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É com base nesse conceito de simulacro como artificialidade, com esse ar de vazio,
de falso, que queremos pensar o livro de Bernardo Carvalho. Quando o simulacro aparece
no texto literário, que por si só já é uma espécie de simulacro ao trabalhar com a
representação, a mentira, o que encontramos é um jogo em que se torna difícil encontrar
respostas corretas. Dessa forma, o jogo literário do leitor com o texto fica ainda mais rico, já
que nada é o que parece ser mas tudo pode ser alguma coisa. Quando parece esvaziar de
significados o texto com seu caráter artificial o simulacro na verdade contribui para um
grande enriquecimento. Tomemos como base o que diz Wolgang Iser sobre os vazios no
texto:
“Um outro lugar reservado pelo texto para esta interação é constituído pelos
diversos tipos de negação, que se formam pelas supressões no texto. Os vazios
e as negações contribuem de diversos modos para o processo de comunicação
que se desenrola, mas, em conjunto, têm como efeito final aparecerem como
instâncias de controle. Os vazios possibilitam as relações entre perspectivas de
representação do texto (...). Através dos vazios do texto e das negações nele
contidas, a atividade de constituição decorrente da assimetria entre texto e
leitor adquire uma estrutura determinada, que controla o processo de
interação.” (Iser, 1979: 91-92)
Podemos perceber nas palavras do teórico alemão que a interação texto/leitor é fruto
dos vazios que o primeiro oferece ao segundo. Quando nos deparamos com o simulacro, em
que a representação, a dissimulação abre um campo de significação ainda maior, já que
retira do texto as respostas prévias; podemos então presenciar esse processo interacional
texto/leitor a que alude Iser. Em Teatro as brechas que Bernardo Carvalho propositalmente
abre no texto e deixa em aberto servem como os vazios citados por Iser. Ao trabalhar uma
linguagem que se reflete em si mesma o autor brinca com o leitor, este percebe então que a
escrita se reflete na própria escrita, em seus vazios, como um espelho colocado de frente
para outro, reflexo múltiplo do próprio eu. Como uma construção artificial, o simulacro
pode ser entendido como uma espécie de reapresentação que procura desenvolver uma
aparência diferente, de outra natureza, algo criado, uma outra realidade construída a partir
das palavras.
Verdade e mentira caminham aqui juntas, unidas em Ana C. e por Ana C., é nela(e)
que se encontra um certo ponto de convergência, como simulacro Ana C. emerge no texto
de Teatro como a representação de si mesmo, mais ainda, a personagem é a artificialidade
em pessoa (s), já que na sua duplicidade sexual ela carrega as máscaras que vestem de
dúvidas não apenas ela mesma como também toda a história narrada. Devido a sua
androginia Ana C. pode ser lida como a tentativa vã de se representar por meio da literatura.
Para Anderson Luís Nunes da Mata: “Em Teatro, não há uma resposta. As argumentações
de Daniel I e Daniel II são dotadas de lógica, mas parecem querer se esfacelar diante de
qualquer interpretação. (Mata, 2005: 11). Dessa forma o sentido de interpretar como achar
respostas se dilui, podemos perceber a impossibilidade de tal ato, isso ocorre devido a
maneira como a própria narrativa se estrutura em planos, digamos que duplos, em que as
contradições a todo momento se apresentam diante do leitor. É como uma pessoa frente a
um espelho refletindo a si mesma mas de maneira deformada, ou seja, o eu que se reflete e o
refletido são e não são ao mesmo tempo, a imagem projetada é a do que se mostra na frente
do espelho, mas consegue, paralelamente, ser diferente de si mesma, assim como no quadro
É proibida a reprodução (1937) do pintos francês René Magritte em que um homem se olha
no espelho e o que ele vê é a sua nuca, isto é, ele enxerga a si mesmo, mas de forma
diferente, já que seu reflexo aparece de costas quando ele está de frente; ele se constitui
assim como um ser deformado dentro de sua própria forma.
O final do livro é algo emblemático, nele se percebe o processo de loucura surgindo
como elemento central da narrativa:
“(...) E agora, a cada vez que tento convencer a psiquiatra de que aquele
fotógrafo era eu, e também lhe dou o meu nome em garantia – Daniel! Daniel!
Como comprovação – ela me manda de volta para o meu quarto, sempre muito
decepcionada. E me diz que, se continuar assim, inventando histórias, nunca
mais vão me deixar sair daqui. (Carvalho, 1998: 132).
O que então é verdade? O que é mentira? Quem é o louco da história? Perguntas que
Carvalho deixa soltas, servindo como guia para entendermos a artificialidade que permeia o
romance. Durante boa parte do livro somos levados a duvidar de tudo frente às indagações
que nos são apresentadas, dessa forma, nesse final em que a loucura surge como centro
catalisador das indagações, fica fácil identificar que no fundo tudo não passa de
representação, de artifícios que foram criados, nada é real, tudo está escondido na cabeça do
narrador louco. Para José Geraldo Couto, no texto de apresentação do livro (orelha), o
paranóico é o centro do universo conspiratório que ele próprio elabora, dessa forma se cria,
em Teatro, em que várias vozes paranóicas se cruzam, um universo sem centro em que não
existe universo real verdadeiro a ser representado, mas apenas a pura representação (Couto,
1998). Podemos enfim constatar que no fundo, desde o início, tudo não passou de mera
tentativa de representação, mas uma representação insana, movida pela loucura, as duas
vozes que narram (Os sãos e O meu nome) são loucas, paranóicas, oscilam entre razão e
irracionalidade, o que acarreta uma narrativa não confusa, mas permeada de incertezas.
Ao fim da primeira parte da história o narrador decide, ele mesmo, o que lhe
ocorrerá, depois de instruir um homem que já havia visto antes e que fora o primeiro a lhe
dizer “Até que Daniel pare de sonhar” para que o mate, que atire nele à noite, quando ele
passar vestido de terno escuro, gravata amarela, chapéu e uma pasta debaixo do braço às
duas da manhã, mas sem que o homem saiba que será ele, o que lhe instrui, que será o alvo.
Depois das instruções dadas e de estar arrumado para seguir seu destino ele diz ter escrito
tudo: “Basta escrever. Este é o meu mundo. Se sou o autor do mundo (...) como pode haver
algo que não compreendo?(...)” (Carvalho, 1998: 87). E a pergunta fica no ar, pairando
sobre a cabeça tanto do narrador, já que não se responde, quanto do leitor. Novamente a
artificialidade do simulacro toma conta da narrativa, se apodera do narrador e nos oferece
apenas incertezas, indagações que seguirão até o fim da história. A idéia do sonho somada à
da loucura acentua ainda mais a noção de representatividade presente na obra; tanto o
primeiro quanto a segunda se caracterizam pela falta de realidade, o onírico e a insanidade
se constituem como inverso do real, o outro lado, o vazio, sonho e loucura se opõem
diametralmente à realidade, à idéia de real que envolve o mundo, e são justamente eles,
juntos, que permearão a narrativa de Teatro.
Conclusão
Antes de encerramos, vale ainda pensar sobre o poder exercido por Ana C. quando
atua como astro de filmes pornôs; de certa forma encontramos aqui mais uma concretização
do simulacro, enquanto ator Ana C. representa o que ele não é, mas mesmo assim se faz
capaz de encantar, seu poder reside em sua imagem, na maneira como ele é visto nos filmes
e o que isso acarreta a quem o assiste. Para Céline Masson:
“A imagem é da ordem do monstro, signo que avisa sobre uma ameaça divina.
Ela é freqüentemente excessiva, trans-gressiva, abrindo a vista pela força da
presença, não tanto pela aparência e pelo aspecto, mas por sua
realidade nua. A imagem é metamorfose das formas que excedem ou
desaparecem, se deformam ou se redirigem.”(Masson, 2007: 06).
Referências Bibliográficas
ISER, Wolfgang. “A interação do texto com o leitor”. In: COSTA LIMA, Luiz. A
literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 83-103.