de Assis,
comungava a miúdo, com um sentimento e uma interior sinceridade que mais a faziam [85]
louvar de quantos a iam conhecendo; jejuava nos dias marcados pela Igreja e bastantes
vezes se tinham de opor a que o fizesse quando o não exigia o ritual; não era raro terem de
a interromper nas suas devoções, quando ficava longas horas nas lajes dos templos,
adorando Jesus crucificado; mesmo em casa, rezava tão grande número de orações que
tinha de as marcar com pedrinhas, para se não enganar. Acima de tudo considerava
verdadeira religião e o acto de culto mais agradável a Deus socorrer os pobres, repartir com
eles os bens de que dispunha, consolar os infelizes sobre quem se abatiam as desgraças,
sentir com eles a dor que os prostrava, oferecer-lhes um coração fraternal e piedoso.
Num dia em que saía da igreja viu chegar à portaria e subir para um degrau um
homem baixo, magro, a barba rala e inculta; trazia vestido um hábito atado à cinta por uma
corda, um capuz caído para as costas; vinha descalço e amparava-se a um pau; logo
reconheceu no frade que a multidão acompanhava o Francisco de que tanto lhe falavam;
começava a pregar e as suas palavras penetravam no coração de Clara, suaves e puras, no
deslumbramento de uma vida melhor, na revelação dum mundo que a chamava, com tais
encantos, com tão forte atracção, que lhe não poderia resistir; cheio do divino entusiasmo
que lhe fazia brilhar os olhos e agitar-se todo o corpo, como num ritmo de dança, dizia [86]
Francisco a maravilha da existência de pobreza, de trabalho e liberdade, o apoio que ela

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dava a todo o movimento de amor das criaturas e de Deus, a toda a tentativa de uma vida
cristã, ardente de alegria e de ternura.
Logo que pôde dirigiu-se Clara ao irmão Francisco, contou-lhe a sua vida e o seu
desejo de ser, como ele, o jogral de Deus, o coração repleto de toda a grandeza do mundo,
compassivo a todas as misérias, animoso a todos os desastres. Num momento reconheceu
Francisco na rapariga que lhe falava, olhos nos olhos, todo o banhando de uma luz
puríssima e divina, a irmã perfeita e querida que lhe enviava Deus; toda a harmonia
universal vibrava límpida na sua voz como nas manhãs de Primavera; encantos de terra e
céu, frescuras de rosas em botão, castidade das águas cristalinas, docemente se entreteciam,
passavam rindo, brincavam ágeis e ligeiras nas palavras de Clara; ouvindo-a falar,
contemplando o rosto incomparável, Francisco sentia que toda a sua alma se elevava para
Deus, se embalava numa beleza modelar e irreal, escutava já os coros dos anjos e o
cercavam de amor e o ungiam de graça.
Tão poderosa na sua vocação a viu Francisco, tão superior ao que ele próprio era,
que acedeu ao pedido de Clara e decidiu que a receberia como irmã; combinaram que
fugiria de casa e em S. Damião lhe tomaria ele os votos e lançaria o véu de monja. No dia [87]
marcado, e que ansiosamente ambos esperavam, a menina foi com os pais e os irmãos
assistir na igreja às cerimónias do domingo de Ramos; perturbada e confusa, todo preso o
espírito no grande passo que ia dar, nem foi junto do bispo Guido receber o seu ramo; mas
ele mesmo, por cortesia e por amor de Clara, lho veio trazer ao lugar em que estava. A
noite, quando todos repousavam, pé ante pé, no silêncio e no escuro, saiu Clara
furtivamente; a meio caminho do monte vieram os irmãos a esperá-la, à luz dos archotes,
entre salmos e cânticos; o próprio Francisco lhe cortou os cabelos e, já protegida pelo véu
monástico, a levou a um convento de freiras de S. Bento, que aceitaram recolhê-la.
Desvairados pela dor e pelas frustadas esperanças, correram os pais a buscá-la;
Clara resistiu a todos os esforços empregados, a toda a palavra de persuasão, a toda a
ameaça de brutalidade; a sua resolução fora bem firme e não podia voltar atrás; breve uma
sua irmã lhe seguiu o exemplo; por fim, desistiram e, com outras raparigas que acorriam,
pôde Clara começar, numa casa que Francisco lhe arranjara perto de S. Damião, a vida que
planeara. As irmãs repartiam o seu tempo entre a oração e o trabalho; durante horas
bordavam e cosiam, depois faziam em comum as suas rezas e cantavam os hinos; de
quando em quando, vinham visitá-las Francisco e os outros frades; uma existência calma,
[88]
pobre e ocupada se estabelecia pouco a pouco no convento pequeno e humilde; Clara,
relembrando as palavras de Francisco, ia regando as violetas e os lírios do seu jardim,
agradecendo a Deus, como a maior mercê, tê-la feito nascer num mundo tão belo e
gracioso.
O encontro de Clara despertara em Francisco a nostalgia de outras vidas; por vezes
o salteava a incerteza e pensava se não teria sido melhor ter feito como os outros homens e
acomodar-se um pouco às leis do mundo, embora continuasse a servir Deus. Por uma
noite de luar álgido, numa clareira do bosque, viu um dos frades que Francisco fazia sete

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bonecos de neve e chamava a um sua mulher, a outros os seus filhos, a outros ainda seus
criados; esteve olhando por instantes os vultos que brilhavam ao luar; depois, com um riso
que vibrou no silêncio nocturno, perguntou como se havia de arranjar para os vestir, os
calçar e lhes dar de comer; enredado nos negócios, nenhum tempo lhe ficaria para Deus;
tinha sido realmente preferível trilhar o caminho que tomara. Logo na manhã seguinte,
animado de novas energias, levando a ampará-lo e incitá-lo a imagem da irmã que em S.
Damião por ele rezava, Francisco saiu para pregar, mais confiante ainda no triunfo que
havia de alcançar o Evangelho, no final esplendor em que o mundo inteiro subiria para
Deus; mais finamente lhe ecoava na alma e lha enchia de vivacidade e de alegria a
[89]
formosura magnífica do dia; e, cantando, seguiu pela montanha, todo envolvido no oiro do
sol, entre voos e murmúrios e perfumes.

Um grande projecto ia amadurecendo na alma de Francisco; a seus olhos, uma


mancha enorme cobria o mundo e era necessário que o mais cedo possível os milhões de
homens, que perdia para sempre, pudessem contemplar as perfeições de Deus. Como uma
vaga que se espraia, os infiéis haviam penetrado nas terras cristãs e, embora em recuo,
ainda tinham em seu poder lugares queridos ao coração dos católicos. Inutilmente se
realizavam expedições; os triunfos eram passageiros, as vantagens conseguidas quase nada
representavam quando se comparavam com a imensidade da tarefa; o ardor heróico dos
cavaleiros quebrava-se contra obstáculos insuperáveis; as tempestades no mar, as fomes nas
longas marchas por montanhas e desertos, a incompreensão das populações que
atravessavam e que os abatiam por milhares, a inegável bravura dos árabes — tudo se
levantava como um dique poderoso que dominava, continha o ímpeto místico e mundano
dos soldados da cruz.
Era preciso que se reunissem todas as forças e todos colaborassem na grande
empresa de vencer o mal; parecia a Francisco que, se até agora as armas não tinham [90]
conseguido debelá-lo, era a ocasião conveniente para se empregar um outro meio que
certamente daria resultado e que estava mais de acordo com o ideal cristão do que as
escalas de castelos e as batalhas campais; havia que mandar para junto dos infiéis homens
que pregassem a doutrina de Cristo e lhes demonstrassem a superioridade da sua fé, pela
palavra e pelo exemplo; se chegassem como amigos, cordiais e diligentes, a um tempo com
firmeza e afecto, decerto os escutariam os árabes, lhes atenderiam os argumentos,
finalmente se haviam de render ao que era a evidência pura; era natural que se defendessem
de quem os atacava, que pagassem o mal com o mal, que respondessem à brutalidade com
a brutalidade e ao ódio com o ódio; bem diferente seria a sua atitude diante de quem lhes
aparecesse sem armas, em missão toda de paz, de amor, de evangélico desejo de os salvar
do erro em que viviam.

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Sabia Francisco que a aventura não era isenta de perigos e que a exaltação dos
fanáticos fazia correr risco de morte a quem tentasse ir falar-lhes de Jesus e da bondade da
lei cristã; mas cada vez sentia mais que era de seu dever experimentar o que daria uma
cruzada pacífica; o amor de Cristo impelia-o à empresa, com o desejo de ver a fé que lhe
animava a alma estender-se por todo o Universo como um manto de perfeição e de
harmonia; chamava-o com vozes poderosas a compaixão pelos homens a quem ninguém ia [91]
instruir e que se preferia fazer desaparecer nas carnificinas dos combates; um sonho antigo
de cavaleiro tomava vulto novo de momento a momento e as armas do palácio lhe
apareciam marcadas pela cruz que havia de firmar nas terras infiéis; e depois, como era
cómodo e como era covarde ficar nas boas terras de Assis, entre respeitos e carinhos,
quando sabia que para lá do mar se corriam os perigos verdadeiros e se punham à prova os
fortes peitos, as almas decididas.
Um dia, bruscamente, com surpresa dos irmãos, anunciou-lhes que partiria para
Roma a solicitar licença do pontífice para se passar ao Oriente e doutrinar os árabes;
determinado, não escutou as objecções dos frades nem os conselhos de prudência que lhe
davam; largou pela estrada, para o Sul, com um irmão que o quisera acompanhar. Foram de
aldeia para aldeia, trabalhando e cantando, comendo a sua tigela de caldo pela porta das
igrejas, entre os outros mendigos, pregando aos que se juntavam a ouvi-los, incitando-os a
darem esmolas aos pobres, a serem piedosos, amigos uns dos outros, cristãos nos actos,
como o eram em nome; a fama de Francisco precedia-os e nalguns pontos vieram recebê-
los com saudações e gritos de alegria, agitando ramos de oliveira; Francisco parava,
anunciava em voz alta todos os pecados que tinha feito, todas as infracções que tinha
cometido contra os preceitos que pregava, depois seguia contrito e humilde, descalço na [92]
poeira dos caminhos.
Quando chegou a Roma, veio visitá-lo uma nobre dama piedosa chamada Giacoma
dei Settesoli que já ouvira falar de Francisco e o queria conhecer e pedir-lhe uma norma de
vida; era alta, forte, de feições nítidas e enérgicas, com ar masculino no andar, no falar e
nos modos; esmoler e devota, tudo fazia com gestos decididos e secos; Francisco recebeu-a
com o seu jeito afectuoso e sorridente, ouviu atento as palavras da romana e deu-lhe os
conselhos que lhe pareceram apropriados; no dia seguinte voltou a dama, foram-se
estreitando as relações, e já Francisco, risonho, lhe chamava «o irmão Giacoma»; o irmão
Giacoma, que tinha bons conhecimentos, ia encaminhando a pretenção de Francisco, o
irmão Giacoma o levava a visitar as igrejas, o acompanhava na pregação e lhe trazia,
sacudido e viril, amendoadas, de que o frade era guloso.
Conseguida a permissão do papa, embarcaram Francisco e o companheiro; a
viagem, porém, foi desastrosa, com ventos contrários e mares ponteiros que desarvoraram
o navio e só o levaram ao porto em tempo que já partira a nau que fazia a viagem do
Oriente; a travessia de regresso foi também pouco feliz; apanharam calmarias que os
trouxeram balançando lentamente, monotonamente, dias e dias sobre o mar infinito;
faltaram os mantimentos e declararam-se doenças; por fim abordaram à Itália e de novo [93]

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seguiram para Roma. Apesar dos contratempos, não desistia Francisco do projecto que
formara e, logo que pôde, partiu para Espanha, para entrar em contacto com os árabes da
Península e passar depois às terras de Marrocos; mas a saúde, abalada por todas as
privações que sofrera e pela viagem recente, traiu-lhe as intenções; caiu doente e mal se ia
restabelecendo quando empreendeu a caminhada que o traria outra vez à Porciúncula.
Entretanto, crescia de dia para dia o número dos que desejavam seguir o exemplo de
Francisco; de todos os pontos da Itália acorriam a solicitar a benção e o conselho do
homem que todos viam como o seu guia espiritual; bem acolhidos por Francisco,
regressavam às suas terras e aí começavam a pregar, fundando novos núcleos que se
instalavam em cabanas semelhantes às outras, apenas com um pouco mais de conforto; os
sacos de palha já não eram só para os doentes e não parecia que fosse contra o Evangelho
sentarem-se os frades em banquinhos, em lugar de o fazerem sobre a terra batida que as
chuvadas encharcavam; outros vinham das nações estrangeiras e chegavam franceses,
alemães, portugueses e espanhóis; verdadeiros cristãos, não olhavam a fronteiras nem às
distinções puramente temporais; em todos palpitava a mesma centelha de amor divino, o
mesmo anseio de uma humanidade unida e fraternal.
[94]
Francisco, finamente, sentia os perigos deste rápido aumento dos irmãos; a vida que
pregava era difícil e trabalhosa e temia que nem todos que chegavam tivessem a coragem
suficiente para arrostar com as tentações e os perigos; Bernardo, Egídio, os outros que
tinham aparecido primeiro, olhavam sem grande confiança os novos postulantes e, nas
conversas com Francisco, aludiam ao receio que os tomava. Então, contou-lhes Francisco a
história do homem que possuía um pomar e uma família reduzida que podia alimentar só
com os frutos maduros, tentadores, que sabiam a mel; foram, porém, nascendo filhos e
teve de colher a fruta que os pássaros só bicavam de leve e a que o sol ainda não pintara
por completo; outros filhos vieram e o homem viu-se obrigado a tirar das árvores a fruta
ainda rija em que havia um travor; por fim, os frutos embotavam os dentes e amargavam
na boca; mas que havia ele de fazer se os filhos choravam e gritavam com fome?
Poucos eram, de facto, os que vinham guiados pelo puro amor das criaturas e pelo
desejo de levarem uma vida cristã. A uns arrastavam a ansiedade de se salvarem, o terror
das penas infernais, a esperança de que, seguindo os preceitos de Francisco, alcançariam as
delícias da vida eterna, entre os cantos dos serafins e as riquezas do céu; o hábito
franciscano, a mendicância e a pregação tinham dentro de si as forças mágicas que na hora
da morte os haviam de levar, puros de toda a mácula, às regiões etéreas. A outros, que se [95]
viam no mundo sem norte e sem abrigo, tentava a possibilidade de irem fazendo a sua vida,
embora pobremente, junto de alguém que os ajudasse nos momentos piores; por agora,
ainda os irmãos de Francisco tinham de morar em cabanas e de alimentar-se do que
esmolavam pelas portas ou do pouco que recebiam pelo seu trabalho; mas tempo viria em
que teriam bons conventos e boas terras como os frades de outras ordens; a perspectiva
não lhes parecia desprezível.

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Por diferentes vezes tinham insistido com Francisco para que se fixassem por escrito
os privilégios que o papa lhes concedera; muitas das dificuldades que ainda encontravam
nas missões se abateriam se pudessem apresentar às autoridades eclesiásticas das terras que
percorriam as cópias de uma carta pontifícia em que se estatuíssem os seus direitos; sempre
achavam pronta e viva a resistência de Francisco: nada mais queria do que uma autorização
verbal, e um papel a apresentar, uma propriedade a fazer valer, traíam toda a sua
construção de simplicidade e de pobreza; uma cópia notarial era uma arma do século, um
aferrar-se ao mundo numa faina em que não queria ver senão o desinteresse e a puríssima
vitória das forças espirituais; se um bispo ou um padre se negassem a deixá-los pregar,
tinham que ser pacientes e tentar a persuasão; se nada conseguissem, deviam passar a outra
terra, sem humilhar nem esmagar quem se lhes opunha com as ordens escritas da [96]
metrópole romana; a humildade e a bondade que pregavam não podiam tolerar que se
procedesse doutro modo.
Não se cansava de o repetir, quando todos os anos, durante as festas de Pentecostes,
os irmãos corriam de toda a Europa, a reunir-se na Porciúncula. Faziam em comum um
repasto frugal e muitos viram Francisco misturar água ou cinzas na comida que lhe parecia
demasiado saborosa; depois Francisco, reunindo-os num cercado ou no abrigo que a cidade
de Assis mandava construir-lhes e que aumentava de ano para ano, pregava-lhes a
mansidão, o amor da pobreza, o desprendimento absoluto de todas as vaidades, a
resistência a todo o baixo impulso que os viesse perturbar; as suas palavras conservavam a
simplicidade que mantivera toda a vida, a modéstia transparecia em cada gesto e os frades
escutavam com veneração, gravando no espírito as normas que lhe ouviam; finalmente, por
votação de todos, escolhiam os chefes que haviam de, no ano seguinte, dirigir cada
província, dada a impossibilidade de Francisco decidir rapidamente dos negócios de todas.
Embora parecesse a Francisco e aos frades mais velhos que o espírito da sua religião
se modificara bastante e que as tendências que apontavam na ordem davam razão aos seus
temores, o povo, os grandes e a Igreja continuavam a ter por eles o mesmo respeito e o
mesmo afecto; incapazes de sentirem as gradações subtis e os aspectos que momento a [97]
momento se mudavam, acolhiam os novos pregadores com o alvoroço e deferência que
mostravam pelos outros; certamente, a maior consideração, as admirações mais reflectidas
e profundas iam para o irmão Francisco e para os que seguiam, sem se afastarem um passo
do caminho, a rota que traçara; mas talvez sentissem mais perto de si, menos penetrados de
um mundo superior, os frades que achavam severa a Porciúncula, embora vivessem
pobremente, sem nada possuírem de seu, além do hábito e do bordão; a perfeição absoluta
secretamente os indispunha e, louvando, apontando o alto exemplo, se retraíam, no temor
de penetrarem nos ares que não podiam respirar.
A vida de Francisco seria para ele e para os discípulos da primeira hora. Já a própria
Igreja, que tanto os estimava e tão bem os acolhia, pensava em organizar a ordem de modo
a torná-la maleável e prática; era necessário que se cortassem muitas das asperezas que
Francisco introduzira na regra e que não convinham à maioria dos homens, que

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impossibilitavam até a vida de qualquer grupo numeroso; por outro lado, aquela existência
plenamente livre dos jograis de Deus, aquele vagabundear por monte e plaino, aquele
directo entendimento com o mundo do Senhor, não iam sem perigos que urgia prevenir;
nem todos tinham o temperamento, o perfeito domínio das paixões, a pureza de alma de [98]
Francisco. O cardeal Hugolino, religioso e político, ascético e mundano, aceitou o encargo
de proteger a ordem, a pouco e pouco a foi tornando adaptável à vida comum, limando-lhe
as arestas, tornando as regras menos duras, mas unindo todos os irmãos por uma disciplina
minuciosa e firme.
Tudo se ia organizando e regulando numa ampla vitória que vinha coroar todos os
esforços dispendidos; mas uma funda saudade crescia na alma de Francisco, saudade dos
tempos em que, sozinho ou com um irmão que perfeitamente o entendia, levava os
rebanhos às pastagens ou rezava na margem das ribeiras, entre os choupos; já por vezes
surgira a tentação de abandonar a ordem, de voltar a ser um trabalhador solitário,
desprendido de cuidados de governo; um dia mesmo consultara Clara e o irmão Masseo;
ambos tinham respondido que devia continuar e que, se deixasse de dirigir a ordem, em
caso algum devia retirar-se para os montes, todo perdido na meditação e na prece; o seu
lugar era entre os homens, por eles devia sacrificar o seu amor da solidão. Muito havia que
fazer e, se o triunfo lhe trazia desilusões e pesares, bem sabia Francisco que só a ele se
devia acusar, porque não trabalhara com o zelo bastante, porque fora mole e fraco onde
eram necessárias a persistência e a coragem.
O velho plano de catequizar os infiéis reapareceu à luz; foi a Roma e o cardeal [99]
Hugolino obteve-lhe uma audiência do papa; Francisco entrou, prostrou-se aos pés do
Santo Padre, reverentemente lhe beijou a orla do vestido; depois levantou-se e pregou ante
o Pontífice e a roda de cardeais, que o ouviam complacentes; falou-lhes do projecto de ir
levar ao coração dos árabes a doutrina cristã, de os converter ao amor de Jesus, de os fazer
caridosos, humildes, prontos a submeterem-se à autoridade de Roma; o cardeal Hugolino
tinha-lhe preparado um discurso cuidadoso que Francisco aprendera de cor e que de todo
se lhe varrera da memória mal penetrara na sala; pregava agora como nas ruelas das aldeias
e no rebordo dos valados; e tão fundo o tomou o entusiasmo de um universo que todo se
regia pelos ritmos de amor que, ante o espanto inquieto de Hugolino, se pôs a dançar
freneticamente, agitando os braços e as pernas; o papa, comovido, fitava nele os olhos
embaciados pelas lágrimas; e logo conseguiu Francisco a licença que pedia.
Despediu-se do irmão Giacoma e partiu para a sua cruzada. Os cristãos estavam
cercando Damieta e bravamente se batiam os dois exércitos; todos os dias o sangue corria
empapando a terra gretada do calor; Francisco assistiu aos assaltos furiosos, viu
quebrarem-se as escadas apinhadas de homens, despejarem os árabes as panelas de azeite,
incendiarem-se as barricas de pez; por vezes, nas sortidas que tentava o infiel, as duas
cavalarias se chocavam com estrondo e o terreno ficava alastrado de feridos que gemiam; [100]
por entre as tendas vagueava a multidão dos mutilados, marchava de braço dado, em
grandes bordos, a soldadesca embriagada; as mulheres que acompanhavam o exército

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cristão tocavam, cantavam e bebiam, por todo o arraial ia um rumor confuso de gritos, de
pragas e de tinidos de armas; Francisco, horrorizado, confrangido pelo sangue que via
derramar, mais sentia apertar-se o coração quando olhava o exemplo de brutalidade, de
insolência criminosa, de franca imoralidade que os cruzados estavam dando.
Resolvido a tentar a sua empresa, passou os postos avançados e recebeu com um
sorriso afectuoso os insultos e as pancadas dos árabes; depois gritou pelo sultão e tanto
repetiu o clamor que o levaram à presença do chefe; dispôs-se o árabe a ouvi-lo e Francisco
disse-lhe a vida de Jesus, contou-lhe os episódios que melhor mostravam o seu amor dos
homens, a sua piedade, a mansidão que nada podia perturbar; repetiu-lhe as palavras em
que Jesus pedia a todo o homem que fosse bom com os seus irmãos, que esquecesse as
injúrias e a cada golpe se tornasse mais caridoso e paciente. O sultão ouviu com simpatia o
que Francisco lhe tinha que dizer; quando o viu calar-se fez-lhe comunicar pelo intérprete
todo o gosto que tivera em o escutar e todo o seu interesse pela figura de Jesus; era-lhe, no
entanto, impossível abandonar a religião que seguia; e, enquanto dava ordens para que o [101]
conduzissem com todo o respeito aos postos avançados e se despedia cortesmente de
Francisco, pediu-lhe que rezasse por ele, que nunca o esquecesse nas suas orações.
Tencionava Francisco demorar-se nas paragens do Oriente, mas um dos irmãos que
mais lhe queria veio procurá-lo e trazer-lhe notícias da Itália. Os acontecimentos
precipitavam-se na ordem: alguns frades entendiam que se não violava a fidelidade ao voto
de pobreza se a propriedade fosse comum e não de cada um dos irmãos; outros estavam
dispostos a aceitar a oferta que lhes faziam de bispados e de altos cargos eclesiásticos;
acontecera também que tinham surgido demandas e alguns irmãos disputavam nos
tribunais; tinham julgado necessário regulamentar, com estreita norma, os jejuns e
penitências; finalmente, haviam conseguido do papa a excomunhão contra quem tentasse
incomodar as irmãs de Clara. Francisco partiu imediatamente, com a alma dilacerada pela
dor de ver os seus frades tão próximos do mundo; depois, mais calmo, anunciou no
capítulo da Porciúncula que deixava o seu cargo; podia ser que fossem indispensáveis as
disposições que se tinham tomado; ele, porém, não se sentia disposto a faltar aos preceitos
evangélicos que toda a vida se esforçara por seguir.
Se fosse preciso, voltaria ao princípio, a cuidar dos irmãos leprosos e a reconstruir as
igrejas do Senhor; queria continuar humilde e pobre e afastava-se para não envergonhar os [102]
frades sabedores que tinham estudado a teologia, o direito, frequentavam as universidades e
continuamente liam os grandes livros escolásticos; seguiria a sua vocação e tentaria ser um
discípulo de Cristo; poderia, como fundador da ordem, obter do papa uma regra mais
severa ou obrigá-los pelo voto de obediência que tinham feito ao entrarem na irmandade;
mas, o que não conseguia pelo bem, não o queria conseguir pelo mal, a ninguém forçaria a
tomar um caminho determinado; ele ia continuar na tarefa em que sempre o tinham visto
ocupado; os outros fariam o que quisessem e apenas teriam da sua parte o conselho de
seguirem Jesus, de não faltarem às normas que os poderiam levar à grande vida que lhes

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pregava; em toda a hora contariam com o seu perdão, o seu amor de pai pelos filhos, o seu
acolhimento afectuoso.
Já havia quem pregasse aos grandes do mundo e se acomodasse mais do que ele às
exigências dos palácios; Francisco, sem pensar na tarefa que outros tomavam
gostosamente, voltou ao contacto dos humildes, esquivando-se a todos os convites que lhe
faziam os poderosos; entre o povo que se juntava à sua volta sentia crescer, como em terra
mais fecunda, a semente que lançava; o coração dos camponeses que trabalhavam de sol a
sol, dos pastores que vigiavam os rebanhos, tocando a flauta à sombra dos arvoredos,
estava mais perto da sua própria alma, nele ecoava com mais força o apelo que, insistente, [103]
lhes fazia; carreiros e almocreves paravam a ouvi-lo nas estradas ou o levavam por
companheiro; e nas terras importantes era mais viva a palavra de Francisco quando via
reunidos os homens de oficina, os criados, os vagabundos, os mendigos, todos os escravos
e todos os oprimidos da terra, os que mais precisavam de consolação e de esperança.
Quase sem intervenção directa de Francisco, um grande movimento popular
alastrava na Itália; muitos dos que, presos aos deveres da família e a encargos do mundo,
não podiam abandonar os seus bens e seguir a vida de Francisco, tinham fundado núcleos a
que já se ia dando o nome de Ordem Terceira. Humildemente vestidos de pano grosseiro,
sem uma jóia ou um adorno, reuniam-se para fazer colectas que destinavam aos pobres ou
para assistir a festividades religiosas; tinham tomado o compromisso de se não servirem de
armas e já estalavam conflitos com as autoridades que pretendiam obrigá-los a alistarem-se
nos exércitos; não recorriam aos tribunais: entre si dirimiam os pleitos, que só terminavam
pela completa conciliação; não prestavam juramentos porque eram contra a lei cristã;
recusavam-se a desempenhar os empregos públicos que trazem consigo a propensão à
tirania e injustiça. A Ordem crescia dia a dia, já estava sendo na Itália, para os mais [104]
perspicazes e austeros, um perigoso fermento de indisciplina e de dissolução social.
Breve se lhe havia de alargar o movimento que se operava entre os frades
franciscanos. Toda a flutuação e liberdade do início desapareciam por completo, a regra
acentuava-se nas linhas rígidas que oprimiam Francisco; a obediência aos superiores
tornava-se total, anulavam-se as condições que o fundador tinha disposto para o seu
exercício; proibia-se a censura aos chefes, que era lícita nos capítulos da Porciúncula; a não
resistência ao mal que Francisco pusera em acção na cabana de Rivotorto e nos postos de
Damieta abolia-se também; os irmãos podiam defender-se contra quem tentasse maltratá-
los ou vexá-los ou prejudicar os seus interesses; daí em diante exigia-se um ano de
noviciado para experimentar as vocações; e ninguém podia sair da ordem depois de ter
pronunciados os seus votos; acabava-se de vez com os vadios que punham em perigo o
prestígio da ordem e a impediam de ser, como o pretendia o novo geral Elias de Cortona,
poderosa no mundo e no seio da Igreja.
A pouco e pouco se foi restringindo a liberdade de Francisco e lhe foram ajudando
o desejo antigo da vida cenobítica; o irmão que se não afastava dos princípios mais severos
podia dar ao povo a impressão de que tinham degenerado os outros frades; ele próprio o

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julgava; quando foi a Roma pela última vez encontrou-os pelas antecâmaras dos cardeais e
[105]
quase conselheiros do papa; tinham modos veneráveis, compassados e discretos os irmãos
palatinos; em casa do cardeal Leão quiseram dar-lhe o mesmo tratamento, sentá-lo à mesa
rica e banqueteá-lo, como a um grande senhor; mas Francisco desceu à cozinha do palácio
e, aproveitando desconhecerem-no os criados, ganhou, areando as panelas, a sua malga de
sopa; e um dia partiu, na lama e na chuva, sozinho pela estrada deserta, cantando como
outrora, contente de se ver liberto das galas e confortos do palácio de Leão.
Perto de Greccio passou a noite de Natal; e tão grande era o seu desejo de Jesus, de
tal modo a figura do Mestre lhe enchia os sonhos e a vida que decidiu adorar o Menino,
como outros pobres tinham feito na remota noite de Belém; arranjaram-lhe os amigos uma
gruta à maneira de estábulo, com manjedoura em que comiam um boi e um jumento; mais
abaixo, numas palhas, estava deitada a imagem do Menino; à roda, as velas lançavam a sua
claridade, doce e trémula, enquanto, num altar ao fundo, um padre dizia missa; Francisco,
prostrado ante as palhas, adorava Jesus, via-o sorrir e agitar-se como se, na grande noite,
tivesse desfilado na turba de lavradores e pegureiros; mais uma vez, na branda língua
provençal, entoou os louvores do Senhor piedoso; depois, levantando-se, pregou à gente [106]
que se juntara, emocionada, a presenciar a estranha cena.
Francisco pressentia que pouco tempo mais duraria a sua vida; todo o corpo se lhe
crivava de dores, quase não podia alimentar-se, mal dormia e uma doença de olhos que o
atacara em Damieta punha-o meio cego, sem poder contemplar, dias inteiros, o espectáculo
do mundo; sofria muito e, certa manhã, ouviram-no pedir perdão ao irmão corpo de tão
mal se ter portado com ele, não lhe dando repouso, obrigando-o a excessivo trabalho e às
privações que finalmente o tinham arruinado. Os médicos teimavam em salvá-lo e
resolveram fazer-lhe operação aos olhos; tinham de lhe queimar as fontes com um ferro
em brasa, para puxar os humores, depois cortar-lhe as veias, para sair o sangue mau;
puseram o ferro no braseiro e, quando o viram vermelhar, aproximaram-se do doente;
Francisco ajoelhou e, abençoando o irmão fogo, recordou-lhe que sempre o tratara com
bondade, louvando o seu poder, a sua graça; em nome da amizade que sempre o ligara ao
irmão fogo, lhe pedia que o não fizesse sofrer demasiado; em seguida, docilmente, deixou
que o operassem.
Era agora impossível recomeçar a sua vida; forçadamente tinha de abandonar a
missão de pregador, de se entregar à contemplação, a uma existência de eremita; tinha
saudades dos irmãos homens, das longas caminhadas pelos montes, das tardes tranquilas ao [107]
canto das lareiras; só o consolava ir compreendendo mais claramente do que nunca a
infinita grandeza do espírito divino. Numa noite o apertaram tanto as dores que esteve a
ponto de cair no desespero; mas, na manhã seguinte, os frades que vieram visitá-lo
ouviram-no cantar em voz baixa, com a face esplêndida, num êxtase de amor, os louvores
de Deus que acabava de compor; dizia o canto a magnífica beleza universal que afirma o
Criador e o faz aparecer no irmão Sol, radiante e luminoso, na irmã Lua e nas Estrelas,
preciosas, delicadas, no irmão Vento, que é sopro leve e violenta tempestade, na irmã Agua,

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diligente, humilde e casta, no irmão Lume, que aclara as noites e é robusto, alegre e forte,
na mãe Terra, que sustenta os homens, os animais e as plantas; e a todas as criaturas pedia
que bendissessem e louvassem o Senhor, lhe agradecessem a bênção de existir e o
servissem com amor.
O estado de Francisco piorava e, no Verão de 1225, Fr. Elias, chamado à pressa,
decidiu transferi-lo para Assis; deram uma larga volta para não passarem em território de
Perúgia, onde havia o perigo de se apoderarem de Francisco e lhe guardarem o corpo como
relíquia. Em Assis o tiveram algum tempo; não conseguia levantar-se e não pôde ir ele
mesmo apaziguar uma discórdia que surgira entre o governador e o bispo; compôs então
mais alguns versos do Cântico do Sol e, depois de pedir ao governador que fosse ao palácio [108]
do bispo, mandou dois frades cantar aos adversários a poesia inteira; em silêncio escutaram
os versos que lhes enviara Francisco; mal o canto acabou, mutuamente se perdoaram as
injúrias. Poucos dias depois, pediu Francisco que o levassem para a Porciúncula; queria
morrer no lugar a que se prendiam as mais belas recordações da sua vida, no lugar em que
tinha nascido a ordem que fundara e em que tinha passado os tempos mais felizes.
Fizeram-lhe a vontade e levaram-no de maca, num lento cortejo em que se
incorporou muita gente de Assis; ao sair da cidade, fez-lhes sinal que parassem,
contemplou demoradamente a paisagem toda penetrada da suavidade e da ternura daquele
fim de estio; em seguida, vagaroso, traçou no ar uma cruz, abençoando a terra inteira. A
marcha reatou-se e, ao chegarem à Porciúncula, pousaram a maca no chão; junto dele
ficaram os irmãos que a seu rogo lhe cantavam sem cessar os louvores das criaturas do
Senhor e, por elas, o supremo louvor do grande Deus; Francisco cantou mais uma estrofe
em que docemente se entregava no embalo da morte, só temerosa para os que passaram os
seus dias no pecado e nas trevas. Clara e as freiras mandavam recados ansiosos, os
mensageiros cruzavam-se entre o convento e a cabana, onde ressoava de contínuo o
cântico de amor. Giacoma, prevenida do estado de Francisco, acorreu de Roma na última [109]
semana e ele próprio calou os escrúpulos dos frades, mandou entrar o «irmão» que o
olhava chorando e lhe mostrava os doces que trouxera, lembrada das suas preferências.
A hora aproximava-se; Francisco, sem falar, com os olhos cerrados, escutava os
irmãos que repetiam os seus versos; depois, no silêncio que fizeram para ouvi-lo, abençoou
todos os frades presentes, todos que se encontravam espalhados pelo mundo, todos que
haviam de entrar na sua ordem até se consumarem os séculos; pediu que à hora da morte o
estendessem nu sobre a terra, num protesto de fidelidade a sua esposa, a Senhora Pobreza.
Calou-se de novo e já o dia declinava; um raio de sol penetrara pela porta da cabana,
rapidamente fugia na parede; então, de súbito, com voz que recobrara toda a clareza e
harmonia de outrora, Francisco entoou um salmo de penitência, a entregar-se nas mãos de
Deus, a elevar até ele a sua alma; à última estrofe um silêncio encheu toda a cabana; a noite
fechava-se; Francisco morrera cantando; e as cotovias que recolhiam aos seus ninhos
voltearam no ar, demoraram-se em chilreios, numa derradeira despedida ao grande amigo
que partira.

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