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Revista Brasileira de Educação

Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1 3 Editorial


ISSN 1413-2478
5 Poder, política e educação
Paul Singer

Associação Nacional 16 Você disse “popular”?


de Pós-Graduação e Pesquisa Pierre Bourdieu
em Educação
27 Políticas públicas de Estado e
eqüidade de gênero:
perspectivas comparativas
Nelly P. Stromquist

50 Sociedade, Estado e educação:


notas sobre Rousseau, Bonald e Saint-Simon
Luiz Antônio Cunha

67 Ensino e historiografia da educação:


problematização de uma hipótese
Clarice Nunes

80 O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da


Bacia do Rio Uruguai e a ação político-educativa
dos mediadores
Maria Stela Marcondes de Moraes

93 Espaço Aberto
Participação popular na melhoria do
ensino público
Celso de Rui Beisiegel

100 Resenhas
112 Notas de Leitura
114 Resumos/Abstracts
117 Normas para Colaborações
119 Assinaturas

Revista Brasileira de Educação 1


Revista Brasileira de Educação
é uma publicação quadrimestral da ANPEd - Associação
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Revista Brasileira de Educação


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Versão para o inglês: Robert E. Verhine, Anne Marie Speyer
Projeto e produção gráfica: Bracher & Malta
Tiragem: 1.500 exemplares
Apoio:
Fundação Ford

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Editorial

O lançamento de uma refletir este movimento ao se Para enfrentar estes


nova revista é sempre comprometer com a divulgação desafios, a Diretoria da
acompanhado por expectativas dos seus resultados. ANPEd constituiu um corpo de
e esperanças. No caso da Mas a revista é, também, editores responsáveis que
Revista Brasileira de Educação produto da oportunidade que mediante um apoio de um
não é diferente. Após a se apresenta na conjuntura conselho editorial e de
circulação do número zero no brasileira de discussão da consultores “ad hoc”, vem se
segundo semestre do ano temática educacional junto aos empenhando em concretizar as
passado, e da sua calorosa mais diversos setores de nossa expectativas e realizar as
acolhida, é nossa expectativa, sociedade que hoje se mostram esperanças desta nova revista.
com a série que agora se inicia, sensibilizados para os seus Este conjunto de pessoas se
poder produzir uma revista de problemas. Nosso desafio é o mantém paralelo aos trabalhos
qualidade com a esperança de de colocar em pauta os temas que envolvem a Diretoria da
que ela possa ser lida por um da conjuntura, fazendo da ANPEd, com rotinas e
número cada vez maior de revista um suporte para a mandatos próprios, visado a
interessados na área da análise dos problemas e das dar maior autonomia e
educação. propostas deles decorrentes. continuidade às tarefas afeitas
A sua concepção e Outro desafio é o de à lógica da produção de uma
amadurecimento são ampliar o debate científico revista. Vale ressaltar, ainda, o
decorrentes de um processo de para além das fronteiras apoio da Fundação Ford que
crescimento e consolidação da nacionais. Se é verdade que a desde o princípio acreditou na
ANPEd como associação revista é prioritariamente um viabilidade da revista.
científica que congrega veículo de divulgação e É nossa esperança que este
educadores, pesquisadores e discussão da pesquisa e dos primeiro número possa ser o
Programas de Pós-Graduação problemas nacionais, temos a primeiro passo na constituição
em Educação. Isto pode ser certeza que as discussões não de um novo veículo que
verificado a cada reunião prescindem da produção contribua para a socialização
anual, onde o número de científica internacional, do conhecimento na área da
pesquisadores presentes está ademais em um mundo onde os educação, tendo em vista
crescendo e a qualidade da sua problemas e as soluções se nossas expectativas de
produção científica evolui mostram cada vez mais realização de uma sociedade
positivamente. A revista deve globalizados. mais justa e democrática.

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Poder, política e educação

Paul Singer
Faculdade de Economia e Administração, Universidade de São Paulo

Conferência de abertura da XVIII Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, outubro de 1995.

O grande debate educacional hoje O grande propósito da educação seria proporcionar


ao filho das classes trabalhadoras a consciência, por-
Mais do que nunca, a educação está hoje em tanto a motivação (além de instrumentos intelec-
debate, no Brasil e em todo do mundo. O universo tuais), que lhe permita o engajamento em movimen-
dos educadores, educandos, administradores de tos coletivos visando tornar a sociedade mais livre
aparelhos educacionais, políticos e gestores públi- e igualitária. É óbvio que a educação escolar tam-
cos está dividido e polarizado em duas visões opos- bém deveria cumprir muitos outros propósitos, que
tas dos fins da educação e de como atingi-los. Os poderiam ser resumidos na habilitação do indivíduo
dois lados são entusiásticos defensores da educação, a se inserir de forma adequada na vida adulta: pro-
que consideram importantíssima. Mas, além disso, fissional, familiar, esportiva, artística, etc.
quase nada têm em comum. A sua caracterização, A visão civil democrática da educação não vê
a seguir, deliberadamente acentua as diferenças, contradição entre a formação do cidadão e a for-
mesmo sabendo que devem existir muitos que se mação do profissional, da futura mãe ou pai de fa-
posicionam de forma menos extremada. É que as mília, do esportista, do artista e assim por diante.
diferenças permitem compreender melhor o teor do O laço que une os procederes educativos é o respeito
debate e ajudam a dele participar. e a preocupação pela autonomia do educando, por-
Vamos chamar a primeira posição de civil de- tanto, pela autoformação de sua consciência e pela
mocrática, porque ela encara a educação em geral e sua gradativa capacitação para se libertar da tute-
a escolar em particular como processo de formação la do educador e poder prosseguir, sozinho ou em
cidadã, tendo em vista o exercício de direitos e obri- companhia de seus pares, sua auto-educação. A ên-
gações típicos da democracia. Essa visão da educação fase, nessa visão, é num tipo de relação entre edu-
centra-se no educando e em particular no educan- cador e educando em que o primeiro conduz o se-
do das classes desprivilegiadas ou não-proprietárias. gundo por vias que vão sendo determinadas cada

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Paul Singer

vez mais pelo último. Há muita discussão, eviden- As duas visões valorizam a educação como
temente, sobre como se deve constituir essa relação, meio de melhorar a sociedade, acentuando deter-
mas o que une todos os que compartilham essa vi- minados efeitos daquela. Mas as concepções de co-
são é a idéia de que toda criança deseja “natural- mo a sociedade e a economia funcionam, que sub-
mente” aprender e que esse desejo deve ser respei- jazem a cada visão, são muito diversas e se integram
tado e alimentado. O limite desse respeito pela in- em legados ideológicos opostos. Cumpre observar
dividualidade do educando é dado pelas necessida- que há outras visões de educação além das duas aqui
des e interesses dos demais — educandos, educado- esquematizadas, mas que porém são atualmente
res, pais e familiares etc. —, o que exige disciplina, ofuscadas pelo grande debate em andamento. Para
outro tópico controverso. compreender esse debate, cumpre retornar às ori-
gens das visões em confronto.
O que se contrapõe a essa visão é a que deno-
minarei produtivista. Esta concebe a educação so- A exigência democrática
bretudo escolar como preparação dos indivíduos pa- da educação universal
ra o ingresso, da melhor forma possível, na divisão
social do trabalho. Não custa repetir que também a A visão civil democrática da educação decor-
visão produtivista não despreza outros propósitos re do grande movimento pela igualdade dos dois
do processo educacional, mas enfatiza o que é cha- últimos séculos, que culminou na batalha pelo su-
mado pelos economistas de acumulação de capital frágio universal, da qual resultou a democracia mo-
humano. Cada indivíduo é encarado como tendo derna. Convém diferenciar aqui a ideologia demo-
capacidade produtiva potencial, cujo desenvolvi- crática da liberal. Esta confinava a igualdade entre
mento exige esforço tanto do próprio como de seus os cidadãos aos resultados da competição no mer-
instrutores e familiares. Esse esforço se traduz num cado. Os homens (mas não as mulheres) deviam ser
custo, que pode ser formulado em termos pecuniá- iguais em direitos jurídicos, para poderem compe-
rios e representa o valor do capital humano de que tir nos mercados, porém nada deveria reduzir a de-
dispõe cada indivíduo. Esse capital humano provém sigualdade “natural” entre ganhadores e perdedo-
não apenas da educação escolar mas também de cui- res. Sendo justas as regras do jogo do mercado, que
dados com a saúde e outros que contribuem para de- constituiriam a liberdade perfeita de Adam Smith,
senvolver a capacidade produtiva do indivíduo. qualquer interferência nos resultados reduziria o
Educar seria primordialmente isto: instruir e sagrado direito à liberdade. A premissa era a de que
desenvolver faculdades que habilitem o educando os ganhadores obtêm a preferência dos comprado-
a integrar o mercado de trabalho o mais vantajo- res por servi-los melhor e utilizam com mais parci-
samente possível. Cumpre atentar para o pressupos- mônia e sabedoria o excedente de renda a que fa-
to crucial dessa visão: o de que a vantagem indivi- zem jus. Transferir dos ganhadores aos perdedores
dual, que se traduz em ganho elevado e outras con- parte desse excedente, além de injusto, piora a uti-
dições favoráveis de usufruto material, é simulta- lização do excedente com prejuízo para toda a so-
neamente social. O bem-estar de todos é o resultante ciedade. Pior ainda, desincentiva os ganhadores, ao
da soma dos ganhos individuais, que, em um mer- privá-los de seu prêmio, e também os perdedores,
cado de trabalho livre e concorrencial, são propor- ao anular suas perdas.
cionais ao capital humano acumulado em cada um
dos indivíduos. Em outras palavras, a educação pro- A ideologia democrática parte de premissas
move o aumento da produtividade, que seria o fa- diferentes. Coloca igualdade e liberdade no mesmo
tor mais importante para elevar o produto social e pé e nega a legitimidade dos resultados do jogo do
dessa maneira eliminar a pobreza. mercado pelo fato de a sociedade capitalista estar

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Poder, política e educação

dividida em classes, que agrupam de um lado os tando as principais conquistas democráticas. Pelo
proprietários de capital e do outro os que são obri- que sabemos, nenhum país em que o sufrágio uni-
gados a ganhar a vida com seu trabalho. De acor- versal foi implantado voltou atrás e restaurou o
do com essa ideologia, os detentores do capital en- sufrágio censitário. (Regimes democráticos foram
tram no mercado com vantagens decisivas em re- muitas vezes derrubados e substituídos por ditadu-
lação aos trabalhadores, que dependem dos primei- ras, em que não se votava ou as eleições eram far-
ros para poder participar da produção social. Per- sas, mas isso não significava um retorno ao libera-
dedores e ganhadores, portanto, já estão predeter- lismo pré-democrático.) Era correto então caracteri-
minados e, se nada for feito para atenuar as dife- zar a direita antifascista como liberal democrática.
renças entre eles, estas tendem a se aprofundar. Daí Foi durante esse período que, ao menos nos
as reivindicações democráticas de universalização países capitalistas adiantados, parte importante da
não apenas dos direitos políticos de votar e ser vo- plataforma democrática se tornou realidade, prin-
tado mas também do acesso à educação e ao segu- cipalmente sob a forma do Estado de bem-estar so-
ro social de saúde, de velhice, de morte, de aciden- cial. E foi no âmbito deste que a universalização da
tes de trabalho e de desemprego. educação escolar, sob a forma de ensino público,
A demanda de acesso universal à educação es- foi implantada num importante número de países.
colar tinha como propósitos principais capacitar as A geração atual de adultos, nos países do Primeiro
crianças, sobretudo das camadas mais desprivile- Mundo, foi possivelmente a primeira que teve real-
giadas, a exercer plenamente os direitos políticos mente acesso universal ao ensino básico. Governos
que a conquista do sufrágio universal lhes propor- conservadores (liberal-democratas) contribuíram,
cionava, bem como dar acesso a essas camadas a ao lado de governos social-democratas ou trabalhis-
oportunidades culturais e profissionais que exigem tas, para que isso fosse logrado.
escolarização. Convém lembrar que, nos albores da Na realidade, a fusão do liberalismo com a de-
democracia, o ensino universitário era explicitamen- mocracia, que em meados deste século parecia um
te elitista e era exigido para o exercício das chama- fato consumado e irreversível, foi revertida pelo res-
das profissões liberais, que gozavam de nível rela- surgimento de forte onda liberal anti-democrática,
tivamente elevado de ganho e grande prestígio so- que tomou o nome de neoliberalismo. Essa rever-
cial. Foram as feministas que lideraram boa parte são foi, é bom dizer desde logo, parcial. A adesão
das grandes lutas tanto pelo sufrágio universal como ao sufrágio universal foi mantida, mas o apoio às
pela educação universal, que naturalmente tinha de outras conquistas democráticas, no campo da se-
ser gratuita e, portanto, pública. guridade social e da educação universal, foi retira-
do. Portanto, as referências à liberal-democracia
O liberalismo em face devem ser hoje fortemente qualificadas. As princi-
da democracia pais correntes de direita não-autoritária, a partir de
meados da década de 70, deram uma volta de 180º
Existe hoje uma tendência a minimizar as di- e se tornaram neoliberais, retornando sob muitos
ferenças entre liberalismo e democracia, cunhando- aspectos à postura ideológica que tinham tido no
se a expressão liberal-democracia ou democracia século passado.
liberal. Essa tendência correspondeu a uma realida-
de histórica, que durou de certo modo da década A crítica neoliberal aos serviços
de 30 à década de 60 deste século. Nesse período, sociais do Estado
a resistência liberal à democracia cedeu e grande
parte das correntes mais conservadoras, que tinham A visão produtivista da educação se origina da
o liberalismo clássico como bandeira, acabou acei- crítica neoliberal aos serviços sociais do Estado. Os

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Paul Singer

principais pontos dessa crítica têm sido os seguintes: menos competitivo. A reforma escolar chilena é
> Paternalismo. Serviços sociais como au- muitas vezes citada como modelo: o Estado conce-
xílio aos desempregados, às mães solteiras, às de bolsas aos estudantes, que têm liberdade de es-
famílias numerosas oferecem incentivos aos colher sua escola. Espera-se que a competição en-
beneficiários para que reiterem comportamen- tre escolas públicas e privadas pelas bolsas leve ao
tos que os levaram a essa condição. Assim, os aumento da qualidade.
desempregados tendem a permanecer desem- Na visão produtivista, o ensino público não
pregados, moças solteiras são estimuladas a atende, por falta de estímulo, as necessidades da
engravidar, famílias com muitos filhos tendem demanda por trabalho. A proposta que formula é
a se multiplicar. de que a rede escolar esteja sujeita às regras do mer-
cado, de modo que os diretores e os professores
> Ineficiência. O seguro social, para não
tenham interesse em formar ganhadores, pois esta
estimular a simulação de situações falsas de ne-
seria a melhor forma de eles próprios ganharem o
cessidade, requer um extenso aparelho de con-
jogo concorrencial. Cada escola seria julgada pelo
trole e acompanhamento, o qual acaba absor-
“mercado”, isto é, pelos alunos ou seus pais, em
vendo uma parcela desmedida dos recursos
função da qualidade de seu produto, avaliada pelo
destinados ao seguro. Além disso, a organiza-
maior ou menor êxito dos seus ex-estudantes na
ção de serviços sociais públicos não apresen-
vida econômica e social. E a escola avaliaria seus
ta qualquer incentivo ao aumento da produ-
professores pelos mesmos critérios.
tividade dos funcionários ou da eficiência no
Espera-se da implementação desse tipo de re-
uso dos recursos. Em conseqüência, os apare-
formas que o ensino escolar melhore de qualidade
lhos de prestação de serviços sociais apresen-
e baixe de custo, seja para os indivíduos seja para
tariam quase sempre excesso de empregados
o Estado. A visão produtivista não é contrária à
e desperdício de recursos.
universalidade da educação, mas prefere que ela
> Corporativismo. Os profissionais dos
resulte da livre preferência dos indivíduos em vez
serviços sociais do Estado têm interesse na am- de coerção legal, amparada em ampla oferta de va-
pliação dos aparelhos em que atuam e por isso gas gratuitas no ensino público. O que fundamen-
se aliam às clientelas desses serviços para pres- ta esse tipo de proposta é a idéia de que a competi-
sionar o poder público no sentido de ampliar ção em mercado é o melhor meio para promover a
os referidos serviços e aumentar as dotações
eficiência, ou seja, a combinação de qualidade com
orçamentárias que os sustentam. A crise fiscal baixo custo, com pleno respeito à liberdade de op-
do Estado, diagnosticada pelo neoliberalismo ção de cada indivíduo.
como raiz da estagflação, que tem afetado as
economias capitalistas nos últimos vinte anos, A crise do Estado de bem-estar social
seria o resultado de tais mazelas.
A visão produtivista propõe reformar o ensino Já é tempo agora de colocar esse debate, que
público seguindo-se linhas decorrentes dessas crí- é fundamental para os destinos da educação, em seu
ticas. O paternalismo seria o resultado da gratui- contexto. Como ficou claro, ele surge como resul-
dade do ensino: como o aluno e sua família nada tado da reviravolta neoliberal, que no campo do
pagam, eles não têm incentivo para melhorar o ensino passou a sustentar uma alternativa à escola
aproveitamento do primeiro e evitar que repita de pública gratuita e obrigatória, que até então (década
ano. A gratuidade também torna o aluno passivo de 70) só tinha contra si os que favoreciam o ensi-
perante a má qualidade do ensino. Para evitar es- no confessional. Coincidindo com essa reviravolta,
ses males, o ensino deveria se tornar pago ou ao o Estado de bem-estar social entrou em crise nos

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Poder, política e educação

principais países do Primeiro Mundo. Embora pos- A crítica neoliberal explicitou uma crise que
sa parecer que essa crise tenha sido provocada pela a mudança econômica tinha causado. O fato é que
chegada do neoliberalismo ao poder na Grã-Bre- nos anos dourados o extraordinário dinamismo da
tanha (Tatcher, 1979), nos EUA (Reagan, 1981) e economia tinha tornado o encargo representado
em seguida em outros países, tudo indica que a cau- pelos serviços sociais bastante leve. O pleno empre-
salidade foi inversa. A crise do Estado de bem-es- go reduzira ao mínimo o gasto com auxílio aos de-
tar se manifesta antes, desde meados da década de sempregados. O peso das aposentadorias era con-
70, e foi ela que provavelmente preparou o terre- trabalançado pela entrada maciça de jovens da ge-
no para a ascensão do neoliberalismo. ração do baby boom (termo cunhado em referên-
O fato fundamental é que por volta de 1974, cia à alta das taxas de natalidade nas primeiras dé-
com o primeiro choque do petróleo, se encerrou um cadas de pós-guerra) no mercado de trabalho. A
período histórico conhecido como o dos anos dou- redução da jornada e a melhoria das condições de
rados do capitalismo, caracterizado por taxas ele- trabalho possivelmente reduziram os riscos à saú-
vadas, historicamente as mais altas, de crescimen- de e à vida, do que dá testemunha a persistente que-
to da produção e da produtividade, por pleno em- da da mortalidade no período.
prego e intenso aumento do consumo. Esse perío-
do se iniciou com o fim da Segunda Guerra Mun- Tudo isso mudou para pior, a partir de mea-
dial, e nele se operou, nos países capitalistas adian- dos da década de 70. O aumento do desemprego,
tados, uma transformação fundamental: as classes a redução do número de jovens e a enorme dificul-
trabalhadoras foram arrancadas de sua pobreza an- dade para encontrarem emprego, a piora das con-
cestral e passaram a usufruir níveis de consumo (in- dições de saúde, com o aumento da violência e do
clusive de escolaridade) comparáveis aos das clas- consumo de drogas, tudo isso expandiu fortemen-
ses até então privilegiadas. Obviamente os gastos te o gasto com os serviços sociais do Estado, agra-
e os investimentos sociais, que constituíam o Esta- vando o efeito deficitário da contração da receita
do de bem-estar social, foram extremamente impor- tributária. Dados interessantes são oferecidos por
tantes para esta transformação. S. Bodington, M. George e J. Michaelson (1986, p.
O encerramento dos anos dourados mudou 211), que citam resultados de pesquisas do dr.
tudo isso: o crescimento da produção e da produ- Harvey Brenner e equipe, da Universidade John
tividade caiu a níveis muito mais baixos, sendo pe- Hopkins em Baltimore: um aumento de 1% na ta-
riodicamente interrompido por recessões mais lon- xa de desemprego por seis anos está correlacionado
gas e severas; o desemprego voltou cada vez mais a um aumento de 36.887 mortes prematuras e ou-
até atingir níveis acima de 10% em grande núme- tros aumentos significativos de enfermidades. Pes-
ro de nações industrializadas. Finalmente, a piora quisa semelhante na Grã-Bretanha mostra que um
do desempenho econômico limitou a arrecadação milhão de desempregados a mais eleva em 50 mil
tributária; as reformas neoliberais, que reduziram o número de admissões em hospitais de doenças
impostos que recaíam sobre as camadas mais ricas, mentais num período de cinco anos e causa 50 mil
contribuíram para o crescimento dos déficits nas óbitos adicionais. Os custos públicos desses efeitos
contas públicas, ao mesmo tempo em que pressões somam cerca de um bilhão de libras.
inflacionárias, desconhecidas em épocas de paz nos É claro que a crise do Estado de bem-estar so-
países adiantados, levavam pânico aos meios em- cial, induzida pela piora do desempenho econômi-
presariais. E partiu desses meios e de seus intelec- co, foi em seguida fortemente agravada pelos cor-
tuais orgânicos a denúncia dos serviços sociais do tes de verbas para os serviços sociais (inclusive en-
Estado, caracterizando efetivamente a crise do Es- sino) que as políticas de ajuste estrutural passaram
tado de bem-estar social. a impor. Nos países com governos neoliberais, o

Revista Brasileira de Educação 9


Paul Singer

aumento da demanda pelos serviços sociais do Es- e, onde os novos governos municipais priorizaram
tado foi respondido com a restrição de recursos para tais serviços, eles puderam ampliar o atendimento
os mesmos, o que só podia resultar em déficits de e elevar a qualidade. Em muitas capitais estaduais,
atendimento, em congestionamentos dos equipa- o pessoal de educação e de saúde, quando empregado
mentos e finalmente em perda brutal de qualidade pela municipalidade, ganhava algo como o dobro do
dos serviços prestados. Ficou evidente para a opi- que era pago pelo Estado. Ficou claro que a dete-
nião pública que os serviços sociais do Estado es- rioração dos serviços sociais relacionava-se à depen-
tavam deixando de corresponder às necessidades e dência de níveis de governo em crise fiscal. Tal de-
portanto precisavam de ser reformados. E o neoli- terioração não atingiu, obviamente, os serviços so-
beralismo estava com propostas prontas de refor- ciais cuja base material pôde ser preservada.
mas, o que originou o presente debate na área de A despeito disso, a crise do Estado de bem-
educação e outros análogos em outras áreas. estar, no Brasil, bem como provavelmente em ou-
No Brasil, não chegou a se institucionalizar um tros países, não poderá ser resolvida apenas median-
“Estado de bem-estar social” no nível alcançado no te a restauração dos recursos que o financiam. A
Primeiro Mundo, mas os seus fundamentos estavam nova etapa em que entrou o capitalismo, com a Ter-
sendo desenvolvidos, desde a década de 30 até a ceira Revolução Industrial, criou novas circunstân-
década de 70, em ritmo crescente. Durante o “mi- cias e necessidades diferentes das que inspiraram os
lagre econômico” (1968-1976), sistemas abrangen- serviços sociais públicos, projetados e instalados no
tes, tendentes à universalidade, de ensino básico, período dos anos dourados. Além da forte desa-
saúde e previdência foram criados. A partir da reces- celeração do crescimento e do ressurgimento bru-
são de 1981-1983, a pior já registrada em nossa tal do desemprego, a atual etapa trouxe novas for-
história, todos esses sistemas entraram em crise. O mas de exclusão social, que tornam a crise do Es-
aumento brutal do desemprego levou finalmente à tado de bem-estar social de certa forma estrutural.
criação de um seguro-desemprego, mas com abran- Além da necessidade de reabilitá-lo materialmente,
gência tão restrita que ficou mais como testemunha ele terá de ser realmente reformado, ou no sentido
do esgotamento prematuro do modelo. O aumen- das propostas neoliberais ou em outro sentido, em
to da demanda por serviços de saúde pública, as- consonância com uma visão mais estrutural e co-
sim como de vagas escolares na rede pública, foi letiva da sociedade e da economia.
respondido com cortes sucessivos de verbas para
essas atividades. O que resultou não em encolhi- A exclusão social decorrente
mento da rede ou dos equipamentos que a com- da Terceira Revolução Industrial
põem, mas em arrocho brutal dos salários dos pro- e da globalização econômica
fissionais: professores, médicos, enfermeiras, etc.
Os acontecimentos dos últimos anos deixam A aplicação da tecnologia decorrente da micro-
claro que, sem a recuperação do crescimento econô- eletrônica suscitou a criação de novos ramos de pro-
mico e do equilíbrio orçamentário, nos três níveis de dução, na área de informática — hardware (equi-
governo, a solução da crise dos serviços sociais do pamentos) e software (programas) — e de telemá-
Estado fica impossível. Em 1989 entrou em vigor a tica, com significativa expansão de postos de tra-
Constituição de 1988, que transferiu recursos fiscais balho, dos quais alguns exigem habilidades especiais
da União a estados e sobretudo a municípios. Con- cuja obtenção se dá apenas em graus elevados de
seqüentemente, nos anos seguintes, os serviços so- escolaridade. Ao mesmo tempo, a aplicação dos
ciais dependentes de recursos federais e estaduais computadores ao projetamento e à produção eli-
entraram quase em colapso, ao passo que os que de- minou grande quantidade de postos de trabalho
pendiam de erários municipais foram preservados ocupados por operários semi-qualificados. A per-

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Poder, política e educação

da líquida de empregos é mais do que compensada A globalização do capital tem efeitos semelhan-
pela multiplicação de unidades prestadoras de ser- tes. Esforços persistentes das nações capitalistas
viços, desde redes de fast food, videolocadoras, lo- adiantadas, lideradas pelos EUA, ao longo dos últi-
jas de conveniência, agências de viagem (dada a mos cinqüenta anos conseguiram revogar os con-
enorme expansão do turismo) até academias de gi- troles governamentais sobre a movimentação inter-
nástica, clínicas alternativas, centros de cultos e o nacional tanto de mercadorias como de capitais.
que mais se possa imaginar. Criaram-se assim, aos poucos, mercados verdadei-
A contração de postos de trabalho é apenas ramente globais tanto de produtos como de transa-
aparente. O que está desaparecendo é o emprego ções financeiras. Só a movimentação do trabalho
padrão de antes, com carteira assinada, seguro saú- continuou cerceada, pois continuam em vigor as res-
de e perspectiva de carreira. São as relações de pro- trições erguidas desde a crise da década de 30 à mi-
dução que estão mudando. Nas grandes empresas gração internacional. O Primeiro Mundo, que seria
o emprego se contrai em termos absolutos e se dife- o alvo natural de vastas correntes migratórias vin-
rencia entre um núcleo vital de empregados altamen- das do Leste europeu e asiático, do Sudoeste latino-
te qualificados, estáveis, bem remunerados e com americano e do Sul africano, continua cerrado e cer-
perspectiva de carreira e uma grande periferia de rando-se cada vez mais ao que este mundo privile-
empregados pouco qualificados, facilmente subs- giado enxerga como hordas de bárbaros.
tituíveis, que pode ser ocupada por mulheres e es- Mas a lógica mostra que se o capital e os pro-
tagiários em tempo parcial e sem registro ou por dutos do capital dispõem de mercados globais, nada
pessoal subcontratado de empresas fornecedoras de pode impedir de que se estabeleça também um mer-
mão-de-obra. Nas pequenas empresas, que se mul- cado global de trabalho virtual. Só que nesse mer-
tiplicam inclusive pela difusão do franqueamento, cado, estando a oferta imobilizada, é a procura que
o núcleo é formado pelo dono ou pelos sócios e a se movimenta. E é ao que estamos assistindo. O
periferia por trabalhadores terceirizados, com o sta- capital em quantidades crescentes percorre o mun-
tus de prestadores de serviços ou de empregados sem do inteiro à procura de condições vantajosas de in-
registro. De uma forma geral, uma massa crescente versão, o que significa acima de tudo mão-de-obra
de empregos está mergulhando na informalidade, capacitada e barata. O capital abandona os países
escapando dos efeitos da legislação do trabalho. e as regiões em que os trabalhadores estão fortemen-
O resultado dessa evolução é o crescimento in- te organizados, têm direitos reconhecidos em lei e
cessante da exclusão social. A massa de autônomos, recursos para fazê-los serem respeitados pelos em-
pretensos ou verdadeiros, não está sujeita à limita- pregadores. E penetra nos países e regiões em que
ção da jornada de trabalho fixada pela legislação e o desemprego estrutural é grande e a organização
pelos acordos coletivos de trabalho. Como em ge- sindical é débil, onde a legislação do trabalho é par-
ral ganham por tempo de serviço ou por produção, ca ou pode ser ignorada.
eles têm todo incentivo para prolongar ao máximo A globalização livrou o capital industrial da
o seu trabalho, o que evidentemente agrava o desem- necessidade de se localizar perto dos grandes mer-
prego. Marx já escrevia há 130 anos que muitos dei- cados para seus produtos. E o progresso técnico
xavam de ter trabalho porque o capital obrigava aos barateou o transporte, permitindo que bens produ-
outros a trabalhar demais. Ele julgava que a limita- zidos nos antípodas possam competir com outros
ção legal da jornada de trabalho poderia ao menos produzidos na vizinhança. Como resultado, surge
atenuar essa contradição. Mas como as relações de forte tendência à homogeneizição das condições de
produção, estimuladas pela nova etapa tecnológica, compra e venda de força de trabalho em âmbito
não se sujeitam à legislação, o mercado de trabalho mundial. No mundo industrializado, o emprego
retorna às condições do século passado... manufatureiro se contrai e os salários dos trabalha-

Revista Brasileira de Educação 11


Paul Singer

dores de linha despencam, ao passo que, nos paí- siderada mundial. Para os diretamente envolvidos,
ses chamados recém-industrializados (dos quais o principalmente educadores e educandos, a crise pa-
Brasil foi um dos primeiros), a atividade industrial rece, provavelmente, ser causada pelo corte de ver-
para a exportação se multiplica, assim como o em- bas, baixa dos salários, perda conseqüente do pes-
prego industrial, possivelmente com tendência as- soal melhor qualificado e declínio da qualidade do
cendente do nível salarial. ensino. E não há dúvida de que esses fatos existem
É preciso advertir que a globalização é bastan- e tornam a crise tão profunda e destrutiva como ela
te recente e suas potencialidades recém começaram está se revelando.
a ser exploradas. (Por exemplo: a grande reserva de Mas se o diagnóstico ficar limitado a isso, um
força de trabalho barata está nos gigantes asiáticos aspecto fundamental da crise deixa de ser exami-
— China, Índia, Indonésia — e mal começou a ser nado, o que fragiliza de maneira fatal os que se po-
integrada na nova economia global.) Mas já foi su- sicionam em defesa da escola pública gratuita e de
ficiente para ocasionar sensível perda de empregos acesso universal. Esse aspecto é a alienação do en-
industriais no Primeiro Mundo, onde a massa sa- sino escolar das novas características tanto do mer-
larial se polariza visivelmente entre uma minoria de cado de trabalho como do panorama político e so-
posições muito bem pagas e uma maioria de novos cial. Que tipo de pessoa nossas escolas estão for-
pobres. A projeção dessas tendências para o futu- mando e para que tipo de sociedade? Se a democra-
ro lança uma luz sinistra sobre as perspectivas de cia é uma conquista irreversível — e quero crer que
progresso social e aprofundamento da democracia é —, qual é o modelo de cidadão consciente que
nessas nações. inspira nosso ensino? Será que os nossos currículos
E a América Latina vai se lançando grada- correspondem adequadamente ao desejo natural de
tivamente ao vértice globalizador: primeiro foi o aprender dos jovens, motivando-os a participar ati-
Chile de Pinochet, em seguida o México, que aca- vamente do processo educativo?
bou se integrando ao NAFTA (North America Free Há motivos para acreditar que o cerne da cri-
Trade Agreement) e mais recentemente a Argenti- se do sistema de ensino está nessas questões, embo-
na. Das grandes economias do continente, o Brasil ra, repito, a degradação material do sistema não
foi o último, mas tudo leva a crer que agora che- permita que isso aflore. É notório que, já há mui-
gou nossa hora. Sendo uma economia semi-de- to tempo, o forte crescimento de matrículas no en-
senvolvida, o Brasil será menos afetado de imedia- sino público e privado não tem sido correspondido
to do que países que estão nos extremos. Mesmo por crescimento análogo de resultados, tanto em
assim, a abertura do mercado interno às importa- termos de número de formados como de grau de
ções, no último ano, já afetou sensivelmente diver- adestramento destes. É como se a desejável massi-
sos ramos industriais. Apesar dos baixos salários ficação do ensino, que ao cabo de tantos anos de
pagos aqui, várias de nossas indústrias não conse- luta acabou sendo lograda, tivesse reduzido a efi-
guem concorrer no mercado nacional com as im- ciência do sistema. A abertura das portas da esco-
portações asiáticas. A continuar a abertura comer- la à massa dos menos afortunados não produziu os
cial irrestrita e a debilidade das políticas industriais, efeitos esperados e desejados, ou seja, o encami-
é provável que essas indústrias fechem ou mergu- nhamento daqueles a melhores oportunidades de
lhem na informalidade. inserção econômica, política e social. Em vez de a
escola elevar os filhos dos marginalizados, foram
A crise do sistema escolar aparentemente estes que degradaram a escola ao
multiplicar as repetências e a evasão, ao introdu-
É no contexto dessas mudanças que se insere zir nas salas de aula seu cotidiano de violência e
a atual crise do sistema escolar, que pode ser con- alienação.

12 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Poder, política e educação

Essa experiência não é apenas nossa. Demer- sino público, ao menos no Brasil, continua sendo
val Saviani apresenta o seguinte quadro do ensino direcionado a uma classe média, para a qual o cer-
público nos EUA: tificado escolar é instrumento de diferenciação so-
cial. O que significa que o ensino escolar tem por
[..] escolas mal equipadas, drop-outs, falta de
finalidade básica (embora não admitida) proporcio-
professores e um número enorme de diplomados do
nar aos filhos de pais educados a oportunidade de
2º grau que continuam sem saber ler, escrever e fazer
sucedê-los em posições econômicas e sociais que têm
contas, que não passariam no mais tolerante dos tes-
determinados níveis de escolaridade como pressu-
tes de aptidão. O índice de evasão relativo aos alunos
posto. Esta era indubitavelmente a situação quan-
que freqüentam a escola secundária se aproxima dos
do apenas uma minoria tinha acesso ao ensino bá-
30%. Mas o sintoma mais alarmante do fracasso da
sico e uma minoria muito menor aos níveis mais
escola pública talvez não esteja nos que pulam fora,
elevados. A hipótese aqui é que o espírito do ensi-
e sim nos que permanecem dentro e não aprendem
no jamais foi adaptado à sua universalização.
nada. Os especialistas chamam-nos de “analfabetos
Esse ensino diferenciador e implicitamente eli-
funcionais”: embora possuam diplomas, isto é, sejam
tista preocupava-se em dotar o aluno de conheci-
nominalmente alfabetizados, na prática são incapazes
mentos que ele dificilmente poderia adquirir fora da
de entender, por exemplo, como funciona o metrô, e
escola. Toda “cultura inútil” que costuma entupir
não conseguem consultar uma lista telefônica ou ler
nossos currículos teria precisamente essa função. Ela
uma bula de remédio. Em Nova York, segundo as úl-
daria ao escolarizado acesso a um universo cultu-
timas pesquisas, há 2 milhões de indivíduos nessas
ral privado, do qual o não-escolarizado estaria ex-
condições.1 (Saviani, 1992, p. 10).
cluído. O vocabulário assim adquirido funcionaria
Considerei necessária essa longa transcrição como senha que permitiria aos membros da elite
para deixar claro que a crise do ensino não é ape- reconhecer seus iguais e discriminar os “outros”. Ao
nas nossa. Saviani, no mesmo texto, informa que se abrir aos “outros”, a escola pública não se re-
também na Argentina, no Uruguai e no Chile o en- pensou, continuando a competir com a escola pri-
sino está em crise. Convém considerar que a crise vada na formação de uma elite educada. Se assim
resulta não apenas da fragilização da escola públi- foi, não seria de surpreender que a matrícula dos
ca pelas políticas de ajuste estrutural, mas também filhos dos marginalizados questionasse a escola, já
do fato de que a sociedade civil, ou ao menos os que ela jamais se reformulou para acolhê-los.
alunos ou seus pais, tampouco acorrem em sua de- É costumeiro ouvir que os filhos dos pobres
fesa. De alguma forma a escola, mesmo antes de sua não têm em suas casas um ambiente que os estimule
degradação material, já não correspondia plena- e ampare no enfrentamento das tarefas escolares,
mente às necessidades ou expectativas dos educan- o que seria a principal causa de seu freqüente fra-
dos e essa inadequação provavelmente se tornou casso, evidenciado pela elevada repetência princi-
muito maior com a massificação do ensino, ou seja, palmente no primeiro ano e pela evasão subseqüen-
quando a escola passou a atender a uma nova clien- te. Essa constatação parece-me quase uma confis-
tela, de extração social distinta. são de que a escola pública — e falo só dela por-
O que quero expor daqui em diante tem ca- que é a única acessível ao pobre — não se adaptou
ráter hipotético, mas pode sugerir, quem sabe, for- nem pretende se adaptar à nova realidade de que
mas alternativas de pensar a crise do ensino. O en- agora ela está oferecendo um serviço universal, ou
seja, para todos. Ela continua preparando uma mi-
noria e naturalmente expulsa como corpo estranho
1 A fonte citada por Saviani é Sala de Aula, 1990, os descendentes da maioria não escolarizada. Em
nº 21. outras palavras: se a escola necessita que os alunos

Revista Brasileira de Educação 13


Paul Singer

tenham pais escolarizados, ela obviamente não se sores. O sistema combina engenhosamente gratui-
ajustou à tarefa de educar os filhos dos que nunca tidade, e portanto universalidade, com a privatiza-
puderam freqüentar a escola. ção do ensino, pois mesmo as escolas municipais
Se a escola pública quiser ser fiel à sua origem acabam se portando como as escolas privadas.
e vocação democrática, ela terá de se ajustar ao no- Se esse sistema realmente maximiza a eficiên-
vo papel de educadora universal e principalmente cia e proporciona elevada produtividade aos que
das crianças de famílias socialmente excluídas. O por ele passam é dificil saber. A informação que o
que significa repensar-se por inteira e recolocar o candidato à matrícula e seus pais possuem sobre
conteúdo da instrução, a metodologia didática, a cada escola é insuficiente para que possam fazer
formulação de regras de conduta e o disciplinamen- uma escolha racional pelo tipo de educação que
to dos participantes do processo educativo. Chego preferem. E a livre escolha da escola pelo aluno pode
a pensar que a reforma requerida pode beirar uma afrouxar os laços que deveriam ligar o educando à
revolução, à medida que exige de professores, que comunidade em que se forma, ou seja, uma relação
provavelmente sempre se enxergaram como dife- que deveria ser de compromisso e de identificação
renciadores, a conquista de uma nova identidade. pode correr o risco de se reduzir a uma transação
É um desafio bem-vindo o de pensar a educação não de compra e venda, em que o cliente insatisfeito
como antídoto da exclusão social, o que está além tende meramente a mudar de fornecedor.
de seu alcance, e sim como formação de cidadãos Mas se a reforma produtivista (representada
ameaçados de exclusão mas que podem dispor de pelo modelo chileno) apresenta esses prováveis de-
recursos sociais e políticos para enfrentar a ameaça. feitos, é preciso reconhecer que a competição entre
as escolas pode ser um estímulo para que adminis-
De volta ao grande debate tradores e docentes procurem aumentar a eficiên-
cia e elevar a qualidade do ensino que oferecem. No
Retornemos então ao nosso tema inicial. O Brasil, as escolas privadas que oferecem ensino de
ensino, no Brasil e fora do Brasil, está em crise e esta qualidade costumam ser bem caras, talvez porque
já deu lugar a um impasse. De um lado, a posição a presença de uma clientela rica viabilize essa op-
produtivista propõe reformas que são consistentes ção. No caso de uma rede de escolas públicas que
com a concepção liberal da sociedade. Do outro, a recebem um valor limitado por aluno, a possibili-
posição civil democrática clama pela preservação da dade de que a competição baste para fazê-las supe-
escola pública em nome do direito universal à edu- rar suas atuais deficiências é duvidosa. Não obstan-
cação e enfatiza a necessidade de restaurar a base te, acredito que esse tipo de reforma traria melhoras
material indispensável para que a escola possa cum- em relação ao atual status quo do ensino público.
prir sua missão. Melhor que uma reforma produtivista, que
A posição produtivista mais consistente pare- mercantilizasse o sistema educativo, seria uma re-
ce estar concretizada hoje no sistema escolar chile- forma civil democrática que o politizasse. Seria uma
no. As escolas públicas naquele país foram todas reforma que democratizasse o processo educativo,
municipalizadas e o governo se responsabiliza pelo reconhecendo que ele deve ter por agentes educa-
pagamento de um valor mensal a qualquer escola, dor e educando e, no caso deste ser menor, a famí-
pública ou privada, por aluno matriculado. Os alu- lia (se ele a possui) ou quem preencher o papel. Isso
nos ou seus pais têm portanto a chamada “livre significa que a escola se responsabilizaria integral-
escolha” da escola que desejam utilizar. As escolas mente pelo aluno e, no caso de ele não ter um lar
é que competem entre si pela preferência dos alu- adequado, trata de arranjar um para ele. O que po-
nos e pode-se supor que as escolas mais bem-suce- de significar algum tipo de educação em tempo in-
didas terão recursos para melhor pagar seus profes- tegral ou parceria entre escola e outras instituições

14 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Poder, política e educação

que cuidam de jovens sem família. O mais impor-


PAUL SINGER é Professor Titular da Faculdade de
tante aqui é que a escola deixa de exigir que o alu-
Economia e Administração da Universidade de São Paulo,
no se adapte a ela, optando por um relacionamen- fundador e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e
to em que o aluno constitui a prioridade. Planejamento (CEBRAP), foi Secretário de Planejamento da
A democratização do processo educativo de- Prefeitura de São Paulo no período 1989-1992 (gestão Luiza
veria ir além, tratando de construir em cada escola Erundina). Escreveu entre outros livros: O que é economia?
uma verdadeira comunidade de todos os envolvi- (1989) e Um governo de esquerda para todos (no prelo).

dos, em que a natural superioridade dos professo-


res e administradores fosse compensada por respeito
pela vontade e pelos sentimentos dos outros mem- Referências bibliográficas
bros, sobretudo dos mais jovens e mais fracos. A
reforma democrática deveria se preocupar com as BODINGTON, S., GEORGE, M., MICHAELSON, J.
críticas neoliberais aos serviços sociais do Estado, (1986). Developing the socially useful economy. Londres.

pois, mesmo discordando das propostas produti- SAVIANI, Demerval. (1992). Neo-liberalismo ou pós-libe-
vistas, é preciso reconhecer que as críticas têm base ralismo? Educação pública, crise do Estado e democra-
cia na américa latina. In: Estado e educação. Campinas:
na realidade. A reforma democrática teria de ter
Papirus.
engenhosidade suficiente para combinar um proces-
so educativo não-mercantilizado com o combate ao
paternalismo, à ineficiência e ao corporativismo.
Acredito que ensino público gratuito de aces-
so universal pode ser salvo da crise em que se en-
contra, desde que seus defensores o submetam a
uma autocrítica radical, a partir da qual sua refor-
ma possa ser proposta. Uma parte dessa proposta
terá, provavelmente, de ser a descentralização do
sistema, para que mil flores de experimentos diver-
sos possam florescer, dando espaço a muitas voca-
ções educacionais que hoje não têm como se reali-
zar. Esse é um aspecto positivo da proposta pro-
dutivista que os adversários deveriam incorporar.
O grande debate sobre a crise educacional po-
de dar frutos, se os que defendem a tradição demo-
crática e igualitária conseguirem passar à ofensiva,
com propostas tão audazes e imaginosas quanto
seus oponentes. E sobretudo se conseguirem imple-
mentar essas propostas, abandonando uma postu-
ra meramente defensiva de conquistas pretéritas.

Revista Brasileira de Educação 15


Você disse “popular”?

Pierre Bourdieu
Collège de France

Tradução de Denice Barbara Catani


Este texto foi publicado sob o título “Vous avez dit ‘populaire’?”,
em Actes de la recherche en sciences sociales ,
nº 46, março, 1983, p. 98-105, Paris.

POPULAIRE adj. (Populeir, XIIe; lat. Popu- au peuple, au plus grand nombre. Henri IV était un
laris). 1° Qui appartient au peuple, émane du peuple. roi populaire. Mesures populaire. “Hoffmann est
Gouvernement populaires. “Les politiques grecs qui populaire en France, plus populaire qu’en Allemagne”
vivaient dans le gouvernement populaire” (MON- (GAUTIER). 4° Subst. (Vx). Le populaire, le peuple.
TESQ). V. Démocratique. Démocraties populaires. In- ANT. (Du 3°) Impopulaire.
surrection, manifestation populaire. Front populaire:
union des forces de gauche (communistes, socialistes,
As locuções que comportam o epíteto mágico
etc.) Les masses populaires. 2 ° Propre au peuple.
de “popular” estão protegidas contra a análise pelo
Croyance, traditions populaires. Le bon sens popu-
fato de que toda crítica de uma noção que diz res-
laire. - Ling. Qui est crée, employe par le peuple et n’est
peito de perto ou de longe ao “povo” corre o risco
guère en usage dans la bourgeoisie et parmi les gens
de ser imediatamente identificada como uma agres-
cultives. Mot, expression populaire, locution popu-
são simbólica à realidade designada — logo, ime-
laire. Latin populaire. Expression, location, tour popu-
diatamente fustigada por todos aqueles que se sen-
laire. À l’usage du peuple (et qui en emane ou nom).
tem no dever de tomar o partido e defender a cau-
Roman, spectacle populaire. Chansons populaires. Art
sa do “povo”, assegurando, assim, os lucros que
populaire (V. Folklore). - (Personnes) Qui s’adresse au
também podem ser obtidos, sobretudo nas conjun-
peuple. “Vous ne devez pas avoir de succes comme
turas favoráveis, com a defesa de “boas causas”.1
orateur populaire” (MAUROIS). Qui se recrute dans
le peuple, que frequente le peuple. Milieux, classes
populaires. “Ils ont trouvé une nouvelle formule: tra- 1 O fato de os custos da objetivação científica serem
vailler pour une clientele franchement populaire” particularmente elevados para um ganho especialmente fra-
(R OMAINS). Origines populaires. V. Pléibéien. Bals co — ou negativo — não significa nada para o estado do
populaires. Soupes* populaires. 3° (1559). Qui plait conhecimento nessas matérias.

16 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Você disse “popular”?

Isso vale para a noção de “linguagem popular”, que afastada dos dicionários legítimos. Também não se
a exemplo de todas as locuções da mesma família deixará de incluir os operários de origem urbana que
(“cultura popular”, “arte popular”, “religião po- a palavra “popular” evoca quase automaticamente,
pular” etc.) define-se apenas relacionalmente, como enquanto os camponeses serão rejeitados sem mais
o conjunto daquilo que é excluído da língua legíti- justificativa (sem dúvida por se saber que estes estão
ma, entre outras coisas, pela ação contínua de in- destinados à região, ao regional). Mas nem mesmo
culcação e imposição mesclada de sanções que é se chegará a perguntar — e eis aí uma das funções
exercida pelo sistema escolar. mais preciosas das noções muito amplas, dessas que
Como os dicionários de gíria ou do “francês abrigam de tudo — se seria ou não necessário excluir
não-convencional” revelam com toda clareza, o lé- os pequenos comerciantes e em especial os gerentes
xico dito “popular” é o conjunto de palavras ex- de restaurantes, que sem dúvida a imaginação po-
cluídas dos dicionários da língua legítima ou que pulista rejeitará mesmo que em termos de cultura e
aparecem ali afetadas por “marcas de uso” negati- língua eles estejam indiscutivelmente mais próximos
vas: fam., familiar, “isto é, corrente na língua fala- dos operários do que dos empregados e executivos
da comum e na língua escrita mas um pouco livre”; médios. E, em todo caso, é certo que o fantasma —
pop., popular, “isto é, corrente nos meios popula- mais alimentado de filmes de Carné do que de obser-
res das cidades, mas censurada ou evitada pelo con- vações — que orienta com mais freqüência a adesão
junto da burguesia cultivada” (Petit Robert, 1979, folclórica de trânsfugos nostálgicos para os represen-
p. XVII). Para definir com todo o rigor essa “língua tantes mais “puros”, mais “autênticos” do “povo”
popular” ou “não-convencional”, que seria muito exclui liminarmente todos os imigrantes, espanhóis
proveitoso passar a chamar de pop. — para impe- ou portugueses, argelinos ou marroquinos, sudaneses
dir que as condições sociais de sua produção sejam ou senegaleses, os quais, como se sabe, ocupam na
esquecidas — seria necessário precisar o que se co- população dos operários da indústria um lugar mais
loca sob a expressão “meios populares” e o que se importante do que no proletariado imaginário.2
entende por uso “corrente”. Bastaria submeter a um exame análogo as po-
Tal como os conceitos de “classes populares”, pulações que supostamente produzem ou conso-
“povo” ou “trabalhadores”, conceitos de geometria mem o que se chama de “cultura popular” para en-
variável cujas virtudes políticas se devem ao fato de contrar a confusão na coerência parcial que quase
que se pode ampliar à vontade o referente até incluir sempre recobre as definições implícitas: o “meio”,
nele — em período eleitoral, por exemplo — os cam- que desempenha um papel central no caso da “lin-
poneses, os executivos e os gerentes ou, ao contrá- guagem popular”, será aqui excluído, assim como
rio, restringi-lo somente aos operários da indústria, o lumpemproletariado, enquanto que a eliminação
isto é, aos metalúrgicos (e a seus representantes no- dos camponeses já não será tão evidente, ainda que
meados), a noção de “meios populares”, de exten- a coexistência dos operários,que são inevitáveis,
são indeterminada, deve suas virtudes mistificadoras, com camponeses não se faça sem dificuldades. No
na produção erudita, ao fato de que qualquer um caso da “arte popular”, como poderá evidenciar um
pode, como num teste projetivo, manipular incons- exame desta outra objetivação do “popular” que
cientemente essa extensão para ajustá-la aos seus são os “museus de artes e tradições populares”, o
interesses, preconceitos ou fantasmas sociais. Assim, “povo” pelo menos, até recentemente, reduzia-se
em se tratando de designar os locutores da “lingua-
gem popular”, todo mundo estará de acordo em pen-
sar sobre o “meio”, em nome da idéia segundo a qual 2 É conhecido o papel que podem desempenhar seme-
os “machões” desempenham um papel determinante lhantes exclusões, conscientes ou inconscientes, na utiliza-
na produção e circulação da gíria, decididamente ção que o nacional-socialismo faz da palavra völkisch.

Revista Brasileira de Educação 17


Pierre Bourdieu

aos camponeses e aos artesãos rurais. E o que di- tão profundamente encerradas na rede de represen-
zer da “medicina popular” ou da “religião popu- tações confusas que os sujeitos sociais engendram,
lar”? Neste caso, os camponeses, ou as campone- para as necessidades do conhecimento corriqueiro
sas, são tão imprescindíveis quanto os “machões”, do mundo social e cuja lógica é a da razão mítica.
no caso da “língua popular”. A visão do mundo social e, em especial, a percep-
ção dos outros, de sua hexis corporal, da forma e
Em seu esforço de tratar como uma “língua” —
do volume de seu corpo e sobretudo de seu rosto,
isto é, com todo o rigor que se costuma reservar à lín-
mas também da sua voz, da sua pronúncia e do vo-
gua legítima — todos os que tentam descrever ou es-
cabulário, organiza-se, de fato, segundo oposições
crever o pop., lingüistas ou escritores, são condenados
interconectadas e parcialmente independentes, das
a produzir artefatos quase sem relação com o falar
quais se pode fazer uma idéia recenseando os re-
coloquial que os locutores mais estranhos à língua
cursos expressivos depositados e conservados na
legítima empregam em suas trocas internas.3 Assim,
língua, em particular no sistema de pares de adje-
para se conformar ao modelo dominante do dicioná-
tivos que os usuários da língua legítima empregam
rio, que só deve registrar palavras atestadas “por fre-
para classificar os outros e julgar sua qualidade e
qüência e duração apreciáveis”, os autores dos dicio-
nos quais o termo que designa as propriedades im-
nários do francês não-convencional apóiam-se exclu-
putadas aos dominantes representam sempre o va-
sivamente nos textos4 e, operando uma seleção no
lor positivo.6
interior de uma seleção, submetem cada linguajar em
estudo a uma alteração essencial no tocante às fre- Se a ciência social deve ter uma posição privile-
qüências que fazem toda a diferença entre as lingua- giada para a ciência do conhecimento cotidiano do
gens e os mercados nos quais o falar é mais ou menos mundo social, isso não é somente com uma intenção
tenso ou pouco à vontade;5 esquecem, entre outras coi- crítica e com vistas a desembaraçar o pensamento do
sas, que para escrever um linguajar que, tal como o mundo social de todos os pressupostos que ele tende
das classes populares, exclui a intenção literária (e não a aceitar mediante as palavras e os objetos que elas
a transcrição ou os registros), é preciso ser oriundo das constróem (‘linguagem popular’, ‘gíria’, ‘dialeto’ etc.).
situações e mesmo da condição social na qual ele é
falado; esquecem também que o interesse pelos “acha-
dos” ou o simples fato de se fazer uma adesão seleti- refere-se às conversas de um homem (“Some já daqui”), de
quem ela rapidamente diz: “É assim que ele fala, é um ve-
va, ao excluir tudo o que se encontra também na lín-
lho malandro de Paris, não tem dúvida, ele tem um jeito meio
gua padrão, confunde a estrutura das freqüências. cafajeste, com aquele boné sempre de lado, a gente logo vê!”.
Um pouco mais adiante a mesma pessoa reemprega a pala-
Se, a despeito de suas incoerências e incerte-
vra “grana” pouco depois de ter contado as conversas de
zas, e também graças a elas, as noções pertencen-
um gerente de restaurante na qual a palavra apareceu (cf.
tes à família do “popular” podem prestar muitos Y. Delsaut, 1975, p. 33-40). A análise empírica deveria li-
serviços, e até no discurso erudito, é porque elas es- mitar-se a determinar o sentimento que os locutores têm da
inclusão de uma palavra na gíria ou na língua legítima (ao
invés de impor a definição do observador) o que permiti-
ria, entre outras coisas, compreender vários traços descri-
3 Cf. H. Bauche (1920), P. Guiraud (1965), e, também,
tos como “falhas”, que são o produto de um senso de dis-
na mesma perspectiva, H. Frei [1929] (1971). tinção mal-investido.
4 Cf. J. Cellard e A. Rey (1980, p. VIII). 6 É por essa razão que, sob a aparência de girar em
5
Basta indicar, por exemplo, que no discurso colhi- círculo ou no vazio, como tantas definições circulares ou
do no mercado mais informal — uma conversa entre mu- tautológicas da vulgaridade e da distinção, a linguagem
lheres — o léxico da gíria está quase totalmente ausente; só legítima torna-se, com tanta freqüência, privilégio dos
aparece, no caso observado, quando uma das interlocutoras dominantes.

18 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Você disse “popular”?

Também esse conhecimento prático contra o qual a estruturam o mundo social segundo as categorias
ciência deve se construir — e de início esforçando-se de alto e baixo (a linguagem “baixa”), do fino e do
por objetivá-lo — é parte integrante do próprio mundo grosseiro (as palavras grosseiras), do licencioso (as
que a ciência visa a conhecer: ele contribui para fazer brincadeiras pesadas), do distinto e do vulgar, do
esse mundo contribuindo para constituir a visão que raro e do comum, da ordem e da negligência, logo,
os agentes podem ter e orientando por ela suas ações, da cultura e da natureza (não se fala de “gíria de
em particular aquelas que visam a conservá-lo ou a bandidos” e de “palavras cruas”?). São essas cate-
transformá-lo. Assim, uma ciência rigorosa da socio- gorias míticas que introduzem um corte nítido no
lingüística espontânea que os agentes operam para continuum dos linguajares, ignorando, por exem-
antecipar as reações dos outros e para impor a repre- plo, todos os entrecruzamentos do linguajar rela-
sentação que querem dar de si próprios permite, en- xado dos locutores dominantes (o fam.) e do lin-
tre outras coisas, compreender uma boa parte daqui- guajar tenso dos locutores dominados (que obser-
lo que, na prática lingüística, é o objeto ou o produto vadores como Bauche ou Frei incluem no pop.), e
de uma intervenção consciente, individual ou coleti- sobretudo a diversidade extrema dos linguajares que
va, espontânea ou institucionalizada: por exemplo, são globalmente lançados na classe negativa de “lin-
todas as correções que os locutores se impõem ou lhes guagem popular”.8
são impostas — na família ou na escola — com base Mas, por uma espécie de desdobramento pa-
no conhecimento prático, parcialmente registrado na radoxal, o que constitui um dos efeitos corriquei-
própria linguagem (o “sotaque parisiense”, “marse- ros da dominação simbólica, os próprios domina-
lhês”, “faubourgueano” ou de subúrbio* etc.), de cor- dos, ou pelo menos certas frações dentre eles, po-
respondências entre as diferenças lingüísticas e as di- dem aplicar ao seu próprio universo social princí-
ferenças sociais, bem como a partir de uma correção pios de divisão (tais como forte/fraco, submisso;
mais ou menos consciente de traços lingüísticos mar- inteligente/sensível, sensual; duro/frouxo, flexível;
cados ou identificados como imperfeitos ou falhos direito, franco/torto, astucioso, falso etc) em cuja
(notadamente em todos os hábitos lingüísticos do tipo ordem se reproduz a estrutura fundamental do sis-
“diz-que-diz-que”), ou, ao contrário, como formas de tema de oposições dominantes em matéria de lin-
valorização e distinção.7 guagem.9 Essa representação do mundo social re-

A noção de “linguagem popular” é um dos


produtos da aplicação de taxionomias dualistas que 8 Mesmo aceitando a divisão que está no princípio da
própria noção de “linguagem popular”, Henri Bauche ob-
serva que “a fala burguesa no seu uso familiar apresenta
* A tradução “sotaque parisiense” corresponde a numerosos traços comuns com a língua vulgar” (1920, p.
accent pointu que é a forma pela qual os habitantes da re- 9). E, mais adiante: “As fronteiras entre a gíria — as diver-
gião sul da França se referem à pronúncia dos parisienses, sas gírias — e a linguagem popular são algumas vezes difí-
que consideram desagradável. Sotaque “faubourgueano” ou ceis de determinar. Também são bastante vagos, por um
de subúrbio corresponde a accent faubourien, expressão que lado, os limites entre a linguagem popular e a linguagem
designa o sotaque de bairros parisienses periféricos, ditos familiar e, por outro, entre a linguagem popular propriamen-
populares. (N. T.) te dita e a linguagem de pessoas comuns, simplórias, daque-
7 Sendo determinado o papel que a sociolingüística las que, sem serem precisamente do povo, têm falta de ins-
espontânea e as intervenções expressas das famílias ou da trução ou educação: aqueles que os ‘burgueses’ qualificam
escola (que ela suscita e orienta) desempenham na manu- de simples” (idem, p. 26).
tenção ou na transformação da língua, uma análise socio- 9 Ainda que por razões complexas, e que será neces-
lingüística da mudança lingüística não pode ignorar essa sário examinar, a visão dominante não ocupe aí uma posi-
espécie de direito ou de costume lingüístico que comanda ção central, a oposição entre o masculino e o feminino é um
principalmente as práticas pedagógicas. dos princípios a partir dos quais se engendram as oposições

Revista Brasileira de Educação 19


Pierre Bourdieu

tém o essencial da visão dominante por meio da cas ou outras, é dirigida tanto contra os domina-
oposição entre a virilidade e a docilidade, a força e dos “comuns” que a ela se submetem, quanto con-
a fraqueza, os verdadeiros homens, os “machos”, tra os dominantes ou, a fortiori, contra a domina-
os “valentões” e os outros, seres femininos ou efe- ção enquanto tal. A licença lingüística faz parte do
minados, destinados à submissão e ao desprezo.10 trabalho de representação e evidencia o que os “ma-
A gíria, de que é feita a “linguagem popular” por chões”, sobretudo adolescentes, devem providenciar
excelência, é o produto desse desdobramento que para impor aos outros e a si próprios a imagem do
leva a aplicar à própria “linguagem popular” os “valentão” desiludido de tudo e pronto a tudo, que
princípios de divisão dos quais ela é produto. O se recusa a ceder ao sentimento e a sacrificar-se às
sentimento obscuro de que a adequação lingüísti- fraquezas da sensibilidade feminina. E, de fato, a
ca encerra uma forma de reconhecimento e de sub- degradação sistemática dos valores morais ou esté-
missão, destinada a fazer duvidar da virilidade dos ticos, na qual todos os analistas reconhecem a “in-
homens que a ela se sacrificam,11 junto com a bus- tenção” profunda do léxico da gíria, é de início uma
ca ativa da diferença distintiva, que faz o estilo, afirmação de aristocratismo, mesmo quando con-
conduzem à recusa do “fazer demais”. Isto leva a segue, ao se difundir, corresponder à propensão de
rejeitar os aspectos mais fortemente marcados do todos os dominados a incluir a distinção, ou seja,
falar dominante, em especial as pronúncias ou as a diferença específica, no gênero comum, na univer-
formas sintáticas mais difíceis, simultaneamente a salidade do biológico, por meio da ironia, do sar-
uma pesquisa da expressividade, baseada na trans- casmo ou da paródia.
gressão das censuras dominantes — principalmen- Forma distinta — aos próprios olhos de alguns
te em matéria de sexualidade — sobre uma vonta- dominantes — da linguagem “vulgar”, a gíria é o
de de se distinguir das formas de expressão corren- produto de uma busca de distinção, mas dominada
tes.12 A transgressão das normas oficiais, lingüísti- e condenada; daí produzir efeitos paradoxais, que
não podem ser compreendidos, encerrando-os na
alternativa da resistência ou da submissão, que co-
mais típicas do “povo” como massa fêmea, versátil e ávida manda a reflexão comum sobre a “linguagem (ou a
de prazer (segundo a antítese da cabeça e do ventre). cultura) popular”. Basta, com efeito, sair da lógica
10 É o que faz a ambigüidade da exaltação do falar da visão mítica para perceber os efeitos de contra-
“autêntico”: a visão de mundo que aí se exprime e as virtu- finalidade que são inerentes a toda posição domina-
des viris dos “machões” acham seu prolongamento natural
da; uma vez que a busca de distinção leva os domi-
no que tem sido chamado “direito popular” (cf. Z. Sternhell,
nados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo
1978), combinação fascistóide de racismo, nacionalismo e
autoritarismo. E compreende-se melhor a aparente bizarrice mesmo em nome do que são dominados e constituí-
que representa o caso de Céline. dos como vulgares, segundo uma lógica análoga à
11 Tudo parece indicar que, com o prolongamento da que leva os grupos estigmatizados a reivindicarem
escolaridade, o personagem do “machão” se constitui hoje o estigma como princípio de sua identidade, é neces-
a partir da escola e contra todas as formas de submissão que sário falar de resistência? E quando, inversamente,
ela impõe. eles trabalham para perder o que os marca como
12 O que leva a excluir inconscientemente a própria vulgares e para se apropriar do que lhes permite se-
possibilidade de uma diferença (de tato, de invenção, de rem assimilados, pode-se falar de submissão?
competência etc.) e de uma busca de diferença é um dos
efeitos do racismo de classe, para o qual todos os “pobres”,
como os amarelos e os negros, se assemelham. A exaltação
indiferenciada do “popular” que caracteriza o populismo seiras ou, o que dá no mesmo, pode levar a reter apenas aqui-
pode conduzir, assim, a um êxtase ingênuo diante de mani- lo que foge ordinariamente do “comum” e a considerá-lo
festações que os “nativos” julgam ineptas, imbecis ou gros- como representativo da linguagem ordinária.

20 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Você disse “popular”?

Para escapar aos efeitos do modo de pensamen- duz a audácias desesperadas do aristocratismo de
to dualista que leva a opor uma linguagem “padrão”, pária, são um modo de fazer parte de um mundo
medida de toda linguagem, e uma linguagem “po- sem saída, dominado pela miséria e pela lei da sel-
pular”, é preciso voltar ao modelo de toda produ- va, a discriminação e a violência, onde a moralidade
ção lingüística e redescobrir o princípio da extrema e a sensibilidade não trazem nenhum proveito.13 A
diversidade dos linguajares que resulta da diversidade moral que constitui a transgressão como dever im-
de combinações possíveis entre as diferentes classes põe uma resistência ostensiva às normas oficiais,
de habitus lingüísticos e de mercados. Entre os fatores lingüísticas ou outras, que só pode ser mantida per-
determinantes do habitus que parecem pertinentes manentemente ao preço de uma tensão extraordi-
do ponto de vista da propensão a reconhecer (no nária e, sobretudo para os adolescentes, com o re-
duplo sentido) as censuras constitutivas dos merca- forço constante do grupo. Como o realismo popu-
dos dominantes ou a se beneficiar das liberdades ne- lar, que supõe e produz o ajustamento das esperan-
cessárias oferecidas por alguns mercados livres de ças às oportunidades, ela constitui um mecanismo
uma parte, e, de outra parte, da capacidade de sa- de defesa e de sobrevivência: aqueles que têm obri-
tisfazer às exigências de uns e de outros, pode-se as- gação de se colocar fora da lei para obter as satis-
sim apontar: o sexo, princípio de relações muito di- fações que outros obtém nos limites da legalidade
ferenciadas com os diferentes mercados possíveis — conhecem bem o alto custo da revolta. Como bem
e, em particular, no mercado dominante —; a gera- observa Paul E. Willis (1978, especialmente p. 48-
ção, isto é, o modo de geração, familiar e sobretudo 50), as poses e posturas de bravata (por exemplo,
escolar, da competência linguística; a posição social, com relação à autoridade e diante da polícia) po-
caracterizada, principalmente, do ponto de vista da dem coexistir com um conformismo profundo para
composição social do meio de trabalho e das trocas tudo o que toca às hierarquia, e não somente entre
socialmente homogêneas (com os dominados) ou he- os sexos; e a dureza ostentatória que impõe o res-
terogêneas (com os dominantes, no caso, por exem- peito humano não exclui de maneira simples a nos-
plo, do pessoal do setor de serviços) que ela favore- talgia da solidariedade, isto é, da afeição que, ao
ce; a origem social, rural ou urbana e, nesse caso, an- mesmo tempo, plena e reprimida pelas trocas alta-
tiga ou recente e, enfim, a origem étnica. mente censuradas do bando, exprime-se ou se trai
Certamente, é com os homens e, entre eles, nos momentos de abandono. A gíria — e aqui está,
com os mais jovens e os menos integrados, atual- com o efeito de imposição simbólica, uma das ra-
mente e sobretudo de forma potencial, na ordem zões de sua difusão, bem além dos limites do “meio”
econômica e social, como os adolescentes oriundos propriamente dito — constitui uma das expressões
de famílias imigradas, que se encontra a recusa mais exemplares e, se pudermos dizer ideais, com a qual
marcante à submissão e à docilidade implicadas na a expressão propriamente política deverá contar,
adoção de maneiras de falar legítimas. A moral da isto é, compor, da visão edificada, no essencial, con-
força — que encontra seu complemento no culto da tra a “fragilidade” e a “submissão” femininas (ou
violência e nos jogos quase-suicidas, moto, álcool
ou drogas pesadas, onde se afirma a relação com o
futuro para aqueles que nada têm a esperar do fu- 13 Os jovens “machões” oriundos de famílias imi-
turo — é, sem dúvida, apenas uma das maneiras de gradas representam sem dúvida, um limite ao qual podem
fazer da necessidade, virtude. A opção ostensiva chegar até a recusa total da sociedade “francesa”, simboli-
zada pela escola e também pelo racismo cotidiano; repre-
pelo realismo e pelo cinismo, a recusa ao sentimento
sentam a revolta de adolescentes oriundos de famílias mais
e à sensibilidade, identificadas a uma compaixão desprovidas econômica e culturalmente que, com freqüên-
feminina ou efeminada, essa espécie de dever de cia, encontra sua origem nas dificuldades, decepções ou
dureza, tanto para si como para os outros, que con- fracassos escolares.

Revista Brasileira de Educação 21


Pierre Bourdieu

efeminadas), que os homens mais desprovidos de dotados de capital econômico e cultural, sem dú-
capital econômico e cultural têm da sua identida- vida, têm uma sensibilidade para as exigências do
de viril e de um mundo social inteiramente ordena- mercado dominante e uma capacidade para respon-
do sob o signo da dureza.14 der a elas que as aproxima da pequena burguesia.
Quanto ao efeito da geração, este se confunde no
É preciso cuidado, entretanto, para não ignorar
essencial com o efeito das transformações do modo
as transformações profundas que sofrem, em sua fun-
de geração, isto é, do acesso ao sistema escolar que,
ção e sua significação, as palavras ou as locuções em-
sem dúvida, representa o mais importante dos fa-
prestadas quando passam para o linguajar comum das
tores de diferenciação entre as idades. Entretanto,
trocas cotidianas. Nesse sentido alguns dos produtos
não é certo que a ação escolar exerça o efeito de
mais típicos do cinismo aristocrático dos “machões”
homogeneização das competências que ela se atri-
podem, em seu uso comum, funcionar como uma es-
bui e que se tem tentado imputar-lhe. De início,
pécie de convenção neutralizada e neutralizante que
porque as normas escolares de expressão, mesmo
permite aos homens dizer, nos limites de uma estrito
quando aceitas, podem permanecer circunscritas,
pudor, a afeição, o amor, a amizade, ou simplesmen-
em sua aplicação, às produções escolares orais e
te nomear os seres amados, os pais, os filhos, a espo-
sobretudo escritas. A seguir, porque a Escola ten-
sa (o uso, mais ou menos irônico, de termos de refe-
de a distribuir os alunos em classes tão homogêneas
rência como “a patroa”, “rainha-mãe” ou “minha
quanto possível, segundo os critérios escolares e,
burguesa” permitem, por exemplo, escapar às formas
correlativamente, do ponto de vista dos critérios so-
“minha mulher” ou o simples prenome, percebidos
ciais, de maneira que o grupo dos pares tende a exer-
como familiares demais).15
cer efeitos de tal natureza que, conforme se desce
No extremo oposto na hierarquia das dispo- na hierarquia social dos estabelecimentos e ciclos,
sições com relação à linguagem legítima estariam, e, portanto das origens sociais, a oposição aos efei-
sem dúvida, as mais jovens e as mais escolarizadas tos produzidos pela ação pedagógica é mais forte.
entre as mulheres, que, mesmo ligadas pelo ofício E enfim porque, paradoxalmente, ao criar grupos
ou pelo casamento ao universo de agentes pouco duráveis e homogêneos de adolescentes em ruptura
com o sistema escolar e, através dele, com a ordem
social, colocados em situação de quase inatividade
14
Manifestação exemplar desse princípio de classifi- e de irresponsabilidade prolongada,16 — esses agru-
cação e da amplitude de seu campo de aplicação, é o caso pamentos homogêneos aos quais são relegadas as
daquele pedreiro (antigo mineiro) que, convidado a classi- crianças das classes mais desprovidas e, principal-
ficar os nomes de profissões (num teste concebido sobre o
mente, os filhos de imigrantes, sobretudo magre-
modelo de técnicas empregadas para a análise componencial
binos — tem-se, sem dúvida, contribuído para ofe-
de termos de parentesco) e a dar um nome para as classes
assim produzidas, exclui com um gesto de mão o conjunto recer as condições mais favoráveis à elaboração de
das profissões superiores, cujo paradigma para ele era o uma espécie de “cultura delinqüente”, que se expri-
apresentador de televisão, dizendo: “todos pederastas” (Pes- me, entre outras manifestações, por um linguajar em
quisa de Yvette Delsaut, Denain, 1978). ruptura com as normas de linguagem legítima.
15
De modo mais geral, pelo fato de que a evocação Ninguém pode ignorar completamente a lei
mais ou menos brutal das coisas sexuais e a projeção ate- lingüística ou cultural e todas as vezes que os do-
nuante do sentimental sobre o plano do fisiológico com fre-
qüência têm o valor de eufemismos por hipérbole ou antí-
frase e que, inversamente e por meio da negação, dizem mais 16 O equivalente dessa situação só se encontra sob a
por dizer menos, é que esse léxico muda completamente de forma do serviço militar, que era, sem dúvida, um dos prin-
sentido ao mudar de mercado, com a transcrição romanes- cipais lugares da produção e da inculcação de formas de falar
ca ou a adesão lexicológica. da gíria.

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Você disse “popular”?

minados entram numa troca com os detentores da formas mais pesquisadas (da gíria) decresce à me-
competência legítima e, sobretudo, quando se en- dida que decresce a tensão dos mercados de com-
contram em situação oficial, eles são condenados petência lingüística dos locutores: mínima nas tro-
a um reconhecimento prático, corporal, de leis de cas privadas e familiares (nesse caso, estão em pri-
formação de preços os mais desfavoráveis às suas meiro lugar as trocas no seio da família), onde a
produções linguísticas, que os condenam a um es- independência em relação às normas do linguajar
forço mais ou menos desesperado de correção ou legítimo marca-se sobretudo pela liberdade, mais ou
ao silêncio. Em todo caso, pode-se classificar os menos plena, de ignorar as convenções e as conve-
mercados com os quais se defrontam segundo seu niências do linguajar dominante, sem dúvida, ela
grau de autonomia: desde os mais completamente encontra o apogeu nas trocas públicas (quase ex-
submetidos às normas dominantes (como aqueles clusivamente masculinas) que impõem uma verda-
que se instauram na relação com a justiça, a medi- deira pesquisa estilística, como os torneios verbais
cina ou a escola) até os mais completamente livres e lances ostentatórios de certas conversas de café.
dessas leis (como aqueles que se constituem nas pri- Apesar da enorme simplificação que supõe,
sões ou em bandos de jovens). A afirmação de uma esse modelo evidencia a extrema diversidade dos
contralegitimidade lingüística e, ao mesmo tempo, discursos gerados, praticamente, na relação entre as
a produção de discursos fundada na ignorância mais diferentes competências lingüísticas corresponden-
ou menos deliberada das convenções e das conve- tes às diferentes combinações de características vin-
niências características dos mercados dominantes culadas aos produtores e às diferentes classes de
são possíveis apenas nos limites dos mercados livres, mercados. Mas, o modelo permite, por sua vez, es-
regidos por leis de formação de preços que lhes são boçar o programa de uma observação metódica e
próprias, isto é, nos espaços próprios das classes reconhecer os casos das figuras mais significativas,
dominadas, antros ou refúgios de excluídos — dos entre as quais se situam todas as produções lin-
quais os dominantes são de fato excluídos, ao me- güísticas dos locutores mais desprovidos de capital
nos simbolicamente —, e para os detentores habi- lingüístico: primeiramente, as modalidades de dis-
tuais dotados da competência social e lingüística que cursos oferecidas por virtuoses nos mercados livres
é reconhecida nesses mercados. A gíria do “meio”, mais tensos — isto é, públicos — e em especial, a
enquanto transgressão real dos princípios funda- gíria. Em segundo lugar, estariam as expressões pro-
mentais da legitimidade cultural, constitui uma afir- duzidas pelos mercados dominantes, ou seja, pelas
mação conseqüente de uma identidade social e cul- trocas privadas entre dominantes e dominados ou
tural, não somente diferente, mas oposta, e a visão pelas situações oficiais que podem tomar a forma
de mundo que aí se exprime representa o limite para da palavra embaraçada ou confusa pelo efeito da
o qual tendem os membros (masculinos) das clas- intimidação ou do silêncio, a única forma de expres-
ses dominadas nas trocas lingüísticas internas à clas- são que, com freqüência, resta aos dominados. E
se e, em especial, nas mais controladas e regulares enfim, os discursos produzidos pelas trocas familia-
dessas trocas, como aquelas do café, que são domi- res e privadas — por exemplo, entre mulheres —,
nadas por completo pelos valores da força e da vi- essas duas últimas categorias de discursos sendo
rilidade, um dos únicos princípios de resistência sempre excluídas por aqueles que, ao caracterizar
eficaz, junto com a política, contra as maneiras do- as produções lingüísticas pelas características úni-
minantes de falar e agir. cas dos locutores, deveriam, segundo a boa lógica,
Os próprios mercados internos se distinguem incluí-los na “linguagem popular”.
segundo a tensão que os caracteriza e, simultanea- O efeito de censura que exerce todo mercado
mente, segundo o grau de censura que impõem, e relativamente tenso exerce pode ser observado no
pode-se levantar a hipótese de que a freqüência das fato de que as conversas em lugares públicos reser-

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Pierre Bourdieu

vados (pelo menos em certas horas) aos homens adul- versa mantida depende da qualidade dos participan-
tos das classes populares, como alguns cafés, são tes, que depende, por sua vez, da qualidade da con-
fortemente ritualizadas e submetidas a regras estri- versação, logo, de quem está no centro e deve saber
tas: não se vai ao bar somente para beber, mas tam- negar a relação mercantil, afirmando sua vontade e
bém para participar ativamente de um divertimen- sua capacidade de se inscrever como um participante
to coletivo capaz de proporcionar aos participantes comum no circuito das trocas — com a “ronda do
um sentimento de liberdade com relação às necessi- gerente” ou os jogos de dados oferecidos aos fregue-
dades comuns, de produzir uma atmosfera de eufo- ses habituais — e assim contribuir para colocar em
ria social e de gratuidade econômica para a qual o suspenso as necessidades econômicas e as obrigações
consumo de álcool, com certeza, só pode contribuir. sociais, que se espera do culto coletivo da boa vida.18
Estão lá para rir e fazer rir e cada um deve, na me- É compreensível que o discurso articulado nesse
dida de suas condições, lançar na troca suas boas mercado só aparente liberdade total e naturalidade
palavras e brincadeiras, ou no mínimo, levar sua con- absoluta para aqueles que ignoram as regras ou os
tribuição à festa, colaborando com o sucesso de ou- princípios: assim, a eloqüência apreendida pela per-
tros pelo reforço ao riso, com exclamações de apro- cepção externa como uma espécie de verve desabri-
vação (“Ah! É isso aí!”). A posse de um talento de da não é nem mais nem menos livre em seu gênero
animador, capaz de encarnar, ao preço de um tra- do que as improvisações da eloqüência acadêmica.
balho consciente e constante de pesquisa e acumu- Ela não ignora nem a busca do efeito, nem a aten-
lação, o ideal do “tipo brincalhão”, que traz em si ção ao público e às suas reações, nem as estratégias
uma forma aprovada de sociabilidade, é uma forma retóricas destinadas a captar benevolência ou com-
de capital muito precioso. Nesse sentido, o bom ge- placência; ela se apóia nos esquemas de invenção e
rente de bar acha na sabedoria das convenções ex- expressão considerados mais próprios a dar àque-
pressivas, conveniente a esse mercado, brincadeiras, les que não os possuem o sentimento de assistir a
boas histórias, jogos de palavras que sua posição manifestações fulgurantes da fineza de análise ou da
permanente e central lhe permite adquirir e exibir. lucidez psicológica ou política. Pela enorme redun-
E também acha no seu conhecimento especial das dância que sua retórica permite, pelo lugar que dá
regras do jogo e das particularidades de cada um dos à repetição de formas e fórmulas rituais que são as
jogadores, dos prenomes, apelidos, manias, defeitos, manifestações obrigatórias de uma “boa educação”,
especialidades e talentos de que pode tirar partido, pelo recurso sistemático às imagens concretas do
os recursos necessários para suscitar, entreter e tam- mundo conhecido, pela obstinação excessiva com
bém conter, por apelos ou discretos chamados à or- que reafirma, até mesmo na renovação formal, os
dem, as trocas capazes de produzir a atmosfera de
efervescência social que seus clientes vêm procurar
e que se deve oferecer a eles17. A qualidade da con- ser exercida até mesmo no plano político, ainda que o tema
seja tacitamente tabu nas conversas dos cafés — em razão
da comodidade e da segurança que detêm graças, entre ou-
17 O pequeno comerciante e, sobretudo, o gerente de tras coisas, à sua disponibilidade econômica.
restaurante, particularmente quando detém as virtudes da 18 Seria necessário verificar se, além dos gerentes dos
sociabilidade que fazem parte dos requisitos profissionais, cafés, os comerciantes e, em particular, os profissionais da
não são objeto de nenhuma hostilidade previsível ou regu- “boa conversa” e da “lábia” — os camelôs e os vendedo-
lar por parte dos operários (contrariamente ao que tendem res ambulantes de feiras e mercados, e também os açouguei-
a supor os intelectuais e os membros da pequena burguesia ros e os cabeleireiros, num estilo diferente, qual seja, que
com capital cultural, que deles estão separados por uma corresponde a estruturas de interação diferentes —, não
verdadeira barreira cultural). Eles dispõem, com bastante contribuem mais do que os operários, simples produtores
freqüência, de uma certa autoridade simbólica — que pode ocasionais, para a produção de invenções ou achados.

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Você disse “popular”?

valores fundamentais do grupo, esse discurso expri- pular”, é preciso dizer que a forma mais freqüente
me e reforça uma visão de mundo profundamente dessa linguagem é o silêncio. De fato, é ainda segundo
estável e rígida. Nesse sistema de evidências, incan- a lógica da divisão do trabalho entre os sexos que
savelmente reafirmadas e coletivamente garantidas, se resolve a contradição resultante da necessidade de
que assinala para cada classe de agentes sua essên- afrontar os mercados dominantes sem se sacrificar
cia, logo, seu lugar e sua categoria, a representação à busca de correção. Por se admitir (e de início en-
da divisão do trabalho entre os sexos ocupa um lu- tre as mulheres, que podem fingir deplorá-lo) que o
gar central, talvez porque o cultivo da virilidade, isto homem é definido pelo direito e dever de constân-
é, da rudeza, da força física e da grosseria ríspida, cia a si, que é constitutivo de sua identidade (“eu sou
instituída como recusa eletiva do refinamento efe- como sou”) e pode manter-se num silêncio próprio
minado, seja uma das maneiras mais eficazes de lutar a lhe permitir salvaguardar sua dignidade viril, ele
contra a inferioridade cultural na qual se encontram incumbe freqüentemente a mulher — socialmente
todos aqueles que se sentem desprovidos de capital definida como flexível e submissa por natureza —
cultural, sejam ou não ricos de capital econômico, de fazer o esforço necessário para afrontar as situa-
como os comerciantes.19 ções perigosas: receber o médico, descrever-lhe os sin-
No extremo oposto, na classe dos mercados tomas e discutir com ele acerca do tratamento, to-
abertos, o mercado de trocas entre familiares (e es- mar as providências junto à professora ou à assis-
pecialmente entre mulheres) distingue-se pelo fato tência social etc.20 Segue-se que as “falhas” ligadas
de que a própria idéia de busca e de efeito está qua- por princípio a uma busca infeliz de correção ou a
se ausente, de maneira que o discurso que aí circula uma preocupação de distinção mal-orientada e que,
difere na forma, como se viu, daquele das trocas pú- como todas as palavras deformadas, principalmen-
blicas do café: é na lógica da privação, mais do que te as médicas, são substituídas sem piedade pelos pe-
na da recusa, que ele se define com relação ao dis- queno-burgueses — e pelas gramáticas da “lingua-
curso legítimo. Quanto aos mercados dominantes, gem popular” — são, sem dúvida, muito freqüen-
públicos e oficiais ou privados eles sugerem, aos mais tes entre as mulheres (e elas podem ser xingadas por
desprovidos econômica e culturalmente, problemas “seus” homens — o que ainda é uma maneira de re-
tão difíceis que, a se ater à definição dos linguajares meter as mulheres à sua “natureza” de afetadas e de
fundados nas características sociais dos locutores que causadoras de embaraços).21
adotam implicitamente as formas da “linguagem po- De fato, mesmo nesse caso, as manifestações de
docilidade jamais são destituídas de ambivalência e
sempre ameaçam retornar como agressividade à me-
19 Essa representação assinala, no masculino, uma na- nor “resposta brusca”, ao menor sinal de ironia ou
tureza social — a do homem “resistente” e “incansável”, ava- de distância que converta os homens em homena-
ro de confidências e que recusa os sentimentos e as sensibi-
gens obrigatórias da dependência estatutária: aquele
lidades exageradas, sólido e inteiro, “íntegro”, franco e con-
fiável, “com o qual se pode contar” etc. —, que a dureza
das condições de existência lhe impuseram, mas que ele se
20 É óbvio que essas condutas estão sujeitas a varia-
sente no dever de escolher porque ela se define por oposição
à “natureza” feminina, fraca, doce, dócil, submissa, frágil, ções segundo o nível de instrução da mulher e, sobretudo
cambiante, sensível, sensual, e ao “invertido” (“contrário à talvez, segundo a diferença de níveis de instrução entre os
natureza”, efeminado). Esse princípio de divisão atua no seu esposos.
campo de aplicação específico, isto é, no domínio das relações 21 Observa-se que, segundo essa lógica, as mulheres
entre os sexos, e também de uma maneira muito geral, im- têm sempre suas razões em sua natureza (meio confusa). Os
pondo aos homens uma visão estrita, rígida, em uma pala- exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito: no caso em
vra, essencialista, de sua identidade e, mais geralmente, de que a mulher é incumbida de resolver algo, se ela tem êxito
outras identidades sociais, para além de toda ordem social. é porque era fácil; se fracassa é porque não soube fazê-lo.

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Pierre Bourdieu

que, ao entrar numa relação social muito desigual, Assim, parece que as produções lingüísticas e
adota de modo bastante visível a linguagem e as ma- culturais dos dominados variam profundamente se-
neiras apropriadas, expõe-se a ser constrangido a gundo sua inclinação e atitude para beneficiar-se das
pensar e a viver a reverência escolhida como submis- liberdades reguladas oferecidas pelos mercados li-
são obrigatória ou servilidade interessada. A imagem vres, ou para aceitar as obrigações impostas pelos
do empregado doméstico, que deve uma adequação mercados dominantes. Isso explica que, na realidade
ostensiva às normas dominantes da conveniência ver- polimorfa obtida ao se considerar todos os lingua-
bal e dos uniformes, persegue todas as relações en- jares produzidos por todos os mercados para todas
tre dominados e dominantes, e principalmente as as categorias de produtores, cada um daqueles que
trocas de serviços, como testemunham os problemas se sente no direito ou no dever de falar do “povo”
quase insolúveis colocados pela “remuneração”. É pode encontrar um suporte objetivo para seus in-
por isso que a ambivalência com relação aos domi- teresses ou seus fantasmas.
nantes e seu estilo de vida — tão freqüente entre os
homens que exercem funções no serviço doméstico,
PIERRE BOURDIEU (1930) é professor do Collège
os quais oscilam entre a inclinação à resignação an-
de France desde 1982, cadeira de Sociologia. Dentre seus
siosa e a tentação de se permitir familiaridades que
inúmeros livros destacam-se La reproduction (1970), Leçon
degradam os dominantes alçando-se até eles — re- sur la leçon (1982), Homo academicus (1984), La noblesse
presenta, sem dúvida, a verdade e o limite da rela- d’État: grandes écoles et espirit de corps. (1989), Réponses:
ção que os homens mais desprovidos de capital lin- por une anthropologie réflexive (1992), La misère du monde
güístico e destinados à alternativa da grosseria e da (1993) e Raisons pratiques: sur la théorie de l’action (1994).
Vários de seus livros estão traduzidos para o português e o
servilidade mantêm com o modo de expressão do-
mais recente foi editado entre nós em 1996, A economia das
minante.22 Paradoxalmente, é apenas nas ocasiões
trocas linguísticas: o que falar quer dizer (original de 1992).
em que a solenidade justifica a seus olhos que eles
se situem no registro mais nobre, sem se sentirem
ridículos ou servis — por exemplo, para falar do seu
Referências bibliográficas
amor ou para manifestar sua simpatia no luto —, que
eles podem adotar a linguagem mais convencional,
BAUCHE, H. (1920). Le langage populaire: Grammaire,
porém a única conveniente por seu sentido para dizer syntaxe et vocabulaire du français tel qu’on le parle dans
as coisas graves, isto é, nas próprias ocasiões em que le peuple de Paris, avec tous les termes d’argot usuel. Pa-
as normas dominantes sugerem que se abandone as ris: Payot.
convenções e todas as fórmulas feitas para manifestar CELLARD, J. & REY, A. (1980). Dictionnaire du français
a força e a sinceridade dos sentimentos. non conventionnel. Paris: Hachette.
DELSAUT, Y. (1975). “L’économie du langage populaire”.
Actes de la recherche en sciences sociales 4, jul.
22 A intenção de infringir uma marca simbólica (pela
FREI, H. ([1929] 1971). La grammaire des fautes. Paris/
injúria, pela tagarelice ou pela provocação erótica, por exem-
Genebra: Slatkine Reprints.
plo) ao que é percebido como inacessível guarda a mais ter-
rível confissão de reconhecimento de superioridade. Assim, GUIRAUD, P. (1965). Le français populaire. Paris: Presses
como bem mostra Jean Starobinsky (1970, p. 98-154), “a Universitaires de France. Col. Que sais-je?, n° 1172.
conversa grosseira, longe de preencher a diferença entre os STAROBINSKY, Jean (1970). La relation critique. Paris:
segmentos sociais, a mantém e agrava, sob o colorido de Gallimard.
irreverência e de liberdade, transborda no sentido da degra-
STERNHELL, Z. (1978). La droite revolutionnaire, 1885-
dação, é a autoconfirmação da inferioridade” (refere-se às
1915: Les origines françaises du fascisme. Paris: Seuil.
conversas dos domésticos a propósito de Mademoiselle de
Breil; cf. J.J. Rousseau, Confessions, III, in Oeuvres Com- WILLIS, P.E. (1978). Profane Culture. London: Routledge
plètes, Paris, Gallimard; Pléiade, 1959, p. 94-96). and Kegan Paul.

26 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado
e eqüidade de gênero
Perspectivas comparativas

Nelly P. Stromquist
School of Education, University of Southern California

Tradução de Vera M.D. Renoldi


Trabalho apresentado no II Simpósio Anual de Missouri
sobre Pesquisa e Política Pública Educacional,
Universidade de Missouri/Columbia, 30 a 31 de março de 1995.

Compreendendo as tido a tantos equívocos e abusos nas últimas dé-


políticas públicas cadas (Leichter, 1979). Em princípio, ele se refere
a declarações oficiais de intenção de agir sobre de-
O termo política pública* é um conceito de de- terminados problemas. Entretanto, na prática, as
finição vaga. Na verdade, afirma-se que nenhum políticas públicas podem assumir múltiplas formas:
outro, na área de ciências sociais, tem sido subme- legislação, recomendações oficiais em relatórios de
organismos e departamentos governamentais e re-
sultados apurados por comissões apontadas pelos
* Em português tanto o termo policy ou policies quan-
governos. Cada vez mais essas políticas públicas
to o termo politic ou politics são traduzidos pelo termo po- estão sendo estabelecidas por organismos interna-
lítica ou políticas. Em inglês, os termos têm acepções diver- cionais, por meio de conferências também interna-
sas, embora sua origem etimológica seja originalmente a cionais, e criam para os países um compromisso
mesma. Politic ou politics significa a arte ou a ciência de moral de seguirem recomendações específicas, em-
governar, regulando e controlando os homens que vivem em
bora não sejam convenções e portanto não impo-
sociedade, ocupando-se da organização, administração e
nham nenhuma obrigação legal. Nos países em de-
direção de unidades políticas, como nações e Estados. No
caso de policy ou policies o sentido é o de um método ou senvolvimento, há uma outra forma de criação de
curso de ação definido e selecionado — seja por instituições, políticas públicas, derivadas de projetos realizados
grupos, indivíduos ou governos — entre diferentes alterna- em países que contam com apoio externo.
tivas e à luz de determinadas condições, para determinar
decisões presentes ou futuras. Essas decisões específicas, ou
o conjunto de decisões, carregam consigo as ações relacio- atingi-los. Esses meios seriam a formulação da política. A
nadas à sua implementação. O conceito engloba também o tradução mais correta seria, portanto, política pública, con-
sentido de um programa projetado que consiste de duas siderando-se que cada política implica sua própria estraté-
partes: os objetivos a atingir e os meios necessários para gia. (N. T.)

Revista Brasileira de Educação 27


Nelly P. Stromquist

Quando em forma de declarações públicas, as tão de que todas as políticas públicas sejam impre-
políticas públicas educacionais seguem um proces- visíveis. Desvios da intenção e dos objetivos origi-
so de quatro fases, no mínimo, iniciando-se com a nais, ao longo do tempo, revelam-se particularmen-
identificação do problema, evoluindo para a formu- te verdadeiros no caso de políticas públicas contro-
lação e a autorização da política pública (leis apro- vertidas ou não consensuais como são as políticas
vadas), implementação das mesmas e finalização ou públicas de gênero. Existem fortes elementos de sur-
mudança (Harman, 1984). Uma vez que estas fa- presa e contingência circundando essas políticas
ses colocam em ação diferentes atores, é comum públicas, em especial na sua implementação. Con-
existir uma falta de conexão entre elas e, ocasional- tudo, enquanto elas continuarem a ser um territó-
mente, bons programas no papel são mal imple- rio disputado por forças em oposição, pode-se pre-
mentados em campo. Entretanto, estudantes de po- ver, ocasionalmente, vitória das partes mais fortes.
lítica pública têm também consciência de que polí- Este trabalho não descarta a possibilidade de fato-
ticas públicas não se apresentam como “um obje- res contingentes no processo de estabelecimento e
to ou texto concreto e constante que se transmite implementação de políticas públicas. Nós queremos
de um local para outro”. Pelo contrário, são pro- descrever o caráter e os objetivos das políticas pú-
duzidas por indivíduos atuando dentro de contex- blicas educacionais de gênero e explicar até que pon-
tos, os quais ora apresentam limitações, ora opor- to essas tem se empenhado em promover mudan-
tunidades (Hall, em elaboração). Uma compreen- ças significativas dentro do sistema educacional.
são da complexidade dessas políticas públicas de- Portanto, nosso interesse está em captar a semelhan-
veria nos conscientizar da existência de múltiplos ça existente em políticas públicas, que se mostram
elementos em ação, tais como intencionalidade, ins- aparentemente diferentes, a respeito de gênero na
trumentalidade, interação, poder e temporalidade educação. Este trabalho pretende fornecer uma
que condicionam os contextos sociais (Hall, 1995). apreciação comparativa das políticas públicas de
Ozlack (1984, p. 5) define-as como “um conjunto gênero na educação, tanto as internas como as de
de tomadas de decisão face a face com temas so- outros países, documentando a gama de significa-
cialmente problematizados”. Essa conceitualização dos e compreensões que tem caracterizado as polí-
acurada ajuda a reconhecer que as políticas públi- ticas públicas de gênero sobre a igualdade educa-
cas apresentam a intenção de solucionar problemas cional e oferecendo explicações para as conquistas
identificados, que essas soluções devem contar com das mesmas.
um mínimo de apoio da sociedade e que a defini-
ção do problema evolui através de sucessivas ondas Políticas públicas de gênero
de tomadas de decisão. Em outras palavras, contra-
riando a visão que postula a seqüência linear na A formulação de uma política pública, que su-
formulação de uma política pública, começamos a põe exigências diretas sobre o Estado, tem sido bus-
apreender que, pelo fato de vários atores estarem cada por muitas feministas. Os temas englobados
implicados no processo — de políticos a burocra- nessas exigências são a igualdade de status para as
tas a equipes escolares — essas pessoas inserem cer- mulheres, a remoção da discriminação sexual, a
tas modificações nas políticas públicas, alterações introdução de regulamentos contra assédio sexual
que têm origem em sua interpretação sobre as po- e a introdução de cotas que garantam a represen-
líticas públicas em si e na extensão de sua concor- tatividade feminina.
dância em relação a elas. Entretanto, não existe um consenso, dentro do
Entretanto, a presença de fatores contingentes movimento feminista, em relação ao papel do Es-
na formulação e na implementação de políticas pú- tado nas relações de gênero. O grupo geralmente
blicas não deve ser interpretada como uma suges- caracterizado como “feministas liberais” conside-

28 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

ra que o Estado é neutro e corrigirá desigualdades o princípio de igualdade de oportunidade em vez de


de gênero quando lhe forem fornecidas informações reconhecer a necessidade de uma educação anti-
pertinentes sobre as disparidades existentes. Um sexista (Yates, 1993; Kelly, 1988).
outro grupo, compreendendo feministas com pers- Com o tempo, a posição feminista de distan-
pectivas “radicais” ou “socialistas”, está mais in- ciamento do Estado evoluiu para a utilização de uma
clinado a considerar o Estado como uma institui- estratégia dupla: trabalhar com o Estado através de
ção patriarcal que reflete divisões de gênero ao mes- pressões e desenvolver um trabalho independente
mo tempo que as produz. Nessas situações, as mu- através de grupos de mulheres, particularmente or-
lheres são geralmente excluídas de um acesso dire- ganizações não-governamentais (ONGs). Essa nova
to aos recursos estatais devido a sua ausência nos postura passou a existir como conseqüência do re-
departamentos estatais e, de forma indireta, por conhecimento de que as mulheres tem maiores chan-
forças políticas “sexistas” que atuam sobre o Estado ces de aumentar sua influência no processo político
(Connell, 1987; Pateman, 1988). Na verdade, se- — em alianças com homens que apóiam a causa e
gundo o Human Development Report, as mulheres fazem lobby pelos interesses das mulheres — do que
representam apenas 10% dos representantes par- através do mercado ou das ONGs, que tendem a ser
lamentares no mundo e bem menos de 4% de mi- pequenas e fragmentadas (Young, 1988).
nistros de gabinete ou posições de autoridade exe- Numa apreciação do comportamento dos Es-
cutiva similares.1 tados, as teóricas feministas observaram que as po-
O Estado molda as relações de gênero através líticas estatais nem sempre tendem para o status
de regulamentações relativas ao divórcio, ao casa- quo. Enquanto os Estados consideram a mulher e
mento, ao aborto, à anticoncepção, à discrimina- a família como um duo inseparável, no qual os pro-
ção salarial, à sexualidade, à prostituição, à por- blemas de uma se tornam os problemas da outra,
nografia, ao estupro e à violência contra a mulher com freqüência assumem políticas públicas contra-
(Walby, 1990). Entretanto, a natureza patriarcal do ditórias em relação às mulheres. Por um lado, a
Estado não é considerada estática. Afirma-se que necessidade de contar com elas como sendo mães
forças dominantes modernizaram a posição femi- e esposas induz o Estado a formular projetos mui-
nina ao permitir a participação plena das mulheres to convencionais nas linhas de gênero. Por outro,
no mercado de trabalho. Mas, simultaneamente, o a necessidade de depender das mesmas como força
Estado tem neutralizado as exigências feministas de trabalho — ainda que este seja facilmente ex-
através de várias concessões as quais, embora me- plorável, barato e manipulável — cria oportunida-
lhorem a situação, não eliminam os obstáculos fun- des para que elas se insiram no mercado de traba-
damentais para a igualdade feminina. Uma das res- lho, adquiram um relativo padrão de autonomia
postas estatais na área de educação é a de admitir financeira e, eventualmente, questionem sua condi-
ção de subordinação. Da mesma forma, tendências
globais a favor de normas democráticas obrigam os
1 Os dados disponíveis não permitem comparações Estados a oferecer direitos iguais para todos os ci-
claras. Entretanto, poder-se-ia argumentar que a mulher tem dadãos. Essas contradições criam janelas de opor-
um nível mais baixo de representação na política formal do tunidade para possibilidades de transformação e
que no setor de economia formal: em 35 países, as mulhe- ação organizada.
res representam mais de 25% das posições administrativas
As desigualdades relativas às mulheres nas áreas
e de gerência (dado de 1990), mas apenas em 28 países elas
econômicas, sociais e políticas em todo o mundo per-
constituem mais do que 15% dos ministros e submininistros
e em 25 países representam pelo menos 20% dos represen- sistem a despeito de vinte anos de trabalho ativo por
tantes parlamentares (as duas informações são dados de parte do movimento de mulheres. Um dos indicado-
1994) (ONU, 1995, p. 151-155). res mais aceitos do bem estar sócio-econômico é o

Revista Brasileira de Educação 29


Nelly P. Stromquist

Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) publi- doméstico reprodutivo) o qual suplanta divisões de
cado anualmente no Relatório de Desenvolvimen- classe e é também apoiado por relações extra-eco-
to Humano, produzido pelo Programa de Desenvol- nômicas de dominação (Feijóo, 1993). Entretanto,
vimento das Nações Unidas (PNUD). Esse índice sin- as mulheres não representam um grupo homogêneo
tetiza a condições da população em um determina- e nem todas vêem a si mesmas em circunstâncias
do país em termos de expectativa de vida no nasci- iguais. Os temas abordados por mulheres da clas-
mento, desempenho educacional e GPD real ajustado se média enfocam melhoria de acesso à educação
per capita. A PNUD também desenvolveu um IDH superior, direitos das mulheres casadas, melhora-
sensível ao gênero, fundamentado na posição das mentos na legislação trabalhista. Esses interesses
mulheres em relação à dos homens em termos de ex- não são partilhados pela mulher pobre porque mui-
pectativa de vida, alfabetização na idade adulta, sa- to poucas freqüentam universidades, casam-se le-
lários e anos de instrução básica. O Relatório de De- galmente ou trabalham no setor formal da econo-
senvolvimento Humano de 1993 constatou que o mia. Pelo contrário, os problemas das mulheres po-
IDH médio das mulheres é apenas 60% daquele dos bres se concentram em moradia, débitos, saúde e
homens2 (PNUD, 1993, p. 260). Denominando as desemprego (Fisher, 1993). A emergência de assun-
mulheres como “o maior grupo excluído no mun- tos abrangendo todas as classes sociais, como o di-
do”, o mesmo relatório também verificou que elas reito de controlarem seus próprios corpos (incluin-
sofrem uma séria desvantagem em comparação aos do-se o aborto) e a preponderância do tópico de
homens em relação a emprego, educação superior, violência contra a esposa são temas que estão crian-
direitos legais, patrimônios financeiros e represen- do uma maior unidade entre as mulheres.
tação política. Esse relatório fornece uma evidência
clara de que a industrialização não é concomitante Políticas públicas de gênero
à igualdade das mulheres, sendo o exemplo mais na educação
notável o do Japão, cujo IDH é o primeiro do mun-
do mas, quando ajustado à disparidade de gênero, Conforme declarado anteriormente, o Rela-
ocupa o décimo-sétimo lugar. Da mesma forma que tório de Desenvolvimento Humano de 1993, da
o gênero, o aspecto étnico é uma outra variável de PNDU, evidencia a substancial desvantagem das
importância na criação da desigualdade sócio-eco- mulheres. Entretanto, não aponta causas ou atores/
nômica: se a população dos Estados Unidos fosse instituições responsabilizáveis por essa situação.
dividida em grupos étnicos, o IDH da parcela bran- Trata-se de um posicionamento comum às declara-
ca estaria em primeiro lugar entre todas as nações, ções de muitos governos e organismos internacio-
com a parcela negra ocupando o trigésimo-primei- nais. Existe uma nítida preferência para a elabora-
ro lugar e a parcela hispânica estando “ainda mais ção de projetos destacando as desigualdades para
abaixo” (PNUD, 1993, p. 26). o acesso das mulheres à instrução e à força de tra-
Embora não exista uma concordância entre as balho, enquanto enfatiza-se bem menos a identifi-
teóricas feministas sobre o papel do gênero sob o cação das forças sociais, econômicas e ideológicas
capitalismo, aceita-se, de forma crescente, que as que estão subjacentes à subordinação e à domina-
mulheres sejam um dos elementos importantes no ção femininas.
processo de acumulação (através de seu trabalho A fim de se compreender a intenção dos ela-
boradores de políticas públicas (como também aju-
2 dá-los na criação de políticas públicas eficazes), os
Poder-se-ia sugerir que o fato de dados desse tipo
existirem, em 1991, apenas para 33 países — dos quais 22 estudiosos se concentraram no exame dos instru-
são países industrializados — seria um indicativo da limitada mentos da política pública — “mecanismos que
importância dada à mulher nos países em desenvolvimento. transformam os objetivos de uma política pública

30 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

substantiva em ações concretas” (McDonnell e TABELA 1. Comparação entre políticas


Elmore, 1987, p. 133).3 Com o intuito de analisar genéricas e sensíveis a gênero (continuação)
as políticas públicas de gênero, minha proposta é POLÍTICAS GENÉRICAS (continuação)
uma classificação embasada no nível de transforma-
Modelos Efeito desejado Mecanismos
ção social pretendido pela legislação. Três tipos de de aplicação
legislação podem ser identificados: Mudança Devolução de Boa vontade
> Leis de coerção — as ativadas para pre- do sistema autoridade, do Estado,
criação de novos fundos para
venção no caso de ocorrer ou de continuar
organismos criar novas
ocorrendo qualquer discriminação sexual (o
instituições
aspecto “vara de marmelo” da lei);
Criação de Novas Recursos para
> Leis de apoio — as criadoras de orga- capacidade capacidades em provisão de
nismos para promover ou monitorar a imple- indivíduos e serviços
mentação de novas práticas (isto é, criação de instituições
comissões e unidades compostas por mulheres Incentivos Provisão de
e ministérios encarregados de assuntos femi- novos serviços e
administração de
ninos, etc.)
novos serviços
> Leis de construção — as promotoras de
POLÍTICAS SENSÍVEIS A GÊNERO
incentivos para novas práticas nas instituições
Modelos Efeito desejado Mecanismos
educacionais, relacionadas a desenvolvimen-
de aplicação
to de programas e cursos, treinamento de pro-
De coerção Eliminar Retirada de
fessores, maior número de bolsas de estudo discriminação contratos ou
para mulheres, etc. (o aspecto “isca” da lei). de gênero multas para
A Tabela 1 apresenta uma classificação de po- encorajar
obediência
líticas públicas genéricas e com enfoque no gênero,
De apoio Instituições/
comparando a tipologia oferecida por McDonnell
unidades para
e Elmore (1987) com as minhas.
promoverem
problemas de
TABELA 1. Comparação entre políticas gênero e monitorar
genéricas e sensíveis a gênero legislação de
gênero, coerção e
POLÍTICAS GENÉRICAS
de construção
Modelos Efeito desejado Mecanismos
De suporte Unidades/
de aplicação
instituições para
Comando Eliminar Punições promoverem
discriminações, para assuntos de gênero
desperdícios, encorajar e monitorar
danos etc. obediência legislação de
gênero coerciva
e construtiva
3 Ao examinar vários tipos de políticas públicas, De construção Novos
McDonnell e Elmore propõem uma classificação para po- comportamentos
líticas públicas em geral. Essa classificação genérica não pode conhecimentos e
ser aplicada diretamente em políticas públicas de eqüidade atitudes relativas
de gênero, cuja maioria deveria visar, necessariamente, uma a mulheres e homens
mudança social sistemática. na sociedade

Revista Brasileira de Educação 31


Nelly P. Stromquist

Se a sutileza das diferenças de gênero na so- vidos também estão sendo estudados e incluem Ar-
ciedade estão intimamente ligadas à influência da gentina, Burkina Faso, Sri Lanka, Uruguai, Coréia
ideologia e do discurso, a teoria feminista argumen- do Sul e Zimbabwe.4
taria que as políticas públicas são necessárias a fim De acordo com a visão da maioria dos gover-
de modificar as práticas pelas quais as escolas criam nos, o problema chave na educação das mulheres
o gênero e preparam estudantes tanto do sexo mas- é essencialmente o de acesso — ou seja, “garantir
culino como feminino para a paternidade, a ma- uma oportunidade igual para as mulheres em todos
ternidade e a vida doméstica. As políticas públicas os níveis de educação”. Eles também reconhecem
deveriam também desenvolver alternativas para a a necessidade de lhes assegurar um acesso adequa-
divisão sexual convencional de trabalho na família do ao treinamento, à ciência e à tecnologia. Quan-
nuclear e na economia (Deem, no prelo). Com a do se considera o conteúdo educacional, eles exi-
finalidade de apoiar essa dupla de objetivos, deve- girão, sem grande relutância, a eliminação de este-
riam se promover pesquisas, em particular estudos reótipos sexuais de livros didáticos e outros mate-
qualitativos da educação, a fim de tornar transpa- riais educativos. A ênfase no acesso feminino à ins-
rentes o “submundo sexual da educação”, através trução e às habilitações fornecidas pela educação
de linguagem e provocação sexual e racialmente traz em seu bojo o pressuposto de que escolas se-
abusivas, comportamento condescendente para com jam “instituições neutras, as quais proporcionarão
estudantes do sexo feminino e noções racistas de conhecimentos às mulheres da mesma forma que
feminilidade e masculinidade (Arnot, 1993). Em aos homens e que estes serão de igual valor para
outras palavras, são obrigatórias as políticas públi- ambos os sexos” (Kelly, 1988, p. 12).
cas construtivas. Consciente ou inconscientemente, são evita-
As políticas públicas de gênero podem ser de dos, de maneira constante, os temas curriculares
três tipos, em termos de seu alcance: as de enfoque mais complexos como a modificação dos modelos
genérico contra discriminação (cobrindo todas as de conhecimento transmitidos e a inclusão de no-
áreas, não apenas a da educação), as específicas para vas visões de uma sociedade com maior eqüidade
a área educacional, mas referindo-se às mulheres de gênero. Este fato ocorre não apenas nos níveis
apenas por implicação nas mencionadas políticas, mais baixos de instrução, mas também no nível uni-
e as que se referem especificamente à educação das versitário. O resultado é que o conhecimento obti-
mulheres. As genéricas contra a discriminação são, do nessas instituições não chega sequer a tocar as
obviamente, coercitivas por natureza. As específi- mensagens ideológicas e as práticas educacionais
cas para a área educacional e as enfocadas nas mu- que reproduzem as identidades femininas e mas-
lheres em especial podem ser de coerção, de apoio culinas. Por exemplo, textos econômicos em nível
ou construtivas. de faculdade invocam modelos de “excesso de pro-
cura” ocupacional ou modelos estatísticos de dis-
Políticas públicas de gênero na
educação em âmbito nacional
4 Para um estudo comparativo de políticas públicas
Começam a emergir diversos estudos empí- educacionais entre treze países industrializados e países em
ricos sobre políticas públicas educacionais de Estado desenvolvimento, ver Sutherland e Baudoux, 1994. Para este
relativas a gênero. Esta pesquisa abrange principal- estudo, baseei-me em dados primários para todas as refe-
rências aos Estados Unidos (Stromquist, 1993a) e em dados
mente as políticas públicas em países desenvolvidos
secundários para os outros países. Estes últimos apresentam
como Suécia, Austrália, Dinamarca, Alemanha, Rei- um alto grau de variação quanto aos problemas que abran-
no Unido, Estados Unidos, França, Itália, Espanha, gem e, como resultado, os dados são inexistentes no que diz
Canadá e Hungria. Mas os países menos desenvol- respeito a vários aspectos.

32 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

criminação para explicar a renda relativamente mais cessidade de ampliar a perspectiva das estudantes,
baixa das mulheres, contudo não oferecem uma ex- salientar sua participação e sua realização, prover
plicação para o fato das mulheres ou das minorias suas necessidades, aumentar sua confiança na ma-
continuarem a adquirir as habilitações tradicionais temática e garantir conteúdo, práticas, processo e
que irão provocar o mencionado excesso de procura ambientação de ampla abrangência (1993, p. 174),
ocupacional e em explicar as escolhas ocupacionais mas evita tocar em qualquer política pública de sig-
como resultado de um comportamento de super- nificado contestatório.
valorização por parte das pessoas, com base em Desconsiderando-se níveis econômicos de de-
preferências de origem exterior, tais como tecno- senvolvimento e filosofia política (esta última en-
logias, talentos individuais e instituições (Feiner e caminhando-se, de forma generalizada, para uma
Roberts, 1990). Quando se desenvolvem políticas uniformização, em especial no estado democrático
públicas para aumentar o número de estudantes do com economia de mercado), todos os países apre-
sexo feminino em cursos de matemática e ciências, sentam fortes semelhanças nas condições de educa-
o problema se estrutura sobre a reduzida represen- ção para as mulheres e para os homens. Entre es-
tação feminina em carreiras não tradicionais. Essa sas semelhanças destacam-se as seguintes: a) seus
visão condiciona o problema a uma questão de re- sistemas educacionais estão passando por um pro-
sultado de escolhas individuais e de realização, des- cesso de contínua expansão; b) com o aumento cres-
viando a atenção do setor de serviços, que é a maior cente de admissões, também há uma tendência de
área de emprego para mulheres (Yates, 1993). aumento na participação educacional de estudan-
A área de conteúdo educacional — ou currí- tes do sexo feminino; c) na maioria dos países, os
culo — deveria ser da maior importância no desen- livros didáticos continuam a apresentar estereóti-
volvimento de políticas públicas de gênero. Confor- pos sexuais; d) os professores tendem a evidenciar
me comenta Connell, “o quanto e quem (isto é, o expectativas mais baixas em relação às meninas e
acesso) não podem ser separados do quê”. Em suas a tratá-las de forma diferenciada dos meninos; e)
próprias palavras: embora existam muitas professoras, poucas mulhe-
res são administradoras; f) existem poucas mulhe-
Cada maneira particular de construir o currículo
res em posições administrativas nas universidades;
(isto é, de organizar o campo de conhecimento e de-
g) ainda persiste uma grande concentração de mu-
finir o que deve ser ensinado e ser aprendido) traz em
lheres nas áreas de estudo tradicionalmente femi-
seu bojo efeitos sociais. O currículo fornece poder e
ninas e uma baixa representatividade em campos
o retira, autoriza e desautoriza, reconhece correta ou
importantes para o desenvolvimento nacional, tais
erradamente grupos sociais diferentes, seus conheci-
como agricultura, ciência e tecnologia e, como con-
mentos e suas identidades. Por exemplo, o currículo
seqüência, persiste a segregação ocupacional e o
desenvolvido em instituições acadêmicas controladas
diferencial de renda entre homens e mulheres; h)
por homens tem, das mais diversas maneiras, autori-
quase universalmente, as mulheres apresentam um
zado as práticas e as experiências masculinas, margi-
percentual mais alto de analfabetismo.
nalizando as femininas” (Connell, 1994, p. 14).
No Brasil, também existem posições de pari-
A despeito da importância do conteúdo, a re- dade de gênero em todos os níveis de educação, mas
forma curricular — nos poucos casos em que é ten- os efeitos compostos de gênero, residência rural,
tada — mostra-se dependente de estratégias de as- etnia (o ser negro), criam desvantagens educacio-
similação. Ao examinar o relatório da Comissão de nais substanciais.
Escolas de 1987, que apresentou a Política Nacio- O engajamento dos Estados em trabalhos com
nal para Educação Feminina nas Escolas Australia- o objetivo de aumentar a consciência feminista das
nas, Yates descobriu que o relatório aponta a ne- mulheres adultas é muito limitado. Existe um for-

Revista Brasileira de Educação 33


Nelly P. Stromquist

te paralelo entre o tratamento de jovens na escola nero direta ou indireta — esta última incluindo a
e mulheres em programas educacionais para adul- colocação de condições não necessárias para um
tos: ambos são apolíticos, ampliando e promoven- cargo, mas com tendência a serem preenchidas mais
do definições convencionais de feminilidade e mas- dificilmente pelas mulheres do que pelos homens,
culinidade. Em termos genéricos, muitas das polí- tais como anos de experiência de trabalho no exte-
ticas públicas governamentais continuam a ver as rior. A Parte III desse ato estipula acesso igual à
mulheres como recipientes passivas do bem-estar instrução, instalações e cursos para as mulheres. O
social. Sendo assim, as políticas públicas são orien- Ato também cria uma Comissão de Oportunidade
tadas em sua maior parte para as mulheres de bai- Igual para trabalhar em prol da eliminação da dis-
xa renda da área urbana, da área rural ou autócto- criminação, promover igualdade entre homens e
nes, a fim de que elas possam melhorar suas habi- mulheres e monitorar a implementação do ato. A
litações na costura, na nutrição, na saúde, no pla- Comissão pode desenvolver investigações, prestar
nejamento familiar e no artesanato, e para que seus assistência a pessoas a fim de evitarem discrimina-
filhos possam ter melhores oportunidades de vida. ção e estabelecer pesquisas. O orçamento da Comis-
Essas políticas públicas refletem a propensão do são é pequeno e foi reduzido em termos reais nos
Estado em prover bem-estar social para a maioria últimos anos (Sutherland, 1994).
das mulheres carentes, mas não de proporcionar Em 1977, os três governos do Reino Unido
autonomia, nem a estas, nem às mulheres como um deram expressão ao seu compromisso para com a
grupo. Com escassas exceções — casos em que edu- igualdade de oportunidade e de condições na edu-
cadores feministas se posicionaram dentro da bu- cação ao acrescentar ao Green Paper on Education
rocracia estatal, como na Índia e na Argentina, os in the Schools de 1977 um documento subseqüen-
únicos grupos que trabalham para promover uma te, o The School Curriculum, o qual visava estabe-
consciência de gênero entre as mulheres adultas lecer tratamento igual para homens e mulheres no
são as organizações de mulheres não governamen- currículo. Notadamente, as duas políticas públicas
tais (ONGs). não foram concomitantemente apoiadas por um
treinamento de professores. Algumas feministas no
Políticas públicas educacionais de Reino Unido exigiram currículos “mais abrangentes
gênero em países desenvolvidos quanto a gênero” a fim de dar maior cobertura às
A fim de concretizar as afirmações anteriores, realizações das mulheres em diversos setores, além
apresento as políticas públicas educacionais de três da exclusão de perguntas de exames que fossem
nações industrializadas com maiores detalhes. Es- genericamente sexistas. Também requisitaram o de-
ses países foram escolhidos por terem culturas pre- senvolvimento de diversas estratégias e iniciativas
dominantemente anglo-saxônicas e uma total pa- para superar os problemas de sexismo na educação,
ridade de gênero nos níveis escolares primário e entre os quais uma auto-avaliação por parte dos
secundário, permitindo assim uma análise de polí- professores (o Genderwatch é um manual para esse
ticas públicas educacionais que ultrapasse o enfoque tipo de avaliação). Essas exigências ainda não fo-
de acesso básico. ram atendidas (Deem, no prelo).
Reino Unido — Canadá —
Este país tem três sistemas educacionais sepa- Este país apresenta um interesse digno de nota
rados, os quais determinam suas próprias políticas porque é considerado, de forma geral, um dos mais
públicas: Inglaterra e País de Gales, Escócia e Irlan- adiantados no tratamento de problemas de gênero.
da do Norte. Em âmbito nacional, há uma política O governo nacional aprovou uma lei geral sobre
pública de gênero ampla, o Ato de Discriminação Direitos Iguais (incluindo a área de educação) em
Sexual de 1975, o qual proíbe discriminação de gê- 1977, a qual proíbe discriminação relativa a gêne-

34 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

ro. Uma vez que cada província é responsável pela esfera federal. O governo federal aprovou, em 1972,
educação, ocorre uma considerável variação neste um ato abrangente sobre eqüidade de gênero na
nível. Todas as províncias têm leis antidiscrimina- educação. O Título IX proíbe discriminação de es-
tórias na educação, mas apenas uma, Ontario, dá tudantes em inúmeras áreas como: admissões, re-
obrigatoriedade a programas que promovam igual- crutamento, salários, bolsas de estudo, moradia,
dade de acesso educacional. Duas províncias (Que- acesso a cursos, assistência financeira e esportes.
bec e Nova Scotia) elaboraram leis educacionais Esse mesmo título também proíbe discriminação no
abrangentes. Três províncias contam com políticas corpo de funcionários das escolas, como professo-
públicas de treinamento anti-sexista para professo- res, administradores e conselheiros. O governo fe-
res, mas este é voluntário. Dados sobre conquistas deral também passou o Ato de Eqüidade Educacio-
políticas públicas indicam que poucas províncias nal para as Mulheres (WEEA), aprovado em 1974,
se dedicaram a mudanças no programa escolar. A o qual financia governos estaduais, centros de pes-
maior parcela de progresso realizou-se em termos quisa e pesquisadores individuais para desenvolver,
de abertura de cursos de economia industrial e do- avaliar e disseminar currículos e livros didáticos,
méstica a meninos e meninas, na remoção de este- fornece serviços de treinamento prévios e no inte-
reótipos sexuais dos livros didáticos; atualmente, no rior das escolas, aperfeiçoa a orientação de carrei-
mundo francófono, considera-se a província de ras e promove a qualidade de educação para mu-
Quebec como sendo a líder na remoção do sexis- lheres. Uma outra legislação de importância, o Vo-
mo na linguagem. Seis províncias modificaram seus cacional Education Act5 se dirige à educação vo-
programas de educação superior a fim de permitir cacional e técnica, financia esforços para eliminar
que mulheres voltassem a estudar através de edu- preconceitos sexuais e discriminação, além de for-
cação à distância e programas universitários de pe- necer programas de aconselhamento para encora-
ríodo parcial ou recebendo créditos por experiên- jar a participação de mulheres em ocupações femi-
cias relevantes. Apenas duas províncias estabelece- ninas não tradicionais.
ram ajuda financeira para algumas categorias de O Ato de Educação Vocacional presta serviço
mulheres. Na educação, apenas algumas províncias a estudantes secundários e pós-graduados no siste-
direcionam-se para eliminar estereótipos sexuais, ma de educação vocacional e recebeu recursos subs-
mas a maioria delas oferece serviços de creche em tanciais para seus programas relativos a gênero. Num
instituições acima do nível secundário. Os estudos nítido contraste, o Título IX e a WEEA — que pres-
disponíveis sobre as políticas públicas canadenses tam serviço à grande maioria dos estudantes — re-
de gênero não fazem referência a recursos, mas pa- ceberam fundos muito limitados para sua implemen-
rece claro que houve uma alocação dos mesmos, tação. Durante as administrações Reagan e Bush, os
pelo menos para cursos de treinamento de profes- tribunais redefiniram a intenção da legislação refe-
sores e ajuda financeira para mulheres (Baudoux, rente ao Título IX e o reduziram consideravelmen-
1994). te, ao interpretar que sua autoridade se aplicava ape-
Estados Unidos — nas a programas e não a toda instituição ou univer-
Este país aprovou políticas públicas relaciona- sidade recebendo fundos federais. A WEEA deveria
das a gênero em âmbito federal e estadual. Como receber 49 milhões de dólares por ano. Em seu ponto
no caso do Canadá, os EUA apresentam uma con-
siderável variação quando se trata dos estados, com
treze deles contando com leis que proíbem a discri- 5 Os atos sobre educação vocacional foram promul-
minação em todos os níveis de educação e 31 ape- gados três vezes. Inicialmente conhecidos como Ato Voca-
nas nos programas de educação primária e secun- cional Educacional, a versão atual é chamada Carl Perkins
dária. Aqui, enfocarei apenas políticas públicas na Vocational and Applied Technology Act of 1990.

Revista Brasileira de Educação 35


Nelly P. Stromquist

máximo, recebeu dez milhões e, a partir daí, a quan- Políticas públicas educacionais de gênero
tia diminuiu para apenas um milhão por ano até che- nos países em desenvolvimento
gar a meros quinhentos mil em 1993 (Stromquist, Países em desenvolvimento apresentam sérios
1993a). Sob o governo Reagan, o Estado se mobili- problemas quanto à participação de mulheres na
zou, direta e indiretamente, contra o feminismo e escola, mesmo nos níveis básicos de educação. Na
outras causas progressistas e então as feministas pre- América Latina, o acesso de meninas e mulheres à
cisaram usar o Estado não mais para promover novas educação está alcançando paridade em termos de
conquistas e sim para defender as previamente al- coeficientes brutos, mas a disparidade na instrução
cançadas (Nelson e Johnson, 1994). Em 1994, du- primária entre meninos e meninas atinge 33 pon-
rante os anos de tendência mais socializante da ad- tos percentuais na África e 18 pontos percentuais
ministração Clinton, a WEEA foi novamente auto- na Ásia. No nível secundário, as disparidades atin-
rizada a receber cinco milhões de dólares por ano. gem uma diferença de 37 e 26 pontos percentuais
Essa soma, para cobrir um país com quinze mil dis- para África e Ásia, respectivamente (ONU, 1991,
tritos escolares locais, três mil e quinhentas faculda- p. 50-53). No Brasil, como em muitos outros paí-
des e universidades e nove mil instituições de edu- ses da América Latina, existe uma relativa parida-
cação pós-graduada, representa um investimento de de entre meninos e meninas, na educação. Curio-
181 dólares por instituição. samente, no Brasil, as mulheres têm um percentual
O caráter das políticas públicas de gênero pro- de matrículas ligeiramente mais alto que o dos ho-
mulgadas nos três países desenvolvidos discutidos mens nos níveis secundários e terciários de instru-
acima proporciona o seguinte panorama: no Rei- ção. Muitas dessas mulheres se matriculam em es-
no Unido, as políticas públicas educacionais de gê- colas para professoras e outras continuam sua edu-
nero são em sua maioria de coerção e, em menor cação como um meio de ter condições de reduzir a
amplitude, de construção e de apoio. No Canadá, discriminação de gênero na força de trabalho. Se-
elas cobrem toda a gama: são de coerção, apoio e gundo o ECLAC (1995), a discriminação salarial na
construção. Os Estados Unidos se dedicam mais às região é equivalente a cerca de quatro anos de edu-
de coerção e, em menor escala, às de construção. cação formal (isto é, a mulher deve ter quatro anos
Com exceção do Ato Vocacional, o qual autoriza de educação a mais do que o homem para ganhar
a indicação de funcionários em escala distrital para o mesmo salário).
monitorar e promover a implementação dessa legis- As políticas públicas educacionais do Sri Lan-
lação, os Estados Unidos não tem aprovado políti- ka e da Argentina apresentam interesse porque esses
cas públicas de apoio. países são dos mais adiantados, no Terceiro Mun-
Deveria se notar que nenhum desses três paí- do, em termos de educação.
ses, nem outros nos quais se encontram disponíveis Sri Lanka —
estudos de política pública de gênero (Sutherland Este país evidenciou admissões na educação
e Baudoux, 1994), estão engajados em uma discri- primária e secundária bastante próximas a uma pa-
minação positiva, uma política pública que dê pre- ridade de gênero desde o início da década de ses-
ferência a membros de um grupo, para educação, senta. Orientando-se por essa paridade, o governo
empregos ou promoção, sobre pessoas com iguais concluiu não serem necessárias políticas públicas
ou melhores qualificações. No máximo, os Estados específicas de gênero para assegurar o acesso de
se dedicaram a ação positiva ou ação afirmativa, meninas e mulheres à educação, passando a consi-
isto é, o fato dos empregadores considerarem a pro- derar a implementação de políticas públicas neutras
moção de oportunidades iguais a mulheres e mino- em relação a gênero. O Estado admite dificuldades
rias étnicas (Carter, 1988). de acesso de meninas à educação primária nas po-
pulações muçulmanas na Província Leste e entre os

36 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

trabalhadores das plantações de chá de origem sul- mulher na família, mas também na história, na eco-
indiana. O Estado nota que os meninos abandonam nomia, na política e na sociedade; conduzindo pro-
a escola mais do que as meninas, em especial no jetos de pesquisa a fim de obter um conhecimento
nível secundário o que, presumivelmente, os torna amplo, sistemático e permanente das condições das
mais desfavorecidos do que as meninas. Os livros mulheres na educação e criando um banco de da-
didáticos não foram modificados, embora pesqui- dos sobre os problemas enfrentados pelas mulhe-
sas tenham detectado estereótipos sexuais nos mes- res na esfera educacional (Ministerio de Cultura y
mos. O governo do Sri Lanka também reconhece Educación, 1992). O PRIOM implementou seu pro-
que as mulheres podem ser admitidas em apenas grama em vinte províncias. Também estabeleceu
uma das três faculdades de agricultura do país e, ligações com as Unidades de Mulheres nos gover-
nessa única faculdade que lhes permite o ingresso, nos das províncias, com as universidades e com as
elas representam apenas 20% do total das matrí- ONGs femininas. Em 1995, exatamente quando
culas. Também nota que 75% das mulheres nos co- o PRIOM se encaminhava para integrar o novo cur-
légios técnicos são admitidas em cursos comerciais rículo de gênero nos esforços em andamento para
e as mulheres em cursos vocacionais são admitidas uma melhoria dos currículos nacionais em outros
em aulas de secretariado e costura. Como o Estado aspectos, a Igreja Católica da Argentina atacou
segue uma política pública neutra em relação a gê- seu trabalho, acusando a coordenadora do PRIOM
nero, não se destinam fundos para direcionar esfor- de estar tentando destruir a família e introduzir a
ços para problemas de gênero (Jayaweera, 1994). homossexualidade nas escolas. Um dos motivos
Incidentalmente, o caso do Sri Lanka é muito seme- principais da oposição da Igreja — à qual o gover-
lhante ao da Hungria em seus dias de socialismo. no respondeu com o fechamento do programa —
Por terem alcançado paridade na instrução primária era que o trabalho do PRIOM estava comprometi-
e secundária, declarou-se que as mulheres húngaras do com as questões de educação sexual e o contro-
não enfrentavam problemas na área de educação. le das mulheres sobre seus próprios corpos.
Argentina —
Como parte do retorno da Argentina ao regi- Políticas públicas de gênero na
me democrático, o governo mostrou-se muito coo- educação em âmbito internacional
perativo para com as exigências da sociedade civil.
Em 1991, criou um Programa Nacional para a Pro- As políticas públicas educacionais que afetam
moção de Oportunidade Igual para Mulheres na as mulheres são moldadas através de uma grande
Área Educacional (PRIOM), estabelecido median- variedade de meios: as prioridades institucionais dos
te um acordo entre o Ministério de Educação e organismos bilaterais e multilaterais, as conferên-
Cultura e o Conselho Nacional das Mulheres. Este cias internacionais tratando de problemas de desen-
programa identificou e implementou uma agenda volvimento (nas quais a educação costumeiramente
abrangente: aumentando a consciência de gênero e surge como um fator importante) e as diversas con-
fornecendo treinamento para professores, estudan- ferências internacionais sobre a mulher (já se reali-
tes e equipe administrativa; fornecendo programas zaram quatro destas e em todas a educação foi um
especiais de todos os níveis e modelos a fim de me- subtema persistente).
lhorar o potencial educacional das mulheres; for-
necendo orientação vocacional, profissional e edu- Financiamento internacional de
cacional para incentivar a participação e o desem- organismos bilaterais e multilaterais
penho das mulheres na vida política, profissional e Ao se discutir políticas públicas educacionais
social; introduzindo temas femininos nos livros di- nos países em desenvolvimento (e de maneira cres-
dáticos a fim de descrever não apenas o papel da cente também políticas públicas para outros servi-

Revista Brasileira de Educação 37


Nelly P. Stromquist

ços sociais), é necessário fazer referência à ajuda tratação de mais mulheres como assistentes e pro-
externa. Nestes dias de retração econômica em fessoras a fim de encorajar os pais a matricularem
muitos dos países desenvolvidos, a ajuda interna- suas filhas (cuja sexualidade passa a não correr pe-
cional para o desenvolvimento provê o meio cru- rigo). Apenas em um punhado de casos, os livros
cial para se engajar em outros esforços além dos didáticos foram revisados sob o enfoque de este-
que suprem a educação regular. Nos países mais reótipos sexuais e corrigidos de forma a eliminá-los.
pobres, a ajuda internacional é necessária até para O conteúdo anti-sexista em livros e em atitudes ra-
a expansão das escolas. Existem dois conjuntos ramente foi incentivado (Stromquist, 1994). No ge-
principais de atores fornecendo essa ajuda externa: ral, esses esforços se acomodam ao patriarcado em
as organizações bilaterais e as multilaterais — es- vez de desafiá-lo. É importante dizer que esses es-
tas últimas são essencialmente as que pertencem ao forços não foram codificados como políticas públi-
sistema da ONU. cas nacionais, embora representem as medidas que
Organismos de desenvolvimento bilateral re- mais se aproximam da existência de uma política
presentam seu próprio Estado doador. As multila- pública. Na verdade, como esses projetos são, fre-
terais — essencialmente as da família da ONU — qüentemente, os únicos voltados para problemas de
refletem também seus Estados membros.6 O papel gênero, alguns observadores confundem projetos
mediador dos membros das equipes desses organis- pontuais com política pública nacional (ver, por
mos pode fornecer uma definição maior quanto à exemplo, o recente trabalho de King e Hill, 1993).
natureza dos problemas internos do setor educa- Existem algumas ocorrências — certamente
cional e resultam em maior ou menor apoio para não muitas — de projetos promovendo o aumento
programas e projetos de gênero. O poder de ação de poder ou a autonomia de mulheres adultas. Es-
desses organismos na introdução de esforços vol- tes projetos, com raras exceções, estão sendo con-
tados para gênero está relacionado ao tamanho de duzidos por ONGs de mulheres (Stromquist, 1994).
suas contribuições e a outras formas de apoio po-
lítico doado aos países receptores. Conferências internacionais
No presente momento, os países desenvolvi- Através da realização de conferências interna-
dos evidenciam muito interesse em expandir o aces- cionais são criadas importantes formas de apoio
so das meninas às escolas primárias. Com esse ob- para o trabalho em problemas de gênero. Além dis-
jetivo, um certo número de países está — com aju- so, essas conferências atingem tanto países desen-
da externa — envolvendo-se em esforços como a volvidos como em desenvolvimento. As várias con-
construção de escolas mais próximas às moradias ferências mundiais da ONU sobre a mulher (Mé-
dos estudantes, a eliminação ou redução de men- xico, 1975; Copenhague, 1980; Nairóbi, 1985; Bei-
salidades escolares para meninas, eliminação da ne- jing, 1995) serviram para definir mais claramente
cessidade de uniforme (que prejudica as famílias a natureza e a gama de problemas que afetam as
mais pobres), a construção de mais escolas com re- mulheres e propiciaram a elaboração de programas
sidência para adolescentes do sexo feminino e a con- e políticas públicas sensíveis a gênero. Durante es-
sas conferências mundiais sobre a mulher, às quais
compareceram funcionários do Estado, as mulhe-
res das ONGs realizaram conferências paralelas que
6 O filósofo Stephen Toulmin chama a ONU de “cartel
denominaram de “contra-encontros”, nas mesmas
de governos de Estado” (1995, p. 4), uma vigorosa descri-
cidades, e apresentaram suas deliberações e reco-
ção que acentua o fato de certos Estados influenciarem a
política pública não apenas na área doméstica como tam- mendações a seus representantes junto ao Estado,
bém no exterior, a despeito de esforços retóricos de mini- freqüentemente com sucesso considerável em ter-
mizar a “intervenção” em outros países. mos de conseguir que seus pontos de vista fossem

38 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

incorporados nos documentos oficiais finais. Na entre as nações. Um dos problemas em comum é a
opinião da historiadora Francisca Miller, o legado identificação da violência doméstica como um pro-
mais importante da Década da ONU para a Mu- blema social amplamente difundido que afeta as
lher foi o fato de os partidos políticos e governos mulheres.
em busca de legitimidade agora considerarem van- Desde o Ano Internacional da Mulher, em
tajoso abordar problemas da mulher (1981, p. 188). 1975, os governos assumiram compromissos a fim
Um dos documentos mais poderosos da ONU, de garantir igualdade de acesso a todos os mode-
a Convenção sobre a Eliminação de Todas as For- los e níveis de educação e a reformular o conteú-
mas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), do e a prática da educação de forma a torná-lo
em vigor desde 1981 e ratificado por 148 Estados mais sensível ao gênero. Pode-se discernir algumas
em julho de 1995 — o Brasil é um dos países que conquistas quanto ao acesso à instrução, mas não
retificou o CEDAW —, é um acordo com obriga- está claro até que ponto estas não passam de sim-
ções legalizadas e representa a mais forte acusação ples produtos de uma propensão do sistema edu-
contra o domínio patriarcal, ao investir contra vio- cacional em crescer com o tempo. Muitas das re-
lência conjugal, casamentos precoces e discrimi- comendações educacionais (uma forma de políti-
nação sexual na educação e no trabalho. Embora ca pública) das diversas conferências mundiais so-
muitos países tenham expressado suas reservas so- bre a mulher continuam não atendidas, mas esses
bre certos artigos dessa Convenção, existe uma problemas estão sendo definidos, de forma cres-
pressão mundial crescente para a implementação da cente, em termos muito mais precisos e nítidos,
mesma. A Conferência de Direitos Humanos em assim como discutidos por grupos sempre maiores
Viena (1993) agiu como uma importante força de de formadores de opinião.
pressão na renovação de ímpeto para a CEDAW e Embora tenha sempre existido o fenômeno de
conseguiu que os direitos da mulher fossem incluí- contágio social entre países, este se acelerou em vir-
dos entre os direitos humanos. As recentes confe- tude da criação formal de blocos econômicos. Em
rências por todo o mundo, como a de Meio Am- 1982, a Comissão Econômica Européia autorizou
biente e Desenvolvimento (Rio, 1992), População a formação de um Conselho para a Paridade entre
e Desenvolvimento (Cairo, 1994), Desenvolvimento a Mulher e o Homem, a níveis nacionais. Tal polí-
Social (Copenhague, 1995) e a Quarta Conferên- tica pública levou a Itália e a Espanha a estabele-
cia sobre a Mulher (Beijing, 1995)7 foram de espe- cerem organismos desse tipo. O Tribunal de Justi-
cial importância para manter os problemas de gê- ça Europeu, criado para impor obediência ao Tra-
nero presentes nas agendas governamentais como tado de Roma, toma decisões que impõem obriga-
também para desenvolver laços de solidariedade ções aos estados membros. Seu tratamento de pro-
blemas como igualdade salarial, pensões e aposen-
7
tadoria teve repercussões na legislação de outros
Os vários esforços internacionais nas linhas de gê-
países europeus. A Corte Européia de Direitos Hu-
nero sempre foram iniciados por grupos de mulheres, geral-
mente mulheres nas redes de desenvolvimento (WID) den- manos, em Estrasburgo, vem abordando questões
tro das ONGs (Maguire, 1984). A Convenção para a Eli- de discriminação sexual e racial de imigrantes. As
minação de Todas as Formas de Discriminação recebeu um decisões desses organismos supranacionais têm (e
forte apoio após o encontro de 1975, no México, durante continuará tendo) efeitos indiretos na eqüidade de
o Ano Internacional da Mulher. As idéias contidas na con- gênero na educação.
venção se originaram de esforços da Comissão da Mulher
A conferência de Nairóbi, em 1985, encerrou
na Organização dos Estados da América desde 1920. A
Quarta Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995) a Década da ONU sobre a Mulher com um do-
incluiu, pela primeira vez, delegações de jovens, facilitan- cumento, Estratégias para o futuro (FLS), o qual
do assim a criação de uma nova geração de feministas. identifica áreas de ação em setores específicos tais

Revista Brasileira de Educação 39


Nelly P. Stromquist

como emprego, educação, saúde, agricultura e in- Motivos para diferenças entre políticas
dústria, para serem conduzidas pelos governos na- públicas nacionais e internacionais
cionais e organismos internacionais. Especifica-
mente na área de educação, o FLS apresenta mui- Políticas públicas supranacionais originárias
tas recomendações sobre acesso, livros didáticos, de blocos econômicos envolvem uma legislação, em
treinamento de professores, programas de alfabeti- sua maior parte, de coerção e, em menor escala, de
zação para mulheres, educação vocacional e acon- apoio. As recomendações aceitas em encontros in-
selhamento de carreira. Esse valioso conjunto de ternacionais propõem todos os três tipos de legis-
recomendações a ser implementado pelas nações lação, com esforços que vão de coercitivos a cons-
do mundo revela, dez anos depois, apenas um dé- trutivos. Já as políticas públicas nacionais tendem
bil teor de implementação. A maioria dos relató- a se concentrar em políticas públicas coercitivas ou,
rios feitos para avaliação do desempenho do país como tem sido denominadas “políticas públicas de
no FLS concentra-se em números relativos a ad- gênero neutras”.
missões nos três níveis de educação. Certamente, David (1981) comenta que, sob uma perspec-
cresceram as admissões, embora persista uma con- tiva feminista, as regras da política pública não po-
centração de gênero em certos campos de estudo. dem ser identificadas “sem compreender o motivo
Não fica claro até que ponto esse crescimento de dos contornos dos fenômenos envolvendo a criação
admissões é simplesmente uma manifestação da e a manutenção do gênero” (p. 116). Ela argumenta
inexorável expansão da instrução: à medida que os que a análise baseada em uma abordagem de eco-
pais recebem mais educação, querem mais educa- nomia política pública pode ser eficaz para forne-
ção para seus filhos. A conferência de Beijing, em cer explicações sobre políticas públicas de Estado.
1995, reiterou a recomendação do FLS em um Dentro dessa estrutura, caberia a pergunta: “Por
novo documento, Plataforma de ação. Este do- que as políticas públicas de gênero sugeridas em
cumento apresentou um conjunto de recomenda- escala internacional são abrangentes e portanto
ções mais completo e coeso, tornando mais rígidos mais enfocadas em uma mudança do sistema social
os mecanismos de aplicação e monitoria. Embora do que as políticas públicas nacionais?” Talvez a
identificasse unidades dentro da ONU e dos gover- explicação se encontre na ausência de uma obriga-
nos para servirem de mecanismos monitores, não ção legal contida nessas recomendações interna-
teve sucesso em estabelecer mínimos financeiros cionais. Ao endossar as diversas políticas públicas
para garantir a implementação. que são recomendadas, os Estados assumem a apa-
Apesar de tudo, as conferências internacionais rência de ser cooperativos e sensíveis ao gênero. No
têm um enorme valor como fórum público, com clube das nações, ganham importância por se mos-
muita participação e troca de pontos de vista. Es- trarem progressistas; entre seus próprios cidadãos,
ses fóruns internacionais atraem a atenção para a são vistos como democráticos e justos. O endosso
mulher e trazem a público um enfoque altamente de declarações de conferências internacionais não
visível sobre o trabalho dos Estados. Em geral, es- obriga os países a se empenharem em uma imple-
ses encontros terminam com as recomendações — mentação e portanto servem ao papel mais impor-
sejam elas consensuais ou duramente disputadas. tante, o de legitimação, em vez do papel corretivo.
Embora recomendações cujo acordo foi feito duran- Na área doméstica, os países se mostram mais
te conferências internacionais não possuam valor cautelosos. Embora estejam respondendo, de for-
legal — em oposição àquelas assinadas em conven- ma crescente, à pressão feminista ao aprovar uma
ções internacionais — essas declarações oficiais po- legislação de eqüidade de gênero, as evidências su-
dem ser usadas como pontos de apoio. gerem certas características comuns nessas leis.
Freqüentemente, a legislação apresenta parâmetros

40 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

estreitos, concentrando-se mais na proibição de quais exigem recursos estatais regulares e podem,
comportamentos indesejáveis do que no desenvol- eventualmente, ameaçar o acesso de alguma das ou-
vimento de atitudes e de conhecimento significati- tras instituições do Estado a esses recursos. Revi-
vos para a construção de uma ordem social alter- sando a legislação de gênero nos países nórdicos,
nativa. As poucas medidas legislativas visando ob- Eduards et al. (1985) nota que a maioria das leis de
jetivos construtivos tendem a oferecer recursos li- gênero promulgadas na região são neutras quanto
mitados, decididamente desproporcionais à neces- ao gênero, formas passivas de legislação que ofere-
sidade global. Realizaram-se inúmeros esforços para cem as mesmas oportunidades aos dois sexos, mas
garantir uma legislação de apoio através da criação evitam conflito. A análise de Gelb e Palley sobre cinco
de unidades de mulheres ou organizações similares. iniciativas relativas a gênero nos Estados Unidos che-
Há necessidade de maiores estudos sobre os fundos gou à conclusão de que as leis tem sucesso quando
e a autoridade que essas leis possam proporcionar; a mulher se submete “às regras políticas do jogo”.
a evidência existente revela que tais unidades têm Eles apontam e descrevem quatro dessas normas:
sido, em geral, pouco beneficiadas em termos de 1. serem reconhecidas como legítimas;
pessoal, recursos e influência global. As exceções 2. enfocarem problemas emergentes;
são raras: entre elas está o Canadá, que estabeleceu 3. fornecerem informação e se concentrarem
um Ministro Responsável pela Posição da Mulher, na mobilização de aliados;
na esfera federal, e várias unidades de mulheres ope- 4. definirem a situação pela manipulação de
rando na esfera das províncias, além das unidades símbolos favoráveis à sua causa.
semelhantes existentes em países escandinavos.8 Esses autores descobriram que a legislação re-
Por que se tem um número maior de leis coer- lativa a gênero de menor sucesso nos Estados Uni-
citivas do que construtivas no âmbito nacional? Exis- dos — o Título IX — mesmo sendo meramente
tem vários motivos. Leis coercitivas são considera- coercitiva, criou problemas quando a oposição
velmente menos dispendiosas do que as dos dois ou- sentiu que o acesso das meninas aos esportes po-
tros tipos. Elas podem ser ou não seguidas de meca- deria resultar em políticas públicas de mudança de
nismos de execução e, se as unidades encarregadas papel, “os quais parecem produzir mudança no
desses mecanismos tiverem uma autoridade limita- papel feminino dependente de esposa, mãe e dona
da, a implementação das mesmas ficará seriamente de casa, contendo um potencial para maior liber-
enfraquecida. As leis também podem ser formuladas dade sexual e independência em variados contex-
de forma que a ação seja limitada. Segundo a obser- tos” (1982, p. 6). Um ponto semelhante foi ressal-
vação de Meehan e Sevenhuijsen sobre os atos de tado por Nelson (1984), o qual estudou o proble-
eqüidade de gênero aprovados no Reino Unido e nos ma de violência contra a criança nos Estados Uni-
Estados Unidos, essas leis individualizam a igualdade dos. Ela observou que, embora alguns aspectos re-
de oportunidades de modo a haver necessidade de lativos à violência contra a criança não apresentas-
uma interminável luta da mulher para que ocorram sem ameaças ao status quo, a exemplo as “leis de
até os mais insignificantes tipos de mudança. denúncia de assédio”, outras, por exemplo as que
As leis de apoio são ainda mais ameaçadoras autorizam “medidas de custódia protetora”, tra-
porque estabelecem organismos governamentais, os ziam todo o tipo de implicações e conexões com
problemas maiores como pobreza, racismo e pa-
triarcado. Em conseqüência disso, a legislação re-
8 O ministro federal é apoiado por um departamento
ferente à violência contra a criança que foi apro-
chamado Status of Women Canada, o qual se reporta dire-
tamente a ele. É interessante notar que essa posição minis- vada era muito limitada. Nelson atribui esses re-
terial existe desde 1971 e o SWC, desde 1976, precedendo sultados à existência de um Estado liberal, o qual
o movimento feminista. se predispõe a apoiar mudanças gradativas e não

Revista Brasileira de Educação 41


Nelly P. Stromquist

radicais. Ela também lançou um desafio às femi- dos casos, resultar apenas em sucessos limitados. Mas
nistas, declarando: a lei poderá ser um instrumento de valia para mudança
se for bem estruturada e aplicada, se for apoiada por
Elas podem apoiar mudanças incrementais, ali-
pressão política pública e suplementada por ação po-
mentando alguma esperança de sucesso, mas saben-
sitiva e por políticas públicas econômicas e sociais
do que seus esforços não serão proporcionais ao pro-
generalizadas que fortaleçam a posição da mulher.
blema. Ou podem apoiar uma mudança mais abran-
gente cujo momento nunca chegará. No Estado libe- Uma variedade de agentes sociais têm surgido
ral, o “bom” habitualmente triunfa sobre o “melhor”, em apoio do assuntos de gênero na sociedade em
pelo menos por algum tempo (p. 137). geral e na educação em particular. Entre eles se in-
cluem coalizões entre ONGs (domésticas e interna-
Leis construtivas na educação requerem trei-
cionais), como também atores individuais estrate-
namento para professores com orientação quanto
gicamente situados em instituições estatais (minis-
ao gênero,9 desenvolvimento de currículo e elabo-
térios e outros departamentos), organismos bilate-
ração de material curricular, livros didáticos novos
rais e multilateriais e universidades. Também tem
ou suplementares, disseminação do novo material
sido importantes fontes de apoio os elementos mas-
educacional e pesquisa para identificar novos pro-
culinos simpatizantes e em posições de liderança nos
blemas relativos à experiência de gênero na escola
organismos internacionais de desenvolvimento.
e na sociedade ou para avaliar o impacto da legis-
lação existente. É evidente que a legislação constru-
Feministas e ONGs
tiva requer consideráveis recursos financeiros. Num
nítido contraste, a legislação coercitiva permite que
As feministas têm utilizado dois canais para
o Estado não apenas se mostre simpático, moder-
promover mudanças educacionais: 1) pressionar o
no e cooperativo, mas também obtenha esses be-
Estado a fim de conseguir melhorias na educação
nefícios de percepção com um investimento muito
formal pública; 2) estabelecer e expandir ONGs
reduzido.
independentes, operadas por mulheres. Cada canal
apresenta possibilidades diferentes: o Estado é uma
Promotores de política
das instituições mais fortes na sociedade, sendo as-
pública de gênero
sim capaz de atingir um grande número de pessoas,
mas é relutante no engajar-se em ação substancial-
Carter (1988) observa que:
mente transformadora. As mulheres em ONGs ten-
as tentativas individuais de usar a lei sem a reta- dem a ser muito mais propensas à transformação,
guarda de uma organização adequada e num contex- mas seu trabalho é realizado em escala micropolítica
to político-econômico desfavorável poderá, no melhor e limitado em sua extensão geográfica e numérica.
PNUD (1993) observou que:

9Poucos professores consideram que seja tarefa sua Até o início dos anos sessenta, a maioria das in-
alterar a divisão de gênero. Esse fato não deveria causar tervenções das ONGs eram cegas quanto ao gênero,
surpresa uma vez que os professores, como o restante da como os demais organismos de desenvolvimento. Em-
população, foram socializados dentro de conceitos tradicio- bora houvesse um pequeno número e projetos e pro-
nais de feminilidade e masculinidade. Além do mais, desco- gramas interessados em apoiar grupos de mulheres de
briu-se que os estudantes do sexo masculino se opõem à
baixa renda, as necessidades específicas da mulher em
eqüidade de gênero nas salas de aula. Estudos sobre instru-
ção primária e secundária mostram que os meninos exigem programas gerais contra a pobreza eram freqüente-
mais tempo do professor do que as meninas (Carter, 1988; mente ignoradas (p. 96).
AAUW, 1992).

42 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

Mas em termos de ações transformadoras re- ticipação e luta (Safa, 1990; Stromquist, 1993b;
lacionadas a gênero, é aceito de forma generaliza- Radcliffe e Westwood, 1993; Schild, 1994).
da que as ONGs dirigidas por mulheres funcionem A Organização da Mulher para Meio Ambien-
como organismos chave para qualquer transforma- te e Desenvolvimento (WEDO), uma coalizão de
ção social feminista (Deere e León, 1987). Alguns ativistas e acadêmicas do movimento feminista, pro-
observadores das ações executadas por grupos de moveu uma reunião especial em dezembro de 1994,
mulheres coincidem ao avaliar seu trabalho como à qual compareceram 148 mulheres de cinqüenta
um esforço consciente para redefinir e reconstituir países. Como resultado das deliberações, a WEDO
os limites entre o público e o privado e entre as es- iniciou uma “campanha global das mulheres”, de
feras políticas e a pessoal. 180 dias, destinada a chamar atenção para assun-
Dentre as ONGs de mulheres, deve-se fazer tos de gênero e para desenvolver uma lista de obje-
menção especial aos grupos de mulheres profissio- tivos, estratégias e ações. Em seu preâmbulo, o do-
nais com elevado nível de acesso às instâncias de- cumento promulgado na reunião afirmava:
cisórias do Estado. Um desses grupos é o Fórum da
Nos anos finais do século vinte, o movimento
Mulher Africana em Assuntos e Educação (FAWE),
internacional da mulher encontra-se maior, com mais
uma organização de afiliados que reúne mulheres
atividades, mais abrangente e com objetivos mais am-
em ministérios de educação, vice-reitoras de univer-
plos, mais diversificado nas linhas demarcatórias de
sidade e outros cargos de alto escalão na formula-
cultura, classe, cor, etnia, idade, orientação sexual,
ção de políticas públicas de educação. Fundada em
situação econômica, ideologias, religiões e geografia
1992 como uma ONG internacional sem fins lucra-
do que jamais aconteceu antes na história.
tivos, a FAWE procura promover investimentos na
Também está mais criativa, mais analítica, mais
educação em geral e na educação de meninas em
enfocada na luta, com maiores conhecimentos sobre
particular.
a história e as realizações da mulher, mais experiente
É importante salientar algumas diferenças de
politicamente, mais bem treinada na parte de organi-
classe social entre os grupos de mulheres. Muitas
zação e com uma visão mais ampla quanto ao tipo de
ONGs de mulheres tendem a ser dirigidas por re-
futuro que nós desejamos para meninas e mulheres,
presentantes da classe média mas, por outro lado,
meninos e homens, crianças e para nossa vida nesse
existe uma ação significativa sendo executada por
planeta no próximo século (WEDO, 1994, p. 91).
pessoas de baixa renda em comunidades urbanas
pobres. Esses últimos grupos, envolvidos em movi- As propostas colocadas pela WEDO estão en-
mentos de bairro, têm lutado para obtenção de as- tre as mais incisivas e claras na arena internacional.
sistência econômica para moradia, alimentação, em- A WEDO colocou a Secretaria da ONU e todo o seu
pregos e educação para seus filhos. Esses esforços sistema como alvo de mudança. Procurou expandir
decorrem dos interesses e necessidades coletivas das o mandato da Comissão do Status da Mulher, rela-
mulheres e se direcionam basicamente às “necessi- tivo aos chamados “assuntos de gênero”, para o pa-
dades práticas” (Molyneux, 1985; Radcliffe e West- pel mais amplo de aplicar as perspectivas de gênero
wood, 1993; Moulin e Pereira, 1994). Embora es- a todos os itens da agenda da ONU. A WEDO tam-
sas mulheres pobres não tenham rejeitado seus pa- bém requereu um orçamento anual de 300-400 mi-
péis domésticos, elas os usaram como pivôs para lhões para o Fundo Unido de Desenvolvimento da
conseguir força e legitimidade às suas demandas ao Mulher (UNIFEM) e para o Instituto de Pesquisa e
Estado. Há evidências de que, em muitos casos, es- Treinamento para a Mulher (INSTRAM) — os quais
sas mulheres levaram suas preocupações domésti- funcionavam, juntos, com cerca de dezesseis milhões
cas à arena pública, redefinindo os significados que em 1995 — apoiando uma realocação de recursos
são associados à domesticidade a fim de incluir par- (WEDO, 1994, p. 9) e requerendo mais acadêmicos

Revista Brasileira de Educação 43


Nelly P. Stromquist

e especialistas de ONGs para trabalharem com a Homens líderes em organizações de


Divisão da ONU para Promoção da Mulher. As par- desenvolvimento internacionais
ticipantes da WEDO estão convencidas de que al-
terações nas linhas de gênero exigirão “acesso maior Staudt (1985) afirma que as políticas públicas
e continuado aos recursos humanos e financeiros que de gênero são redistributivas porque, em última
o Banco Mundial e o PNUD possuem, a fim de as- análise, buscam realocar recursos entre homens e
segurar que seja alcançada e mantida a eqüidade de mulheres. As políticas públicas de gênero implicam
gênero (WEDO, 1994, p. 9). numa alteração profunda de valores e ideologias,
Ao examinar o relatório da WEDO, torna-se não apenas entre os receptores, mas também entre
evidente que existe um estado de consciência polí- o pessoal do organismo provedor.10 Nos últimos
tica de alto nível entre as participantes do movi- dez anos, os organismos internacionais de desen-
mento. Uma indicação desse estado é sua relutân- volvimento se tornaram mais sensíveis aos interes-
cia em apoiar um “enfoque em áreas específicas de ses da mulher, criando unidades de mulheres em
necessidades como educação ou emprego para me- suas organizações, subsidiando pesquisas impor-
ninas”. Elas temem que isso resulte em “isolar tais tantes e estabelecendo projetos melhores e mais
necessidades do conjunto de direitos que estabele- sensíveis ao gênero (Stromquist, 1994). A despeito
cerão o direito das mulheres aos serviços e progra- desse progresso significativo, a maioria dos profis-
mas”. A não visualização dos direitos é crítica para sionais em um bom número de organismos bilate-
o avanço e o fortalecimento da mulher (WEDO, rais e internacionais não se mostra interessado em
1994, p. 11). promover projetos que beneficiarão a mulher em
Feministas de nível acadêmico — incluindo-se especial. Devido a essas condições, a defesa dos lí-
homens nesta área — também desempenharam um deres dos organismos internacionais (que são prin-
papel significativo. Particularmente os acadêmicos cipalmente homens), têm sido uma base importan-
do Reino Unido fizeram um exame cuidadoso da te para mudança nesses próprios departamentos.
política pública governamental com relação ao gê-
nero. Sua análise foi incisiva e eles argumentaram
que a ausência de intervenção nos conflitos sexuais
10 Diversos homens em posições de liderança nas or-
ou raciais na instrução constitui um “ato político
ganizações internacionais expressaram posições que foram
significativo a favor da ordem de gênero em curso”
de amplo apoio para assuntos de gênero. Entre esses se in-
(Arnot, 1993). Nas universidades de todo o mun- clui Lawrence Summers que, enquanto economista chefe do
do, mas em especial nas dos países industrializados, Banco Mundial, produziu um artigo de grande influência e
têm surgido estudos sobre a mulher, propiciando muito citado, denominado “Investindo em Todas as Pes-
uma concepção de cultura e de conhecimentos mais soas” (1992). Um outro homem que apoia a causa da mu-
rica e mais diversificada. Avalia-se que, nos Esta- lher é Jan Pronk que, em setembro de 1990, sendo Minis-
tro do Exterior da Holanda, apresentou ao parlamento ho-
dos Unidos, existam mais de seiscentos programas
landês um trabalho denominado “Um Mundo de Diferen-
de estudos sobre a mulher. Embora não se possa ça”. Este documento endossa a autonomia como conceito
afirmar que esses programas tenham influenciado central para a melhoria das condições da mulher nos paí-
o restante das universidades, eles conseguiram le- ses em desenvolvimento (The Netherlands Ministry of Fo-
var um grande número de estudantes a adotar pon- reign Affairs, 1991). O status desses dois indivíduos, mais
tos de vista mais críticos quanto ao gênero na socie- o fato de serem homens, contribuiu para dar uma legiti-
midade substancial à noção de problemas de gênero. Note-
dade. É possível apenas conjeturar que as novas ge-
se que os trabalhos de posicionamento tanto de Lawrence
rações promoverão políticas públicas diferentes das quanto de Pronk buscaram subsídios nas contribuições fe-
realizadas no passado. ministas de sua equipe (no caso do Banco Mundial) e aca-
dêmicas (no caso da Holanda).

44 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

Mulheres em organismos ciada entre educadores progressistas e feministas


internacionais de desenvolvimento do que entre as feministas de outras disciplinas.
e organizações acadêmicas Como um todo, o feminismo ainda não dedica
atenção suficiente ao papel ideológico do Estado e
As organizações de mulheres têm desafiado tende a se concentrar em assuntos relativos a tra-
não apenas a agenda da política pública tradicio- balho (público e privado) e a outros problemas
nal, mas também o modo de fazer política tradi- tangíveis, tais como assistência à criança, saúde e
cional. Essas organizações mostraram a importân- violência doméstica.
cia da vida cotidiana (Fisher, 1993) e colocaram o
treinamento e a educação como uma prioridade Conclusões
para ajudar a mulher no que concerne a sua falta
de experiência política. Embora as mulheres te- As políticas públicas governamentais predomi-
nham se manifestado com reclamações quanto a nantes — na educação e em outros campos sociais
ações de transformação externas ao Estado (atra- — não visam promover um processo que altere as
vés de sua participação em ONGs), também foram estruturas de poder. Políticas públicas de coerção
tomadas posições importantes dentro do mesmo. facilitam a distribuição mais do que a redistribuição
Organismos bilaterais contam com mais especialis- dos bens sociais porque, embora aumentem a repre-
tas em gênero do que há dez anos atrás e, em mui- sentação dos grupos oprimidos, não despertam ne-
tos casos, estabeleceram as Unidades de Mulheres les novas compreensões e visões sociais.
(Stromquist, 1994). O papel dessas mulheres têm Conforme documentadas neste trabalho, po-
sido essencial no auxílio da formação da política dem ser fornecidas várias hipóteses alternativas para
pública de gênero desses organismos, embora suas o padrão de comportamento do Estado:
contribuições ainda não tenham sido objeto de es- 1. Uma hipótese se estrutura em teorias rela-
tudos de pesquisa. tivas à adoção e implementação de inovações e trata
Ironicamente, embora as escolas e as salas de as políticas públicas de gênero como uma ocorrên-
aula sejam amplamente aceitas hoje em dia como cia de significativa inovação organizacional. Em-
locais em que se transmitem, impõem e produzem basada em uma síntese de pesquisa persuasiva so-
cultura e ideologia, as intervenções feministas para bre a implementação de inovações, Fullan (1994)
atingir o conteúdo e a experiência da instrução afirma que se as características da inovação forem
não foram tão intensas nem tiveram o sucesso de- imprecisas, ou se os governos tiverem um grande
sejado. A idéia anti-sexista, que não ataca apenas número de burocratas incompetentes, que não pos-
o sexismo e o racismo, mas também procura en- suam capacidades de implementar a inovação den-
corajar a criação de uma ordem social alternativa, tro de seu sistema ou não contem com o conheci-
com concepções modificadas de feminilidade e mento técnico para avaliar os custos da nova prá-
masculinidade, de diferença e de poder, ainda pre- tica, a inovação a ser tentada fracassará em ser im-
cisa ser exigida de formas mais sistemáticas e ma- plementada (ver também Deble, 1988; McDonnell
ciças. Atualmente, muitos observadores conside- e Elmore, 1987). Ao revisar as várias políticas pú-
ram que a educação seja “um terreno disputado blicas de gênero, parece haver a necessidade de uma
entre aqueles que querem utilizar escolas mantidas maior clareza concernente à natureza das inovações,
pelo Estado como um meio de disciplinar, contro- mas a disposição dos Estados em operar principal-
lar e excluir grupos subordinados, frente aos que mente através de políticas públicas de coerção e de
visualizam a educação como um meio de atingir a destinar poucos recursos para todos os tipos de po-
democracia” (Weiler, 1993, p. 223). Entretanto, líticas públicas de gênero sugere que esta hipótese
essa conscientização tem sido muito mais pronun- não se encaixe na realidade.

Revista Brasileira de Educação 45


Nelly P. Stromquist

2. Uma segunda hipótese, utilizando e amplian- ria aditiva” (Agarwal, 1994), as estruturas sociais
do os conceitos de pluralismo e políticas públicas de básicas são mantidas. Numa colocação contrária
interesse de grupo propostos por Dahl (1967), ar- à posição assumida por Gelb e Palley (1982) de
gumenta que os Estados não implementarão inova- que os Estados mudam lentamente porque são li-
ções se não encontrarem pressão suficiente para que berais e preferem se envolver em mudanças incre-
o façam. Sob esta perspectiva, poderia se dizer que mentais, poderia se argumentar que estes — libe-
as políticas públicas de gênero emergiram através da rais ou não — mudam lentamente porque são pa-
pressão dos movimentos de mulheres e de feminis- triarcais e não desejam alterar um status quo que
tas mas, embora estes atores tenham encontrado con- é benéfico a seus interesses. De qualquer forma,
dições de exercer pressão para a adoção de legisla- inúmeras políticas públicas de gênero poderão ser
ção, seus pontos de apoio subseqüentes em questões formuladas, mas a ênfase em sua aprovação será
de alocação de fundos e de monitoria da política pú- nitidamente simbólica. Como resultado, a imple-
blica de implantação foram muito fracos. Um seg- mentação de políticas públicas se enfraquece pela
mento social que poderia ter servido como um po- limitada alocação de fundos e pela redução desses
deroso promotor de políticas públicas de gênero na recursos com o tempo, pela redefinição das inten-
educação — os sindicatos de professores — mante- ções legais ou pela afirmação de que o “problema”
ve-se ausente nos esforços de criar uma educação de gênero foi solucionado.
sensível ao gênero por intermédio da arena da polí- Esta hipótese é vigorosamente validada pelas
tica pública. As poucas feministas nos governos e análises apresentadas acima. A educação oferece
aquelas dentro do movimento feminista exauriram retornos simbólicos substanciais para o Estado. Por
suas energias na fase de transformação da política sua própria natureza, a educação contém a promes-
pública em lei. Esta hipótese não encontra apoio nos sa de inclusão e de justiça distributiva. Conforme
casos nacionais que revisamos. observa Weiler, a educação fornece uma legitimação
3. Uma terceira hipótese recorre às teorias fe- compensatória porque enfatiza a importância dos
ministas sobre a construção do Estado como uma símbolos poderosos de legalidade, racionalidade e
entidade masculina e patriarcal (Pateman, 1988; democracia (1983). Nos Estados industriais mais
Connell, 1987) e no conceito de legitimidade pro- desenvolvidos, foi feita uma legislação específica
posto por Habermas (1975). De acordo com essa sobre as condições da educação da mulher; entre-
hipótese, o Estado não considera prioritários os tanto, os aspectos principais de gênero ficaram cir-
problemas de gênero porque eles ameaçam tanto cunscritos à baixa representação da mulher em car-
o status quo quanto sua própria hegemonia. Os reiras não tradicionais. Mas, como Yates aponta de
Estados procuram satisfazer, em primeiro lugar, as maneira incisiva (1993), a maioria das mulheres
necessidades da economia e posteriormente as que trabalha no setor de serviços, um padrão que con-
são uma conseqüência da ideologia patriarcal. En- tinua a se realizar sem interrupções. Nos países em
tretanto, por existir, no momento, uma crise de le- desenvolvimento, a agenda política pública foi de-
gitimidade — com Estados industrializados sendo finida em termos de acesso à instrução, dessa for-
contestados e criticados ao mesmo tempo e de for- ma deferindo os objetivos mais cruciais de transfor-
ma crescente — eles precisam se envolver em ações mação social. Com poucas exceções — principal-
simbólicas, democráticas mas relativamente inó- mente em países com considerável participação das
cuas, a fim de demonstrar sua boa vontade em res- mulheres na força de trabalho — a legislação sobre
ponder a todos os cidadãos (ver também Edleman, a eqüidade de gênero foi acompanhada por quan-
1972). Como a maioria das políticas públicas de tias mínimas de recursos financeiros. Entretanto, os
gênero não questionam relações entre mulher e esforços desenvolvidos pelas mulheres foram deci-
homem, mas tratam o gênero como uma “catego- sivos para a introdução de uma nova agenda social

46 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

e para considerar o Estado publicamente responsá-


NELLY P. STROMQUIST é professora de desenvol-
vel pela resposta aos assuntos de gênero. O terre-
vimento internacional da educação na University of Southern
no simbólico é um terreno em que operam tanto as California (Los Angeles). Dedica-se a pesquisa que trata de
feministas quanto o Estado. questões de gênero, eqüidade política e educação de adul-
Um corolário desta hipótese é que políticas tos em países em desenvolvimento. Seu livro mais recente é
públicas controvertidas ou com pouco apoio serão Literacy for Citizenship: Gender and Grassroots Dynamics
menos suscetíveis às condições de contingência do in Brazil (Suny Press, no prelo). Organizou também recen-
temente um volume sobre Gender Dimensions in Education
que outras políticas públicas. O motivo para essa
in Latin America (Organization of American States, 1996).
trajetória relativa e previsível é que as políticas pú-
blicas controvertidas são as que tendem a afetar
valores e normas arraigadas na sociedade. Sendo
assim, a oposição a elas será mais ampla e com pos- Referências bibliográficas
sibilidades de vir à tona em muitos pontos; além
AMERICAN ASSOCIATION OF UNIVERSITY WOMEN,
disso, os aspectos regulatórios dos comportamen-
(1992). How schools shortchange girls. Washington.
tos de Estado tornam essas políticas públicas pre-
ARGAWAL, Bina, (1994). Gender and command over pro-
visíveis. Conforme observa Harding, em sociedades
perty: a critical gap in economic analisys and policy in
com indicações de raça, etnia, classe, gênero, sexua-
South Asia. World Development, v. 22, nº 10, p. 1455-
lidade e outros indicadores, as atividades dos que 1478, Oxford.
estão no controle “não só organizam como também
ARNOT, Madeleine, (1993). A crisis in patriarchy?: British
colocam os limites no que as pessoas que exercem feminist educational politics and state regulation of
tais atividades podem compreender sobre si mesmas gender. In: ARNOT, Madeleine, WEILER, Katherine
e sobre o mundo ao seu redor” (Harding, 1993, p. (orgs.). Feminism and social justice in education: inter-
54). Embora a forma e o momento dessa oposição nacional perpectives. Londres: The Falmer Press.
possam variar, a constante será a tendência de der- BAUDOUX, Claudine, (1994). Politiques educatives et
rotar a intervenção. droits des femmes au Canada. Les cahiers du LABRAPS,
Para concluir, deveria ser sublinhado que as v. 13, p. 95-138, Quebec.

feministas precisam aprender a ver as escolas como CARTER, April, (1988). The politics of women’s rights.
parte do Estado em vez de parte da sociedade civil. Londres: Longman.

As escolas representam muito mais o poder orga- CONNEL, Robert, (1987). Gender and power. Stanford:
nizado da sociedade do que as percepções e dese- Stanford University Press.

jos de grupos generalizados. Esta posição é crucial. __________, (1994). The state, gender and sexual politics:
Deste ponto privilegiado, deveria se perguntar: sob theory and appraisal. In: RADTKE, Lorraine, STAM,
Henderikus (orgs.). Power/ gender: social relations in
que circunstâncias a política pública do Estado en-
theory and pratice. Londres: Sage.
corajará a organização das mulheres a formar or-
DAHL, Robert, (1967). Pluralist democracy in the United
ganizações autônomas? Isto talvez não venha a
States: conflict and consent. Chicago: Rand McNally.
ocorrer num futuro próximo, o que não deve deter
DAVID, Miriam, (1981). Social policy and education: to-
as iniciativas das feministas. Por outro lado, as fe-
wards a political economy of schooling and sexual di-
ministas deveriam se acautelar com relação a polí- visions. British Journal of Sociology of Education, v. 2,
ticas públicas que, por adaptar a mulher ao status nº 1, p. 115-127, Oxfordshire.
quo, servirão para reforçar as relações patriarcais DEBLÉ, Isabelle, (1988). Reflections on a methodology for
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Revista Brasileira de Educação 49


Sociedade, Estado e educação
Notas sobre Rousseau, Bonald e Saint-Simon

Luiz Antônio Cunha


Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo (Pesquisador-visitante, bolsista FAPESP)

Este texto foi apresentado em seminário promovido pela área temática


“Estado, sociedade e educação” do Programa de Pós-Graduação em
Educação e pelo Grupo de Pesquisa “Educação, Sociedade Civil e Estado”
do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da
Faculdade de Educação da USP, realizado em novembro de 1995.

Estas notas visam destacar passagens do pen- XVIII.1 Ainda que não fossem homogêneos nas
samento desses três precursores da sociologia no que idéias a respeito do homem e da sociedade, os fi-
diz respeito, especialmente, a uma questão que man- lósofos iluministas pretendiam que a razão ilumi-
tém sua atualidade: a distinção social entre a edu- nasse as trevas da superstição e da ignorância com
cação pública e a educação privada. suas luzes, de modo que as descobertas científicas
Considerando que a sociologia, pelo menos em pudessem se estender por todo o mundo Para isso,
sua forma universitária, nasceu de uma pedagogia, seria necessário, em primeiro lugar, recusar o prin-
pelo magistério de Durkheim, propus-me a uma revi- cípio de autoridade (tão caro à Igreja Católica e
são do pensamento dos precursores da disciplina, no seus dogmas) e a concepção de que o homem é es-
que concerne à educação, com o objetivo de identi- cravo da história: ele deveria ser o seu senhor.
ficar gérmens da sociologia da educação. Na primeira O processo revolucionário ainda estava em seu
aproximação, cujos resultados são apresentados nes- início quando surgiu toda uma nova concepção do
te texto, foram examinadas obras de Rousseau e Bo- homem e da sociedade, que passou a ser utilizada,
nald, que escreveram trabalhos especialmente dedi- também, como força material de uma contra-revo-
cados ao tema. Do primeiro, temos o celebrado Emí- lução que, de alguma maneira, se esperava ou se
lio, e, do segundo, o desconhecido Théorie de l’édu- preparava. Onde os filósofos iluministas viam su-
cation sociale. Saint-Simon não dedicou a esse tema perstições, passou-se a perceber as idéias fundamen-
nenhum livro, mas atrevo-me a focalizar a projeção
do pensamento que ele poderia ter tido a respeito,
1 A produção filosófica de Rousseau permite o encon-
deduzindo-o de seu industrialismo. Para tanto, vou
tro em seus escritos de posições que serão assumidas e ra-
me valer do livro de Júlio Verne, Paris no século XX.
dicalizadas pelos românticos, seus críticos. Neste texto, se-
Rousseau foi um típico filósofo do Iluminis- rão focalizadas apenas as posições iluministas, dominantes
mo, movimento de idéias predominante no século no pensamento rousseauniano.

50 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Sociedade, Estado e educação

tais que constituíam a sociedade. Ao invés de fes- convidado a escrever verbetes para a Enciclopédia,
tejarem a razão e o novo, os românticos celebravam entre eles o de economia política.
o sentimento e a tradição. No lugar da autonomia Incentivado por Diderot, Rousseau escreveu o
individual, a sujeição à autoridade. Ao invés do me- Discurso sobre as ciências e as artes para o concurso
cânico, o orgânico. da Academia de Dijon, obtendo efetivamente o pri-
As mudanças decorrentes da Revolução Fran- meiro prêmio (1750). Mas foi com o Discurso so-
cesa e de seus desdobramentos criaram condições bre a origem e os fundamentos da desigualdade en-
para um pensamento novo que desse conta das no- tre os homens, escrito para o mesmo propósito, que,
vas condições sociais, inclusive e particularmente da embora não alcançando o mesmo resultado, veio a
industrialização. Embora mais atrasada do que a In- ter reconhecimento editorial (1755). Seu sucesso se
glaterra na produção industrial, a França passava estendeu à literatura de ficção, com Júlia ou a nova
por profundas mudanças trazidas por um novo mo- Heloísa (1761). Rousseau havia se transformado,
do de produzir e de pensar, que acarretavam novos então, no autor da moda em Paris.
conflitos e até mesmo novos atores sociais, como a As idéias germinadas no segundo discurso fo-
classe operária. Ora, tanto o Iluminismo (esgotado ram desenvolvidas no Contrato social e em Emílio
pela própria política revolucionária) quanto o ro- ou da educação, ambos publicados em 1762. As rea-
mantismo (ultrapassado pelo dinamismo social) ções contra essas duas obras foram tremendas, e de
mostravam-se incapazes dessa tarefa. Saint-Simon diferentes lados, inclusive de seus amigos filósofos
defrontou-se com as duas tradições de pensamen- e do clero, que desfechou ataques contra quem con-
to e procurou uma síntese que desse conta dessa sideravam um inimigo da ordem pública (isto é, da
nova realidade. monarquia) e da religião. O Parlamento de Paris con-
Passemos, então, a cada um dos pensadores denou Emílio à fogueira e o autor à prisão, de que
anunciados. escapou fugindo, sendo acolhido por David Hume
na Inglaterra (1766). Embora o segundo discurso
Rousseau: a educação do tivesse sido dedicado à cidade de Genebra, cujos ci-
homem individual/social dadãos e magistrados foram elogiados pela liberdade
de que gozavam e pela sabedoria com que geriam os
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) nasceu em negócios públicos; embora, ainda, Rousseau tives-
Genebra, na Suíça, filho de um culto relojoeiro. Ór- se sido entusiasticamente recebido em sua cidade
fão de mãe muito cedo, foi criado pelos tios. Com natal em 1754, Emílio foi também aí condenado.
16 anos abandonou Genebra e foi para Annecy, na Em 1767, Rousseau recebeu autorização para
Sabóia (Reino da Sardenha), onde passou a viver retornar à França, onde retomou as cópias de par-
numa espécie de pensionato para jovens. Aí se con- tituras musicais, os estudos de botânica e os escri-
verteu ao catolicismo (era protestante de origem) e tos autobiográficos, assim como a poesia. Mas foi
completou sua formação humanística. Em 1741, en- nesse período de declínio de sua obra de filosofia
tão com 29 anos, mudou-se para Paris, onde passou social que ele exerceu sua mais controvertida ativi-
a manter-se dando aulas de música e copiando par- dade, a de assessor político. A exemplo do que fize-
tituras, atividade que exerceria até o fim da vida. ra em 1765, redigindo, a pedidos, uma Constituição
Rousseau publicou textos sobre música (inclusive um para a Córsega, o filósofo elaborou, em 1772, um
dicionário especializado) e teatro; compôs duas ópe- projeto de reforma do governo da Polônia. Esses tex-
ras — uma delas chegou a ser representada para Luís tos de política prática foram muito criticados, como
XV. Já no ano seguinte ao de sua chegada à capital se eles renegassem sua obra teórica, orientada para
francesa, estabeleceu relações com os filósofos ilu- a igualdade e a liberdade.
ministas (Voltaire, Diderot, D’Alembert), tendo sido

Revista Brasileira de Educação 51


Luiz Antônio Cunha

Rousseau foi contemporâneo da Revolução modelo das sociedades políticas, estas sim criadas
Industrial, então em curso na Inglaterra, e pôde as- por convenções.
sistir a todas as conseqüências que acarretava para A convenção fundamental, o contrato social,
o advento de um mundo novo. Diante desse fato, é apresentada por Rousseau não como uma certe-
o filósofo, que não prezava o mundo feudal, bus- za nem como um axioma, mas como uma suposi-
cava retardar e se prevenir diante das mudanças ção — uma hipótese de trabalho. Assim ele inicia
ameaçadoras que se anunciavam. Manifestava um o capítulo sobre o pacto social: “Suponhamos os
marcante pessimismo, que se expressa na idéia que homens chegando àquele ponto em que os obstá-
permeia seus trabalhos, a de que o homem é natu- culos prejudiciais à sua conservação no estado de
ralmente bom, a sociedade é que o corrompe. Como natureza sobrepujam, pela sua resistência, as for-
também na surpreendente primeira frase de uma ças de que cada indivíduo dispõe para manter-se
obra pedagógica: “Tudo é certo em saindo das mãos nesse estado. Então, esse estado primitivo já não
do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do pode subsistir, e o gênero humano, se não mudas-
homem” (Emílio, p. 9). No entanto, seu pensamen- se de modo de vida, pereceria” (Contrato, p. 37,
to acabou por ser adotado por quem queria acele- grifo meu).
rar a destruição do mundo feudal e a construção da Conservar seus bens e a si mesmo seria o mo-
sociedade capitalista. De fato, mais do que um ideó- tivo racional para que os homens efetivassem o con-
logo datado, Rousseau deu à história das idéias uma trato social. Sua razão então seria: “Encontrar uma
importante contribuição, inclusive para o nascimen- forma de associação que defenda e proteja a pes-
to da sociologia. Se eu tivesse de me restringir a uma soa e os bens de cada associado com toda a força
pequena citação que resumisse a contribuição do comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só
pensamento de Rousseau para o nascimento dessa obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim
disciplina, minha escolha seria a seguinte: “É pre- tão livre quanto antes” (Contrato, p. 38).
ciso estudar a sociedade pelos homens, e os homens Isso implica na “alienação total de cada asso-
pela sociedade; os que quiserem tratar separada- ciado, com todos os seus direitos, à comunidade
mente da política e da moral nunca entenderão nada toda”. (Contrato, p. 39) O ato de cada um pôr em
de nenhuma das duas” (Emílio, p. 266). comum sua pessoa e todo o seu poder sob a dire-
Ao contrário de Montesquieu, que se propôs ção suprema da vontade geral é vantajoso porque:
compreender as leis tal como existem, a partir das 1) cada um dando-se completamente, a condição é
condições reais que as geraram, Rousseau inicia O igual para todos; e 2) sendo assim, ninguém se in-
contrato social com a preocupação de tomar os ho- teressa por tornar essa condição onerosa para os
mens como são e as leis como podem ser. Sua preo- demais. “Enfim, cada um dando-se a todos, não se
cupação é unir o que o direito permite e o interesse dá a ninguém.” (Contrato, p. 39)
prescreve, a fim de que a justiça e a utilidade não O que cada indivíduo perde com o contrato
fiquem separadas. social é a liberdade natural e a posse (efeito da for-
Seu ponto de partida é a surpreendente consta- ça ou o direito do primeiro ocupante); por outro
tação: “O homem nasce livre, e por toda a parte lado, ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo
encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos de- o que possui. Qualquer que seja a forma pela qual
mais, não deixa de ser mais escravo do que eles” se dê a aquisição de bens pelos indivíduos, o direi-
(Contrato, p. 28). to que cada um tem sobre seus bens está sempre
Essa ordem social aprisionadora não se origi- subordinado ao direito que a comunidade tem so-
na na natureza, mas se funda em convenções. Só a bre todos, sem o que o liame social não teria soli-
família, a mais antiga de todas as sociedades, é na- dez, nem o exercício da soberania teria uma força
tural e não resulta de convenções. Ela é o primeiro verdadeira.

52 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Sociedade, Estado e educação

Foi a oposição dos interesses particulares que vontade tanto quanto sobre as ações. É certo que os
exigiu o estabelecimento das sociedades. Mas foi povos, em grande parte, são aquilo que o governo os
o acordo desses mesmos interesses que possibilitou faz ser (“Economia”, p. 160).
o contrato social, quer dizer, o nascimento das
sociedades. Mas formar cidadãos não é tarefa de um dia.
O Estado é uma pessoa moral, que consiste Seria preciso educar os indivíduos ainda meninos.
na união de seus membros. Sua maior preocupa- Eles deveriam ser exercitados a não levar em conta
ção é com a conservação desses membros, para o sua própria individualidade, a não ser em suas re-
que precisa dispor de uma força universal e com- lações com o corpo do Estado. Sua existência indi-
pulsiva para mover e dispor cada parte de manei- vidual deveria ser percebida como parte da existên-
ra mais conveniente a todos. “Assim como a na- cia do Estado. A conseqüência esperada por Rous-
tureza dá a cada homem poder absoluto sobre to- seau é que os jovens se identificassem com esse “to-
dos os seus membros, o pacto social dá ao corpo do maior”, que se sentissem membros da pátria e
político um poder absoluto sobre todos os seus, e passassem a amá-la. Se as crianças fossem educadas
é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade ge- em comum e em absoluta igualdade; se assimilas-
ral, ganha, como já disse, o nome de soberania” sem as leis do Estado e os princípios da vontade
(Contrato, p. 54). geral; se fossem educadas para respeitar esses prin-
cípios acima de tudo; se fossem cercadas de exem-
*** plos e de coisas que lhes remetessem à “terna mãe
que os nutre” e do amor que ela tem por todos, o
Enquanto o filósofo celebra a vontade geral e
a prevalência dos negócios públicos sobre os parti- filósofo acreditava que o sentimento fraternal seria
culares, bem como estuda a gênese e a anatomia da compartilhado por todos. Como resultado, iriam
desigualdade entre os homens (no segundo discur- querer apenas aquilo que a sociedade quisesse.
so e no Contrato social), em sua obra pedagógica A educação preconizada para as crianças de-
Emílio, ele valoriza a educação típica da nobreza: veria ser bem regulada, calcada mais nos deveres do
que nos direitos.
não só seu aluno paradigmático é um jovem abas-
tado e “de berço”, como, também, a relação peda- Desde o primeiro momento da vida é preciso
gógica é a que une o preceptor ao discípulo. começar a merecer a viver; uma vez que, nascendo,
tornamo-nos participantes dos direitos dos cidadãos,
Em “Economia política”, verbete da Enciclo- o momento de nosso nascimento deve ser o início do
pédia, publicada no mesmo ano do Discurso sobre exercício de nossos deveres. Se existem leis para a ida-
a desigualdade (1755), Rousseau apresenta uma de adulta, devem ser também para a infância: que en-
concepção social da educação bem distinta do in- sinem a obedecer aos outros e, como não se deixar a
dividualismo que emana de Emílio. razão de cada homem ser o único árbitro dos seus
Naquele curto texto, a educação pública é a deveres, tanto menos se deve deixar às luzes e precon-
mais importante tarefa da economia política, en- ceitos dos pais a educação dos filhos, que concerne
tendida como administração pública. Ela é um dos mais ao Estado que aos pais; de fato, e segundo o curso
princípios fundamentais do governo popular ou natural das coisas, a morte subtrai ao pai os últimos
legítimo. feitos da educação que começara, enquanto a pátria
Se é bom saber empregar os homens tais quais sente seus efeitos cedo ou tarde: o Estado permance,
são, é muito melhor tornar quais se tem necessidade a família se dissolve (“Economia”, p. 169).
que sejam: a autoridade mais absoluta é aquela que
Rousseau não pretende diminuir o papel dos
penetra no íntimo do homem e que se exerce sobre a
pais na educação das crianças com a posição proe-

Revista Brasileira de Educação 53


Luiz Antônio Cunha

minente atribuída ao Estado nessa matéria. Para ele, culares no Contrato social, em sua obra especifica-
os pais nada mais fazem do que trocar de nome, já mente pedagógica, Emílio, ele valoriza o individua-
que, como cidadãos, têm em comum a mesma au- lismo mais extremado, a ponto de dizer que seria
toridade que exerciam sobre os filhos, separada- preciso optar entre formar o homem e fazer dele
mente, no âmbito familiar. cidadão. Vejamos como essas idéias se articulam.
A educação pública seria exercida por magis- Num alentado texto de mais de quinhentas
trados indicados pelo Estado, conforme regras por páginas, Rousseau apresenta bem mais do que um
ele prescritas. A “magistratura educacional” deve- tratado de pedagogia. Coerente com sua posição de
ria ser o prêmio do trabalho, o doce e honrado re- que para bem educar é preciso dispor de toda uma
pouso da velhice, o ápice de todas as honras para visão do homem e da sociedade, ele inclui boa par-
aqueles que tenham assumido dignamente as outras te do Contrato social no Emílio. Vou apresentar um
funções públicas. resumo do pensamento aí exposto, focalizando, es-
No entendimento de Rousseau, apenas três po- pecialmente, dois temas que me parecem centrais:
vos antigos praticaram a instrução pública, no sen- o trabalho, a religião e a mulher.
tido assim definido: os cretenses, os lacedemônios Embora o filósofo diga que escreveu essa obra
e os persas, estes com o maior sucesso.2 Quando as motivado pela vontade de agradar “a uma boa mãe
nações se tornaram demasiado grandes para serem que sabe pensar”, seu alcance ultrapassa a destina-
bem governadas, a educação pública já não foi mais tária, se é que realmente existiu. Para a concepção
utilizada. Além dessa razão, Rousseau alude a ou- de homem e de sociedade de Rousseau, suas idéias
tras razões “que o leitor pode facilmente perceber”, teriam de resultar numa pedagogia.
responsáveis pela inexistência da educação públi- Para ele, tudo o que não temos ao nascer, e de
ca em qualquer povo moderno. Suponho que o fi- que precisamos quando adultos, nos é dado pela
lósofo quisesse que o leitor da Enciclopédia pensas- educação. Ela provém da natureza, dos homens ou
se na Igreja Católica, especialmente na Companhia das coisas. O desenvolvimento interno de nossas
de Jesus.3 faculdades e de nossos órgãos é a educação da na-
Enquanto o filósofo celebra a vontade geral e tureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desen-
a prevalência dos negócios públicos sobre os parti- volvimento é a educação dos homens; e o ganho de
nossa própria experiência sobre os objetos que nos
afetam é a educação das coisas.
2 Rousseau não esconde sua admiração pelo fato de Dessas três, a educação dos homens é a única
que os romanos puderam alcançar o sucesso que a história que podemos realmente controlar e, mesmo assim,
registra sem a educação pública. Se ele não consegue expli-
por suposição. Mas nem por isso Rousseau mostra
car essa anomalia, convida o leitor a aceitar que isso se deve
apreço pela educação escolarizada. Apesar da esti-
a um milagre que o mundo não pode esperar rever.
ma que declarou ter por certos professores da Uni-
3Com efeito, os conflitos entre os jesuítas e os gover-
versidade de Paris, não via como “uma verdadeira
nos de vários países europeus estava eclodindo. Depois de
serem expulsos de Portugal e colônias em 1759, os jesuítas instituição pública esses estabelecimentos ridículos
foram expulsos da Espanha em 1764 e, em 1767, da Fran- a quem chamam colégios” (Emílio, p. 14). Resta a
ça. Em 1779, o papa chegou a suprimir a Companhia de Je- educação doméstica, sobre a qual Rousseau vai con-
sus, que só continuou a funcionar na Rússia, protegida por centrar sua atenção. A ela o filósofo dá uma espe-
Catarina, a Grande. A ordem só voltou a ser oficialmente
cial importância:
reconhecida em 1814. Em substituição às escolas jesuítas,
Portugal montou, com professores leigos, o primeiro siste- [...] a educação do homem começa com seu nas-
ma educacional público (no sentido de estatal, sem as am- cimento; antes de falar, antes de compreender, já ele
bigüidades do monopólio da Igreja ligada ao Estado) de toda
se instrui. A experiência adianta-se às lições; no mo-
a Europa.

54 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Sociedade, Estado e educação

mento em que conhece sua ama, já muito ele adqui- cação comum é o estado de homem, e quem quer seja
riu. Surpreenderiam-nos os conhecimentos do homem bem educado para esse, não pode desempenhar-se mal
mais bronco, se seguíssemos seu progresso desde o mo- dos que com esse se relacionam. Que se destine meu
mento em que nasceu até aquele a que chegou. Se se aluno à carreira militar, à eclesiástica ou à advocacia,
dividisse toda a ciência humana em duas partes, uma pouco me importa. Antes da vocação dos pais, a na-
comum a todos os homens, outra peculiar aos sábios, tureza chamou-o para a vida humana. Viver é o ofí-
esta seria muito pequena em comparação com a outra. cio que lhe quero ensinar. Saindo de minhas mãos, ele
Mas não pensamos quase nas aquisições gerais, por- não será, concordo, nem magistrado, nem soldado,
que elas se fazem sem que nelas pensemos e até antes nem padre; será primeiramente um homem. Tudo o
da idade da razão. De resto, o saber só se faz notar que um homem deve ser, ele o saberá, se necessário,
pelas diferenças e, como nas equações de álgebra, as tão bem quanto quem quer que seja; e por mais que
quantidades comuns não contam (Emílio, p. 42). o destino o faça mudar de situação, ele estará sempre
em primeiro lugar (Emílio, p. 15).
Para apresentar suas idéias pedagógicas, o fi-
lósofo construiu uma situação ideal que se asseme- A ocupação produtiva (“que pode outorgar a
lha à rigorosa construção do objeto de pesquisa nas subsistência ao homem”) que mais se aproxima do
Ciências Sociais. Na educação imaginada, o próprio estado natural é o trabalho artesanal. Para Rousseau,
filósofo seria o preceptor de um jovem nobre. Com o artesão só depende de seu trabalho. Ele é tão livre
esse artifício, ele não queria dizer como deveria ser quanto o lavrador é escravo, pois este está preso ao
a educação dos jovens nobres. Seu interesse estava campo, cuja colheita está à mercê de outrem. O ini-
com o homem em geral, vale dizer com a educação migo, o príncipe, um vizinho poderoso, um proces-
de uma criança que não ficasse restrita a sua con- so, podem tomar-lhe a terra. Por sua dependência,
dição social. Aliás, trata-se de um ponto em que o lavrador pode ser humilhado de mil maneiras, o
Rousseau foi incisivo ao defender uma educação que não acontece com o artesão, pois diante de uma
que levasse em conta a possibilidade de mudanças situação adversa, ele toma sua bagagem e seu bra-
sociais que pudessem levar a mudanças revolucio- ço e vai-se embora.4 Entretanto, a agricultura é o pri-
nárias. Se o senhor tivesse de se tornar mendigo, que meiro ofício do homem: o mais honesto, o mais útil,
não levasse consigo os preconceitos de sua condi- e por conseguinte o mais nobre que se possa exer-
ção anterior; se um rico empobrecesse, que não per- cer. Emílio aprenderá a agricultura mas não irá pra-
sistisse no desprezo pelos pobres. Até mesmo o mo- ticá-la. Vai aprender e praticar um ofício artesanal
narca pode tornar-se súdito. Logo, o melhor a fa- — e isso é para Rousseau questão fechada.
zer nesse tempo de tão profundas mudanças é edu-
Trata-se menos de aprender um ofício, para sa-
car não em função da condição imediata da crian-
ber um ofício, do que para vencer os preconceitos que
ça, mas a prepará-la para viver em qualquer situa-
o desprezam. Nunca sereis forçado a trabalhar para
ção. Para isso seria preciso justamente atuar sobre
viver. Tanto pior. Mas pouco importa; não trabalheis
o homem abstrato.
por necessidade, trabalhai por prazer. Abaixai-vos à
Na ordem social, em que todos os lugares estão condição de artesão para que fiqueis acima da vossa.
marcados, cada um deve ser educado para o seu. Se Para dominar a sorte e as coisas, começai tornando-
um indivíduo, formado para o seu, dele sai, para nada vos independente. Para reinar pela opinião começai
mais serve. A educação só é útil na medida em que sua reinando sobre ela (Emílio, p. 215).
carreira acorde com a vocação dos pais; em qualquer
outro caso ela é nociva ao aluno, nem que seja ape-
nas em virtude dos preconceitos que lhe dá. [...] Na 4 Essa referência é a seu pai, relojoeiro que acabou
ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vo- tendo de deixar Genebra por questões políticas.

Revista Brasileira de Educação 55


Luiz Antônio Cunha

O ofício que ele gostaria que seu discípulo de, principalmente da sociedade religiosa. Deus go-
aprendesse é o de marceneiro: é limpo e útil, pode verna os homens por meios humanos, por isso é que
ser exercido em casa, mantém o corpo em ativida- se fez homem para regenerar as sociedades huma-
de, exige do artesão engenho, habilidade, elegân- nas. “Os olhos maldosos do ódio só se fixaram num
cia e gosto. Ademais, se Emílio viesse a se dedicar canto do quadro, eles só viram o particular, o ho-
às “ciências especulativas”, ele poderia empregar mem; eu só vi o geral, a sociedade. Eles acredita-
o que aprendeu para fazer instrumentos como lu- ram que o homem fez a sociedade, mas eu creio que
netas, telescópios etc. que a sociedade faz o homem [...]” (Démonstration,
Se o pedagogo mostrou a preferência pela mar- p. 444).
cenaria, não deixou de evidenciar seu desprezo por
outros ofícios artesanais, pelo automatismo que ne- Nessa completa inversão da concepção rous-
les via ou pela força que exigiam: seauniana da relação indivíduo-sociedade, Bonald
tem o conceito de sociedade como central em seu
[...] não gostaria dessas profissões estúpidas em
pensamento: “A sociedade é a reunião de seres se-
que os operários, sem engenho e quase autômatos, só
melhantes para sua produção e sua conservação
exercitam suas mãos no mesmo trabalho; os tecelões,
mútuas, e de seus elementos naturais e constitu-
os fazedores de meias, os canteiros: que adianta em-
tivos” (Démonstration, p. 440).
pregar nesses ofícios homens de bom senso? É uma
Essa definição se aplica tanto à sociedade em
máquina que conduz outra (Emílio, p. 222).
geral como às diferentes espécies de sociedades par-
ticulares — doméstica, civil e religiosa —, assim
Bonald: a educação do como às suas combinações. Elas se distinguem das
homem social associações (como as empresariais), que são obras
humanas, e podem ser dissolvidas à vontade.
Louis de Bonald (1754-1840) era visconde, Bonald foi procurar na religião a constituição
oficial dos mosqueteiros do rei e prefeito (maire) de natural e geral da sociedade. A definição de religião
Millau, na França, sua cidade natal, quando eclodiu do filósofo é a seguinte: “[...] uma consciência mais
a Revolução. De início ele foi favorável às idéias ou menos distinta e razoável de um ser invisível e
revolucionárias, mas reformulou sua posição logo todo poderoso, criador dos seres subordinados, a
após a Constituição Civil do Clero (1791). Depois quem o homem atribui os bens e os males da vida,
de seis anos de exílio na Alemanha (Constança e e do qual ele se esforça por merecer os benefícios
Heidelberg), retornou à França. Napoleão, que ou de aplacar a ira” (Démonstration, p. 501).
apreciou seu livro Théorie du pouvoir politique et O homem não encontra em si mesmo e em
religieux (1796), nomeou-o conselheiro titular da sua razão individual o fundamento das crenças re-
Universidade da França (1810), mas ele se recusou ligiosas, sejam elas quais forem. Elas só podem ser
a assumir encargos docentes. Com o fim do poder encontradas na sociedade. O filósofo se pergunta,
de Napoleão e a restauração da monarquia (1814), encaminhando a resposta positiva, se a facilidade
foi deputado (1815-1823), ministro de Estado de com que o cristianismo havia se propagado na An-
Luís XVIII, diretor da censura de Carlos X e par de tigüidade pelos povos pagãos e, no seu tempo, pe-
França. Foi eleito para a Academia Francesa (de los “povos selvagens”, não poderia ser resultado
Letras). Seu pensamento político e social foi sinte- (independentemente das obras sobrenaturais que
tizado na Démonstration philosophique du principe acompanhavam sua presença) de alguma coisa que
constitutif de la societé (1830). se agregasse aos pensamentos, aos sentimentos do
Ao contrário do que queriam os iluministas, homem social, mesmo sem o seu conhecimento,
o homem é, para Bonald, indissociável da socieda- para os esclarecer e dirigir. Seria uma espécie de

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Sociedade, Estado e educação

assimilação, da mesma forma como se dá com as bém, a necessidade de reprimir um inimigo inter-
substâncias alimentares que ingerimos, que nutrem no que, movido pelas paixões, ameaçava a tran-
nossos corpos, sem que conheçamos sua natureza qüilidade da cidade e o repouso das famílias. Por
e sua relação conosco, sem saber como elas agem uma razão, por outra ou por ambas, a criação do
em nosso organismo e se convertem em nosos di- poder público se deu mediante a iniciativa de um
ferentes humores. homem forte. Em conseqüência, foi o poder que
Uma vez que a idéia da divindade entrou no distinguiu e classificou as demais pessoas sociais,
mundo (pela revelação, de alguma maneira), ela se conforme procedimentos que não nos permitem
diversificou ao infinito, fosse pelo desenvolvimen- encontrar o mais leve traço de soberania popular.
to que os homens lhe deram, fosse pelas alterações As funções essencias do poder são julgar e
que lhe impuseram. De todo modo, transmitida combater. As dos ministros, o conselho e o servi-
pela língua, de geração a geração, ela não sai ja- ço para secundar sua ação. Como na sociedade po-
mais da sociedade. lítica tudo é feito para a utilidade dos súditos, eles
Embora Bonald chame a sociedade religiosa não têm propriamente nada a fazer. Os súditos só
de “mãe de todas as sociedades”, é na família que têm poder e funções na sociedade doméstica.
ele vai encontrar o modelo comum a todas as so- O poder público só pode ser independente
ciedades. O gênero humano começou por uma fa- (com relação aos súditos) se for proprietário da
mília e continua constituído por famílias. Cada fa- terra, pois toda outra riqueza, imobiliária ou co-
mília tem três elementos — pai, mãe, filho. Ao mercial, depende dos homens e de seus eventos.
contrário dos animais, que nascem perfeitos, o ho- Em suma, a família torna-se povo e a religião,
mem, além de produzir, tem de conservar sua pro- de doméstica, torna-se pública. Na sociedade civil
le. O homem nasce apenas perfectível, e tem de como na sociedade religiosa, Bonald vê sempre po-
tudo receber da sociedade. deres que comandam, súditos que obedecem e, en-
A cada um dos elementos da sociedade domés- tre eles, com diversos nomes, ministros, meios ou
tica corresponde uma pessoa social. Ao pai, à mãe intermediários, que, submetidos ao poder, recebem
e ao filho correspondem o poder, o ministro e o deste para transmitir aqueles. Esta hierarquia de
súdito. O pai age tanto para a produção quanto pessoas e de funções forma a “constituição natural
para a conservação. E o faz pelo ministério da mãe, de toda a sociedade”, também chamada de “siste-
que concorre para a realização da vontade e da ação ma eterno da sociedade”.
do poder. O filho, submetido a essa vontade e a essa Na monarquia real, as três sociedades que
ação, é o produto de um e de outro, no que diz res- compõem o “edifício social” são a sociedade reli-
peito à produção e à conservação. Se o pai é poder, giosa (o clero), a sociedade política (a nobreza) e
a mãe é autoridade, pois necessita ser autorizada a sociedade doméstica (o terceiro estado). Essas
pelo esposo. três ordens representam as três coisas que consti-
A sociedade política, também chamada de Es- tuem toda sociedade: as luzes, a propriedade e o
tado ou governo, é uma sociedade de produção e trabalho. Elas integram os Estados Gerais.
conservação de famílias. O poder público não foi
resultado de um contrato nem de uma imposição. ***
Ele foi necessário, conforme a natureza da vida Na Teoria da educação social, Bonald trata de
dos seres humanos em sociedade. As causas e a várias questões além da educação propriamente di-
origem do poder público foram todas naturais. Os ta. Aos capítulos sobre a educação doméstica, dos
homens foram unidos para enfrentar um perigo colégios, dos alunos, ele acrescenta outros sobre a
comum diante de inimigos poderosos ou de ani- administração geral, a nobreza, o exército, os cos-
mais. Além desse inimigo externo, existiu, tam- tumes, as letras, a filantropia pública, as finanças,

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Luiz Antônio Cunha

o comércio. O que dá unidade a todo esse conjunto, tores que escreveram sobre a educação pública ti-
justificando o título da obra, é a preocupação ge- veram essa quimera na mente. E, por quererem de-
ral com a constituição da sociedade. Na sociedade senvolver os talentos escondidos, eles não cultiva-
conturbada de seu tempo, sacudida por revoluções, ram ou não formaram as disposições conhecidas e
cumpria dirigi-la para o caminho natural de onde comuns a todos os homens. Eles só observaram o
havia sido desviada. Assim, a educação social no povo de suas janelas e só o estudaram nos livros.
pensamento de Bonald pode ser entendida em dois Saber ler e escrever não é mesmo necessário à
sentidos bem articulados: a educação dos jovens felicidade física ou moral do povo ou aos seus in-
para que exerçam uma “profissão social” e a educa- teresses. A sociedade dá ao povo uma garantia mais
ção dos adultos no sentido de conservar a sociedade. eficaz contra a trapaça e a má-fé. O que todo o povo
Três tipos de pessoas estão na sociedade mais precisa é da religião, dos costumes e de uma honesta
do que são dela. Pertencem mais à sociedade natu- comodidade. Ele precisa do sentimento para man-
ral do que à sociedade política; pertencem mais às ter a religião; de bons exemplos e das leis executa-
suas famílias do que ao Estado. São as crianças, as das para manter os costumes; e de trabalho para
mulheres e o povo, que correspondem, respectiva- manter a comodidade.
mente, à fraqueza da idade, do sexo e da condição Para Bonald, o homem é espírito, coração e
social. Essas pessoas mantêm com a sociedade uma sentimento, mas suas faculdades só se desenvolvem
relação assimétrica: a sociedade deve protegê-las, uma depois da outra. A criança só tem sentimen-
mas elas não são feitas para proteger a sociedade. to, depois o coração se revela. Ambos devem ser
O povo, isto é, os que exercem profissões pu- objeto da educação doméstica, que se destina ao ho-
ramente mecânicas e contínuas, permanecem no mem natural.
estado habitual da infância, são apenas coração e Mais tarde, propiciado pelos conhecimentos
sentimento. Seu espírito não pode se aplicar sufi- elementares fornecidos pela educação doméstica, o
cientemente sobre os objetos dos conhecimentos hu- espírito se desenvolve. Agora começa o homem so-
manos, a ponto de ser possível e útil dar-lhes esses cial, cujo espírito é dado pela sociedade. Ele tem
conhecimentos. A razão do povo deve ser seu sen- vontades e opiniões, que é preciso regular e guiar.
timento. Portanto, é seu coração que deve ser diri- O objeto da educação social é, então, orientar para
gido e formado, não seu espírito. seu uso todas as faculdades do homem; ela tem o
No entanto, nessa classe encontram-se pessoas direito de formar para a utilidade geral todas as suas
que a natureza eleva acima de sua esfera, que ela faculdades: a faculdade de querer, de amar, de agir
destina ao exercício de alguma profissão útil à so- — seu espírito, seu coração e seu sentimento.
ciedade. Para que essas pessoas possam cumprir seu Há na sociedade profissões que são necessá-
destino, a sociedade lhes dá os primeiros elemen- rias à conservação da sociedade natural, e outras,
tos dos conhecimentos, que nem a natureza nem a necessárias à conservação da sociedade política. As-
razão podem suprir. Esse é o objetivo das peque- sim, há famílias políticas ou sociais e famílias natu-
nas escolas situadas nas cidades e vilas, onde se en- rais. Se as primeiras não tiverem os meios para dar
sina a ler, a escrever, os princípios da religião e da a suas crianças uma educação social, a sociedade,
aritmética. em seu próprio interesse, deve vir em sua ajuda.
Bonald diz que um erro muito comum nos que Bonald examina a objeção de que se o Estado
muito leram, pouco meditaram e menos ainda ob- está obrigado a educar as crianças das famílias so-
servaram é acreditarem na existência de talentos la- ciais que não dispuserem dos meios de fazê-lo por
tentes na maioria das pessoas. Os philosophes (os si mesmas, disso resultaria desigualdade entre os
iluministas?) crêem também na existência de espí- diversos membros da sociedade. Para contestar essa
ritos que eles não vêem. Nesse sentido, muitos au- objeção, ele recorre à explicação sobre as diferen-

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Sociedade, Estado e educação

ças entre os homens. Para conhecer aqueles que tra- estabelecimentos públicos e, assim, facilitar-lhes os
balham mais e melhor (obrigação que a natureza meios de serem úteis. Assim, a sociedade deverá
impõe a todos os homens), que cumprem melhor admitir em seus estabelecimentos de educação pú-
seu dever, há um método infalível, público, isento blica todas as crianças sãs de corpo e de espírito,
de toda contestação: é pela sua fortuna. cujas famílias tenham a intenção e os meios de lhes
dar a educação social. Só não poderá assumir os
Aquele que enriquece é portanto aquele que tra-
encargos financeiros desses estabelecimentos.
balha mais e que trabalha melhor, que cumpre mais
perfeitamente com seus deveres naturais, que apresen- É preciso que os pais sejam persuadidos de que
ta a melhor garantia de sua aptidão em preencher os a educação social não tem por objetivo tornar os jo-
deveres políticos, que merece ser distinguido e sua fa- vens mais sábios, mas, sim, torná-los bons e próprios
mília, ser enobrecida (Théorie, pp. 247-248). para receber a educação particular da profissão à qual
estão destinados, e que eles estão no colégio menos
Assim, o homem que enriquece e enobrece sua
para se instruírem do que para se ocuparem (Théorie,
família pela compra de cargos nada mais faz do que
p. 249-250).
provar à sociedade que ele merece que sua família
seja admitida a cumprir com os deveres políticos,
pela sua aplicação e sua aptidão no cumprimento Saint-Simon: a educação do
dos deveres naturais. Bonald nem mesmo aceita a homem industrial
objeção de que possa haver meios desonestos de
enriquecimento numa sociedade constituída. Não Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Si-
se poderia admitir que o enobrecimento proviesse mon (1760-1825), desde muito jovem mostrou in-
apenas dos serviços distinguidos prestados à socie- conformidade com as condições sociais, buscando
dade, senão apenas duas famílias por século seriam mudanças em seu modo de vida pessoal. Participou
admitidas à nobreza, enquanto que as necessidades como capitão do corpo expedicionário francês na
da sociedade exigem um número um pouco maior. luta dos colonos da América contra a dominação
Bonald defende que deverão ser admitidos nos britânica. Conheceu, então, uma sociedade bem di-
colégios (no ensino secundário) os filhos de todas ferente da sua. Deparou com um modo de vida onde
as famílias que devam ou que possam lhes dar a o comércio e a indústria eram atividades muito va-
educação social ou pública.5 lorizadas, livres dos entraves feudais que persistiam
Toda família que não exerce uma profissão na França. De volta a seu país, apoiou a Revolu-
social, mas que deseja dar a suas crianças uma edu- ção, abriu mão de seu título nobiliárquico, mas não
cação social (ou pública), demonstra que tem a in- desempenhou nenhum papel ativo, por julgar que
tenção de torná-las úteis à sociedade, e pode se ele- as pessoas de origem aristocrática deveriam aguar-
var ao nível das famílias sociais ou distinguidas. A dar o desfecho das disputas políticas.
sociedade não pode pagar a educação dessas crian- Enquanto o processo revolucionário se estabi-
ças porque ignora se elas vão querer ou se vão po- lizava, Saint-Simon dissipou sua fortuna na promo-
der abraçar uma profissão social ou se sua família ção de uma convivência mundana com intelectuais
terá as qualidades necessárias para se elevar ao ní- e artistas, aproveitando para se instruir. Freqüentou
vel de uma família social. Mas deve admiti-las nos cursos na Escola Politécnica e na Escola de Medicina,
onde a interação com os professores propiciou-lhe
a participação em diversas experiências. Foi só após
5É um sentido do termo educação pública semelhante 1805, completamente arruinado financeiramente,
ao que persiste até hoje na Inglaterra, onde as public schools que ele veio a escrever a quase totalidade de sua obra,
são privadas... valendo-se do amparo de amigos no governo.

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Luiz Antônio Cunha

Além de ser um protagonista político, Saint- feudalismo persistiam, impedindo os industriais de


Simon extraiu das lutas de que participou elemen- desenvolverem todas as suas possibilidades objeti-
tos para a construção de uma verdadeira matriz vas. Eles continuaram pensando como discípulos
teórica, unindo teoria e prática política de um modo dos “metafísicos” (principalmente os iluministas),
original. Criador do positivismo como filosofia, de- com aspirações à nobreza, não desenvolvendo uma
senvolveu incansável atividade panfletária contra os consciência dos interesses de sua classe, prolongan-
“ociosos” e em prol dos industriais, os únicos que do, assim, sua posição subalterna.
poderiam assessorar o rei na direção dos negócios O lugar ocupado pela burguesia deveria ter
públicos, de preferência exercendo eles o poder di- sido preenchido por um poder espiritual interme-
retamente. A ciência foi anunciada como a substi- diário, já que os homens não podem passar de uma
tuta da religião, depois sua parceira na condução só vez e inteiramente de uma doutrina a outra. O
da humanidade em direção à harmonia e ao bem único papel desse poder espiritual passageiro seria
comum. Como um dos pioneiros do socialismo en- o de operar a transição de um sistema para outro,
quanto doutrina social, insistiu na distinção entre que, plenamente em funcionamento, o dispensaria.
sociedade e Estado, condição para se empreender Esse poder espiritual não seria o do clero atual,
uma organização social e até um governo da socie- que tinha se tornado “um encargo sem benefício
dade sem poder estatal, no sentido político do ter- para a última classe da sociedade”, já que todas as
mo; na igualdade entre os homens em cooperação, suas prédicas se destinavam a levar os pobres à
em lugar da exploração do homem pelo homem; no obediência passiva dos ricos e dos privilegiados, os
fim do direito de herança; na contribuição de cada quais, por sua vez, deveriam obedecer cegamente,
um segundo suas capacidades e na retribuição a primeiro ao papa, depois ao rei. Mas, se o clero
cada um conforme suas necessidades individuais. estava ultrapassado, o mesmo não acontecia com
Como os filósofos do Iluminismo, ele confia- o Cristianismo, doutrina de grande atualidade na
va no poder da razão para transformar o mundo, sociedade industrial.
recusando-se a aceitá-lo como estava, adotando Em De l’organisation sociale, Saint-Simon di-
uma posição internacionalista e otimista quanto ao zia que o poder espiritual ou científico deveria ser
futuro da humanidade. Afastava-se deles na avalia- institucionalizado em duas academias separadas. A
ção da Idade Média, não aceitando seu julgamen- Academia de Ciências definiria um código de inte-
to de que teria sido uma época dominada pela su- resses, enquanto que a Academia de Belas Artes tra-
perstição e pela ignorância. Não escondia sua ad- taria de um código de sentimentos. Elas atuariam
miração pela sociedade feudal, no que tinha de força conjuntamente no estabelecimento de uma doutri-
coesiva representada pelo clero, e a religião como na relativa à instrução pública.
idéia dominante, propiciando a unidade de toda a Embora a religião e o clero tivessem perdido
Europa, tendo no papa a direção intelectual. Mas, o lugar que ocupavam na sociedade feudal, a so-
ao contrário dos românticos, não aceitava que a ciedade industrial plenamente constituída necessi-
Idade Média européia pudesse ser o modelo do taria de seu equivalente funcional. O pensamento
mundo novo, pois a ciência e a indústria, desde que científico substituiria o dogma religioso e os cien-
estas apareceram na sociedade feudal, determina- tistas ocupariam o lugar do clero. Mas a ciência
ram a sua morte e se converteram nos princípios es- não poderia ser apreendida da mesma maneira por
senciais de uma nova sociedade. todos os indivíduos. Para os que fossem intelec-
Saint-Simon insistiu em mostrar a existência, tualmente menos capazes, a verdade científica se-
na França pós-revolucionária, de uma contradição ria difundida mediante rituais, cultos e processos
entre o progresso constante da indústria e as idéias místicos. A elite educada, ao contrário, apreende-
comuns dos industriais. As idéias dominantes do ria a ciência diretamente. Assim, uma nova força

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Sociedade, Estado e educação

coesiva se desenvolveria, garantindo a unidade da balhos industriais” e os proletários, entre estes e os


sociedade. Aí está o lugar do pensador social como especialistas. Em certas passagens, onde enfatiza a
protagonista na difusão das novas formas de pen- oposição entre os industriais, a burguesia e os ocio-
samento: a difusão de uma ética baseada no pen- sos, ele sugere que os conflitos entre aquelas clas-
samento positivo. ses seriam espontaneamente resolvidos mediante
Para se concluir o processo da Revolução, se- conciliação. Já em outras passagens, reconhece que
ria preciso acabar com o poder dos ociosos e trans- o egoísmo desmedido dos ricos e a rebeldia dos po-
feri-lo aos industriais. Saint-Simon dizia que todos bres teriam efeitos desorganizadores que compro-
os cidadãos dedicados a ocupações úteis desejavam meteriam a própria unidade social.
que os agricultores, negociantes e fabricantes de Ele entendia a sociedade como um corpo social,
mais sucesso fossem os dirigentes dos negócios pú- no qual as diversas partes contribuem, cada uma a
blicos, pelo menos da elaboração do orçamento. seu modo, para a vida em comum. Nas suas pala-
Isso porque eles eram tidos como os mais interes- vras, “mais do que um aglomerado de seres vivos, a
sados no aperfeiçoamento da moral pública e pri- sociedade é sobretudo uma verdadeira máquina or-
vada, bem como no impedimento das desordens. ganizada na qual todas as partes contribuem de uma
Eles sentiriam mais do que ninguém a utilidade das maneira diferente para o funcionamento do conjun-
ciências positivas e os serviços que as belas artes po- to” (“De la physiologie sociale”, Oeuvres, tomo V,
deriam prestar à sociedade. Além do mais, os indus- p 177, grifo meu).
triais de sucesso já teriam provado ser os mais ca- No sistema positivo de pensamento, caracte-
pazes em seus negócios particulares, razão pela qual rístico da etapa científica, todo o universo huma-
se poderia esperar que fizessem o mesmo nos negó- no substituiria a idéia de uma regulação divina pela
cios públicos. da gravitação, como Newton havia estabelecido co-
Para mostrar a indispensabilidade dos indus- mo hipótese para os corpos celestes. Com os arran-
triais, Saint-Simon convidava o leitor de uma de jos convenientes, o princípio da gravitação viria a
suas cartas ao rei, incluída em Du système indus- tomar o lugar, com idéias claras e precisas, de to-
triel, a fazer uma suposição. Se a França perdesse dos os princípios que a teologia ensinava até então.6
de repente três mil cidadãos pertencentes aos diver- A indústria, depois de ter sido a causa da evo-
sos ramos das ciências, das belas artes e da agricul- lução (que levou à Revolução), vai tornar-se o pró-
tura, da manufatura e do comércio, “ela se torna- prio fim da vida social, penetrando todas as ativi-
ria um corpo sem alma”, em situação de inferiori- dades, impondo-lhes suas características, inclusive
dade diante da nação rival. Se, ao contrário, ela con- na política. O governo militarizado do feudalismo
servasse seus “homens de gênio” e perdesse trinta estava orientado para a ação sobre os homens, por
mil personagens consideradas as mais importantes isso era hierarquizado. Já a indústria tem por fim
dentre os funcionários públicos, os militares, os le- agir sobre a natureza, sobre as coisas, por isso o
gisladores, os clérigos, os proprietários ociosos, não governo que lhe corresponde estará orientado para
resultaria disso nenhum mal político para o Esta- a organização. A indústria opera uma nova socia-
do, e a nação conservaria sua posição elevada en- lização dos indivíduos, criando um tipo radicalmen-
tre os povos civilizados. te novo de solidariedade: é o trabalho que se torna
Refinando sua análise, Saint-Simon distingue o princípio de coesão e de integração social. Essa é
dentre os industriais, no sentido estrito, os proprie- a igualdade própria da sociedade industrial, onde
tários dos não-proprietários, a quem chama de pro-
letários ou de classe proletária. Reconhece a exis-
tência de conflitos entre eles, bem como entre os 6Cf. “Memoire sur la science de l’homme”, Oeuvres,
dirigentes e os executores, entre os “chefes de tra- tomo V, pp. 271 e 286.

Revista Brasileira de Educação 61


Luiz Antônio Cunha

não existem privilegiados por razão de nascimen- tos da ciência social: uma cátedra de direção polí-
to nesta ou naquela família. tica e industrial; outra, de moral; e outra, de pes-
A plena realização do industrialismo como quisa científica.
modo de vida implicaria o desaparecimento dos Em 1816, num opúsculo enviado à assem-
ociosos, com o triunfo dos industriais, vindo o tra- bléia geral da Sociedade de Instrução Primária, en-
balho a ser o princípio organizativo de toda a so- tidade privada destinada à promoção da instrução
ciedade. Assim, tendendo a tornar-se a única clas- popular, notadamente mediante o ensino mútuo,
se da sociedade, os industriais (com suas diferen- Saint-Simon sugere a adoção de medidas insólitas
ciações) forneceriam a base social para o princípio para sua época. Embora considerasse preferível e
da igualdade com diferenciação de funções. O sis- mais fácil a educação das crianças da classe média
tema industrial estaria, então, baseado no princí- do que da “última classe da sociedade”, ele reco-
pio da igualdade perfeita, opondo-se aos direitos mendou a atração dos filhos das famílias ricas pa-
de nascimento e a todo tipo de privilégio. ra estudarem junto aos pobres; o prolongamento
dos estudos dos “societários” até a escola secun-
*** dária; e a adaptação do currículo da escola primá-
Na linha de Rousseau, Saint-Simon conside- ria às necessidades da indústria.
ra que a educação (no sentido lato) é mais impor- Lamentavelmente, pouco mais se sabe a res-
tante do que a instrução propriamente dita, tendo peito da feição que assumiria a educação, especifi-
em vista o bem-estar social. É aquela que forma os camente a instrução, na sociedade industrial preco-
costumes, que desenvolve os sentimentos e amplia nizada por Saint-Simon.
a capacidade de previsão. Para os proletários, par- Quatro décadas depois de sua morte, Júlio
ticularmente, a educação é muito mais importante Verne escreveu (em 1863) um romance de anteci-
do que a instrução, haja vista a capacidade que o pação (ficção científica), inédito até 1994, denomi-
filósofo reconhece nesta classe de exercer a ad- nado Paris no século XX, onde projetou para a
ministração das empresas. Isso não quer dizer que década de 1960 os processos que considerava em
Saint-Simon condene o proletariado à educação es- curso na sociedade francesa de seu tempo, assim
pontânea. Ao contrário, ele reconhece que essa clas- como a educação. Nessa projeção, a presença do
se tem mostrado disposição de se instruir, quando positivismo de Saint-Simon pode ser facilmente re-
encontra condições para isso, apesar de os filhos dos conhecida na rejeitada caricatura do futuro pari-
ricos, notadamente dos ociosos, terem mais tempo siense. Chama a atenção o fato de o romancista ter
e recursos para se dedicarem aos estudos. imaginado como seria a educação coerente com o
Para o filósofo, a instrução deveria ficar sob industrialismo pregado pelo filósofo, a que ele pró-
a responsabilidade do poder espiritual, devendo de- prio não havia dado tal importância.
la ser retirada o conteúdo inerente à cultura dos Júlio Verne apresenta nesse romance uma vi-
ociosos, em especial as línguas clássicas e os auto- são profundamente pessimista do progresso. As ma-
res gregos e latinos. As ciências positivas é que de- ravilhas tecnológicas não teriam resultado, um sé-
veriam ocupar o lugar deixado vago, especialmen- culo após, na melhoria da vida humana. A educa-
te a matemática, a física, a química e a história na- ção, particularmente, levou ao amesquinhamento
tural. Detalhando seu propósito de renovar a men- das pessoas, formadas exclusivamente para o tra-
talidade dos industriais, Saint-Simon sugeriu a Na- balho lucrativo na indústria e no comércio. Assim,
poleão (quando este retomou o poder em 1815) que focalizar a imagem “industrialista” da educação, em
instituísse cátedras públicas de política. Em 1825, Júlio Verne, é uma espécie de mirada no negativo
no Catecismo dos industriais, propôs a criação de da imagem que dela teria Saint-Simon, pelo menos
três cátedras para o ensino dos principais elemen- pela ótica de seu lado positivista mais extremado.

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Sociedade, Estado e educação

Passemos, então, à Paris do futuro. maticamente, no mesmo lugar onde a federação


O livro começa focalizando a distribuição dos havia sido aclamada pela massa revolucionária,
prêmios anuais da Sociedade Geral de Crédito Ins- 150 anos antes. Os negócios iam muito bem: o lu-
trucional, que “correspondia perfeitamente às ten- cro do exercício de 1960 já superava o preço de
dências industriais do século XX”. Os capitais li- emissão das ações.
berados pela estatização das ferrovias foram empre- Os estudantes premiados foram sendo chama-
gados numa empresa com fins educacionais. O que dos para ouvirem seus feitos celebrados na mate-
não teria nada de espantoso. “Ora, para um empre- mática e nas ciências. Mas, quando foi chamado
sário, construir ou instruir é tudo a mesma coisa, Michel Dufrénoy, primeiro prêmio em versos lati-
visto que, para falar a verdade, a instrução não pas- nos, a gozação do público foi geral, pelo desprezo
sa de um tipo de construção, um pouco menos só- que se tinha por essa “disciplina” remanescente. O
lida” (Paris, pp. 32-33). incrível foi o prêmio que o herói do livro (homôni-
Em 1937, durante o reinado de Napoleão V mo do filho de Júlio Verne) ganhara: o Manual do
(Júlio Verne escrevera durante Napoleão III), o ba- bom fabricante, que ele jogou no chão.
rão de Vercampin, um bem-sucedido homem de Michel vivia numa “família eminentemente
negócios, obtivera autorização do Estado para fun- prática” (título de um capítulo do livro). Orfão, foi
dir os liceus públicos e privados numa única insti- criado pelos tios.
tuição, que cobria a França inteira, mantida por
O Sr. Stanilas Boutardin era o produto natural
uma sociedade anônima, aprovada por decreto im-
daquele século de indústrias; desenvolvera-se numa
perial. No conselho administrativo estavam um di-
estufa quente, em lugar de crescer em plena nature-
retor de ferrovias, um banqueiro, um senador, um
za; homem eminentemente prático, nada fazia que não
deputado, um coronel da polícia e o diretor geral
fosse útil, conformando suas menores idéias ao útil,
do estabelecimento de ensino. “Como se vê, ne-
com um desejo incontido de ser útil que ia dar num
nhum nome de sábio ou professor no Conselho Ad-
egoísmo verdadeiramente ideal; unindo o útil ao
ministrativo. Era mais tranqüilizador para a insti-
desagradável, como teria dito Horácio; sua vaidade
tuição comercial” (Paris, p. 34). Um inspetor do
transparecia em suas palavras, mais ainda que em seus
governo acompanhava as operações da companhia
gestos, e ele não teria permitido que sua própria som-
e as relatava ao ministro competente.
bra o precedesse; exprimia-se por gramas e centíme-
O autor nada diz sobre o ensino superior, a
tros e andava com uma bengala métrica fosse qual
não ser que a Escola Politécnica havia sido “supres-
fosse o clima, o que lhe dava um grande conhecimen-
sa” em 1889. Nem sobre o ensino primário. Foi o
to das coisas deste mundo; desprezava solenemente as
ensino secundário que mereceu sua atenção.
artes, principalmente os artistas, para dar a entender
Nos cerca de 150 mil alunos da companhia,
que os conhecia; para ele, a pintura não ia além da
cuja idade e currículo leva a crer serem do ensino
água forte, o desenho da cópia, a escultura da fôrma,
secundário, “a ciência era incutida por meios mecâ-
a música do apito das locomotivas, a literatura dos bo-
nicos” (Paris, p. 34). As letras e as línguas mortas,
letins da Bolsa (Paris, p. 53).
como o latim e o grego, foram relegadas a um segun-
do plano, com tendência à extinção. As línguas vi- O tio de Michel, banqueiro e industrial, cres-
vas, com a exceção do francês, eram muito cultiva- cera cercado pela mecânica, por isso explicava sua
das, com objetivos comerciais, especialmente depois vida pelas engrenagens ou transmissões. Movia-se
da conquista francesa da Cochinchina (Indochina). regularmente com o mínimo de atrito possível, co-
A Sociedade tinha construído uma verdadei- mo um pistão num cilindro perfeitamente calibra-
ra “cidade instrucional” no Campo de Marte, on- do. Transmitia seu movimento uniforme à mulher,
de cabiam milhares de estudantes e mestres. Sinto- ao filho, aos empregados, aos criados de casa, to-

Revista Brasileira de Educação 63


Luiz Antônio Cunha

dos eles verdadeiras máquinas-ferramentas de que não havia mais exércitos nem guerras. No século
ele, o grande motor, tirava o melhor partido possí- anterior (o XIX), o desenvolvimento das máquinas
vel. Era um mau-caráter, incapaz de um bom ou de de guerra havia atingido tal ponto que o desarma-
um mau movimento. Fizera uma imensa fortuna, mento foi o desfecho inevitável. As nações euro-
animado pelo “elã do século”. Mostrava-se reco- péias suprimiram o Estado militar e, com ele, o es-
nhecido para com a indústria, que adorava como pírito de luta. Antecipando o equilíbrio bélico da
se fosse uma deusa.7 guerra fria da década de 1960, Júlio Verne dizia
Sua mulher, a tia de Michel, era, por sua vez, que “efetivamente, as máquinas mataram a bravu-
“uma verdadeira administradora, bem uma fêmea ra e os soldados transformaram-se em mecânicos”
de administrador” (Paris, p. 55). (Paris, p. 138).
A história é da desventura de Michel em ten- O industrialismo teria imprimido sua marca na
tar ser “um homem prático”, exigência do tio que sociedade tão fortemente (como vaticinava Saint-
o queria empregado em seu banco. E sua tentativa Simon, o filósofo positivista) que até mesmo as mu-
frustrada de ser um literato numa sociedade onde lheres mudaram seu modo de ser — acabarão sen-
o primeiro dever do homem era ganhar dinheiro. do substituídas por máquinas de ar comprimido. Já
Para os poetas, restava a única oportunidade de era possível ver como as mulheres entraram em
celebrar em seus versos as maravilhas da indústria. decadência fisiológica. O diagnóstico do pianista
A língua francesa estava recheada de palavras Quinsonas, marginal como Michel, é bem depres-
inglesas. Os inventores, os comerciantes de cavalos sivo, mostrando a adaptação da mulher ao indus-
e os vendedores de carros foram buscar na língua trialismo e ao americanismo, seu modo de vida
inglesa as palavras de que precisavam para valori- correspondente:
zar seus produtos.8
A atitude envolvente da parisiense, seu porte
Na Sociedade, as cátedras de letras seriam ex-
gracioso, seu olhar vivo e terno, seu amável sorriso,
tintas em 1962, em decorrência de uma decisão to-
sua carnadura ao mesmo tempo adequada e firme, em
mada em assembléia geral dos acionistas. Dizia o
pouco tempo deram lugar a formas longas, magras,
desconsolado professor de retórica: “Quem quer
áridas, descarnadas, emaciadas, depauperadas, de uma
saber de gregos e latinos, que só servem, no máxi-
desenvoltura mecânica, metódica e puritana. A cintura
mo, para fornecer uma ou outra raiz para as pala-
perdeu a curva, o olhar ficou austero, as juntas enri-
vras da ciência moderna!” (Paris, p. 132).
jeceram; um nariz duro e rígido inclinou-se sobre os
Mas não só os literatos eram uma espécie em
lábios finos e chupados; o passo espichou; o anjo da
extinção. A carreira de soldado foi extinta porque
geometria, antigamente tão pródigo no fornecimen-
to de suas curvas mais atraentes, entregou a mulher a
todo o rigor da linha reta e dos ângulos agudos. A
7 A Bolsa de Valores era a catedral do momento, o francesa virou americana; fala gravemente dos negó-
templo dos templos.
cios graves, encara a vida com rigidez, cavalga sobre
8 O memorialista barroco Saint-Simon (o duque, não o lombo magro dos costumes, veste-se mal, sem gos-
o conde, este o filósofo que nos ocupa neste texto) é men-
to, e enverga coletes de tecido galvanizado, capazes de
cionado por Júlio Verne ao lado de Bossuet e de Fénélon,
resistir às pressões mais intensas. Meu filho, a Fran-
como homens de letras que não conseguiriam reconhecer a
língua francesa do século XIX. Ela havia se descaracterizado ça perdeu sua verdadeira superioridade; suas mulhe-
não só devido aos numerosos termos ingleses importados, res, no delicioso século de Luiz XV, haviam afemina-
mas, também, pela duplicidade, pelo equívoco e pela men- do os homens; de lá para cá passaram para o gênero
tira próprios da diplomacia (o francês havia sido escolhido masculino e já não valem o olhar de um artista nem a
no século XVII como língua diplomática justamente por suas
atenção de um amante! (Paris, p. 144-145).
qualidades de franqueza e transparência).

64 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Sociedade, Estado e educação

Ao contrário de Saint-Simon, o filósofo posi- famílias burguesas que desejassem investir no in-
tivista, Verne imaginava o aumento do poder do gresso nesse estamento. Além do mais, o texto do
Estado. Apesar da industrialização acionada pelos filósofo reconhece a existência de escolas primárias
empresários privados, ele via a França dos próxi- nas cidades e nas vilas, destinadas a crianças das
mos cem anos marcada pela centralização estatal, “famílias naturais” que, sem se transformarem na-
movida por dez milhões de funcionários públicos. quelas, haviam se elevado um pouco acima de sua
A propósito, alguém disse a Michel sobre a possibili- condição original. Tais escolas não são apresenta-
dade de arranjar um emprego público: “sempre é das pelo autor como escolas públicas. Possivel-
tempo de se funcionarizar”. Como as ferrovias, os mente, elas seriam mantidas por entidades consti-
teatros haviam passado para o controle do governo. tuintes da Sociedade Religiosa, portanto escolas
Depois que Michel demonstrou sua incapaci- privadas.
dade para o trabalho no banco do tio, de onde fugi- Para Saint-Simon, finalmente, poucas são as
ra após provocar grande prejuízo, seus amigos, mar- referências à educação mantida pelo Estado. Ele se
ginais como ele, mas com relações vantajosas, arran- referiu, certa vez, à Escola Politécnica (estatal) como
jaram-lhe um emprego no Grande Armazém Dra- o mais perfeito estabelecimento de ensino existen-
mático. Apesar da boa vontade do diretor, ele fra- te, e chegou a propor a Napoleão a criação de cá-
cassou em todas as tarefas que lhe foram atribuídas tedras para a educação dos industriais, possivelmen-
na máquina burocrática do entretenimento oficial. te dos mais instruídos. No que diz respeito ao en-
Deserdado pelo tio banqueiro, incapaz de se sino elementar, sua filiação à Sociedade de Instru-
adaptar no emprego público, a miséria chegou em ção Primária — entidade civil filantrópica — des-
pleno inverno rigoroso. Perdeu contato com os ami- tinada a promover a educação das crianças prole-
gos, marginais como ele, perdeu-se da amada e aca- tárias, o filósofo apresenta sua atividade como sen-
bou morrendo de fome e frio. Morto pela socieda- do de caráter público, embora não estatal. No mes-
de industrializada, que não admitia um poeta como mo sentido, a direção de toda instrução pública não
ele, do mesmo modo que condenava os artistas. ficaria a cargo do Poder Público (do Estado), mas,
sim, do Poder Espiritual, constituído da Academia
À guisa de comparação de Ciências e da Academia de Belas Artes.
Se a expressão educação pública não-estatal
Pelo exposto, podemos ver que os três pensa- está ausente dos escritos desse filósofo, a concepção
dores focalizados — Rousseau, Bonald e Saint- está bem presente. Ela veio a ser reforçada, na ótica
Simon — entendem diferentemente as relações en- do positivismo, por Augusto Comte (1830)9 e pela
tre sociedade, Estado e educação. projeção ficcional saint-simoniana de Júlio Verne
Para o Rousseau da Enciclopédia, educação (1863). Já na ótica socialista, também tributária do
pública é sinônimo de educação estatal, e seus des- pensamento de Saint-Simon, a educação pública não-
tinatários são todas as crianças nascidas na socie- estatal veio a ser defendida por Karl Marx, pelo me-
dade, em especial na república. Já no Emílio, o fi- nos na exposição ao Conselho Geral da Associação
lósofo nem ao menos trata a educação pública como Internacional do Trabalho (1869).
tema a ser considerado, pois sua preocupação é a
educação de um indivíduo abastado e “de berço”.
9 Esse ano marca sua participação como co-fundador
Para Bonald, há uma educação pública sinô-
da Associação Politécnica para a Instrução Popular. Embora
nima de educação estatal, pelo menos no tocante
não seja aqui o lugar para uma comparação entre o pensa-
ao ensino secundário, cujos destinatários são ape- mento de Saint-Simon e de Comte sobre a questão educacio-
nas os jovens oriundos das “famílias sociais”, isto nal, cumpre adiantar que este substitui o protagonismo edu-
é, da nobreza, aos quais se juntariam os filhos das cativo dos industriais pelo clero positivista.

Revista Brasileira de Educação 65


Luiz Antônio Cunha

__________, (1992). Emílio ou da educação. Rio de Janei-


LUIZ ANTÔNIO CUNHA é sociólogo, mestre e dou-
ro: Bertrand.
tor em educação. Lecionou na PUC/RJ, no IESAE/FGV, na
UNICAMP, na UFF, na USP e na FLACSO. Foi pesquisa- __________, (sd). Do contrato social. Discurso sobre a eco-
dor-visitante da Faculdade de Educação da USP, com bol- nomia política. São Paulo: Hemus.
sa da FAPESP. Dentre seus livros, os mais importantes SALINAS FORTES, Luiz (1976), Rousseau: da teoria à prá-
são Educação e desenvolvimento social no Brasil (1975), tica. São Paulo: Ática.
Educação, Estado e democracia no Brasil (1991), a trilogia
__________, (1989). Rousseau: o bom selvagem. São Pau-
sobre a universidade brasileira (Temporã, 1980; Crítica,
lo: FTD.
1983; Reformanda, 1988) e, o mais recente (1995), Educa-
ção brasileira: projetos em disputa (Lula x FHC na cam- TRINDADE, Liana S., (1978). As raízes ideológicas das
panha presidencial). teorias sociais. São Paulo: Ática.
SAINT-SIMON, Claude-Henri de, (1966). Oeuvres. Paris:
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et réligieux. Théorie de l’éducation sociale. Paris: Union
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__________, (1985). Démonstration philosophique du prin-
cipe constitutif de la societé. Méditations politiques tirés
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BOTTOMORE, Tom, NISBET, Robert A. (orgs), (1978).
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saio sobre a origem das línguas, Discurso sobre as ciên-
cias e as artes, Discurso sobre a origem e os fundamen-
tos da desigualdade entre os homens. Coleção “Os Pen-
sadores”. São Paulo: Abril Cultural.
__________, (1982). Considerações sobre o governo da Po-
lônia e sua reforma projetada. São Paulo: Brasiliense.

66 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Ensino e historiografia da educação
Problematização de uma hipótese

Clarice Nunes
Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense

Trabalho apresentado no Programa de Pós-Graduação


em Educação da Universidade Federal Fluminense.

Este artigo foi originalmente redigido com o serviço do ensino da história da educação e de tudo
objetivo de nortear a discussão da pesquisa “Visões o que ela significa em termos da construção de uma
da história da educação”.1 Esta pesquisa preocupa- nova forma de compreender legados interiorizados,
se com o ensino de história da educação produzi- rotas percorridas e caminhos já desbravados. O que
do em conjunturas diversas, mas com a mesma in- pretendemos é apreender como se constitui, na so-
tenção: realizar uma sistematização geral dessa his- ciedade brasileira, uma história da educação en-
tória e, por intermédio dela, levar o leitor a apreen- quanto disciplina escolar, através de livros cujas
dê-la como uma área de conhecimentos que tem um intenções e concepções nos remetem ao substanti-
“domínio próprio”, uma “certa tradição” e manei- vo plural visões. Entendemos por visões da histó-
ras próprias de perceber a sociedade e as relações ria da educação as diferentes maneiras pelas quais,
entre sociedade e educação. em diferentes lugares e momentos, uma determina-
Colocamos nossos esforços de investigação no da “realidade pedagógica” é construída ou, como
plano da interlocução aberta por uma reflexão a diria Roger Chartier, “dada a ler”.
A descoberta desses modos de construção pode
1 ser feita através de vários itinerários e com outras
Esta pesquisa conta com o financiamento do CNPq
e apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Fede- fontes, impressas ou não, como os discursos minis-
ral Fluminense. Está sendo desenvolvida no Programa de teriais, as circulares, os pareceres, os programas
Pós-Graduação em Educação dessa universidade com pro- escolares, os relatórios de inspeção, os projetos de
fessores ligados ao Departamento de Fundamentos Pedagó- reformas, os artigos, os manuais destinados aos do-
gicos. O grupo de investigação é composto, além da autora
centes, as polêmicas críticas, os planos de estudo,
deste artigo, que o coordena, pelos alunos Cristiane Gon-
os planos de curso, os relatos de bancas examina-
çalves de Souza e Júlio Cláudio da Silva e pelas professoras
Daisy Guimarães de Souza, Haydée da Graça Ferreira de Fi- doras, os debates de comissões especializadas, etc.
gueiredo e Rose Claire Pouchain Matela. Focalizamos os livros, no entanto, por considerá-

Revista Brasileira de Educação 67


Clarice Nunes

los como os principais mediadores do ato pedagó- esquecidos pela recente produção na área, que, no
gico, instrumentos materiais e simbólicos que guar- entanto, tiveram destaque ímpar na difusão desses
dam múltiplos significados e permitem uma leitu- conteúdos junto aos cursos de formação de profes-
ra diversificada. Priorizamos, portanto, uma pro- sores primários e secundários. É espantoso, por
dução que costuma ser recorrente em bibliografias exemplo, que Theobaldo Miranda Santos, autor
e bibliotecas e que, pelo menos hipoteticamente, de Noções de História da Educação, publicado
seria consultada por professores e estudantes dos pela Companhia Editora Nacional e que alcançou,
cursos de formação de educadores. de 1945 a 1964, dez edições consecutivas sem
Dos livros identificados durante a elaboração qualquer alteração significativa, tenha ultrapassa-
do projeto de pesquisa, produzidos entre 1889 e do a tiragem de 15 milhões de exemplares apenas
1990, selecionamos 28 títulos referentes a história no que diz respeito a suas publicações lançadas
da educação geral e história da educação brasilei- pela Editora Agir.3
ra, dos quais sete são traduções de obras francesas, Algumas editoras que lançaram compêndios
norte-americanas, italianas e argentinas.2 A Com- de história da educação nas primeiras décadas do
panhia Editora Nacional, através da sua coletânea regime republicano não mais existem. É o caso da
Atualidades Pedagógicas, criada com o claro obje- Pongetti, por exemplo. De qualquer forma, a con-
tivo de formar a biblioteca dos professores primá- sulta aos arquivos das editoras ainda em plena ati-
rios e secundários, recorrendo para isso, quase sem- vidade, se isso for possível, é tarefa necessária que
pre, aos serviços de tradução e notas de Luís Da- remeterá à discussão da política e das práticas edi-
masco Penna e J.B. Damasco Penna, tem papel des- toriais interessadas não só em responder a deman-
tacado na divulgação dessas obras didáticas estran- das específicas provenientes do público leitor, mas,
geiras, seguida pela Cortez & Autores Associados em determinadas conjunturas, voltadas incisiva-
e pela Mestre Jou. mente para a criação desse público; entre essas, des-
Problemas operacionais e falta de recursos tacamos em particular a Companhia Editora Na-
impediram, até o momento, o aprofundamento da cional e a Editora Vozes. Permitiria também ava-
pesquisa junto a essas e outras editoras, o que per- liar o papel de certos órgãos e comissões governa-
mitiria o levantamento de indicadores preciosos mentais que traçaram um percurso para a política
não só quanto aos livros de história da educação do livro didático no país. Lembramos, principal-
como mercadorias em circulação, mas também mente, a necessidade de se examinar o papel da Co-
quanto ao alcance da contribuição de autores hoje missão Nacional do Livro Escolar, criada em 1938,
e que promoveu não só a revisão das obras didáti-
cas no país, mas controlou a sua vinculação e dis-
2 Ficaram de lado, nessa fase da pesquisa, não só os tribuição junto às escolas públicas, visando, dessa
livros de história da educação não traduzidos e de circula-
forma, forjar uma opinião atrelada ao poder auto-
ção restrita junto aos professores, mas também todos os li-
ritário do Estado.
vros dedicados a temas ou períodos específicos dessa histó-
ria. A pesquisa está possibilitando também descobrir novos A equipe vinculada ao projeto trabalha, nes-
títulos que deverão ser incorporados à listagem inicial: Dr. ta fase da pesquisa, com 20 livros produzidos no
Bento C. Freitas, Evolução histórica do ensino no Brasil Brasil, realizando levantamentos sobre autor (nome
(1752-1930) (Edições do autor, s/d); Hélio Vianna, Synthese completo, data de nascimento, formação, títulos,
de uma história da educação no Brasil. (In: Formação bra-
atividades profissionais), livro (título, ano da pu-
sileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1935, p. 223-253). Jair
Fonzar, Pequena história da educação brasileira: tradicio-
nalismo e modernismo - duas tendências que marcam a fi-
losofia pedagógica brasileira. (Curitiba, Scientia et Labor, 3 Informação do editor Candido Guinle de Paula Ma-
Folha de Rosto, 1989). chado (Jornal do Brasil, 21/03/1971).

68 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Ensino e historiografia da educação

blicação, número de edições e modificações a cada De um modo geral — e este é um aspecto


reedição, dados pertinentes ao prefácio, apresenta- marcante no inventário em curso —, em sua esma-
ção e índice, fichamento do texto, resenhas e críti- gadora maioria, os livros selecionados aparecem
cas existentes, recorrência de citação entre os pa- como casos pontuais e oportunos dentro das tra-
res da mesma área) e contexto do livro (dados con- jetórias intelectuais dos seus autores, os quais ape-
junturais relativos ao período de sua emergência). nas esporadicamente assumem o papel de histo-
Esta fase da pesquisa ainda está em processo, riadores da educação, lançando compêndios que
mas a leitura do material fichado até o momento engrossam uma bibliografia extremamente diversi-
permite identificar a produção de religiosos e lei- ficada e que inclui textos para teatro, literatura,
gos católicos, de médicos, de técnicos educacio- didática, filosofia, sociologia, geografia, biologia,
nais, de políticos profissionais e professores uni- psicologia, estrutura e funcionamento do ensino,
versitários. Esta classificação não é exclusiva no administração escolar, educação física, textos es-
caso de alguns autores, os quais foram, no entan- pecializados da área médica, odontológica e de le-
to, inseridos numa ou noutra categoria, dependen- gislação, técnicas comerciais, religião, gramática e
do da predominância e importância que as carac- cartilhas.
terísticas nelas implícitas assumem no conjunto da Nos livros escolhidos, o título, as raras ilus-
produção intelectual e da identificação de cada trações, a forma de organização dos assuntos ou
autor enquanto profissional.4 as lacunas temáticas, a bibliografia, os anexos e os
apêndices podem constituir objetos de interroga-
ção reveladores de certas formas de narrar a his-
4 Entre os religiosos e leigos católicos, temos: Madre tória e de conceber a formação docente. Em parte
Francisca Peeters e Madre Maria Augusta Cooman, Pequena deles, a história da educação brasileira aparece em
história da educação (São Paulo, Melhoramentos, 1936);
capítulo específico ao final da publicação ou como
Theobaldo Miranda Santos, Noções de história da educa-
ção (São Paulo, Nacional, 1945); Ruy de Ayres Bello, Es-
apêndice. Alguns trazem em anexo os programas
boço de história da educação (São Paulo, Nacional, 1945); das escolas normais, segundo as circulares minis-
José Antonio Tobias, História da educação brasileira (São teriais em vigor.
Paulo, Juriscredi, 1974). Entre os médicos: José Ricardo Pires Os títulos por si sós mereceriam um estudo
de Almeida, L’instruction publique au Brèsil (Rio de Janei- pormenorizado, uma vez que, sendo um dos aspec-
ro, G. Leuzinger & Filhos, 1889); Júlio Afrânio Peixoto,
tos decisivos para a chamada e venda do livro, ma-
Noções de história da educação (São Paulo, Nacional, 1933)
e Raul Briquet, História da Educação — Evolução do pen-
nifestam uma certa imagem dos leitores a que se
samento educacional (São Paulo, Renascença, 1946). Entre destinam e fornecem indicações dos recortes a que
os técnicos educacionais: João Roberto Moreira, Educação submetem a área de conhecimentos na qual se in-
e desenvolvimento social no Brasil (Rio de Janeiro, CEPAL, serem. No primeiro caso, predominam os esboços,
1960) e Lauro de Oliveira Lima, Estórias da educação no as noções e as pequenas histórias que pressupõem
Brasil — De Pombal a Passarinho (Rio de Janeiro, Ed. Bra-
um público leitor iniciante ou com exiguidade de
silia/Rio, s/d). Entre os políticos profissionais: Raul Alves,
Esboço histórico e crítico geral da educação (Rio de Janei-
ro, Pongetti, 1929) e Arnaldo Niskier, Educação brasilei-
ra: 500 anos de história — 1500-2000 (São Paulo, Melho- nelli, História da educação no Brasil (Petrópolis, Vozes,
ramentos, 1989). Entre os professores universitários: Ângelo 1978); Maria Luiza Santos Ribeiro, História da educação
Salvador, Cultura e educação brasileiras (Petrópolis, Vozes, brasileira (a organização escolar) (São Paulo, Cortez & Mo-
1974); Manfredo Berger, Educação e dependência (Porto raes, 1979); Nélson Piletti, História da educação (São Pau-
Alegre, Difel, 1976); Fernando de Azevedo, A cultura bra- lo, Ática, 1986); Maria Lúcia de Arruda Aranha, História
sileira (São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL, 1976); da educação (São Paulo, Moderna, 1989) e Paulo Ghiral-
Maria Glória de Rosa, A história da educação através dos delli Jr., História da educação (São Paulo, Cortez & Auto-
textos (São Paulo, Cultrix, s/d.); Otaíza de Oliveira Roma- res Associados, 1990).

Revista Brasileira de Educação 69


Clarice Nunes

tempo para a leitura. No segundo caso, há defini- conjunto de trabalhos tidos consensualmente como
ção das perspectivas privilegiadas, seja o pensamen- sendo de “história da educação”.6
to educacional, seja a organização escolar.5 Sem condições de apresentar um ponto de vista
Chamam a atenção, sobretudo, certos estereó- mais acabado sobre uma possível teoria da histo-
tipos publicitários que um vocabulário recorren- riografia, permitimo-nos apenas ensaiar uma hipó-
te revela. Assim, a história da pedagogia é sempre tese sobre a historiografia da educação produzida
apresentada no singular (“a história”). O único plu- no Brasil para os cursos de formação docente. Ela
ral é irônico (“estórias”). É evolutiva (“da Antigui- é expressão do registro da permanência dos valo-
dade aos nossos dias”, “de 1500 a 2000” etc). Al- res de uma civilização cristã. Apesar das concepções
gumas vezes, localizada (“no Brasil”). Poucas vezes teóricas, da formação e dos pertencimentos institu-
demonstra engajamento, como quando, por exem- cionais de seus autores, a história da educação di-
plo, remete o debate ao desenvolvimento social, à fundida entre os professores primários e secundá-
dependência ou à cultura. Para nossa pesquisa, no rios tem uma função e um efeito doutrinário que se
ponto de partida da apreciação dos títulos está a prolonga e se atualiza, revelando o peso da influên-
concepção não só da sua fidelidade aos conteúdos cia religiosa apesar de todo o movimento de secula-
que encerram, mas também da sua função de supor- rização da sociedade e do Estado a partir da implan-
te, ao lado desses mesmos conteúdos, para certas tação do regime republicano.
concepções ideológicas. Esta hipótese pode parecer trivial quando con-
Muito se poderia conjecturar sobre os aspec- siderada a produção ligada aos momentos iniciais
tos sumariamente apresentados até o momento, mas desse regime até a década de 60, já que até então
é oportuno aguardarmos o avanço da pesquisa, que predominavam, se considerarmos apenas o núme-
nos possibilitará uma reflexão conseqüente. O que ro de reedições das obras de história da educação
apontamos, no entanto, é suficiente para colocar em seu conjunto, os lançamentos de autores reli-
desde já uma indagação: existiria, de fato, uma his- giosos e leigos afinados com a doutrina da Igreja ca-
toriografia da educação? Esta pergunta pressupõe tólica. Por outro lado, pode parecer forçada se con-
uma teoria explicativa acerca da produção histo- siderarmos a relativa diversidade da produção emer-
riográfica, o que não conseguimos ainda clarear em gente na década de 70 e até mesmo das décadas de
nossas leituras e nem temos condições, no momen- 80 e 90, quando grande parte do que se escreveu
to, de elaborar. Por este motivo, esclarecemos que
o termo “historiografia” é aqui entendido como o
6 Para José Roberto Amaral Lapa, o ciclo do conhe-
cimento percorre um circuito ininterrupto que vai do obje-
to à crítica da avaliação que se produziu sobre seu conhe-
5 Sobre a importância da análise dos títulos, Roger cimento. Assim ele distingue: o objeto do conhecimento
Chartier (1976, p. 109) mostra que: “considerar a soma dos histórico (História); o conhecimento histórico, que resulta
títulos de um período de tempo é atribuir-lhe um estoque do processo de reconstituição, análise e interpretação da-
de vocabulário aceito na emanação lúcida das noções que quele objeto; a historiografia, que vem a ser a análise críti-
recobre. As ausências são tão pertinentes porque revelam ca do conhecimento histórico e historiográfico e do seu pro-
uma ignorância, a falta de um conceito ou o peso de uma cesso de produção. Esta análise seria também um conhe-
proibição quando o campo de estudo escolhido é também cimento que equivaleria a um segundo nível de realidade
sensível à censura social, como as noções relativas ao amor (1981, p. 19). Esta distinção do autor não parece ser rigo-
e à sexualidade”. Chartier também mostra que é possível, rosamente seguida por ele mesmo no seu texto. Decidimos,
num projeto ambicioso, tratar o conjunto de títulos como neste trabalho, sem entrar no mérito desta discussão, con-
uma vasta lista de enunciados em que a palavra tem inte- siderar historiografia como o estudo do evento histórico,
resse apenas em função de sua posição na totalidade do cam- mesmo que este estudo não seja, boa parte das vezes, assi-
po lexical em que se encontra (idem). nado por historiadores.

70 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Ensino e historiografia da educação

foi contribuição de professores ligados aos cursos tempo cristão valoriza da mesma forma o passado
de pós-graduação em educação no país, que opta- e o futuro (Gourevitch, 1975, p. 263-283). Esta
ram predominantemente por uma matriz filosófi- valorização é explicitada por Júlio Afrânio Peixo-
ca materialista de interpretação da realidade. Eis um to na introdução do seu Noções de história da edu-
ponto que vale a pena aprofundar. cação (1933), quando afirma que a educação olha
As primeiras questões a serem explicitadas são: o futuro, futuro esperado ou temido, no qual se con-
quais indícios estão sendo procurados e encontra- figura a resolução da experiência anterior do pas-
dos nas leituras sucessivas dos livros e na pesquisa sado humano. Para ele, o presente está reduzido à
bibliográfica e arquivística que apontam para o re- ponta extrema do passado (Peixoto, 1942, p. 9).
gistro da permanência dos valores de uma civiliza- Presos ao tempo linear, os livros de história da
ção cristã? Que valores são esses? educação examinados constroem seu conteúdo a par-
Por enquanto, a maior evidência emerge dos tir de dois eixos: a organização escolar e o pensamen-
próprios textos. Os historiadores da educação, com to pedagógico. O primeiro também define não só um
raras exceções, posicionam-se como quem consta- lugar privilegiado a partir do qual se registra a me-
ta. Apagam a diferença entre empiria e reflexão. mória educacional (o Estado), mas também as fon-
Parecem convictos de que a descrição de uma série tes privilegiadas para sua reconstituição (os instru-
de eventos garante por si a constituição da história mentos legais e normativos), além de conferir um
da educação enquanto um continuum. Esta conti- tratamento legalista à narrativa. O segundo eixo ele-
nuidade emerge de um conjunto de enunciados que ge a evolução das idéias pedagógicas como conteú-
não distingue a história da educação da história da do desta história, compila dados biográficos de edu-
civilização ou da história do país (no caso, o Bra- cadores selecionados e confere um tratamento tipo-
sil). O efeito de continuidade remete à concepção lógico à narrativa, isto é, o autor afirma-se como
de unidade. É nela e a partir dela que a periodização alguém que escreve não com a intenção de expor
aparece subsumida à cronologia pura e simples, ou fatos e sim com o intuito de descrever tipos ou mo-
sofrendo recortes a partir de indicadores econômi- delos de educação e de educadores. Que motivos
cos e políticos que não têm seu caráter interpretativo teriam levado nossos autores a elegerem estes dois
explicitado. O tempo histórico da educação, em eixos para a constituição dessa disciplina escolar e
todos os compêndios, é o tempo linear. de que forma ambos se fixaram no conjunto dos li-
A imagem da linha como expressão de uma vros em exame como dois domínios de significado?
sucessão contínua de momentos, presente na con- Em que momento esta definição ocorreu?
cepção cristã de tempo, foi aquela que se impôs Para além da evidência dos textos, das redes
gradativamente na civilização européia, distinguin- de solidariedade e ruptura que se tecem entre eles
do-se não só da perspectiva antiga, rotativa e ex- e que a equipe de pesquisa muito vagarosamente vai
clusivamente voltada para o passado, mas também mapeando, particularmente através do confronto
da perspectiva judaica, incisivamente dirigida pa- entre as obras, para avaliar se os autores se citam e
ra o futuro. O tempo histórico do cristianismo, na de que maneira o fazem, outros indicadores pare-
acepção de Gourevitch, que retomamos neste tex- cem reforçar a permanência dos valores cristãos nos
to, é específico por admitir a evolução e a mudan- trabalhos lidos.
ça. É dramático, pois narra a história terrestre como Um inquérito realizado pelo Centro Brasilei-
história da salvação da humanidade, na qual a vida ro de Pesquisas Educacionais, do antigo estado da
é vivida em dois planos: o dos eventos empíricos e Guanabara, em maio de 1961, com o intuito de
o da prescrição divina. É percebido como fato psi- colher opiniões dos chefes de distrito, diretores e
cológico, como experiência interior da alma. Por subdiretores de escolas primárias, responsáveis pelo
oposição ao tempo pagão e ao tempo judaico, o expediente das escolas elementares sobre o curso de

Revista Brasileira de Educação 71


Clarice Nunes

formação do professor primário, entre vários aspec- tuado uma ruptura com relação a esse molde cris-
tos, examinou a opinião de 600 profissionais sobre tão? Nossa posição, até o momento, é a de que não
os objetivos dos programas de ensino. As respos- houve propriamente uma ruptura.
tas deste questionário revelam que 99% dos entre- A produção surgida nesse período, seja ou não
vistados apontaram como função da disciplina Fun- proveniente dos programas de pós-graduação em
damentos da Educação fornecer aos futuros profes- educação, move-se ainda dentro mesmo molde, ain-
sores o conhecimento dos objetivos do ensino ele- da quando pretende fazer-lhe a crítica e criar no-
mentar na civilização cristã e democrática. Não só vos conteúdos ideológicos. Se as tentativas de dis-
o conhecimento, mas também os hábitos, atitudes tanciamento de uma concepção civilizadora cristã
e interesses a serem interiorizados deveriam cor- já incorporam a compreensão das formas simbóli-
responder a esta projeção de sociedade segundo a cas e institucionais da educação escolarizada como
apreciação de elementos experimentados e que ha- campo de lutas, mesmo quando constroem seus ar-
viam atingido as mais altas funções na educação gumentos com o auxílio de certas contribuições pro-
primária da Guanabara. Entre os assuntos que, por venientes de disciplinas como a geografia, a histó-
certo, mereceriam estudo aprofundado, segundo as ria, a sociologia ou ainda a filosofia não tratam
respostas colhidas pelo instrumento de avaliação, porém a escola a partir de um descentramento dela
destaca-se a origem e a evolução dos problemas da própria. A educação é concebida como um bloco
educação brasileira (MEC/INEP, 1962, p. 127). monolítico a reboque de uma contextualização que
O dado que mais chama atenção neste inqué- tem seus centros ancorados em aspectos economicos
rito é justamente o alto índice de reconhecimento e políticos. Os historiadores que não se preocupam
deste objetivo. A possibilidade de uma análise com- em contextualizar operam como se extraíssem a
parativa do número de edições e, sobretudo, de tira- educação do “resto” da história e, desejando fazer
gens dos livros de história da educação em circulação apenas história da educação, não realizam nem his-
nos Institutos de Educação e Escolas Normais, nas tória, nem história da educação.
décadas de 30 a 60, relacionada à obtenção de da- Se o saber religioso parece não mais marcar
dos sobre a expansão desse grau de ensino a partir esta história, a motivação religiosa ainda está na
da década de 40, e do peso que nela assumiram as base da trama social que forja o historiador da
iniciativas confessionais, poderia criar um contorno educação e até, em certas circunstâncias, das con-
mais preciso do alcance dessa produção da história dições pelas quais ele realiza o seu trabalho de his-
da educação e do seu sentido como disciplina escolar. toriador. Com relação à motivação, escolhemos
Estamos fortemente inclinados a supor que, trecho do depoimento de uma das nossas autoras
ainda na década de 60, nossos livros de história da mais lidas: Maria Luiza Santos Ribeiro.7 Seu livro
educação reforçavam o ideal educativo por excelên- História da educação brasileira: a organização es-
cia já configurado no Diálogo da conversão do gen- colar, cuja primeira edição é de 1978, teve, até o
tio, do padre Manoel de Nóbrega, escrito em 1558 momento da redação deste texto, doze edições,
(1557?) e que Serafim Leite considera a primeira sendo a última de 1993. Diz ela:
obra literária brasileira. Que ideal seria esse? A for-
Sou filha de um médico-sanitarista que, depois
mação de um país grande, uno e cristão. Com um
de formado, conheceu um colega, também sanitaris-
acréscimo: essa formação, no nosso século, depen-
ta, através do qual foi “encantado”, do ponto de vis-
dendo em grande parte das mulheres, principais
destinatárias desses cursos, exigia que elas se tornas-
sem guardiãs da consciência moral da sociedade. 7Reiteramos nossos agradecimentos à solidariedade
Teria a relativa diversificação da história da de Maria Luiza Santos Ribeiro, que teve a gentileza de res-
educação, produzida a partir da década de 70, efe- ponder ao nosso questionário por escrito.

72 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Ensino e historiografia da educação

ta filosófico, pelo materialismo histórico-dialético e, rado na sua trajetória pela opção de uma certa
do ponto de vista político, pelo comunismo. matriz filosófica de leitura da realidade. Chama-
mos a atenção para o fato de que a experiência
Este amigo do pai de Maria Luiza Santos Ri-
pessoal de Maria Luiza Santos Ribeiro remete à
beiro, Dr. Aldino Schiavi, italiano de nascimento e
uma questão teórica.
de formação, segundo ela nos relata, exerceu in-
Quem, em nossa perspectiva, melhor formu-
fluência ideológica considerável sobre seus amigos
lou a questão teórica à qual nos referimos foi Michel
mais diletos. A autora afirma ter tido, por intermé-
de Certeau em seu livro Artes de fazer — a inven-
dio dele, o “privilégio de conhecer a simplicidade
ção do cotidiano (1994, p. 277-291), quando reflete
dos sábios” e, por intermédio de seu pai (apesar da
sobre o significado e o processo de constituição das
influência religiosa protestante de denominação ba-
credibilidades políticas nas sociedades modernas.
tista da mãe), ter tido a oportunidade de abraçar o
Ao entender por crença menos o seu objeto e mais
materialismo histórico.
o investimento das pessoas em uma proposição, e
Meu pai é que, muito dogmaticamente, [me] in- realizar uma espécie de arqueologia das representa-
dicou o caminho do materialismo histórico-dialético ções da credibilidade, o autor efetiva uma instigante
e do comunismo. Desde os treze ou quatorze anos tive análise entre as estranhas e antigas relações dos dois
que, sentada ao lado dele, escutar longas preleções que “depósitos” tradicionais de crenças acionados para
iam da origem do mundo ao futuro da humanidade... injetar credibilidade nos corpos individuais e sociais:
O embate contra a religião causou-me um cer- as organizações religiosas e políticas.
to receio... Mas, por outro lado, algumas idéias, des- Em sua análise, Michel de Certeau mostra o
de logo, despertavam-me interesse, uma vez que pa- paulatino e sucessivo deslocamento da energia das
recia que essa versão filosófico-política, que meu pai crenças nas sociedades pagãs para o cristianismo,
tentava impor-me pela via cerrada da doutrinação, deste para a política monárquica, desta política para
fazia com que encarássemos com mais coerência um as instituições republicanas, da educação pública aos
princípio cristão que, para mim, era de fundamental socialismos. Segundo ele, por um processo contínuo
importância — o princípio do amor ao próximo como de “conversão”, as energias da crença foram sendo
a nós mesmos —; princípio este que dava sentido à transportadas e transformadas em convicções. O que
adoção de uma opção religiosa. não era transportável, ou não fora ainda transpor-
tado, recebia o rótulo de superstição (1994, p. 279).
O depoimento de Maria Luiza Santos Ribei- O que nos interessa em sua rica e complexa
ro é significativo pois traz para o primeiro plano reflexão, que culmina com o exame das táticas do
a influência dos médicos sanitaristas que, aliás, fo- “fazer crer” usadas pela oposição de esquerda na
ram de fato nossos primeiros historiadores da edu- França, é sua demonstração de como as organiza-
cação, como, por exemplo, José Ricardo Pires de ções políticas tomaram o papel das Igrejas enquanto
Almeida, autor de História da instrução pública no lugares das práticas crentes. Sem entrar no deta-
Brasil (1500-1889), obra originalmente escrita em lhamento da sua análise, o que destacamos é a sua
francês e republicada por ocasião do seu centená- afirmação de que a distinção entre o temporal e o
rio, em 1989, pelo Instituto Nacional de Pesquisas espiritual, como duas jurisdições diversas, continua
Educacionais (INEP). Voltemos ao depoimento da inscrita estruturalmente na sociedade francesa, mas
autora. Além de único, ele é importante ainda por — e isso é importante — agora dentro do sistema
revelar, na sua própria interpretação, num primei- político. Afirma:
ro momento, o conflito entre a formação religiosa
O lugar antigamente ocupado pela Igreja ou pe-
da mãe e as concepções filosófico-políticas do pai,
las Igrejas em face dos poderes estabelecidos é ainda
conflito que aparece conciliado e finalmente supe-

Revista Brasileira de Educação 73


Clarice Nunes

reconhecível, há uns dois séculos, no funcionamento entre opções religiosas e políticas, seja dos pais —
de uma oposicão assim chamada de esquerda. Tam- como no caso de Ribeiro — ou de professores e
bém na vida política, uma mutação dos conteúdos outros agentes sociais, não estaria presente nas tra-
ideológicos pode deixar intacta uma “forma social” jetórias de outros historiadores da educação? Quais
[...]. as relações entre cristianismo e marxismo, parti-
Seja lá como for o passado, e caso se deixem de cularmente se considerarmos as transformações pe-
lado as comparações demasiadamente fáceis (e apo- las quais a Igreja católica ou certas denominações
líticas) entre os traços psicossociológicos característi- protestantes passaram em nossa sociedade? Em que
cos de toda militância, existe funcionalmente, em face medida tais tranformações afetaram os autores dos
da ordem estabelecida, uma relação entre as Igrejas livros de história da educação que examinamos?
que defendiam um outro mundo e os partidos de es- Não temos ainda respostas para essas perguntas.
querda que, desde o século XIX, promovem um fu- Gostaríamos, no entanto, de trabalhar a segunda
turo diferente (De Certeau, 1994, p. 284). questão, mesmo que parcialmente, pelo pano de
fundo que essa tentativa de resposta pode criar no
O que há de semelhante, segundo Michel de exercício que fazemos de problematizar a hipótese
Certeau, nas características funcionais entre as Igre- construída no âmbito da pesquisa.
jas e os partidos de esquerda é que a ideologia e a Do ponto de vista teórico, a improvável hipó-
doutrina não lhes são dados pelos detentores do tese de conciliação dos conteúdos do cristianismo e
poder. Tanto nas primeiras, como nos segundos, o do marxismo foi objeto de debate em revistas bra-
projeto de outra sociedade tem o efeito de priorizar sileiras de orientação marxista, como por exemplo
o discurso (seja reformista, seja revolucionário ou Encontros com a Civilização Brasileira, no final da
socialista) contra a fatalidade ou a normalidade dos década de 60 e 70. Num número dessa revista, um
fatos. Ainda — e isso é, ao nosso ver, fundamental artigo traduzido de Lucio Lombardo Radice, na oca-
— tanto as Igrejas quanto os partidos de esquerda sião membro do comitê central do Partido Comu-
legitimam, seja pelos valores éticos, seja pela ver- nista Italiano e autor de L’Educazione della mente,
dade teórica ou até pelo martirológio, um poder ao examinar o que denomina de fatos novos no pen-
cuja legitimidade não virá mais do mero fato da sua samento e na consciência religiosa, chega a admitir
existência. Há aí, portanto, um papel decisivo das a possibilidade da presença de um potencial revo-
“técnicas do fazer crer”. O que o autor quer asse- lucionário na religião em certas circunstâncias his-
gurar com essas afirmações é que a analogia apon- tóricas e a examinar o modo como certos valores do
tada tem razões estruturais. Ele não está preten- cristianismo(como a paz entre os povos, a solidarie-
dendo fazer uma psicologia da militância ou uma dade, a fraternidade, a verdadeira liberdade e igual-
sociologia crítica das ideologias. Está querendo dade humanas) encontram correspondência nos va-
demonstrar, como afirma, a lógica de um “lugar” lores socialistas. O autor, inclusive, declara:
que produz e reproduz, como seus efeitos, as mo-
Para nós (marxistas), por certo, não tem nem
bilizações militantes e as táticas do “fazer crer”
mesmo sentido a problemática da “salvação da alma”
(1994, p. 285).
que atormenta o cristão. Mas existe também na nos-
À luz das reflexões de Michel de Certeau, re-
sa ética um “estado de graça” de completa realização
tomemos o depoimento de Maria Luiza Santos Ri-
da nossa individualidade no movimento histórico das
beiro para avançarmos, mesmo que muito modes-
massas obreiras sem o qual a nossa individualidade
tamente, além dele. E vamos retomá-lo no ponto em
não teria nem mesmo sentido; já tivemos também nós
que se depreende a superação do seu conflito entre
os nossos “santos” e quantos!, os companheiros que
a influência religiosa da mãe e a opção política do
sacrificaram a própria vida pela redenção dos oprimi-
pai. Esse traço específico de superação de conflito

74 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Ensino e historiografia da educação

dos, por um “mundo de irmãos, de paz e de trabalho” que aliás cunhou essa expressão, formaram teori-
[...]. Uma nobre mulher cristã, mãe de um nosso com- camente os quadros clericais e laicos que passaram
panheiro comunista e materialista morto como “san- a movimentar a política de massas católica nesse
to” na Resistência [ao fascismo], disse-me uma vez: período.
“Ontem, na missa, no momento da elevação pensei: O ponto principal da prática pastoral da Igre-
naquele cálice há também um pouco do sangue do meu ja brasileira a partir daí foi, segundo Romano, a
filho”. Que diremos da fé cristã na “comunhão com transferência do lugar da eficácia político-religio-
o Redentor” sentida desta maneira: que é uma crença sa, na medida em que a doutrina eclesiástica apro-
instilada nos ingênuos pelas classes possuidoras para priou-se dos conteúdos das ciências humanas co-
conservar os seus privilégios? (Radice, 1967, p. 16). mo instrumento de interpretação dos “sinais dos
tempos”. Sua prática pastoral, portanto, passava
Se Radice admite a incompatibilidade entre o a ser norteada por dois vetores. De um lado, a
materialismo ateu do marxista e a fé religiosa dos hermenêutica renovada da Tradição e da Revela-
cristãos, considera também que a moral cristã ple- ção. De outro, o acolhimento das teorias socioló-
namente vivida é diferente, mas não antagônica, gicas e econômicas consideradas ponta de lança da
daquilo que denomina de uma ética revolucioná- cultura contemporânea.
ria comunista plenamente praticada. É deste ângu- Infelizmente não localizamos estudos analíti-
lo de visão que marxistas brasileiros olharam, no cos tão elaborados como os de Romano, que nos
final dos anos setenta, as modificações na Igreja ajudassem a vislumbrar o papel das denominações
católica no quadro geral da vida política brasilei- protestantes no que diz respeito à sua prática pas-
ra. É da década de 70 a produção de dois textos toral no período em questão. Obtivemos, porém,
que foram objeto de análise das relações entre cris- algumas informações interessantes, que necessitam
tianismo e marxismo por Leandro Konder: “Mar- ser aprofundadas. Através delas podemos supor,
ginalização de um povo”, documento escrito e as- por exemplo, que a apropriação dos conteúdos das
sinado por sete bispos do centro-oeste do Brasil, ciências sociais e/ou humanas numa prática pasto-
em 1973, e “Exigências cristãs de uma ordem po- ral mais ampla não foi prerrogativa exclusiva da
lítica”, texto denunciador da opressão do povo Igreja católica.É possível admitir que organizações
brasileiro, de 1977, assinado por 217 bispos da ligadas a denominações protestantes (mas não só a
Igreja católica (Konder, 1978). elas) tenham tido grande influência, via convênios,
Sem nos determos sobre o significado destes na formação de pesquisadores em educação, no iní-
textos, o que gostaríamos de enfatizar, à luz da no- cio dos anos setenta, alguns dos quais, mesmo sem
tável reflexão que Roberto Romano faz das relações ter a pretensão de historiar as nossas organizações
entre Estado e Igreja católica no Brasil, é que o cho- educativas, realizaram estudos que, mesmo com ou-
que da Igreja com os governos militares nos anos tros aportes, foram publicados, tornando-se referên-
60 e 70 foi o momento de um processo mais am- cia para os educadores nas universidades brasilei-
plo da sua afirmação na base da sociedade, o que ras. Alguns destes trabalhos foram lidos e indica-
implicou a união — no seu discurso (do qual os dos em cursos como obras de história da educação.
documentos citados são exemplos) — entre a pre- É o caso de Educação e dependência (1976), livro
gação de valores morais e religiosos e a necessida- de autoria de Manfredo Afonso Berger.
de de reformas sociais. Esta pregação foi acompa- O curriculum vitae desse autor nos mostra
nhada de uma penetração racional da Igreja na cul- que, além da sua passagem, em escola de nível mé-
tura como arma para instalar-se na “consciência do dio, pelo Curso Humanístico do Instituto da Igre-
povo”. A Revista Vozes e a Revista Eclesiástica Bra- ja Evangélica Luterana do Brasil, ele obteve uma
sileira, sob o comando do cardeal Evaristo Arns, bolsa de estudos, no início da década de 70, junto

Revista Brasileira de Educação 75


Clarice Nunes

à Organização Ecumênica Alemã, que, como nos conta com aproximadamente 14 edições. Ambos os
informou Enno D. Liedke Filho, manteve um con- livros foram lançados pela Editora Vozes.
vênio com o Curso de Ciências Sociais do Institu- Tendo presente que as modificações na per-
to de Filosofia e Ciências Humanas da Universida- formance tanto da Igreja católica como das deno-
de Federal do Rio Grande do Sul, por meio do minações protestantes na vida política brasileira
qual distribuía bolsas de estudos, no Brasil e no constituem a questão significativa das várias con-
exterior, a partir de 1971. junturas em que os livros de história da educação
Este convênio teve grande importância pois foram produzidos, resta examinar a sutil articula-
objetivava a formação pós-graduada de professo- ção dessas mudanças com a criação e expansão da
res e egressos do curso citado. Ele é um exemplo do pós-graduação em educação nos anos 70 e 80. Em
que afirmamos anteriormente, isto é, de que a mo- que medida, neste período, a pós-graduação em
tivação religiosa aliada ao objetivo de uma penetra- educação teria formado quadros que vieram a con-
ção racional da(s) Igreja(s) na cultura ofereceu sua tribuir, através da sua produção, para a já mencio-
contribuição no sentido de forjar, em certas circuns- nada transferência do lugar da eficácia político-re-
tâncias, as condições de trabalho e a produção dos ligiosa na prática pastoral da Igreja ou das Igrejas?
pesquisadores em educação no país. Graças à bol- Esta questão parece-nos crucial por incorpo-
sa de estudos recebida, Manfredo Berger pôde des- rar o debate das relações entre cristianismo e mar-
locar-se para a Alemanha com o apoio (orientação?) xismo, focalizando os seus compromissos éticos
de Achim Schrader, e produzir sua tese de douto- com a transformação da sociedade e fazendo do
ramento transformada em livro, cuja referência ex- protesto e da denúncia a possibilidade de acolher
plícita são as macro-explicações e interpretações impulsos mobilizadores na “luta contra a injustiça”,
propostas pela sociologia do desenvolvimento lati- luta esta que se fundiria, na percepção de Leandro
no-americano. Dentro delas, o processo de secula- Konder, independente das motivações subjetivas
rização da sociedade via educação é a pedra de to- dos seus protagonistas, à luta de classes.
que da própria definição das mudanças pelas quais Esta percepção de Konder nos impulsiona a
passou a sociedade brasileira. pensar na possibilidade que Michel de Certeau nos
Difíceis de visualizar, estas imbricações — nes- apontou. A de que as Igrejas ou as religiões e mes-
te artigo apenas indicadas —, entre Igreja(s) ou ór- mo as formações políticas, e num nível mais restri-
gãos a ela(s) ligados e instituições públicas de ensi- to, acrescentamos nós, as organizações políticas,
no, entre reflexões sociológicas e preocupações e podem ser compreendidas como variantes sociais
leituras históricas, entre formação religiosa e polí- das relações possíveis entre o ato de crer e aquilo
tica dos autores estudados precisam ser urgente- em que se crê. Dentro dessas variantes, os funcio-
mente investigadas. É o que a nossa pesquisa suge- namentos da crença e do fazer crer se desdobram
re. De qualquer forma, se considerarmos apenas as em táticas permitidas graças às exigências de um
mudanças de performance apontadas por Romano lugar, de uma posição ou das pressões históricas.
com relação à Igreja católica brasileira, considera- Dentro delas, não importa agora sua peculiaridade,
mos que elas muito iluminam a compreensão do estão presentes dois dispositivos através dos quais
processo de divulgação de certas obras no âmbito a dogmática pode se impor à crença. O primeiro é
da história da educação lançadas por editoras ca- a pretensão de falar em nome de um real que, su-
tólicas. Neste sentido, consideramos especialmen- postamente inacessível é, ao mesmo tempo, o prin-
te significativa a publicação de Cultura e educação cípio daquilo em que se crê (uma totalização) e o
brasileiras (1971), de autoria de Domingos Ângelo princípio da ação de crer. O segundo é a capacida-
Salvador, e História da educação brasileira (1978), de de um discurso autorizado por um “real” con-
de autoria de Otaíza de Oliveira Romanelli, que já verter-se numa rede de elementos organizadores de

76 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Ensino e historiografia da educação

práticas ou, como Michel de Certeau afirma, em xergar a riqueza de significados dos próprios obje-
artigos de fé (1994, p. 285-286). tos que estuda. Uma leitura dogmática e simpli-
Não temos, no momento, dados empíricos que ficadora do marxismo, predominante nos cursos de
revelem as escolas de formação secundária e univer- pós-graduação em educação, contribuiu para criar
sitária dos alunos, muitos dos quais, atuantes nes- uma estratégia discursiva que, associada a certos
ses cursos nas décadas de 70 e 80, obtiveram gran- aspectos de retórica — o abuso do recurso da utili-
de parte de sua formação em seminários. Seria pre- zação do argumento de autoridade e a repetição
ciso verificar ainda, mesmo entre aqueles que não contínua de certas expressõ·es polarizadas, como,
os tenham freqüentado, que parcela esteve ligada por exemplo, “dominados e dominantes”, “conser-
a movimentos leigos de cunho social e educativo vadores e transformadores” —, criaram uma espé-
patrocinados pela Igreja católica, ou denominações cie de caixa de eco capaz de reforçar as convicções
protestantes nas décadas de 60 e 70. Supomos que de quem escreve e extrapolar os limites da argu-
essas informações, se obtidas, possam oferecer sub- mentação, tornando-se uma camisa-de-força que
sídios concretos à tese do deslocamento das técni- enquadra rigidamente a empiria na teoria. Como
cas do “fazer crer”, fornecendo indicadores que Shoshana Felman indica:
ajudem a compreender a conversão ou re-significa-
Toute pratique répétitive véhicule una puissance
ção das crenças originadas em instâncias religiosas,
d’hypnose, qui induit l’individu à des comportements
ou elas ligadas, em crenças político-ideológicas cul-
sociaux ou mentaux stéréotypes dans lequels il abdi-
tivadas nas práticas acadêmicas desses cursos. Ora,
que sa subjectivité [...] tout lieu comun, tout cliché, est
não constituiriam as práticas educativas em nossa
en réalité une sorte de prière, fonctionant par le même
sociedade (e em qualquer outra) uma constelação
mécanisme de répétition et de suggestion véhiculant
de situações em que os discursos autorizados se con-
dans la vie sociale la même puissance d’hypnose que
vertem numa rede organizadora de suas ações ou
celle des priéres dans la vie religieuse (Felman, apud
artigos de fé? E não teriam se constituído os nos-
Lopes, 1991, p. 83-84).
sos programas de pós-graduação em educação, ape-
sar da riqueza da sua reflexão e da sua elaboração É como se os clichês da religião fizessem eco
crítica, em instâncias de produção de discursos au- à religião dos clichês, arremata Felman. Que invi-
torizados que tiveram nas leituras, nem sempre pro- sível e sutil rede de solidariedade pode existir entre
blematizadoras do marxismo, instrumentos pode- assertivas religiosas e seculares, permitindo a trans-
rosos de metabolização das questões pedagógicas figuração simbólica das primeiras nas segundas? O
e educacionais? que estaria em jogo dentro dessa rede? Arriscamos
Se Leandro Konder resgatou os impulsos ge- uma resposta: a manutenção da fé na educação co-
nerosos presentes na mobilização de cristãos e mar- mo símbolo do poder de intervenção no domínio
xistas, como já vimos, interessa-nos redesenhar, ain- das consciências. Em nome de que o conhecimen-
da que precariamente, a face menos luminosa des- to deve ser uma alavanca de transformação da so-
ses mesmos impulsos e que, em nome da “luta con- ciedade que o produz, a versão dogmática do mar-
tra a injustiça”, engendraram uma espécie de trans- xismo descartou o novo, conceptualizou o objeto
formismo conservador, extremamente poderoso, antes de tê-lo efetivamente estudado, sem enfren-
que fez do dogma a fôrma privilegiada de apropria- tar, até porque não tinha condições de fazê-lo, o
ção das categorias marxistas dentro dos cursos de desafio da articulação teoria/empiria.
pós-graduação em educação. Foi justamente a crença salvífica na transfor-
De fato, parte significativa da literatura peda- mação social que permitiu, em muitos casos, uma
gógica de inspiração marxista que emergiu nos úl- espécie de deslizamento das opções religiosas para
timos trinta anos não tem tido disposição para en- o campo das opções político-ideológicas. Em ou-

Revista Brasileira de Educação 77


Clarice Nunes

tras palavras, permitiu uma percepção mística do (lógicas, lingüísticas), extratextuais (entre texto e
marxismo, através da qual o ideal cristão de uma conjuntura) e intertextuais (entre um texto e ou-
nova ordem, de uma nova organização social sur- tros).8 Esta perspectiva tem levado nossa equipe de
giu desprovido do fundamento transcendente e cor- pesquisa a multiplicar os esforços para problema-
tado da raiz teológica da fé. O paradigma marxis- tizar a hipótese inicial da investigação, aspecto que
ta funcionou, para muitos, como tese integradora foi objeto de nossa exposição neste artigo, bem co-
que substituiu o suporte perdido da onipresença mo estender o horizonte de leitura dos livros em
unificadora ou harmonizadora da divindade. Ao exame e caminhar além deles, com a finalidade de
invés de uma direção de pesquisa, tornou-se o mo- descobrir relações significativas e repor o quadro de
delo interpretativo da realidade, a via apaziguado- referência das obras estudadas, não só resgatando
ra da produção do conhecimento. A reflexão sobre a sua peculiaridade, mas ultrapassando-a reflexiva-
suas limitações, hesitações e silêncios ficou seria- mente. Este tem sido o nosso desafio.
mente comprometida em algumas práticas institu-
cionais da pós-graduação em educação. É o que
ainda se pode constatar, infelizmente, na produção CLARICE NUNES é professora de História da Edu-
de projetos de pesquisa e dissertações na área de cação da Faculdade de Educação da UFF. Doutora em Ciên-
cias Humanas/Educação pela PUC/RJ e membro do GT de
educação em âmbito regional e nacional.
História da Educação da ANPEd, que coordenou pelo pe-
O dogma se encarnou no clichê. Este termo, ríodo de quatro anos. Livros publicados: Escola e dependên-
como salienta Maria Cristina Leandro Ferreira, cia: o ensino secundário e a manutenção da ordem, Achiamé;
vem sempre associado a ocorrências lexicais do Escola básica e cidadania; aprendizado e reflexão (org.),
tipo: lugar-comum, chavão, estereótipo. Os clichês OEA/UFBa/EGBa; O passado sempre presente (org.), Cor-
circulam em diferentes classes sociais, atravessam tez; Guia preliminar de fontes para a História da Educação
Brasileira (coord.), INEP.
gerações, reforçando uma unidade narrativa que
tende a homogeneizar o que não é homogêneo.
Eles seriam, de certa forma, contagiosos, represen-
tando ao mesmo tempo a plenitude e o esvazia- Referências bibliográficas
mento de uma forma de dizer. Os clichês podem
ser usados por adesão convicta, cumplicidade ou BOURDIEU, Pierre, (1974). A economia das trocas simbó-
licas. São Paulo: Perspectiva.
conveniência (Ferreira, 1993, p. 69-73). Quais se-
riam os clichês da nossa história da educação? Co- __________, (1968). Campo intelectual e projeto criador. In:
Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar.
mo os temos utilizado? Como romper com eles?
Para desatar os sentidos da permanência faz- CHARTIER, Roger, ROCHE, Daniel, (1976). O livro. Uma
mudança de perspectiva. In: LE GOFF, Jacques, NORA,
se urgente uma análise dos nossos compêndios de
Pierre (orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro:
História da Educação com o intuito não só de res-
Francisco Alves.
gatar sua historicidade e as dos historiadores que
__________, (1990). A história cultural (entre práticas e re-
os produzem, mas também para iluminar a histo-
presentações). Lisboa: Difel.
ricidade dos processos de narrar. Isto é, trata-se de
pensar como diferentes formas de narrar se insta-
lam não apenas como possibilidade, mas como re-
gra de narração para outros textos (Orlandi, 1993).
8Pode-se ter acesso a um exemplo do tratamento in-
A tentativa de desatar a pluralidade de senti-
dividual que cada livro tem recebido em nossa pesquisa no
dos dos livros de história da educação e os meca- texto de nossa autoria intitulado “A instrução pública e a
nismos que os constituem pressupõe admitir que primeira história sistematizada da educação brasileira”
eles são construídos mediante relações intratextuais (Nunes, 1995).

78 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Ensino e historiografia da educação

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Revista Brasileira de Educação 79


O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da
Bacia do Rio Uruguai e a ação político-
educativa dos mediadores

Maria Stela Marcondes de Moraes


Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense

Trabalho elaborado a partir dos capítulos VI, VII e VIII da tese de doutorado
intitulada “No rastro da águas: pedagogia do Movimento dos Atingidos pelas Barragens
da Bacia do Rio Uruguai (RS/SC) - 1978/1990”, Departamento de Educação da PUC/RJ,
março de 1994.

Introdução hegemonia dos dirigentes daquele movimento no


interior do Movimento Nacional dos Atingidos por
No processo de reorganização da sociedade Barragens.1
civil, nos anos 80, a diversidade dos movimentos A importância atribuída a este movimento foi
de trabalhadores rurais é um dos fenômenos mais reforçada pela escolha do Alto Uruguai para o es-
impactantes. Eles chamam a atenção pela visibili- tudo do potencial democrático dos movimentos
dade que adquiriram e pelo que ensinam em ter- sociais no campo por uma equipe de pesquisado-
mos das novas formas de exploração, expropria- res encarregada de desenvolver o Projeto Demo-
ção, subordinação, expulsão e exclusão dos traba- cracia e Desenvolvimento Rural, idealizado pelo
lhadores rurais. prof. Jonathan Fox do Departamento de Ciência
Neste quadro, destacam-se os movimentos Política do MIT (EUA). Incorporada à equipe, par-
dos trabalhadores rurais afetados pelas barragens ticipei da pesquisa sobre os quatro movimentos
construídas para irrigação ou para a implantação rurais daquela região: o Movimento Sindical, o
de usinas hidrelétricas. Os movimentos de resistên- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,
cia aos projetos de hidreletricidade são importan- o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais
tes não apenas por somarem forças na luta contra e o Movimento dos Atingidos por Barragens, ao
a expropriação, mas também pela sua capacidade
de tocar em um dos pontos nevrálgicos do mode-
lo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil: a
1 O I Encontro Nacional dos Atingidos por Barragens
produção de energia elétrica.
ocorreu em Goiânia (GO), em 1988. Durante o II Encon-
Dentre as diferentes situações de barragens, em
tro, em 1990, realizado em Brasília, foi formalizada a fun-
todo o país, o caso dos “atingidos” do Alto Uru- dação do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens
guai (RS) ganhou destaque quando ficou patente a (MAB).

80 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai e a ação político-educativa dos mediadores

qual dediquei atenção especial, por ser o objeto de O estudo daquele complexo de determinações
estudo de minha tese de doutorado. mostrou que a implantação das barragens na bacia
Para entender aquele Movimento e sua or- do Rio Uruguai sobrepõe-se a processos preexis-
ganização, a Comissão Regional dos Atingidos por tentes e desencadeia um movimento simultâneo de
Barragens (CRAB),2 no contexto da democrati- afirmação/negação de novas e velhas identidades
zação dos anos 80, foi necessário enfrentar o de- sociais em relação à própria especificidade da situa-
safio de pensar questões de Ciência Política e ou- ção vivenciada (como é o caso das diferentes situa-
tros temas que iam além do campo da educação ções de barragens) e diante de identidades forjadas
popular. a partir de outras experiências (como as diversas
Era preciso conhecer a base social do movi- frentes de luta dos trabalhadores rurais).
mento, o que requeria o resgate da formação da Mas a identificação/reconhecimento de direi-
estrutura agrária do Rio Grande do Sul e das con- tos, as representações de si mesmos e das forças
tradições engendradas pelo processo de coloniza- antagônicas ou aliadas, bem como o processo de
ção dos estados do Sul, principalmente da região organização, constituição e expressão dos sujeitos
do Alto Uruguai. A análise exigia, ainda, a com- sociais não se dão como resultados mecânicos da
preensão da complexidade dos movimentos sociais experiência vivida. A relação entre a vivência das
no campo em pelo menos duas dimensões: 1. a das contradições e a emergência dos movimentos sociais
contradições criadas pelo processo de “moderniza- é quase sempre mediada pela intervenção dos cha-
ção” da produção agrícola; 2. a da diversidade de mados agentes de educação popular, ou “mediado-
formas com que a intervenção dos trabalhadores res”, nos processos de socialização política, obje-
rurais vem traduzindo aquelas contradições em tivados na dimensão político-educativa dos movi-
processos de construção de uma grande variedade mentos sociais, tema central deste trabalho3.
de novos sujeitos sociais, com identidades e lingua-
gens próprias. A dimensão político-educativa
Além de situar o Movimento no conjunto das dos movimentos sociais
lutas no campo, foi preciso estudar seus determi-
nantes específicos: as contradições da exploração A dimensão político-educativa dos movimen-
do potencial hidrelétrico da Bacia do Rio Uruguai. tos sociais se expressa através de processos infor-
Desbravamos temas como a formação do setor elé- mais e formais. É informal a socialização política
trico e as dimensões por ele assumidas no proces- individual e coletiva decorrente do engajamento e
so de desenvolvimento e oligopolização da econo- participação nos diferentes níveis de organização
mia brasileira. dos movimentos sociais. São os ensinamentos da

2 A Comissão Regional dos Atingidos por Barragens


(CRAB) é a organização representativa do Movimento dos 3 Em se tratando de uma sociedade de classes, a de-
Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai. Se ini- finição de Educação Popular não pode limitar-se à parti-
cialmente constituía-se de representantes dos municípios cipação e organização das lutas de resistência e afirmação
afetados pelas barragens de Itá e Machadinho, a partir de de direitos. Deve, necessariamente, levar em conta a rela-
1986 passou a representar o conjunto de 80 municípios gaú- ção entre estas práticas “libertadoras” e as iniciativas in-
chos e catarinenses ameaçados pelo projeto de implantação seridas em uma estratégia de dominação aberta ou de in-
de 22 barragens na bacia do Rio Uruguai. A partir de 1992 tegração populista aos projetos das classes hegemônicas
passou a chamar-se MAB/Região Sul. A pesquisa restringiu- (Valla, 1986, p. 18; Ibañez, 1991, p. 7). A ênfase deste es-
se à área afetada pelas duas primeiras barragens: Macha- tudo recai, no entanto, sobre as práticas político-educativas
dinho e Itá, no período de 1978 a 1990. ditas “libertadoras”.

Revista Brasileira de Educação 81


Maria Stela Marcondes de Moraes

vida cidadã organizada na identidade de interesses A ação mobilizadora da Igreja


e na luta por direitos. popular (1978 a 1985)
As ações político-educativas formais são prá-
ticas pedagógicas intencionais e sistemáticas que Também no Rio Grande do Sul e, especifica-
envolvem principalmente as lideranças e dirigentes mente, no Alto Uruguai, a Igreja Católica aparece
dos movimentos, de um lado, e, de outro, a inter- como uma espécie de “nave-mãe” dos movimentos
venção de mediadores como a Igreja Católica, os rurais, através da ação mobilizadora dos setores
sindicatos, as entidades de “assessoria”. chamados “progressistas”.5 Com raízes históricas
Em uma espécie de meio caminho entre o for- na “esquerda cristã” dos anos 50,6 parte desses se-
mal e o informal está a ação educativa dos dirigen- tores vai constituir-se na chamada “Igreja popu-
tes junto às bases dos movimentos. São as práticas lar”,7 cuja atuação se fundamenta nos princípios da
de organização e participação interna, campo pri- “Teologia da Libertação”.
vilegiado para a construção de uma vontade cole- A análise das entrevistas realizadas durante a
tiva voltada para a solidificação de uma nova cul- pesquisa sobre os movimentos rurais no Alto Uru-
tura política, elemento fundamental da luta contra- guai revela que:
hegemônica.
[...] pelo menos 90% dos quadros dirigentes e
São as práticas formais e mais intencionais que,
intermediários de todos os movimentos sociais, no
em grande medida, vão determinar os processos de
primeiro período (1979 a 1986), “começaram a en-
informação, formação, organização e mobilização
tender” pelas mãos da Igreja (Navarro, 1991, p. 4).
das bases sociais dos movimentos e moldar suas for-
mas de luta e de constituição de diferentes sujeitos De fato, os processos de formação de agentes
coletivos. Não queremos, com isto, estabelecer uma e lideranças comunitárias pelos “setores progressis-
relação direta de causa e efeito entre “discursos” e tas” desempenharam um papel destacado na mu-
“movimentos”4. A recíproca também é verdadeira dança da visão conservadora das estruturas sociais,
e, muitas vezes, é a realidade das contradições e da entre os agricultores, impulsionando as mobiliza-
luta social que se impõe, evidenciando a fragilidade ções que passaram a “agitar” o campo no Alto Uru-
teórica dos agentes e o distanciamento entre a “for- guai. O voluntarismo e o espírito de militância de
mação nos cursos” e a “formação na luta”, confor- centenas de jovens que abraçaram a causa da cons-
me distinção feita por um dos entrevistados. trução da “nova sociedade” resultarão na organi-
Ao longo da década, podemos distinguir três zação simultânea, e pelas mesmas pessoas, de opo-
momentos na intervenção dos mediadores. O pri-
meiro é marcado pela presença dos “setores pro-
gressistas” da Igreja Católica que, ao perderem a 5 Embora tenham muitos pontos em comum, é impos-
hegemonia, abrem espaço para a atuação das esco- sível homogeneizar as prioridades e orientações de agentes
las sindicais, as quais vão dar a tônica do segundo e assessores identificados com os “setores “progressistas”,
“liberacionistas” ou adeptos da “Igreja dos pobres”. Sobre
momento. O terceiro se caracteriza pela chamada
esta diversidade de posições, ver Novaes, 1993, p. 89-153.
“formação técnica” que, a cargo de assessores es-
6 A esquerda católica se constituía em um movimen-
pecializados, enfatiza as necessidades imediatas.
to vanguardista, de elite, movida por uma fé europeizada e
secularizada que, ao enfatizar a ação política, tendia a se
antagonizar, simultaneamente, com a religiosidade popular
4 e com a hierarquia (Mainwaring, 1989, p. 94-95).
Este nos parece ser o caso da interpretação de Jorge
7 Sobre o processo de surgimento (1964/1973), desen-
Romano no texto Discursos e Movimentos: o efeito da teoria
e a ação política dos trabalhadores rurais do sul do Brasil volvimento (1974/1980) e crise (1982/1985) da Igreja po-
(Romano, 1988). pular no Brasil ver Mainwaring, 1989, p. 82-282.

82 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai e a ação político-educativa dos mediadores

sições sindicais, comissões provisórias de fundação que há muitos anos se dedica à formação de lideran-
do Partido dos Trabalhadores, núcleos de sem-ter- ças no norte do Rio Grande do Sul. Ele afirma nun-
ra, comissões de barragens, grupos de mulheres, de ca ter havido clareza em relação à sociedade que se
jovens e outros. queria construir. Sabia-se apenas o que era preciso
O impulso para a “ação libertadora” deve-se destruir, como, por exemplo, a ditadura, a opressão,
à consolidação das posições mais “progressistas” a concentração da terra. “No começo era muito mais
que, entre 1977 e 1980, conseguem alargar espa- um trabalho em oposição a do que em vista de um
ços de atuação e liderança no interior da CNBB,8 projeto”, afirma o padre entrevistado. Como diz
ampliando-os ainda mais a partir de Puebla.9 O Navarro: “Formou-se assim a política da recusa.”
segredo da afirmação das posições reformistas pro- (Navarro, 1991, p. 4, grifo nosso).
gressistas estaria na maior clareza dos limites entre A Igreja popular enfatiza o processo de mu-
o político e o religioso (Mainwaring, 1989, p. 189). dança a longo prazo por meio de um trabalho de
A Igreja popular valoriza o potencial liberta- educação das lideranças de base, mediado pela “di-
dor do “universo simbólico popular” (Novaes, 1993, dática diatribe” do “ver, julgar e agir”. Acreditam
p. 92) e tem uma ação pastoral mais próxima dos que este trabalho seja capaz de criar novas relações
valores, das necessidades e da religiosidade popula- entre os homens, baseadas na fraternidade, na so-
res, enfatizando a justiça social e a formação de li- lidariedade, na igualdade, na liberdade de expres-
deranças de base (Mainwaring, 1989, p. 94-95). são, no exercício da participação e da capacidade
O ponto central desta prática educativa está de decisão, mesmo que só nos limites da comuni-
na leitura da Bíblia sob a ótica do pobre, que pos- dade. Trata-se da construção da “democracia de
sibilita descobrir o “Plano Divino da Salvação”, base”, sem a preocupação de responder ao desafio
cujo aspecto principal está no objetivo de construir de sua transformação em um projeto viável no ní-
a “Sociedade Nova”. A elaboração deste conceito vel macrossocietário.
remete-nos ao polêmico debate sobre a relação dos Na prática, porém, os limites entre o religio-
católicos com o capitalismo e com o socialismo. so e o político permanecem não muito claros. Há
As críticas ao capitalismo não são novas e so- uma constante tensão entre, de um lado, os limi-
frem modificações ao longo da História. Se, a prin- tes das Comunidades Eclesiais de Base, das Comis-
cípio, a crítica objetivava muito mais os excessos do sões Pastorais (da Terra, Operária, da Juventude
que o sistema propriamente dito, a década de 60 traz etc.), preocupadas com a construção da “Nova
a recusa do capitalismo, incorporada, mais tarde, aos Sociedade” e, de outro, os movimentos populares,
documentos de Medellín e Puebla. É de se ressaltar, sindicatos e partidos, cuja atuação dá visibilidade
porém, que em nenhum momento esta crítica trazia a questões de ordem política mais global que exi-
uma opção clara por uma alternativa socialista. “Era gem a capacidade de intervenção e de controle das
proibido falar em socialismo”, diz o Padre Valter, políticas governamentais. Como diz Grzybowski,
há uma contradição entre o “basismo” da Igreja e
a necessidade de eficácia política (Grzybowski,
1986, p. 950).
8 A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Bra-
Além da dificuldade de separar o político do
sil) foi fundada em 1952, por D. Hélder Câmara. Foi uma
religioso, a aproximação e valorização da religio-
das primeiras do mundo e a primeira Conferência de Bis-
pos da América Latina. Entre 1954 e 1964, a CNBB foi a sidade popular tem se revelado como uma relação
mais importante força propulsora do reformismo (Main- contraditória, de constante tensão entre o respeito
waring, 1989, p. 67). ao Evangelho e o respeito à “cultura do outro” (No-
9A III Assembléia Geral do CELAM (Conselho Epis- vaes, 1993, p. 101). Se é verdade que a fé e a reli-
copal Latino-Americano) realizou-se em Puebla, em 1979. gião têm, quase sempre, “funcionado como uma

Revista Brasileira de Educação 83


Maria Stela Marcondes de Moraes

fonte legitimadora da ordem social” (Geertz, apud se deu a instrumentalização da fé para a mobili-
Novaes, 1993, p. 92), o encontro do novo “racio- zação em torno de questões políticas.
nalismo pastoral” (e seu projeto externo de mudan- A influência da Igreja popular também se faz
ça na relação entre Fé e Vida) com o “universo sim- sentir na estrutura original da CRAB. Ela aparece
bólico popular” tem implicado, ao mesmo tempo, como um “serviço” de atendimento às lideranças
um questionamento daqueles elementos que refor- locais, no seu escritório em Erechim. Na prática, a
çam a subordinação (Novaes, 1993, p. 92). direção era dada pelo Secretário Geral que, segun-
No Alto Uruguai, este “encontro” se deu no do um depoimento, “manejava com todo o eixo da
interior das relações de poder local da estrutura roda”. Inspirado pelo espontaneísmo da “demo-
comunitária colonial preexistente. Estas relações cracia de base” dos agentes da Igreja popular, o
determinavam a hierarquia dos cargos de direção mesmo limitava-se a apoiar iniciativas de lideran-
das capelas e revelavam o enorme poder de controle ças comunitárias mais aguerridas que organizavam
social do pároco, no âmbito da comunidade rural. manifestações político-religiosas localizadas. Assim,
Foi esta mesma estrutura, constituída por capelas, os atingidos se identificavam com as lideranças lo-
paróquias, seminários, centros de formação, etc., cais, muito mais enquanto representantes das paró-
que serviu de base para o trabalho de cooptação de quias do que da instância organizativa do Movi-
agricultores para uma prática social mobilizadora. mento dos atingidos.
Em outras palavras, foi o jogo de forças entre Mesmo assim, tem início o aprendizado do
o conservadorismo do “universo simbólico popu- modo como se reunir, como se organizar, discutir
lar”, das direções de capela, das estruturas de po- e reivindicar. As primeiras reivindicações (indeni-
der local e municipal, de um lado, e, de outro, os zações justas, terra por terra e assentamentos) co-
valores da nova teologia, que moldou os espaços de meçam a tomar ares de direitos, afirmados em en-
penetração dos agentes pastorais e, conseqüente- contros regionais e estaduais, entre 1981 e 1983.
mente, alargou os limites de atuação dos militan- Mas a falta de coesão e articulação interna resulta
tes e lideranças dos movimentos que emergiram, no em um movimento difuso e disperso que, na sua
Alto Uruguai, no final dos anos 70. atuação externa, não consegue sensibilizar seu prin-
Os depoimentos dos entrevistados apontaram cipal interlocutor: a ELETROSUL.
para duas das principais atividades de formação de A indiferença da empresa e o início das obras
lideranças comunitárias do Alto Uruguai, influen- de Itá, em 1983, vêm reforçar a visão de mundo
ciadas pela Igreja popular: a Escola Diocesana de divulgada pela Igreja popular, para quem as barra-
Servidores de Erechim e o curso TAPA (Teologia e gens, filhas do “mal” maior, o capitalismo, devem
Ação Pastoral). A marca deste tipo de formação, ser exorcizadas. É a partir desta concepção que a
neste primeiro período, se faz sentir nas formas de Igreja popular vai incentivar a “política da recusa”,
organização e luta do Movimento de Barragens. que implica em negar e recusar o inimigo, em vez
Nos primeiros anos, a atuação voluntarista dos de dar visibilidade às contradições implícitas nas
agentes pastorais leva à organização apressada de relações sociais vivenciadas pelos trabalhadores ru-
Comissões Locais, muito mais destinadas a espaços rais. É essa “política da recusa” que se faz sentir no
de participação comunitária, para a construção da grito de guerra Terra sim, barragem não, marca da
“Sociedade Nova”, do que a se constituírem bases atuação do movimento entre 1983 e 1985.
sólidas de um movimento politicamente forte. Mui- Ao mesmo tempo em que na sua atuação ex-
tas vezes, a questão das barragens funcionou como terna o movimento dá as costas para o inimigo,
a “porta de entrada” para a penetração do trabalho internamente sua base social tende a dispersar-se.
da “Igreja renovada”, em comunidades mais pa- Outra contradição, implícita na radicalidade da re-
catas e conservadoras; inversamente, também aqui cusa, está na abertura de espaços para a atuação

84 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai e a ação político-educativa dos mediadores

das forças pró-barragens. Os impasses trazidos pe- mediação de lideranças intermediárias devidamente
la radicalidade do “não” convidava a rever posi- preparadas para o seu papel mediador.
ções e reestruturar a organização. Vindos do cen- Constata-se uma divisão do trabalho político
tro urbano-industrial do país, os princípios e fun- que reedita a separação entre concepção e execução,
damentos do “sindicalismo combativo” já ecoa- vigente nas relações que regem as sociedades con-
vam na região.10 Antes mesmo de serem divulga- temporâneas. O mesmo “funil” que, na estrutura
dos pelas escolas sindicais, instaladas a partir de de uma sociedade de classes, barra a passagem do
1986, sua influência já se fazia sentir sobre alguns mundo da execução para o da concepção, acaba por
jovens, lideranças intermediárias da CRAB, que obstruir os canais de ampliação da capacidade de
começavam a sonhar com a transformação da controle dos dirigidos sobre as instâncias de dire-
“CRAB/serviço” em “CRAB/movimento”, inspira- ção, dificultando a ruptura com a “lei de ferro da
dos no modelo de organização e luta do “sindica- oligarquia” que impera nos Movimentos Sociais.
lismo combativo”. Para tanto, era preciso formar Originária da estrutura organizativa da Igre-
um coletivo de dirigentes e um grupo de lideran- ja Católica, a figura do “liberado” foi incorporada
ças preparadas para o trabalho de organização das pelos movimentos sociais, aprofundando o abismo
bases. A formação destas lideranças foi assumida entre a composição social dos grupos dirigentes e
pelas escolas sindicais, instaladas a partir de 1986. aquela das bases (lideranças municipais ou locais e
militantes). Os principais dirigentes e assessores são
A CRAB e o “sindicalismo “liberados”, ou seja, remunerados para exercer os
combativo” (1986 a 1989) cargos de direção. Isto possibilita a concentração de
saber e de poder nos níveis de direção, bem como
Também são duas as experiências de forma- das oportunidades de amadurecimento e crescimen-
ção sindical: a Escola Sindical Margarida Alves to político, reforçando a capacidade de decisão e,
(ESMA) e a Escola Sindical Alto Uruguai (ESAU), principalmente, de persuasão. Como disse um en-
que, de 1986 a 1989, redirecionaram os rumos e trevistado: “A voz tem mais poder que o voto”.
a estrutura organizativa dos movimentos rurais, Desestimulados, os líderes intermediários sen-
nos moldes do “sindicalismo combativo”. tem-se expropriados de seu direito de aprender e de
Na esteira da nova “onda”, também a CRAB interferir nos rumos do movimento, o que está mui-
se reestruturou internamente de forma hierarqui- to bem expresso na frase de um deles: “Você cria
zada e dividida em dirigentes, lideranças, base e um pinheiro grande e não deixa crescer pinheirinho
massa. A grande contradição desse modelo está na embaixo, né...”. Este sentimento fragiliza a ligação
tensa relação entre a “democracia de base”, de um entre direção e base.
lado, e, de outro, as práticas centralizadoras e hie- Se, na presente avaliação da prática das CEBs,
rarquizadas no nível da direção, sem a necessária constata-se a contradição entre uma “pastoral de
elite” e uma “pastoral de massas”, o mesmo pode
ser dito em relação aos movimentos sociais que, em-
bora se inspirando nos princípios do “sindicalismo
10 Um dos entrevistados assim resume o modelo de combativo”, não conseguiram escapar da contra-
“sindicato combativo”: 1. um sindicato que lutasse para ter dição entre “movimentos de cúpula” e “movimen-
democracia sindical no nível da direção e que esta trabalhas-
tos de massa”.
se com as bases; 2. um sindicato que tivesse um programa
Essas contradições decorrrem da ausência de
de formação de seus dirigentes e das bases; 3. um sindicato
que tivesse participação da base e não fosse de cúpula; 4. uma postura crítica perante tais modelos organi-
um sindicato que tivesse movimentação e mobilizações com zativos e da compreensão da possibilidade de sua
a participação das bases. superação histórica. Como lembra Gramsci, cons-

Revista Brasileira de Educação 85


Maria Stela Marcondes de Moraes

tatar a existência real de dirigentes e dirigidos, im- rais, de promover processos de socialização e demo-
plica desenhar a formação de dirigentes, a partir da cratização da participação política, bem como de
seguinte questão: desenvolvimento rural.
São os processos de formação que explicam
[...] pretende-se que existam sempre governa-
a existência de movimentos sociais que, durante
dos e governantes, ou pretende-se criar as condições
muito tempo, negligenciaram o campo específico
em que a necessidade dessa divisão desapareça? Isto
de sua atuação, o “corporativo”,11 preocupando-
é, parte-se da premissa da divisão perpétua do gêne-
se mais em atuar como partido político, voltado
ro humano, ou crê-se que ela é apenas um fato histó-
para a elaboração e implantação de um projeto de
rico, correspondente a certas condições? (Gramsci,
sociedade — ora a “nova sociedade”, idealizada
1978, p. 19).
pelos teólogos da libertação, ora o “socialismo”,
Apesar da hierarquização na estrutura orga- tal como divulgado pelas escolas sindicais. Sem
nizativa é possível dizer que o Movimento dos condições de perceber o que havia de orgânico e
Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uru- mais permanente nas demandas aparentemente
guai se encontra entre os mais democráticos, pois “imediatas”, os dirigentes dos movimentos foram
consegue manter uma rede de lideranças de base levados a vê-las como “questões táticas”, restritas
capazes de garantir a mobilização nas comunida- ao seu aspecto ocasional.
des. Só assim foi possível deslanchar, em 1986, um A pesquisa junto aos movimentos rurais no
processo de discussão dos direitos a serem reivin- Alto Uruguai ilustra bastante bem o processo de
dicados, os quais foram sistematizados no chama- instrumentalização dos interesses imediatos dos
do “Documento de Getúlio” (porque elaborado agricultores, visando a uma intervenção mais am-
em uma Assembléia realizada no município de Ge- pla, no jogo das forças político-militares em dispu-
túlio Vargas-RS). ta pelo poder de Estado em todos os níveis (muni-
A radicalidade deste Documento denuncia a cipal, estadual e federal). A ênfase na militância
adoção, também pela CRAB, da “política do con- político-partidária e na participação de dirigentes
fronto”, inspirada nos ensinamentos das escolas nos processos eleitorais é sintomática.
sindicais. Trata-se de uma nova versão da instru- A influência das escolas sindicais só fez agra-
mentalização da fé, só que agora são as reivindica- var o fosso entre a visão de mundo que se construiu
ções específicas que são usadas como isca para a através das lentes quebradas das teorias ditas “mar-
promoção de grandes mobilizações em torno dos xistas”, vazias de sentido concreto, e as categorias
“interesses maiores da classe trabalhadora”, expres- do processo histórico real, objetivado no cotidiano
sos em palavras de ordem genéricas como: “Por um do trabalho e da vida dos agricultores do Alto Uru-
país livre e democrático”; “Por um Brasil governa- guai. O resultado foi o total desencontro entre as
do pelos trabalhadores”; “Pela Reforma Agrária”; “bandeiras de luta” lançadas pelos dirigentes dos
“Pelo Socialismo”. movimentos e as necessidades imediatas.
No caso da CRAB, além daquelas genéricas
palavras de ordem, seus dirigentes passam a enfa-
11
tizar a luta pela Reforma Energética. Encontra-se, O termo “corporativo” significa o campo privile-
aí, uma das principais contradições do Movimen- giado de atuação e intervenção dos movimentos sociais que
se articulam em torno de interesses específicos, base sobre
to. A prioridade que empresta à sua intervenção no
a qual se constroem as possibilidades de atuação e interven-
âmbito nacional é fonte de desperdício de recursos
ção em outros níveis: o da articulação de classe e o da luta
financeiros e humanos que poderiam estar voltados político-ideológica na disputa pela hegemonia e controle dos
para a luta local e regional, em torno da qual teria mecanismos de poder político no sentido estrito (Gramsci,
maiores chances de aglutinar os trabalhadores ru- 1978, p. 49-51).

86 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai e a ação político-educativa dos mediadores

É legítimo afirmar que dificilmente os agricul- do” das três classes (burguesia, pequena burguesia
tores teriam se mobilizado em torno daquelas pa- e assalariado). A multiplicidade de tipos sociais
lavras de ordem, ou pela necessidade de tomar o encontrada nos municípios, a partir de levanta-
poder de Estado. Na verdade, foi o agravamento das mentos feitos pelos próprios “alunos”12, alertou
condições de reprodução dos trabalhadores rurais para a realidade das novas relações de produção
que os levou às ruas nas grandes mobilizações de no campo, que impunha outras categorias e força-
1986 e 1987 em luta pela manutenção da pequena va uma redefinição dos esquemas anteriormente
propriedade e do trabalho familiar, por preços jus- aprendidos.
tos, acesso ao mercado, facilidades de crédito, infra- O esforço de compreensão das categorias do
estrutura para os assentamentos etc. O contexto real ressaltou o aspecto ideológico no jogo das for-
destas lutas mais específicas dos diferentes movi- ças sociais, mesmo que continuasse ausente dos “es-
mentos de trabalhadores rurais facilitou a conquista quemas economicistas” das apostilas. Desta forma,
da assinatura do acordo de 1987 entre a CRAB e a as novas técnicas de ensino significaram muito mais
ELETROSUL. do que uma “metodologia” que se propunha “partir
A evidência do desencontro entre as bandei- da prática” para chegar à concepção teórica de clas-
ras dos dirigentes e as necessidades imediatas dos ses sociais. O chamado “método dialético” mostrou
agricultores chamou a atenção para a diversidade as dificuldades concretas de análise e levou os pró-
de formas de objetivação das relações de explora- prios professores a repensarem sua concepção de
ção, expropriação, subordinação, exclusão e mar- classe social e de prática política.
ginalização no campo. A pressão das bases forçou A concepção de formação político-ideológica
os dirigentes a atentarem para o potencial político- e “etapista”, que norteara o trabalho daquelas es-
organizativo das demandas mais imediatas, incluin- colas, não mais se sustentava diante da “crise do
do, na agenda democrática, a luta pela expansão sindicalismo combativo”. A própria existência das
dos direitos de cidadania e democratização das re- escolas sindicais passa a ser supérflua na medida em
lações internas das organizações. que cada movimento assume as tarefas de forma-
A realidade mostrava sua cara e começava a ção de suas lideranças, apontando para uma liga-
chacoalhar o modelo de organização e luta difun- ção mais orgânica na relação formação/organiza-
dido pelas escolas sindicais. Os grandes esquemas ção. Diz um dos entrevistados:
generalizantes de explicação da sociedade vão sen-
A visão que se tinha nesse último momento era
do abandonados na medida em que as reais con-
que a formação passava pela construção orgânica do
tradições de classe, explicitadas pelas condições de
movimento e passava também pelas lutas do movi-
trabalho e de vida dos agricultores vão imprimir
mento. [...] Ela vai trabalhar com dirigentes, com se-
mudanças também nos processos de formação de
minários, onde vai discutir a produção, vai discutir a
lideranças.
questão da integração, estrutura sindical. Então, me
parece uma questão muito mais vinculada do que
A “formação técnica” por
quando era escola sindical.
“uma vida melhor” (1990...)

O ano de 1990 marca a consolidação de uma


12Um dos documentos refere-se a uma técnica para
tendência que vinha sendo gestada nos dois últimos
abordar a questão das classes, em que os próprios alunos
anos de funcionamento das escolas sindicais: a “for-
devem fazer um perfil dos sócios do sindicato (assalariados,
mação técnica”. integrados do fumo, do leite, do frango, do suíno etc.) e um
Desde 1989, os professores das escolas sindi- levantamento das classes sociais no seu município, na cida-
cais começavam a abandonar o “esquema fecha- de e no campo.

Revista Brasileira de Educação 87


Maria Stela Marcondes de Moraes

As modificações introduzidas nos cursos das ção de inserção no cotidiano, se direcionam para
escolas sindicais, nos seus últimos anos de existên- iniciativas renovadas de defesa da qualidade de
cia (1989/1990), já esboçavam o perfil da nova con- vida. A tendência, agora, é reconhecer a vida co-
cepção em seus diferentes aspectos: a. conteúdo, b. tidiana como espaço de construção de uma nova
metodologia, c. público alvo, e d. agentes da for- hegemonia e, portanto, colocar a organização em
mação. Sendo impossível abordar, nos limites des- torno das questões imediatas no centro da cons-
te trabalho, estas quatro dimensões ficamos com as trução de um projeto político (Basombrio, apud
duas primeiras. Ibañez, 1991, p. 12).
Segundo o professor entrevistado, manter a
Conteúdo: “questões do dia-a-dia” referência de uma “visão ideológica” e estratégica
pode indicar os caminhos do conhecimento crítico
As escolas sindicais pecavam por não prepa- das questões específicas do cotidiano, ao mesmo
rarem as lideranças para o cotidiano das lutas so- tempo em que estas podem ajudar a enriquecê-la.
ciais. Neste sentido, os professores concluíram que: É este caminho de mão dupla que, para o entrevis-
tado, poderiam impedir que as questões imediatas
A gente tinha que começar a discutir questões
se tornassem “imediatistas”. Teme-se que o exces-
do dia-a-dia do movimento sindical. No dia-a-dia ele
so de “especialização” dificulte o resgate de um ho-
não usa a concepção, não vai praticar a idéia de so-
rizonte político comum, o que poderia aprisionar
cialismo [...] e era fundamental começar a discutir o
os movimentos na discussão meramente tecnicista
específico. (E)
e isolá-los na luta “econômico-corporativa”.
A sintonia com o cotidiano das lutas provo- A observação do encaminhamento real das lu-
ca uma revisão na concepção de movimento e de tas traz sérias dúvidas quanto à existência de um
formação que, como assinala um dos professores, horizonte estratégico, aproximando-se mais do que
implica se poderia chamar de “movimentos de resultados”.
Navarro reforça esta idéia ao mostrar que a nova
[...] trabalhar para que cada um desses ramos
postura possibilitou uma visão “mais realista” do
específicos da produção, na área rural, possa ficar pre-
campo de intervenção dos movimentos:
parado para negociar com as respectivas empresas e,
no momento atual, negociar para que tenha uma vida [...] pois a intensificação das relações comer-
melhor [...]. A formação sindical tem que subsidiar ciais envolvendo o público associado e a conseqüen-
nesse sentido, possibilitando a capacitação profissio- te mercantilização da vida social no meio rural obri-
nal, o poder de discutir, negociar e enfrentar o outro ga o sindicato combativo a reconhecer que a questão-
lado, mas com uma clareza política e ideológica [gri- chave, em processos de expansão capitalista (e, por-
fo nosso]. tanto, de remotas possibilidades de mudanças estru-
turais ou do regime político) é agora disputar exata-
Esta visão corresponde às novas práticas de
mente o “bolo do lucro” com a empresa (“reivindi-
educação popular13 que, mantendo-se fiel à tradi-
car o máximo de conquistas”), mas não a existência
mesma da empresa e sua legitimidade, pelo menos nes-
te período” (Navarro, 1991, p. 26).
13
Esta nova postura consta como uma das “contri-
Diante disto, é impossível esquecer a observa-
buições da Educação Popular para a renovação da política
ção de Luciano Martins que, citado por Weffort,
da esquerda peruana e latino-americana” em pesquisa rea-
lizada por Carlos Basombrio, cujos resultados aparecem afirma que ”o Brasil das últimas duas décadas foi
sistematizados em seis pontos em texto de Ibañez (1991, p. tomado por uma notável e historicamente surpreen-
11-13). dente generalização do ethos capitalista” (Weffort,

88 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai e a ação político-educativa dos mediadores

1989, p. 24). Neste quadro, não surpreende a preo- pensamento dialético, a “formação técnica” reque-
cupação generalizada com a dimensão econômico- reria, dos assessores, a capacidade de aprofundar
corporativa que, em última instância, desenha o perfil as causas genéricas e estruturais das contradições
da “formação técnica”. vividas no cotidiano, resultantes da síntese de múl-
Alerta um dos professores que o grande desa- tiplas determinações em que se articulam elemen-
fio da formação e da ação organizativa está em ten- tos econômicos, políticos e sociais em uma perspec-
tar evitar os dois extremos: o “ideologismo”, erro tiva histórica, passíveis, portanto, de transformação.
da concepção anterior, e o “tecnicismo”, ou corpo- O “conhecimento técnico” ou o “saber popular”
rativismo, armadilha da qual os movimentos não têm pouco valor transformador se desvinculados do
têm conseguido escapar. trabalho de pensamento crítico:

Conhecer é apropriar-se intelectualmente de um


O “tripé metodológico”
campo dado de fatos ou de idéias que constituem o
saber estabelecido. Pensar é desentranhar a inteligi-
Para os professores entrevistados, o que pode
bilidade de uma experiência opaca que se oferece como
impedir que se recaia em um daqueles dois extre-
matéria para o trabalho da reflexão para ser com-
mos é o qus chamam de “tripé metodológico”:
preendida e, assim, negada enquanto experiência ime-
aprender, transmitir, intervir.
diata. Conhecer é tomar posse. Pensar é trabalho de
Aprender e transmitir se complementam no
reflexão. O conhecimento se move na região do ins-
caminho de mão dupla do que os professores cha-
tituído, o pensamento, na do instituinte (Chauí, 1982,
mam de “metodologia dialética”: o conhecimento
p. 60).
vivenciado das questões específicas é transmitido ao
“assessor especialista”, que leva os “alunos” a ad- Mas a prática nos mostra algo diferente: quan-
quirirem uma compreensão mais elaborada e abran- to mais “técnica” a assessoria, menor o preparo
gente da sua experiência empírica, com uma pers- intelectual do assessor para fazer a passagem entre
pectiva estratégica. Na prática, porém, o “método “a totalidade abstrata” e o “concreto pensado” (a
dialético” tem sido tratado de forma instrumental. negação da experiência imediata pelo trabalho de
Refere-se muito mais à relação entre “professor” e pensamento) ou mesmo para exercer o papel que
“aluno”, e à troca de seus “saberes”, do que à tra- lhes cabe na promoção de um novo consenso con-
jetória do pensamento de ambos na compreensão tra-hegemônico pela “reforma intelectual e moral”
da dialética do real. Perde-se de vista a dimensão (Gramsci, 1978, p. 5). No dia-a-dia da formação,
dialogal de ambos, “mestre e aprendiz”, com a prá- o “método dialético” tem se resumido ao empiris-
xis cultural (Chauí, 1982, p. 69)14. Sob a ótica do mo da já mencionada “didática diatribe” (ver, jul-
gar e agir).
Ainda em termos metodológicos, fala-se de
14
um “fazer juntos” que possibilitaria “tocar uma
“Com efeito, nos três filósofos (Platão, Rousseau e
Hegel), mestre e aprendiz estão numa relação de palavra metodologia que seja uma construção e que o as-
dividida ou partilhada — o logos a dois. No entanto, com sessor seja assessor mesmo, que assessore naquilo
quem fala o aluno platônico? Com o morto. Com quem fala que ele tem de competência [...]”, como diz um dos
o aluno rousseauista? Com o morto. Com quem fala o alu- entrevistados. No entanto, difícil é “tocar uma me-
no hegeliano? Com o morto. Sócrates, o silêncio das origens todologia que seja uma construção”, quando se dá
e o trabalho da história são os mortos com quem se fala.
Mas, que significa esse paradoxal diálogo? Significa que
através de um outro silencioso, a palavra e o pensamento
do aluno poderão nascer. É a dimensão simbólica do en- go com um outro que não é alguém, porque é o saber.”
sinamento e do aprendizado que se manifesta nesse diálo- (Chauí, 1982, p. 55).

Revista Brasileira de Educação 89


Maria Stela Marcondes de Moraes

tando valor à “competência” técnica do assessor. se dá em pelo menos dois níveis: externo e interno.
Como diz Chauí: Externamente, os dirigentes devem estar capacita-
dos para encaminhar reivindicações e negociações.
Quando examinamos a ciência contemporânea,
No âmbito interno, deve ser capaz de intervir na
dificilmente poderemos vê-la como instrumento de
organização e manter a capacidade de mobilização
liberação e, muito menos, como um pensamento cria-
das bases.
dor que nos torna mais reais e mais ativos. Pelo con-
O discurso sobre o “técnico” refere-se, no en-
trário, condição e fruto do “progresso”, a ciência tor-
tanto, a dois diferentes níveis de intervenção. No
nou-se poderoso elemento de intimidação sócio-polí-
caso do sindicalismo, por exemplo, fala-se da inter-
tica através da noção de competência. (Chauí, 1982,
venção na classificação do fumo para negociar uma
p. 58).
“melhoria de vida” para o fumicultor e, ao mesmo
O “fazer juntos” é, sim, um desafio muito mais tempo, procura-se intervir no processo de implan-
complexo do que possa parecer. Reproduz-se aqui tação do Mercosul. No caso da CRAB (hoje MAB/
o mesmo dilema que provoca o atual debate, entre Região Sul), a “melhoria de vida” se expressa na
assessores e agentes da Igreja Católica, sobre a con- luta por itens de infra-estrutura nos assentamentos
tradição entre a “racionalidade pastoral” e o “uni- de atingidos. Simultaneamente, enfatiza-se a luta
verso simbólico popular”. Novaes lembra que não pela reforma energética.
se trata apenas de aguçar a sensibilidade para “os No caso do fumo e dos assentamentos de atin-
padrões culturais do povo” ou para a expressão de gidos, por exemplo, estamos falando do nível de
sua experiência empírica, mas de atentar para o intervenção “econômico corporativo”. Trata-se de
conjunto de relações e contradições a que estão su- uma ação equivalente ao que Gramsci chama de
jeitos (Novaes, 1993, p. 107). Outra vez é Chauí “sindicalismo teórico”, que atua no âmbito do “mo-
quem afirma que, mais do que a competência, o vimento da livre troca”, restrito às regras das for-
“técnico” teria que desenvolver: ças hegemônicas:

Um pensamento que, abandonando o ponto de O fato da hegemonia pressupõe indubitavel-


vista da consciência soberana, pensasse na imbrica- mente que se deve levar em conta os interesses e as
ção das consciências e das relações sociais e estivesse tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia
sempre atento para o problema da dominação do ho- será exercida; que se forme certo equilíbrio de com-
mem sobre o homem e que se chama: luta de classes promisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios
(Chauí, 1982, p. 62). de ordem econômico-corporativa. (Gramsci, 1978,
p. 33).
Também não basta perceber e pensar este con-
junto de relações. Cumpre desenvolver um tipo de Os “sacrifícios” do grupo dirigente podem re-
práxis capaz de promover o que Gramsci chama de sultar em “melhoria de vida” para os grupos su-
“catarse”: “o processo pelo qual uma classe supe- balternos e, para além do mundo da produção, as
ra seus interesses econômico-corporativos imedia- pressões e negociações podem render conquistas
tos e se eleva a uma dimensão universal, ‘capaz de significativas em termos de direitos de cidadania,
gerar novas iniciativas’” (apud Coutinho, 1981, p. dentro da ordem jurídica vigente. É inegável a im-
71). Isto nos remete ao terceiro aspecto do tripé portância da organização em torno das necessida-
metodológico: a intervenção. A julgar pela afirma- des imediatas como elemento fundamental para a
tiva de um dos entrevistados, a noção de interven- construção da identidade de sujeitos sociais, para
ção amplia o significado do termo “técnico”: “Você a conquista de direitos e para a criação do “direito
tem que discutir o técnico em si, ou seja, como é que insurgente”. Isto não significa, contudo, uma inter-
vão poder intervir nesse processo”. A intervenção venção automática naquilo que é essencial:

90 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
O Movimento dos Atingidos pelas Barragens da Bacia do Rio Uruguai e a ação político-educativa dos mediadores

Mas também é indubitável que os sacrifícios e dificuldades enfrentadas para que se cumpra o acor-
o compromisso não se relacionam com o essencial, do de 1987 para a situação específica da Barragem
pois se a hegemonia é ético-política também é econô- de Itá, por exemplo, antecipam os obstáculos impos-
mica; não pode deixar de se fundamentar na função tos à sua generalização para as outras situações de
decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo deci- barragens no Alto Uruguai. Isto para não mencio-
sivo da atividade econômica (Gramsci, 1978, p. 33). nar as demais, em âmbito nacional.
De qualquer maneira, a politização da econo-
Esta “função decisiva”, contudo, não é de na-
mia — e urge considerar isto — depende da poli-
tureza “técnica” ou “econômica” no sentido estri-
tização e democratização das relações nas organi-
to, mas política: “[...] uma regulamentação de ca-
zações de base. Gramsci atribui aos sindicatos e, por
ráter estatal, introduzida e mantida por caminhos
extensão, aos movimentos sociais, um papel que vai
legislativos e coercitivos: é um fato de vontade cons-
muito além da mera negociação por melhores con-
ciente dos próprios fins, e não a expressão espon-
dições de vida e de trabalho. Devem atuar como
tânea, automática, do fato econômico” (Gramsci,
canais autônomos e democráticos de participação
1978, p. 32).
dos trabalhadores na sociedade civil e de interferên-
Trata-se de programa político dos dirigentes
cia nos destinos da vida nacional (Deluiz, 1991, p.
do Estado, forças que atuam no nível político-mi-
90). É a democratização das organizações da so-
litar, para usar a expressão gramsciana. Faz parte
ciedade civil que pode abrir ”novas cunhas entre o
deste programa manter as classes subalternas no
Estado (relações de poder) e a ‘economia’ (relação
nível de intervenção corporativo, disperso e desar-
de produção)” (Grzybowski, 1987, p. 12):
ticulado. A intervenção pode, então, permanecer
subordinada à ordem jurídica vigente, se não se co- Quanto mais se ampliar a socialização da polí-
locar o desafio de se tornar grupo dirigente. tica, quanto mais a sociedade civil for rica e articula-
Encontra-se aqui a grande contradição dos da, tanto mais os processos sociais serão determina-
movimentos objetivada na dificuldade de conci- dos pela teleologia (pela vontade coletiva organizada)
liarem suas lutas específicas, por um lado, visan- e tanto menos se imporá a causalidade automática e
do “resultados” capazes de manter a mobilização espontânea da economia (Coutinho, 1981, p. 76).
e as oportunidades de democratização nos níveis
locais e regionais, e, por outro, a luta pela demo-
cratização das relações de poder de Estado. O caso
MARIA STELA MARCONDES DE MORAES é pro-
do Movimento dos Atingidos é emblemático. No fessora da Faculdade de Educação da Universidade Federal
nível das necessidades imediatas enfatiza as con- Fluminense (UFF) e Consultora do Instituto Brasileiro de
quistas de infra-estrutura para os assentamentos. Análises Sociais e Econômicas (IBASE).
No nível nacional, prioriza o enfrentamento com
o setor elétrico, perdendo de vista o conjunto de
forças responsáveis pelo modelo de desenvolvi- Referências bibliográficas
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92 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Espaço Aberto

Participação popular na melhoria do ensino público


Uma proposta de contribuição da universidade
para a melhoria do ensino público

Celso de Rui Beisiegel


Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo

Trabalho apresentado, em versão preliminar, no seminário “Autonomia


da Escola Pública”, promovido pela Fundação para o Desenvolvimento da
Educacional do Estado de São Paulo (FDE), maio-junho de 1992.

Nos primeiros meses de 1991, a Universida- to o documento quanto o conceito de participação


de de São Paulo apresentou ao governo do Estado nele envolvido.
uma proposta de colaboração envolvendo um am- A proposta abrange três áreas de atuação: 1)
plo elenco de possibilidades de atuação nas áreas a coordenação, pelas universidades públicas do Es-
da saúde, da educação, da agronomia e dos seto- tado, de uma rede experimental de escolas de 2º
res produtivos em geral. Enquanto pró-reitor de grau; 2) um programa de elaboração de livros di-
graduação, fui incumbido pelo reitor, professor dáticos e de outros materiais didáticos de alto ní-
Roberto Lobo, de elaborar as sugestões de colabo- vel, por equipes da Universidade de São Paulo; e 3)
ração na parte relativa ao ensino de 1º e 2º graus. um programa de aperfeiçoamento do pessoal docen-
No documento que preparei, que será apresentado te do ensino público, apoiado sempre que possível
adiante, já se encontra explicitado um particular nos livros e nos materiais didáticos preparados pela
entendimento sobre a questão da participação po- universidade.
pular na melhoria do ensino público. Consideran- Na elaboração dessa proposta busquei apoio
do a importância que nos últimos anos vem sendo em diversas iniciativas e experiências anteriores.
atribuída à participação popular ou à participação Ainda nos primeiros anos da década de 1970, pro-
da comunidade nas questões do ensino, pareceu- curando respostas para as intensas pressões por va-
me oportuno submeter ao debate acadêmico tan- gas na Escola de Aplicação da atual Faculdade de

Revista Brasileira de Educação 93


Espaço Aberto

Educação da USP, o professor Laerte Ramos de ensino público de 1º e 2º graus. Participei, com os
Carvalho1 aventou a possibilidade de reivindicar professores Alésio Caroli2 , Eunice Ribeiro Durham3
para a universidade a coordenação das escolas pú- e Maria Aparecida Tamaso Garcia4 , dos estudos
blicas de ensino secundário situadas na periferia da preliminares e da discussão do projeto então apre-
Cidade Universitária. Submetidas ao mesmo regi- sentado, pelo secretário, ao governo do Estado.
me de trabalho da Escola de Aplicação, essas esco- Na parte relativa ao aperfeiçoamento do pes-
las possibilitariam oferecer um melhor atendimen- soal da rede, a proposta considerou a experiência
to escolar às crianças dos servidores da universidade acumulada pela USP em programas de capacitação
e dos moradores da região circunvizinha. de professores do ensino de 1º e 2º graus. Após a
Muitos anos depois, o professor José Mário reforma de Secretaria da Educação, em 1977, essas
Pires Azanha idealizou e coordenou um convênio atividades passaram a realizar-se mediante colabo-
celebrado entre a Secretaria da Educação e a Facul- ração entre a universidade e a Coordenadoria de
dade de Educação da Universidade de São Paulo, Estudos e Normas Pedagógicas (CENP). Coordenei
com a finalidade de promover trabalhos conjuntos as atividades da USP no âmbito dessa colaboração
entre equipes de professores da faculdade e profes- por alguns anos, durante a gestão do professor Gol-
sores das escolas públicas de 1º e 2º graus das ime- demberg na Reitoria.
diações da Cidade Universitária (Azanha, 1985). Finalmente, a proposta embasou-se também em
Essa atividade conjunta deveria possibilitar a ela- uma longa experiência pessoal de participação no
boração de um plano de aperfeiçoamento (ou o que Conselho Diretor da Fundação do Livro Escolar
hoje se convencionou chamar de “projeto pedagó- (FLE)5. O insucesso da fundação na criação de pro-
gico”) de cada uma das escolas envolvidas. O ob- cedimentos que induzissem as editoras comerciais a
jetivo mais amplo do convênio era chegar à cons- um esforço de melhoria do nível de qualidade dos
trução de procedimentos que pudessem depois ser livros didáticos sugeria a procura de novos caminhos
estendidos pela Secretaria da Educação às demais de realização desse objetivo. O envolvimento da uni-
escolas da rede. Alguns anos depois, o professor José versidade na produção de livros de alto nível pode-
Goldemberg, então reitor da Universidade de São ria ser a chave para provocar a elevação de nossos
Paulo, inspirado em experiências realizadas na re- padrões editoriais na área do livro didático.
gião de Boston, onde a universidade havia assumi- Assim, a proposta de colaboração procurava
do a coordenação de parte da rede de escolas secun- harmonizar três conjuntos de ações num só proje-
dárias, promoveu algumas discussões sobre a pos- to bem articulado: a rede experimental de escolas,
sibilidade de realização de um programa semelhante fixando um novo patamar de qualidade a ser reali-
no Estado de São Paulo. Quando, logo depois, as-
sumiu a Secretaria da Educação, o professor Gol-
demberg reelaborou suas propostas e passou a exa- 2
Alésio Caroli, na época, era diretor executivo da
minar a possibilidade de criação de uma rede de
FUVEST.
“liceus”, com características de organização e fun- 3 Eunice Ribeiro Durham foi responsável pela asses-
cionamento que possibilitassem a constituição de
soria técnica da Secretaria da Educação durante a gestão
um novo patamar de referência para a qualidade do Goldemberg.
4Coordenadora da COGESP e da CEI durante a ges-
tão Goldemberg.
1 5 Durante a gestão de Pedro Paulo Poppovic em sua
O professor Laerte Ramos de Carvalho era na épo-
ca diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais diretoria executiva (1985-1986), a FLE procurou desenvol-
(CRPE) “Prof. Queiroz Filho” de São Paulo e diretor da ver procedimentos voltados para a melhoria da qualidade
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. dos livros didáticos editados no Estado de São Paulo.

94 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Espaço Aberto

zado, progressivamente, em todas as escolas públi- As principais causas da crise do ensino públi-
cas do Estado; um programa de produção de livros co são realmente bem conhecidas. Apenas para si-
e materiais didáticos de alto nível, cujos conteúdos tuá-las, inicialmente é preciso atentar para a mag-
seriam divulgados inclusive por meio do ensino à nitude da expansão dos serviços educacionais no Es-
distância; e um programa de aperfeiçoamento de tado levada a cabo nas últimas décadas. Num perío-
professores, organizado principalmente a partir dos do de intenso crescimento populacional, assentado
conteúdos desses livros e materiais didáticos. A rede sobretudo na atração de migrantes de áreas rústicas,
experimental de escolas cimentaria os diversos com- o poder público, em poucas décadas, estendeu opor-
ponentes do programa. Nessas escolas, professores tunidades de acesso à escola a praticamente toda a
preparados em programas de aperfeiçoamento para população escolarizável. Mais ainda, incorporou à
atuar aproveitando os livros e materiais didáticos anterior escola primária básica, de quatro anos, a an-
produzidos na universidade teriam a função de de- tiga escola secundária de 1º ciclo, ampliando, assim,
monstrar, para a coletividade, que é possível pro- de quatro para oito anos a escolaridade obrigatória.
duzir educação de qualidade no ensino público. Em contrapartida, não foram investidos na
educação os recursos exigidos por essa expansão
*** do atendimento. A ampliação da capacidade de
Apresento, a seguir, os pontos mais relevan- matrícula, nessas condições, foi em parte obtida
tes da proposta. mediante soluções emergenciais, bem exemplifica-
Na introdução, o documento intitulado “Sub- das na multiplicação dos períodos diários de fun-
sídios para a política de educação do Estado de São cionamento das escolas. Expedientes semelhantes
Paulo”6 afirmava que foram mobilizados em relação aos professores do
ensino público de 1º e 2º graus: a manutenção de
ao assumir o Governo do Estado, a nova admi-
níveis condignos de salário foi substituída pela di-
nistração encontrará a rede pública de escolas de 1º e
minuição do trabalho e por outras discutíveis
de 2º graus em inegável situação de crise. Analisada e
“vantagens” corporativas.
discutida exaustivamente ao longo das últimas admi-
Como não poderia deixar de ocorrer, os resul-
nistrações do ensino, essa crise é bem conhecida e,
tados obtidos também foram contraditórios. Os in-
neste momento, até dispensa novos diagnósticos. Co-
dicadores da evolução do atendimento exprimem,
nhecem-se, com razoável precisão, os principais com-
ao mesmo tempo, o notável sucesso e o inaceitá-
ponentes [intra-sistema] [...] das dificuldades ora en-
vel fracasso da atuação educacional do Estado. De-
frentadas. Assim, o que se impõe, agora, e com ur-
monstram que ampliou-se a rede de escolas e que
gência é: primeiro, uma firme decisão política de re-
as oportunidades educacionais aumentaram em nú-
cuperação do ensino público e, segundo, um progra-
meros impressionantes. Mas revelam também que
ma de iniciativas que venham a possibilitar, de modo
em sua maior parte as crianças que entram na pri-
claro, um começo de reversão da perversa tendência
meira série do ensino de 1º grau não concluem os
à aniquilação de uma escola que já foi motivo de or-
estudos básicos. Finalmente, aquelas minorias que
gulho para a população do Estado de São Paulo.
alcançam a 8ª série do ensino público comum ou o
diploma do 2º grau não vêm obtendo instrução e
*** formação sequer razoáveis.7

***
6
Documento encaminhado em março de 1991 ao go-
vernador eleito, como parte das propostas de colaboração
da Universidade de São Paulo com o governo do Estado. 7 Cf. Beisiegel, Arroyo, Cury e Saviani, 1983.

Revista Brasileira de Educação 95


Espaço Aberto

Todos sabem que a Secretaria de Estado da médias e até mesmo famílias com escassos recursos
Educação vem tentando encaminhar soluções para econômicos têm procurado colocar suas crianças
a melhoria da qualidade do ensino público. Algu- em escolas particulares. Muda progressivamente
mas iniciativas de grande potencial têm sido ado- também o perfil do magistério: o ensino público de
tadas, nas diversas administrações da Secretaria, nos 1º e de 2º graus já não conta em seus quadros com
últimos governos. Incluem-se, entre elas, a institui- porcentagens significativas de egressos das univer-
ção do “ciclo básico”; o início de implantação da sidades estaduais ou das instituições superiores par-
denominada “jornada única”; o tímido começo de ticulares de melhor qualidade. Aquelas figuras exa-
um processo de descentralização administrativa; a geradas e ideologicamente viesadas da “escola dos
criação dos CEFANS e das “oficinas pedagógicas”; pobres” e do “nivelamento por baixo” de certa for-
e os primeiros passos da ainda parcial e quase ine- ma estariam ganhando realidade, pelo menos nas
xistente municipalização das atribuições concernen- grandes cidades e nas imensas periferias urbanas,
tes ao ensino de 1º grau. Mas nada se fez de real- consubstanciando-se na fuga dos setores mais exi-
mente significativo em outras questões fundamen- gentes da clientela e na recusa dos profissionais de
tais: a incipiente interação que vinha sendo desen- melhor formação às condições de trabalho ofereci-
volvida entre a Secretaria da Educação e as univer- das pelo magistério público. A essas perspectivas
sidades estaduais no setor do aperfeiçoamento do preocupantes acrescenta-se um fenômeno palpável
magistério entrou em colapso, a partir de 1989; não e da maior gravidade: nos últimos anos, tanto na
se avançou na indispensável instituição de uma car- administração quanto entre os usuários aceitam-se
reira do magistério com melhoria salarial consis- quase com naturalidade ações que perturbam o fun-
tente baseada na produtividade, na dedicação e na cionamento regular do ensino sobretudo nas áreas
competência profissional do professor; acentuou-se mais problemáticas (grandes cidades e periferias
a perversa manipulação das questões do ensino pe- urbanas), mas que de alguma forma afetam nega-
los interesses político-partidários; não ocorreram tivamente também o conjunto da rede de escolas,
avanços na questão crucial da autonomia da esco- tais como prolongadas paralisações das atividades
la; a reforma administrativa da Secretaria da Edu- escolares, falta de aulas, até em disciplinas do nú-
cação e a criação de um adequado modelo pedagó- cleo comum, e diplomação de alunos que não tive-
gico para a escola de 1º grau continuam à espera ram cargas horárias suficientes em muitas discipli-
de novos tempos. nas devido à inexistência de professores interessa-
dos em ministrá-las. Após cada uma das greves pro-
*** longadas e das controvérsias que sempre envolvem
Nesse quadro de dificuldades, a escola públi- o processo de “reposição” das aulas perdidas, re-
ca de 1º e de 2º graus vem sendo objeto de um pro- almente aprofunda-se a perda de expectativas quan-
cesso inadequadamente designado como de “nive- to à qualidade do ensino nas escolas públicas de 1º
lamento por baixo”. O que em geral se pretende e de 2º graus. O evidente descaso das elites e a pas-
afirmar com essa expressão é que o ensino público siva reação de desalento da população em face des-
estaria sendo transformado no “ensino dos pobres”, sas realidades inaceitáveis talvez constituam, neste
freqüentado somente pelos segmentos da popula- momento, a expressão mais grave da crise e o indi-
ção que não podem ter acesso a serviços de melhor cador mais agudo da tendência ao completo descré-
qualidade. Tais afirmações não retratam com fide- dito do ensino público.
lidade a situação das escolas públicas de 1º e de 2º
graus. Não obstante, é inegável que nas grandes ***
cidades, acompanhando o comportamento dos es- Um programa de iniciativas comprometidas
tratos mais privilegiados da população, as camadas com a recuperação da escola pública precisa neces-

96 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Espaço Aberto

sariamente atuar, com urgência, na reversão dessas [...] 1) propor procedimentos de organização e
expectativas negativas quanto à qualidade do en- funcionamento que demonstrem a possibilidade de
sino público de 1º e de 2º graus. Talvez se encon- obtenção de altos níveis de qualidade do ensino na
trem exatamente aí algumas das melhores possibi- escola pública; 2) propor um modelo de organização
lidades de contribuição das universidades para o da carreira do magistério fundada na formação, no
processo de recuperação do ensino público. interesse e na competência profissional do professor;
Com os recursos humanos de que dispõem, as 3) experimentar procedimentos de autonomia finan-
universidades públicas do Estado têm condições ceira, administrativa e didática das escolas; e 4) atuar
reais de desenvolvimento de um programa consis- em condições que não sejam excepcionais e de reali-
tente de melhoria da formação dos professores da zação inviável na escola pública comum, para possi-
rede. Estão preparadas para promover um progra- bilitar a progressiva extensão dos novos modelos ao
ma de produção de livros didáticos e de outros re- conjunto da rede de escolas.
cursos didáticos de conteúdos modernizadores e de
boa qualidade para o ensino de 1º e 2º graus.8 Mais O número inicial de escolas da rede experi-
ainda, podem mobilizar para essa tarefa os recur- mental dependeria de decisão do novo governo, mas
sos da educação à distância ou de uma universida- deveria possibilitar a instalação de unidades em
de aberta, a ser criada com o apoio ou da TV Cul- áreas diversificadas, sobretudo nas grandes cidades.
tura ou de uma TV universitária. E, por outro lado, Os docentes seriam admitidos em caráter experi-
seria perfeitamente exeqüível atribuir às universi- mental, em processo seletivo aberto aos professo-
dades a criação, a organização e a coordenação de res da rede e aos licenciados em geral. A carreira
uma rede experimental de escolas de 2º grau, com deveria afastar quaisquer concessões corporativas,
a finalidade de instituir um novo patamar de qua- admitindo regime de tempo integral nas disciplinas
lidade, a ser atingido, depois, progressivamente, do núcleo comum. A promoção na carreira depen-
pelo conjunto das escolas públicas do Estado.9 deria da formação específica, do interesse e da com-
petência profissional do professor. Nas escolas ins-
*** taladas nos primeiros tempos de funcionamento
Como é próprio em documentos dessa natu- dessa rede experimental, os alunos seriam recruta-
reza, a proposta foi apresentada em linhas gerais. dos a partir de sua classificação nas respectivas es-
Somente a parte relativa à criação da rede experi- colas de 1º grau, reservando-se pelo menos metade
mental de escolas recebeu algum detalhamento. Es- das vagas para os egressos das escolas públicas. As
tabeleciam-se, como suas finalidades principais, escolas deveriam funcionar em dois períodos diur-
nos e um noturno. Os conhecimentos obtidos pe-
las escolas junto aos seus alunos seriam avaliados
8 No que se refere à produção de livros didáticos pela
por meio de provas comuns, aplicáveis a todas elas
USP para o ensino de 2º grau, este programa foi efetivamente de modo a possibilitar a comparação dos respecti-
realizado. Desenvolvido mediante convênio firmado entre vos desempenhos e o estudo dos fatores de variação
a USP e a FDE, previu a elaboração de um livro didático para de seus resultados.
cada uma das disciplinas do currículo do ensino de 2º grau, Finalmente, seria necessário insistir em que es-
por equipes constituídas por intelectuais de alto nível. O pro-
sas escolas em nenhuma hipótese poderiam ser vis-
grama já entregou ao público dois dos exemplares previstos:
História do Brasil, de Boris Fausto; e Literatura brasileira -
tas como algo desligado da rede pública de ensino.
dos primeiros cronistas aos últimos românticos, de Luiz Não havia na proposta a intenção de criar uma pe-
Roncari. Outros exemplares encontram-se em preparação. quena rede de estabelecimentos privilegiados. Cui-
9
Cf. o documento “Subsídios para a política de dava-se, tão-somente, de fixar novos patamares de
educação do Estado de São Paulo” (já citado). qualidade e de testar modelos de organização e fun-

Revista Brasileira de Educação 97


Espaço Aberto

cionamento que, uma vez aprovados, seriam pro- res do laicato católico, nas décadas de 50 e 60.12
gressivamente estendidos ao conjunto da rede. A ex- Uma investigação mais aprofundada sobre as ori-
tensão do modelo a outras escolas públicas deveria gens da valorização dessa participação não pode-
atender a cronogramas bem definidos e seria regida ria prescindir da análise das orientações que preva-
por critérios que levassem em conta os resultados leciam, na época, nas escolas de serviço social.
conseguidos por essas escolas, considerando os ní- Independentemente de suas diferentes origens,
veis do aprendizado obtido junto aos seus alunos, a defesa da necessidade da participação avançou
os índices de promoção e conclusão de curso, a fre- consideravelmente durante a fase final dos gover-
qüência relativa dos professores, a qualificação fun- nos militares. Participação, na época, significava
cional e a estabilidade do corpo docente.10 exatamente o oposto de uma estrutura de domina-
ção autoritária ditatorial. Eram muitas, aliás, as
*** virtudes atribuídas à participação: bandeira de luta
Afirmei, no início desta exposição, que a pro- contra o Estado autoritário; contraponto à impes-
posta da universidade envolvia um particular enten- soalidade burocrática e ao corporativismo das gran-
dimento da questão da participação popular na me- des organizações públicas; estímulo adicional à de-
lhoria do ensino. Explico, em seguida, o sentido dicação do funcionário no cumprimento de seus
dessa afirmação. deveres; instrumento de fiscalização da atuação do
É já bem antiga, entre nós, a defesa do incre- Estado; garantia da presença dos interesses dos
mento da participação popular nas atividades rea- usuários nas orientações da atuação dos poderes
lizadas pelo Estado. São numerosas e bastante di- públicos.
versas as raízes dessa posição. Karl Mannheim, um Como freqüentemente ocorre em questões de
autor de grande influência entre nossos intelectuais interesse acadêmico ou de significado político, o
nas décadas de 50 e 60, nos trabalhos produzidos tema da participação popular vem ganhando am-
após sua mudança para a Inglaterra, buscava encon- plitudes não previsíveis nos seus pontos de partida.
trar na tradição anglo-saxônica de valorização do Na educação, por exemplo, advoga-se já a plena
pequeno grupo as possibilidades de defesa contra participação dos usuários na elaboração de currí-
a massificação e as irracionalidades da grande so- culos. Em todas as áreas, avançou-se consideravel-
ciedade.11 Antecedentes de origem semelhante apa- mente nas expectativas favoráveis associadas ao
recem também em Anísio Teixeira, quando defen- envolvimento popular direto na gestão das institui-
de a instituição de conselhos educacionais e a par- ções. Em algumas análises, a participação popular
ticipação local na administração do ensino. Mas na gestão das instituições surge como condição in-
é sobretudo nos primeiros trabalhos de Paulo Freire dispensável à melhoria dos serviços.
que a importância da participação popular encon- A importância da participação popular e suas
tra sua afirmação mais radical. É preciso assinalar, possibilidades na promoção da melhoria da quali-
aliás, que nesses primeiros trabalhos de Paulo Freire dade dos serviços prestados pelas instituições pú-
a presença de Mannheim e de Anísio Teixeira é mar- blicas são inegáveis. Cabe, no entanto, indagar se
cante. Uma outra vertente que aponta para a defe- o avanço das expectativas associadas ao seu poten-
sa da participação popular estaria numa orientação cial não estaria correndo o risco de exceder os li-
comunitária cristã compartilhada por amplos seto- mites do razoável. Um eventual exagero participa-
cionista não viria atribuir exclusivamente ao usuá-
rio a responsabilidade pela melhoria dos serviços?

10 Idem.
11 Cf. Beisiegel, 1984, p. 76. 12 Cf. Idem., p. 34.

98 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Espaço Aberto

Ou, em outras palavras, não estaria liberando es- ça reivindicatória do povo o respaldo indispensá-
pecialistas e instituições especializadas de suas res- vel a realização dos esforços e à mobilização dos
pectivas responsabilidades na produção de serviços investimentos necessários à reconstrução do ensi-
de qualidade? no público (Beisiegel, 1964). É inegável que neste
Não obstante a relevância dessas indagações, processo se encontra uma modalidade de participa-
importa agora assinalar que, por mais diversas que ção popular que não deve ser menosprezada.
sejam as razões alegadas em defesa de sua necessi-
dade, nestas acepções a participação sempre envol-
ve uma presença direta dos agentes nas atividades CELSO DE RUI BEISEIGEL, doutor em Sociologia
consideradas. pela FFLCH da USP, é professor titular de Sociologia da
Educação da Faculdade de Educação da USP. Vem traba-
A proposta da rede experimental de escolas
lhando especialmente com as relações entre a política e a edu-
também supõe a participação popular como ele- cação, sobretudo no campo da educação popular.
mento fundamental. Mas, neste caso a participação
desejada é de natureza diferente, é menos direta do
que a anterior. O que se pretende é demonstrar, com
Referências bibliográficas
a rede experimental de escolas, que é possível ob-
ter um ensino de qualidade na escola pública e, a
AZANHA, José Mário Pires, (1985). Convênio de Coope-
partir deste efeito de demonstração, levar a popu-
ração Técnica FEUSP - Secretaria da Educação. São Pau-
lação a transformar-se no grande instrumento de lo: FEUSP.
luta pela generalização das condições que possibi-
BEISIEGEL, C.R., (1964). Ação política e expansão da rede
litam a existência desse ensino público de qualidade. escolar. Pesquisa e Planejamento, nº 8, dez. CRPE “Prof.
Constituída por escolas coordenadas pelas uni- Queiroz Filho”.
versidades públicas, com professores selecionados, BEISIEGEL, C.R., ARROYO, M.G., CURY, C.R.J., SA-
melhor remunerados, contratados em regime de VIANI, D. (1983). Um novo estilo de diagnóstico edu-
tempo integral nas disciplinas do núcleo comum, cacional. Brasília: INEP.
com possibilidades de realização de carreira regida BEISIEGEL, C.R., (1984). Política e educação popular: a
pela habilitação profissional, pela competência pro- teoria e a prática de Paulo Freire no Brasil. São Paulo:
fissional e pela dedicação ao trabalho, essa rede de Ática.
escolas em pouco tempo poderia demonstrar à co-
letividade que é perfeitamente possível obter edu-
cação de qualidade no ensino público. Começaria
por aí o processo de reversão das expectativas po-
pulares quanto à qualidade do ensino público.
Por isso mesmo é que a varíavel central da pro-
posta está na exigência de progressiva extensão do
modelo a outras escolas da rede comum. Um cro-
nograma de ampliação das escolas da rede experi-
mental, uma vez divulgado pela administração, cer-
tamente levaria a população dos municípios e dos
bairros das grandes cidades a lutar pela conquista
de sua escola pública de qualidade. E quando a po-
pulação do Estado estiver lutando pela conquista
de sua escola pública de qualidade, os educadores,
e mesmo o Governo do Estado, encontrarão na for-

Revista Brasileira de Educação 99


Resenhas

Em seu livro Les lycéens (Seuil, Na segunda, o autor reconhece


François Dubet. Sociologie de 1991), Dubet realizou estudos sobre que a realidade social não se reduz a
l’expérience. Paris: Seuil, os alunos dos liceus franceses, uma única lógica, a um só papel e a
1994. 273 p. privilegiando a sua condição de uma programação cultural
atores sociais. Por essas razões seu homogênea das condutas. Sobressai,
interesse teórico maior resulta na pelo contrário, tanto nas condutas
Pesquisador do CADIS — investigação da subjetividade dos individuais como coletivas uma
Centre d’Analyse et d’Intervention alunos e a maneira como vivem e heterogeneidade de princípios
Sociologiques, até recentemente constróem sua experiência. constitutivos que exigem dos
coordenado por Alain Touraine —, Sociologie de l’expérience, indivíduos uma atividade constante
François Dubet realizou no início da lançado no segundo semestre de de reflexão de modo a construir o
década de 80 uma série de pesquisas 1994, é um livro que se torna sentido de sua prática. Por essas
sobre os novos movimentos sociais produto de sua dupla atividade nos razões, o conceito de socialização
na França, como as lutas estudantis, últimos vinte anos, como afirma o enquanto interiorização individual
o movimento antinuclear e a luta próprio autor: a de pesquisador e a das regras sociais vigentes torna-se
dos moradores de favelas de de professor universitário. Por essas objeto de exame crítico a partir das
Santiago, no Chile. razões, realiza um esforço integrador perspectivas consagradas de
No entanto, a crise dos novos de duas linhas de reflexão: uma Durkheim e Parsons.
movimentos sociais e os processos de primeira que diz respeito à sua tarefa O esgotamento dessas
exclusão que culminaram com a de professor de sociologia e ao representações do social faz emergir
dualização da sociedade francesa estado atual das teorias sociológicas a necessidade de novos conceitos que
ofereceram novos desafios contemporâneas; a segunda encontra consigam apreender a natureza das
intelectuais para o pesquisador. ancoragem na atividade de pesquisa práticas que caracterizam a vida
Assim, nos últimos dez anos Dubet e na busca de fundamentos teóricos e social contemporânea. Assim, a
vem se dedicando ao estudo dos metodológicos para seus trabalhos noção de experiência,
jovens e os mecanismos de exclusão empíricos mais recentes. minuciosamente examinada por
social que gestam novas formas de Na primeira vertente o livro Dubet neste livro, recobre, ao
sociabilidade e redefinem o papel da examina a dispersão do campo mesmo tempo, segundo suas
escola enquanto instituição sociológico atual, caracterizado pela palavras, um “tipo de objeto teórico
socializadora. Seu trabalho La multiplicidade de paradigmas e pelo e um conjunto de práticas sociais”.
galère: jeunes en survie (Seuil, 1987) estilhaçamento da sociologia O livro, dividido em seis
representa um marco fundamental clássica. No entanto, mais do que a capítulos, traduz o esforço
nos estudos sociológicos sobre o agir fragmentação do campo de reflexão, intelectual do autor em desenvolver,
coletivo juvenil e suas relações com o Dubet considera que se desfaz a por meio de um diálogo constante
mundo da exclusão, até então própria imagem clássica da com a sociologia contemporânea,
configurado apenas como “sociedade”, concebida como sobretudo a de origem francesa, a
marginalidade e deliqüência. sociedade nacional e industrial. noção de experiência social.

100 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1


Resenhas

Examina criticamente, no primeiro Dubet certamente vem capitales de que trata, consecuencia
capítulo, o argumento central da enriquecer esse campo de reflexão ao sin duda del interés que, al crepusculo
sociologia clássica, ou seja, a idéia buscar construir um estatuto del siglo XX, suscitan también en
de que o ator é um sujeito integrado, sociológico para uma noção que se numerosos países. La última década
ou seja um indivíduo socializado em tem revelado fundamental no estudo ha sido particularmente rica en
uma determinada sociedade das práticas sociais dos sujeitos. consideraciones de candente
percebida como sistema, como um Para os pesquisadores actualidad y de indudable proyección
Estado-nação e um conjunto de brasileiros que se dedicam à futura”, diz o prof. García Garrido.
instituições. Por essas razões, logo a investigação das condutas coletivas No momento em que reformas
seguir (no segundo capítulo) Dubet ou individuais centradas na educacionais estão em discussão em
examina o esgotamento da noção de construção de sujeitos ou atores, o quase todo o mundo e o debate tende
sociedade, resultante de uma livro de Dubet oferece elementos a desenrolar-se independentemente
determinada forma de apreensão da importantes para a reflexão das realidades nacionais e regionais,
realidade social, e a conseqüente contemporânea. Permeando sua parece oportuno acompanhar as
fragmentação do campo da reflexão análise teórica com ricos exemplos pesquisas comparadas em educação,
sociológica em várias correntes. advindos da sua atividade de tanto pela informação que podem
Três capítulos constituem o pesquisa, as referências que faz aos oferecer-nos quanto pela
argumento central do livro, onde a jovens e professores indicam comprensão das singularidades.
noção de experiência é examinada caminhos bastante fecundos para a Problemas mundiales de la
mediante a análise das lógicas de pesquisa em educação no Brasil. educación... reúne cinco estudos
ação que se combinam na sobre as questões educacionais mais
Marilia Pontes Sposito
experiência social (terceiro capítulo); Universidade de São Paulo relevantes no panorama mundial
as relações entre o sistema social e a contemporâneo, tomando como base
experiência são examinadas no a análise comparativa de diferentes
quarto capítulo; e, finalmente, no sistemas educacionais do Oriente e
quinto, Dubet se detém no trabalho Jose Luis García Garrido. do Ocidente, de países desenvolvidos
ou atividade do ator, o modo como Problemas mundiales de la e de países do Terceiro Mundo.
constrói sua experiência e se educación. Nuevas Ao longo da obra, fica claro
constitui como sujeito. perspectivas. Madri: que a sua organização por temas
Finalmente o livro examina em Dykinson, 1992. 273 p. visa mostrar o auxílio que a pesquisa
seu último capítulo as questões comparada pode prestar na
metodológicas, propondo os definição de políticas educacionais e
princípios centrais de uma sociologia José Luis García Garrido, no progresso — utilizando as
da experiência que, segundo suas nascido na Espanha, é professor da palavras do autor — do sistema
próprias palavras, “não é somente Universidade Nacional de Educação institucional. Os temas selecionados
uma maneira de se ler as condutas à Distância. Como especialista em são: a gestão do sistema educacional;
sociais, mais um modo de fazer educação comparada ocupa cargos a qualidade da educação; a formação
sociologia”. importantes em diferentes docente; educação e emprego; o
Até recentemente, na reflexão associações, tanto em seu país como futuro dos sistemas educacionais.
sociológica brasileira, a noção de em outros lugares do mundo. Presta, Cada um dos estudos que
experiência enriqueceu a também, uma colaboração compõem o livro apresenta uma
compreensão sobre os processos de sistemática à UNESCO e a outros revisão resumida da evolução do
construção da ação coletiva e dos organismos internacionais. tema em questão, principalmente ao
conflitos sociais, inspirada nos O livro Problemas mundiales longo dos últimos anos. Nos três
trabalhos de Thompson (Tradición, de la educación. Nuevas perspectivas, primeiros estudos encontramos um
revuelta y consciencia de clase, publicado em 1992, é uma versão análise global. O quarto consiste
Barcelona, Critica, 1979) sobre a revisada e bastante reformulada da numa análise das relações entre
formação da classe operária inglesa, obra original, editada pela primeira educação e emprego num conjunto
ressaltando a importância dos vez dez anos atrás. “Tal cambio de de países selecionados. E o quinto e
elementos culturais na construção de actitud se debe al interés que han último capítulo é um estudo de
uma prática de classe. vuelto a provocar en mí los temas caráter prospectivo e transnacional.

Revista Brasileira de Educação 101


Resenhas

A gestão dos sistemas adquirindo e se questiona tanto sua subvenção estatal à iniciativa privada,
educacionais. No primeiro capítulo, eficiência como sua tendência a suas instituições acabam sendo um
onde o autor espanhol está uniformidade, eliminando as freio à centralização imperante.
interessado no estudo da gestão da diferenças ao privilegiar a cultura Por sua parte, os regimes
educação, o conceito de nacional e sufocar as culturas locais. comunistas imperantes na Europa
regionalização constitui a coluna A partir dessas considerações oriental até a queda do Muro de
vertebral de sua análise. Entenda-se preliminares, a proposta de García Berlim, ainda que estejam num
por regionalização, o processo de Garrido é, nas suas palavras, processo de reestruturação do
descentralização político-territorial “...llevar a cabo un recorrido por el Estado, são, e continuarão sendo
que não necessariamente teve sua planeta en busca de esos sistemas durante longo tempo, os herdeiros
origem em uma situação prévia de educativos más flexibles, más do centralismo mais acentuado da
centralização. O conceito de porosos a las realidades história contemporânea, segundo o
regionalização supõe autonomia e subnacionales que los integran”. autor. Por isso, dedicará algumas
plena responsabilidade de ação no Para isso realiza uma rápida revisão linhas ao comentário do modelo de
âmbito educacional dos governos dos sistemas educacionais gestão educacional adotado na
regionais e locais, bem como das centralizados, em seguida daqueles maioria desses países e das novas
instituições e comunidades. sistemas educacionais que preservam tendências provenientes do atual
Os sistemas educacionais suas tradicionais autonomias e, por processo de transição para
nacionais, lembra-nos o autor, último, dos sistemas educacionais economias de mercado.
constituem um dos pilares da que apresentam tendências No estudo dos países orientais,
sociedade industrial e têm sua descentralizadoras. encontramos o mundo árabe. Ele
origem intimamente vinculada ao Para o estudo dos sistemas está constituído por países situados
desenvolvimento do Estado-Nação educacionais centralizados, os países em diferentes contextos geográficos,
nos diferentes-países. O problema é escolhidos pelo autor foram: França; mas cuja administração da educação
que os sistemas educacionais os países da Europa meridional, é fortemente centralizada. Nesses
contemporâneos conservam ainda Itália, Portugal, Grécia; os países países, nos informa o livro,
hoje uma certa tendência à herdeiros do centralismo comunista; prevalecem estruturas administrativas
nacionalização — ainda que com os países árabes; as novas nações, ou e pedagógicas bastante parecidas
intensidades diferentes — num seja, aquelas que obtiveram sua entre si e que se sustentam na
momento em que a era industrial e o independência ao longo do século centralização das decisões, da
Estado-nação estariam vivendo suas XX. Todos esses sistemas administração e do controle de suas
etapas finais. Afirma o autor: “El educacionais possuem uma instituições. Uma vez mais, o autor
Estado-nación constituia y aún estrutura, governo e funcionamento destacará a importância da presença
constituye, la estructura política que que estão, principalmente, em mãos da educação particular; neste caso,
necesitaba un mundo consagrado al do poder político e dos órgãos para aliviar o centralismo do sistema
progreso industrial, al crecimiento de supremos da administração nacional. educacional nos países árabes. Como
los núcleos industriales y de las O caso da França é significativo exemplo é citado o caso do Egito,
ciudades. Una sociedad distinta — porque possui, segundo o autor, um onde existe um sistema paralelo de
postindustrial o como quiera que se modelo de forte centralização educação particular islâmica que
la llame — requeriría estructuras educacional acionado num país inclui sua própria universidade e que
políticas también distintas [...] Um democrático e onde sua é sustentado, principalmente, pelas
cambio sustancial de rumbo de la compatibilidade ocorre de fato. famílias dos alunos.
sociedad no tiene otro remedio que O autor observa, também, que Por último, o texto faz uma
ocasionar a la vez um cambio de as escolas particulares, tanto na referência geral ao conjunto de
rumbo en la concepción actual de los França como na Itália, Grécia e países que obtiveram sua
sistemas educativos”. Portugal, produzem um efeito independência ao longo do século
Por isso, na atualidade se inibidor ao centralismo da gestão do XX. Essas novas nações têm-se
estaria assistindo a um sistema educacional. Segundo García proposto construir sistemas
descontentamento generalizado Garrido, ainda que a tendência a nacionais de educação para ajudar o
devido à magnitude que os sistemas uniformizar seja, nesses países, fortalecimento de sua identidade
nacionais de educação foram geralmente reforçada pela política de nacional; porém, o centralismo da

102 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1


Resenhas

administração educacional é pertencem a países organizados em em que medida a legislação e as ações


contestado pela diversidade das Estados federais. Mas, à diferença de institucionais dos diferentes países
etnias e das línguas da população. outras federações já analisadas, esses têm contribuído não só para um
Essa situação obrigou as autoridades Estados ainda contam com um aumento quantitativo da instrução
de alguns desses países a pensar na sistema educacional fortemente entre sua população, mas também
necessidade de estratégias de centralizado. Em primeiro lugar, são para melhorar a educação de todos.
descentralização ou, pelo menos, de estudadas as formas de gestão da Para responder a essa questão,
desconcentração de funções. Outro educação formal na Áustria e no o estudo apresentará os diversos
aspecto destacado nessa análise é Japão. Ambos países, ainda que enfoques de qualidade presentes nos
que a política de nacionalização do tenham características bastante EUA, na Europa, no Japão, na
sistema educacional tem-se dado diferentes, vem buscando, nos últimos experiência comunista e nos países
também naqueles países que anos, novas maneiras de equilíbrio em desenvolvimento.
independentizaram-se de metrópoles entre o poder central e os diversos Ao contextualizar o problema
com forte tradição de regionalização poderes regionais e municipais. no âmbito mundial, o autor
em educação. Por exemplo, as ex- A seguir, são analisados os lembrará que a idéia de qualidade da
colônias britânicas. sistemas educacionais da Bélgica, dos educação surge nos anos 20. Após a
Outro grupo de países países nórdicos, da América Latina e Segunda Guerra Mundial, esta idéia
estudados é aquele que apresenta da Espanha. O caminho para a se oporá à tendência que
uma vasta tradição de regionalização descentralização da gestão considerava que os problemas
na sua gestão educacional. Entre educacional aberto pela Bélgica, básicos da educação eram apenas de
eles, García Garrido vai diferenciar depois da Segunda Guerra Mundial, caráter quantitativo. Essa questão
três tipos de regionalização tem sido marcado tanto pelo alto será retomada no debate educacional
diferentes. Um deles seria o dos grau de autonomia de seus das últimas décadas em diferentes
países onde os governos dos municípios como pela diversidade lugares do mundo, especialmente a
territórios federados são os religiosa e lingüística de sua partir de 1970, com o auge das
responsáveis pela administração de população. Os países nórdicos reformas educacionais.
seus sistemas educacionais. Outro, o manifestaram, nos últimos quinze A dissertação sobre o enfoque
de países ligados ao Reino Unido, anos, uma fase de progressiva norte-americano de qualidade em
onde as comunidades locais tem uma descentralização, sustentada, educação tomou como base as
forte tradição e força de participação principalmente, pela longa tradição informações e considerações
junto ao governo central. E, por de auto-abastecimento educacional fornecidas, principalmente, por dois
último, o autor cita o caso dos EUA, municipal. O caso da América documentos: um deles apresentado
onde, além de a educação ser Latina é interessante de ser estudado pelos EUA, em 1971, na Conferência
responsabilidade de cada um dos porque, segundo o autor, é um dos Internacional de Educação, e outro
estados-membros, seu governo está lugares onde mais tem-se falado da elaborado pela National
em mãos das comunidades locais. necessidade de descentralização para Commission on Excellence, em
García Garrido insiste na eficiência melhorar a qualidade da educação. 1983. No primeiro informe,
da gestão educacional norte- Por último, García Garrido reconhecem-se falhas importantes no
americana e afirma que a dedica um espaço particular ao caso sistema educacional do país e
administração educacional desse país da Espanha, que — segundo ele — propõem-se as seguintes estratégias
poderia ser sintetizada em três representa uma das mais ousadas para resolvê-las: oportunidades
palavras: pluralidade, regionalização políticas de descentralização educativas institucionais compatíveis
e democracia. educacional das últimas décadas, com o trabalho durante toda a vida
Antes de finalizar o estudo, o não só do cenário europeu mas e renovação das experiências
autor se ocupará da análise de um também universal. educativas para resolver o problema
grupo de sistemas educacionais que A qualidade da educação. No do anacronismo do currículo na
possuem uma estrutura segundo capítulo da sua obra, García escola secundaria, além de algumas
administrativa centralizada, mas que Garrido tentará descobrir até que medidas concretas de ação. No
estão em processo de ponto os sistemas educacionais foram segundo informe, a idéia central de
descentralização. Alguns dos capazes de traduzir em ações qualidade muda e passa a ser a
sistemas educacionais considerados concretas seus desejos de qualidade, e educação para a excelência.

Revista Brasileira de Educação 103


Resenhas

O autor parte da análise do qualidade, aos do mundo alguns organismos internacionais


conteúdo desses informes para capitalista. realizam periodicamente.
avaliar até que ponto os EUA Diz o autor: “Es verdad que Entre as conclusões extraídas
conseguiram alcançar as metas las universidades soviéticas y de da análise comparativa, o autor
qualitativas em matéria de educação. otros países de Europa producían destaca as seguintes: primeiro, a
Para tanto utiliza-se também de buenos profesionales. Pero está claro qualidade da educação continua
dados sócio-econômicos ligados ao que no parece haber servido esto sendo uma aspiração comum a todos
desenvolvimento do país nos últimos para proporcionar a dichos países, os países, sejam eles pobres ou ricos;
vinte anos, fornecidos por Brown e no ya un enriquecimiento economico segundo, são poucos os países que
Comola no livro Educating for semejante al de otros paises discutem os rumos que deveria
Excellence: Improving Quality and occidentales, sino ni si quiera una tomar uma educação de qualidade e
Productivity in the 90’s, e de sua situación de modesto bienestar.” pouquíssimos — ou talvez nenhum
crítica ao sistema educacional Assim, o autor mostra a — os países que encontraram uma
contemporâneo. impossibilidade de a educação resposta para essa questão, ainda
García Garrido, ainda que comunista cumprir com um de seus que provisória.
crítico da ótica economicista desses objetivos principais, que é oferecer A formação do professorado
autores, compartilha com eles a um “ensino de produção”. Também do ensino primário e secundário. No
importância que outorgam à foi questionado no estudo seu terceiro capítulo, o prof. García
contribuição de uma família unida e propósito de formar um “homem Garrido apresenta primeiramente
orientada à educação de seus filhos, novo, o comunista convencido e uma visão geral da evolução
à seleção e formação dos professores consciente”. Segundo o autor, é fácil histórica das instituições de
e à educação moral, enquanto observar a falta de convicções formação do professorado,
aspectos-chave da qualidade da comunistas no mundo todo, principalmente nas últimas décadas
educação. Sugere que a situação inclusive entre os dirigentes do — na França, Alemanha, nos EUA,
norte-americana descrita não difere Partido e entre seus intelectuais. na Inglaterra, Espanha, ex-URSS, em
muito de outros países desenvolvidos Finalmente, García Garrido algumas regiões da América Latina,
e cita o exemplo de vários países analisa a qualidade da educação nos na África —, e das reflexões dos
europeus. Entretanto, a análise de países em desenvolvimento. Segundo organismos internacionais.
dados sócio-econômicos do Japão ele, nesses países está sempre Posteriormente, o autor fará
possibilita compreender o melhor presente a preocupação com os considerações gerais sobre as
rendimento dos alunos japoneses em aspectos qualitativos do sistema tendências atuais da formação do
relação aos alunos dos países educacional, mesmo que nos últimos professorado. E, por último,
ocidentais, reforçando as conclusões anos, como os dados de diferentes encontraremos algumas reflexões
das pesquisas norte-americanas que pesquisas têm demonstrado, sua prospectivas sobre a formação
indicam os aspectos antes enunciados educação tenha-se deteriorado. É docente no mundo.
como elementos fundamentais da natural, afirma o autor, que, devido A formação dos professores é
qualidade educacional. a seus escassos recursos, esses países uma temática árdua e complexa
No caso da experiência da possam apenas aspirar, no momento, desde o nascimento dos sistemas
educação comunista, o prof. García um rendimento institucional públicos de educação, no fim do
Garrido questiona suas conquistas compatível com o esforço necessário século XVIII. E, nos dias de hoje —
qualitativas devido ao fracasso do para criá-los e sustentá-los. afirma o autor —, é cada vez mais
regime. O autor chega, inclusive, a Nesse contexto, é chamada a difícil imaginar qualquer melhoria
duvidar dessas realizações educativas atenção do leitor para a ajuda dos sistemas educativos que não seja
e denunciá-las como uma internacional que os países em acompanhada por uma melhoria da
“propaganda bem orquestrada” do desenvolvimento têm recebido nos formação dos educadores.
próprio regime, que encontrou últimos anos, permitindo pôr em Um dos momentos mais
crédulos intelectuais e educadores de prática várias medidas para significativos no desenvolvimento da
diferentes tendências ideológicas que melhorar a educação, e são tomadas formação do professorado primário
acreditaram que os sistemas como base para o estudo da foi a sua aproximação à
educacionais implantados nos países qualidade do sistema educacional universidade e a crise das escolas
comunistas eram superiores, em desses países as avaliações que européias e americanas. As

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Resenhas

instituições de ensino superior norte- dependeriam, segundo o autor dos desafios mais importantes dos
americanas foram, no final do século espanhol, de duas questões sistemas educacionais, nas últimas
passado, as primeiras a demostrar fundamentais: a necessidade de décadas, no mundo todo. A
interesse na formação de professores transcender o nacional e os problemas formação profissional constitui,
primários. Até então, a universidade educativos próprios do país na segundo ele, uma dimensão essencial
preocupara-se somente com a formação do professor e a redefinição do processo educacional, mas não
formação do professorado do do profissionalismo docente, não só por isso deve estar orientada a
colégio secundário e limitara-se ao pela sua capacidade de produzir eliminar o desemprego. O objetivo
ensino de conteúdos de formação conhecimentos e habilidades mas, da educação deve ser promover o
geral e à especialização científica. principalmente, considerando a suas emprego, um emprego que seja
Isso a diferenciava das escolas dimensões morais. digno da natureza do homem e da
normais, que no currículo vinham Educação e emprego. O quarto sociedade.
privilegiando a formação pedagógica capítulo da obra examina a relação A análise dos cinco países
dos professores de ensino primário. educação/emprego por meio do mostra que a trajetória da formação
As principais conseqüências da estudo comparativo das iniciativas profissional nos países europeus e
evolução institucional, sinalizadas no de formação profissional nos países nos EUA é bastante diferente,
estudo, foram a inclusão dos industrializados. devido, principalmente, à estrutura
aspectos pedagógicos e do conteúdo O prof. García Garrido escolhe classista que acompanha, desde suas
científico especializado em ambos os o termo emprego no lugar de origens, a maioria dos sistemas
currículos, e a redução das trabalho porque seu propósito é educacionais na Europa, enquanto
diferenças de formação existentes — centrar-se na análise das tendências que o sistema de educação norte-
e logo de status sócio-econômico — de institucionalização da formação americano foi construído na base de
entre professores da escola primária profissional numa atividade uma concepção unitária da
e do colégio secundário. específica, sem se referir ao sentido escolaridade. Entre os países
O autor lembra, também, a educativo que, no âmbito da europeus, um caso que merece
atuação dos organismos formação para o trabalho, pode e especial atenção é a Alemanha,
internacionais na formação do deve ter a formação geral. porque, à diferença de outros países
professorado, tanto na teoria como Para sua análise, García industrializados, conserva bem
na prática. Como exemplo, García Garrido toma como base o estudo da delimitados os distintos tipos de
Garrido traz para sua análise as evolução do tema em questão e das ensino secundário, sendo por isso
reflexões teóricas que aparecem em experiências nos cinco países possível afirmar-se que possui o
alguns documentos elaborados, em ocidentais com maior índice de sistema educacional mais classista do
décadas diferentes, por várias dessas industrialização: França, Alemanha, continente.
organizações. Reino Unido, EUA e Japão. O caso do Japão, com seu alto
A exposição panorâmica sobre Essa escolha metodológica grau de industrialização e sua
a evolução do professorado primário exclui as experiências de formação agressividade comercial nos
e as tendências contemporâneas na profissional e de pleno emprego dos mercados internacionais, desperta
Europa, nos EUA e na ex-URSS países comunistas porque, segundo o bastante interesse entre os demais
mostra que a estruturação e autor, ainda que durante muito países industrializados. À diferença
organização da formação docente tempo tenham produzido bastante do que se pode imaginar, a
nesses países é bastante similar. A interesse entre os profissionais da formação profissional japonesa não
única distinção importante se área, nas últimas décadas esses países constitui uma área especialmente
encontra nos programas e conteúdos vêm sofrendo a derrocada teórica e importante para a política
das instituições soviéticas, onde se prática da sua filosofia, encontram- educacional do país, nem tão
evidencia a preocupação de se, inclusive, numa situação sócio- desenvolvida como em outros países
possibilitar uma formação adequada econômica em que prevalece o industrializados.
ao futuro formador do homem novo. desemprego, situação essa que Uma constatação do estudo
De qualquer maneira, parece não se representa uma das principais que mais chama a atenção do autor é
encontrar realizações nesse sentido. ameaças do panorama atual. a dificuldade da educação no sentido
O futuro e a melhoria da O autor parte do pressuposto geral e, nesse caso, da formação
formação do professorado de que o problema do emprego é um profissional de evoluir ao ritmo das

Revista Brasileira de Educação 105


Resenhas

mudanças no mundo do trabalho. Dessa forma, a nova estrutura Ao longo dos cinco estudos, o
Existem evidências de que, segundo que se venha a propor deverá estar autor vai deixando perceber que
o prof. García Garrido, a formação aberta aos projetos educativos dos existe uma crescente
profissional não acompanha o ritmo indivíduos, grupos e comunidades, e internacionalização dos problemas
das mudanças do emprego porque ser regionalizada, permitindo a educativos e que suas soluções
são elas as que influenciam na presença das diferentes realidades também deverão ser buscadas de
estrutura, organização e conteúdo da convivendo em harmonia. Também modo global. Essa tendência à
formação profissional, e por isso não terá de promover a participação de integralização sinaliza para o
se traduzem em novas ações até todos os membros da comunidade próximo milênio uma série de
passado bastante tempo, quando, no trabalho educativo e incitar a desafios educacionais, que
seguramente, o mundo do trabalho auto-avaliação educativa, no âmbito obrigariam os estudiosos e políticos
já é diferente. da cultura e da moralidade. a modificar seu “mapa cognitivo”.
O futuro dos sistemas As mudanças funcionais Ou seja, segundo o prof. García
educacionais. O último capítulo está desejáveis nos sistemas educacionais Garrido, as possibilidades de
dedicado à análise das mudanças são difíceis de enunciar, do mesmo projetar políticas educacionais, neste
que, segundo o autor da obra, modo que as outras mudanças já quadro dos novos desafios,
delineiam-se, neste fim de século, descritas, explica o autor, tendo em implicaria a compreensão das
entre os sistemas educacionais. vista que as funções do sistema experiências nos diferentes lugares
García Garrido afirma que as educacional são a conseqüência de do mundo.
posturas ideológicas que outrora uma complexa trama de causas que Juntamente com a procura de
serviram de base para o estão estreitamente vinculadas aos uma proposta educacional
desenvolvimento de gigantescos traços fundamentais da estrutura dos internacionalista, destaca-se no livro
sistemas públicos de educação — sistemas educacionais, mas a necessidade de recuperar os valores
como o nacionalismo, o otimismo dependem, também, de outros culturais locais e o papel da família
pedagógico e o desenvolvimentismo fatores externos ao sistema na educação moral, como os
— estão desmoronando. Torna-se educativo. Não obstante, o autor aspectos essenciais do processo de
assim necessária uma mudança de enuncia algumas funções que, a seu socialização da criança.
rumo de nossa sociedade, já que os ver, deveriam ser exigidas, no futuro, Nesse contexto, as instituições
modelos atuais satisfazem cada vez dos sistemas educativos: particulares de ensino aparecem, em
menos a humanidade, farta de autocontrole, auto-avaliação e várias situações diferentes, como
problemas e faminta de soluções. permanente revisão de seus próprios aquele setor mais dinâmico e capaz
A partir dessas considerações efeitos educativos. de se contrapor às limitações da
gerais, o autor esboça uma série de Para finalizar, García Garrido postura nacionalista e da
mudanças desejáveis nos sistemas dá um novo passo nas suas burocratização de muitos dos
educativos. Em primeiro lugar, propostas e coloca a necessidade de sistemas educacionais, ajudando a
García Garrido se refere a se caminhar, ainda que lentamente, eficiência dos mesmos.
“mudanças de raiz”, que, segundo para um sistema educacional As conclusões que o autor
ele, são as mais urgentes, para logo universal, o qual define da seguinte chega em cada uma das questões
passar a descrever as mudanças de maneira: “Un sistema educativo abordadas e os desafios que,
estrutura e de função. universal tendría que basarse segundo ele, a educação no mundo
Entre as mudanças de raiz, fundamentalmente en la libertad, terá de enfrentar no século XXI
encontra-se a necessidade de que os autonomía y creatividad de mostram bastante empatia com as
sistemas educacionais venham a se personas, grupos e instituciones. Un análises e recomendações elaboradas
configurar como sistemas de vocação sistema educativo universal no pelos organismos internacionais para
planetária e de forte identidade tendría por qué ser una máquina o próximo milênio, que vêm
regional, como sistemas que pesada, complicada y costosa, sino inspirando atualmente as reformas
aglutinem todos os fatores e un esfuerzo colectivo de cohesión, educacionais de vários países do
elementos sócio-educacionais e como respetuosa de las múltiples y ricas mundo.
sistemas presididos pelo objetivo diversidades existentes en el Há cerca de duas décadas, o
básico de elevação cultural e moral ámbito del ser y del quehacer debate educacional na América
dos povos. culturales”. Latina entre os pesquisadores

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Resenhas

independentes, políticos e nos de seus processos de desenvolvimento setores empresariais —, há pouca


organismos internacionais, como nem sua especificidade. clareza de como se deve dar, em
UNESCO, CEPAL e PNUD, Nora Krawczyk termos pedagógicos, essa
denunciava a preocupação pelo Pontifícia Universidade Católica de reestruturação, ainda que o sentido
caráter discriminador do ensino São Paulo geral do que se propõe diga sempre
público. Assim, em muitos trabalhos respeito à adaptação do sistema
de investigação e análise, a pesquisa * Essa orientação da pesquisa educativo às novas tendências da
foi centralizada na busca do comparada foi evidenciada, também, produção.
entendimento das origens e num estudo sobre o estado da pesquisa Mas, se é verdade que, como
comparada durante os anos 60 e 70.
mecanismos dessa discriminação, nos EUA, vivemos no Brasil uma
Citado em Miguel A. Pereyra, “La
pretendendo assim amparar as realidade de pressão por mudanças,
comparación, una empresa razonada de
propostas a favor de um ensino análisis. Por otros usos de la a leitura desse livro nos alerta para a
público mais eqüitativo. comparación”, Revista de Educación, existência de uma diferença essencial
O fim do século volta a número especial, Espanha, Ministerio de entre ambos os países: a forma como
encontrar os organismos Educación y Ciencia, 1990. essas pressões (que não deixam de
internacionais e muitos ser legítimas) são apresentadas.
pesquisadores da área preocupados Enquanto nos EUA as pressões
em diagnosticar a realidade Louann A. Bierlein. são incorporadas num processo de
educacional e propor alternativas de Controversial Issues on negociação democrática — no qual,
transformação. Mas, hoje, o enfoque Educational Policy. Newbary como veremos, a atuação dos pais de
de interesse é radicalmente diferente. Park: Sage, 1993. alunos acaba sendo preponderante
A lógica economicista a partir da —, no Brasil elas têm aparecido
qual vem sendo construída a leitura como exigências inexoráveis da
da realidade educacional coloca a Este livro faz parte da coleção “modernidade”, apresentadas
descentralização e a Controversial Issues on Public especialmente por meio do “ideário
instrumentalização do ensino como Policy, voltada não para os pedagógico” do Banco Mundial.
os pilares da nova tendência na especialistas de cada área mas sim Mas deixemos esssas questões
política educacional, no quadro da para o público em geral. A proposta para serem retomadas ao final desta
melhoria da qualidade e eficiência da da autora é apresentar e discutir, de resenha e vamos ao conteúdo do
educação. forma clara, as principais questões livro. A autora começa por pontuar
Nesse contexto, o enfoque de que têm permeado o debate algumas características do sistema
análise dos assuntos levantados em educacional nos EUA. educacional norte-americano, como
Problemas mundiales de la educación O texto procura ser, acima de o seu caráter descentralizado,
parece estar mais próximo da tudo, informativo e simples, sem ser remetendo-as à história desse sistema.
necessidade de fornecer um conjunto simplista. Não há dúvida de que um Vale a pena reproduzir alguns dados.
de informações para a definição e livro como esse só poderia surgir em Nos EUA, em 1860, 50% das
legitimação de políticas educacionais um país em que a política educacional crianças já concluíam a elementary
específicas do que para o avanço do é matéria de interesse da sociedade school (seis anos). Em 1941, 50%
conhecimento comparado*. Assim, como um todo e em que a discussão dos jovens concluíam os doze anos
algumas experiências aparecem democrática das propostas existentes de escolaridade básica e média. Em
como “modelo”, enquanto outras se dá nos mais diversos âmbitos e 1970, mais de 75% concluíam esses
são tiradas de cena por falta de com a participação dos envolvidos. doze anos (K-12).
legitimidade. É interessante observar que, lá Aproximadamente 46 milhões
A proposta do livro Problemas como cá, há uma intensa sensação de de alunos se encontram no K-12; o
mundiales de la educación, ao que vivemos um momento no qual investimento nesses alunos é de mais
abranger tantos temas importantes, há necessidade de profundas de US$ 215 bilhões (4,1% do PNB).
é, sem dúvida, bastante ambiciosa. reformulações na educação. E que, A autora apresenta quatro
No entanto, ainda que ofereça também lá como cá, ao mesmo valores básicos que têm sido
informações interessantes sobre os tempo em que há fortes pressões por diferentemente enfatizados pelos
sistemas educativos no mundo, não reestruturação do sistema educativo diversos grupos envolvidos e pelas
nos permite conhecer a complexidade — oriundas principalmente de diversas correntes políticas:

Revista Brasileira de Educação 107


Resenhas

eqüidade, eficiência, liberdade e significativo na definição prática dessas Mesmo se o problema é se se


excelência. Assim, por exemplo, os políticas do que no Brasil) como as consideram ou não os meses de
liberals (termo que não corresponde organizações da sociedade civil. férias, a diferença é grande.
exatamente ao nosso “liberais”) têm Em alguns Estados, o poder A NEA tem cerca de 2 milhões
enfatizado muito mais a eqüidade do sobre a educação foi quase de afiliados e se espalha nas pequenas
que o têm feito os conservadores. totalmente transferido para os e médias cidades. A AFT tem cerca
A autora também mostra que municípios, enquanto em outros de 500 mil afiliados e se concentra
há um processo de mudanças no quase todas as decisões permanecem nas grandes cidades, especialmente
setor educacional: na década de 80, no âmbito estadual. da Costa Leste e do Mid-West.
35 Estados realizaram Dois grupos da sociedade civil A autora também assinala que
transformações significativas no seu merecem especial destaque: os pais houve um aumento real de 27% nos
sistema educacional, sendo que doze de aluno e os professores. salários dos professores na década de
deles criaram ou aumentaram Os pais de alunos têm, em 80 (acima de todas as outras
impostos com o fim específico de geral, grande poder sobre a escola categorias).
financiar essas mudanças. em que seus filhos estudam, no A AFT é formada por
Algumas tendências dessa âmbito do distrito, e também um professores mais bem qualificados:
reformulação são: programas de poder significativo nos âmbitos cerca de 80% tem mestrado ou
pagamento diferenciado para superiores. A autora aponta que os doutorado.
professores, baseado na performance pais de alunos são, em tese, Uma informação interessante
de seus alunos em testes favoráveis a amplas reestruturações que o livro nos traz é que,
padronizados; testes sistemáticos do sistema de ensino, enquadrando- recentemente, a AFT mudou sua
aplicados também aos professores. se dentro da forte corrente de posição em relação a uma série de
Mas não há uniformidade nas opinião, liderada por empresários, pontos: passou a admitir certo nível
mudanças propostas: por exemplo, que entende que o sistema de competição entre as escolas,
enquanto grande parte delas enfatiza educacional norte-americano precisa pagamento diferenciado para
maior autonomia para as escolas, ser reformulado a fim de assegurar professores, baseado em avaliação de
outra parte, também significativa, aos EUA condições de competir em desempenho etc. A NEA continua a
implica maior centralização. situação de igualdade (de ser radicalmente contra esse tipo de
O debate ideológico e preferência de superioridade) com o medida. A interpretação da autora é
partidário permeia várias das Japão e a Alemanha. Mas, aponta a que a AFT é mais permeável à
questões: enquanto os democratas autora, quando se trata de necessidade de mudanças do que a
propõem medidas compensatórias mudanças concretas para a escola NEA. É claro que há outras
para o aumento da pobreza que em que seus filhos estudam, a interpretações possíveis: pode-se
houve na década de 80, entendendo maioria dos pais se coloca contra pensar, por exemplo, que a AFT
que a pobreza é um dos fatores estas mudanças e são um dos defende essas posições por imaginar
básicos do baixo rendimento escolar, principais fatores de resistência a que sua base, mais qualificada, tende
os republicanos se voltam para elas. Argumentam eles que o ensino a ganhar mais com pagamento
propostas como as de gerir a não está tão ruim assim e que não diferenciado e competição entre
educação em moldes mais próximos gostariam de que seus filhos escolas.
dos empresariais (operating education funcionassem como cobaias. Dois temas que a autora
like a business), de instituir o sistema Quanto aos professores, são analisa com certo vagar são a
de vouchers (bônus), ligado à um grupo altamente qualificado: aplicação de testes padronizados
proposta de livre-escolha, que será 47% tem mestrado ou doutorado. para medir performance das escolas
discutida mais adiante. Estão engajados em dois sindicatos e a polêmica sobre a livre escolha.
Em seguida a autora aponta o nacionais, NEA (National Education Quanto à aplicação de testes,
leque de atores sociais envolvidos na Association) e AFT (American já é prática relativamente difundida
formulação e desenvolvimento de Federation of Teachers). nos EUA e é medida fácil de
políticas educacionais: tanto os A autora apresenta dados implementar, pois conta com o
poderes constituídos (a respeito dos incompatíveis sobre o salário anual apoio dos pais de alunos. O mais
quais é interessante notar que o médio dos professores em 1990: US$ interessante que a autora nos relata a
Judiciário tem um papel muito mais 31.304 (p. 25) e US$ 44.400 (p. 50). respeito desse tema é uma crescente

108 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1


Resenhas

consciência de que testes > Livre escolha permite livrar dos rumos a serem dados à
padronizados que só meçam o as crianças de más escolas. educação. O próprio livro — voltado
básico (e não habilidades mais > A competição por estudantes para o público em geral — é um
complexas) tendem a criar um e dinheiro forçará as escolas a indicador dessa situação, na qual o
ensino voltado à preparação para os melhorar. interesse da sociedade como um todo
testes. Ela mostra que tendem a cair > As crianças têm diferentes na área educacional contribui para
o uso de laboratórios, a elaboração necessidades de aprendizado e, que as soluções afinal encontradas
de ensaios, o ensino mediante portanto, necessitam de diferentes tendam a ser as mais adequadas e
projetos de pesquisa, ou seja, ocorre opções de ensino. encontrem efetivo respaldo para
exatamente o contrário do que se diz Contra — serem implementadas. Cabe registrar
pretender: um ensino voltado a > Não há evidências de que a que isso é o oposto do que vem
formar pessoas adaptadas às novas competição melhore as escolas. ocorrendo no Brasil, onde
exigências da produção, > As crianças mais necessitadas “neotecnocratas” pretensamente
supostamente mais críticas, mais — justamente aquelas sem pais iluminados pelas luzes da
criativas, mais capazes de trabalho capazes de escolher as melhores modernidade tentam
em equipe, mais autônomas. A escolas — vão ficar com as piores sistematicamente desqualificar
aplicação de testes que meçam escolhas. interlocutores importantes —
habilidades mais complexas, por sua > A escolha vai funcionar particular e especialmente os
vez, é extremamente cara. contra as famílias mais pobres, a professores da rede pública e,
Quanto à livre escolha de menos que seja fornecido secundariamente, as próprias
escolas, a autora distingue pelo transporte gratuito; o dinheiro universidades das quais, em geral, se
menos quatro modalidades: escolha gasto em transporte seria melhor originam — para impor
intra-distrito entre escolas públicas, aproveitado se usado na sala de determinadas políticas.
escolha inter-distritos entre escolas aula. O segundo tema se reporta às
públicas, escolha intra-distrito e > A livre escolha que inclua as políticas que os organismos
inter-distrito entre escolas públicas e escolas privadas vai drenar internacionais (notadamente o Banco
privadas com o uso de bônus (em recursos das já necessitadas Mundial) preconizam para os países
alguns casos, há ainda a distinção escolas públicas. do Terceiro Mundo na área
entre escolas privadas “sectárias” e > Encorajar a transferência de educacional. Algumas dessas
“não-sectárias”). Expõe (novamente) estudantes significará diminuir os políticas são controversas nos
a extrema diversidade de situações esforços para aumentar os laços Estados Unidos — como o incentivo
entre os Estados e municípios, e escola/comunidade. à competição entre as escolas — e
mostra que os princípios de eqüidade outras são realmente o inverso do
são levados a sério pelo Judiciário Para finalizar, cabe levantar que se faz por lá.
(por exemplo, algumas sentenças algumas especulações que com base Lembremo-nos, por exemplo,
determinaram que só poderia haver neste livro podem ser feitas a respeito da recomendação presente em vários
livre escolha se fosse para todos, o de três temas atuais e relevantes. textos do Banco Mundial (por
que implicaria a necessidade de O primeiro deles é o papel da exemplo, no livro de Eric A.
assegurar transporte para as crianças discussão pública, da divergência Hanushek e W. Harbinson,
que fossem freqüentar escolas mais democrática, da diversidade de Educational Performance of the
distantes de suas casas), mostrando experiências, da pluralidade de Poor, resenhado no número anterior
ainda que não há avaliações caminhos na definição de políticas desta revista) de que se deve evitar
confiáveis sobre o tema. Apresenta públicas na área de educação. dar aumento de salários aos
também um sumário de argumentos Talvez a mais interessante professores, pois, em uma
a favor e contra a livre escolha. lição a ser extraída para nós, comparação da relação custo-
Vamos aos principais deles: brasileiros, da leitura de um livro benefício dos diversos insumos
A favor — como este, sobre o debate atual das possíveis (input/output approach) no
> Livre escolha é uma maneira políticas educacionais nos EUA, é a setor educacional, os salários dos
de se conseguir oportunidades existência e a importância dos professores seriam um dos de mais
educacionais melhores para diversos atores sociais que acabam baixo retorno. Ora, a autora nos
pobres e minorias. tendo peso significativo na definição relata o fato de que na década de 80

Revista Brasileira de Educação 109


Resenhas

houve um aumento real de 27% no que o de “ministrador de aulas”. As desumanidade (que não pode ser
salário dos professores (acima de classes como tal seriam abolidas. atenuada).
quase todas as outras categorias), Haveria grupos de estudo e também Eric Hobsbawm
reflexo de um posicionamento da formas individuais de auto-instrução
maioria da sociedade — que vigia orientada. E assim por diante. A epígrafe de Hobsbawm é
ativamente o uso de seus impostos Ora, quando se pensa nas apropriada para começar essas
— de que educação é um setor reformas concretas que são breves palavras sobre o livro de
estratégico e que, para melhorá-la, é propostas, percebe-se que elas têm Gaudêncio Frigotto. Não apenas
necessário, ainda que não suficiente, muito pouca relação com o porque o historiador inglês constitui
pagar decentemente os professores. imaginário que estimula a uma das referências permanentes
O terceiro tema diz respeito à necessidade delas. Por exemplo, os (tácitas ou explícitas) desta obra,
relação problemática que existe entre testes padronizados, que cada vez mas também porque o seu conteúdo
o ideal proclamado para a educação mais são enfatizados, caminham resume três das principais razões que
e o conteúdo real das reformas que claramente num sentido oposto a orientam a estimulante reflexão
acabam sendo implementadas. essa “Escola Nova do século XXI”. teórica proposta pelo autor.
Explico-me: em geral, o Cabe a nós, educadores, tentar Primeiramente, a necessidade de
discurso sobre a importância responder: por que se apresentam, pensar as condições históricas que
estratégica da educação segundo o como sustentação ideológica de dão origem à profunda crise que
novo paradigma produtivo, de determinadas reformas, visões que atravessa hoje o capitalismo real,
competição mundial, globalizada, nada têm a ver como o conteúdo ultrapassando as visões apologéticas
enfatiza as novas habilidades que concreto das reformas que são e apocalípticas. Em segundo lugar, a
seriam necessárias para o cidadão (e efetivamente propostas? opção por realizar essa tarefa,
trabalhador) da Nova Ordem partindo de uma reflexão
Cristiano Di Giorgi
Mundial: autonomia, criticidade, rigorosamente crítica, da perspectiva
Universidade Estadual Paulista
criatividade, capacidade de trabalho do materialismo histórico; um
em equipe. As experiências que têm materialismo histórico renovado e
peso e divulgação no imaginário do capaz de reformular-se ele próprio à
percurso das reformas também Gaudêncio Frigotto. Educação e luz do colapso do socialismo
caminham nesse sentido. A autora a crise do capitalismo real. soviético e da queda dos regimes
nos relata que teve impacto nos EUA São Paulo: Cortez, 1995, comunistas da Europa oriental. Por
a experiência, desenvolvida em 231 p. último, embora certamente não
algumas escolas da cidade de menos importante, o livro de
Colônia, na Alemanha, na qual seis Os socialistas estão aqui para lembrar Frigotto propõe um enorme desafio
professores “tutoram” noventa ao mundo que em primeiro lugar devem ético: pensar e compreender a crise
alunos durante seis anos de sua vida vir as pessoas e não a produção. As do capitalismo a partir de um
escolar (da 6ª à 11ª série), pessoas não podem ser sacrificadas. Nem renovado enfoque socialista, como
incentivando o trabalho em equipe, tipos especiais de pessoas — os espertos, formas de contribuir para a
os fortes, os ambiciosos, os belos, aqueles construção de uma sociedade
desenvolvendo projetos etc.
que podem um dia vir a fazer grandes
Igualmente, quando se propõe democrática e radicalmente
coisas — nem qualquer outra.
a “uma visão” sobre a educação a igualitária, fundamentada nos
Especialmente aquelas que são apenas
que as reformas devem conduzir, a pessoas comuns. [...] É delas que trata o
direitos, e que respeite as diferenças,
autora (p. 150) se permite pensar em socialismo; são elas que o socialismo a diversidade, uma sociedade —
alunos em permanente atividade (em defende. O futuro do socialismo assenta- segundo Hobsbawm — de pessoas
grande parte diante de um se no fato de que continua tão necessário comuns, das maiorias, justamente
computador), em vez de simplesmente quanto antes, embora os argumentos a aquelas condenadas pelo mercado à
seu favor não sejam os mesmos em mais absoluta miséria.
ouvintes de um professor. O papel
muitos aspectos. A sua defesa assenta-se
do professor (que, como na Este livro, de alguma forma, é
no fato de que o capitalismo ainda cria
experiência de Colônia, a continuação mais eloqüente de A
contradições e problemas que não
acompanharia o aluno por vários consegue resolver e que geram a
produtividade da escola
anos) seria muito mais de tutor e desigualdade (que pode ser atenuada improdutiva, texto que ainda hoje
orientador de estudos e projetos do através de reformas moderadas) como a continua sendo de consulta

110 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1


Resenhas

obrigatória para aqueles que defendendo. A Educação e a crise do No contexto de um capitalismo


desenvolvem pesquisa na área de capitalismo real é um livro para ser transformado e não por isso mesmo
educação e trabalho. Essa linha de lido à luz da atual hegemonia dos excludente e discriminador, Frigotto
continuidade entre duas obras, regimes neoliberais e desenvolve uma minuciosa análise
separadas por uma década, constitui, neoconservadores (tanto na América marxista da educação. Enfoque
ao mesmo tempo, um dado Latina quanto num número nada marxista que, na medida em que é
alentador e trágico. Alentador desprezível de países do Primeiro aplicado a ele próprio, reformula-se
porque Frigotto continua discutindo Mundo), e reconhecendo as novas e enriquece-se. Logo, de certa forma,
de forma clara e decidida os condições materiais e culturais criadas este livro difere da citada obra A
enfoques economicistas que reduzem a partir do regime de acumulação produtividade da escola
a educação a um mero fator de fordista, de seus Estados de bem- improdutiva. O leitor encontrará
produção, a “capital humano”. estar e da própria reorganização (ou aqui novos conceitos, novos
Trágico porque ainda hoje essa desorganização) da classe operária percursos teóricos, novas perguntas
última perspectiva continua que é derivada de tal processo. e também, certamente, novas
expandindo-se com novas E aqui cobra sentido a dupla respostas a velhas perguntas.
roupagens, com inéditas e sedutoras tarefa crítica à qual se propõe Frigotto. Por último, este livro possui
máscaras que convencem, inclusive, Em primeiro lugar, discutir as um inestimável valor político. Ele
muitos intelectuais que as novas concepções do “capital contribui com um conjunto de idéias
combatiam no passado. Tal humano” que se respaldam na relevantes no campo da ação política
continuidade entre ambos os suposta legitimidade das teses do fim e, ao mesmo tempo, está inspirado
trabalhos não deve nos fazer pensar da história e das ideologias, segundo na necessidade de aprofundar,
que, em seu novo livro, Frigotto as quais (e afortunadamente) o defender e ampliar as experiências
limite-se a denunciar que, o “velho” mundo é e será para sempre democráticas de resistência e
ainda não morreu e que o “novo” é capitalista. A recusa de tais oposição ao programa de ajuste
apenas uma armadilha que encobre perspectivas conduz o autor a neoliberal existentes em nossos países.
um status quo imune ao passar do discutir a validade das posições que No plano educacional, as reflexões
tempo. Justamente um dos valores as caracterizam no plano de Frigotto inserem-se e inspiram-se
mais destacados deste trabalho educacional. Frigotto analisa asssim numa multiplicidade de experiências
reside em que o autor pretende três categorias básicas do discurso alternativas de gestão que foram (e
discutir a racionalidade (ou neoliberal dos homens de negócio, estão sendo) desenvolvidas no Brasil
irracionalidade) que encerram os dos organismos internacionais, das por administrações populares: Porto
enfoques do neocapital humano no burocracias governamentais Alegre, Belo Horizonte, Angra dos
atual contexto de profundas conservadoras e dos intelectuais Reis e muitas outras que constituem
mudanças vividas pela sociedade de reconvertidos: “sociedade do hoje modelo de gestão eficiente e
classe neste fim de século. A conhecimento”, “educação para democrática de uma política
especificidade da crise estrutural que competitividade” e “formação educacional pública e de qualidade.
atravessa hoje o capitalismo real é o abstrata e polivalente”. Tais experiências inspiram o autor
marco no qual cobram materialidade Em segundo lugar, realiza uma deste livro e são uma referência
as perspectivas discutidas por crítica não menos radical aos tácita ao longo de todos os seus
Gaudêncio neste novo livro. enfoques defendidos por três autores capítulos.
De fato, o contexto mais que, de óticas não divergentes e O novo livro de Gaudêncio
amplo da reestruturação capitalista diferenciadas ainda da trivialidade ajuda-nos a pensar que é possível
contemporânea no plano político, que caracteriza os admiradores do renascer das cinzas, que é possível e
econômico, jurídico e educacional capitalismo pós-industrial, “acabam necessário lutar por um mundo mais
funciona como um enquadramento silenciando ou eliminando os grupos justo e igualitário. Simplesmente
ineludível para avançar tanto na ou classes sociais fundamentais e os porque a história ainda não terminou.
crítica teórica aos enfoques movimentos com eles articulados Pablo Gentili
apologéticos da sociedade pós- como sujeitos da história [o qual os Deutscher Akademischer
industrial, quanto para recusar as conduz], ironicamente, a reforçar a Austauschdienst, Universidade
saídas individualistas e místicas que tese do fim da história: Adam Schaff, Federal Fluminense
os intelectuais apocalípticos acabam Claus Offe e Robert Kurz.

Revista Brasileira de Educação 111


Notas de Leitura

revolução constituem exemplos da


Danilo Martuccelli. Décalages. primeira situação, assim como a The hidden consequences of a
Paris: PUF, 1995. 264 p. relação pedagógica na universidade national curriculum.
exprimiria a segunda. O racismo e o Washington: American
populismo estariam refletindo, Educational Research
Buscando decifrar segundo Martuccelli, os mecanismos Association, 1995.
sociologicamente as dimensões da da dependência.
subjetividade nas sociedades A diversidade temática não só Este volume, publicado pela
complexas, Danilo Martuccelli reúne enriquece o campo de reflexão American Educational Association
nesse livro uma série de ensaios que como aponta para uma unidade de (AERA), inclui artigos que focalizam
instigam à leitura pela diversidade de fundo de suas preocupações, recentes reformas curriculares nos
temas que examina. traduzidas no esforço de Estados Unidos, voltadas para a
A palavra que dá nome ao compreensão das relações entre o instituição de metas escolares
livro, “décalage”, procura exprimir, ator, a situação e os signos. comuns, para a definição de
de acordo com o autor, “a distância A instigante análise currículos oficiais e para o
entre o objetivo e o subjetivo, drama desenvolvida ao longo do livro estabelecimento de mecanismos de
peculiar da modernidade que torna pelo autor certamente estimula a avaliação do desempenho das
impossível a simples identificação reflexão para investigações e estudos escolas.
dos indíviduos com as exigências das mais criativos, no âmbito da O primeiro texto, de autoria
estruturas ou sistemas sociais”. pesquisa em sociologia da educação. de Karen Zumwalt, discute as
Essa distância é examinada a Desse modo seria possível diferentes concepções de currículo
partir das relações entre os signos e a ultrapassar certas reiterações nacional e denuncia a ambigüidade
ação, envolvendo três situações: “le empobrecedoras que vêm se presente nas reformas propostas, que
dérapage”, quando ocorre o esforço impondo na pesquisa educacional tento visam a aumentar o controle
impossível do ator de fazer o mundo que criam, ao mesmo tempo, da prática curricular como a tornar
curvar-se frente a um dispositivo dificuldades para o avanço do as escolas espaços de criatividade e
simbólico que acaba por se exaurir; conhecimento. investigação. termina propondo que
“la delimitation”, que evidencia o Marilia Pontes Sposito os atuais esforços sejam canalizados
agir do ator à sombra de Universidade de São Paulo para o apoio a reformas localmente
representações que não são capazes organizadas.
mais de explicar os fatos, O segundo, de Linda Mcneil,
constituindo expressões simbólicas critica o estabelecimento de
ultrapassadas; “la depéndence”, currículos oficiais e associa tal
finalmente, que resulta na iniciativa à antiga visão da escola
impossibilidade do ator de definir como fábrica, ressuscitada nas
uma matriz simbólica autônoma. A recentes reformas. A autora destaca
conspiração do amor e a idéia da o clima de medo e desconfiança

112 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1


Notas de Leitura

criado nas escolas, em recente análise crítica de recentes


experiência ocorrida no Texas, experiências americanas. Tanto os
quando o professorado passou a ser pressupostos que vêm informando as
julgado pelos resultados de seus reformas como seus efeitos são
alunos e alunas nos testes oficiais. questionados pelos autores, que nos
Finaliza com sugestões semelhantes alertam, assim, para os equívocos e
às do primeiro texto. para os problemas implicados na
O terceiro estudo, de Larry implantação de um currículo
Cuban, acentua que as reformas nacional. Em síntese, as discussões e
curriculares das escolas americanas as recomendações presentes nos
durante os últimos quinze anos têm artigos podem estimular e enriquecer
partido da crença de que uma escola os debates sobre a elaboração e a
de maior qualidade contribui para implementação dos parâmetros
levantar uma economia em crise. curriculares da nossa escola.
Termina comentando a falta de Antonio Flavio Barbosa Moreira
sucesso das iniciativas e lastimando Universidade Federal do Rio de
que as mesmas se façam a partir de Janeiro e Universidade do Estado do
outros interesses que não os dos Rio de Janeiro
estudantes.
O quarto artigo, de Hebert M.
Kliebard, aborda dois precedentes
históricos de implantação de um
currículo nacional nos Estados
Unidos (1917 e 1958) e procura
relacioná-los aos atuais debates.
Argumenta que a ênfase, em ambos
os casos, foi não em uma educação
adequada às crianças e aos jovens da
nação, mas sim a um suposto
interesse nacional. Sugere que a
reestruturação do currículo
americano se faça em prol do
desenvolvimento de uma cidadania
crítica.
O último texto, de Thomas
Kellaghan e George F. Madaus,
defende a importância da análise de
experiências de currículo nacional
levadas a cabo em outros países.
Discute as implicações dessa
iniciativa nos EUA, tendo em vista as
diferenças entre esse país e os países
europeus. Recomenda, por fim,
cuidados especiais na implementação
dessa iniciativa.
Considerando que o MEC está
em processo de elaboração de
parâmetros curriculares nacionais
para a escola básica brasileira, a
leitura dos textos acima ‘bastante
oportuna, já que oferecem uma

Revista Brasileira de Educação 113


Resumos/Abstracts

se o modelo geral da produção do área. Na base da legislação aprovada


Paul Singer
discurso como decorrente da por alguns países desenvolvidos e em
Poder, política e educação interrelação entre um habitus desenvolvimento e de suas
Conferência de abertura da XVIII lingüístico (que varia de acordo com conseqüências, destacam-se três tipos
Reunião Anual da ANPEd de 1995, o sexo, geração, posição e origem de políticas públicas: políticas
onde se discute, de forma polarizada, social e étnica) e um mercado, que coercitivas, executadas mediante
duas visões de fins da educação e de pode ser um mercado dominante ou uma autoridade que proíbe práticas
como atingi-los: a civil democrática e um mercado livre reservado aos indesejáveis; políticas de apoio, que
a produtivista. A primeira é produto dominados. estabelecem unidades
do amplo movimento pela igualdade Did you say “popular”? organizacionais para promover e
dos dois últimos séculos e que monitorar questões de gênero; e
The text analyzes and demolishes the
resultou na democracia, moderna; a realist notion of “popular language” políticas de construção, que atuam
segunda se origina na mítica no sentido de criar um saber
showing how this idea originates
neoliberal aos serviços do Estado. contestatório e promover novos
from applying mythical categories.
Power, politics and education The analysis is made by applying a comportamentos e atitudes. Esse
Opening conference of the XVIII úlitmo grupo de políticas públicas —
general model identifying speech
Annual Meeting of ANPEd, held in production as a consequence of the que demanda verbas para sua efetiva
1995, where two views of implementação — é o que,
interrelation between a linguistic
education’s goals and how to reach freqüentemente, tem recebido menor
habit (which varies according to sex,
them are polarized: democratic generation, position and social and atenção por parte dos Estados-nações.
citizen education and education for ethnic origin) and a market, which State policies and gender equity:
productivity. The first is a result of can be a dominant one or a free one Comparative perspectives
the extensive movement over the last reserved for the dominated. To correct inequalities among
two centuries in favor of equality women and men, several states have
and which resulted in modern utilized public policies. Remarking
democracy; the second has its origins Nelly P. Stromquist the slow progress attained through
in neo liberal mystique which Políticas públicas de Estado e these means, the article examines the
renders its services to the state. eqüidade de gênero: perspectivas types of policies that have been
comparativas designed and put into effect. On the
Visando corrigir desigualdades entre basis of legislation enacted by some
Pierre Bourdieu
homens e mulheres, vários Estados developed and developing countries
Você disse “popular”? vêm se utilizando para tanto de and its aftermath, three types of
O texto analisa e faz implodir a políticas públicas. O artigo examina policies are distinguished: coercive
noção realista de “linguagem os diferentes tipos de políticas policies, which operate through
popular”, mostrando como ela é públicas que foram adotadas e commands prohibiting undesirable
originária da aplicação de categorias postas em prática, fazendo notar o practices; supportive policies, which
míticas. A análise é feita aplicando- lento progresso alcançado nessa establish organizational units to

114 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1


Resumos/Abstracts

promote and monitor gender issues; concludes showing the ambiguity dos Atingidos pelas Barragens da
and constructive policies, which with which the equation identifying Bacia do Rio Uruguai, ao longo do
function to create contestatory public with state education is used, período estudado (1978-1990),
knowledge and promote new at least with regard to those for refletem a ação político-educativa
behavior and attitudes. This last set whom education is destined. dos agentes de educação popular que
of policies — which need funds for atuaram junto às lideranças dos
their effective implementation — are movimentos rurais, no Alto Uruguai
the policies less often considered by Clarice Nunes em três momentos distintos: os
nation states. Ensino e historiografia da educação: agentes das pastorais da Igreja
problematização de uma hipótese popular, inspirados na Teologia da
A partir de dados preliminares de Libertação; as escolas sindicais, que
Luiz Antônio Cunha
uma pesquisa sobre livros de história difundiam o modelo de organização
Sociedade, Estado e educação: da educação publicados no Brasil, o e luta do “sindicalismo combativo”;
notas sobre Rousseau, Bonald e artigo examina algumas hipóteses de a chamada “formação técnica”,
Saint-Simon interpretação sobre as características assumida por assessores
Nesse texto são passadas em revista que esta produção apresenta. O especializados, com ênfase na luta
as obras de três filósofos sociais, conteúdo dos livros pesquisados pelas necessidades imediatas e “por
percursores da sociologia: Rousseau, estrutura-se em dois eixos: a uma vida melhor”.
Bonald e Saint-Simon. Para ressaltar organização escolar e o pensamento The Movement of Populations
as idéias saint-simonianas, uma obra pedagógico. O texto apóia-se em Affected by Dam Constructions in
de Júlio Verne, até há pouco inédita, biografias de alguns autores e dados the Uruguay River Basin and the
é também analisada.O texto destaca de outros estudos, para apontar role of mediators in shaping the
as idéias gerais de cada um desses algumas das possíveis origens das movement
autores, relacionando-as com as concepções identificadas nesses livros. The text analyses how the different
posições sobre questões
Teaching and history of education: forms of internal organization and
educacionais, especialmente uma,
Testing a hypothesis external intervention of the
que mantém plena atualidade: a da
A research of books on the History Movement of Populations Affected
distinção entre educação pública e
of Education, published in Brazil, by Dam Constructions in the
educação privada. Em conclusão,
serves as a starting point for this Uruguay River Basin, over the
fica evidenciada a ambigüidade com
article which examines some period studied (1978-1990), reflect
que a equação “educação pública
interpretative hypotheses regarding the political and educational action
igual a educação estatal” é
the characteristics that this material of the popular education agents who
empregada, pelo menos no que diz
presents. The content of the books were active with the rural movement
respeito aos seus destinatários.
researched are structured on two leaderships. This is seen in three
Society, State and education: axis: the organization of schools and distinct phases: the pastoral agents
Annotations on Rousseau, Bonald pedagogical theories. The text is of the popular Church, inspired in
and Saint-Simon supported by biographies of other Liberation Theology, the union
In this text the works of three social authors and data from studies in schools that disseminated the model
philosophers, forerunners of pointing out some of the possible of organization and conflict of
Sociology, Rousseau, Bonald and origins of concepts identified in these “combative unionism”, and
Saint-Simon, are reviewed. In order books. “technical formation” taken on by
to highlight Saint-Simon’s ideas, a specialized assessors, emphasizing
work of Julio Verne, only lately the fight in favor of immediate
edited, is also analyzed. In each of Maria Stela Marcondes de Moraes
necessities and for “a better life”.
these authors the text brings forth O Movimento dos Atingidos pelas
their general ideas, connecting them Barragens da Bacia do Rio Uruguai e
with positions related to educational a ação político-educativa dos Celso de Rui Beisiegel
issues, calling special attention to mediadores Participação popular na melhoria do
one which continues in existence: the O texto analisa como as diferentes ensino público
distinction between public and formas de organização interna e de O artigo expõe as linhas principais
private education. The text intervenção externa do Movimento de uma proposta de contribuição da

Revista Brasileira de Educação 115


Resumos/Abstracts

universidade para a melhoria do


ensino público. A proposta está
centrada na idéia da necessidade de
recuperação das expectativas
populares de obtenção de um ensino
de qualidade na escola pública.
Discute a questão da participação
indireta da população na
recuperação de um ensino público de
qualidade.
Popular participation and bettering
public education
The article puts forth the principal
lines of a proposal of the
University’s contribution for
bettering public education. The
proposal centers on the idea of the
need to recover people’s expectations
of obtaining quality education in the
public school. It also discusses the
issue of the population’s indirect
participation in recovering quality in
public education.

116 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1


Normas para Colaborações

1. A Revista Brasileira de notas, numeradas, ao final do texto, consistência e o rigor da abordagem


Educação aceita para publicação como texto comum. h) Separar teórica. Eventuais sugestões de
artigos relacionados com a títulos de seções, nome do autor, etc. modificações de estrutura ou de
educação, resultantes de estudos do texto principal com um duplo conteúdo por parte da Editoria,
teóricos, pesquisas, reflexões sobre retorno (ENTER/RETURN). i) NÃO serão elaboradas com consenso do
práticas concretas, discussões utilizar formatação especial (recuo, autor.
polêmicas, etc. Os textos devem ser itálico, etc) para citações. Apenas 5. As resenhas não devem
inéditos, de autores brasileiros e separá-las do texto principal com um ultrapassar 10 laudas e as notas de
estrangeiros. duplo retorno (ENTER/RETURN). leitura 2 laudas. A apresentação deve
2. Os originais devem ser 3. Os textos não devem obedecer ao contido no item 2.
encaminhados à Comissão Editorial exceder 40 laudas com 6. Os quadros, gráficos,
em duas vias impressas, devidamente aproximadamente 30 linhas mapas, etc. devem ser apresentados
formatadas, acompanhadas de digitadas em espaço 1,5, em fonte em folhas separadas do texto
disquete, digitado em um dos corpo 12 pontos (ou 10cpi)). Todas (indicando-se neste os locais em que
programas de edição de texto em as matérias devem ser antecedidas do devem ser incluídos) devendo ser
formato padrão para PC (exceto título em português e inglês e de numerados e titulados corretamente
Carta Certa e Fácil). Entretanto, resumo e abstract, sem ultrapassar e apresentar indicação das fontes que
diferentemente das vias impressas, o 10 linhas, com indicação de pelo lhes correspondem. Sempre que
texto que vai no disquete NÃO deve menos três palavras-chaves (key possível, deverão ser confeccionados
ser formatado. Isto é: a) Digitar todo words). O autor deve também para sua reprodução direta.
o texto numa única fonte (tipo), sem fornecer dados relativos à instituição 7. As notas de pé-de-página,
fontes diferentes para títulos, seções, e área em que atua, bem como quando existirem, devem ser de
etc. b) Não utilizar negrito, indicar endereço para natureza substantiva. As menções de
sublinhado ou itálico em títulos e correspondência com os leitores. As autores, no correr do texto, devem
seções. c) Não utilizar caixa alta referências bibliográficas (vide subordinar-se à forma (autor, data)
(tudo em maiúscula) para títulos, abaixo) devem estar incorporadas no ou (Autor, data, página) como nos
seções ou para ênfase. d) Para ênfase texto e as notas devem ser exemplos: (Apple, 1989) ou (Apple,
ou destaque, utilizar itálico e NÃO explicativas. 1989, p. 95). Diferentes títulos, do
negrito ou sublinhado. e) Assinalar 4. A publicação dos artigos mesmo autor publicados no mesmo
os parágrafos com um único toque está condicionada a pareceres ad hoc ano deverão ser diferenciados
de tabulação. f) Dar ENTER/RETURN de membros do Conselho Editorial adicionando-se uma letra depois da
apenas no final do parágrafo. g) ou colaboradores. A seleção de data. Exemplo: (Gadotti, 1995a),
NÃO utilizar a função de nota de artigos para publicação toma como (Gadotti, 1995b), etc.
rodapé (footnote) ou de nota final referência a sua contribuição à 8. A bibliografia será
(endnote) do programa de educação e à linha editorial da apresentada ao final do artigo, em
processamento de texto. Em vez Revista, a originalidade do tema ou ordem alfabética, obedecendo as
disso, simplesmente colocar todas as do tratamento dado ao tema, a seguintes indicações:

Revista Brasileira de Educação 117


Normas para Colaborações

a) Tratando-se de livros: ensino de segundo grau. Em Aberto, Latino-Americana. São Paulo:


sobrenome do autor (em caixa alta)/ v.4, nº 28, p. 35-38. Cortez.
VÍRGULA/Seguido do nome (em c) Tratando-se de coletâneas: d) Tratando-se de teses
caixa alta e baixa)/VÍRGULA/Data, sobrenome do autor do capítulo (em acadêmicas: sobrenome do autor (em
entre parênteses/PONTO/Título da caixa alta)/VÍRGULA/seguido do caixa alta)/VÍRGULA/Seguido do
obra (em itálico)/DOIS PONTOS (se nome (em caixa alta e baixa)/ nome (em caixa alta e baixa)/
houver subtítulo)/Subtítulo (se VÍRGULA/Data, entre parênteses/ VÍRGULA/Data, entre parênteses/
houver)/PONTO/Edição de forma PONTO/Título do capítulo/ PONTO/Título da obra (em itálico)/
abreviada e se não for a primeira/ PONTO/Escrever “In:”/Sobrenome DOIS PONTOS (se houver
PONTO/Local da publicação/ do organizador (em caixa alta)/ subtítulo)/Subtítulo (se houver)/
ESPAÇO, DOIS PONTOS, ESPAÇO/ VÍRGULA/Iniciais do nome do PONTO/Grau acadêmico a que se
Nome da editora/PONTO/Nome do organizador/(SE HOUVER OUTRO refere/PONTO/Instituição onde foi
tradutor, quando houver/PONTO/. ORGANIZADOR, REPETIR ESTA apresentada/VÍRGULA/Tipo de
Exemplo: APPLE, Michael W., OPERAÇÃO SEPARANDO OS reprodução/PONTO.
(1989). Educação e poder. 2ª ed. NOMES ATRAVÉS DE VÍRGULA)/ Exemplo: DI GIORGI,
Porto Alegre: Artes Médicas. Escrever, quando for o caso, Cristiano Amaral Garboggini,
Tradução de Maria Cristina “(orgs.)” ou “(coord.)”/PONTO/ (1992). Utopia da educação popular:
Monteiro. Título da coletânea (em itálico)/ o paradigma da educação popular e
b) Tratando-se de artigos: DOIS PONTOS (se houver a escola pública. Doutoramento em
sobrenome do autor (em caixa alta)/ subtítulo)/Subtítulo (se houver)/ educação. Faculdade de Educação da
VÍRGULA/seguido do nome (em PONTO/Edição de forma abreviada Universidade de São Paulo.
caixa alta e baixa)/VÍRGULA/Data, e se não for a primeira/PONTO/
entre parênteses/PONTO/Título do Local da publicação/ESPAÇO, DOIS Observação: O envio
artigo/PONTO/Título do periódico PONTOS, ESPAÇO/Nome da espontâneo de qualquer colaboração
(em itálico)/VÍRGULA/Volume do editora/PONTO/Nome do tradutor, implica automaticamente a cessão
periódico/VÍRGULA/Número do quando houver/PONTO. integral dos direitos autorais à
periódico/VÍRGULA/Páginas Exemplo: ROMÃO, José E., Revista Brasileira de Educação da
correspondentes ao artigo/PONTO. (1994). Alfabetizar para libertar. In: ANPEd. A Revista não se obriga a
Exemplo: MACHADO, L.R.S., GADOTTI, M., TORRES, C. A. devolver os originais das
(1985). Cidadania trabalho no (orgs.). Educação popular: utopia colaborações enviadas.

118 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1


Assinaturas

REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO é uma publicação da ANPEd - Associação Nacional de


Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, voltada à divulgação da produção científica, fomentando e fa-
cilitando seu intercâmbio no âmbito nacional e internacional. É uma publicação quadrimestral, distribuída
sob a forma de assinaturas (R$ 28,00/ano) e/ou de números avulsos (R$ 10,00/número).
Assinale com um X a opção desejada e preencha os campos com as quantidades e valores:

Solicito _____ assinaturas de 3 exemplares/ano x R$ 28,00 cada = R$ __________________

Solicito _____ exemplares avulsos do Nº _____ x R$ 10,00 cada = R$ __________________

Solicito _____ exemplares avulsos do Nº _____ x R$ 10,00 cada = R$ __________________

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Total = R$ __________________
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de cópia preenchida desta página):

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Av. Higienópolis, 901 CEP 01238-001 São Paulo - SP

Nome/Instituição: _____________________________________________________________________

Rua/Bairro: __________________________________________________________________________

CEP: ________________________ Cidade: ___________________________________ UF: _________

Assinatura: _______________________________________________ Data: _______/_______/_______

Banco: _________________________________ Nº do Cheque: ________________________________

Revista Brasileira de Educação 119


ERRATA

No número anterior da Revista


Brasileira de Educação (Nº 0, Set/Out/
Nov/Dez, 1995), nas páginas 5, 53, 83
e 94, onde se lê “Trabalho apresenta-
do na XVII Reunião Anual da ANPEd,
Caxambu, outubro de 1995”, leia-se
“Trabalho apresentado na XVII Reu-
nião Anual da ANPEd, Caxambu, ou-
tubro de 1994”.

ESTA PUBLICAÇÃO FOI COMPOSTA EM O PTIMA E SABON


PELA BRACHER & MALTA, COM FOTOLITOS DA HOLT
E IMPRESSA PELA EDITORA PARMA EM PAPEL P ÓLEN SOFT

80 G/ M 2 DA CIA. S UZANO DE PAPEL E C ELULOSE PARA


A ANPED , EM ABRIL DE 1996.

120 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1

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