Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Certamente isto é óbvio para muitas pessoas; mas é também uma fácil
desculpa para muitos "turistas" da arte não fazerem o mínimo esforço de
compreensão e ocultarem a sua ignorância, acusando a arte de não possuir nem
procurar qualquer significação para lá do mero divertimento (?) ou de um jogo
gratuito desprovido de objecto, de regras, de qualquer substância
significante.
Profetismo e esoterismo
É também preciso saber que as artes não imitam simplesmente o que é visível,
mas elevam-se rapidamente até aos princípios formadores donde provém a
natureza.
Plotino, Enneada, V, B, 1
É digno de nota, por ser único e inesperado, que quase três séculos
e meio depois da vaga inaugural dos escritos rosa-crucianos – os
manifestos Fama Fraternitatis, Confessio Fraternitatis e, sobretudo,
o romance As Bodas químicas de Christian Rosenkreutz, atribuído
a Valentin Andrex, e toda a literatura que daí decorre –, é digno de
nota, que Fernando Pessoa, um dos maiores poetas portugueses e
europeus do século XX, tenha escrito três sonetos intitulados "No
túmulo de Christian Rosenkreutz e que o tema do corps beau et
glorieux do Mestre simultaneamente corbeau, corvo, e "corpo de
gloria" e do Livro ocluso que segura contra o peito – contendo um tesouro
precioso – tenha voltado à tona da literatura do nosso tempo. Num estilo
perfeitamente moderno, no melhor sentido da palavra, o tema célebre reaparece
aos nossos olhos não como uma evocação ou a celebração de uma efeméride
literária, mas como uma forma de meditação poético-filosófica inédita, a um tempo
bela na sua linguagem contida, rigorosa, quase matemática, e simultaneamente
densíssima e enigmática no mistério mais profundo das suas significações:
meditação actual, em três andamentos, sobre a morte como um acordar do sonho
da vida, sobre o que a alma pode conhecer da Verdade e sobre Deus enquanto
Homem de um outro Deus maior. No nº 8/9 (1978) da revista Exil, André Coyné
publicou um longo estudo intitulado "Fernando Pessoa e o sentido da poesia",
texto de rara inteligência sobre a obra poética do autor da Mensagem.
Mas esse corpo sem vida, mumificado, era por seu turno o
sarcófago de outro corpo, ou o livro de um outro texto interior, que o
mistério da ressurreição esclarecerá, transformando-o em corpo de luz. Esta Luz,
ao surgir, apagará o livro, pronunciará enfim a Palavra impronunciável, o Sentido
para além do sentido:
Já Bernard Gorceix, no prefácio que escreveu para o livro La Bible des Rose-Croix
(P .U. F., 1970), chamara a atenção para o facto de o tema do
túmulo misterioso, contendo um corpo morto e um tesouro precioso,
ser relativamente frequente na literatura da Idade Média e na
literatura alquímica: cita o exemplo da Tabula Chemica, de Ibn
Umail, uma obra bem conhecida do século XVIII, em que se conta a
visita a uma casa subterrânea cujas paredes estão cobertas de
frescos e onde um ancião defunto aperta nas mãos um livro
ilustrado. Gorceix cita ainda a lenda que circulava no tempo de
Valenlin Andrex, segundo a qual ter-se-iam descoberto, debaixo do
grande altar de uma igreja de Erfurt, as obras de Basílio Valentin.
Uma das lendas – ou factos históricos – que estariam por detrás do
romance de Valentin Andrex foi contada a Wittemans por um certo Roesgen von
Floss, respeitável junker batávio; nas sequelas trágicas do assassínio, em 1208,
do legado pontifical Pierre Castelnau, desencadeou-se uma perseguição feroz –
sob o pretexto de exterminar os Albigenses – movida por Inocêncio III à família
Roesgen Germelshausen, que foi massacrada barbaramente e cujo
castelo foi destruído e saqueado. Christian, o filho mais novo dos
Germelshausen, teria sido o único que escapou com vida, fugindo
para o Oriente, onde foi iniciado nos antigos segredos dos Rosa-
Cruz. De regresso à Europa, Christian renunciou ao nome de família
e tomou o de Rosenkreutz.
Nesse mesmo ano, foi dedicada ao duque Frederico uma obra intitulada
Naometria, da autoria de Simão Studion (manuscrito nunca publicado, guardado
na Landesbibliothek de Estugarda): trata-se de um texto extensíssimo, profético-
apocalíptico, que usa a numerologia baseada nas descrições bíblicas das medidas
do Templo de Salomão e que, a partir da simbologia das datas bíblicas e da
história europeia, traça profecias acerca de acontecimentos futuros, tais como o
fim do reino do Anticristo, a queda do papa e da religião de Maomé e o começo do
Millenium, (que, na sua interpretação, ocorreria por volta de 1623). Andrex
conheceu a obra de Simão Studion e refere as suas profecias num livro publicado
em 1619, Turris Babel, no qual as relaciona (de modo obscuro, para usar as
palavras de Frances Yates, grande especialista do rosicrucianismo) com os
escritos de Joaquim de Flora, Santa Brígida, Lichtenberg, Paracelso, Guillaume
Postel e outros illuminati.
Terá o Mártir Vicente vindo do mundo além-morte para nos comunicar uma
mensagem Ou tratar-se-á de um outro enviado, quiçá Melquisedeque, ou o
lendário Preste João, ou talvez ainda a hipostase divina que há-de vir em breve e
a que chamam Paracleto, o Consolador (ou Paraclito, no dizer do povo)? Trata-se,
em qualquer caso, de uma figura divina, de um mensageiro ou de um anjo vindo
do Além que mostra ao rei ajoelhado o livro aberto, ou a palavra dita, visto de
perto, pode ler-se nas páginas um fragmento do Evangelho de João; à direita,
simetricamente, a mesma figura misteriosa mantém o livro fechado sob o braço e
toca, com a mão direita, o peito do cavaleiro, também ajoelhado.
Um santo esquecido
Quinto filho de uma família nobre, o seu nome era João de Meneses da Silva e
teria nascido em 1431 em Ceuta, então possessão portuguesa; ou, segundo
Frei Luís de Sousa, na História de S. Domingos; citado por Lúcio de Azevedo,
História de António Vieira, tomo II, Lisboa, 1992, 3ª edição), em Campo Maior,
Elvas.
O homem não estava destinado a ser o que é: foi pela Queda que se tornou tal.
Reencontrar a Palavra é reencontrar a verdadeira Lei Humana, o Adão primitivo e
andrógino, feito assim à imagem de Elohim. Fazer dentro de si mesmo a união dos
dois princípios – eis a Lei Humana reencontrada, a verdadeira criação da pedra
filosofal.
Hirão é o Homem que deveria ser e a sua Palavra era esse destino que se
perdeu. Poderernos reencontrar a Palavra, não reencontrar Hirão. Ele está
verdadeiramente morto, e nisso consiste o pecado original; só nos podemos
desfazer deste regenerando-nos, isto é, nascendo de novo. Tal é o sentido do
termo «neófito».
(Texto publicado por Teresa Rita Lopes no volume II de Pessoa por
Conhecer – Textos para um Novo Mapa, fragmento 76. Editorial Estampa, Lisboa,
1990.), Bernard Gorceix, no texto já citado, diz que o ponto central dos Manifestos
e das Bodas Químicas é a alquimia, não só porque ilustra perfeitamente os
mistérios da fé, mas porque, simultaneamente, constitui "já a ciência central, a
filosofia nova que deverá conciliar o conhecimento e a fé, a razão e o espirito; por
outras palavras, nas Bodas Químicas, Andrex elabora o tema da urgência de uma
ciência total.
A grande Fraternidade é cristã no seu nome, cristã nos seus dois Magnos
Símbolos, cristã e católica (embora não-romana) nas suas dedicações. Os
Rosicrúcios eram, é certo, cabalistas, como eram, em dois sentidos, alquimistas;
mas eram cabalistas cristãos, como eram (sobretudo) alquimistas espirituais.
Como vários outros, aproveitaram-se da Cabala e deram-lhe um sentido e um
complemento cristãos; por isso com mais razão se poderiarn queixar os judeus de
que os Irmãos se haviam servido da Cabala para fins antijudaicos do que os
cristãos de que eles tinham introduzido a Cabala na substância do cristismo, onde,
aliás, desde o Quarto Evangelho, já toda a alma dela existia. Acresce, quanto à
Rósea Cruz, que os grandes expositores dela, desde antes do seu aparecimento
até aos nossos dias, tem sido declaradamente místicos cristãos, e, ainda, que o
voto de castidade absoluta, a que (por motivos que nada tem com virtude) , a
Fraternidade obrigava o candidato, é a coisa menos judaica, embora
«cabalística», que se pode conceber". (Obra Poética e em Prosa, de Fernando
Pessoa, p. 469, vol. III, ed. Lello & Irmão, Porto, 1986).
Um outro fragmento de Pessoa toca ainda mais directamente uma das
preocupações maiores dos Rosa-Cruz do século XVII, manifestada através da
alquimia, que Gorceix considerou, a justo título, situar-se – como já se disse – na
vontade de criar uma filosofia nova que deverá conciliar o conhecimento e a fé, a
razão e o espírito. Eis o fragmento em questão: "Temos assim por certo que no
Quinto Império dar-se-á a reunião das duas forças separadas há muito, mas que
de há muito se aproximam: o lado esquerdo do saber – a ciência, o raciocínio, a
especulação intelectual; e o seu lado direito – o conhecimento oculto, a intuição, a
especulação mística e cabalística. A aliança de Sebastião, Imperador do Mundo, e
do Papa Angélico representa essa aliança íntima, essa fusão do material e do
espiritual, talvez sem separaqao".
É preciso lembrar aqui que Pessoa fala do "Quinto Império" como dos novos
tempos anunciados nas profecias de Daniel, que o padre António Vieira, no século
de Johann-Valentin Andrex, anunciou para breve. Essa aliança, essa fusão, tal
como a descreve Pessoa, representa na Terra aquilo que corresponde á
hierogamia do Criador com a sua criação de que fala Edighoffer: "ela responde a
uma das aspirações universais e eternas da humanidade".
Valerá a pena intercalar aqui algumas palavras sobre o culto do Espirito Santo no
nosso pais, que constitui um assunto a um tempo complexo, ocultado e fascinante.
Trata-se de um fenómeno que não é exclusivamente português, como é obvio
nestes assuntos, mas que encontrou no nosso pais um clima mental e emocional
de uma intensidade única – e que prevalece nos nossos dias, mau grado a longa
persistência das proibições e dos obstáculos a que, ao longo de séculos, tem sido
sujeito.
Jaime Cortesão adianta que foi durante os séculos XIV e XV que o culto do
Espírito Santo, ligado à festa do Império, tomou maior desenvolvimento em
Portugal (celebrando-se a bordo das naus que atravessavam os oceanos) e
espalhando-se pela África Portuguesa, a Índia e, principalmente, os arquipélagos
da Madeira e dos Açores, de onde passou mais tarde, em grande parte por obra
dos Açorianos, ao Brasil e à América do Norte. Por outras palavras: o auge do
culto do Espírito Santo coincide no País com o período mais intenso da expansão
portuguesa no planeta. São ainda do mesmo ilustre historiador, nos capítulos que
dedica aos painéis atribuídos a Nuno Gonçalves, estas palavras então ousadas –
num contexto cultural marcado por um tenaz neopositivismo que
desgraçadamente ainda não desapareceu por completo –, palavras que revelam a
rara percepção que tinha das geodésicas essenciais do imaginário português:
“Não se nos afigura excessivo, por consequência, crer que a cerimónia da
coroação do imperador tenha significado aos olhos de muitos portugueses, e,
quando menos, daqueles, frades ou leigos, iniciados na doutrina hortodoxa dos
espirituais, a investidura simbólica da nação pelo Espírito Santo” – espécie de
Pentecostes nacional – na missão de propagar a Fé a todo o mundo. Por esse
motivo, ao século de Quatrocentos, em Portugal, chamamos nós a época do
Pentecostes. Eis os motivos que nos levaram a dar ao conjunto dos painéis o titulo
de Retábulo da investidura da nação pelo Espírito Santo.
O milenarismo joaquimita
Convirá aqui relembrar que para o abade cisterciense Joaquim de Flora, que viveu
entre 1135, (?) e 1202, eram três as idades em que se dividia a história da
Humanidade, como três são as pessoas de Deus: Idade do Pai, Idade do Filho e
Idade do Espírito Santo. Esta concepção da História, exposta nas suas obras e
comentada e amplificada. pelos seus seguidores, decorria de duas experiências
de iluminação mística, que relata, talvez ainda de uma terceira a que faz alusão,
através das quais lhe foi revelada a estrutura trinitaria da evolução das eras.
O espírito franciscano
Tradição e modernidade
O padre António Vieira, através dos escritos que formam o seu "Corpus
Profético" (Esperanças de Portugal, História do Futuro, Clavis Prophetarum), não
fazia mais – como escreve o erudito Hernani Cidade no prefácio ao volume VIII da
História do Futuro (1) das “Obras Escolhidas do Padre António Vieira” (Lisboa,
1952) – “do que emprestar, com o calor do seu temperamento ardente, a nítida
claridade do seu espírito ao vago sonho a que continuava presa a alma da grei”.
Segundo um comentador anónimo do Compendio da Clavis Prophetarum, e para
usar as palavras do eminente investigador, Vieira acreditava na Consumação do
Reino de Cristo na Terra. Para efectivar tal Reinado, espiritual e temporalmente,
Cristo surgirá uma segunda vez, e por mil anos, segundo a conta do Apocalipse,
exercerá na Terra, e em plenitude, o seu poder.
É a partir do que existe, e da noticia que haja daquilo que existiu, que
poderemos começar a estabelecer o quadro das representações artísticas do
ternário paraclético. (Remete-se o leitor para as notas que se reúnem sob o título
“A iconografia do Espírito Santo”, lidas na comunicação ao Congresso sobre o
Culto do Espírito Santo, que teve lugar na Biblioteca Nacional em Maio de 1989.)
Aqui a evocam-se apenas alguns pontos de natureza geral e a citar um exemplo
iconográfico que é, para mais, uma das obras-primas essenciais da nossa arte.
O facto estranho é que quase não existem, nem na arte portuguesa nem na
européia, representações da face da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade! A
titulo de exemplo, indica-se a Terceira Pessoa que está pintada na Coroação da
Virgem, do mestre I. M, (século XV), no Museu de Basileia. Esta manifesta
escassez é confirmada pelas longas investigações e porfiados estudos que o
eminente especialista Serge Bulgakof dedicou à Teologia do Paracleto.
Bulgakof afirma, no seu livro Ie Paraclet (Paris, 1946), que “nenhuma das
revelações sobre a comunicação do Espírito Santo, tanto no Novo como no Antigo
Testamento, comporta qualquer manifestação da Sua própria hipostáse. O Espírito
Santo revela-se, podemos dizer, de uma maneira não pessoal, por uma certa
acção da Santíssima Trindade inteira, ou então do Pai e do Filho, que enviam a
sua graça.
E noutro passo da sua obra o mesmo erudito autor escreve estas profundas
palavras: A Face do Espírito Santo permanece velada de mistério, é incognoscível,
irrevelada em si mesma. Será esse o mistério do século vindouro, uma revelação
ainda não realizada, comparável à ignorância do Antigo Testamento quanto à
revelação pessoal do Filho A aparição da Face do Espírito Santo ultrapassara
aquilo que pode conter o «reino da graça», e só terá lugar no «reino da Glória»?
[...] Como pessoa da Santíssima Trindade, o Paracleto ainda não se manifestou...
Assim parece ser. Mas pode afirmar-se que existe pelo menos uma grande
excepção na arte Europeia, isto é, uma Face do Espírito Santo, ou representação
pessoal do Paracleto – sem que constitua apenas, indistintamente, uma das
Pessoas da Santíssima Trindade –, e ela aparece na obra-prima da nossa pintura
primitiva: é a figura central (e dupla) dos Painéis de Nuno Gonçalves.
Na sua dupla função, ele prepara a humanidade para receber no fim dos
tempos, (advento do Reino dos Céus) o verdadeiro Messias, o sacerdote
perpetuo, o Cristo Rei, por ele anunciado e evocado quando consagra o pão e o
vinho [...]. É portanto o Melki-Tsedek da tradição hebraica, o Preste João da lenda
cristã, o Rei do Mundo na crença asiática, S. João «o discípulo amado que ficará
até que eu volte».
Deve ser incluído neste rol a serie das Aparições de Cristo á Virgem, que
conheceram em Portugal, no século XVI e até ao século XVII, uma voga sem
paralelo com os outros países cristãos, onde o assunto é menos frequente; a mais
extraordinária dessas Aparições é a que está hoje atribuída a Jorge Afonso, pintor
de D. Manuel, proveniente do Convento da Madre de Deus, em Xabregas; mas
outras há importantes, atribuídas a mestres como Frei Carlos, Gregório Lopes,
Garcia Fernandes, Simão Rodrigues, etc.
Este tema era o mais próximo das preocupações dominantes e aquele que,
mantendo no seu foro interior o bruxulear de um culto arreigado no coração das
gentes, melhor servia o nacionalismo emergente, a centralização do poder, a
ambição de domínio. Por isso, o Quinto Império foi bandeira de patriotismo
português contra o ocupante espanhol, tal como, antes de l380, inspirou o sonho
manuelino de unificação do Mundo sob o ceptro português; depois de 1640,
inspirou, no tempo de D. João V e ainda no século XVIII, não apenas um ideário
de grandeza nacional, por vontade de Deus, como também algum escrito erudito
de uma alquimia sotereológica e escatológica, como o extraordinário tratado
alquímico Ennoea ou Aplicação Do Entendimento sobre a Pedra Philosophal, de
Anselmo Caetano Munho´s de Avreu Gusmão e Castello Branco (publicado em
edição fac-símile pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1987), onde lemos
estas palavras surpreendentes: “... o Insigníssimo e Excelentíssimo Conde da
Ericeira D. Francisco Xavier de Menezes chamou em huma ocasião na minha
presença a Pedra Philosophal, Sebastianismo da Philosophia; porque todos os
homens de grande juízo são Chrysopeios, assim como os Heroes de grande
entendimento são Sebastianistas”; e logo a abrir o capítulo seguinte acrescenta:
“Estão discretamente comparados os Sebastianistas, com os Herméticos; porque
tanta duvida tem a existência do Lápis, como a do Senhor Rey D. Sebastião,
porque ambos estão encobertos".
Fernando Pessoa
O poeta é um fingidor
Mas para lá das fingidas-e-veras dores existenciais que o poeta sofre fingindo
sofrer. lê-se uma segunda dor lancinante, mais funda e irreversível. Porque, sob o
doloroso existir, que não é senão a agitação do ego e da personna, há um outro
nível mais fundo do sofrer onde o indivíduo é despido da sua mísera pele humana,
da sua vã biografia e descobre a dimensão abissal do mistério. "O seu realismo é
transcendental, declara Dalila Pereira da Costa nesse ensaio precursor que se
intitulou O Esoterismo de Fernando Pessoa (publicado há 27 anos pela editora
portuense Lello & Irmão), " nele a feição de conhecer é um esoterismo. E, noutro
passo, acrescenta: O essencial para Pessoa não está no primeiro plano da
realidade [...] porque o Mundo exterior é (só) exemplo da realidade. No exterior, no
visível, não se esgota todo o real. Para além do esotérico há o esotérico, e destes
dois planos de realidade e este último o que cumpre conhecer.
Mau grado uma lenta mas gradual tomada de consciência dos aspectos
esotéricos da obra e do pensamento de Pessoa, que se deve aos estudos
publicados por alguns excepcionais investigadores, continua a conhecer-se mal a
profundidade esotérica – hermética e alquímia, cabalística e profética – da sua
obra; esse "ocluso Livro" que na "falsa morte" Rosenkreutz-Pessoa aperta contra
o peito cada um deverá procura-lo, tentar abri-lo e esforçar-se por entende-lo. Tal
como os Irmãos da Fama Fraternitatis, que procuraram o acesso a cripta
heptagonal, depois o "túmulo" (hoc universo compendium) e por fim descobriram o
belo corpo incorrupto e glorioso do Mestre, apertando ao peito um pequeno livro
em pergaminho, escrito a oiro, intitulado T., que é, depois da Bíblia, o nosso mais
alto tesouro, nem deve ser facilmente submetido à censura do mundo, como se lê
no manifesto Fama Fraternitatis Rose Crucis, citado em exergo pelo Poeta.
Faltará, por último, abrir esse Livro, se aquele que procura for
concedido chegar tão longe, para lá da própria morte – morte que só
nessa condição se torna "falsa".
Se, a partir de um certo momento, Pessoa se afastou do teosofismo – a atestá-lo
leia-se a nota deixada nos seus papeis: O que são os graus místicos, mágicos e
alquimicos ? O que é o sub-grau de Senhor do Limiar? (a confusão psychica em
Cagliostro, Blavatsky, Crowley, é isso ?) – e recusou o espiritismo, nem por isso,
como observa André Coyné no texto "Fernando Pessoa au regard de la Tradition"
(comunicação ao Encontro Internacional do Centenário de F. Pessoa, organizado
pela Secretaria de Estado da Cultura), deixou de se referir às categorias de uma
Ordem como a Golden Dawn de MacGregor Mathers, onde foi buscar as noções
de Ordem Exterior e de Ordem Interior, as designações dos graus de "Neófito", "
Adepto" e "Mestre" e respectivas subdivisões, bem como o agrupamento desses
graus e subgraus num "Átrio", num "Claustro" e num "Templo" (ver os fragmentos
dados à estampa por Yvette K. Centeno no já citado livro Fernando Pessoa e a
Filosofia Hermética; e também, da mesma autora, Fernando Pessoa: Os
Trezentos e Outros Ensaios, Ed. Presença, Lisboa, 1988.
Afigura-se que a mensagem que Pessoa deixa neste texto e para ele
crucial e constitui o fruto concentrado de uma longuíssima meditação e gestação.
Porque, se os três sonetos em questão são do final da sua vida, a verdade é que
já numa carta datada de 6 de Dezembro de 1915, ao descrever a Mário de Sá
Carneiro o grandíssimo abalo (a um ponto que eu julgaria hoje impossível)
provocado pelo contacto com as doutrinas teosóficas – ocasionalmente
descobertas por ter tido que traduzir livros teosóficos –, acrescenta que cousa
idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre Os
Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz.
Porta aberta do palácio fechado que conduz ao Livro ocluso . Livro que
Pessoa deixou escrito, ainda que ocluso , e onde, conhecendo, cala o que
conhece; porém, sem dizê-lo nos diz como – e o que é – conhecer. Pagina única
na nossa literatura.
Tal enervamento traduz, aliás, sob uma forma relativamente antiga, essas
eternas especulações que desde a Idade Média se impregnam do fim dos tempos,
do Juízo Final, mas também da parusia e do Reino de Cristo; no século XVI, os
anabaptistas foram os seus mais fiéis divulgadores. Além disso, os manifestos
confirmam o ardor das oposições religiosas, sobretudo nas terras protestantes, o
antipapismo sempre virulento, mas também, paralelamente, a profundidade de
uma fé que proclama ardentemente a sua fidelidade ao texto sagrado.
Por outro lado, que sobre esta plataforma acidentada e profunda cresceu
um pequeno conjunto de escritos correlatos, intitulados pelo Poeta ? The Way of
the Serpent, “O Caminho da serpente”, publicados, pela primeira vez, em 1985 por
Yvette K. Centeno no livro Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética. Trata-se de
um desenvolvimento ainda mais especificamente pessoano que incorpora
inesperadas componentes do pitagorismo e que consiste na exploração do
traçado de uma figura geométrica conhecida tradicionalmente por Vesica Piscis (o
que revela o surpreendente conhecimento de um arcano ou chave geométrica
secreta dos antigos mestres construtores); e consiste, simultaneamente, no
esboço de uma profetologia ligada as raízes, vocação e destino da nação lusitana,
sob a forma daquilo a que podemos chamar uma visão da nossa história como
hierofania de um sebastianismo transcendental.
Não nos é possível aqui estudar todas estas variantes, bastará talvez
sublinhar que Fernando Pessoa, ao designar num dos fragmentos o triangulo
superior da Vesica por Fogo atribuindo-lhe o símbolo astrológico do leão e
marcando-lhe os lados com os símbolos do Carneiro e do Capricórnio – e o
triângulo inferior por Terra, adjudicando ao seu lado esquerdo o Touro, mostra
conceber o percurso ascensional da Serpente como começando na Terra e
prosseguindo no Fogo; mais exatamente, rompe do Instinto (a verdade), escreve
Pessoa, está só no instinto directo), ponto simétrico da unidade de Deus, porém
ao nível mais baixo do mundo manifestado; ascende o Desejo – que é como uma
indistinta saudade do plano divino – e alcança o pólo central da Imaginação, a
qual não pode ser confundida com a vulgar fantasia e haverá de ser considerada,
de acordo com os ensinamentos da melhor tradição hermética (e
também mística), como o orgão-chave das metamorfoses, a
começar pela que transmuda a simples consciência das coisas em
consciência de si mesma.
Mas porque Deus é o nome que os humanos dão a esse infinito inominável
e a essa dança dos opostos que gera a infinidade dos mundos, a Serpente
quando aí chega não pára, isto é, reconhece de imediato a finitude da palavra e do
conceito – humanização dos Abismos que estão para lá de todo o humano
entendimento –, e ultrapassa esse último limite. Num fragmento, ainda inédito,
encontramos estas linhas reveladoras: The Serpent is the Holy Spirit downwards.
The Holy Spirit is the Serpent upwards.
A Rosa do Encoberto.
Muito haveria que dizer acerca deste último nódulo profético do Caminho da
Serpente e também acerca da importância da Serpente nas terras lusitanas,
conhecidas desde a remota antiguidade pelo nome de Ophiussa, ou Terra das
Serpentes. Serpentes que se descobrem esculpidas no subcoro da mais bela
igreja manuelina de Lisboa – os Jerónimos – por sobre os cenotáfios de Luís de
Camões e de Vasco da Gama e perto das mãos de Cristo esculpidas na pedra de
duas colunas, mil vezes beijada pelos mareantes de Quinhentos antes de partirem
para o Oceano (e depois pelos pescadores e homens do mar). Essas nervuras
ofídias são como a confirmação muda do Caminho da Serpente de Fernando
Pessoa: Serpente crística que cura e que, saída da Boca do Inferno do Ocidente
extremo, trepa até ao fecho da abobada petrificada do Céu, por sobre a memória
dos heróis da viagem ao Oriente, as terras do lendário Preste João e a mítica Ilha
dos Amores, de onde se enxerga toda a Maquina do Mundo.
Vale a pena lembrar que Fernando Pessoa afirmou: a futura civilização será
uma civilização lusitana; mas, logo a seguir, desfaz as abusivas interpretações
imperialistas ao acrescentar estas palavras profundamente paracleticas: E a
nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no
espaço, em naus que são construídas «daquilo que os sonhos são feitos». E o seu
verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e
carnal ante-arremedo, realizar-se-á divinamente.