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Muitas palavras que ora gozam de amplo uso corrente nas ruas, carregam um caráter
de efeito mágico; umas fórmulas que ora tomam o seu caminho, assumem um aspecto
sacro: são aceitas pelas massas não apenas sem discernimento, mas, igualmente, sem
compreensão. E a tais palavras de característica mágica pertencem os termos
“burguesia” e “burguesismo”. Estas palavras possuem no momento presente uma força
sobre as massas, massas estas que se sentem escravizadas por elas, cujo
significado, porém, não se consegue compreender adequadamente. A palavra pende a
uma profunda obscuridade, não se encontra preparada para abarcar significados
complexos, e nem ilumina a escuridão, ao contrário, apenas a aumenta. A magia
provoca e estimula algo de instinto obscuro, corresponde a alguns interesses,
porém nada de conceito ou idéia revestido de clareza pode ser a ela relacionado.
Qual seria a interpretação de “burguesia” no momento presente? Sob termo
“burguesia” é compreendida não apenas a classe industrial, não apenas os
capitalistas, nem o “terceiro estado”. No presente, para nós, a categoria de
“burguesia” é empregada num sentido incomensuravelmente amplo. Toda a Rússia, toda
a humanidade é dividida em dois mundos irreconciliáveis, dois domínios: um domínio
do mal, da escuridão, do demônio – o domínio burguês; e um outro domínio divino,
do bem, da luz – o domínio socialista. No caminho desta psicologia há uma re-
experimentação da antiga e arcaica divisão e oposição religiosa, porém, de um modo
distorcido. Os Social-Democratas, tendo envenenado as massas trabalhadoras com o
ódio destrutivo pelos “burgueses” e “burguesismo”, fazem uso dessas palavras num
sentido classista e materialista, e sob o seu próprio ponto de vista classista
conferem-lhes um selo quase religioso. Esse sentido positivista-materialista e
classista do mundo não pode, no final das contas, perdurar. E os socialistas, os
materialistas estão compelidos a admitir que o “burguesismo” reflete uma certa
disposição psicológica. Uma certa moldura de valores relacionados com a vida, não
tanto uma condição de problema social, mas uma atitude do espírito humano em
relação a ele. Uma disposição “burguesa” e uma série de valores “burgueses” podem
se encontrar num homem que não pertença necessariamente à classe burguesa, de
forma alguma possuidor de uma propriedade, e, por outro lado, um “burguês” que,
apesar da sua posição social, pode ser totalmente destituído do “burguesismo”. É
absolutamente incontestável que o “burguesismo” seja uma condição do espírito
humano, e não uma posição social-classista de um homem, - ele se define pela
relação de espírito à vida material, por um espírito preso e impotente para vencer
a força da matéria, ao contrário da própria vida material.
Os grandes inimigos do espírito burguês do século XIX foram Nietzsche e Ibsen, que
não eram socialistas, nem tiveram qualquer relacionamento com o proletariado e no
presente, certamente, seriam consignados ao domínio da “burguesia” uma vez que
hoje a sabedoria da rua considera “burguês” todas as pessoas do espírito. E
provavelmente a mais vívida expressão de espírito anti-burguês da literatura russa
seria o reacionário K. Leont’ev, - toda a sua obra ao longo da vida foi um combate
contra o domínio iminente do enfadonho espírito filisteu. Seu espírito era menos
“burguês” que o espírito de todos os “bolcheviques” e “mencheviques” que aspiram à
felicidade fugaz do seu paraíso terrestre. Na França há o notável escritor Leon
Bloy, único como Católico, o reacionário dos reacionários, sem nada ter em comum
com o socialismo, e ele se levantou num radicalismo sem precedentes contra as
fundações essenciais do burguesismo, contra o espírito burguês reinante no mundo,
contra a sabedoria burguesa. Como um Cristão, revelou o campo metafísico e
espiritual e vislumbrou o mistério da burguesia, em oposição ao mistério da
Gólgota. O “burguês” prefere sempre o visível ao invisível, este mundo ao outro
mundo. Nietzsche teria dito que a “burguesia” sempre ama aquilo que se encontra
“ao alcance das mãos” àquilo que se encontra “remoto”. O espírito do burguesismo
está em oposição ao espírito altaneiro de Zaratustra. Ibsen teria dito que o
espírito burguês se opõe ao espírito daquele homem que se coloca só no caminho da
vida. Para o burguês, o espírito está profunda e essencialmente em oposição não ao
espírito socialista e proletário mas, fundamentalmente, ao espírito aristocrático.
O domínio burguês é um domínio quantitativo. A ele se opõe o domínio qualitativo.
O espírito burguês constrói tudo sobre a base da prosperidade, felicidade e
satisfação. Tal espírito que se encontra diametralmente oposto a este, tende a se
construir sobre as bases dos valores, e necessita gravitar de encontro com o
imenso e longínquo espiritual. O espírito burguês, portanto, não ama e, de fato,
teme o sacrifício, enquanto que o espírito anti-burguês possui como base o
sacrifical, mesmo quando reclama o poder. O burguesismo não foi criado pelo
socialismo, foi criado por um mundo velho, caduco. Entretanto, o socialismo aceita
o legado do burguesismo, deseja aumentar e desenvolvê-lo e levar esse espírito a
um triunfo universal. O socialismo é nada além de um reflexo passivo do mundo
burguês, foi totalmente definido por ele e recebeu dele todos os seus valores. Não
há nele uma liberdade criativa.
II
III
Nikolai Berdyaev
1917