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Escola Secundária de Gondomar

Departamento de Línguas Românicas


Fichas de Recursos

Nº 30 data: 19 de Agosto de Tema : Argumentação


2007

ARGUMENTAÇÃO

1. Demonstração e argumentação

O desenvolvimento duma teoria da argumentação consiste numa


reacção contra os esforços dos lógicos modernos, que, na tentativa
de renovar a lógica através da análise do raciocínio das
matemáticas, identificaram a lógica com a lógica formal. Com este
procedimento, estes lógicos reduziram de um modo constrangedor
conclusões a partir de premissas, graças a regras de inferência
previamente formuladas. A demonstração reduz-se assim a um
cálculo. A conclusão a que se chega será verdadeira ou sim-
plesmente hipotética em função de as premissas de que se parte
serem verdadeiras ou serem admitidas por hipótese. A influência a
partir destas premissas realiza-se em virtude de transformações
puramente formais, e as operações lógicas a que se procede são
independentes da matéria sobre a qual incide o raciocínio.
Uma tal lógica só pode raciocinar sobre as premissas do
raciocínio a partir do momento em que as demonstra, partindo de
outras proposições até chegar às proposições primitivas, ou seja, os
axiomas do sistema, os quais serão admitidos quer pela evidência
que os impõe a todos, quer a título de hipóteses. Mas a partir do
momento em que se trata de indicar as razões não constringentes
em favor da sua aceitação ou da sua recusa, deixa-se o campo das
provas demonstrativas, portanto da lógica formal, para entrar no da
argumentação. Argumentar é fornecer argumentos, ou seja, razões
a favor ou contra uma determinada tese. Uma teoria da argu-
mentação, na sua concepção moderna, vem assim retomar e ao
mesmo tempo renovar a retórica dos Gregos e dos Romanos,
concebida como a arte de bem falar, ou seja, a arte de falar de
modo a persuadir e a convencer, e retoma a dialéctica e a tópica,
artes do diálogo e da controvérsia.
A prova demonstrativa diz respeito à verdade de uma
conclusão ou pelo menos, à sua relação necessária com as
premissas. Em princípio, a lógica formal não se ocupa da adesão
de qualquer coisa à verdade das proposições em vista. A prova é
impessoal, e a sua validade não depende em nada da opinião:
aquele que infere no seio de um dado sistema só pode aceitar o
resultado das suas deduções. Em contrapartida, toda a argumen-
tação é pessoal; dirige-se a indivíduos em relação aos quais ela se
esforça por obter a adesão, a qual é susceptível de ter uma
intensidade variável.
Enquanto um sistema dedutivo se apresenta como isolado de
todo o contexto, uma argumentação é necessariamente situada.
Para ser eficaz, esta exige um contacto entre sujeitos. É necessário
que o orador (aquele que apresenta a argumentação oralmente ou
por escrito) queira exercer
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mediante o seu discurso uma acção sobre o auditório, isto é, sobre


o conjunto daqueles que se propõe influenciar. Por outro lado, é
necessário que os auditores estejam dispostos a escutar, a sofrer a
acção do orador, e isto a propósito de uma questão determinada.
Querer persuadir um auditor significa, antes de mais,
reconhecer-lhe as capacidades e as qualidades de um ser com o
qual a comunicação é possível e, em seguida, renunciar a dar-lhe
ordens que exprimam uma simples relação de força, mas sim
procurar ganhar a sua adesão intelectual. Não se pode persuadir
um auditório senão tendo em conta as suas reacções, de modo a
adaptar o seu discurso a estas reacções. O discurso argumentativo
não é um monólogo onde não existe qualquer preocupação em
relação aos outros. O que vaticina sem se preocupar com o seu
auditório assemelha-se a um alienado, estranho ao mundo e à
sociedade, a menos que seja o porta-voz de uma divindade ou de
uma força sobrenatural. De facto, querer persuadir alguém é, à
partida, não partir do princípio, que tudo o que se irá dizer aceite
como a «palavra do Evangelho».
A argumentação é essencialmente comunicação, diálogo,
discussão. Enquanto a demonstração é independente de qualquer
sujeito, até mesmo do orador, uma vez que um cálculo pode ser
efectuado por uma máquina, a argumentação por sua vez necessita
que se estabeleça um contacto entre o orador que deseja convencer
e o auditório disposto a escutar. E isto é verdadeiro, mesmo no
caso de uma deliberação íntima, de que não se pode compreender o
desenvolvimento senão desdobrando a pessoa que delibera em
orador e auditório; de outro modo, uma expressão tal como «não
escutes o teu mau génio» seria incompreensível.
Não devemos esquecer, com efeito, que toda a argumentação,
na medida em que se propõe exercer uma acção qualquer sobre o
auditório, de modificar a intensidade da sua adesão a certas teses,
tem como efeito incitar a uma acção imediata ou pelo menos
predispor a uma acção eventual.
Quando o porta-voz de um partido político se declara disposto
a escutar as propostas de um primeiro-ministro encarregado de
formar governo, quando Churchill proíbe aos diplomatas ingleses
de ouvir sequer as propostas de paz dos emissários alemães,
estamos perante dois exemplos de atitudes significativas no que
respeita à afirmação da existência ou inexistência das condições
prévias da argumentação.
Já dissemos que a disposição ou a recusa de escutar dizem
respeito a uma questão determinada. Para Aristóteles existem
questões que não poderão ser objecto de uma discussão: «aqueles
que se interrogam se é ou não preciso honrar os deuses e amar os
seus pais só precisam de uma boa correcção, e aqueles que se
interrogam se a neve é ou não branca não têm senão que olhar»
[Tópicos, I, 105a, 5-8]. Certas prescrições, certas situações, certas
reputações são indiscutíveis num determinado contexto, e o
simples facto de as pôr em discussão é condenável moralmente,
legalmente ou politicamente. Hoje em dia, as questões que se
consideram sob a alçada da «coisa julgada» não podem ser
retomadas pelos tribunais.
Demóstenes informa-nos que um decreto ateniense proibia,
sob pena de morte, a introdução de um projecto de lei que
modificasse os destinos do fundo de reserva da cidade [Primeira
Olíntica, § 19].
Toda a sociedade organiza instituições que, em certas matérias
consideradas importantes, facilitam a criação do contacto
intelectual e o início
da discussão: basta pensar nas instituições judiciárias e políticas,
na organização das Escolas e das Igrejas, nas festas nacionais ou
religiosas que, periodicamente, permitem evocar determinados
assuntos diante de certos auditórios. Note-se, aliás, que os mesmos
governos que atribuem tanta importância à possibilidade de
doutrinar os cidadãos se esforçam por privar os seus adversários
de qualquer contacto com um eventual público, através da censura
e até mesmo do monopólio dos meios de comunicação.
Repare-se igualmente que são necessárias certas qualidades
para tomar a palavra diante de um determinado auditório,
dependendo aliás essas qualidades do género de auditório e da
espécie de questões tratadas. Às vezes, é necessário exercer uma
certa função, gozar de uma certa notoriedade, possuir uma
competência já reconhecida ou estar especialmente habilitado para
o efeito.
É óbvio que o contacto entre o orador e o seu auditório não se
estabeleceria sem a existência de um meio de comunicação, de
uma linguagem que o auditório compreende e que o orador deverá
utilizar para poder agir sobre aquele.
Na argumentação o meio de comunicação é uma língua
natural, tal como o português, o italiano ou o francês, cujo nível de
elaboração, de precisão ou de ambiguidade possa ser
extremamente variável, segundo o género de discurso. A
linguagem utilizada na demonstração é uma linguagem artificial,
tal como a linguagem simbólica da lógica ou da aritmética, da qual
toda a ambiguidade deve ser previamente eliminada. As regras de
cálculo da álgebra ou da aritmética não se podem compadecer do
mínimo equívoco, uma vez que a verdade ou a falsidade de uma
proposição devem resultar unicamente da sua forma, a qual não
pode admitir, por isso, interpretações diferentes. Nada de parecido
acontece com a argumentação, que utiliza a linguagem comum ou
a linguagem natural adaptada, se tal for necessário, às
necessidades de uma ou outra disciplina.
Toda a argumentação visa a adesão do auditório. As razões
para admitir ou rejeitar uma tese podem ser diversas. A verdade ou
falsidade desta constituem unicamente um motivo de adesão ou de
rejeição no meio de tantos outros: uma tese pode ser admitida ou
afastada porque é ou não oportuna, socialmente útil, justa e
equilibrada.
Enquanto a verdade é uma propriedade da proposição, o
mesmo não acontece com a adesão: esta é a adesão de um sujeito,
de um auditório, e a intensidade de adesão a uma tese constitui
uma grandeza variável, constantemente confrontada com a adesão
a outras teses: é a razão pela qual a intensidade da adesão poderia
sempre ser utilmente acrescida, o que não é o caso quando se trata
da verdade de uma proposição.
Com efeito, confiando na coerência do real, pressupomos que
uma proposição verdadeira não pode contradizer uma outra
proposição verdadeira. Se duas proposições implicam uma
conclusão falsa, em virtude do princípio de não contradição, uma
das premissas será necessariamente falsa, ou seja, sem valor. Em
contrapartida, concebe-se perfeitamente que duas teses, nas quais
se acredita igualmente, implicam condutas incompatíveis e, desde
logo, que se deva renunciar com muito custo a uma delas se se
quiser conservar a outra. Aquilo a que se renuncia não perdeu todo
o valor, e o sacrifício a que se é constrangido não é de modo
nenhum ilusório. Este aspecto da argumentação faz-nos
compreender por que razão as
teses admitidas, na própria argumentação, não estão de maneira
nenhuma ao abrigo de qualquer constatação.

2. O orador e o seu auditório

Quem são aqueles que, no sentido técnico da teoria da


argumentação, constituem o auditório de um orador? Serão todos
aqueles que entendem o seu discurso ou todos aqueles que poderão
lê-lo quando ele for publicado? Evidentemente que não. Um chefe
de governo, no Parlamento, pode negligenciar os membros da
oposição que ele já renunciou a persuadir e que, no entanto, o
escutam. Será aquele que é interpelado no início do discurso? Nem
sempre. Não é pelo facto de o orador se dirigir na Câmara dos
Comuns ao speaker, ou seja, ao seu presidente, que este último
constitui o seu auditório. Também não é pelo facto de o segredo
das deliberações ter sido violado que um discurso confidencial,
pronunciado numa assembleia limitada, se dirige a todos aqueles
que, a seguir às indiscrições, dele terão podido tomar
conhecimento. De facto, o auditório, tecnicamente, é o conjunto de
todos aqueles que o orador quer influenciar mediante o seu
discurso.
O orador deve ter do seu auditório uma ideia tanto quanto
possível próxima da realidade, uma vez que um erro sobre este
ponto pode ser fatal para o efeito que ele quer produzir; é em
função do auditório que toda a argumentação se deve organizar, se
esta quiser ser eficaz. Também grandes oradores, tais como
Bossuet e Demóstenes, insistiram no facto de que são os auditores
que formam os oradores: «Não sois vós que vos deveis esforçar
por fazer o que eles querem, são sobretudo eles que se devem
esforçar por fazer aquilo que pensam que vós desejais»
[Demóstenes, Sobre as Finanças, § 36]. E assim que a qualidade
do auditório determina a da argumentação.
É portanto indispensável para o orador conhecer o auditório
sobre o qual quer exercer a acção. É a razão pela qual o segundo
livro da Retórica de Aristóteles contém análises de psicologia
diferencial, onde se examinam as emoções e as paixões dos
auditores, segundo a sua idade, nascimento, fortuna e poder. Poder-
se-iam utilizar para este estudo as contribuições da sociologia:
cada meio social poderia ser caracterizado através das suas opi-
niões dominantes, das suas convicções indiscutíveis, das teses que
admite sem hesitar. Tem interesse realçar a este propósito que
Aristóteles não distingue os auditórios segundo o seu grau de
conhecimento e competência, porque para ele a retórica não se
dirige senão a auditórios não especializados. Para ele, quanto mais
um discurso é científico, mais é demonstrativo e mais se afasta da
retórica, salvo quando se trata de discutir os princípios de cada
disciplina, o que faria aliás da filosofia o estudo dos princípios, ou
seja, um ramo onde a argumentação desempenharia um papel
essencial. Mas, segundo o nosso ponto de vista, existe
argumentação desde que o discurso não seja redutível a um
cálculo. Então, no caso de um meio especializado, quer se trate de
cientistas, de juristas, de adeptos de uma ideologia ou de uma
religião, é indispensável conhecer o conjunto das crenças, das
aspirações e das regras sobre o qual existe um acordo e em relação
ao qual todo o recém-chegado tem de ser iniciado. É esta iniciação
que se dá tanto nas universidades como nas escolas paroquiais,
tanto nos cursos de
deontologia como nos cursos de formação de militantes de um
partido: ela permite ao recém-chegado conhecer as teses admitidas
na comunidade na qual gostaria de se integrar e argumentar com
competência diante dos seus pares.
Às vezes o que é determinante é o papel que o auditório deve
preencher, o que permite a Aristóteles [Retórica, I, 1385b, 2-7]
classificar os discursos em três géneros oratórios, o deliberativo, o
judiciário e o epidíctico, de acordo com as funções que os
auditores têm de desempenhar: deliberar, julgar ou simplesmente
usufruir como espectador do desenvolvimento oratório. Voltaremos
mais tarde a esta classificação para mostrar a insuficiência da
definição do género epidíctico.
Acontece encontrarmo-nos diante de um auditório compósito,
o qual se tem de dividir pelo pensamento para poder utilizar
argumentos diferentes a respeito de cada uma das partes assim
assinaladas. Acontece mesmo que, encontrando-nos diante de um
número limitado de auditores, até mesmo diante de um único, não
saibamos qual é a melhor m1meira de o envolver para sobre ele
agir de modo eficaz.
Numa divertida passagem do seu romance Tristram Shandy,
[1, capo XVIII], uma obra-prima de humor em que a argumentação
constitui um dos temas subjacentes, Laurence Steme descreve uma
discussão entre os pais de Tristram antes do nascimento deste
último, em que o pai queria convencer a mãe a recorrer aos
serviços de um parteiro: «Fez valer os seus argumentos sobre todos
os prismas; discutiu como cristão, como pagão, como marido,
como pai, como patriota, como homem: a minha mãe só respondeu
como mulher. Foi um duro jogo para ela: incapaz de adoptar em
combate tantas máscaras diversas, sustentava uma parte desigual,
batendo-se como se fosse um contra sete».
Na realidade, o orador mudava na medida em que inventava
outros aspectos na esperança de influenciar a mulher e ganhar a sua
causa. Observamos que cada um dos papéis que ele desempenha
corresponde a uma outra função social, mas também a valores, a
aspirações, a ideais diferentes.

3. Retórica clássica e teoria da argumentação

Na medida em que o projecto da retórica era agir eficazmente


mediante o discurso sobre um auditório reunido na ágora, aquela
foi atacada vigorosamente por filósofos tais como Sócrates e
Platão que a acusavam de demagogia e desprezo pela verdade. E,
de facto, se o orador que se esforça por triunfar sobre o seu
adversário não hesita na escolha dos seus meios, se para o
conseguir está pronto a utilizar todas as técnicas demagógicas, o
seu triunfo parecerá, não sem razão, desprezível ao filósofo.
Mas há mais. Pode mesmo perguntar-se se é sempre louvável
dirigir-se a um auditório e aceder às suas condições. Conhece-se a
história de Aristipo, a quem se censurava ter-se rebaixado diante
do tirano Dionísio, ao ponto de se lhe ter posto aos pés para ser
ouvido. A isto respondeu Aristipo que a culpa não era sua, mas sim
de Dionísio que tinha os ouvidos nos pés. Mas será que é
indiferente o sítio em que tinha os ouvidos?
O problema de conciliar os escrúpulos do homem honesto com
a submissão e a adaptação a um auditório, por vezes bem pouco
respeitável,
preocupou bastante Quintiliano [Institutio oratoria, 11I, IV; XII,
I]. Como fazer de modo a que, falando bem, não se deixe de ser
um homem de bem? Há, com efeito, situações em que somente o
uso da força pode ser recomendável, sendo a acção pelo discurso
ineficaz e por vezes mesmo degradante.
Mas o uso da argumentação não pode ser em princípio
condenável, porque, neste caso, deveríamos também condenar os
f1lósofos que procuram, graças à argumentação, convencer-nos do
bem fundado dos seus ataques contra a retórica.
Platão, que ataca, no Górgias, uma retórica demagógica,
destinada a uma multidão de ignorantes, sonha, no Pedro [273c],
com uma retórica digna do f1lósofo que pudesse convencer os
próprios deuses. Verifica-se assim que o valor e a qualidade de
uma argumentação não pode medir-se unicamente pelo efeito
obtido: ela depende ainda, e essencialmente, da qualidade do
auditório que se consegue ganhar através do seu discurso. Um
discurso demagógico e enganador poderia talvez persuadir um
auditório de ignorantes, mas não um auditório de elite.
Tradicionalmente, na história da filosofia, utiliza-se a ideia de
razão para designar este auditório exigente que é o do f1lósofo: o
apelo à razão visa este auditório ideal que certos incarnam num
pensamento divino e que deve antes ser considerado como um
auditório universal. O que é evidente para a razão impõe-se a todo
o ser dotado de razão. Do mesmo modo, aquilo que é convincente
para o auditório universal deveria ser admitido para todos os que
dele fazem parte. Se alguém não for convencido pelo discurso que
se pretende válido para todos, então, ou o recalcitrante mostrará
que, por uma ou outra razão, a argumentação não é aceitável pelo
auditório universal ou, se ele se mantiver numa oposição
injustificada, será necessário desqualificá-lo, excluí-lo do auditório
universal. Mas esta concepção pode variar segundo as épocas. É
assim que, para Santo Anselmo, aquele que duvida da existência
de Deus é um "insensato» e, para La Bruyere, não é um homem
mas um monstro.
Alguns pretenderam opor o discurso que visa convencer ao
discurso que visa persuadir, sendo o primeiro um apelo à razão e o
segundo, pelo contrário, um apelo à emoção e às paixões do
auditório. Mas esta maneira de ver supõe uma psicologia das
faculdades tomadas obsoletas, a qual consideraria que a razão, a
vontade e as emoções estão nitidamente separadas no homem.
Poder-se-ia, pelo contrário, distinguir o discurso persuasivo do
discurso convincente na medida em que o primeiro se dirige a um
auditório particular, quer se trate de um indivíduo ou de um grupo
restrito, enquanto o último visa o auditório universal. É assim que
o discurso persuasivo é um discurso ad hominem ou ad contionem,
enquanto o discurso convincente é ad humanitatem.

4. A petição de princípio e a adesão do auditório

O conhecimento das teses e dos valores admitidos pelo


auditório ao qual nos dirigimos é essencial porque é entre eles que
o orador deverá procurar o ponto de partida do seu discurso. Se
nos enganamos a este respeito, arriscamo-nos de facto a cometer
involuntariamente o erro mais
grave de toda a argumentação, aquele que pode tomá-la ineficaz, a
saber, a petição de princípio.
Durante muito tempo considerou-se a petição de princípio
como uma falta lógica relativa à demonstração. Mas, se com isso
se queria entender um raciocínio que coloca como premissa a tese
à qual deve chegar a conclusão, o princípio de identidade (se p
então p) seria nesse caso a forma da petição de princípio e revelar-
se-ia um erro de lógica, enquanto é uma das leis incontestadas da
lógica formal. Com efeito, é uma verdade incontestável que, se
uma proposição é verdadeira, então ela é verdadeira. Mas as coisas
apresentam-se de um modo completamente diferente se a petição
de princípio for definida, não em termos de verdade, mas em
termos de adesão. Trata-se, com efeito, de um erro de
argumentação o facto de supor admitida uma tese que se desejaria
fazer admitir pelo auditório.
Um exemplo clássico de petição de princípio encontra-se nesta
passagem de Antífonte sobre o assassínio de Herodes [§ 73]:
«Saibam bem que eu mereço muito mais a vossa piedade do que
um castigo. O castigo recai, com efeito, sobre os culpados; a
piedade, sobre os que são objecto de uma acusação injusta».
Admitir-se-á a conclusão, se se reconhecer que Antífonte é
objecto de uma acusação injusta; esta hipótese constitui uma
petição de princípio, uma vez que o processo diz justamente
respeito à culpabilidade ou inocência do acusado, e o juiz não
poderia aderir à conclusão que Antífonte é o objecto de uma
acusação injusta senão depois de ter julgado a seu favor.
Para evitar basear a sua argumentação sobre uma petição de
princípio, é portanto necessário conhecer as teses admitidas pelo
auditório. Se este é constituído por um só interlocutor ou por um
pequeno número, é possível com utilidade assegurar-se sobre a
adesão do auditório através de questões directas. É essa técnica a
que recorre Sócrates nos diálogos platónicos. Mas quando, por
uma outra razão, não é possível assegurar-se, de uma maneira
explícita, que o auditório adira às teses iniciais, será necessário que
o orador se contente com uma suposição a este respeito.
Esta suposição será tanto mais segura quanto se é levado a
pensar que o auditório, por sua natureza, deva aderir a certas teses,
tais como os dogmas da religião, quando se trate de um destes
problemas face a um auditório de crentes, ou como os textos
legais, quando se se dirige a um juiz que se considera aplicar a lei
do país, ou como as proposições admitidas pelos possuidores de
uma disciplina, quando a argumentação diz respeito a esta última.
Aqueles que se dirigem ao auditório universal não podem supor
como admitidos senão factos objectivos, verdades incontestáveis,
valores universais, supostamente admitidos por todos os seres
razoáveis e competentes.

5. Os factos, as verdades e as presunções

Notemos, a este propósito, que o objectivo e o universalmente


válido não se definem na argumentação, como numa ontologia ou
numa epistemologia, através de critérios intrínsecos,
independentemente daquilo que poderia admitir-se a este respeito.
Na argumentação, estas duas caracterís
ticas estão ligadas às reacções do auditório universal ou, pelo
menos, àquilo que o orador presume destas reacções. Assinala-se
assim que a maneira como cada orador concebe o auditório
universal ao qual ele se dirige não é mais do que uma hipótese,
uma construção do seu espírito, que será submetida à prova da
experiência, quer dizer, a todos aqueles que supostamente fazem
parte deste auditório. Concebe-se que, nestas condições, o estatuto
daquilo que é objectivo e universalmente válido nunca se encontra
ao abrigo de uma controvérsia, de uma eventual crítica, da qual se
tivesse de apreciar o bem fundado. Toda "a ontologia e toda a
epistemologia que se esforcem por fornecer os critérios da
realidade e do conhecimento válido, independentes das reacções
do auditório, fundar-se-iam necessariamente sobre as reacções
privilegiadas - a evidência, a intuição irrefutável- de um espírito,
quer se trate do espírito divino, ou do espírito do orador para
impor, ou pelo menos propor, a todos, as conclusões às quais ele
próprio chega. Descartes serve-se desta técnica nitidamente
argumentativa para passar daquilo que ele próprio admite àquilo
que poderia ser admitido por todos. É assim que as suas
Meditationes são redigidas na primeira pessoa, embora explique na
Praefatio: «exporei em primeiro lugar, nestas Meditações, aqueles
mesmos pensamentos com cujo auxílio creio que alcancei um
conhecimento certo e evidente da verdade, a ver se porventura
também posso persuadir os outros com as mesmas razões que me
persuadiram» [1641, trad. it. I, pp. 193-94]. A certeza de ter
encontrado a verdade é garantida a Descartes pelas quatro regras
do seu método, e, sobretudo, pela primeira, que consistia em
«nunca admitir nenhuma coisa por verdadeira que eu não a
reconheça evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a
precipitação e a presunção; e não compreender nada mais nos
meus juízos senão aquilo que se apresentasse tão claro e
distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião
para o pôr em dúvida» [1637, trad. it. p. 142]. As ideias claras e
distintas são conhecidas com uma evidência que garante a verdade
do seu objecto. E assim que qualquer ideia que se imponha a
Descartes pela sua evidência deverá ser reconhecida como
verdadeira por todo o ser dotado de razão.

. Ao lado de factos e de verdades, baseamo-nos frequentemente


em presunções que, não sendo tão seguras, fornecem contudo uma
base suficiente para sustentar uma convicção razoável. As
presunções estão associadas habitualmente àquilo que
normalmente se produz e sobre o que é razoável pressupor.
Se estas presunções, ligadas à experiência comum e ao senso
comum, permitem orientarmo-nos na vida, podem, contudo, ser
contraditadas pelos factos porque o inesperado não é de excluir.
Eis alguns exemplos de presunções: a qualidade de um acto
manifesta a qualidade da pessoa, a presunção da credulidade
natural que faz com que o nosso primeiro movimento seja de
acolher como verdadeiro aquilo que nos é dito, a presunção de
interesse, segundo a qual todo o enunciado trazido a nosso
conhecimento é suposto interessar-nos; a presunção que concerne
o carácter sensato de qualquer acção humana.
As presunções fundam-se na ideia de que foi o normal que !!e
produziu. Mas como a noção de normal é susceptível de
interpretações variadas, pode sempre encetar-se uma discussão
sobre o facto de saber se a presunção
é aplicável numa dada situação. Trata-se então de uma tentativa de
inverter uma presunção que favorece a tese do adversário.
Enquanto as presunções do homem podem sempre ser combatidas,
certas presunções legais são inquestionáveis; enquanto as
presunções ordinárias dispensam qualquer prova suplementar para
aqueles que delas se aproveitam, as presunções inquestionáveis,
para além disso, não admitem prova contrária e permitem assim
estabilizar as situações. É o caso das situações cobertas pela
prescrição e daquelas que protegem a coisa julgada.

6. Os valores, as hierarquias e os lugares do preferível

Aos argumentos que dizem respeito ao real, conhecido ou


presumido, podem ser opostos aqueles que afirmam aquilo que é
preferível: os valores, as hierarquias e os lugares do preferível, isto
é, juízos de valor. Fala-se de valor, segundo a definição de L.
Lavelle: quando nos ocupamos com ~(uma ruptura da indiferença
ou da igualdade entre as coisas, sempre que uma de entre elas deve
ser posta antes de uma outra ou por cima de uma outra, sempre que
ela é julgada superior e merece ser-lhe preferida» [1951, 11, p. 13].
Enquanto os valores indicam uma atitude favorável ou
desfavorável a respeito daquilo que é assim quaIif1cado, as
hierarquias indicam expressamente os valores hierarquizados.
Os juízos de valor e as hierarquias, na medida em que são
controversos, foram considerados pelo filósofos positivistas como
desprovidos de qualquer objectividade, contrariamente aos juízos
de realidade sobre os quais, graças à experiência e à verificação,
seria possível o acordo de todos. Pelo contrário, os juízos de valor
serviriam de centros de ligação para grupos particulares.
Contudo, o senso comum admite a existência de valores
universais, tais como o verdadeiro, o bem, o belo e o justo, mas é
preciso assinalar que estes valores não são objecto de um acordo
geral senão na medida em que fIcarem indeterminados: a partir do
momento em que se tente precisá-los, as divergências a seu
respeito irrompem irremediavelmente.
Uma distinção que merece ser sublinhada é aquela que opõe os
valores abstractos, tais como verdade ou justiça, e os valores
concretos, tais como a Itália ou a Igreja.
Valor concreto é aquele que é ligado a um ser, a um grupo, ou
a uma instituição concebida na sua unicidade.
A argumentação pode também apoiar-se em hierarquias
concretas ou abstractas, homogéneas ou heterogéneas. É assim que
se partirá da afirmação que os homens são superiores aos animais e
os deuses aos homens. Tanto se afirmará que a justiça é superior ao
útil; como a causa, superior ao efeito. A estas hierarquias
heterogéneas opor-se-ão as hierarquias homogéneas que dão
preferência à maior quantidade de um valor positivo, ou à mais
pequena quantidade de um valor negativo.
Enfim, os lugares do preferível desempenhariam um papel
análogo às presunções. É possível distinguir entre aqueles lugares-
comuns, válidos em todos os domínios, e os lugares específicos,
próprios a uma disciplina determinada. Os lugares-comuns do
preferível são as afirmações muito gerais que dizem respeito ao
que é suposto valer mais, seja qual for o
domínio de que se trata, enquanto os lugares específicos
determinam aquilo que vale mais num domínio particular. Os
lugares da quantidade afirmam a superioridade daquilo que é
proveitoso ao maior número, daquilo que é mais durável e daquilo
que é útil nas situações mais variadas. A estes opor-se-ão os
lugares da qualidade, que dão como razão para preferir algo o
facto de ele ser único ou raro, de ele ser insubstituível, fornecer
uma ocasião que é urgente não deixar passar.
Notemos, a este propósito, que os lugares da quantidade
caracterizam o espírito clássico, enquanto os lugares da qualidade
são românticos.
Ao lado destes lugares, que são os mais usuais, constatamos o
uso de outros lugares, os lugares da ordem, afirmando a
superioridade da causa sobre o efeito, do anterior sobre o posterior;
os lugares do existente, justificando a preferência daquilo que é
sobre aquilo que somente é possível; os lugares da essência, que
conferem superioridade àquilo que melhor representa a essência;
os lugares da pessoa, declarando a superioridade daquilo que lhe
está ligado sobre aquilo que só diz respeito às coisas e aos outros
seres.

7. Os acordos próprios de certos auditórios

Para além dos objectos de acordo que acabamos de assinalar,


há ainda aqueles que são próprios de certos auditórios. Estes
acordos podem ser de natureza ideológica ou profissional: o crente
é suposto admitir os dogmas da sua religião; o juiz, as normas
jurídicas às quais se deve conformar. Outros acordos podem ser
verificados, no decurso do diálogo, pela adesão, expressa ou tácita,
do interlocutor aos diversos elementos do discurso. É a utilização
desta última técnica que caracteriza os diálogos socráticos.

8. Escolha, presença e apresentação

O facto de serem ilimitados o número e a variedade das teses


que podem servir de ponto de partida para a argumentação leva
necessariamente o orador a fazer uma escolha. Esta selecção diz
respeito, tanto aos factos e aos valores mencionados, como à sua
descrição numa certa linguagem e com uma insistência que varia
segundo a importância que se lhe atribui. A escolha dos elementos,
a escolha de um modo de descrição e de apresentação serão
consideradas de uma maneira tanto mais justificada como
manifestação de um partipris, de uma parcialidade, quanto mais
nitidamente se vir que se lhes poderia opor outra escolha, outra
apresentação, outro juízo de valor.
Uma .afirmação e uma apresentação, que, à primeira vista,
parecem objectivas e imparciais, manifestam o seu carácter
voluntariamente ou involuntariamente tendencioso quando são
confrontadas com outras enunciações, em sentido oposto.
Inevitavelmente, a confrontação, o pluralismo agudizam o sentido
crítico. E graças à intervenção sempre renovada dos outros que se
poderá distinguir melhor o subjectivo do objectivo.
A escolha de certos elementos que se apresentam no discurso
coloca-os no primeiro plano da consciência e dá-lhes, por esse
facto, uma presença
que impede de serem esquecidos. Este pequeno conto chinês
atribuído a Meng-Tzu ilustra este facto: "Um rei vê passar um boi
que deve ser sacrificado. Tem pena dele e ordena que seja
substituído por um carneiro. Ele confessa que isso aconteceu
porque via o boi e não via o carneiro» [Primeiro Livro, § 57].
A presença age directamente sobre a nossa sensibilidade. E, de
facto, a presença de um objecto tal como a túnica ensanguentada
de Júlio César mostrada por António, a comparência das filhas da
vítima ou do acusado, podem comover os auditores ou os
membros de um júri. Mas a presença efectiva pode não somente
distrair os auditores, como arrastá-los numa direcção que não é de
maneira nenhuma desejada pelo orador. É por isso que não é
sempre eficaz recorrer a tais meios para criar a presença.
Pelo contrário, as técnicas de apresentação, criadoras de
presença, são indispensáveis quando se trata de evocar realidades
afastadas no tempo e no espaço: é por isso que é essencial não
confundir a presença, tal como nós a concebemos, que é presença
à consciência, com uma presença efectiva. É o recurso aos efeitos
da linguagem e à sua capacidade de evocação que estabelece a
transição entre a retórica como arte de persuadir e a retórica como
técnica de expressão literária. Apresentando à imaginação aquilo
que está ausente, procura-se combater a impressão imediata sobre
a nossa sensibilidade que aquilo que nos rodeia normalmente
exerce. Com vista à criação da presença, é útil insistir longamente
em certos elementos, mesmo que eles não sejam duvidosos:
prolongando a atenção que se lhes dá, aumenta-se a sua presença
na consciência dos auditores. É demorando sobre um assunto que
se criará a emoção procurada.
Diversas técnicas foram recomendadas para este efeito pelos
mestres da retórica: elas reduzem-se àquilo que nós qualificamos
noutro sítio como figuras de presença [Perelman e Olbrechts-
Tyteca 1958, trad. it. pp. 184-87], tais como a repetição, a anáfora,
a metábola, a amplificação, a congérie, o pseudodiscurso directo, a
enálage e a hipotipose.
Este uso argumentativo das figuras, encaradas habitualmente
como figuras de estilo, permite-nos sublinhar uma distinção
importante. Uma figura é argumentativa se o seu emprego, ao
arrastar uma mudança de perspectiva, parece normal relativamente
à nova situação. Pelo contrário, se o discurso não arrasta a adesão
do auditor, a figura será percebida como ornamento, como figura
de estilo, tendo talvez algum valor literário, mas sendo ineficaz
como meio de persuasão. Só podemos, neste ponto, subscrever as
observações do tratado Do Sublime do Pseudolongino [capo
XVII]: "Não há figura mais excelente do que aquela que consegue
parecer que não é figura. Ora bem, sublime e paixão são como um
remédio e uma ajuda admirável contra a desconfiança levantada
pelo emprego das figuras; e o artificio, admitido de certo modo
como companheiro pelos aspectos da beleza e da grandeza,
permanece, assim, escondido e escapa a qualquer suspeita» .

9. Dado e interpretação

Os factos evocados pelo orador comportam, para além daquilo


que é dado, a maneira de o interpretar e de o descrever.
Compreender-se-á por aquilo que é dado, do ponto de vista da
argumentação, o que, até nova ordem, é unívoco e indiscutido;
opor-se-lhe-á a interpretação, como escolha entre significações
diferentes. A este propósito, pode-se, além disso, distinguir a
escolha entre interpretações do mesmo nível, vulgarmente
incompatíveis, e a escolha do plano de generalidade segundo o
qual se há-de descrever o fenómeno. Uma mesma acção pode ser
descrita como o facto de apertar um parafuso, montar um veículo,
ganhar a sua vida, favorecer o fluxo das exportações.
O facto de apresentar uma interpretação relega as outras para a
obscuridade: não há quase interesse em dissociar, num discurso, o
dado do construído, enquanto não se der conta da multiplicidade
das interpretações possíveis, mas a dissociação é inevitável se
houver controvérsia suscitada por uma interpretação rival.
O mesmo fenómeno produz-se pela ocasião da interpretação
razoável de um texto. Quando apenas se vê uma interpretação
razoável, o texto parece claro: mas aquilo que parece uma
qualidade do texto pode resultar da ignorância ou duma falta de
imaginação.
Os problemas de significação e de interpretação colocam-se a
propósito de signos e de índices. Enquanto os índices reenviam
para uma outra coisa, de uma maneira objectiva, independente de
toda a vontade de comunicação, os signos, pelo contrário, são
utilizados, num acto de comunicação, com vista a esta evocação.
Enquanto uma má interpretação de um índice constitui um erro, a
incompreensão cria um mal-entendido.
Nós hoje somos sensíveis à ambiguidade habitual das
mensagens formuladas numa língua natural, e sabemos que o
desejo de criar uma linguagem sem equívoco conduz
necessariamente à elaboração de uma língua artificial, como a dos
lógicos e dos matemáticos.
Já que somente as palavras não podem garantir uma
compreensão, sem falhas, da mensagem, é preciso procurar fora da
palavra, na frase, no contexto, verbal ou não, naquilo que se sabe
do orador e do seu auditório, suplementos da informação,
permitindo reduzir o mal-entendido, compreender a mensagem de
uma maneira adequada à vontade daquele que a emite. Por vezes,
aliás, a interpretação deverá ter em conta outras exigências,
nomeadamente quando se trata de interpretar textos sagrados ou
textos jurídicos [cf. Perelman 1974].
Se um texto, pelo facto de ser sagrado, é suposto exprimir a
verdade,
é necessário encontrar-lhe uma interpretação satisfatória.
Se o texto jurídico deve guiar-nos na procura de uma solução
equilibrada, é preciso encontrar-lhe uma interpretação que evitará
uma solução única.
A utilização poética da linguagem supõe que nos afastemos do
sentido usual, sendo o desvio relativamente a este último a única
coisa que dará à expressão o valor afectivo ambicionado. Mas já o
uso normal da linguagem oferece possibilidades de escolha
múltiplas: o jogo das qualificações das categorias gramaticais, as
modalidades na expressão do pensamento, as ligações
estabelecidas entre as proposições permitem hierarquizar os ele-
mentos do discurso, colocar o acento sobre este ou aquele dos seus
aspectos. Estas variações foram objecto de análises
pormenorizadas por parte de gramáticos e estilistas.
10 As técnicas argumentativas
.

O facto de o objectivo da argumentação ser o de intensificar a


adesão do auditório a certas teses apresentadas pelo orador traz
como consequência que as técnicas argumentativas se venham a
apresentar sob dois aspectos diferentes. O aspecto positivo
consistirá no estabelecimento de uma solidariedade entre teses que
se procuram promover e as teses já admitidas pelo auditório: trata-
se de argumentos de ligação. O aspecto negativo visará abalar ou
romper a solidariedade constatada ou presumida entre as teses
admitidas e as que se opõem às teses do orador: tratar-se-á da
ruptura das ligações e dos argumentos de dissociação.
É pois essencial, para a eficácia da argumentação, conhecer
este conjunto mais ou menos indefinido de teses admitidas, no qual
a argumentação deverá inserir-se. Enquanto o lógico ou o
matemático raciocinam no interior de um sistema, do qual todos os
elementos foram enumerados previamente, o orador não goza de
uma situação tão privilegiada: a sua argumentação alimenta-se de
um corpus a maior parte das vezes mal definido. Daí fazem parte
as teses de senso comum, teses sobre as quais o auditório exprimiu
o seu acordo de forma explícita, sobre as quais este acordo é pre-
sumido, porque elas relevam de uma disciplina, de uma ideologia,
de uma fé conhecida ou professada pelo auditório. Por outro lado,
a intensidade da adesão a estas teses pode ser variável segundo os
auditores e os argumentos de que o orador se servirá para a
reforçar ou enfraquecer; os argumentos não são constrangedores: a
sua acção também pode ser variável.
Na sua elaboração mais completa, a argumentação apresenta-
se como um discurso em que os pontos de acordo sobre os quais se
apoia, assim como os argumentos avançados, podem dirigir-se,
simultaneamente ou sucessivamente, a auditórios diversos. Não só
estes argumentos interagem constantemente uns sobre os outros,
como os auditores podem, por outro lado, tomar estes mesmos
argumentos, e a relação destes ao orador, como objecto de uma
nova argumentação.
Haverá, pois, lugar para analisar o discurso no seu conjunto,
mas, antes de passar a este estudo sintético, analisaremos diversos
tipos de argumentos, tanto os elementos de ligação como de
dissociação.
Para facilidade de exposição, agruparemos os argumentos de
ligação em três classes: os argumentos quase lógicos, os
argumentos fundados na estrutura do real, e aqueles que permitem
estruturar a realidade.

11 Os argumentos quase lógicos


.

Os argumentos quase lógicos são aqueles que, pela sua


estrutura, lembram os raciocínios formais. Estes parecem o
resultado de um esforço de precisão e de formalização ao qual
teriam sido submetidos os argumentos quase lógicos. Classificá-
los-emos aproximando-os sempre dos raciocínios formais aos
quais eles se aparentam, não deixando de sublinhar ao mesmo
tempo que aquilo que os distingue dá lugar à controvérsia e os
torna, por esse mesmo facto, não constrangentes. Com efeito, a
linguagem vulgar, que é a da argumentação, é susceptível de
interpretações variadas, e uma palavra
U
tl

repetida duas vezes numa mesma proposição pode ser tomada, se


tal for necessário, em dois sentidos diferentes. Certos enunciados,
tais como «um tostão é um tostão», «negócios são negócios»,
«crianças são crianças», que parecem simples tautologias,
aplicações de um princípio incontestado, o princípio da identidade,
tomam-se, ao mesmo tempo, significativos e contestáveis, se a
mesma palavra é tomada em dois sentidos diferentes. Do mesmo
modo, quando nos encontramos diante daquilo que parece ser uma
contradição para tomar o enunciado aceitável, encontrar-se-lhe-á
uma interpretação que a faz desaparecer. É assim que o célebre
fragmento de Heraclito, «entramos e não entramos duas vezes no
mesmo rio», obrigar-nos-á, para o compreender, a dar dois
sentidos diferentes à expressão «o mesmo rio».
Enquanto a linguagem formal pressupõe a univocidade, o que
é primordial na interpretação dos enunciados da linguagem
ordinária é a pressuposição que afirma o carácter coerente e
interessante da sua comunicação. Quando o orador, o responsável
da mensagem, goza de um prestígio divino, ultrapassar-se-ão essas
pressuposições; a pressuposição de que aquilo que diz é verdadeiro
incitar-nos-á a procurar uma interpretação adequada. Como diz
Pascal [1669]: «Quando a palavra de Deus, que é verdadeira, é
literalmente falsa, é verdadeira espiritualmente...» (trad. it. nº 680,
p. 287).
Daí resultará que é, por assim dizer, impossível empurrar para
o absurdo aquele que se serve da linguagem natural, porque quase
sempre pode ser encontrada uma escapatória, graças à
reinterpretação dos termos utilizados. É a contradição que leva ao
absurdo numa linguagem formal em que se impõe a univocidade
dos signos utilizados. Aquilo que lhe corresponde, na
argumentação, é a incompatibilidade entre uma regra afirmada ou
uma atitude adaptada e uma tese anteriormente ou geralmente
aceite, e à qual se é suposto aderir.
Se o professor ensina a não mentir e a obedecer aos pais, que
fazer se o pai manda o filho mentir, ou quando o pai e a mãe dão
ordens incompatíveis? Aquele que proclama que nunca matará um
ser vivo, estará pronto a não tratar um abcesso, o que o levará a
matar um grande número de micróbios?
É ridículo aquele que, sem se dar conta, é apanhado numa
destas situações contraditórias. O riso castiga a sua cegueira [sobre
o ridículo, cf. Perelman e Olbrechts-Tyteca 1958, § 49], porque
não se apercebe que será encurralado entre a escolha e a procura
de um compromisso [Olbrechts-Tyteca 1974, p. 160].
O temor do ridículo e a desconsideração que ele arrasta é um
móbil eficaz na argumentação. Uma mudança de opinião ou de
atitude em que nos colocamos em oposição connosco mesmos é
ridícula se somos incapazes de a justificar. Contudo, podemos
fazer frente ao ridículo, mas é preciso um grande prestígio, uma
grande confiança em si para ousar resistir a esta situação. O
slogan, atribuído a Tertuliano, «Credo quia absurdum» exprime a
confiança que ele manifesta na revelação sobrenatural que lhe
permite opor-se às prescrições da razão.
Normalmente, as incompatibilidades são apresentadas para
serem superadas. Os juristas que suscitam dificuldades jurídicas de
toda a espécie incitam-nos a interpretar e a orientar as regras de
maneira a resolver os
conflitos das leis, ou das antinomias, verificadas numa situação
concreta [cf. Perelman 1965].
Mas aquele que não quiser fazer o sacrifício que comporta o
controlo duma incompatibilidade adoptará, não uma atitude lógica,
que antecipadamente prevê e resolve as incompatibilidades, mas
uma atitude prática ou mesmo uma atitude diplomática. A atitude
prática é a do juiz que, decidindo sobre uma dificuldade particular,
limita o alcance da sua decisão e se recusa a dar-lhe um alcance
demasiado geral, de maneira a não prender o futuro juiz a uma
regra que poderia parecer inadapatada a situações algo diferentes.
Adoptará uma atitude diplomática aquele que num caso
concreto, cuja solução possa parecer penosa ou inoportuna,
procura, sob toda a espécie de pretextos, evitar decidir com a
secreta esperança de nunca ter de resolver a dificuldade ou de, ao
menos, ganhar tempo. Muitas vezes resolve-se o caso pela mentira,
como no caso típico da doença diplomática.
Um caso curioso de incompatibilidade é o da autofagia, que
não opõe duas regras uma à outra, mas sim uma regra às condições
ou às consequências da sua aplicação: a retorsão coloca a autofagia
em evidência. No momento em que, num teatro de província, o
público se prestava a cantar a Marsellaise, um polícia sobe à cena
para anunciar que é proibido tudo aquilo que não figura no cartaz.
«E você, - interrompe um dos espectadores, - você está no cartaz?»
Segundo Aristóteles, a retorsão é a única maneira de defender o
princípio de não contradição contra quem nega a sua validade [cf.
Isaye 1954].
Notemos, para terminar, que o evidenciar incompatibilidades é
a essência da ironia socrática que visa ridicularizar o adversário e
obrigá-lo assim a rever as suas opiniões.
Se a incompatibilidade é o argumento quase lógico que
corresponde à contradição formal, o parceiro quase lógico da
identidade formal é a identificação total ou parcial. Enquanto a
identidade formal- quer ela se fundamente na evidência ou numa
convenção - é constringente, a identificação, que pode ser
discutida, resulta de uma definição ou de uma análise.
A definição visa identificar o definiendum com o definiens. O
procedimento é argumentativo quando se trata, não de descrever os
diversos sentidos nos quais um termo é utilizado num certo meio
linguístico, mas de escolher entre .estes sentidos ou de elaborar um
novo que se apresenta como aquele que se deve adoptar: a
definição não será, neste caso, nem evidente nem arbitrária, mas
apresentar-se-á como uma norma que nos esforçamos por impor ao
auditório.
Da mesma maneira, todas as formas de análise constituem
raciocínios quase lógicos, quando os resultados da análise são
apresentados como normativos pelo auditório: se a análise se
limita a uma tautologia, ela seria inatacável, mas sem nenhum
interesse argumentativo.
A identificação parcial é dada pela regra de justiça, que exige
o tratamento igual de seres e situações assimiláveis umas às outras
por possuírem os mesmos traços pertinentes, que justificam a sua
integração numa mesma categoria. Se os seres ou as situações em
questão fossem idênticos, a aplicação da regra poderia ter sido
tomada como o objecto de uma demonstração rigorosa. Mas como
nunca é esse o caso, a aplicação da regra exige uma decisão quanto
ao aspecto insignificante ou não das diferenças entre
os seres e as situações que se comparam. É preciso um juiz para
regulamentar, em função de um precedente, uma nova situação,
porque lhe pertence tomar a responsabilidade de assimilar esta
nova situação à antiga, enquanto, em certos aspectos, elas diferem
uma da outra. Julga-se injusto, porque parcial, uma maneira de agir
que infrinja a regra de justiça.
Eis como Demóstenes invoca esta regra: «Será que eles
pretendem por acaso que uma convenção, no caso de ser contrária
à nossa cidade é válida, enquanto, se ela lhe serve de garantia,
recusam reconhecê-la? E isso que vos parece justo?» [Acerca do
Tratado com Alexandre, § 18].
O recurso à regra de justiça pode ser sujeito a duas espécies de
objecções. A primeira diria respeito ao bem fundado da assimilação
de dois seres ou situações num dado caso. A última recusaria o
precedente, determinando o tratamento de seres ou de situações da
espécie, mostrando que este tratamento é contrário à equidade e
não deve por isso ser generalizado: não é pelo facto de, em certo
país muçulmano, se cortar a mão esquerda do ladrão, que é preciso
manter indefinidamente esta forma de castigo.
O argumento de reciprocidade consiste na aplicação da regra
de justiça assimilando seres ou situações porque estes constituem o
antecedente e o consequente de uma mesma relação. Eis alguns
exemplos dos Antigos e dos Modernos: «aquilo que não é
vergonhoso vender não é vergonhoso comprar» [Aristóteles,
Retórica, 11, 1397a]; «aquilo que é digno de aprender é também
digno de ensinar» [Quintiliano, lnstitutio oratoria, V, x, § 78]. La
Bruyere admira-se de ver «uma multidão de cristãos de ambos os
sexos que se reúne em certos dias numa sala, para aí aplaudir um
bando de excomungados, que só o são na medida do prazer que
dão» [1688, trad. it. p. 451].
A regra de ouro, sob várias das suas formas, resulta da
aplicação da regra de justiça a certas situações que se pretendam
simétricas: «Não faças aos outros aquilo que não queres que te
façam a ti».
Daí o efeito dos contos, como as Lettres persanes de
Montesquieu, em que somos convidados a olhar para as nossas
instituições e costumes com os olhos de um estrangeiro. Muitas
vezes uma tal assimilação é cómica porque inesperada. Sentado na
borda da banheira em que o dono toma banho, um gato pergunta ao
outro gato: «Porque é que eles não se lambem como toda a gente?»
Reflectindo num tal exemplo, vê-se porque é que a regra da
justiça e o argumento da reciprocidade são muitas vezes
inaplicáveis. Montaigne [1580, I, capo xx] tem razão ao afirmar
que: «é igual loucura chorar aquilo que daqui a cem anos não
viveremos, como chorar pelo que há cem anos não vivíamos»?
(trad. it. p. 91).
A transitividade é a propriedade de uma relação tal que, se ela
existe entre um primeiro termo A e um segundo termo B, e entre
este segundo e um terceiro C, existe igualmente entre A e C: se A é
maior que B e B maior que C, A é então maior que C. Quando uma
relação é transitiva, pode servir de base a um raciocínio
demonstrativo, tal como o silogismo, mas não se pode aplicá-lo
rigorosamente nos casos em que o carácter transitivo da relação é
talvez desejado, mas não estabelecido: «Os amigos dos meus
amigos, meus amigos são» fornece um bom exemplo do uso argu-
mentativo da transitividade.
Regras como «aquilo que vale para o todo vale para a parte»,
«aquilo que não é permitido ao conjunto não é permitido a
nenhuma das partes», e todas as formas do argumento a fortiori
fazem apelo, mais ou menos conscientemente, às relações
matemáticas entre o todo e as suas partes. É graças a um
argumento quase lógico que se passará da afirmação de ordem
matemática de que o todo é maior que cada uma das suas partes
para a afirmação mais contestada de que «o todo vale mais que
cada uma das partes».
Eis um raciocínio de Locke que se serve do mesmo esquema:
«De facto, aquilo que não é lícito a uma Igreja na sua totalidade
não pode tomar-se lícito, por qualquer direito eclesiástico, a algum
dos seus membros» [1689, trad. it. p. 122].
O género de raciocínio do tipo «Aquilo que vale para o todo
vale para a parte» nem sempre se impõe. A célebre Lei
Vandervelde, promulgada na Bélgica após a Primeira Guerra
Mundial, fornece disso um excelente exemplo: autoriza com efeito
a venda de álcool em quantidades iguais ou superiores a dois litros,
mas proíbe a venda de quantidades menores. Apesar de paradoxal,
esta lei contribuiu para combater eficazmente o alcoolismo no
meio operário, o que era o objectivo pretendido pelo seu autor.
A concepção de um todo como a soma das suas partes pode
servir de fundamento a uma série de raciocínios que se podem
qualificar de argumento de divisão e de argumento das espécies
[cf. Perelman e Olbrechts-Tyteca 1958, § 56].
No argumento por divisão, as partes devem poder ser
enumeradas de uma maneira exaustiva, mas podem ser escolhidas
conforme se quiser e de maneira bastante variada. Na
argumentação por espécies, trata-se de divisões sobre as quais se
está de acordo que preexistem à argumentação e que não é preciso
necessariamente enumerar de maneira exaustiva. O objectivo desta
forma de raciocínio é mostrar que onde somente certas causas A, B
ou C podem produzir um efeito, se as causas A e B se excluíram,
então o efeito só pode ser produzido pela causa C, e se a causa C
foi excluída, o efeito foi, por via de consequência, excluído.
A enumeração das partes serve não somente de meio de prova,
mas também como técnica para criar a presença, tal como a
amplificação graças à congérie que é uma figura de retórica
[Perelman e Olbrechts- Tyteca 1958, § 56].
A divisão em espécies serve de base aos raciocínios a pari e
contrario, nos quais é assimilada ou é oposta uma espécie a uma
outra. No dilema mostra-se que as diversas eventualidades
encaradas conduzem à mesma consequência: é uma apresentação
de que Héron de Villefosse, defensor da autenticidade da tiara de
Saitafernes, se serve para atacar a boa fé do perito oposto a esta
tese: «Quando o Sr. Furtwangler reencontra ou acredita reencontrar
sobre um monumento antigo uma das figuras ou um dos motivos
da tiara, declara por esta razão que a tiara é falsa; quando ele não
encontra exemplo do mesmo motivo ou das mesmas figuras...
declara igualmente que a tiara é falsa. É um procedimento da
discussão completamente extraordinário» [Vayson de Pradenne
1932, p. 533].
Quando a comparação não resulta de um peso ou de uma
medida, constitui um argumento quase lógico, porque ela se
estabeleceu pela ideia subjacente de que foi realizada uma
operação de controlo: «o crime é
igual, - dirá Cícero, - quer se roube o Estado, quer se façam
liberalidades contrárias ao interesse público» [De Oracore, 11, §
172].
Comparando, reúnem-se os termos da comparação numa
mesma classe, o que tende a tomá-los homogéneos, daí a
superioridade daquilo que é incomparável, que não se pode
comparar senão a si mesmo, porque é único. La Bruyere para pôr
em destaque alguns grandes artistas escreverá. «V. * é um pintor,
C. * é um músico, e o autor de Piramo é um poeta; mas Mignard é
Mignard, Lulli é Lulli, e Corneille é Corneille» (trad. it. pp. 64-
65).
Muitas vezes a comparação resulta de um sacríficio: este
mediria o valor daquilo que se quer obter ou guardar. « Só
acredito, - escreve Pascal, -nas histórias cujos mártires se fizessem
degolar» [1669, trad. it. n. 7, p. 277]. O mesmo género de
argumento permite a Plotino valorizar o estado místico: «Tudo o
que lhe [à alma] dava outrora prazer, dignidade, poder, riqueza,
beleza, ciência, tudo isso ela despreza e di-lo; di-lo-ia se não
tivesse encontrado bens melhores?».
Na argumentação pelo sacrifício julga-se das coisas pelo preço
que os homens lhes conferem. O seu número pode suprir a falta de
prestígio individual: é a signjficação da lenda das onze mil virgens
mártires acompanhando Santa Úrsula.
Aos argumentos quase lógicos ligam-se todos os que se
referem a probabilidades não calculáveis, tal como a aposta de
Pascal.
Assimilando a nossa vida a uma soma finita, comparada à
salvação eterna, à infinidade de vida infinitamente feliz a ganhar, a
aposta de Pascal convida-nos a apostar, porque neste jogo as
hipóteses estão do nosso lado [1669, trad. it. n. 164, pp. 68-70].
Da mesma maneira, Leibniz e Bentham tentaram aplicar
raciocínios de probabilidade à apreciação dos testemunhos, e os
Jesuítas recorreram ao probabilismo na sua casuística moral.
Todos os argumentos quase lógicos, na exacta medida em que
supõem uma redução ao formal, a passagem do qualitativo ao
quantitativo, serão muitas vezes completados por outros
argumentos sobre a estrutura do real.

12 Argumentos fundados sobre a estrutura do real


.

Desde o momento em que os elementos do real estejam


associados uns aos outros numa ligação admitida, qualquer que ela
seja, é possível fundar sobre ela uma argumentação que permita
passar de um destes elementos a outro?
A maior parte dos argumentos fundados sobre a estrutura do
real invocam tanto as ligações de sucessão, tais como a relação de
causa e efeito, como as ligações de coexistência, tais como a
relação da pessoa com os seus actos. Nas ligações de sucessão
baseamo-nos em fenómenos do mesmo nível, enquanto, nas
ligações de coexistência, os termos são de um nível igual, tais
como a essência e as suas manifestações.
A partir da afirmação de uma ligação causal, a argumentação
pode-se dirigir em direcção à procura das causas, à determinação
dos efeitos ou à apreciação de um facto através das suas
consequências. Quando se trata de actos intencionais, a
determinação da causa pode ser acompanhada pela determinação
do motivo que levou ao próprio acto.
Perante um crime, de que se procura o autor desconhecido, a
primeira questão com que se defrontam os investigadores é «cui
prodest?», a quem é que aproveita? Da mesma maneira, se se
tiverem razões para crer que o crime possa ter sido cometido por
ódio ou ciúme, orientar-se-ão as investigações na direcção
daqueles que teriam podido experimentar estes sentimentos.
Suspeitar-se-á de ter feito batota quem, num jogo de sorte,
ganha um número de vezes normalmente elevado. Da mesma
maneira, se várias testemunhas concordam, sem que os seus
testemunhos tenham podido combinar-se previamente, ser-se-á
tentado a concluir que o acontecimento testemunhado se produziu
realmente.
O segundo tipo de argumentos de sucessão diz respeito não à
existência, mas à importância de um objecto ou de um
acontecimento. E assim que o argumento pragmático permite
apreciar um acto ou um acontecimento em função das suas
consequências favoráveis ou desfavoráveis.
Este argumento é, para Bentham [1789], o único argumento
convincente em matéria de valores: «Que significa dar uma boa
razão que sirva como lei? É alegar os bens e os males que esta lei
teria tendência a produzir. O que significa dar uma falsa razão? É
alegar, a favor ou contra uma lei, algo completamente diferente
dos seus efeitos, seja para bem, seja para mal» (trad. it. p. 202).
O argumento pragmático, remetendo para a causa o juízo
favorável ou desfavorável que se atribui aos efeitos dessa causa, é
admitido espontaneamente pelo senso comum. Mas nem sempre é
fácil conhecer o conjunto das consequências de um acto ou
relacionar com uma só causa os efeitos produzidos. Basta pensar
nas inumeráveis controvérsias suscitadas pelo artigo 1392 do
Código Napoleónico: «Qualquer acto de um homem que cause a
outro um prejuízo obriga o autor desse acto a repará-lo». Da
mesma maneira, em direito penal, o acusado esforçar-se-á muitas
vezes por afastar o juízo que o toma responsável por um acto,
invocando circunstâncias inesperadas ou atribuindo ao seu meio, à
sociedade, a responsabilidade daquilo que aconteceu.
Uma crítica que diz respeito não à aplicação do argumento
pragmático, mas ao próprio princípio da redução a este argumento
de toda a argumentação sobre os valores, foi apresentada por
Scheler, segundo o qual querer reduzir todo o valor ao das
respectivas consequências é supor que todos os valores são da
mesma ordem. Ele condena como farisaica a concepção que
identifica a moral com o útil [Scheler 1927].
Da mesma maneira, Simone Weil insurge-se contra os
argumentos a favor do cristianismo que se parecem com a
publicidade para as pílulas Pink e que são do tipo «antes e depois»
[Weil 1949].
Com efeito, em moral, o argumento pragmático opõe-se ao
formalismo e ao absolutismo, os quais pretendem que certas regras
são obrigatórias e certos valores se impõem, quaisquer que sejam
as consequências que daí decorram. «Fiat Justitia, pereat mundus»
é uma máxima que se coloca em oposição simétrica ao argumento
pragmático.
Este debate atrai a nossa atenção para o facto de que a relação
de causa e efeito, interpretada como relação de meio a fim, tem
uma consequência dupla: deprecia-se o fim transformando-o em
meio e, inversamente, revaloriza-se o meio quando ele se toma um
fim em si:
«Ama-se verdadeiramente, - diz-nos Goblot, - ama-se a pessoa
amada por si mesma, como o avaro ama o seu ouro, quando o fim
deixa de ser considerado e o meio se toma fim, quando o valor do
amado, de relativo, se transformou em absoluto» [1927, p. 56].
Com efeito, tratar algo como meio é indicar que, segundo o
caso, um outro meio, mais cómodo ou mais eficaz, poderia
substituir aquele.
Todas as consequências não são fins porque há aquelas que
mal são desejáveis. Esta dupla perspectiva permite opor os fins às
consequências e extrair daí figuras de Retórica, tal como a antítese,
que se pode observar em Cícero: «Não foi um exílio miserável
aquilo que a tua iniquidade me infligiu, mas sim um regresso
glorioso que ela me preparou» [Paradoxa stoicorum, IV, § 29].
O facto de se apresentar como uma consequência o que não é
mais do que um meio com vista a um fim, é desqualificado como
procedimento, tal como a emoção fingida do orador que, em lugar
de exprimir o seu estado de alma, não é mais do que um meio de
agir sobre o auditório. Toda a retórica, na medida em que não é
mais do que um procedimento a que falta sinceridade, sofreu com
esta apreciação pejorativa.
A relação «meio/fim» serve de fundamento a outros
argumentos, tais como os do desperdício, do supérfluo e do
decisivo.
O argumento do desperdício, ligado à eficácia, incita-nos a
preserverar para não agir em vão.
Aquele que aceitou certos sacrifícios com vista a um fim, terá
de continuar se não quiser perder aquilo que já investiu tal como o
banqueiro tentou continuar a ajudar o seu devedor
momentaneamente sem solvência.
É este argumento que invoca Bossuet para reprovar aos
pecadores impenitentes o desperdício do sacrifício de Jesus, não
aproveitando as possibilidades de salvação oferecidas por Ele.
Inversamente, aumentar-se-á a importância de um acto,
mostrando que ele é decisivo, que vai permitir obter a vitória e
recuperar tudo aquilo que sem ele estaria irremediavelmente
perdido e desperdiçado. O acto supérfluo, aquele que não influi em
mais nada sobre o desenrolar dos acontecimentos, é, por esse
mesmo facto, desvalorizado.
À relação «meio-fim» liga-se o argumento da direcção. Este
consiste na apresentação de um acto não como um fim, mas como
um marco, uma etapa numa cena direcção. A relação «meio-fim»,
em vez de ser apresentada isoladamente, é vista numa perspectiva
dinâmica, que a integra num contexto mais vasto. Quando se trata
de uma empreitada a longo termo, de uma transformação
importante, pode-se tomá-la aceitável procedendo por etapas.
Aquele que hesitasse passar de A a D poderia ser levado mais
facilmente a B, de B a C, e daí sem muitos esforços ao ponto D, no
qual se tinha pensado desde o princípio. Mas aquele que se opõe a
esta evolução mostrará que B só é uma primeira etapa, um fim
aparente, um marco numa direcção. Pelo contrário, em relação a
partidários de medidas mais drásticas que desejam imediatamente a
realização de D e se opõem à paragem em B, considerando-a como
nitidamente insuficientes interpretações opostas, que encaram a
passagem 'de A a B quer como um processo acabado, quer como
uma simples etapa, reencontra-se a ambiguidade característica das
situações argumentativas.
O temor do precedente assemelha-se ao argumento da
direcção, mas desta vez a passagem faz-se do caso particular para a
regra, da qual esta seria a generalização. Demonstra-se que uma
decisão, aceitável rigorosamente para o único caso em discussão,
arrisca-se a estabelecer um precedente e fornecer uma regra que
abranja todos os casos da mesma espécie, o que não seria nada
desejável. O temor de abrir um precedente desencoraja as decisões
arbitrárias, que não se podem generalizar, e favorece a sistema-
tização da ordem jurídica.
O argumento da direcção exprime-se através de metáforas, tais
como «o plano inclinado», «o dedo na engrenagem», que insistem
na dificuldade e talvez mesmo na impossibilidade de parar, a partir
do momento em que se está comprometido em seguir numa certa
direcção. Aqueles que, pelo contrário, insistem no facto de que a
medida proposta não é assim tão grave, procuram mostrar que há
um meio de parar, que entre a decisão actual e aquelas que se
temem há uma diferença de natureza, que a decisão tomada diz
respeito a um caso especial fora daquilo que é comum, que não
constituirá um precedente e que portanto não há que temer a
generalização.
O argumento da direcção, com todos os seus
desenvolvimentos, pode ser completado pelo argumento da
ultrapassagem, onde cada situação particular não é apreciada senão
em função das possibilidades de ser ultrapassada, como um
trampolim para um novo progresso, numa perspectiva de
desenvolvimentos indefinidos. O que conta, neste caso, não é
atingir um fim determinado, por mais afastado que esteja, mas
progredir sempre numa direcção com horizontes mutáveis e
sempre alargados. O espírito de aventura, que incita os jovens à
acção revolucionária, no sentido de uma maior justiça e liberdade,
é estimulado a ir sempre em frente, não sendo cada nova conquista
mais que uma etapa para um desenvolvimento ulterior, um ideal ao
mesmo tempo exaltante e inatingível.
As ligações de coexistência, que servirão de base a outros
tipos de argumentos, estabelecem uma relação não entre dois
acontecimentos ou dois actos do mesmo nível, mas entre duas
realidades de nível desigual, das quais uma parece mais
fundamental e, desse modo, explicativa da outra: trata-se da
relação entre uma essência e as suas manifestações cujo protótipo,
digam o que disserem os existencialistas, foi fornecido pela relação
entre a pessoa e os seus actos.
A construção da pessoa introduz, por oposição aos seus actos,
manifestações transitórias, múltiplas e mutáveis, um elemento de
estabilidade que permite coordená-las, explicá-las e interpretá-las.
A pessoa dotada de um carácter identificável, de uma unidade e de
uma coerência que explicam os momentos diversos da sua
existência torna-os solidários.
É preciso, contudo, conceder aos existencialistas que a
estabilidade da pessoa não é a inércia das coisas, que ela não está
nunca completamente assegurada por causa da sua liberdade, de
um poder de mudança espontâneo que se lhe atribui e que se opõe
à tendência de «coisificar» as pessoas, de as, considerar como fixas
uma vez por todas.
E contudo para esta transformação oleográfica que tendem as
qualificações e os epítetos, os quais fixam certos traços da pessoa,
independentes da sua evolução e da sua história. Expressões como
«Carlos Magno da barba florida», «esse avarento do teu pai»
tomam esses traços do rosto ou do carácter inseparáveis do sujeito.
Como nota Kenneth Burke [1945, p. 42], «um herói é em
primeiro lugar um homem que realiza coisas heróicas, e o seu
"heroísmo" reside nos seus actos. Mas, além disso, um herói pode
ser um homem com potencialidades de acção heróica. Os soldados
que vão para a guerra são heróis neste sentido... Ora um homem
pode ser considerado como um herói porque realizou actos
heróicos, enquanto na sua condição presente pode ser, em todo o
caso, demasiado velho ou fraco para os realizar».
Esta última passagem mostra quanto o aspecto temporal da
relação entre o agente e os seus actos é fugidio e indeterminado;
uma pessoa é qualificada de corajosa depois de ter realizado actos
de coragem, e isto de uma maneira ilimitada no futuro? Será que
ela já era corajosa antes de ter tido ocasião de o manifestar por
actos? Diversos autores fornecerão respostas divergentes a estas
questões. Para Leibniz, a essência precede cada uma das suas
manifestações; para os existencialistas o carácter não se forma
senão por ocasião dos actos.
Uma coisa é certa: as noções de pessoa e de acto, na sua
correlação e na sua independência relativa, são indispensáveis num
grande número de argumentações morais e jurídicas. Julga-se o
indivíduo e não os seus actos, mas tomando aquele solidário
destes, os quais, contudo, se tentam qualificar independentemente
do agente que os cometeu. Enquanto as noções de
responsabilidade, de mérito e de culpabilidade são relativas à
pessoa, as de norma ou de regra preocupam-se antes de mais com
o acto. Se regras prescrevem ou interditam certos actos, o seu
alcance moral ou jurídico reside todavia no facto de elas se
dirigirem a pessoas.
É a correlação entre a pessoa e os seus actos parcialmente
solidários e parcialmente independentes que permite a utilização
dos argumentos fundados nesta relação de coexistência.
As pessoas, para além da estabilidade, possuem uma
plasticidade que as diferencia das coisas e à qual nós nos referimos
falando da sua liberdade. A construção da pessoa só se pode
realizar quando nenhum acto novo a pode pôr em questão e
nenhuma nova interpretação nos leva a modificá-la. Isto quer dizer
que os actos, à medida que nos são conhecidos, são de maneira a
modificar a nossa concepção da pessoa quer se trate de actos
antigos ou recentes, atribuindo-se a estes últimos uma certa
preponderância. Normalmente a pessoa deveria ficar
completamente construída até à sua morte, mas novas informações
e novas perspectivas na interpretação podem pôr em questão a
visão que se tinha dum personagem histórico.
Neste contexto, um acto é tudo aquilo que possa ser
considerado como emanação da pessoa, quer sejam acções, modos
de expressão, reacções emotivas, tiques involuntários ou
julgamentos. Há solidariedade na argumentação entre o acto de
julgar e aquele que julga. Na falta de um critério objectivo, quando
se trata de um enunciado não controlável, há interacção e
relatividade das perspectivas. Se se acusa alguém de ligeireza ou
de parcialidade, os juízes pressupõem um acordo sobre a
importância das coisas tratadas superficialmente, sobre as regras e
as acusações que justificam a acusação de parcialidade. Em caso
de desacordo sobre aquilo que justifica a acusação, será o juiz que
será condenado por sua vez por ter tomado partido a respeito
daquele que ele acusou de ligeireza ou de parcialidade.
A este propósito, encontra-se um elemento característico da
argumentação, que a distingue profundamente das disciplinas em
que intervêm critérios objectivos, a saber: o compromisso da
pessoa.
É conhecido o conto oriental em que o rei foi convencido por
um mágico que só os cortesãos com uma moralidade irrepreensível
poderiam ver os trajes com que o mágico o tinha vestido. Ninguém
ousava dizer em voz alta aquilo que cada via, com medo de revelar
a sua própria imoralidade. Foi preciso que uma criança perguntasse
por que razão o rei estava nu, para que alguém ousasse atacar o
truque do mágico. Nesta historiazinha, em que se observa no acto
da sua realização a interacção da pessoa e do acto, a inocência
incontestada da criança toma-se o garante da objectividade dos
factos.
Os actos que determinam a construção da pessoa devem ser
característicos. O seu conjunto contribui para a boa ou má
reputação de alguém: é em função desta reputação que se
interpretará o seu comportamento e os seus juízos.
E graças à ideia de intenção que a pessoa servirá muitas vezes
de contexto para a interpretação dos seus actos. A mesma acção ou
o mesmo juízo receberá interpretações diferentes, segundo esse
juízo seja atribuído a tal ou tal actor.
É assim que Calvino, descrevendo as aflições de Job devidas
às provações que lhe impõem Deus, Satã e os homens, louvará a
Deus, mas censurará Satã e os homens, porque as suas intenções
eram diametralmente opostas.
O prestígio de uma pessoa é uma qualidade que incita a imitar
os seus comportamentos e a seguir os seus juízos. É ele que,
qualquer que seja o seu fundamento, está na base do argumento de
autoridade, tão essencial em todos os domínios em que não se
dispõe de um procedimento admitido para o estabelecimento dos
factos e das verdades. Este argumento foi frequentemente atacado,
enquanto se contestava muitas vezes não o uso do argumento, mas
a autoridade daqueles aos quais se fazia apelo.
E óbvio que o recurso ao argumento de autoridade é
inadmissível e mesmo ridículo - se porventura existem critérios
objectivos que permitam estabelecer a verdade ou falsidade de um
juízo. É, aliás, no seguimento de um tal controlo que o juízo
emitido por uma autoridade pode prejudicar gravemente o seu
prestígio: um erro de facto mergulha um homem sábio no ridículo.
Em contrapartida, desde que se imagine que se trata de um ser
divino ou perfeito, não sendo prejudicada a sua perfeição por tudo
aquilo que ele faz ou diz, toma-se possível interpretar os factos e os
juízos em função da sua augusta origem. Foi o que Leibniz [1710]
não deixou de sublinhar: «Aquilo que se pode opor à bondade e à
justiça de Deus, não são mais que aparências, as quais seriam
fortes contra um homem, mas tomam-se nulas quando se as
aplicam a Deus, e quando se as colocam em contraposição com as
demonstrações que nos asseguram a perfeição divina dos seus
atributos» (trad. it. p. 429).
Verificamos, assim, técnicas de ruptura que anulam quer a
influência da pessoa sobre o acto, quer a do acto sobre a pessoa;
mas, vulgarmente, tratar-se-ão de técnicas inibidoras que limitam
esta acção sem a suprimir inteiramente. Esta manifesta-se por
aquilo que se considerará como um preconceito favorável ou
desfavorável: este vai servir para interpretar os
actos da pessoa de acordo com este preceito, de maneira a manter,
na medida do possível, a opinião que se tem desta; se os seus actos
parecem, à primeira vista, opor-se a essa opinião. Por vezes
qualificar-se-á um tal acto de excepcional, explicar-se-á este por
circunstâncias, não por características da pessoa, privadas de
consequências no que diz respeito à ideia que se faz do seu autor.
Acontecerá da mesma maneira que se isolará um juízo daquele
que o pronunciou para que o juízo não seja mal interpretado É
assim que Bossuet, depois de Santo Agostinho, pretende defender
a palavra de Deus contra o preconceito desfavorável que suscita a
corrupção moral daqueles que a pregam: "O arbusto sustém um
fruto que não lhe pertence, mas que não deixa de ser o fruto da
vinha, ainda que se apoie no arbusto. Não desdenheis esta uva com
o pretexto de a verdes entres os espinhos; não rejeiteis esta
doutrina pelo facto de ela estar rodeada de maus costumes: de
qualquer modo, ela vem de Deus» [citado in Perelman e
Olbrechts- Tyteca 1958, trad. it. p. 334].
Estas observações são essenciais para compreender e explicar
a interacção, no espírito dos auditores, do orador e do seu discurso.
Daí derivam as considerações relativas ao ethos oratório, quer
dizer, à impressão que o orador dá de si mesmo pelos seus
propósitos e também a tentação de desqualificar o adversário
mediante argumentos ad personam que atacam a sua honrabilidade
e a sua credibilidade; daí também os esforços do orador, no
exórdio, para conseguir conciliar a indulgência e o respeito do seu
auditório, para entrar em comunhão com ele, sem falar de todas as
técnicas exteriores ao discurso, as quais, em lugar de
desempenharem um simples papel decorativo, condicionam o
auditório, reforçando o prestígio do orador.
A interacção que acabamos de sublinhar entre a pessoa e os
seus actos encontra-se a outros níveis entre um grupo e os seus
membros, uma época histórica e as suas manifestações, um estilo e
as obras que o ilustram.
Encontramos continuamente este vaivém de um a outro destes
dois termos, com as respectivas técnicas de ruptura e de inibição,
que permitem salvaguardar o conjunto explicativo elaborado, e
cujo uso forma um empreendimento intelectual característico das
ciências humanas. Acentuar-se-ão, a este propósito, os traços
humanos invariáveis que transcendem as diferenças específicas
que caracterizam os diversos grupos, épocas ou estilos e que não
são por estes influenciados. Nesse caso falar-se-á de precursores e
retardados, de influências e de imitação, para salvar o valor das
categorias inevitáveis em todo o esforço de sistematização de uma
realidade completa e em movimento. Aqui também dar-se-á uma
importância especial áquilo que é eminente no seu género, quer se
trate de personagens ilustres ou de obras, primas de arte, também,
ao contrário, àquilo que é normal, médio ou característico do
grande número.
Certos seres, certos objectos ou certos actos serão
considerados como simbólicos daquilo que eles representam,
sendo este aspecto sublinhado pela tradição e pelas instituições.
Para exprimir a hostilidade a respeito de um Estado, arrancar-se-á
a sua bandeira, atacar-se-á o embaixador ou a embaixada. A
grandeza e o esplendor dos edifícios religiosos manifesta o lugar
primordial da Igreja na sociedade. As paradas militares confirmam
o poder do Estado e o respeito que lhe é devido. Os. cortejos de
toda a espé
cie e as manifestações públicas sublinham a importância das causas
que puderam reunir tantos testemunhos a seu favor.
À interacção da pessoa e dos seus actos, do grupo e dos seus
membros, e em geral da essência e das suas manifestações, liga-se
o argumento da dupla hierarquia em que, a partir de uma
hierarquia dos seres, conclui-se a dos comportamentos que os
caracterizam. Chegar-se-á à conclusão, que é possível imitar a
conduta daqueles que são superiores na hierarquia: esta conclusão
justifica a introdução do modelo religioso na moral, e explica o
fenómeno da moda. Pelo contrário, dizer a alguém que se conduz
como um ser inferior na hierarquia (<<tu conduzes-te como uma
criança, como um animal») é muitas vezes uma injúria, será
sempre uma crítica. No mesmo espírito, Plotino, nas Enêiades, faz
corresponder a uma hierarquia dos degraus do ser uma hierarquia
paralela no domínio das condutas.
Sabe-se que certas diferenças quantitativas podem ocasionar
uma diferença qualitativa: a um certo momento, a diferença de
grau transforma-se em diferença de natureza. Dentro do mesmo
espírito, a distinção no seio de um desenrolar contínuo de períodos
históricos sublinha a importância daquilo que os separa, e
especialmente do acontecimento que marca a ruptura. Dizer que se
podem distinguir duas eras na humanidade, antes e depois de
Jesus, duas eras na sociologia, antes e depois de Max Weber é
sublinhar a importância de Jesus para a humanidade; de Max
Weber, para a sociologia, porque a sua intervenção determinou um
corte na história da humanidade e da sociologia.

13 Argumentos que fundam a estrutura do real


.

Os argumentos através do exemplo e do modelo, assim como


o argumento pela analogia, generalizam o que é aceite a propósito
de um caso particular (ser, acontecimento, relação) ou transpõem
para um outro domínio o que é admitido num domínio
determinado.
A argumentação, por exemplo, deve conduzir à formulação de
uma lei, a partir de casos particulares ou pelo menos à
probabilidade da repetição de casos de natureza idêntica.
Argumentando através de exemplo, supõe-se que os factos
descritos não constituam acontecimentos únicos no seu género,
que jamais se repetirão porque estão intimamente ligados às
condições históricas do seu aparecimento. Quando os exemplos
que devem conduzir ao estabelecimento de uma regra são
repetidos, a interpretação que conduz à sua generalização é mais
do que sugerida, é quase imposta. E assim que um procurador que
aparece numa cena pode ser um personagem único no seu género;
mas se aparecem na cena dois procuradores, eles tomam-se
representativos de uma profissão. St. John Perse serviu-se desta
tendência do espírito, colocando, nos seus poemas, os nomes
próprios no plural. Caillois insiste a este propósito «na
generalização que, dando ao acontecimento inimaginável um valor
de arquétipo, permite-lhe tomar lugar nos anais da humanidade»
[1954, p. 152].
A argumentação através do exemplo permite passar a uma
regra ou a um outro caso particular. Esta passagem, fundada no
princípio da inércia, suscita o problema de saber qual é a
generalização ou assimilação que o
caso particular autoriza. Para não haver engano nos termos da
generalização, são necessários exemplos variados que permitam
reter somente, para a formulação da regra, aquilo que eles têm em
comum. Os cânones de J. Stuart Mill fornecem a este respeito
indicações metodológicas. O recurso ao exemplo hierarquizado
combina, por outro lado, a argumentação através do exemplo,
devendo servir de precedente, com o raciocínio a fortiori.
Enquanto o recurso ao exemplo, para fundar uma lei, não é
mais do que uma técnica argumentativa, o uso do exemplo, para
combater uma regra (o caso que a invalida), ou restringir o seu
alcance, tem um alcance demonstrativo porque um único caso é
suficiente para invalidar uma lei apresentada como universalmente
válida. É a razão pela qual Karl Popper concede a este uso do caso
particular um lugar central na sua metodologia das ciências.
Quando a regra é estabelecida, pode-se servir do caso
particular não para o fundar, mas para o confirmar, ilustrando-o,
dando-lhe assim uma presença, que permite reforçar a adesão que
se lhe concede. Alguns autores serviram-se da técnica da ilustração
para aumentar a credibilidade de um conto fantástico. Edgar Poe e
Villiers de l'Isle-Adam começam muitos dos seus contos
fantásticos com a enunciação de uma regra que o seu conto vai
parecer ilustrar.
Enquanto no caso do exemplo é essencial que os factos
referidos sejam aceites sem discussão, quando se trata de uma
ilustração, o importante é tudo aquilo que serve para promover a
presença da regra, o seu eco afectivo na consciência dos auditores.
O caso particular, trate-se de um acto ou de um agente, pode
servir não de exemplo, mas de modelo a seguir ou de antimodelo a
evitar. Uma decisão judiciária, aceite como precedente, combinada
com a regra de justiça que requer o tratamento igual para casos da
mesma espécie, serve de fundamento a uma regra de origem
jurisprudencial. Servirão igualmente de modelo as pessoas ou os
grupos cujo prestígio valoriza os actos. O facto de seguir um
modelo reconhecido garante o valor de uma conduta; o agente
valorizado por esta conduta poderá, por sua vez, servir de modelo:
Santa Teresa inspirará a conduta dos cristãos porque ela própria
tinha Jesus como modelo.
Resulta daí que, sobre aquele que serve de modelo, pesa uma
obrigação podendo até determinar a sua conduta. De facto, o
modelo deve vigiar o próprio comportamento, porque o mínimo
desvio justificará muitos outros, muitas vezes até graças a um
argumento a fortiori: "O exemplo da castidade de Alexandre, -
escreve Pascal [1669], - não fez tantos praticantes da continência
quantos fez intemperantes o exemplo da sua embriaguez. Não é
vergonhoso não ser tão virtuoso como ele e parece ser desculpável
não ser mais vicioso do que ele» (trad. it. n. 78, p. 30).
O antimodelo, tal como o ilota ébrio entre os Espartanos, é
aquele com o qual não é necessária nenhuma semelhança, mas a
conduta recomendada toma-se somente precisa de uma forma
negativa. Deste modo se atribuem àqueles que são odiados ou
desprezados traços desagradáveis, tais como os traços
convencionais do Sarraceno na chanson de geste francesa.
Deus, e todos os seres dotados de qualidade divina, constituem
os modelos por excelência da conduta humana. Tarde, que mostra
o papel da
imitação na vida social, insistiu na importância de Jesus, de
Maomé e de Buda, como modelos para os crentes [1895, p. 308].
Quer se trate de divindades incarnadas ou dos seus porta-
vozes, a imitação destes seres, qualquer que seja a sua qualidade
sobrenatural, é facilitada pelo facto de se tratarem de homens
vivendo com outros homens, os quais, por isso, se aproximam
daqueles a que vão servir de modelos.
As analogias e as metáforas, consideradas como analogias
condensadas, desempenham um papel eminente na estruturação e
valorização do real.

14 A dissociação das noções


.

A argumentação procede não somente por ligação e por


ruptura das associações anteriormente estabelecidas, mas também
por dissociação no seio das noções. É a evidência de uma
incompatibilidade entre diversos aspectos do real que se decide
sacrificar: estes aspectos serão qualificados de aparência, a qual,
quando se opõe ao real, não é mais que ilusão. E assim que o par
«aparência-realidade» vai servir de modelo à formação de todos os
pares, tão essenciais à elaboração do pensamento filosófico e que,
por esta razão, nós chamamos os pares filosóficos.

15 A organização dos argumentos no discurso


.

Resta-nos, para terminar o nosso estudo da argumentação,


examinar o discurso no seu conjunto, onde os diversos argumentos
interagem, onde cada argumento, assim como a sua utilização pelo
orador, pode tomar-se, por sua vez, objecto de uma nova
argumentação. A argumentação do discurso, que vai tomar em
conta estes elementos, realizar-se-á em função de considerações
relativas à escolha dos argumentos, à amplitude da argumentação e
à ordem de apresentação dos argumentos.
Como o material de que dispõe o orador é, ao mesmo tempo,
imenso e indeterminado, deve realizar uma escolha tanto para
constituir as premissas do seu raciocínio como para a organização
dos seus argumentos. Deixar-se-á guiar, nesta escolha, por duas
noções específicas da argumentação, a saber: a pertinência e a
força dos argumentos. Note-se que estas duas noções são estranhas
às técnicas da demonstração, porque todos os meios de prova se
apresentam aí com a mesma força; da mesma maneira, todos
aqueles que são admitidos e servem para demonstrar a conclusão
são por esse mesmo facto pertinentes. Pelo contrário, na
argumentação, como se trata de reforçar a adesão de um auditório
a uma tese, a pertinência pode ser definida unicamente por relação
a auditórios que entram de acordo numa metodologia, que aceitam
certos meios de prova e não outros tradicionalmente
desqualificados como irrelevantes. Notemos, a este propósito, que
é mais fácil dizer quando um argumento é irrelevante, inaceitável,
sem efeito, do que precisar quando é pertinente. Na verdade, esta
última noção depende não só da relação objectiva que existe entre
um argumento e a tese que se defende ou que se combate, mas
ainda da opinião que o auditório pode sustentar em relação a este
assunto.
A força de um argumento quando não pode ser reduzida a
elementos calculáveis, exprimíveis em termos de probabilidade,
será apreciada graças à regra de justiça que pede o tratamento igual
de situações essencialmente semelhantes. Se, numa situação que
pode servir de precedente, o argumento foi reconhecido
anteriormente como forte, apreciar-se-á da mesma maneira, salvo
prova em contrário, o uso renovado deste argumento.
Tanto a pertinência como a força dos argumentos apreciam-se
em função da sua refutação possível. Com efeito, é na
controvérsia, na medida em que é mais ou menos fácil opor-lhe
argumentos em sentido oposto, que se determinará a sua eficácia
sobre o espírito de certos auditores, ou mesmo a sua validade, se se
entende por isso a sua eficácia a respeito do auditório universal.
Mas critérios puramente formais não podem garantir a validade de
uma argumentação, ainda que, em certos casos, bastante raros,
aliás, como no do exemplo invalidante, se possa refutá-la de uma
maneira dificilmente discutível. Uma argumentação, tal como nós
a concebemos, não é, com efeito, nunca evidente, e querer impor a
evidência como critério de uma argumentação válida desembocaria
na desqualificação de toda a forma de argumentação. Praticamente,
é a metodologia de cada disciplina, e mais particularmente, no caso
de uma filosofia, o quadro que constitui o sistema filosófico dado,
que permitirá determinar, no seu contexto, a força e a pertinência
de cada argumentação particular.
Se, numa controvérsia, o interlocutor reclama uma certa prova,
e faz depender disso o desfecho do debate, certifica, desse modo, a
força que lhe atribuiu: mas este certificado só é eficaz a respeito de
um auditório particular, a menos que este último seja considerado
como uma incarnação do auditório universal.
Se vários argumentos chegam a uma mesma conclusão,
reforçam-se mutuamente graças à interacção dos argumentos pela
convergência. Se esta convergência é verificável
experimentalmente, ela constitui aquilo que Whewell, teórico
inglês do século XIX, qualifica de consilience, e que é o
fundamento mais sólido do raciocínio indutivo. Da mesma
maneira, a congruência dos testemunhos reforça a lei dada a cada
um deles isoladamente. Mas quando a convergência se revela
demasiado sistemática, pode despertar a desconfiança a respeito
daquilo que poderia parecer previamente arranjado, tal como os
plebiscitos quase unânimes que suscitam dúvidas quanto à
liberdade dos votantes.
Se a argumentação fosse tão constrangedora como uma
demonstração,
a mais curta seria também a melhor porque seria a mais elegante.
Mas como não é o caso, ter-se-ia sempre em princípio interesse em
reforçá-la através de novos argumentos. Isto introduz o problema
da amplitude da argumentação.
Salvo quando se trata de factos e de verdades reconhecidas, a
adesão às teses que se procuram remover poderia ser sempre
utilmente reforçada e, graças à convergência, novos argumentos
poderiam sustentar as conclusões às quais se tinha chegado. É
aliás, sobretudo, quando nos dirigimos a um auditório compósito,
o qual não é sensível aos mesmos argumentos, que uma variação
destes, para desembocar nas mesmas conclusões, poderia aparecer
como indispensável. Mas é preciso estar atento a que os diversos
argumentos assim apresentados não sejam incompatíveis, porque o
adversário não deixaria de os opor uns aos outros.
Há também limites à amplitude da argumentação impostos
pelas condições sociais e psicológicas, por regras de correcção ou
de comportamento. Existe igualmente um perigo em introduzir
uma argumentação dizendo respeito a certas matérias ou a
introduzir argumentos de uma certa espécie.
Não esqueçamos, com efeito, de que toda a argumentação,
todas as razões que se fornecem a favor de uma tese, é o índice de
uma dúvida, de que as teses que nos encontramos a defender
obrigatoriamente não parecem acima de qualquer contestação.
Querendo fundá-las, arriscamo-nos a perturbá-las e isso tanto mais
quanto as provas fornecidas pareçam fracas. Os argumentos que
muitos filósofos tentaram aduzir para sustentar a verdade do bom
não conseguiram mais do que propagar o cepticismo a seu
respeito. Da mesma maneira que uma prova constrangedora torna
supérflua toda a prova ulterior, do mesmo modo a evidência de
uma proposição torna supérflua toda a prova em geral: fornecer
uma prova significa sugerir a ideia de que esta seja indispensável.
Salvo quando se trata de uma técnica metodologicamente imposta,
como num estudo de história, indicar a fonte que atesta o facto é
muitas vezes indicar que não se toma necessariamente a afirmação
por sua própria conta. Passa-se o mesmo com certas motivações de
projectos de lei que impedem a aprovação de um texto que talvez
tivesse sido votado sem a motivação julgada inaceitável.
Quando se trata de uma tese controversa e que é indispensável
argumentar a seu favor, torna-se perigoso acreditar que possa ser
utilizado um argumento sem quaisquer riscos, qualquer que ele
seja. De facto, o orador, sendo solidário da sua argumentação, a
qual ele se compromete implicitamente a defender, corre um
perigo tanto maior quanto introduz argumentos mais facilmente
refutáveis.
Além disso, um argumento pode atrair a atenção sobre um
objecto determinado, aumentar a sua presença no espírito dos
auditores e pô-lo no centro das suas preocupações, enquanto, de
outro modo, estes se teriam provavelmente desinteressado desse
objecto.
Já se viu o perigo evidente de argumentos incompatíveis; um
outro mais subtil é o que se liga ao uso de um grande número de
argumentos, indício do facto de que não se atribui a nenhum de
entre eles um valor suficiente. Se, para exemplificar um
acontecimento, introduzo um grande número de hipóteses
variadas, é porque nenhuma delas verdadeiramente se impõe. É
por isso que o orador renuncia muitas vezes a argumentos que ele
julga incompatíveis, seja com a ideia que tem do seu auditório,
seja com aquilo que ele considera como não conveniente quer com
a sua pessoa, quer com as suas funções. Aliás, acontece que, em
certas circunstâncias ou em certas disciplinas, argumentos de um
certo tipo são considerados como irrelevantes ou inconvenientes; a
sua introdução só poderia servir para desacreditar o orador, para
indicar que este não dispõe de melhores argumentos ou de provas
tradicionalmente reconhecidas num tal género de debates. Da
mesma maneira, através da diversão que consiste no deslocamento
do debate para um ponto diferente daquele que estaria em discus-
são, com o fim de chamar o adversário para um terreno em que nos
sentimos mais fortes, confessamos, implicitamente, a nossa
fraqueza em relação ao ponto de que nos afastamos.
Segundo que ordem devem ser apresentados os argumentos?
Esta pergunta tratada nas obras de retórica, nos capítulos
dedicados à disposição ou
ao método, tem bastante mais importância na argumentação do que
na demonstração, porque este problema deve ser examinado não
em função de uma verdade invariável, mas em função da adesão
dos auditores aos encadeamentos sucessivos da argumentação.
Com efeito, é preciso não perder de vista que a adesão dos
auditores não é um dado invariável, porque. se modifica pelo
próprio efeito do discurso.
Por vezes a ordem é imposta, quando determinados
argumentos não são admitidos ou mesmo compreendidos sem o
conhecimento de outros elementos, os quais é necessário
apresentar previamente. É assim que tal ou tal interpretação supõe
o acordo prévio em relação aos dados que se trata de interpretar.
Outros argumentos necessitarão da presença de certas teses no
espírito dos auditores, ou do seu acordo explícito em relação aos
pontos que servirão de apoio à argumentação.
Uma condição prévia a toda a argumentação é que o orador
seja ouvido, e de preferência com um preconceito favorável. Daí a
importância do exórdio, cujo papel principal é o de assegurar estas
condições prévias à argumentação. Aquele visará estabelecer a
qualidade, a competência ou a credibilidade do orador, o interesse
e a oportunidade do seu discurso. O exórdio, quando parece
indispensável, será sempre adaptado às circunstâncias do discurso,
ao orador e ao seu auditório, ao assunto tratado, aos eventuais
adversários.
A seguir ao exórdio, hoje frequentemente substituído pela
apresentação do orador, é ocasião para passar ao objecto
verdadeiro e próprio do discurso, cujo enunciado precede ou se
segue às razões avançadas a favor da tese a debater, segundo o
auditório esteja mais ou menos apto a acolhê-la sem preparação.
Quando a ordem dos argumentos não é imposta, mas pode ser
livremente fixada pelo orador, este tem a escolha entre três ordens
tradicionalmente consideradas em função da força dos argumentos
sucessivamente apresentados: a ordem de força decrescente, a
ordem de força crescente e a ordem dita nestoriana - porque Nestor
colocava no meio as suas tropas menos seguras - que começa e que
acaba com os argumentos mais fortes. Esta última ordem tinha
vulgarmente a preferência por parte dos mestres de retórica. Mas o
inconveniente desta classificação é que ela considera os
argumentos como dotados de uma força fixada de uma vez para
sempre, independente da ordem na qual esses argumentos são
propostos. Ora muitas vezes os argumentos não adquirem toda a
sua força senão após uma preparação prévia do auditório. Tendo
em conta este último elemento, há interesse em colocar à cabeça os
argumentos cuja força é independente dos outros, depois estes
últimos na ordem que lhes dará mais valor. É assim que se deverão
em primeiro lugar afastar os obstáculos que correm o risco de
impedir o acolhimento favorável doutros argumentos, tais como as
prevenções do auditório quanto à honorabilidade ou à hostilidade
do orador.
. É preciso não perder de vista, a este propósito, que existem
ordens quase impostas, quer pela natureza das coisas, quer pelas
convenções. E assim que, na exposição dos factos, a ordem
cronológica parece natural. Em certas matérias, e diante de certos
auditórios, existe uma ordem tradicional da qual é impossível ou
perigoso afastar-nos sem uma razão peremp
tória. Uma ordem que parece testemunhar da boa-fé do orador é
aquela em que este retoma, ponto por ponto, a ordem do seu
adversário.
A partir do fim do Renascimento e desde o advento do
racionalismo, no século XVII, assiste-se à procura de uma ordem
natural ou racional que seria o método a seguir no
desenvolvimento de toda a argumentação, independentemente das
reacções do auditório. É o objectivo de Descartes, no Discours de
la méthode, pedindo que se proceda do simples para o complexo. E
o fim da retórica, concebida como a arte de persuadir e convencer,
porque, fazendo depender a ordem unicamente da matéria tratada,
dissocia-se a forma do fundo do discurso e reduzem-se as técnicas
de argumentação a simples processos de exposição, que dizem só
respeito a questões de forma. A retórica, de técnica do discurso
persuasivo, toma-se estudo de figuras de estilo, desligadas do seu
contexto, e que se apresentam como flores mortas e secas de um
ervanário.
A racionalidade da teoria da argumentação, a qual não dissocia
a forma do fundo do discurso, e que considera a variedade dos
auditórios, exige a adaptação do discurso aos efeitos procurados no
auditório do qual se pretende obter a adesão. A organização do
discurso será concebida em função desta adesão; e assim também a
escolha e a apresentação dos argumentos, a amplitude e a ordem da
argumentação.
A teoria da argumentação, desenvolvida na retórica antiga que
conheceu um grande sucesso no Renascimento, sofreu um declínio
a partir do século XVII, sob a influência das teses do racionalismo
e do empirismo. A importância dada, no século xx, à filosofia da
linguagem e à filosofia dos valores contribuiu para o renascimento
da teoria da argumentação, cujos efeitos se revelam especialmente
relevantes na renovação do estudo do raciocínio jurídico e
f1losófico. [CH. P.].

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o A estrutura de um discurso, oral ou escrito (cf. oral/escrito), que tenha por finalidade demonstrar a um
público a evidência racional de um assunto (cf. razão) contrapõe-se à de um discurso puramente lógico
(cf. lógica) que, fundado numa axiomática (cf. axioma/postulado) e apto a excluir toda a ambiguidade,
atribui e faz atribuir, com a sua coerência interna, valor de necessidade às demonstrações. A
argumentação não persegue o verdadeiro (cf. Verdadeiro /falso), mas repousa sobre valores e sobre uma
eficaz interpretação dos conteúdos linguísticos. Na medida em que se serve de uma linguagem, o
discurso persuasivo pode ser visto em relação com a estrutura, o uso e as funções linguísticas (cf.
representação, signo, significado, símbolo, código, retórica/estilística). Entendida como uma actividade
realizada por um emissor e dirigida a um destinatário para certos fins, a argumentação é, além disso,
considerada em relação com os actos linguísticos (cf. também pressuposição/alusão, dizível/indizível,
competência/performance) e mais geralmente em relação com os modos da comunicação que se realiza
mediante a palavra (cf. também escuta). Entre os vários modos expressivos de que se serve a
argumentação, ocupa um lugar relevante o raciocínio por analogia (cf. analogia e metáfora).
Chaim Perelman, in Enciclopédia – 11- Oral/Escrito, Argumentação, Lisboa: INCM,
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