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Emerson Monteiro

É DOMINGO
(narrativas de proveito)

Crato - Ceará
2006
Copyright © 2006 José Emerson Monteiro Lacerda
Todos os direitos reservados.

Edmar Dino (seleção de textos)


Augusto Pessoa (foto da capa)
Cláudio Henrique (capa e diagramação)
Virgínia Lacerda (foto do autor)
Ceci Lacerda (revisão final)

Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Maria Cleide


Rodrigues Bernardino CRB 3/772

Lacerda, José Emerson Monteiro


L131e É Domingo: narrativas de proveito / José Emerson
Monteiro Lacerda. Capa de Cláudio Henrique. Foto de
Augusto Pessoa. _ João Pessoa: Edições Fabulação,
2006
170p.

1. Contos Brasileiros 2. Crônicas Brasileiras I. Título


II. Henrique, Cláudio - Capa. III. Pessoa, Augusto - Foto

CDD B869.31
Havia, lá embaixo, a algazarra das crianças,
vivendo o seu despreocupado domingo. E havia
aquela cor que o poeta chamou de domingo azul
do mar. A sensação de abandono dos que vivem
longamente seus domingos. A sonolência,
aquela paz sagrada que deixa um pouco de
santidade nos cantos da casa, onde o sol flui
um raio bom e morno, porque é domingo.

STANISLAW PONTE PRETA

Agora todos vêem outra vez o céu mais


bonito e a terra mais fértil, por causa desse
pouquinho de música, e prolongam sua vida e
perdoam a si mesmos e a seus vizinhos, por
esse pouquinho de som.

BERTOLT BRECHT
SUMÁRIO
Prefácio...........................................................................11
É DOMINGO .................................................................. 13
ABRAÃO ....................................................................... 15
O ANJO LIBERTADOR ........................................................ 17
ARTE MODERNA .............................................................. 19
BALZAC ....................................................................... 21
A BARBA E O FRADE ......................................................... 23
OS CAMELOS ................................................................. 25
CANGUÇU .................................................................... 27
CAPRICHOS DA MEMÓRIA ................................................... 31
UM CASAL QUASE PERFEITO ................................................ 33
CHICHICO .................................................................... 37
COERÊNCIA ................................................................... 39
O ERRO DE PROMETEU ...................................................... 41
A CRUZ DE MARCIANA ...................................................... 43
DINA .......................................................................... 45
O DISFARCE .................................................................. 47
A DIVINA CONFORMAÇÃO ................................................... 49
O DOMADOR DE CAVALOS ................................................... 51
DOM SEBASTIÃO ............................................................ 53
AS DUAS VIZINHAS ........................................................... 55
ÉDIPO REI .................................................................... 57
O ELOGIO DA OPORTUNIDADE .............................................. 59
O ERMITÃO E O SALTEADOR ................................................ 61
ERNESTO PIANCÓ ........................................................... 63
O FERREIRO DE BARCELONA ............................................... 65
FIM E RECOMEÇO ............................................................ 67
A FOGUEIRA .................................................................. 69
A FOME DO OURO ........................................................... 71
A FUGA DE LÓ ............................................................... 73
FUGA INTERROMPIDA ........................................................ 75
A GALINHA E O PÉ DE ARRUDA ............................................. 77
O GUETO DE VARSÓVIA .................................................... 79
A HISTÓRIA DO HOMEM ..................................................... 81
INSISTÊNCIA .................................................................. 83
JESUS NA SINAGOGA ........................................................ 85
O JUDEU ERRANTE ........................................................... 87
A JUMENTA DE BALAÃO .................................................... 89
KATIE KING .................................................................. 91
A LENDA DE OMULU ........................................................ 93
O LENHADOR E A MORTE ................................................... 95
O LOBO-REI QUE MORREU DE AMOR ....................................... 97
A LUZ DA ÁSIA ............................................................... 99
O MANDARIM ............................................................... 103
AS MÃOS DO DESTINO ..................................................... 105
NASRUDIN .................................................................. 107
NATUREZA MAIS ÍNTIMA ................................................... 109
NO CAMINHO DE DAMASCO .............................................. 111
A ONÇA E O MENINO ...................................................... 113
PADRE JOÃO SEM CUIDADO ............................................. 115
PARÁBOLA HINDU .......................................................... 117
A PARTILHA ................................................................ 119
PASSAR COM A VERDADE .................................................. 121
O PATINHO FEIO ........................................................... 123
PITIAS E DAMON ........................................................... 125
O PODER DA FÉ ............................................................ 127
A PORTA .................................................................... 129
PRESTÍGIO INSUFICIENTE ................................................. 131
UMA PRIMEIRA LIÇÃO ...................................................... 133
O PROFETA JONAS ........................................................ 135
A PROVA DA RIQUEZA ...................................................... 137
RAINHA DEPOIS DE MORTA ............................................... 139
RAZÃO DA COMPETÊNCIA ................................................. 141
REI ARTUR ................................................................. 143
SÍSIFO ...................................................................... 145
SÓCRATES .................................................................. 149
SOPA ESQUISITA ........................................................... 151
A TARTARUGA .............................................................. 153
TEMPO CERTO DE VIVER .................................................. 155
O TOURO VALENTE ......................................................... 157
AS TRÊS VEZES ............................................................ 159
A VAQUINHA ................................................................ 161
O VENDEDOR DE FLORES ................................................. 163
A VIDENTE DE ENDOR .................................................... 165
A XÍCARA DE CHÁ .......................................................... 167
ZADIG ....................................................................... 169
Prefácio
Lembro com nitidez, algumas vezes, na infância,
de dias passados no sítio de Tiago Araripe, amigo dos
tempos de adolescência de Emerson Monteiro. Belo sítio
da família, em Crato, onde o colorido sabor e aroma da
natureza proporcionam em momentos de paz e alegria.
Ao ser criança as coisas simples adquirem riqueza
especial. E algo que eu gostava um tanto de fazer,
quando chegava, era passear entre os pés de jasmins à
entrada da casa. Junto deles se encontravam pedras
de vários tamanhos, todas bem polidas, redondinhas,
tipo pedra de rio, em que o movimento constante da
água vai moldando e, com o tempo, retirando as arestas.
Num desses dias, meu pai falou, em tom de
brincadeiras, que uma daquelas pedras bem poderia
ser a pedra filosofal. E eu, do alto dos meus sete anos,
nem desconfiava da existência da alquimia.
Indaguei que pedra era aquela e ele falou de uma
pedra especial que quem a encontrar adquire o poder
de tudo em que com ela tocar transformar em ouro.
Acredito que meus olhos brilharam nessa hora e
comecei, então, a buscar esse tesouro no jardim.
As pedrinhas mais bonitas que encontrava, eu
as pegava e buscava tocar com ela no objeto que
estivesse mais próximo. E pensava, ainda não é essa;
e continuava. Lembro-me que chamei Joana, filha de
Tiago, minha amiga de infância, e passamos algum
tempo nos divertindo na brincadeira. A verdade da idéia
de existir tal poder ficou no meu pensamento por um
longo tempo e não se apagou; ficou gravada na
memória.

11
Hoje, domingo, acordei com os raios do Sol
entrando pela janela do quarto, tocando meu rosto,
mostrando as cores do dia, clareando o espírito. O Sol
chamando à vida. Passados vinte anos desde o episódio citado,
e o tempo mostrando o plantio que se faz na própria vida, lembrei
da pedra. E examinando-a do lugar em que me encontro,
percebo ser uma dimensão e presente em si. Conseguir
encontrá-la e lapidá-la cabe a cada um. Tem-se a água,
tem-se o ar, tem-se a luz. O ouro, verdadeiro tesouro, é
o amor, a paz, a harmonia, a verdadeira amizade e todas
as coisas positivas que se pode fazer brotar no ambiente,
na realidade em que se vive, nascidas na própria
consciência, essência sábia do ser.
É assim mesmo que inicio o prefácio de É
Domingo, cujo autor é pessoa bem especial na minha
vida. Posso falar com propriedade, porque falo com o
coração. Este livro é fruto de buscas, lapidações pessoais
e espirituais, da própria forma de escrita. Sou de suas
leitoras mais críticas (construtivas) e percebi que, depois
de Sombra e Luz, Noites de Lua Cheia e Cinema de
Janela, o presente livro registra a transição de um novo
estilo no seu trabalho.
O autor traz, de maneira precisa, através da
linguagem em prosa, tempero poético, pitadas de
irreverência, finais surpreendentes e convidativos a
novos exames, proposta de contemplação dessa ótica
de aprendizagem. Pensei em citar alguns dos textos,
mas estaria mapeando a mina e não quero tirar do
leitor o sabor da descoberta. Espero, sim, que apreciem
a leitura tanto quanto eu, filha do autor. Escrever com
amor tem sabor especial.
Ceci de Souza Lacerda

1
12
É domingo
Falar a propósito deste livro que nasceu nas páginas do
Jornal do Cariri, na coluna do mesmo nome É domingo,
título que me vem nos fiapos de lembranças de tempos
imprevisíveis, incertos, época da Tropicália, quando se
ouvia uma música de Gilberto Gil (Domingou) (...) São
três horas da tarde, é domingo / Na cidade, no Cristo
Redentor - ê, ê / É domingo no trolley que passa - ê, ê / É
domingo na moça e na praça - ê, ê / É domingo, ê, ê,
domingou, meu amor (...)
E eu a retornar a Brejo Santo, em tardes de fria
solidão, ricas de emoções e saudades, ideais fervilhantes
no peito... Longe de um mundo impossível, que mexia as
entranhas pedindo existência de qualquer jeito, nem que
fosse noutros sonhos inalcançáveis, talvez só no futuro.
Domingo, dia neutro, em que as conquistas do ontem
(sábado) ressurgem nas esperanças da segunda-feira.
Domingo, daquele poema (Estatutos do Homem) de
Tiago de Mello, onde (Fica decretado que todos os dias
da semana, / inclusive as terças-feiras mais cinzentas, /
têm direito a converter-se em manhãs de domingo).
A princípio, imaginei poder juntar os textos e caldeá-
los com algumas pinceladas, logo os dando por prontos. No
entanto notei a seriedade imprescindível de caprichar na
seleção e na revisão, fazendo dia a dia, um, dois, no máximo
três, às vezes até com bastante autocrítica, porém no limite
do tolerável, senão já me daria por satisfeito, numa atitude
urgente e desterro do material, sem pretensões de publicar.
Em sendo assim, restringiria de vez o gosto de fazer,
superando o desejo de ampliar aos leitores. Porquanto, a
razão principal daquilo tudo será o pretexto de conhecer
pessoas novas, informar o que se passa nas cavernas
insondáveis do ser, brechas do Inconsciente, passadas na

13
arte, o sonho posto no papel, nas paredes, no som, no
jardim, nas nuvens, no discurso...
Por que publicar? Por que chorar, sorrir, caminhar,
ler, escutar, perguntar, responder, viajar, comprar, vender,
assistir, imaginar, arquivar, transmitir, olhar, viver, etc.?
Por quê?
Em cada texto busquei mostrar surpresas quanto a
situações, ao inesperado, ou ao pouco esperado, somando
elementos do conto na crônica, ou da crônica no conto. É
tanto que não sei dizer bem qual seja o gênero literário,
se conto ou crônica, ou os dois juntos, reunidos, ou
apenas gestos e falas de quem faz de conta que tem o que
dizer aos outros, imitando quem fez parecido, e melhor,
decerto.
Uma busca de dizer o quê, não sei; recontar coisas
ouvidas, vividas, no afã de registrar momentos que somem
e deixam ecos grudados na parede dos pensamentos,
musgo em forma de esperança, religião, etnografia,
folclore, sociologia, literatura popular, nessa estática do
tempo interno das criaturas, naquilo que Glauber Rocha
classificou ser nem teoria nem prática, de suas produções
do Cinema Novo. Sobras de um tanto do repasto das
dúvidas e procuras em livros, paisagens, personagens,
nos contos, aspirações de mudar as coisas manifestadas,
por quem quase, ou nada sabe além de colar gestos e
falas, ouvidos e guardados.

Emerson Monteiro

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Abraão
Há muito que Abraão reconhecia o Deus Todo-Poderoso
e dEle se aproximara, isso bem nos primórdios da raça
humana, quando quase ninguém admitia a existência
do Soberano Poder. Contudo, essa evolução estabeleceu-
se a custo, exigindo do Patriarca responder a desafio de
proporções inavaliáveis em termos de sacrifício pessoal.
Carecia vencer um teste para consolidar a missão, daí
originar a família que ainda hoje persiste na raça judia,
depois de infindas gerações e provações. Esse preço
elevado que houve de pagar veio-lhe determinado através
de uma voz que ouviu aonde morava, segundo narra o
livro bíblico de Gênesis, a saber:
– Toma agora teu filho; o teu único filho, Isaque, a
quem amas; vai à terra de Moriá, e oferece-o ali em
holocausto sobre um dos montes que te hei de mostrar.
– Pegar o filho e imolá-lo no altar de propiciação,
demonstrando desse modo toda a vocação às coisas
eternas – consigo imaginava, em face dos tormentos
daquele holocausto. Embalado na fé, após o aviso muniu-
se de lenha, com ela carregou um animal e subiu aos
montes distantes, acompanhado de Isaque, o filho a ser
sacrificado, no intuito de cumprir o compromisso.
Três dias de caminhada e Abraão avistou de longe o
ponto indicado.
Pediu aos dois serviçais que lhes acompanhavam que
esperassem. Subiriam ele e o filho ao pouso da adoração ao
Senhor, e em breve retornariam.
Acercou-se da lenha, do fogo, do instrumento de corte
que levavam e avançaram.
Só adiante, Isaque percebeu que não levavam o cordeiro
do sacrifício, indagando do pai onde o achariam. Deus
proverá – de peito compungido, respondeu o pai, nos

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limites das forças, no gesto extremo de respeito a Deus;
daí eliminar o próprio e amado filho. Lado a lado,
caminharam silenciosos. Apenas os dois olhos aflitos se
recusavam contemplar o horizonte de beleza, lá embaixo,
espraiando na distância.
Chegados, Abraão cuidou de fazer o altar. Arrumou
a lenha. Amarrou o filho no posto sobre a lenha, enquanto
pegava o cutelo afiado. Nessa hora, ouviu as palavras de
um anjo dizendo:
– Chega, Abraão, pois já demonstrou coragem
suficiente a receber o mérito divino.
Aturdido pelas emoções do momento, o homem
levantou a cabeça, no meio dos sentimentos dolorosos
que vivenciava, observando um carneiro que o anjo lhe
trouxera deixado nas proximidades:
– Utiliza-o no sacrifício e cumpre o rito de consolidar
a aliança de Deus e seu povo.
Promoveu, então, os atos do oferecimento, naquele
sítio que ficaria conhecido pelo lugar em que Deus
recebeu a oferta de Abraão em obediência à Sua ordem.
Por conta disso, ao aceitar abrir mão do filho único em
nome dos Céus, firmava Abraão o pacto da bênção de Deus,
indo multiplicar a sua descendência e receber os filhos tantos
quanto as estrelas do céu e as areias das praias, válidos
perante as outras nações da Terra.
Desde quando se protificou em obedecer a Deus,
diante daquela determinação, Abraão se colocou em
sacrifício pessoal, rendido às leis supremas, exemplo
definitivo de contrição.

16
O anjo libertador
Clima de extrema repressão dominava a Palestina após
o sacrifício de Jesus. O capítulo 12, dos Atos dos
Apóstolos, retrata bem, num episódio marcante da vida
de São Pedro, essa época encarniçada, quando os
primeiros cristãos padeceram sob as garras cruéis de
Herodes, filho do outro rei de igual nome que
perseguira o Mestre nos primeiros tempos de sua
presença na Terra.
Após haver morto Tiago, irmão de João, Herodes
se voltara contra Pedro, mantendo-o no cárcere para
quando viesse a Páscoa então apresentá-lo ao povo,
desse modo pretendendo conquistar-lhe a confiança.
Grupos de quatro soldados revezavam a guarda ao
apóstolo, mantido a ferros em cárcere de estrita
vigilância. Enquanto isso, na igreja, sob o império do
medo, os seguidores de Jesus, em vigília, pediam a
Deus pelo prisioneiro.
Na noite de sua apresentação à turba, como previsto
pelo monarca, acorrentado, no meio de dois dos soldados
que lhe montavam guarda, dormia Pedro. À porta, as
outras duas sentinelas reforçavam a prisão.
No meio de intensa luminosidade, adentrou o recinto
escurecido da cela um anjo, emissário da glória divina,
e, silencioso, aproximou-se de Pedro a tocar-lhe o corpo
e dizer:
– Ergue-te! Vamos embora! Recompõe as vestes,
que agora sairemos deste lugar. Surpreso, livre das
cadeias que caíram das suas mãos, o apóstolo aprestou-
se com providências imediatas, o quanto antes tratando
de obedecer ao inesperado e sublime visitante.
A propósito do episódio, lido na Bíblia, registra-se:
Pedro, saindo, o seguia, mesmo sem compreender que

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era real o que se fazia por intermédio de um anjo,
julgando que era uma visão.
Juntos, eles passaram pelas duas sentinelas que
guarneciam a porta da masmorra, aberta sem esforço
mínimo, qual numa mágica, sem precisar de ninguém
nela tocar. Saíram para logo se verem a andar do lado
de fora, na luz fosca das ruas desertas da cidade.
Ainda sob o impacto da ocorrência inusitada, Pedro
apenas se deu conta de ver o anjo a deixá-lo e seguir
outra direção.
Assustado em face de tamanho prodígio, falando
de si para consigo, constatou a providencial circunstância
de sair ileso das malhas do perverso soberano, graças ao
poder inigualável do Senhor, livre de propósitos
inconfessáveis e destruidores.
Algum instante mais além, parou na sombra das
casas e considerou os meios de que dispunha para fugir
dos adversários. Lembrou, então, da casa de Maria, aonde
os irmãos de fé tantas vezes congregavam-se nos
primeiros tempos, ali guiando seus passos. Ao chegar
e bater no portão do pátio, causou espanto inavaliável.
Conta o texto bíblico que aos primeiros raios do
amanhecer pânico descomunal estabeleceu-se entre os
soldados, tomados de medo quanto às reações que o
desaparecimento do prisioneiro ocasionariam.
Interpelados, e não justificando a ocorrência
extraordinária, morriam, executados sem a mínima
piedade.

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Arte moderna
O século XX renovou as possibilidades da expressão
artística, quebrando de uma vez por todas com a
tradição de que apenas houvesse modo único de se
perceber a realidade. Por causa disso, o indivíduo médio
pôde externar com independência seu jeito de mundo,
sob padrões estéticos livres da camisa-de-força que
predominava na arte mundial até aquela data.
Essa conquista de expressão rompeu as rédeas do
conformismo e trouxe alternativas ao gosto clássico e à
comunicação. Nos campos da pintura, por exemplo, os
criadores das obras impressionistas forçaram e
conseguiram impor, na tela, outras figurações, usando
de técnicas inéditas de representar a imagem real.
Aquilo de copiar a forma chapada do espaço
transferiu-se às mãos de fotógrafos e cineastas, por força
dos meios técnicos recentes. Enquanto que ao talento
dos pintores de vanguarda coube o rompimento das
barreiras finitas do visível.
Nesse período, as duas grandes guerras reviraram
pelo avesso os dogmas da cultura clássica, sobretudo na
Europa. Desestabilizaram do poder a senhora vaidade,
dona absoluta das leis cotidianas. Viam-se, pois, perdidas
as perenidades e o insustentável que prevaleceram
durante largos séculos.
Tal estilo transformador de reinventar o olho levou
artistas a conquistarem territórios inimagináveis, no
retrato histórico da beleza representada nas superfícies
planas.
Todavia, por conta dos radicais acontecimentos
artísticos dessa primeira metade de século, afloravam os
mais diversos confrontos de opinião. Reações contrárias
às aquisições da estética explodiam na evolução de

19
quantidades, nos salões e nas ruas.
Grandes mestres da pintura, quais Salvador Dali,
Picasso, Van Gogh, Gauguin, Pissaro, Renoir, Modigliani,
dentre outros, amarguraram vexames dolorosos, no afã
de mostrar as novas conquistas ao grande público.
A propósito desse clima estabelecido, registrou
Stephen Nachmanovitch, no seu livro Ser Criativo,
incidente verificado, certa vez, numa viagem de trem,
quando cidadão francês reconheceu no passageiro ao lado
nada menos do que o célebre pintor Pablo Picasso,
responsável por inúmeras produções características da
arte revolucionária.
No intuito de aproveitar da oportunidade, o viajante
principiou a resmungar e dizer o que bem pensava da
escola moderna. Mostrava-se impiedoso diante da nova
forma de representar a realidade. Que não dispunha de
exatidão, fidelidade, naquilo a que se propunha.
Nessa hora, paciente, o pintor reagiu para indagar
do homem o que ele considerava ser uma representação
fiel da realidade.
A título de responder ao gênio espanhol, o interlocutor
sacou da carteira uma fotografia da própria esposa e
indicou:
– Eis aqui. Isto é o que considero uma imagem real.
Picasso, então, segurou a foto, analisou-a sob diversos
ângulos... Frente, verso, laterais. Por fim argumentou com
gravidade:
– Mas como a sua mulher é pequena, meu amigo!
E, acima de tudo, chata – , assim afirmou pelo que
observara na imagem.
Daí, ao devolver ao passageiro a fotografia, de logo
restabeleceu no vagão o clima de silêncio que havia no
início da conversa.

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Balzac
Nas suas memórias, conta o escritor Dino Segre Pitigrilli
que, certo dia, numa das visitas do explorador
Alexander von Humboldt a Paris, este revelou ao seu
amigo Dr. Blanche, conhecido pelo tratamento
revolucionário que desenvolvia junto aos doentes
mentais, o propósito de almoçar com um dos pacientes
medicados pelo célebre estudioso, reconhecido
precursor na arte da cura nervosa.
– Coisa nada fácil neste momento, Humboldt –
advertiu o médico. – Ainda assim, verei como posso
atender o seu pedido.
Dessa forma, logo no dia posterior, encontraram-
se à mesa da refeição Humboldt, Blanche e mais dois
outros senhores, um dos quais trajava longa casaca
preta, abotoada de cima a baixo, fechada por gravata
escura, larga, que repontava, no ambiente, longos
olhares sombrios de homem taciturno e misterioso.
Durante todo o almoço, tal cavalheiro permaneceria
fiel à impressão que de início despertara no visitante. Ao
chegar, dirigiu-se a Humboldt cumprimentando-o com
gestos eloqüentes, indo aquietar-se formal numa das
extremidades da mesa. Comeria moderado. Beberia
algumas taças do vinho, sem, todavia, nada pronunciar
que identificasse as caracerísticas de sua personalidade.
O outro senhor, a seu turno, pelo contrário, parecia
um vulcão ativo, flamejante; de cabelos desgrenhados,
casaco azul e alguns botões fora da casa, depunha os
cotovelos impacientes sobre a mesa, que, a cada
instante sob o seu peso, sacolejava de causar medo.
Ansioso, comia em ritmo acelerado. Engolia quase
sem mastigar. Falava, falava, e perguntava muitas e
insistentes vezes. Impaciente, era ele quem se respondia,

21
antes de aguardar as respostas solicitadas. Cortava pelo
meio as falas dos interlocutores. Despejava palavras
através de todos os poros. Emendava assunto em outro,
uma história na outra, o presente no passado, e esse no
futuro.
Tempos após, na hora da sobremesa, Humboldt
chamou de lado o seu anfitrião para, juntos, tecerem
alguns comentários a propósito dos pacientes convidados,
segundo imaginou o visitante.
Nessa hora, indicando com os olhos o segundo
personagem, aquele da casaca azul, de atitudes eufóricas,
que multiplicava palavras, chistes, anedotas e extensas
tiradas filosóficas, balbuciou-lhe ao ouvido:
– Muito interessante o doente que me trouxeste.
Seu paciente bem que nos diverte bastante, nesta
ocasião. Parabéns pela feliz escolha do que solicitei.
Nisso, ligeiro, o médico reagiu contrafeito diante da
avaliação do amigo:
– O quê? Não, não, senhor!
E insistiu a objetar: – Mas o doido que eu lhe trouxe
não é ele, não, o que está pensando. É, sim, o outro, o da
casaca escura – acrescentou Dr. Blanche.
– O que nada falou e permaneceu calmo todo o
tempo? – indagou admirado o célebre alemão.
– Sim, sim! É ele o meu paciente, em fase de bem
sucedido tratamento. Vê-se no controle do compor-
tamento apresentado.
– E esse que pensei que fosse ele, então, de quem se
trata? – quis saber Humboldt.
– Esse é Balzac, meu amigo Honoré de Balzac, o
inigualável gênio da literatura francesa.
Com isso, ambos, silenciosos, voltaram aos seus
lugares para concluir o repasto.

22
A barba e o frade
(anedota popular)
Após raciocinar um tanto, o frade optou por deixar a
barba crescer. Interpretara ser a natureza que fizera
desse jeito, assim devendo seguir. Quando cofiava o
queixo peludo, pensava no jeito de quem obedecia por
conservar a espessa barba quase passando do peito,
ancorada no avantajado bucho a lhe servir de moldura.
Os alunos respeitariam frei Atanásio de qualquer
modo, pois avistavam nele o exemplo de dedicação ao
magistério com carinho especial, além de saber a fundo
língua inglesa e biologia, as matérias de sua predileção,
que transmitia nos dois turnos do colégio.
A confiança que concedia a seus alunos permitiu,
naquela manhã, dar ouvidos a Tenório indagar o uso da
sua barba na hora de dormir:
– O senhor bota dentro ou fora do lençol a barba,
professor?
O bom frade aquietou. Perquiriu da memória a
resposta. Nada, nada se ofereceu de imediato. Portanto,
sem dispor dos elementos necessários, não conseguiu
lembrar as coisas acontecendo debaixo dos lençóis
noturnos. Sorriu desconsolado, levando a sério o assunto.
Disse ao pequeno que deixasse a pergunta guardada
e a refizesse numa outra ocasião, achando houvessem
lhe pegado em grave desatenção consigo próprio.
Observar-se-ia melhor das próximas vezes.
De noite, cumpriu a disciplina e recolheu-se à cela,
de pensamento ligado na pergunta do aluno. Num
comportamento fora do habitual, zeloso afagou a cama,
preparando-se para o sono.
A surpresa maior lhe esperava. Nada obedecia ao
pretendido. Buscava jeito de um lado, de outro. Revirava
daqui, dali. Lençol faltava nos pés, na cabeça. E a barba

23
necas de alojar, esquentar canto. Por dentro do
cobertor, espinhava, incomodava como nunca antes.
Por fora, aí também não funcionava. Por fora, por
dentro... Qualquer das posições causava-lhe
desconforto. Rejeição total do costume que nem chegava
à lembrança das noites anteriores.
Espantado com aquilo, o sono viajou para muito
longe. No seu lugar apresentou-se a indesejada vigília.
Noite inteira e o frade manteve os olhos arregalados.
Aquilo, sim, pôde classificar de noite em claro.
Cedinho, quase ainda no escuro da madrugada, saiu
calorento, banhou o rosto e desceu ao pátio do colégio,
onde lia o breviário. Outro espanto. Quem primeiro
apareceu no corredor: Tenório e sua carinha adolescente.
De sorriso nos lábios, parecendo saber tudo que se
dera durante a noite do religioso, logo veio perguntando:
- Aí, frei Atanásio, de que lado fica a barba quando o
senhor dorme?
Nessa hora, o frade ferveu por dentro. Sem contar
conversa, naquela hora dirigiu ao aluno extensa preleção
sobre gente bisbilhoteira que, esquecida dos modos sobre
o respeito, invade a intimidade alheia. Calado, atencioso,
o estudante a tudo ouviu, decidindo não mais voltar a
falar no assunto ao professor, que, dali adiante, sempre
conservaria raspado o simpático rosto.

Nota: História ouvida do monsenhor José Honor de Brito.

24
Os camelos
(tradição oriental)
Na feérica Bagdá das Mil e Uma Noites reinava um
califa dotado de imenso poder e largas posses. Casado
com lindas mulheres, não lhe faltavam visitas ilustres,
procedentes de variados países, transformando sua
corte em quermesse de luxo e prazeres permanentes.
Os amigos das festas nutriam pelo califa rumorosa
devoção, quiçá devida aos bens e quitutes fartos, nos
salões engalanados, suntuosos, quiçá ao charme
glamouroso do poder, a dominar cidades e imensos
territórios.
Aquela vida preencheu o soberano durante vários
anos embriagadores, os quais belo dia chegaram ao fim
de jeito brusco. Então, o califa reclamou para si trâmites
de outras vivências menos vulgares, mais espirituais que
fossem, deixando de lado os velhos hábitos que
alimentara durante toda uma geração.
Daí, resolveu buscar a Deus, fonte dadivosa da
Eternidade absoluta.
Convenceu-se de mudar de práticas e aceitar
responsabilidades antes esquecidas. Mudou o
comportamento. Constante, passou a caminhar nas
romarias aos lugares santos, atitude beatífica de louvor
e bonomia reverente. Aproximava-se com carinho das
autoridades peregrinas, cheio do desejo das revelações
superiores. Isso, todavia, demonstrava apenas nos
ambientes públicos, às vistas das pessoas. Nas caladas
da noite, prosseguiu repetindo iguais libertinagens das
épocas anteriores. Alimentava-se de aparências e só
fingimento.
Com isso, tornou-se foco da observação dos súditos
fiéis, a lhe seguirem de perto cada passo. Ora uns
enxergavam nele o homem revelado, a que não

25
correspondia, sofrendo destarte as conseqüências dos
propósitos bons que representava, na duplicidade dos
papéis, que os olhos de outros recriminavam.
Em algumas ocasiões, viu-se a lutar consigo mesmo,
nas guerras de conquistas que iniciava para preservar a
riqueza do trono. Na angústia da dúvida, caia nos braços
soberbos das damas vaidosas e lascivas, em farras
monumentais. Confundia tanto as pedras do jogo da Terra
com as buscas do Céu que resvalou na descrença dos
súditos.
Uma madrugada, despertou de sonho confuso
ouvindo fortes pisadas no teto da alcova real, qual viessem
de multidão impaciente. Viventes em marcha forçada
quebravam as telhas, causando a impressão que dele
cobravam o cumprimento dos votos feitos a Deus,
desprezados, no entanto, pela sua incúria das ações
contraditórias que exercia.
Ouviu vozes, e resolveu tomar providências por conta
da perturbação ao seu repouso. Correu ao pátio externo,
chamou os guardas e efetuou as diligências de praxe.
Descobriu sobre o telhado alguns serviçais das cocheiras
munidos de cordas, à cata de camelos fugidos naquela
noite.
Intrigado, aborrecido, o califa pediu explicações por
que agiam de modo tão inconveniente na procura dos
animais, andando pela cumeeira das casas, ao que
responderam:
– Para nós, será mais fácil achar camelos aqui em
cima do que Vossa Majestade chegar a Deus com os
modos indisciplinados da vida que tem vivido.

26
Canguçu
(anedota popular)
Virara rotina no meio da garotada o jeito de ganhar
ingressos para as sessões noturnas do Mundial
Splendor Circus, que de grande mesmo só o nome
possuía. A tarefa que lhes cabia era ensacar os vira-
latas da redondeza e levá-los, no silêncio das
madrugadas, a uma das barracas que ficavam atrás da
empanada principal, discutir o peso com o domador e
transformar nas entradas da noite a mercadoria
recolhida nas ruas e nos quintais.
Eles apuravam, desse modo, o repasto do Rei dos
Animais, leão posudo, atração maior dos espetáculos, a
passar o tempo todo de olho nos bichos que avistasse
por entre os ferros grossos da jaula, enquanto não os
esperava nas refeições. Cena ligeira, e de caçador os
bichos viravam caça, população canina que minguava
dia a dia.
Os donos, caso imaginassem o desaparecimento de
seus cães, quase nunca reclamavam deles desaparecerem
na barriga do cruel leão africano.
Nesse ritmo as coisas iam transitando, na praça
apinhada de gente cada sessão, a semana inteira, de
segunda a domingo.
Até que chegou a vez do pequeno Canguçu, farejador
inseparável das pertenças de João Boa Sina, caboclo da
agricultura, ocupado nas lidas fora da cidade para dar
de conta dos deveres. Família numerosa, renda aperreada,
aonde fosse levava o cusco, de rabo feliz, os dois acima e
abaixo, na vida rotineira, escoteira, dos longes e pertos
distritos.
Com agrado, fácil, fácil, os moleques prenderam o
inditoso cachorro, conhecido pela valentia nos confrontos
do subúrbio, nem nisso foi reconhecido pelos meninos

27
ingratos, constantes admiradores. Aquele amigo da
moçada rápido serviria, no mercado das entradas, no
escondido das tendas. Negociado, teria destino certo: a
goela do rei.
Dessa vez, porém, a roleta girou diferente. Quando
jogado na jaula, Canguçu negaceou o corpo, num traço
de mestre, e conseguiu escapar do primeiro bote;
passando por baixo das patas dianteiras da fera, manobra
mais para gato que para cão, num relâmpago, voltou-se
por cima da crina dourada e abocanhou-lhe o pescoço
peludo, mordendo qual ferrão, com a força que grudou
os dentes nos debaixos da juba.
Trincou com vontade titânica, e trancou seguro, no
desespero daquela causa derradeira, talvez.
Vai lá, vem cá, o leão sacudia a cabeça, pulava, virava,
mexia, gemia, saracoteava, sem nada conseguir de
recompor a selvagem liberdade. As presas haviam atingido
um nervo importante, nisso complicando o bem-estar do
carnívoro.
Urros, grunhidos, sopapos; algo fora do normal se
estabeleceu.
Os tratadores correram a chamar o proprietário do
empreendimento, que jogava sinuca num bar das
imediações. O movimento sacudiu de novidades o boteco,
donde a turba rumou na direção do circo, já reunindo
bom número de curiosos naquilo tudo.
Nada de solucionar a querela, pois o gigante Golias
parecia amoquecar diante do pequeno David improvisado.
As primeiras marcas de sangue respingavam o chão da
jaula. Restava pouca ou nenhuma alternativa ao manhoso
felídeo.
Aberta a grade pelo dono das funções, o animalzinho
valente só fez mirar o lado de fora e chispou qual foguetão
no meio dos que se formaram a torcida rumorosa.
Ganhava o mundo que nem bala, num risco só.

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Depois daquela cena, os meninos perderam a
freguesia, pois o Rei dos Animais se enfastiou da carne
canina a ponto de repugnar até mesmo os cachorros
que passassem lá longe, na parte externa do circo.
Reagia intranqüilo, rugindo, grunhindo, reclamando
apreensivo quando ouvia latido distante.
Ainda durante algum tempo, os populares da
pequena cidade lembraram com gosto a coragem de
Canguçu, cão minúsculo que livrara sua espécie dos
dentes enormes do voraz adversário.

Nota: História ouvida de Alemberg Quindins.

29
Caprichos da memória
Nosso corpo demonstra as riquezas inestimáveis do
poder da Criação. Nos cinco sentidos, por exemplo,
quanta magnitude a todos envolve, sem havermos
contribuído em nada para sua concretização! Quantas
sofisticações demonstram olfato, tato, visão, gustação,
audição, perfeições absolutas em ponto graúdo.
Na inteligência. Na imaginação. No senso do
equilíbrio. Na fala. Nos órgãos internos, coração, pulmões,
fígado, intestinos, baço, rins. No sentimento. Na
concentração do pensamento. Em tudo por tudo,
mistérios insondáveis bem demonstram o infinito valor
da Ciência Universal.
Porém dessas maravilhas do corpo humano uma se
sobressai pelas atribuições que lhe competem, a memória,
dona de lugar preponderante em nossas vidas.
Isso porque, além de vivenciarmos pelos sentidos as
possibilidades de conhecer o mundo, é a memória quem
cuida para que esses registros permaneçam guardados,
eternizando as experiências individuais, num arroubo de
enorme sabedoria.
A respeito disso, estudos realizados com pessoas
idosas atestam existir como que dois níveis específicos
na memória, quais sejam: uma memória antiga, de
guardar os mínimos detalhes das épocas da infância,
adolescência, juventude. E outra memória, essa mais
recente, ou atual, responsável pelos dados relativos ao
tempo presente, inclusive dos que chegam na velhice.
De comum, no decorrer da vida, haverá perda
progressiva da energia mental, manifestando-se em forma
de amnésia quanto aos acontecimentos próximos,
enquanto persistem intactas, nítidas, as lembranças
daquilo verificado nos tempos pretéritos.

31
A ilustrar esse fenômeno de decadência física, num
sábado desses, ouvia do radialista Antônio Vicelmo, no
microfone da Rádio Educadora, em Crato, história
engraçada de três senhoras idosas que comentavam a
propósito da senilidade, lembranças atuais.
– Com o tempo, venho ficando esquecida até das
coisas que no momento estou fazendo – afirmava uma
delas. – Às vezes, vou subindo a escada lá de casa e paro
sem saber se ia subindo ou descendo. Coisa desagradável
de experimentar – comentou preocupada.
A segunda também quis trazer um exemplo e disse: -
Comigo acontece parecido. Já me peguei, numa dessas
manhãs, sentada na beira da cama sem saber direito se
estava acordando ou se me preparava para dormir –
considerou.
A terceira simpática vovozinha, por sua vez, orgulhosa
da sua vitalidade, estabeleceu: – Eu, falar em velhice?!
Nisso de perder memória... Nem imaginar – e foi logo se
apressando em bater na madeira, jeito do povo afugentar
coisas aziagas.
Ao ouvir as três batidinhas que ela mesma acabava
de produzir, não se conteve e rápido perguntou: – Quem
está aí? – ao tempo em que se dirigia à porta da casa, na
certeza de atender alguém que chamava lá de fora.
Falassem, pois, de incidentes da mocidade e essas
ilustres senhoras decerto reviveriam falhas outras bem
menos involuntárias, admito neste ponto sobre essas
considerações.

32
Um casal quase perfeito
Eram conhecidos quais exemplos de harmonia, vivendo
um para o outro, durante mais de 60 anos, sem o
desconforto das briguinhas inconvenientes da maioria
dos casais. Criaram nove filhos, espalhando-os pelo
mundo. Na redondeza, ninguém conhecia o que lhes
desabonasse tamanha afinidade.
Nesse clima de correção, mereceram o
reconhecimento das pessoas do lugar. Receberiam
medalha votada com especialidade para isso. As
autoridades, numa noite memorável, numa homenagem
sem igual, distinguiriam perante todos aquela vitória do
bom convívio.
Um dos secretários da prefeitura se responsabilizou
para fazer os contatos e, numa tarde, dirigiu-se ao
vilarejo aonde moravam.
Ao chegar com os assessores, encontrou apenas a
mulher, que lhe recebeu com muita satisfação. Depois
de explicar o motivo da visita, detalhes da comenda,
esperou chegar o marido que se achava na roça.
Mais tarde, quase ao escurecer, o homem retornou
suado, maltrapilho, exausto. Notou ansioso a presença
das novidades. Cabisbaixo, entrou meio desconfiado e
ficou escutando as justificativas daquilo tudo, os motivos
das ilustres presenças.
Ele logo desconversou. Queria saber de nenhuma
homenagem, não! E fechou a cara. Aquilo dizia pouco de
quem andava fora das festas; pouco gostava de lugar de
muita gente; estava bem no sossego dos matos, etc.,
etc.
– Mas, marido, perder a vez de conhecer outras
pessoas. Fazer amizades, tu que se agrada em ver cara
nova. E o prefeito foi quem escolheu a nossa família

33
para isso... – era a companheira se desfolhando nas
maiores explicações, disposta a convencer a qualquer
custo o parceiro renitente.
– Não, não! Até hoje passamos sem isso – arrematou
o marido.
Perante o impasse, num gesto cordial, a dona da casa
levou as visitas até o terreiro, avisando-as baixinho que
tivessem paciência, seguissem com a programação e, na
data, tudo iria dar certo.
Quando lá dentro, de novo repetiu a carga. Justificava
com intensidade as razões de aceitar a oferta dos seus
conterrâneos. Somos nós os mais unidos dessa localidade.
O casal que sabe viver melhor, marido – foi dizendo
carinhosa.
– Olhe, mulher! Disse não, pois é não mesmo!
– Mas, marido...
– Nem mais, nem menos. Não, e pronto! Ouviu? –
falou bruto, afastando ríspido o corpo frágil da mulher,
que pendeu entristecida em face da resistência do
companheiro.
Nessa hora, a mulher parou num canto, circulou os
quatro lados da caixa dos pensamentos e viu ficar
pouquinha a humilde resignação de tanto tempo. Bem
ali conheceria os limites das décadas da extrema penúria
que em segredo eles viveram. Pensou. Pensou um pouco
mais... Quis chorar; ciente, no entanto, que pouco
adiantaria derramar as lavas do vulcão das emoções a
lhe sacudir o peito, proveniente das entranhas de um
coração magoado. Daí, então, soltou a matraca, detonou
cantilena de fala jamais imaginada pelo parceiro dos anos
de casados:
– Quantos sonhos perdidos nos cuidados que
agüento contigo – suspirou, alongando a voz. – Tu e
teu carrancismo, nessa falta absoluta de amor comigo,
sem querer atender coisa alguma, faz uma eternidade...

34
Quanta noite passei sozinha, te vendo chegar das farras
fedendo a cachaça, grudado que era nos sambas de
latada, bebendo, prosando, gastando o pouco que
reunia. Voltavas dos braços das outras mulheres. E
nunca eu disse tantinho assim. Segurei aquilo tudo, tudo,
calada para manter as aparências do casamento que
negara a mim mesma. Vezes e vezes amargurei tuas
grosserias, em nome do lar, dos filhos que criei sozinha.
E agora, nesta rara oportunidade de mostrar aos outros
o que construí na renúncia do isolamento, tu demonstras
intransigência, má-vontade, o que me ofereceu durante
a vida inteira... Só lembras de ti e mais nada. Chega.
Chega...
Após essa rusga ninguém soube da homenagem
programada, pois logo adiante a velhinha se despediu de
casa e mudou-se para São Paulo, onde viveu alguns anos
na companhia de um filho, distante da terrinha que nunca
antes pensara em abandonar.

35
Chichico
(conto popular)
Que pássaros gostem de comer roça de cereal isso nada
de admiração deve causar; mas do tanto daquele ano
fica difícil de se admitir com regular naturalidade.
Imediato começou a pendoar o arroz e chegaram nuvens
imensas dos mais diversos tipos de bicho de asa. Um
deus nos acuda... Salvar o que restava se transformou
no único compromisso de toda a família, à cata de
solucionar o problema. Na época, ninguém falava desses
venenos que hoje acabam com insetos, passarinhos e
pessoas, devastando sobremodo a Natureza.
– Vamos fazer um boneco de pau e vestir como gente
– indicou o menino mais velho, metido a saber de tudo,
lembrando de um que em outro sítio avistara nas
proximidades.
– Mas quem sabe fazer um trabalho assim? –
interessou-se o pai, avaliando a limitação de tempo e arte
dos habitantes do lugar.
– Seu Severino Carpina, que mexe com essas coisas
para vender na cidade nos dias de feira – logo a mãe se
lembrou, na busca do jeito que diminuísse a fome dos
passarinhos. – Depois juntamos nele roupa folgada que
balance ao vento e ficará resolvido o assunto.
Juntos correram à casa do carpinteiro e dias mais
acompanhavam o feitio da peça, que dentro de pouco
tempo resultou numa bela figura, até de chamar atenção
pelos traços desenhados com esmero.
Eis que posto no centro do arrozal, o espantalho
funcionou que foi uma beleza, do modo previsto; às vezes
chegava a causar efeito superior além do esperado,
assustando gente e animais de maior porte, que, de noite,
por desaviso, se aventurassem no eito do baixio entre os
legumes maduros.

37
Melhorava também, nesse aspecto, o sertão.
Esforços se destinaram às outras obrigações, não
houvesse o inesperado que deu de crescer naquele
inverno, pois as chuvas, antes calmas, quietas,
transformaram-se em trombas d’água monumentais,
nunca chegadas do jeito daquilo.
Antes de apanhados os primeiros grãos, a enxurrada
levou quase tudo, inclusive o espantalho de afastar
passarinho. Deus nos acuda fustigou a alma dos caboclos
para aceitar de bom grado a ocorrência qual coisa do
destino e a vida seguiria adiante.
Dentro do espírito abnegado que alimenta as pessoas
simples, sua religiosidade natural, certo dia, alguns anos
após o prejuízo, mãe e filho mais velho rezavam novena
em sítio afastado para onde mudara a família, abaixo das
terras antigas.
Cheios de fervor, acompanhavam as palavras da beata
nas jaculatórias, quando a mulher observou santo novo,
diferente, num dos altares laterais da pequena capela.
Admirada, reconheceu nele as feições exatas de gente
conhecida. Voltou-se ao filho e falou baixinho:
– Zé, tu reconhece a cara daquele santo dali? –
perguntou, indicando o andor humilde no canto.
– É ele, é Chichico, mãe, nosso boneco que a cheia
grande carregou – respondeu embelezado o menino,
súbito acalmado pelos olhos severos da rezadeira
fuzilando eles dois.
Na saída, a mãe ainda balbuciava as palavras
derradeiras dos dizeres sagrados, e acrescentou: - Que
ele interceda também por nós, que fomos seus amigos
bem antes – enquanto desconfiados saíam
acompanhando a quermesse pelo terreiro, sem nada
revelar aos outros da real procedência da imagem familiar.

Nota: História ouvida de Luiz de Lacerda Leite.

38
Coerência
Dentre as tantas histórias de Francisco Cândido Xavier,
consta que, certa vez, o médium viajava de avião, na
época dos resistentes DC-3, tradicionais bimotores a
servir nas linhas aéreas do interior do Brasil, quando
a aeronave resolveu falhar um dos motores em pleno
vôo, para desespero dos que a ocupavam.
Mobilização geral na tripulação, por si só conformada,
nessas horas difíceis. Os passageiros, todavia, entraram
em pânico e desalento, tumultuando de incomum
agitação os céus tranqüilos das Minas Gerais.
Chico Xavier também não ficou de fora daquilo de
emoções intensas nos momentos críticos. Entrou
extremoso no clima que se configurava. Corre daqui, corre
dali, braços aos ares, mãos a coçar a cabeça, gritos, aflição
que tomava conta dos protagonistas, nas ensolaradas
nuvens lá de cima.
Esse instante de gravidade fê-lo lembrar do seu guia
espiritual, Emmanuel. Naquilo tudo, recolheu-se aos mais
íntimos pensamentos e ainda conseguiu estabelecer
contato e emitir pedido de urgência ao bom espírito, dada
a situação vexatória por demais aonde padecia.
Naquele meio tempo, o comandante estabelecera
providências e buscava aeroporto próximo, a fim de
realizar o pouso forçado, quando Chico avistou,
deslocando-se pelo intervalo das poltronas do avião,
chegando na sua direção, a figura benfazeja de
Emmanuel, motivo inigualável da mais pura felicidade
do médium.
– Sim, Chico, me chamou? – indagou, a princípio.
– Chamei, chamei – respondeu ofegante o sensitivo
mineiro.
– Pois diga lá o que pretende com isso.

39
– Ora, Emmanuel, não vê o que se passa comigo,
no meio desse sufoco? Os acontecimentos a seguir
como vão, e morreremos todos, sem qualquer apelo.
O espírito olhou em volta, prudente, reconhecendo a
agitação que contagiava os ocupantes do vôo tumultuado.
Outra vez fitou Cândido Xavier e disse:
– Sei, Chico, que ocorre tudo isso. Vejo o medo que
invade os corações do grupo de que fazes parte, nesta
hora – seguiu dizendo: - Contudo trate de adquirir a
calma; se comporte à altura; controle seus nervos; dê
exemplo de quem sabe das coisas do outro lado da
vida.
– Mas, Emmanuel, o que espera para nos auxiliar
a todos? Não observa que posso a qualquer momento
desencarnar com a queda do aparelho? – e, quase a
chorar, acrescentou: - Vou morrer sem ver os amigos,
parentes...
– O que é que tem demais, Chico? Por isso mesmo,
então, se controle, domine o desespero, e morra com
educação. Ao menos isso, morrer com educação.

40
O erro de Prometeu
(mitologia grega)
De todos os imortais titãs, era Prometeu o mais esperto.
Ele havia lutado ao lado de Zeus e de outros titãs na
guerra em que venceram Cronos. Além da coragem,
mantinha consigo alguns propósitos de independência
no trato com a humanidade, existindo, em razão disso,
a versão não oficial de haver sido o responsável de forjar,
do barro e da água, os seres humanos, concedendo-
lhes dotes especiais de pensamento, artes e outras
habilidades, quais estudar os astros e na luz deles viajar
pelos mares afora.
Esse apego que destinou aos homens mexeu com os
brios de Zeus, sobretudo na ocasião em que ele se viu
ludibriado na escolha entre duas porções de um boi que
Prometeu envolveu em duas bolsas, pondo a carne em
uma e, na outra, na maior, só ossos e gordura.
Cônscio das suas habilidades, Zeus preferiu a parte
mais acrescentada, deixando-se levar pela aparência das
coisas e por essa brincadeira retirou o fogo da
humanidade para que não preparasse a carne que
recebera da partilha de Prometeu. Em represália a Zeus,
Prometeu subiu ao Monte Olimpo, retirou o fogo da
carruagem do Sol e trouxe-o para os homens, escondido
dentro num talo de erva-doce.
Ao perceber lá de cima o clarão das fogueiras, furioso,
Zeus, incontinenti determinou ao ferreiro coxo de nome
Hefesto que produzisse da argila uma deusa de beleza
incomum, mensageira dos maus presságios da raça
humana.
Desse jeito surgiu Pandora, proprietária de muitos
dotes ofertados pelos deuses e predestinada a esposa de
Epimeteu, irmão idiota de Prometeu. Face ao desenrolar
dos acontecimentos, quando na casa do marido, houve

41
um dia em que Pandora achou abandonada pelos
cantos a caixa em que Prometeu e o irmão guardavam
a doença, os vícios e a velhice, poupados da
humanidade na hora da criação.
A deusa não resistiu à curiosidade. Abriu-lhe a tampa
e deixou escorrer os infortúnios que ainda hoje povoam
a Terra. Imprudente, ainda quis devolver o lacre à caixa,
quando lá de dentro ouviu a voz da esperança, que pedia
liberdade e, solta, voou para minorar as dores dos
humanos.
Enquanto isso, Zeus decidiu punir Prometeu. Num
gesto extremo, acorrentou-o aos rochedos de um monte,
sob escaldantes sóis e gélidos climas, segundo dizem, no
Estreito de Gibraltar, junto das portas do Mar
Mediterrâneo.
Séculos sem fim, todo dia, uma águia gigantesca dele
se aproximava a rasgar-lhe as entranhas e comer parte
do fígado, o qual, no trânsito das noites, voltava a se
recompor.
Reza a tradição da Grécia Antiga que Zeus necessitou,
certa vez, de um segredo importante só conhecido de
Prometeu e escalou Hércules, um dos seus filhos, que
viesse e libertasse da penitência o bravo titã, desse modo
pondo-o outra vez no gozo da infinda liberdade.

42
A cruz de Marciana
Ímpetos apaixonados envolveriam os dois cativos de
fazendas próximas, na região dos Inhamuns, época da
escravidão, tempos seculares do Ciclo do Couro,
quando havia demanda para a carne seca produzida
nas charqueadas do Sertão cearense.
Da tempestuosa emoção restaria a lembrança apenas
de um nome, o dela, Marciana. Dele, nem isso se
perpetuou do amor sem dimensão que assinalaria a
história contada por Antônio Teodósio Nunes, filho
daquelas bandas.
A força do afeto que arrebataria os instintos na
coragem de ficarem juntos não despertou reação favorável
do proprietário de Marciana, sobretudo, que nos
princípios ainda deixou conciliar as oportunidades dos
encontros fortuitos dos namorados, apesar dos elevados
custos de sofrerem perseguições repetidas, no preço das
surras e prisões a título de correção.
O romance ganhou corpo e espaço na boca dos
habitantes da redondeza. Uma lenda de paixão e desejo
assim avolumava comentários, das casas grandes às
senzalas.
Várias fugas tornaram-se conhecidas, porquanto os
amantes jamais recuariam no propósito de casarem um
dia, ânsia de quem descobre no outro espelho de si
mesmo, busca voraz dos corações entrelaçados.
O jeito que achou o dono da escrava para impedir a
delinqüência: resolveu pear-lhe os pés com tiras de couro
cru aguçadas, qual também com os bichos fujões, ou
gado ladrão que arromba cerca para mudar de pasto,
nas desobediências insistentes.
Estados de prisioneira alimentaram na jovem as
intenções de liberdade e afeto. Rendeu-se no fazer de

43
conta, fim precípuo de revelar horas convenientes de
fugir das vistas sagazes do feitor. Demonstrou
arrependimento, tristeza, gesto meloso dos
dissimulados o quanto pôde. Conseguiu fingir
acomodação, e lá bela noite jogou-se de impulso
selvagem malha da vontade e sumiu caatinga adentro,
no escuro estrelejado, doces sonhos de escuridão
profunda.
Dias e dias passavam-se, quando ninguém sabia
notícias da jovem negra, pois o silêncio vencera a fome
dos boatos na desconfiança dali.
Num fim de tarde pouco além, nas horas
mormacentas de verão cinza avermelhado, nuvem sinistra
de urubus formou-se no meio de manga distante,
entremeio das duas propriedades.
Dado instante adiantado, quase noite, deixaram os
agregados de ver melhor só na luz do dia seguinte; talvez
alguma rês tresmalhada perdera a vida na mata.
O que encontraram na manhã alta, o corpo
desfigurado, maltratado pelos bichos, de Marciana
danificada a bico das aves de rapina, exposto na claridade
e no calor das inclemências.
A perda feriu o povo de solidão, morrer de amor aceito
na carne da cativa. E puseram pequena cruz no lugar
onde lhe divisaram a fisionomia pela vez derradeira.
Àquele canto viriam peregrinos, munindo flores e velas,
reverenciar a forma dorida que terminou com o drama
dessa Julieta cabocla, em promessas, milagres, devoção.
Do episódio nasceria o nome do povoado que em volta
da cruz rendilharia casas, origem da localidade batizada
hoje de Planalto de Marciana, município de Arneiroz,
Sertão do Inhamuns, Ceará.

44
Dina
Depois de servir a Labão tempo suficiente para receber
em casamento suas duas filhas Lia e Raquel, Jacó
decidiu retornar ao país de Canaã, aonde deixara seu
pai e sua família original.
Aproveitou uma ocasião de ausência do sogro,
quando este saíra na tosquia dos carneiros, e fugiu em
segredo, levando consigo tudo o de que se achou digno, a
título de remuneração pelos vinte anos em que ali passara.
Três dias depois, ao saber da retirada intempestiva
que custava a perda de filhas e netos, nada satisfeito,
Labão reuniu seus irmãos e perseguiu Jacó sete dias,
indo alcançá-lo no monte de Galaad.
Antes, porém, fora avisado em sonho que deixasse
Jacó e suas filhas continuarem a jornada, despedindo-
se deles com forçada amizade, após formalizar pacto
no monte Galed, denominação dada por essa razão:
– Este monte, a partir de hoje, é testemunho entre
nós dois – com isso, Jacó deu andamento à caravana,
tangendo seus rebanhos até chegar à cidade de Salém,
no país de Canaã, armando acampamento nas cercanias
da povoação.
Logo adquiriu, junto aos filhos do governador Hamor,
pela quantia de cem moedas, uma gleba de terra,
instalando-se no novo país.
Alguns dias mais, e Dina, uma das filhas de Jacó,
ao sair na busca de fazer amizade com as mocinhas da
região, viu-se notada por Siquém, filho de Hamor.
Tomado de arrebatadora paixão, Siquém resolveu se
apoderar da jovem, violentando-a de inopino, com isso
precipitando os nefastos acontecimentos que daí
sucederiam.

45
Praticada a injúria, só então Siquém resolveu
dirigir-se ao pai dizendo querer a moça para sua esposa.
Na seqüência do incidente, o pai de Siquém buscou
Jacó. Queria contemporizar as graves circunstâncias
ocasionadas pelo filho. Sua proposta: que fizessem a
aliança das tribos e pudessem entrelaçar as famílias,
desde aquele que seria o primeiro dos casamentos entre
elas.
Mal satisfeitos, os filhos de Jacó protestaram, no
entanto, por conta de Siquém ser incircunciso e nisso
não merecer casar com sua irmã. O motivo propiciou a
que estabelecessem as bases de acordo onde todo varão
daquele povo aceitasse o dever da circuncisão, a partir
de Siquém, caído que andava de amores por Dina.
E procederam segundo o estabelecido.
No terceiro dia, contudo, deu-se terrível contradição.
Simeão e Levi, filhos de Jacó e irmãos de Dina, traindo
as bases do combinado, armando-se de espadas,
marcharam contra Salém e eliminaram seus cidadãos
ainda abatidos pelo ritual da circuncisão neles pouco
antes executada.
Nas ações agressivas também eliminaram Hamor e
seu filho Siquém, enquanto Dina, que fora residir na casa
de Siquém, foi trazida de volta. Despojaram corpos,
saquearam a cidade e os campos, e apropriaram-se dos
rebanhos e dos bens que encontraram pela frente. Nada
restaria incólume, nem crianças, ou mulheres,
transformadas em prisioneiras e despojos de guerra, isto
segundo o livro bíblico de Gênesis (34, 26-29), aonde
há os registros do trágico drama.

46
O disfarce
(conto popular)
Um homem jovem, de cabeleira vasta, roupas coloridas,
sonhou que iria receber a visita da morte. Não lhe
sobraria muito tempo de permanência na Terra. Dado
acreditar na consistência dos sonhos, cuidou de
estudar uma forma para melhor se proteger dos riscos
desta vida.
Morava numa pequena cidade do interior, por demais
conhecido das outras pessoas. Sem comunicar a
ninguém, tratou de viajar para lugar longínquo, onde
ficasse no mais extremo ostracismo.
Instalou-se num lugar afastado, metrópole
descomunal, em que ninguém daria notícia de um novo
morador; refez sua aparência: raspou a cabeça, modificou
o estilo da barba, da fala, comprou roupas diferentes,
mais sóbrias, pôs óculos escuros, etc.; mudou por
completo a antiga fisionomia. Achou também que devesse
adotar outro sistema de vida e buscava sempre as
multidões, as ruas movimentadas, os locais agitados,
barulhentos, shoppings, praças, os espetáculos públicos,
praias cheias, onde estivesse despercebido. Tudo se dava
conforme planejara. Nem nos sonhos voltaria a lhe
importunar a perspectiva de cedo haver de deixar este
mundo.
Ia tudo bem até o dia previsto naquele sonho funesto,
quando em pessoa apareceu o indesejado agente que
lhe buscava. Dirigiu-se à antiga residência da vítima
potencial, na pacata cidadezinha em que a princípio
viveria. - Ora, que decepção - nem o menor vestígio do
freguês.
A morte ficou desapontada, coçou a cabeça, de cima
abaixo revirou a lista telefônica, indagou da vizinhança,
de policiais, carteiros; nada vezes nada; inexistiam

47
quaisquer sinais do homem que transportaria consigo
para outro mundo.
Frustrada, a Morte resolveu, antes de voltar,
entreter-se com qualquer coisa, indo a passeio visitar
recantos mais populosos, dentre os quais, coincidência
ou não, o tal em que o freguês fora habitar.
Na metrópole sem tamanho, bateu pernas longo
tempo e chegou a uma casa de shows em que se
desenvolvia agitada festa, animada por grupo de rock
estridente, casa dos horrores eletrônicos. Fumaça, ruídos
ensurdecedores, superlotação.
Apreciou algum tempo o espetáculo. Ainda que
convidada pelos organizadores a permanecer pouco mais,
a Morte resolveu desconversar e saiu em retirada; então
planejou ganhar a viagem de volta. Antes de partir, decidiu
levar alguém na sua companhia. Com cuidado, observou
na vasta multidão. No meio de tantas pessoas
esfumaçadas e envoltas nos jatos de luzes coloridas, viu
alguém que lhe chamou a atenção devido ao crânio bem
pelado, luzidio, no meio de muitos cabeludos (era o dito
homem do sonho); calculou o porte, a pesagem e arrastou-
o para carruagem que utilizaria na longa viagem de volta.

48
A divina conformação
(tradição oral)
Na Palestina, depois que Jesus fora executado e as
coisas pareciam retornar à antiga normalidade, um dos
seus apóstolos, o de nome João, não se aquietava, a
procurar canto, qual dizem dos que lutam e nada
conseguem para aceitar as situações difíceis.
Durante semanas, sua vida era só amargura,
sofrimento por cima de sofrimento. A ferida aberta com a
perda do Mestre parecia crescer cada dia um pouco mais.
Aonde seguisse, levava consigo a saudade imensa da
presença divina, fugindo-lhe do ânimo o gosto de pelejar,
e ninguém conseguia consolá-lo. Tornara-se, por isso, a
maior preocupação dos amigos e familiares.
Alguém lembrou, então, de Maria de Nazaré, a quem
devesse procurar, na busca de palavras de conforto, pois
se revelara exemplo perfeito de resignação face à
inominável tragédia que também lhe vitimara.
Destarte, João viajou ao lugar em que morava a mãe
de Jesus.
Numa demorada conversação dos dois, a santa
mulher indicou a João que chegasse ao Mar da Galiléia,
porquanto, nas suas margens, acharia motivo suficiente
de recobrar forças e firmeza de tocar adiante a vida.
João aceitou o conselho e buscou as praias daquele
mar, em que permaneceu algum tempo. Relembrava os
passeios felizes de vezes anteriores, absorto nos transes
da dor. Certa tarde, preso à beleza das águas azuis, se
deixava inundar de gratas recordações, quando avistou,
deslizando em sua direção, no fino espelho das ondas, o
vulto magnânimo de Jesus.
Um perfume de incenso raro, nessa hora emanava
pelo ar, idêntico ao que experimentara junto da cova em
que depositaram o santo corpo do Mestre, nas

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proximidades de Jerusalém.
Perante o inesperado fragor, quis esmorecer sob o
peso das emoções ali vividas. Fechou os olhos na mais
fervorosa contrição, e ouviu nos refolhos da alma lacerada,
translúcido, o falar do Verbo de Deus:
– Estimado João, jamais queira imaginar que habito
longínquas paragens afastadas de quem amo. Saiba,
no entanto e sempre, que quando alguém chamar com
sinceridade ao seu lado estarei, na eternidade dos
verdadeiros sentimentos, contra qualquer obstáculo;
pois não há distância entre os que se amam.
Dali em diante, tocado pelos eflúvios da revelação
inesquecível, o apóstolo se rendeu ao abençoado
reencontro e entregou-se ao poder da conformação, para
realizar o trabalho evangélico que viera cumprir na Terra.

Nota: História ouvida de Raimundo Pereira da Paixão.

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O domador de cavalos
(tradição russa)
Em fazenda humilde das remotas planícies do Cáucaso,
na velha Rússia, exposta aos riscos de uma vida afastada
e rude, habitava família de pastores, pai, mãe e quatro
filhos, três mulheres e apenas um homem, a lutar quais
guerreiros para descobrir formas de sobreviver. Nessa
peleja, mantinham rebanho de ovelhas e cultivavam o
solo.
Um dia, chegou na região manada de cavalos furiosos,
animais imprevisíveis que surgiam do mundo selvagem
das florestas escondidas e desapareciam do jeito que
chegavam, livres e sem dono, soltos, fugindo da
aproximação de qualquer ente humano.
Corajoso, no entanto, o filho lançou-se na busca de
prender esses cavalos bravios, indo conseguir depois de
muitos esforços, detendo-os em cercado existente junto
da casa onde moravam.
– Rapaz de sorte o teu filho, ainda na flor da idade
e já adquiriu riqueza – comentou vizinho, a observar,
na companhia do pai, as atividades do moço, no curral
a domar o rebanho que se espanava impaciente pelos
gritos e chicotadas do difícil trabalho.
– Isso é o que hoje a gente pode avaliar - respondeu
pausado e cauteloso o pai, que também admirava a
iniciativa do filho querendo amansar os bichos inquietos.
– Pode ser, ou não, essa boa sorte dele – completou.
Passadas algumas semanas, quando apareciam os
frutos iniciais da custosa tarefa, o jovem se viu arrebatado
na fúria de um dos animais, que lhe jogou ao chão, na
queda fraturando com gravidade o turno superior de uma
das pernas, prostrando-o ao leito.
– Lembro agora o que disseste daquela vez -
recordou o vizinho, enquanto visitava o doente aos olhos

51
da família abalada pelo acontecimento trágico,
acrescentando: – Na verdade, o que poderia ser boa
fortuna tornou-se perda a teu filho, meu amigo. Com
isso, também sofro contigo!
Sem muitas palavras mais, o pai tristonho
respondeu: – Não é assim que analiso as circunstâncias,
não. O que sucedeu pode ser de bom alvitre, quero
crer, todavia.
Entrementes, alguns meses transcorridos e, nesse
meio tempo, sérios conflitos explodiriam na fronteira, com
povos em litígio, motivando guerra descomunal, a qual
englobou aqueles viventes do campo russo.
O sossego do lugar amargurou período brutal. Gastos
imensos. Tributos pesados. Os jovens se engajaram
nas tropas, dentre eles os amigos do domador de
cavalos, que persistiu longos meses inválido por conta
do acidente, a ponto de só ele de sua geração restar
fora das escaramuças.
Não tardou e, de novo, ouviu-se entre os dois vizinhos
outras considerações quanto ao destino:
– Ah, disseram bem tuas palavras de que aquilo
traria sorte ao teu filho.
Ensimesmado, de olhos acesos e semblante
pensativo, o pai permaneceu envolto no silêncio da
paisagem, sem externar o que lhe dominava o coração,
deixando ao próprio tempo explicações maiores ao amigo,
sabedoria infinita das coisas em volta do mundo distante.

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Dom Sebastião
Rei de Portugal com três anos, sob a regência de sua
avó dona Catarina, um dia Dom Sebastião resolveu
tomar para si a defesa do catolicismo no combate aos
mouros e sonhou dominar o norte da África, onde hoje
fica o Marrocos, embarcando rumo à conquista, ainda
que para desgosto do seu tio-avô Dom Henrique e
advertido por vários capitães.
O espírito atilado de Sebastião naquele ato, segundo
os historiadores, predominou sobre tudo e todos, no
que pesasse, quatro anos antes, em 1574, haver largado
iguais propósitos, retroagindo de Ceuta e Tânger por
insuficiência de tropas.
Dessa outra vez, porém, far-se-ia ainda mais teimoso.
Poucos dias instalado no forte de Arzila, após o
desembarque, em 04 de agosto de 1578, com 24 anos
defrontaria o exército árabe, na batalha denominada
Alcácer Quibir.
Em luta feroz, os portugueses sofreram profundos
reveses, submetidos ao poderio adversário; sem deixar
notícias do seu paradeiro, o rei desapareceu nas
escaramuças, ocasionando a vacância do trono
português.
Desfeito o sonho do jovem monarca, que não deixara
herdeiros, sobe no poder um outro tio seu, o cardeal Dom
Henrique, que morreria logo dois anos adiante, em 1580,
produzindo desdobramentos políticos graves e a anexação
de Portugal pela Espanha, tempo do reinado de Felipe II,
quando, inclusive, o Brasil pertenceu ao trono espanhol.
Tudo isso se conta até chegar nas origens do
sebastianismo, mito de cunho messiânico nascido em
torno da figura do rei, rastro do seu misterioso
desaparecimento no campo de batalha, o qual proclama

53
seu retorno em eras futuras, com a missão de salvar o
mundo e vencer as forças do Mal em toda a
humanidade.
Alguns situam a gênese dessa lenda no impacto
ocasionado pela decadência portuguesa e pelo sofrimento
de seu povo, conseqüências da prematura perda do
soberano querido. Outrossim, persiste a inspirar o
imaginário das artes lusitanas, rica de misticismo e
criatividade neste particular, persistindo desde o século
XVI, por viés histórico-cultural de predominante
resistência.
Em seu bojo, o sebastianismo remonta substratos
bíblicos, lembrando o fim misterioso de Moisés, antes de
entrarem os hebreus na Terra Prometida, que se ausentou
montanha adentro; e do profeta Elias, a subir aos céus
num carro como que de fogo, às margens do rio Jordão,
na visão do seu discípulo e sucessor, o profeta Eliseu.

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As duas vizinhas
(conto popular)
Elas moravam às margens dos trilhos abandonados
de antiga ferrovia que cruzava os arrabaldes esquecidos,
naquele bairro distante, cheio de sobras de lixo e sacos
voadores abandonados ao vento, ou presos no arame
das cercas divisórias, entre garranchos das vielas sem
calçamento, com água estagnada minando poças nos
buracos das trilhas, diversão nua das crianças de
bundinhas e buchinhos rajados, bem ao molde dos
lugares prediletos de político nas vésperas eleitorais,
prato típico da soberba municipal.
Comadres que se respeitem acompanham vidas
conjugais, medicamentosas, culinárias, umas da outras,
os destemperos dos maridos, festas, viagens, apurados,
esperanças, visitas, farras, jogos, o escambau a quatro,
afinal. Quintais e cercas de faxina tudo deixam passar
fácil, costelas abertas aos dós de peito e fumaça dos fogões
de lenha, mais apagados que acesos, semanas iguais no
pouco e no raro dos pirões amarelados.
Bom, seguindo viagem, diria que as duas vizinhas
mantinham no quintal seus inevitáveis chiqueiros de
galinha. Belo dia, desapareceu gorda pedrês de uma
delas, prejuízo de abalar o patrimônio já humilde da
família. E toca a comadre a procura em todos os recantos.
Horas e dias, e nada... Raposa não andava no trecho.
Ladrão pouco atentaria de catar migalha nas botas
furadas do recanto. No outro lado da casinhola, só
abandono e terreno ermo, vazio.
Restou logo quem, na caixa das desconfianças – a
querida amiga de tantas batalhas, que agora resolveria
desfeitear e lhe roubar a galinha. Ontem à noite,
escutara ruídos esquisitos, parecido coisa de refeição fora
de hora, nos quartos pegados da casa vizinha.

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E parou receosa, olho na rua, imaginando achar
jeito de solucionar a história do sumiço da ave.
Aproximava-se a comadre botando água, pescoço
molhado, de rodilha e lata na cabeça. A outra, curvada
sobre o batente da janela, pensava:
– Ela vem do jeitinho de quem roubou minha galinha.
Passo pequeno, balanço dos quadris, vexada... Escrito
quem rouba galinha.
– Bom dia, comadre! – exclamou. (– Com a voz de
quem comeu minha galinha...).
– Bom dia, comadre – respondeu.
Surpresa sua, horas depois, inesperada, assanhada,
barrenta, a galinha retornou ao quintal, ciscando faceira
os mesmos monturos de pouco resultado, causando
naquilo forte agrado na dona, que, feliz, longe repercutiu
a notícia: – Achei a penosa fujona!
Reconfortada e calma, quase perto do almoço, de novo
recostou-se à janela e olhava na rua por onde descia a
comadre, ainda enchendo os potes nos caminhos d’água.
Feliz de si para consigo, admirada, reconheceu:
– Veja isso, do jeitinho de quem não roubou minha
galinha. Passo pequeno, balanço dos quadris, vexada...
Escrito de quem não rouba galinha.
– Comadre, dia bom!
Voz de quem não comeu minha galinha...
– Bom dia, comadre. Céu limpo, brisa suave,
refrescante, belo dia! – a outra retribuiu.

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Édipo rei
(mitologia grega)
Há período da história do Egito de que pouco se tem
notícia, o Antigo Império (de 3200 a 2300 a.C.), época
da construção dos maiores monumentos da civilização
egípcia, a esfinge de Gizé e as pirâmides de Quéfrem,
Quéops e Miquerinos.
Desse tempo remoto, há menção em Odisséia, do
poeta grego Homero, a propósito de um personagem,
Édipo, filho de Laio e Jocasta, reis de Tebas, cuja legenda
ora contamos.
Antes do seu nascimento, o oráculo de Delfos
vaticinou que ao chegar na idade adulta Édipo mataria o
pai e se casaria com a própria mãe.
Em vista disso, quando o filho nasceu, Laio ordenou
que lhe amarrassem os tornozelos e o abandonassem
ao relento, entregue à sanha dos animais selvagens.
Entretanto, achado por um pastor, ele chegaria na
corte do rei Políbio, de Corinto, onde mereceu acolhimento
e os favores da melhor educação.
Na adolescência, Édipo soube da profecia do oráculo
quanto ao que lhe reservava o destino e quis preservar
seus supostos pais, abandonando o palácio de Corinto.
A caminho do desterro voluntário que se impunha,
deparou-se com um ancião viajando na companhia de
vassalos, com quem conflitou e, sem desconfiar disso,
chegou a matar seu pai legítimo, o Rei Laio.
Seguiu a viagem e alcançou Tebas, onde o reinado
atravessava extrema desolação, pois se instalara, nas
portas da cidade, feroz esfinge, senhora de um enigma a
que submetia a população e devorava quem não o
decifrasse.
Jocasta, a rainha viúva, prometera casar com quem
libertasse o povo daquele monstro cruel. Ao aproximar-

57
se e interrogado pela esfinge, Édipo desvendou-lhe o
enigma, em seguida casando-se com a rainha e
consumando a profecia do oráculo.
Conta Homero que desse matrimônio nasceram
Etéocles, Policine, Antígona e Ismene.
Algum tempo passado, terrível peste assolou todo o
reinado de Tebas. Na ocasião, o oráculo previu que a
saúde só retornaria ao lugar depois de vingada a morte
de Laio, o antigo soberano.
Nisso, um adivinho de nome Tirésias desenvolveu
insistentes perquirições e demonstrou a Édipo e Jocasta
a trama que, de modo inconsciente, os dois
protagonizavam, levando Jocasta ao desespero, decidindo
auto-imolar-se, enquanto Édipo abriria mão da luz dos
olhos. Cego, retirou-se de Tebas, deixando Creonte por
sucessor à frente do reinado.
Seguiria para Colona, próxima de Atenas, vindo viver
sob o império do rei Teseu até, mais adiante, morrer de
modo misterioso em um bosque sagrado, a tornar-se o
herói protetor da Ática.
Tamanha tragédia arrastaria consigo os
descendentes de Édipo, no dizer do autor grego que
narrou a clássica história aqui resumida.

58
O elogio da oportunidade
(tradição oral)
Naquela hora sob o sol pleno das dez e meia, sertão
seco dos Inhamuns, firmado numa estaca da cancela
do curral, o caboclo aguardava o disparo do primeiro
boi. As coisas se davam mais ou menos assim: Caíra
de amores pela filha do fazendeiro, moça bonita,
promessa de felicidade em forma de mulher, flor do
sonho que também lhe aceitara os riscos de juntos
andarem no fogo das madrugadas.
Um dia, apanhados nas mordaças da paixão,
enquanto a namorada banhava-se no pranto da amargura
e restava presa num quarto da casa grande, ao vaqueiro
viera essa tal oportunidade: Ou pegava qualquer de três
reses lançadas nos primeiros vinte e cinco metros de
corrida e casaria com a cabocla fina, fazendo-se herdeiro,
ou sumiria para sempre das vistas, sob as penas da
extrema-unção daquele amor.
Agora lembrava a razão, quando ouvia muitas vezes
sua avó dizer:
– Meu filho, peito do destino funciona em cima das
oportunidades. As coisas se apresentam quais cavalos
selados na porta de casa. A pessoa, ligeira, logo
pensando pouco, salta no lombo do bicho e conquista
o mundo inteiro.
Suor não faltava, corria ensopando-lhe a camisa de
algodãozinho. Dentro das carnes, lavas de sangue ferviam
as encostas do vulcão dos nervos e veias. Acreditava na
peleja, pois o vento morno assobiava-lhe segredos junto
aos ouvidos.
Nisso, ao romper do primeiro boi, calculou mal a
pegada e espantou a montaria. Cravou espora no bucho
do cavalo antes do momento certo.

59
– Tem nada não. Guardo a experiência – pensou,
apertando as abas do chapéu de couro ao fundo da
cabeça. – No seguinte, vou dominar de qualquer jeito –
e ouviu berros animados de outros peões, no lado de
fora da cerca, enquanto a imagem da avó cresceu nas
fitas da imaginação.
Parece que o homem fez de propósito, quando nem
deixou ele se recuperar do susto e, sem aviso, largou o
segundo animal, mais acelerado na carreira do que a
pretensão dos seus desejos.
Escapava também essa nova chance, transportando
no bucho a paz do sertanejo valente e seu coração
acelerado, que baixou os olhos nas rédeas do cavalo e
lembrou-se do santo com quem aflito conversava.
Assustado de medo, algum pedido ainda fez, porém
esquecido de deixar o endereço para resposta. Coçou a
cabeça e decidiu acompanhar a rês que, de certo, a perna
não lhe passaria no derradeiro lance.
Agira em tudo com maestria, perfeição das
qualidades. Encostara-se nos quartos do boi, aprumara
na sela, subira nos estribos... Daí, ansioso, caturou da
fera o lombo largo, escorrendo o braço que pulava pelos
ossos do espinhaço magro, comprido... E, surpresa
disforme, em algum lugar do mundo o infiel deixara o
rabo, ingrato patrão; escolhera este gado cotó.
No ar, inútil, dançava a mão do vaqueiro, dividindo
em duas a nuvem de espessa poeira que tudo cobria,
qual trabalhava o destino com a fortuna caprichosa dos
dois amantes bem ali separados.

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O ermitão e o salteador
(original de Gonçalo Trancoso)
Um ermitão vivia longe do burburinho das vilas e
cidades, quando, certa feita, abordado por perigoso
salteador de estradas, dele ouviu essas palavras:
– Sei que o senhor é um homem de fé e que tem
méritos perante Deus. Por isso peço que reze para eu
deixar essa vida errada, e se conseguir fará de mim um
amigo. Mas, no caso de seus pedidos não surtirem efeito,
volto para lhe tirar a vida, fique ciente disso.
Transcorridos alguns meses, ele reapareceu no
barraco do religioso, de novo à busca de conselhos. Já
a visita terminava e lembrou-se do que dissera na vez
anterior:
– Continuo esperando suas orações para que eu
escape da vida criminosa e dos desmandos que venho
praticando; senão, o senhor é que pagará com a própria
vida, dentro de breve tempo. Destruirei tudo que achar
e, de quebra, lhe executarei.
Muitos dias ficaram para trás até que o marginal
viesse de novo ao refúgio do santo homem, naquelas
montanhas retiradas. Trazia muito mais aflorados os
instintos perversos e, logo que, chegou veio
demonstrando a intenção de cumprir o que prometera.
À presença do importuno, o ermitão percebeu a
seriedade dos acontecimentos. Embriagado e violento, o
salteador manifestava agressividade nunca vista,
danificando os raros objetos que avistava na humilde
choça.
– Vim cobrar o compromisso – afirmou, veemente.
– Nada melhorou para mim desde quando passei aqui
da derradeira vez. Ao falar, avançou, em gesto de
intensa brutalidade, roubando ao monge qualquer
chance de fuga.

61
Visto submetido aos instintos do facínora, – o
ermitão argumentou: – Antes permita lhe propor um
acordo. Há pouco cavei minha sepultura nas imediações
da casa. Se juntos conseguirmos remover uma pedra
com que a fechei, pode me atirar lá dentro, cobrindo-
me de terra, e fica tudo resolvido. Porém se isso não
conseguir, me deixará em paz, livre de suas
perseguições.
Mais calmo, o agressor resolveu aceitar a proposta
do ermitão. Daí, ambos dirigiram-se ao lugar
estabelecido e iniciaram o esforço de remover a pedra.
Enquanto o salteador buscava, com todo empenho,
deslocá-la, o ermitão a todo custo resistia para conservá-
la na posição. Durante a peleja demoraram-se alguns
momentos, até que o marginal percebeu a atitude do
santo, e disse:
– Ah, como posso afastar a pedra se o senhor aplica
toda sua força para evitar que eu consiga fazê-lo? –
perguntou raivoso.
– Pois bem, eis o que venho observando desde que
lhe conheci –, retrucou o ermitão. – Enquanto rogo a Deus
pela sua conversão, o senhor em nada contribui,
mantendo-se preso ao vício, esquecido de exercitar
princípios de virtude. Há que agir no sentido inverso das
tendências ruins, contrapondo aos atos negativos os
gestos positivos.
Só nessa hora o salteador compreendeu a
orientação, e despertou do erro, transformando-se
numa pessoa nova e honesta.

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Ernesto Piancó
Às dez e quarenta e cinco desse dia quente de março e
eu aqui ao volante, numa quarta-feira de sol aberto, à
espera do espaço providencial de voltar ao circuito do
tráfego que sobe a rua Cel. Antônio Luiz, não achando
vaga, dado o fluxo intermitente, barulhento, de carros,
motos e bicicletas, indo rápidos aos seus destinos. Essa
artéria virou retrato do trânsito caótico citadino, nível a
que se chegou em matéria de sobrecarga, na era escura
do petróleo.
Naquilo de aguardar o momento certo de encaixar feito
objeto, no círculo em movimento das coisas que lotam as
ruas, lembrei de um personagem cratense, constante
no tempo de minha infância, Ernesto Piancó, parente
próximo de dona Chiquinha, educadora emérita de boa
parte dos meus estudos, na década de 60.
Seu Ernesto, homem robusto, atarrancado, gostava
de andar com uma pasta preta de couro, e de conversar
nas rodas de amigos, bem humorado, afeito na
característica de sempre repetir em voz forte, gutural, cheia,
a mesma expressão: – Ave Maria! - era figura de
permanente simpatia aquele cidadão.
Nisso continuo aguardando a hora exata de lançar o
carro no burburinho das horas na roleta mecânica,
lembrando dele, pessoa das tradicionais que marcaram
época, nesse lugar antes pacato. Os tempos marcham
céleres em qualquer cantoa. O progresso se oferece nas
possibilidades de multiplicar fragmentos do relógio, sem
que denote fácil quais os frutos imediatos que advêm
disso. As pessoas correm, em ritmo febril. Filas
constantes de uns perseguindo os outros, trilhas
urbanas cotidianas da civilização maquinal. Intimoratos
defensores dos direitos civis, audazes parceiros da pós-

63
modernidade, aqui perto eles passam feitos cometas, em
seus trombáticos cavalos velozes de cores reluzentes.
O sol ainda mais quente aquece a pele e o cabelo,
no brilho das máquinas trepidantes. O Crato nada deixa
a dever aos outros centros dagora. Os mototaxistas
vieram acrescentar melhores médias ao formigueiro
populacional. Transportam passageiros com menor
ocupação de solo, preços módicos e maior velocidade.
Compromissos. Negócios. Responsabilidades. Época de
sobreviver das inimagináveis profissões. Idades. Vocações.
Saber esperar, ânimo de poucos. Paciência, qualidade
rara das contingências.
Noutro momento, a cidade andava passos leves,
românticos, talvez. Havia ocasião de falar em bancos de
praça, parar nas esquinas e sentir o calor agradável das
manhãs, sem preocupações urgentes, prementes. Os tipos
populares marcavam a paisagem, naqueles dias dourados.
Quando parece surgir a chance na correia dentada do
carrossel, um pedestre corta meu barato e cruza ao meio
minha frente. Outras vezes de certeza virão, penso cá
comigo.
Os pensamentos retornam a seu Ernesto, sua pasta
preta, seu vozeirão. Pasta de tipo menor, com alças de
viajante, representante comercial. Ele vendia alguma
coisa; não lembro bem o que fosse. Agora, arriscaria dar
algum palpite: planos de saúde, seguros de vida, lotes
de terra, publicidade... (Quem sabe?).
Enfim consigo a prenda esperada, jogar o carro no
fluxo da onda, e vou junto, de novo, nessa roda viva em
que transformaram os detalhes do caos generalizado.
Sozinho, na quente manhã, ao som de suspiros, ergo a
voz com gosto e alívio, simulando na lembrança a fala
recorrente de Ernesto Piancó:
- Ave Maria! – entre a carcaça de luminosa dos outros
automóveis.

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O ferreiro de Barcelona
(tradição medieval)
As trevas da Inquisição cobriam a Europa de mártires
e de terror. A Idade Média anulava os anseios religiosos
da grande população, através de cruel intolerância,
solapando liberdades civis qual peste sulfurosa.
Durante o século XIII, cometeram-se ignomínias e
atrocidades, penas que iam do confisco dos bens a
execuções sumárias, torturas e outros castigos
inimagináveis.
No auge de tudo isso, na cidade espanhola de
Barcelona, existia um ferreiro afamado que ganhara a
preferência dos executores na confecção dos requintados
instrumentos adotados pela repressão impiedosa. Suas
algemas mereciam mais respeito face ao primoroso zelo
com que as manufaturava, sem existir quem pudesse
superá-lo na qualidade. Cumpria de sobra as encomendas
que viessem. De suas produções jamais alguém
conseguiria escapar. Um profissional e tanto o ferreiro
daquelas peças de trancar os perseguidos da oligarquia
que avassalara esse período trágico, no combate das idéias
renovadoras e escarmento de tantas vítimas.
Pois bem, esse homem se orgulhava disso: ninguém
se livraria das suas tenazes; ninguém, quando preso,
chegaria a fugir dos ferozes mecanismos.
O tempo, porém, justo e sobranceiro, guarda
surpresas, na ronda dos aparentes ditames da humana
monotonia.
Dias e noites passavam céleres, até que, durante uma
festa de insistentes brindes, perante vasta multidão, o
ferreiro, animado além do tanto nos assuntos do vinho,
excedeu-se em palavras, deixando vazar segredos
inconfessáveis, aos quais chegara por via do prestígio
adquirido junto às cúpulas do Santo Ofício. Na

65
carraspana, revelara segredos que lhe determinariam
o destino próximo.
Coisa pior não poderia lhe acontecer. Caía, desse
jeito, nas garras mortíferas do mesmo tribunal a quem
servira com esmero. A equipe dos doentes espirituais,
por meio de julgamento improvisado, cuidou da sua
condenação, ficando desfeita velha aliança.
Após o pesadelo das primeiras horas, ele despertou
desnudo, em solo úmido de infecta masmorra, colado a
pedras ásperas. Sentiu nos pulsos crivos frios de metais
enegrecidos. Entre dormido e acordado, buscou as
esperanças do manuseio profissional dos mecanismos
que o retinham de encontro à tosca parede da prisão.
Recobrou os sentidos para perceber (qual surpresa!),
que se via atravancado nos pulsos e tornozelos por dois
pares dos grilhões que produzira na véspera da
comemoração onde perdera o domínio e sentenciara-se
ao merecimento da justiça torpe que antes auxiliara
exercitar.
Em seguida e desencantado, rendeu-lhe a espera do
improvável, como ocorre perante situações assemelhadas,
quando a medida com que medimos, medir-nos-á também
a nós.

66
Fim e recomeço
(tradição oriental)
Dentre as inúmeras narrativas budistas que falam na
busca incessante empreendida pelos discípulos através
dos caminhos do mundo, em prol da suprema
realização do Ser, uma existe que descreve com nitidez
essa longa peregrinação de certo monge para encontrar
a Verdade.
Desde bem jovem pusera-se nas estradas da Índia
querendo encontrar Sidarta Gautama, o Buda. Com esse
propósito sublime, viajou anos seguidos, exposto às
aventuras improvisadas que a vida nômade oferece.
Numa radiosa manhã de luz intensa, viu-se ante as
águas caudalosas do rio Ganges disposto a vencê-lo, pois
entre os viajantes se dizia que nas terras da outra margem
o Santo reunia vários discípulos e ministrava o
Conhecimento, razão da procura exaustiva do incansável
andarilho.
Depois de demorada negociação com um dos
barqueiros temerosos de atravessar o rio perante a cheia
intensa, iniciou a peleja arriscada de cruzar as águas
pardacentas.
Já iam a meio passo do trajeto quando o religioso
observou, rumando na direção do barco, fardo que boiava
sobre as ondas revoltas do rio.
Mediante maior aproximação, percebeu surpreso
cadáver emborcado de um homem. Então, fez-se mais
atento e procurou identificar nos restos sem vida
possíveis traços de alguém conhecido, tendência
natural numa hora dessas.
Ao desemborcar o corpo, inquietou-o, contudo, ver
no rosto do morto a sua própria fisionomia. Era de mais
ninguém senão dele, portanto, o cadáver que, indiferente,
vagaroso, descia o leito em que navegavam!

67
Num instante, inesperada angústia sacudiu-lhe as
entranhas, isso de presenciar a si mesmo enrijecido,
inerme, abandonado à correnteza.
Ato contínuo, perdeu qualquer domínio sobre seus
modos e num berro monumental explodiu tétrica e sonora
gargalhada, o que empalideceu de susto o barqueiro à
sua volta, pressupondo haver o passageiro transposto as
fronteiras que separam a lucidez e o desvario.
A seguir, em gestos semelhantes, ambos deixaram
cair o corpo de encontro ao lastro da frágil embarcação,
abandonados àquela cena que vivenciavam, atitude em
que demorariam alguns longos minutos de torpor, sob o
céu aberto de poucas e distantes nuvens fumarentas.
Ao término daquela ocorrência patética, extático, o
monge vislumbrou no íntimo da alma que começava seu
encontro de libertação com o Buda, a completar, quase
por inteiro, logo nas próximas horas depois de pisar o
solo firme da margem oposta e se dirigir ao recanto
aonde o Mestre transmitia ensinos magnânimos.
Em definitivo, nesse dia efetivara o mais valioso
passo da jornada espiritual.

68
A fogueira
(tradição oral)
No reinado de Salomão, certo dia, ricos senhores, em
caravana, resolveram pernoitar junto às margens do
rio Jordão. Após bem instalados, no conforto de lauto
banquete regado nos melhores vinhos, intenso festim
que agitava as tendas vistosas, altas horas de noite fria
do inverno. Ali surgiu a idéia de propor aos serviçais
um desafio que valesse prenda importante em ouro vivo.
Quem suportasse permanecer toda a noite mergulhado
no meio da correnteza do rio, sob a baixa temperatura
que reinava, a valiosa fortuna receberia, oferta dos
principais ali reunidos.
A notícia rápido espalhou-se de umas às outras
tendas, contudo sem suscitar o interesse dos vassalos,
considerado risco demasiado a tarefa proposta, espécie
de sacrifício inútil, morte certa.
Um barqueiro pobre do lugar de longe observava o
alarido incomum daquela gente e fascinou-se perante a
oferta, aproximando-se do acampamento disposto a
vencer o perigo e merecer o prêmio da provocação.
De início, os desafiantes avaliaram tratasse de pura
bravata, conceito que modificaram quando o homem,
cumprindo a palavra, sumiu no escuro profundo das
águas.
Quase na mesma hora, do casebre onde vivia com o
filho, a mãe do rapaz soube desses acontecimentos e se
dirigiu ao local, ficando na margem do rio preocupada a
rezar pelo filho. Para suportar a frieza da noite, recolheu
galhos secos de madeira e fez uma fogueira, na qual se
aquecia enquanto esperava ansiosa nascer o Sol no
horizonte.
De manhã, desfigurado pelo esforço despendido, o
barqueiro saiu do rio pronto para receber o prêmio

69
segundo haviam fixado os nobres.
Porém surpresa imensa o aguardava. Os ricos
senhores reclamavam que a mãe do rapaz, ao acender a
fogueira próxima ao curso do rio, elevara a temperatura
das águas e com isso protegera o filho, aquecendo-o
também, facilitando o cumprimento da obrigação.
Dessa forma, estabeleceu-se a contenda e resolveram
pedir ao rei Salomão, soberano de reconhecida justiça,
para que dirimisse a dúvida criada e afirmasse de que
lado se achava a razão naquela causa.
Um julgamento público foi marcado. No dia, todos os
envolvidos almoçariam com o rei no palácio real. O
cozinheiro-mor, no entanto, recebeu ordens que
temperasse os alimentos e os deixasse apenas próximos
do fogo sem receberem o calor necessário para cozinhá-
los. Enquanto isso, o Rei Salomão e os convidados
aguardariam a chegada desses pratos à mesa.
Horas transcorridas, e nada. A impaciência parecia
querer tomar conta dos presentes, quando alguém mais
afoito resolveu indagar pela refeição.
Diante disso, o cozinheiro veio chamado a explicar a
longa demora, conquanto as panelas afastadas do fogo
jamais restariam prontas.
Em face da notícia trazida aos convivas, Salomão
formulou sua sentença, estabelecendo paralelo com a
situação do barqueiro no meio do rio, que jamais poderia
receber o calor de uma fogueira acesa na margem, e
determinou o imediato pagamento da quantia estipulada
como prêmio.

Nota: História ouvida de Gerardo Junior Cavalcante Lopes.

70
A fome do ouro
(mitologia grega)
Midas era um rei que adorava Dionísio, o deus do vinho,
nos mistérios de quem lhe instruíra o poeta Orfeu.
Devido a isso, achava-se portador de alguma sabedoria.
Num certo tempo, trazido por camponeses do reinado,
veio ao palácio Sileno, sátiro velho e bêbado, amigo do
seu deus de devoção.
Deveras impressionado com a inesperada visita,
Midas cuidou de oferecer largos festejos ao visitante, logo
transformado em objeto da admiração e do afeto de toda
a corte, que o cercava de mimos e banquetes diários.
Semanas seguidas e o rei se detinha a ouvir as longas
histórias que o estrangeiro passou a transmitir nos salões
admiráveis do reino.
Dentre essas narrativas, Sileno deu notícia de, em
algum lugar, existirem dois rios, num dos quais crescia
árvore cujos frutos envelheceriam quem os utilizasse. No
outro, do contrário, haveria, por sua vez, árvore de frutos
rejuvenecedores, história contada e recontada pelo
ancião.
Até que um dia o sátiro resolveu convidar Midas para
conhecer de perto Dionísio, ambos seguindo nesse
propósito caminhando pelas margens do rio Pactolo.
Chegados ao destino, o deus, feliz com o retorno do
amigo, permitiu a Midas que declinasse qual o seu
desejo maior e o satisfaria. De logo, o rei chegou a pensar
nos frutos daquela árvore da juventude da história que
ouvira do sátiro, porém escolheu mais riqueza, e pediu
o dom de transformar em ouro tudo aquilo em que
viesse a tocar.
Daí, o desejo concretizou-se, motivo de euforia do
soberano, que, satisfeito, viajou de volta aos seus
domínios cheio da calorosa empolgação nele despertada

71
pelo novo atributo.
Tocasse em pedras, gravetos, espigas de milho, o
que fosse, transformava-os em ouro puro. No palácio,
bem na chegada, tocou nos pilares, portões, móveis, e
tudo reluzia de causar espanto aos súditos
boquiabertos.
Contudo, quando sentado à mesa, na hora da
refeição, assustou-se por conta dos primeiros percalços
da habilidade adquirida, porquanto ao pegar e levar à
boca os alimentos, tão só mastigava peças ríspidas do
metal precioso em que se transformavam pelo mínimo
contato das suas mãos. Mesmo os dentes ofereciam igual
resultado aonde penetrassem.
Na verdade, por isso, uma aflição descomunal abalava
o reino e o ânimo de Midas quando, descuidoso, abraçou
o filho querido, virando-o de repente em estátua dourada.
No auge do desespero devido a tudo à função, o rei
buscou outra vez as posses do deus Dionísio, a qualquer
custo; reclamava cancelar o dom e reaver o estado de
pessoa comum que perdera.
Após observar tais resultados práticos da lição da
cobiça na vida do devoto, o deus acatou a postulação e
ensinou que ele procurasse o rio Pactolo e ali banhasse o
corpo durante longas horas. Em conseqüência, as águas
corriam rebrilhantes, recamando de pepitas de ouro
margens e barrancos.
Exausto, triste, Midas perfez o caminho de casa, a
lembrar saudoso da família e dos transtornos que
causara. Ao recolher-se nos cômodos reais, inobstante,
vejam o que sobreveio: Vivinho da silva, o filho, sorrindo,
correu-lhe ao encontro, proporcionando o mais extremoso
dos abraços ao velho pai realizado.

72
A fuga de Ló
Após comunicarem a Abraão e Sara o nascimento
vindouro de Isaac, semente da geração do povo judeu,
os três partiriam a caminho de Sodoma, onde se
avistariam com Ló, sobrinho de Abraão.
Antes, porém, ficaram um pouco mais a conversar
quanto aos detalhes da continuidade do que adiante
cumpririam. Disseram a Abraão que Sodoma e Gomorra
haviam atingido os limites da tolerância da Lei, face aos
piores desmandos praticados nas coisas pecaminosas.
Os viajantes seguiriam para comprovar, no local, a
triste realidade e deflagrariam imediatas e extremas
providências, levando-os a exterminar aquelas duas
cidades da face da Terra, hecatombe depois registrada
pelos povos antigos.
Ao saber do grave prenúncio, o patriarca argumentou
que a medida prejudicaria também os justos que
porventura existissem no seio dessa gente. Daí,
estabeleceram-se cogitações dos quantos virtuosos ali
merecessem clemência.
– Cinqüenta? Quarenta? Trinta? Vinte? Dez? –
saíram enumerando.
– Caso houvesse ao menos cinco justos, em respeito
a eles preservar-se-iam as cidades – disseram, enquanto
cuidavam de prosseguir na caminhada.
Dos três homens, dois apenas entraram em Sodoma.
Depararam-se com Ló à porta de sua casa, que, ao vê-
los, prostrou-se de rosto no chão e ofereceu-lhes
hospedagem. Queriam observar a cidade, recusando o
convite. Todavia, diante dos insistentes rogos de Ló,
aceitaram pernoitar na sua residência.
Quando os habitantes da cidade souberam da
chegada dos forasteiros, logo, em atitude hostil, cercaram

73
a casa onde ficaram. Reclamavam abusar do corpo
deles, tamanha promiscuidade dominava os homens
do lugar.
À menor menção de arrombar as portas, e querendo
neutralizar a horda, Ló ofereceu suas próprias filhas, com
isso querendo neutralizar a fúria dos invasores.
Inexistia nenhuma chance de conter a fúria animal
que armaram. Nisso, ao erguer as mãos, os dois hóspedes
detiveram o grupo dos agressores, de imediato tornados
cegos, que, tontos e desarvorados, abandonaram o local.
A retidão do modo de vida que levavam Ló e seus
familiares possibilitou a que, na madrugada do dia
seguinte, abandonassem a cidade no rumo da pequena
vila de Segor, aonde permaneceriam pouco tempo antes
de se instalarem nas montanhas.
A única instrução que receberam dos dois visitantes:
No decorrer da fuga que, em nenhuma hipótese, olhassem
para trás na direção dos escombros da cidade que
deixavam.
Então, com a partida do grupo, o Senhor despejou
dos céus as chamas de justiça e transformou as duas
cidades num turbilhão de pó, cinza e enxofre, encobrindo-
as sob tormentosas nuvens de fuligem.
Nem ao menos cinco justos habitavam aquelas
paragens, conclui-se.
Aflitos e desalinhados, silenciosos, arrastaram-se
apenas Ló e as duas filhas, largaram o passado nas
estradas. Enquanto que, em contraste com as primeiras
sombras da noite que desciam, apenas fria estátua de
sal resumia tudo o que restara da desobediência e
curiosidade da esposa e mãe, a refletir na imagem cinza
os derradeiros claros do sol posto no horizonte.

74
Fuga interrompida
(tradição oral)
Conta a lenda que um perverso salteador, depois de
haver praticado as ações menos aconselháveis em
período infeliz vivido aqui na Terra, viu-se segregado
às calandras do Purgatório a fim de receber o soldo
das coisas ruins que deixara no caminho.
Os danos da estrada do vício lhe retornavam
agressivos, por força das leis eternas, fazendo-o envolto
nas sombras da desesperança, cheias de noites e dias
tristes. Eram o remorso, as mágoas, ausência de cores,
emoções não resolvidas, nenhum trabalho ou realização
de qualquer sorte.
Ao lado, cercava-se de fantasmas pegajosos,
companhia de misérias morais em forma de gente.
Quisera frutos melhores, porém plantara sementes
adversas, em tudo, por tudo.
Sofria de causar dó, ritmo de relógios abandonados
numa outra dimensão de pura monotonia. Nada
adiantava esconder, pois essas possibilidades
reclamariam rumos de procurar aonde se dirigir. Não
havia, destarte, alternativas de outras chances, outros
rumos quais fossem.
Bom, creio deixar clara a estagnação daquele espírito
no universo, jogado às larvas do desamor que produzira
na sua vida pregressa.
Nesse quadro, certo dia, lembrou-se de uma criança
a quem mitigara a fome, nas margens de estrada deserta,
quando quase indiferente lhe atirara resto seco de
alimento. E na hora concentrou-se em sua imagem e
pediu, com todas as ganas que ainda lhe restavam, um
socorro dos céus de misericórdia. E foi valido.
Demorou pouco, daí viu descer, no meio da fumaça
escaldante, corda grossa a balançar na frente, onde se

75
pendurou ansioso e começou a subir no rumo dos altos
desconhecidos.
Qual vindo de sonho distante, o cabo a que se
agarrava nutria intenções de liberdade, e veio aos poucos
se alçando num espaço de brisa suave e claridade
penetrante.
Chegava a perceber paisagens venturosas, estendidas
no horizonte que divisavam as covas fundas dos seus
olhos.
Avançara metros, quilômetros, talvez, quando
resolveu olhar para baixo e calcular a distância percorrida.
Inferiores a ele, aflitos, excitados com a chance de
felicidade, novos postulantes também subiam. Vários,
vários dos habitantes das sombras acreditaram, como
ele, numa próxima saída.
Ao ver-se acompanhado, o antigo marginal retornou
aos sentimentos atrasados de egoísmo e exclusividade.
Pensou muito mais em si. Calculou o peso de toda aquela
gente na corda retesada.
– Fora! Fora! Intrusos, me deixem sozinho – gritava
empurrando com os pés quem se aproximasse. – A
salvação compete a mim que descobri a possibilidade.
Fui eu quem conseguiu de Deus o auxílio – esbravejava
revoltado.
Indiferentes aos protestos, apegavam-se à corda os
degredados em fuga. O salteador, aos pulos, aplicou todo
esforço para livrar -se dos seguidores, quando
descomunal estalo rompeu de vez a grossa corda,
mergulhando a multidão de volta ao fosso da profunda
escuridão.
Após rápido instante de frustração, bruma friorenta
envolveu-os no silêncio do resto de enigma, mistérios
íntimos daquelas almas à espera de luz.

76
A galinha e o pé de arruda
(anedota popular)
Duas dessas vizinhas briguentas, moradoras de bairro
simples da periferia, viviam os dramas a braços com
rotineiras impossibilidades e debulhavam, aqui e ali,
os mesmos achaques de cada dia. As casas, parede e
meia, dotadas de quintais quase comuns, tecidos nas
cercas baixas, de faxina.
Nem sempre, no entanto, mantinham-se paz nessa
fronteira, porquanto uma delas, mulher mais
empertigada, muitíssimo rigorosa nas questões
ocasionais, numa volta e noutra pisava o couro da
comadre do lado. Vale lembrar, outrossim, imperar
solidariedade nos momentos críticos, como ocorre nos
universos humildes dessa gente.
Em certa fase do convívio, em umas semanas de
relações aperreadas, elas duas se envolveram num imenso
qüiproquó, estremecido por conta das malinações de
galinha buliçosa, logo de quem! Da comadre menos brava.
Quando era de botar ovo ou procurar galo, a penosa
lá ia inventar de saltar a cerca do quintal, isso quase
todo dia, o dia todo. Contanto, nunca faltava motivo forte
para as discussões que a partir daí travaram sucessivas.
Mudava de território a galinha, de pronto se escutava
do outro lado da cerca imprecações agoniadas do vozeirão
da vizinha, dizendo-se prejudicada devido à
importunação. À outra, no seu modo pacato, sobrava tirar
por menos as ocorrências. Aquietava ouvidos, reações,
prendia a ave, a respiração, no enquanto dos ânimos aos
poucos se arrefecessem, de novo serenando a tradicional
relação.
Numa dessas ocasiões, porém, o debate azedou:
– A senhora veja que grande absurdo! – instigou
feroz a prejudicada. - Dessa vez, sua galinha exagerou

77
na dose. Não só pulou a cerca, como veio devorar meu
pé de arruda. Também seus bichos nada comem que
mereçam – acrescentou exaltada.
– Mas... Vejo não, comadre, nisso nenhum absurdo,
não - rebateu a outra, buscando amenizar o problema.
– Como não? É isso, sim, um verdadeiro absurdo!
– determinou a vizinha furiosa.
– Acho não, comadre. Absurdo, nesse caso, seria
seu pé de arruda pular a cerca e vir comer, do lado de
cá, minha galinha – ousou dizer a reclamada, querendo
restabelecer os revoltados ânimos.
A vizinha, surpresa com as palavras sensatas da
vizinha de paz, só baixou os olhos e ainda deixou vir
pequeno sorriso ao canto dos lábios, reconhecendo o
argumento da amiga. Dali em diante, elas duas
retornaram às boas e cuidaram de deixar por menos as
filosofias da vida.

78
O Gueto de Varsóvia
Desde o primeiro dia de setembro de 1939 até meados
de outubro de 1940, o exército alemão lutou para
consolidar a Polônia invadida, estopim da segunda
maior conflagração mundial. Cessados os combates
mais cruentos, iniciava-se a perseguição aos judeus
da Capital, que totalizavam em torno de 400.000, logo
confinados pelas tropas de elite numa área de duas
milhas de comprimento por uma de largura, bairro
denominado Gueto de Varsóvia.
Esse exíguo território submeteu-se a incertas e
esporádicas incursões dos nazistas, que pretendiam de
tal modo reduzir a população do gueto, transportando-a
aos campos de exter mínio e de concentração.
Independente das agressões temporárias, registravam-
se em média 300 baixas diárias, face às péssimas
condições de higiene e habitação do lugar.
De 22 de julho a 03 de outubro de 1942, o
gover nador -geral da ocupação, Hans Frank,
responsabilizou-se pela deportação de 310.322 judeus,
na maioria para o campo de Treblinka.
Ao perceber inexistirem perspectivas de libertação,
em janeiro do ano seguinte, 1943, os moradores do gueto
resolveram conduzir o primeiro levante popular, quando
mil judeus, em ato de única contingência, mataram 50
soldados alemães que arrebanhavam novos prisioneiros
no bairro.
Restava, nesse período, população em torno de 60 a
70 mil judeus, dizem os relatórios oficiais apresentados
durante o julgamento dos nazistas, verificado depois da
guerra, na cidade de Nuremberg.
No dia 19 de abril daquele ano, sob as ordens do
general Stroop, chegaram as tropas alemães munidas

79
de tanques, artilharia pesada, bombas de gás venenoso,
lança-chamas e dinamitadores, prontas a varrer por
completo o que restava de vida naquela área.
Perdidos, no entanto, os sobreviventes decidiram
resistir até o fim, a qualquer custo. Reagiram tornando
as galerias subterrâneas e os esgotos do gueto em praça
fortificada, escrevendo com bravura inigualável um dos
maiores e mais encarniçados capítulos de heroísmo
coletivo que oferece a historia das tragédias humanas.
Da superfície, os alemães presenciavam estarrecidos
e frios as derradeiras resistências judias. Contrários ao
opressor, em vez de se entregarem às câmaras de gás,
escolhiam o sacrifício das chamas cruéis. Quase nada
possuíam de armamentos. Montaram estratégias
suicidas, valentes, furiosas. O que poderia ser operação
rápida, perdurou por quatros semanas de longos e
sucessivos atos de coragem nos subterrâneos poloneses.
Os números dos acontecimentos no Levante de
Varsóvia apresentaram saldo equivalente a sete mil judeus
assassinados e 50 mil transferidos aos campos de
concentração, quando vencida a resistência do povo
intrépido.

80
A história do homem
Dentre os contos zen um existe que fala do Rei Zemir,
que viveu na Pérsia antiga. Ele chegara ao trono na
flor da juventude e nutria esforço inaudito de conhecer
as razões da vida humana.
Reuniu, certa vez, sábios das mais diversas
procedências e resolveu custear a pesquisa sobre os
propósitos últimos da história e transmitir aos súditos
as conclusões desse estudo, o que saberia ser relevante
para fixar os padrões da sociedade que comandava.
Escolhidos na função, pesquisadores renomados
isolaram-se em província afastada durante vinte anos, a
dedicar suas inteligências às possíveis e imagináveis
notícias procedentes de todas as bibliotecas do Oriente,
até formarem a primeira edição daquilo que seria o escopo
da consciência individual, trabalho exemplar de erudição
e engenho. No fim, levaram o resultado ao palácio do
Rei Zemir.
Transportaram em lombo de animais quinhentos
volumes elaborados nas duas décadas de exames
minuciosos.
O monarca abriu espaço nas suas obrigações e
recebeu os sábios, em dia especial, cheio de pompa e
movimentações, porquanto, coincidência ou não, a data
assinalava os quarenta anos do rei, motivo de maior
alegria pelo resultado apresentado.
Mas qual o quê! Maior não poderia ter sido sua
decepção. Achou por demais sofisticado o trabalho
trazido, cheio de rebuscamento e pouco objetivo no
sentido daquilo que propusera. Refugou desde logo toda
a vasta literatura, aceitando, contudo, prosseguissem
com a tarefa, reapresentando-a noutra ocasião.

81
Passados outros vinte anos envoltos no exílio da
missão, belo dia retornam os pesquisadores, dessa vez
munidos apenas do que fosse o resumo da humana
aventura terrestre.
O rei mostrava feições já maceradas pelas sucessivas
preocupações e dedicação que lhe impunha a
responsabilidade sobre aquele povo. Recebia, no entanto,
alegre os emissários, dizendo que seus olhos guardavam
pouca energia de ler, e aguardava a síntese da história
de há tanto esperada.
Nova contrariedade o invadiria, pois os escribas ainda
traziam ao rei carga de três camelos prenhes de nutridas
páginas, uma vez mais recusadas pelo soberano.
Também saturados em anos, pela terceira vez eles se
recolheram às montanhas distantes, querendo de
qualquer modo efetivar o tal resumo dos resumos, a fim
de satisfazer Zemir.
Na próxima viagem, dez anos depois, um único
elefante transportava o que sobrara de toda a obra, motivo
da nova recusa do monarca, quase cego e alquebrado.
E cinco anos mais tarde, os poucos sábios que
resistiam ao esforço decidiram cumprir derradeira
entrevista perante o Rei Zemir, ora recolhido ao leito,
em grau de adiantada enfermidade.
Nesse dia, o principal responsável pela missão dirigiu-
se ao soberano e falou próximo aos seus ouvidos:
– Alteza, enfim conseguimos abreviar em poucas
palavras a história do homem que encomendaste. Veja
só, ele nasce, sofre e, ao término, morre. – Ao escutar
essas palavras, a sorrir, o rei exalou seu derradeiro
suspiro.

82
Insistência
(conto zen)
Era o tempo das chuvas. Fazia alguns meses que os
dois noviços viajavam através das planuras exóticas
da Índia. Desse jeito, cumpriam à risca os votos de
piedade admitidos perante o Mestre. Para sobreviver,
haveriam de esmolar no exercício da firme devoção.
Conversar entre si e com os outros, quase nada; tão só
austeridades, o imprescindível, nas horas de
caminhada; leis da religião.
Uma manhã, quando chegavam às margens de um
rio caudaloso, observaram bela jovem querendo cruzar
as águas tormentosas que desciam das montanhas,
todavia sem coragem suficiente de realizar o propósito.
Perante aquilo, atencioso, um dos noviços se dispôs
a prestar-lhe auxílio, carregando-a nos braços até a outra
margem. De imediato, com isso mereceu cuidadosa
reprimenda do parceiro, porquanto os preceitos
restringiam aos monges maior aproximação do corpo
feminino, analisava contrito e zeloso.
Vista a momentânea necessidade da moça, no
entanto, o religioso insistira em ser útil, dispondo-se a
levá-la consigo, fazendo-o apenas de maneira prudente,
nos moldes das ações solidárias.
Vencida a correnteza, eles dois se despediram da
jovem agradecida e seguiram a piedosa jornada de antes.
Horas depois daquela cena à beira d’água e o outro
noviço, de calado que se mostrara, carrancudo retornou
ao assunto de aproximar o corpo do das mulheres.
– Agistes de jeito equivocado – foi dizendo. – Um
devoto cumpridor dos deveres jamais caberia no papel
mundano que desempenhaste. Sabes bem que se torna
impuro quem trabalha em desacordo com os cânones –
externava indócil a indignação de horas atrás.

83
Absorto nas meditações de ofício, ouvia o devoto
silencioso a censura, querendo, contudo, tirar por
menos, e logo se justificava o tanto que conseguia. Disse
haver laborado sem quaisquer intenções malévolas,
além do que se protegera ao máximo das idéias
pecaminosas. Nada de ruim acontecera consigo,
portanto, no que pesasse os riscos previstos.
Volta e meia, o outro repisava a conversa:
– As oportunidades se apresentam no caminho a
fim de podermos distinguir o que manda e o que não
manda a Lei. Fiques, pois, sabendo que nunca deverias
fazer como fizestes.
No que considerassem as reações cautelosas do
acusado, repetiam-se admoestações...
Quase ao pôr -do-sol, de saco cheio com a
impertinência do companheiro da estrada, o noviço
resolveu cortar pela raiz a história, que ia longe demais.
– Na minha opinião, a jovem que transportei no rio
saiu de minha cabeça naquela hora em que desceu dos
meus braços – asseverou veemente. – De tua parte,
porém, deu-se o contrário, e ainda agora vens com ela
no pensamento. A prosseguir na insistência, vou
deduzir o quanto desejarias tê-la estreitado em teu
próprio corpo, creio eu – concluindo de todo a lição.

84
Jesus na sinagoga
A existência de Jesus nas terras palestinas demonstra,
através de passos objetivos, a finalidade a que viera
sob planejamento superior, bem definido, pautado nos
livros preservados pela tradição de Israel.
Em um episódio acontecido na cidade de Nazaré da
Galiléia, após ser batizado por João Batista nas águas do
rio Jordão e as tentações dos quarenta dias no deserto,
certa feita, Jesus revelou aos judeus, no templo, a sua
missão salvadora.
Era um dia de sábado. Retornava à cidade em que
cumprira sua juventude. Dirigiu-se à sinagoga, aonde
pessoas compareciam para adorar a Deus e ouvir as
escrituras. Segundo o costume, alguém se levantaria
para ler. Assim fez, e passaram-lhe às mãos o livro do
profeta Isaías.
O trecho que lhe coube dizer afirma: O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque me ungiu, para anunciar
a Boa Nova aos pobres. Enviou-me a proclamar a
libertação aos cativos, e, aos cegos, o recobrar a vista;
a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um
ano de graça do Senhor (Isaías, 61, 1-2).
Enrolou de volta o pergaminho sagrado, devolveu-
o e sentou no seu lugar.
Observa São Lucas o olhar dos presentes nele
fixados, ouvindo-o acrescentar que, mesmo naquela
hora, se cumpria o que acabavam de ouvir.
Tomados de admiração, muitos demonstraram
emoções benfazejas ante as palavras que ouviam de sua
boca. Lembraram, então, da sua origem de filho de José,
anterior habitante daquela localidade.
Enquanto Jesus, por sua vez, buscava reconhecer
as dificuldades em admitirem nele um profeta na terra

85
onde vivera, avaliava que nutriam indagações do porquê
de não praticar iguais e espantosos fenômenos havidos
na cidade de Cafarnaum, sabidos todos eles de autoria
de Jesus.
Nas suas palavras, Jesus considerou a destinação
de cada coisa na ordem divina, citando dois momentos
na vida do profeta Elias, conduzido à casa de uma viúva
em Serepta de Sidônia, invés de noutra direção, e na vida
do profeta Eliseu, a curar o leproso Naamã, e não outro
que fosse, justificando o merecimento de receber o
quinhão justo, correspondente às maravilhas verificadas.
As afirmativas causaram constrangimento na
multidão. Tomados de furor, todos arremeteram-se
contra Jesus, levando-o de roldão para fora da cidade,
ao cimo do monte, sobre o qual se achava edificada,
dispostos a jogá-lo de um precipício.
O Divino Mestre deixou-se conduzir pela turba
insana, só até quando quis, momento determinado.
“Mas, passando por meio deles, Jesus seguiu o seu
caminho”, conclui o evangelista.

86
O judeu errante
Depois de submetido ao juízo do Sinédrio e passar pelas
mãos de Pôncio Pilatos, Jesus foi entregue aos soldados
romanos. Tiraram-lhe as vestes, envolveram-no com
um manto púrpura, açoitaram-no, puseram-lhe na
cabeça uma coroa de espinhos e fizeram com que
transportasse nos ombros, por jornada lastimosa, a
cruz em que, no alto do Gólgota, seria martirizado.
Conta lenda européia do século XVII, que o Mestre
Divino cumpria o seu itinerário de dor através de vielas,
becos e caminhos, diante da ruidosa multidão dos
palestinos, quando, exausto, tombou ante o peso do
infamante madeiro que carregava.
Na ocasião, um homem destacou-se da multidão e
chegou próximo dele, aplicou-lhe chicotada violenta e,
desdenhoso, vociferou:
– Levanta! Rápido! Vamos logo com isso!
E o Justo, erguendo os olhos, identificou quem
dissera tais palavras, olhando-o nos olhos, e
sentenciou:
– Vou, mas tu irás caminhar esperando por mim
até que eu volte à Terra.
Naquele instante nascia a lenda de Ashaverus, o
homem que recusou a Deus, presença constante na
literatura universal através de autores vários, dentre eles
Schiller, Goethe, Chamiso, Shelley, Borges e Eugenio Sue,
o qual no livro O Judeu Errante mais contribuiu para a
disseminação desse mito pelo restante do mundo. No
Brasil, Machado de Assis escreveu um conto narrando
as aventuras do personagem através de várias civilizações
e épocas, sempre na espera da libertação, submetido às
condições de imortalidade previstas no decreto
angustiante. Ainda que afronte perigos fatais, cumpre-os

87
ileso, face ao destino estabelecido naquele momento da
Via Crucis.
Diz a tradição que após o incidente, Ashaverus
continuou anônimo a percorrer cidades e caminhos,
sem nunca parar além de três dias no mesmo lugar ou
perder o ânimo de prosseguir. Nào lhe cabia mais o
direito de morrer antes do Juízo Final, na segunda
vinda de Jesus.
Nesse período, teria retornado a Jerusalém uma só
vez, para observar as suas ruínas, com Jesus previra,
ocasião da Segunda Diáspora. Desde aquela época vaga
descalço, sem bolsa, ignorando a origem dos recursos
que o alimentam. Caso receba mais do que precisa para
viver, toma a iniciativa de passar aos necessitados as
sobras.
Para o escritor José Alarcón, esse anônimo (lendário)
acha-se encarnado e simbolizado, segundo algumas
interpretações, por todos aqueles povos do mundo que são
obrigados a dispersar-se, fugitivos e errantes, como
rebanhos acossados pelo fogo, por todas as terras
conhecidas, sem pouso certo, sem reino nem país que
possam dizer que seja seu.
Eis a lenda do judeu errante, manifesta por diferentes
culturas.

88
A jumenta de Balaão
Na madrugada bem cedo, ele arreou o animal. Via-se
pressionado pelos emissários do rei dos moabitas,
Balaque, filho de Sefor, que lhe reconhecera a força
profética para amaldiçoar os israelitas espalhados,
vagando sem rumo entre as nações do deserto.
Claro que Balaão nunca desejara agir daquele modo,
porquanto estimava o povo de Israel, sabendo-o
abençoado por Deus. Contudo também desejava
permanecer vivo nessa história.
Há pouco, de noite, escutara na consciência que
seguisse, no entanto para falar, sim, as palavras que Deus
mandasse.
Quando a caminho acompanhado de dois servos
surge-lhes na frente um anjo do Senhor armado de
reluzente espada, só visto pela jumenta, que por isso
arrastava seu dono noutra direção, acuada que ficara
ante a inesperada visagem. De nada serviu mudar de
lugar, pois o anjo correu e, outra vez, interceptou-lhe a
montaria, que agora forçava as pernas de Balaão de
encontro aos arbustos, quando prosseguia bloqueada
pela imagem que avistava.
Sem compreender aquilo, aborrecido, insistente, o
profeta espancava e constrangia as ancas do pobre
animal, querendo-o, a qualquer custo, de volta ao trecho
da jornada.
Outra alternativa não restou; a jumenta dobrou-se
exausta sob peso do homem furioso, que mais ainda lhe
vergastava, a ponto de ela chegar a falar:
– Que é que ti fiz, Balaão, para merecer tanto
castigo?
– Perdeste o respeito comigo – revidou surpreso o
cavaleiro, após aplicar sucessivas camadas de cipó na

89
jumenta. - Possuísse aqui instrumento de corte e te
mataria agora mesmo.
– Não sou eu tua montaria há quanto tempo? Que
outras desfeitas te fiz até hoje? – seguiu questionando
o animal exausto.
Nesse momento, Balaão, envergonhado, de cara no
chão, notou a visão do anjo de espada em punho a lhe
dizer:
– Por três vezes marcou esse bicho, enquanto eu
bloqueio sua estrada para que não contraries a minha
vontade. Houvesses continuado e serias eliminado por
desobediência, em vez de a jumenta por ti ameaçada e
que salvou tua vida recusando passar contra mim.
Ainda querendo retor nar, em sinal de
arrependimento, porém, sob a determinação do anjo
Balaão prosseguiu a viagem. Cumpriria uma missão bem
contrária à que lhe impunha o rei:
– Vai com esses homens, mas falarás o que eu
disser.Tal modo aconteceu naqueles primórdios da
história de Israel, de acordo com o livro bíblico de Números
(22, 20-35).

90
Katie King
Por vezes ouvimos dizer que após deixar este mundo
até hoje ninguém voltou para trazer notícias do outro
lado da vida, argumento esse utilizado na intenção de
demonstrar pouco caso com relação à existência de
outra dimensão além desta aonde mourejamos na
esperança da imortalidade, de que falam os mestres e
profetas.
A ciência, no entanto, dispõe de elementos suficientes
para cobrir essa lacuna, através de acontecimentos
registrados, por exemplo, na Inglaterra da segunda
metade do século XIX, os quais a seguir descreveremos.
De 1870 a 1873, o cientista sir William Crookes,
nascido em Londres a 17 de junho de 1832, promoveu
em laboratório uma investigação detalhada com
experiências de materialização do espírito denominado
Katie King, utilizando a sensitiva (médium de efeitos
físicos) Florence Cook, todas fixadas em quarenta e quatro
fotografias batidas com raios infravermelhos.
Por meio de substância denominada ectoplasma
cedida pela médium, o espírito pôde reconstituir sua
fisionomia e se manifestar neste plano material, agindo
pela própria vontade, inclusive a tocar instrumentos
musicais naquela ocasião. Um outro cientista, na
Alemanha, Friedrich Zollner, também chegou a efetivar
prática semelhante.
Quando, depois, perseguido pela comunidade
científica inglesa, negou-se Crookes reeditar seus artigos
sobre o assunto e evitou deixar que circulassem as
fotografias feitas do espírito, hoje depositadas em
arquivo ao dispor dos que pretendem conhecer mais a
propósito desse assunto.

91
Com aquilo, no ano de 1904, o físico inglês admitiu
a liquidação definitiva do materialismo e confessou
crença absoluta na sobrevivência dos que passam ao
Além e de lá nos observam, conclusão apreendida nas
citadas experiências. No livro intitulado Fatos Espíritas,
relatou as fases de seus estudos, mostrando, sem
margem de dúvidas, o poder extraordinário dos espíritos
para recriar uma forma que antes possuíram na Terra,
utilizando a matéria física em forma de ectoplasma.
Florence Cook caia em transe antes das
materializações, ficando sob as influências do processo
mediúnico na medida em que o espírito adquiria o domínio
da situação, até se mostrar por inteiro, com o decorrer
do tempo das várias experimentações, numa média de
duas sessões semanais.
Seu rosto a princípio dava a impressão de ser oco por
trás. Mais tarde preencheu-se, os crepes ectoplásmicos se
tornaram menos abundantes e, um ano depois, ela já
conseguia caminhar do lado de fora da cabine.
Portanto, no decorrer de três anos, Katie King, jovem
filha de um corsário jamaicano do século XVIII, loura,
alta, de pele e olhos claros, materializava-se próxima
da médium Florence Cook, jovem de quinze anos ao
início dos trabalhos, pele morena, estatura mediana,
olhos e cabelos castanhos, sob o testemunho presencial
dos freqüentadores do estúdio, inclusive provenientes
de outros países.
Dentre as inigualáveis contribuições de William
Crookes no campo da Física e da Química consta a
descoberta do quarto estado da matéria, o estado radiante.

92
A lenda de Omulu
(tradição afro-brasileira)
A deusa mais guerreira do Daomé, Nanã Buruquê,
apaixonou-se por Oxalá, de quem pretendia conquistar
o reino. Ele, por sua vez, não queria envolvimento com
outro orixá, pois amava Iemanjá, sua mulher. Nanã,
sabendo disso, fez vinho de palma, embriagou-o e
seduziu-o, engravidando por via de conseqüência.
O filho de Nanã Buruquê e Oxalá, gerado na força da
desobediência, recebeu o nome de Omulu e nasceu
vitimado por feridas deformantes espalhadas pelo corpo,
motivo suficiente a que a mãe o deixasse abandonado na
praia, querendo que o mar lhe tirasse a vida. Avistado
por enorme caranguejo, o bebê chegou a perder pedaços
da sua carne, ferido que foi pelas pinças do agressivo
animal.
Quando veio a maré alta que começou a banhar o
recém-nascido, Iemanjá ouviu-lhe o choro e veio em sua
busca, deparando-se com criança indefesa, sagrando e
quase morta. Tomada de profunda compaixão, pegou-a
nos braços, salvando-a de afogamento iminente.
Ao observar a redondeza, Iemanjá localizou gruta
deserta que nela acomodou Omulu. Improvisou berço
rústico de palhas de bananeira, instalando-o e passando
a tratá-lo qual legítimo filho, protegendo-o, alimentando-
o com pipoca sem sal nem gordura e aliviando-lhe as
dores dos ferimentos.
Desde então, sempre que os afazeres de seu reinado
permitiam, vinha à praia e cuidava do pequeno,
amamentando-o e banhando-o nas águas do mar.
Enquanto sozinho, Omulu percorria as matas e
aproximava-se dos bichos seus habitantes, dentre eles
as cobras, com quem estreitou amizade.

93
Numa das visitas que recebeu da Rainha do Mar,
Omulu apresentou-se cercado de répteis, dentre esses
uma perigosa cobra coral, a sua preferida. Ao admirar o
poder que ele tinha de dominar as serpentes, Iemanjá
observou também que a criança crescera e transformara-
se em jovem belo, sadio e disposto.
Já homem feito, Omulu decidiu conhecer o mundo.
Juntou alguns poucos pertences, bornal, bastão e cabaça
de água, acompanhou-se de dois cachorros e partiu com
destino ignorado, vagando pela face da Terra.
Viajava na condição de esmolé, mendigando o
sustento e dedicando-se à cura dos enfermos e ao combate
das epidemias que castigavam as aldeias. Quando
alimentado, mesmo assim continuava na cata de
alimentos, a fim de repartir com os irmãos necessitados,
convertendo a jornada em serviço de desapego e caridade.
As funções de Omulu tornaram-se missão de trazer
conforto aos desvalidos que encontrasse. Isso, porém,
provocou reações desencontradas nas pessoas, que,
egoístas, algumas ocasiões recusavam-lhe auxílio. Por
causa disso, contrafeito, o orixá resolveu embrenhar-
se nas matas.
Nesse tempo, conheceu Ossanha, a deusa
responsável pela vegetação. Dela aprendeu o jeito de
trabalhar o poder das plantas e desenvolveu o dom da
cura. Hoje, rico dos conhecimentos da Natureza, segue
vagando, ministrando os benefícios da saúde a quem
merece.
Na cultura católica, para uns, o santo representa São
Roque, e para outros, São Lázaro.

94
O lenhador e a morte
(conto popular)
Quando menino, ouvi algumas vezes essa história, que
permaneceu bom tempo escondida, zanzando pelas
dobras escondidas da memória. Falava de um lenhador
vivente em montanha afastada, onde teimoso penava a
sobreviver com esposa e filhos em meio aos desafios de
uma existência paupérrima, não tão longe de uma
pequena vila. Com saúde frágil, o homem mourejava o
sustento colhendo madeira para vender nas
proximidades.
Certo dia, quando cumpria seu ritual diário de
trabalho, sentiu-se por demais desanimado face ao esforço
e aos poucos resultados, dobrando-se sob o feixe de lenha
que transportava; daí resolveu protestar da rotina:
– Chega! Quanta dificuldade tenho cruzado! Cadê
a morte que pouco anda por essas bandas, sem aparecer
quando preciso? – exclamou contrafeito.
No desabafo, procurou expressar toda impaciência
perante a vida que levava. Abusado, pôs o fardo na terra,
coçou a cabeça, enxugou o suor do rosto e tornou a
falar:
– Dona Morte, onde andará agora, velha amiga?
Bem que poderias olhar por mim – insistente lamentou,
repercutindo grito sentido que se multiplicou feito eco
nas quebradas sombrias do lugar.
Ajeitou-se como pôde, sentado no barranco da
estrada, olhos marejados de dor. Nos pensamentos, viu
passar o filme da sua caminhada desde criança. Nunca
conhecera grandes alegrias. Nascera de família pobre,
padecera nas mãos de patrões impiedosos e, um dia,
quando jovem, face desaforo cometido em defesa da
honra, viera refugiar -se nas lonjuras daquelas
brenhas.

95
Mas era época de velhice e as portas pareciam-lhe
mais fechadas ainda.
Morrer, solução ruim. Sabia disso como ninguém –
pensou cabisbaixo. Os filhos desamparados. A mulher
abandonada. A casinha sem dono. E findar... Que coisa
sem graça.
– Venha aqui, dona Morte! – suas palavras
revoltadas retornavam aos lábios, contradizendo seus
sentimentos de humildade.
Ali mesmo notou algo mudar nos ares. Correu vento
esquisito, arrepiando nas árvores a ramagem, formigando
o espinhaço do lenhador. Na estrada, ouviu-se assobio
fino, carregado de mal-agouro. Logo depois, figura
embuçada num capuz cinzento veio se aproximando
devagar, recurvada sob cabo comprido de rústica
segadeira. A Morte arrastava os pés faceiros, a levantar
pó e pedra no seu cadenciado passo sinistro.
Chegou bem perto do homem e disse pesarosa: - Aqui
estou, meu amigo. Quero cumprir sem demora aquilo que
reclamar, pois lhe ouvi o chamado.
Medo descomunal quis tomar conta do lenhador.
Nisso, ligeiro, ele tratou de responder: - Sim, agora há
pouco chamei a senhora, pois percebi que passava na
mata aqui perto. É que quero pedir seu favor de me
ajudar a pôr no ombro esse graúdo feixe de lenha para
eu vender lá embaixo na vila – e logo, assistido pela
morte, realizou a tarefa que precisava.

96
O lobo-rei que
morreu de amor
Li certa vez, na revista Seleções, a história de um lobo-
rei (espécie rara existente na América do Norte), de tipo
graúdo, muito esquivo e feroz, que principiou a dizimar
os rebanhos de determinada região dos Estados Unidos.
Dada a sagacidade do animal, o esforço de vencê-lo
tornara-se obsessivo, porém inútil. Nesse clima de
repetidas ameaças e destruição, assustados, os
rancheiros da redondeza cuidaram de montar intenso
plano de mobilização, a fim de liquidá-lo a qualquer
custo.
Muitas armadilhas ficaram espalhadas em pontos
estratégicos; todo tipo de mecanismo, possível e
imaginável, artimanhas diversas foram utilizadas, sem
produzir, no entanto, qualquer resultado efetivo.
Juntos os esquemas, perseguidores seguiam à risca
cada rastro da fera, enquanto seus estragos prosseguiam
pelas fazendas, gerando sérios prejuízos à atividade
agropastoril daquela área. Em muitos momentos, eles
chegaram perto de alcançá-lo, dias a fio, ainda sem obter
nada de concreto.
Após meses de investidas, os caçadores descobriram,
numa montanha distante, a caverna que servia de refúgio
ao lobo e sua companheira, local que lhes protegia da
implacável perseguição dos vaqueiros.
Numa noite escura, enquanto o parceiro saíra à cata
do alimento, a fêmea permaneceu na furna, aguardando
seu retorno. Vieram os homens, que agiram com rapidez,
aprisionando-a. Com isso a fera acrescentou seus ataques
ao gado das fazendas, aumentando o terror que imperava.
Quando aprisionada a fêmea, o lobo terminou à mercê
da armadilha, em busca daquela que lhe dava a razão de
viver.

97
Debalde os caçadores vigiaram a sua volta.
Com o passar do tempo, diante da prisão da
companheira, o lobo alterou seu modo de agir,
modificando pouco a pouco as cautelas infalíveis,
rotinas de proteção que lhe havia preservado até então,
e numa noite de lua, quando se aproximou em demasia
da jaula onde haviam posto a fêmea para servir de isca,
terminou por se entregar de frente aos perseguidores,
que o abateram com relativa facilidade.
Guardei muitos anos essa história, pois ela me
despertou na busca das razões para tantos
comportamentos da vida silvestre em que animais
manifestam quase senso ético superior, prenhes de
emoções raras, enquanto humanos ditos racionais,
calejados de soberbos instintos, por vezes, no cotidiano,
agem a baixos níveis, destituídos de menor civilidade,
o que envergonharia qualquer bicho bruto que pudesse
os avaliar.

98
A luz da Ásia
No século VI a.C., os pequenos reinados da Índia viviam
em constante luta. Nesse período, na Ásia, havia uma
onda desenvolvimentista nas ciências, artes e idéias.
Por volta do ano 523 a.C., no reino de Kapilavastu,
pequeno país de guerreiros da etnia dos Sákias (onde
hoje existe o Nepal), nasceu Sidarta Gautama, depois
conhecido por Sakyamuni, o Sábio dos Sákias. Seus
pais se chamavam rei Suddhodana e rainha Maya.
Numa viagem que procediam com destino ao
palácio de verão, no bosque Lumbini, margens de um
rio, a rainha sentiu as dores do parto e, sobre folhas
de lótus, trouxe à luz o menino Sidarta. De acordo
com a tradição, nesse instante, o tempo inundou-se de
perfume, choveram pétalas de flores do céu e ouviram-
se cânticos celestiais de louvor e beleza.
Sete dias depois, morreu a rainha Maya, deixando
ao marido a tarefa de educar o filho.
Algum tempo mais e o soberano, agora casado com
uma irmã de Maya, quis saber o que reservava a seu
filho o destino. Então, buscou nas encostas do Himalaia
um sábio que vaticinou para o príncipe tornar -se
poderoso monarca, comandante de muitos exércitos,
ou viria a ser um religioso sublime.
Suddhodana indignou-se em face da segunda
possibilidade. Com isso, cuidou de cercar o filho das
pompas da corte, nas benesses do reinado. Faria dele o
seu sucessor a todo custo. Jamais permitiria que
conhecesse os males do mundo, as doenças, a velhice,
a pobreza, os desgostos e as contradições, coisas que
viessem a estimular nele sentimentos religiosos.
Para onde viajasse, emissários do reino, à frente,
disfarçariam todas as evidências, impedindo ao máximo

99
que soubesse das fraquezas existentes nos lugares onde
andasse.
Na idade adulta, fez-se-lhe a tradicional escolha de
uma esposa. Ao encontrar Yasodhara, sua bela prima,
Sidarta a ela recebeu em casamento.
Certa vez, contudo, a segurança deixou de cumprir o
papel de isolá-lo da realidade e ele, driblando o zelo do
pai, solitário, fugiria durante um passeio noturno, a fim
de encarar as tristezas existentes na Terra.
O impacto causou no jovem reação extrema. Viu de
perto o sofrimento em que se resume a vida carnal até o
caminho para a morte. Também encontrou um monge-
mendigo, que lhe indicou a alternativa de buscar a
libertação interior e exterior através da austeridade
religiosa.
Sidarta, pai de um menino de nome Rahula, nesse
período, resolveu abandonar a corte e sair pelo mundo.
Despediu-se da esposa, levou consigo apenas um serviçal
e, à meia-noite, a cavalo, cruzou os portões do palácio
rumo ao desconhecido.
Muito distante dali, o príncipe trocou suas roupas
com as do servo, deixou em sua mão a montaria que
cavalgava, mandou-o de volta e seguiu mendigando por
estradas e vilas.
Só longos anos transcorridos e Sidarta voltaria a rever
seus familiares, isso quando já encontrara sentido na
trajetória a que se propusera, de compreender a Verdade
suprema.
Primeiro, quis conhecer os ensinos dos mestres
daquela época. Juntou-se a cinco outros andarilhos e
saiu a peregrinar. Realizou intensos jejuns e sacrifícios,
sob o costume dos povos orientais.
No entanto, após três anos de práticas
mortificadoras, viu-se à beira da penúria, magro e
debilitado. Nesse momento de agonia, concluiu que a

100
resposta achava-se no meio e não nos extremos, razão
que o levou a abandonar de vez experiências de martírio
do corpo, espantando com isso os companheiros, que
o viram como alguém desprovido de resistência física.
Uma donzela alimentou Sidarta e ajudou-lhe a
restabelecer a saúde.
Refeito, o príncipe sentou-se à sombra de um Fícus
religiosus, árvore frondosa do bosque, lugar adiante
conhecido por Buda Gaya (local de iluminação), ali
resolvendo seguir nas suas meditações.
Saíra de casa há seis anos. Aos 35 anos, numa
madrugada de lua cheia, ao brilho da estrela Matutina,
Sidarta Gautama completaria seu processo auto-
revelador, ao chegar na cessação absoluta do sofrimento
pela concentração mental, o completo domínio do
pensamento.
Nessa hora, percebeu em si mesmo as condições
suficientes de realizar o que tanto tempo almejara, diante
da verdadeira descoberta. Ainda tentado por Mara, o rei
dos demônios, acompanhado de dançarinas seminuas,
Sidarta Gautama resistiu firme no controle da própria
vontade, e chegou à realização do Ser Interior.

101
O mandarim
Na página do livro que lia, Teodoro deu de cara com a
improvável perspectiva de, ao tocar uma campainha
mostrada pelo Tentador, virar herdeiro universal dos
cabedais infindáveis de Ti-Chin-Fu, o Mandarim mais
rico que a fábula e a História contam.
– Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins
da Mongólia – acrescenta Eça de Queiroz, no conto
que leva o nome de O Mandarim. – Será então um
cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode
sonhar a ambição de um avaro.
Nesse trabalho, o escritor narra vivência fictícia de
funcionário que se depara com trecho de obra antiga onde
via a oferta de ganhar aquela fortuna sob a única
condição, em pacto perverso, acionar o dispositivo e
eliminar, bem longe, na China, nobre ancião que brincava
de lançar papagaio em campos verdes de relva.
Sem hesitar, o mero sonhador aciona aquele
instrumento letal:
– Foi talvez uma ilusão – segue o texto; – mas
pareceu-me que um sino, de boca tão vasta como o
mesmo céu, badalava na escuridão, através do Universo.
– E nos braços frios tem o seu papagaio de papel,
que parece tão morto como ele – desfecha o autor
português.
No seu torpor, Teodoro ainda notou o sujeito saindo
da sala, carregando um guarda-chuva debaixo do braço.
Dentro de breve tempo, veja só no que se deu.
Com o passar de um mês, quem antes sofria diante
das míseras exigências da mediocridade financeira, pôs-
se a juntar milhares de contos de réis rápido tornados
milhões, da noite ao dia, na outra vivência, pondo-se a
cogitar real a visão em que se metera, naquela chance

103
ofertada pelo Vadio. Arriscara ao menos para saber da
verossimilhança do que agora lhe fervia de remorsos
cruéis face ao critério vigoroso da consciência.
Depois disso, choveu na horta do ex-amanauense, a
viver mundo de repetidos sonhos. Disparara o botão da
pequena caixa e na remota Catai dera fim aos dias do
velhinho brincalhão em suas campinas solitárias. Gesto
simples, caldo infeliz; outrossim, tornara-se o dono
absoluto de toda sua fortuna.
Antes disso avaliara prováveis conseqüências de
coisas sonhadas e não via porque admiti-las transpostas
ao mundo físico. Uns admitem a possibilidade; outros,
não; e era do segundo grupo, ainda que nele a vida fosse
mais difícil, nas contas, nas repartições, na cidade. A
sorte em poucas esquinas sorri. Estudara os detalhes
do conflito, as condições morais da resposta que dera
na dimensão impossível.
Contudo, mais adiante viajou aos países longínquos
do Oriente. Chegou na China, buscou comprovações e o
mandarim na verdade existira, para seu desconsolo.
Até que um dia também volta aos braços da morte e
abandona os bens que reunira na desventurada atitude.
Para desfechar o conto, resume numa frase seu genial
autor: Só sabe bom o pão que dia-a-dia ganham as nossas
mãos: nunca mates o Mandarim!

104
As mãos do destino
(conto zen)
No Japão antigo, destacado guerreiro conhecido pelo
nome de Nobunaga viu-se, certa vez, numa grave
dificuldade em que outra alternativa não lhe sobrava
além de enfrentar horda de muitos e valentes inimigos,
prontos ao combate dez vezes mais soldados do que os
que ele dispunha. Cercado em terreno complicado,
cabia-lhe tão só esboçar defesa heróica, sujeita a
pouquíssimo êxito.
Nobunaga guardava consigo a certeza de que chegaria
à vitória naquela cruenta batalha, opinião essa descartada
de todo pela grande maioria dos seus oficiais e soldados,
ainda que ele houvesse buscado lhes elevar o ânimo.
Que fez, então? Na noite anterior ao confronto, reuniu
os principais da tropa em volta de um pequeno santuário
que consigo sempre transportava, e juntos fizeram
contrita oração. Depois do instante fervoroso, voltou-se
aos aliados e disse:
– Trago dentro de mim que os deuses nos têm na
sua predileção. Mas sei que os senhores não comungam
do meu sentimento, pois se avaliam em desvantagem
numérica com relação ao adversário – escutavam,
silenciosos, os homens, envoltos no temor dos vindouros
acontecimentos.
– Quero, pois, nessa hora, lhes mostrar, de modo
claro, que somos, na verdade, assistidos pelo Poder
supremo – dizia isso enquanto reluzia na palma de uma
das mãos pequena moeda. – Consultarei, nesta moeda, a
voz do destino que nos aguarda. Se ao jogá-la mostrar a
coroa, eis o palpite de que amanhã sairemos derrotados.
Se, por sua vez, o resultado vier a ser cara, a vitória irá
nos sorrir do grande combate. Neste lance, falará a sorte
que nos espera ao nascer do dia.

105
Atônitos com a inesperada proposta, os homens
fixaram os olhos naquela moeda que subiu nos ares e
rolou riscando demorada trilha no solo, indo pousar no
foco trêmulo da lâmpada que clareava o interior da
barraca do comando.
– Cara! – em uníssono, repetiram os mais próximos.
Depois disso, ânimo fervoroso renovou a alma de todos
os guerreiros, que redobraram esforços na intensa refrega
do amanhecer.
Antes do meio-dia, a estratégia posta em prática
galgara bons frutos. Dotados de coragem, lutaram e
dominaram os bravos da outra tropa, levando-os a bater
em retirada, máxime a superioridade que desfrutavam.
Terminada a incrível batalha, o segundo comandante,
cheio de orgulho, exclamou à aproximação de
Nobunaga:
– Ninguém, ninguém seria capaz de desviar as mãos
do destino!
– Não, jamais! – respondeu o comandante, enquanto
discreto chamava com reserva o oficial e lhe apresentava
a moeda, trabalhada de um jeito que possuía igual face
duplicada nos seus dois lados.

106
Nasrudin
Há um personagem da cultura árabe que reflete o lado
espirituoso da vida, admirado pela forma non-sense
com que encara diferentes situações desagradáveis, sem,
contudo, jamais perder o bom humor, representando
aspectos de sabedoria reverenciados pelo Sufismo, traço
místico da religião islâmica.
Conhecido por Mullá Nasrudin, esse lendário mestre
imortaliza-se através de anedotas transmitidas entre as
lendas orientais. Surgiu do nada, qual nossos Pedro
Malasartes e Camões, das histórias populares do Brasil.
Preenche o espaço típico reservado ao coringa do baralho,
representado na verve universal da imprevisibilidade,
da ausência de compromisso à rigidez de caráter,
saltando obstáculos com destreza extrema, em nome
do bem-estar individual, dando-se ao luxo de pouco se
apegar a dogmas intransponíveis ou princípios
inquestionáveis.
Dentre os relatos preservados nessa tradição,
protagonizados pelo irreverente Nasrudin, alguns
sintetizam as suas mais diversas faces: a submissão à
esposa e às autoridades, a flexão dos valores dados como
certos pelos cânones sociais, o instinto de contestação
aos hábitos seculares e a brejeirice prudente dos simples.
A propósito, certa vez, numa madrugada, quando
retornava da farra com os amigos, via-se ele abaixado
sob a luz de lampião, nas proximidades de casa,
apalpando o chão à cata de alguma coisa perdida. Daí,
alguém conhecido quis saber o que lhe detinha naquilo.
- Procuro a chave de minha casa – respondeu, levando
o outro a auxiliar na tarefa.
Minutos depois, o parceiro insistiu: - Nasrudin, onde
foi mesmo que caiu essa chave.

107
- Caiu bem ali atrás – retrucou. - Mas a claridade
nesse ponto da rua oferece luminosidade para gente
encontrar ela é aqui neste canto.
Enquanto, noutra ocasião, dono de espelunca de
beira de estrada, o herói recebeu a caravana real que
empreendia longa viagem. Nas reservas da despensa,
havia algumas dúzias de ovos e um resto de farinha,
alimentos que pôde oferecer aos hóspedes.
No momento de pagar, o rei questionou o preço
astronômico da conta cobrada.
– Caros esses ovos, Nasrudin. Eles devem andar
escassos nesta região – quis saber o monarca.
– Não são os ovos que andam escassos, não, Alteza.
São as visitas reais que quase nunca aparecem nessas
bandas.
E para completar tais exemplos, ao receber de um
amigo a notícia de que seu burro havia desaparecido,
Nasrudin logo se saiu a dizer:
– Ainda bem que eu não me achava montado nele,
porque se não teria ido junto.
Com isso, percebe-se a identificação das atitudes
paradoxais do célebre mestre sufi em relação às de
pessoas de outros lugares, nossas conhecidas, ricas em
repentes e chistes, paisagens humanas eternizadas no
folclore das mais ricas culturas.
A quem interessar, as Edições Dervish, do Rio de
Janeiro RJ, mantêm no seu catálogo o livro Histórias de
Nasrudin, classificado no índice de contos (literatura
turca), e comenta: – Ninguém sabe ao certo quem foi
ele, onde viveu e nem quando – se é que realmente
existiu!

108
Natureza mais íntima
Conta uma parábola do sábio hindu Ramakrishna que,
certa vez, uma tigresa prenhe realizava caçada em busca
de alimento e corria atrás de rebanho de ovelhas,
quando, em pleno esforço de sobreviver, o animal
acabou por dar cria. Nisso, ao parir, misturado com a
perseguição desarvorada, não resistiu e, ao saltar, ali
mesmo morreu.
Deixou vivo, entretanto, o filhote que transportava
no bucho, de imediato cercado pelos ovinos. Na condição
dos elementos necessários, a cria escapou, chegando a
se integrar ao rebanho, aonde persistiu como dele
originária.
Logo o felino viria a copiar os hábitos daqueles com
quem viveria, fruto da observação e das carências do
sustento. Nutria-se de vegetais, balia feito borrego novo
face ao perigo e dormia no estábulo, em harmonia com
os parceiros amistosos, sem desconfiar de nada diferente
que fosse.
Largo tempo passado, numa outra perseguição
empreendida por tigre adulto que localizou os ovinos,
descobriu a fera no meio do rebanho aquele tigre-
carneiro, que se viu notado pelo predador feroz.
Admirado com o que via, o tigre resolveu reverter o
processo da acomodação do parente no ambiente em
que se envolvera.
Perseguiu o filhote, prendeu-o pela nuca, cercando-
o de cuidados extremos, e buscou mostrar-lhe a condição
de carnívoro, levando-o em seguida às margens de um
lago tranqüilo, mostrando no espelho das águas os traços
da parecença entre eles dois.
– Veja, sua forma é em tudo semelhante à minha!
Somos selvagens. Por isso és um tigre igual a mim. Coma

109
carne invés de palha!
Desconfiado, todavia ciente dos argumentos
indicados, o tigre novo, criado pelos carneiros, resolveu
abandonar o rebanho acolhedor e se embrenhar nas
matas, seguindo o tigre veterano que o ensinava.
A princípio, encontrou imensa dificuldade para gostar
da carne que o outro lhe apresentava, das primeiras vezes
fazendo-o comer quase à força. Superados os bloqueios
iniciais, daí sentiu forte prazer nas refeições de sangue,
só naquela hora descobrindo com certeza a categoria
original.
Mais algum tempo adiante, e adaptou-se de pleno
gozo aos valores da sua raça, cumprindo formalidades
adormecidas no instinto, qual se nunca antes houvesse
agido de modos variados.
Então, refeito do susto, o tigre velho considerou:
– Agora você compreende que é idêntico a mim?
Venha, siga-me nos caminhos da floresta.

Ao contar essa história, quis o místico indiano


demonstrar o valor da orientação correta para quem
quer descobrir o Eu verdadeiro, em nada parecido com o
que imaginam os que vivem sob o domínio do ego,
estação só transitória rumo às coisas definitivas.

110
No caminho de Damasco
Em um discurso, Estevão quisera demonstrar ao
Sinédrio as desproporções inferiores do Templo de
Jerusalém com relação às leis eternas da Verdade
reveladas por Jesus, atitude essa que geraria em si
hostilidade extrema dos sacerdotes presentes, com isso
causando a sua perda, transformado-o no primeiro
mártir das perseguições aos cristãos, verificadas após
a partida do Divino Mestre.
Os ânimos exacerbados da turba arrastaram-no para
fora dos muros da cidade, diante dos olhos e do
consentimento de Saulo, jovem e promissora liderança
do Judaísmo daquela época, sendo assim apedrejado até
morrer.
No rastro dos trágicos acontecimentos, seguiram-se
violentas ações para ultrajar a Igreja de Jerusalém,
efetuando prisões e forçando a dispersão dos devotos no
rumo de outras localidades (Judéia e Samaria), tornadas
com isso palco natural da Palavra e de fenômenos de
cura nunca antes presenciados.
Não satisfeito com as perversidades que ocasionava
em Jerusalém, Saulo resolveu dirigir-se a Damasco, onde
esperava algemar mulheres e homens vinculados à nova
lei e trazê-los consigo. Nas cercanias da cidade síria, à
frente de um pelotão de soldados, de repente viu-se caído
ao solo, envolvido por intensa luz, vinda do céu.
Segundo o capítulo 9, do livro bíblico de Atos dos
Apóstolos, nessa hora, tomado de espanto inominável,
percebeu uma voz que dizia:
– Saulo, Saulo, por que me persegues?
Face àquilo, apenas lhe restou indagar:
– Quem és tu, Senhor?

111
E a voz respondeu: – Eu sou Jesus, a quem tu
persegues. Ergue-te, entra na cidade e te dirão o que
tens a fazer.
Os demais acompanhantes de Saulo, intrigados e
silenciosos, também ouviram a voz, mas nada viram
da luminosa aparição. Ele, cego dos olhos e pegado
pela mão, foi conduzido à cidade por um dos seus
auxiliares, aonde permaneceria, durante três dias e três
noites, numa casa da rua Direita, pertencente ao cristão
de nome Judas.
Nesse meio tempo, o Senhor manifestou-se a
Ananias ordenando que fosse ver Saulo e ministrasse
a cura. Contrafeito devido aos antecedentes e propósitos
do carrasco dos cristãos, por obediência Ananias
rendeu-se às ordens recebidas, conduziu-se ao lugar
determinado e afirmou a Saulo:
– Meu irmão, foi o Senhor que me enviou, esse Jesus
que te apareceu no caminho em que vinhas, para
recobrares a vista e ficares cheio do Espírito Santo. (Atos
dos Apóstolos 9, 17).
Naquela ocasião, algo semelhante a escamas
desgrudou dos olhos de Saulo, que voltou a enxergar,
ergueu-se e recebeu o batismo. Depois recuperou as
energias, ficou algum tempo mais com os discípulos
em Damasco e, desde então, cumpriria a missão de
Apóstolo da Cristandade, tornando-se o principal
responsável pela expansão do Evangelho por todo o
mundo ocidental através da Grécia e de Roma.

112
A onça e o menino
(conto popular)
As imediações do lugar entraram em clima de medo
depois que a notícia da onça espalhou-se de sítio em
sítio. As ovelhas passaram a correr constante risco
devido à ação da pintada, estragando rebanhos e
causando medo e prejuízos sem conta.
Na casinha afastada do centro da povoação, vivia
casal com dois filhos, sendo um dos quais teimoso de
dar desgosto. Nunca aceitava de bom grado as
determinações que recebia. Contrariava os pais, e ainda
por cima fazendo pouco de suas palavras. À mãe e aos
demais, sempre imaginava um jeito de passar a perna;
não admitia, na pouca idade, que outros regulassem o
seu destino.
Assim, nesse tempo de grande risco, as coisas muito
se complicaram. Nas ausências do pai, quando este seguia
para o trabalho do roçado, a mãe ficava aflita; vivia grande
drama com a desobediência do filho.
– João, não se afaste de casa, pois a onça sente
cheiro de menino - sempre repetia a mesma cantilena.
– João, João, cuidado na vida, fica em casa, que a
fera não alisa, menino!
No que pesem as recomendações, o filho se
distanciava e, ainda por cima, respondia fazendo
mangofa. Além disso, inventava:
– Mãe, mãe, corre que a onça vai me pegar. Corre
logo, mãe. Corre! - dizia de brinquedo.
A mulher, então, corria esbaforida para defender o
pirralho, de roçadeira em punho. O filho caía numa
gargalhada triunfante, a desconcerto da pobre cabocla,
cena que se repetiu vezes seguidas, em semanas
diferentes.

113
Lá um dia, quando as coisas andavam mais calmas
sem notícia de onça, a atitude do filho deixou de trazer
intranqüilidade, pois avaliavam tudo em boa paz na
redondeza. Até os gritos do menino não mais aborreciam
a mãe, gesto que virara diversão entre eles dois.
– Corre, mãe! Corre, mãe! – gritava o menino. –
Corre, corre! – permanecendo a mãe, feliz em suas
obrigações domésticas, rindo de satisfação com a
traquinagem da criança.
Mas qual o quê; dessa vez era onça de verdade que
se apresentava faminta, não se importando em nada com
os berros aflitos que o menino emitia. Horas depois, quase
no fim daquela tarde, voltando da vazante, os homens
avistaram, no meio de uma touceira de capim ressequido,
perto da parede do açude maior, restos da roupa rasgada
do João teimoso ainda ensopados na baba do felino
predador.

114
Padre João Sem Cuidado
(conto popular)
Certa vez, quando visitava província distante do seu reino,
o soberano percebeu que as armas do padre João Sem
Cuidado assinalavam a maioria dos bens daquela região.
Notou também que esse senhor detinha tantas posses e
não levantava sequer uma palha para dar conta de suas
propriedades, fazendo-se, por isso, justo merecedor do
nome de Sem Cuidado sob o qual todos lhe conheciam.
Após investigar a situação, achando-a deficiente
irregular, chamou aquele religioso para prestar maiores
esclarecimentos.
– O senhor possui esses troços e não cuida do seu
merecimento. Isso que dizem de vossa senhoria
corresponde mesmo à realidade? – quis saber o monarca.
– Alteza, meu senhor, esta é a mais pura verdade –
respondeu o sacerdote. – Minhas propriedades cresceram
e continuam a crescer independente dos meus cuidados.
Entrego sempre a Deus as preocupações pelo trabalho,
pois a Ele sirvo e nem confio.
Ao soberano pareceu que houvesse alguma coisa errada
naquilo. Decidiu, portanto, impor ao súdito uma série de
questões as quais não respondidas o levariam, sem
apelação, à forca, dentro da autoridade rigorosa do reino.
– Quero saber de sua capacidade - impôs o soberano.
– Dentro de um mês, o senhor deverá vir ao palácio me
dizer: Quantos balaios medem a montanha mais alta do
reino, qual o peso da Lua no céu, onde fica o centro da
Terra e, por fim, o que estarei pensando na ocasião do
interrogatório.
O padre João ficou triste com as palavras que ouviu
desconsolado. Recolheu-se em casa durante vários dias,
examinando as charadas a resolver. Nisso, um dos seus
irmãos, Felipe Doido, que perdera o juízo de pensar nas

115
coisas da natureza, reagiu àquelas exigências reais e pediu
a Sem Cuidado que mandasse ele no seu lugar, para
responder aos enigmas propostos.
No dia em que vencia o prazo estabelecido, Felipe
paramentou-se todo, indo à presença da solene corte.
Cumpridas formalidades iniciais, o rei indagou: - Quanto
mede a montanha mais alta do meu reino? Daí Felipe Doido
respondeu: - Não chega a medir um balaio dos meus.
Sem poder prever o tamanho do balaio de que cogitava,
nenhuma alternativa sobrou ao rei senão aceitar a resposta
do súdito. – Qual o peso da Lua? – quis logo saber, no
entanto.
– Sete arrobas e meia – respondeu Felipe. – Caso V.
Alteza duvide, pague a despesa de trazer a Lua aqui e pesar.
Eu pagarei o tanto de levá-la de volta. O rei abismado,
também aceitou a correção da segunda resposta.
– Então, agora diga onde fica o centro da Terra.
Felipe tirou do bolso um compasso, com ele traçando
no chão um círculo exato e apontou o centro da figura
dizendo: Estar aqui o centro da Terra. O rei mais uma
vez aceitou a resposta, demonstrando contrariedade pelo
sucesso do interrogado.
– Por fim, quero que o senhor diga o que penso neste
exato momento – argüiu ressabiado o monarca, acreditando
impossível qualquer resposta.
– V. Alteza neste momento pensa que está falando
com padre João Sem Cuidado, quando, devera, fala é
com Felipe Doido, um irmão dele.
Vista a sagacidade com que o vassalo se manifestara,
o rei baixou a cabeça, admitindo a derradeira resposta.
Em seguida, felicitou o padre João Sem Cuidado, que
chegava solitário. Como justiça, a partir desse dia, ele e
sua família se transformaram em fiéis e queridos servidores
da casa real.
Nota: História ouvida de Manoel Ferreira da Silva.

116
Parábola hindu
Conta Swâmi Abhedânanda, no livro O Evangelho de
Ramakrishna, a história de um pai aflito em vista das
agruras de perder um filho muito amado, quando
pessoa virtuosa veio no seu socorro e recomendou-lhe
não desesperar, pois, caso conseguisse o veneno de uma
cobra dissolvido na água de chuva caída dentro dos
ossos de um crânio humano sob a influência de
determinada constelação, sem dúvida alguma traria o
filho de volta à vida.
O homem avaliou as quase impossíveis
circunstâncias de obter o tônico milagroso, mas se
manteve fiel no seu propósito e objetivou-se em reuni-
las a todo custo.
Saiu pelo mundo na busca do remédio, de ânimo
sempre fixo no Deus poderoso, ciente dos obstáculos que
toparia pela frente.
Naquele dia, no calendário, subiria no firmamento a
constelação recomendada. Achava-se sob árvore
frondosa, onde resolveu permanecer alguns instantes em
repouso das canseiras da longa viagem. Avaliava, no mar
dos pensamentos, o quanto ansiava merecer a graça
divina de reanimar seu filho querido. Então, na clareira
do bosque, avistou caveira abandonada. E vejam o que
aconteceu.
Nessa hora, os céus do nascente cobriram-se de
nuvens escuras. Pouco demorou até caírem as primeiras
gotas de chuva torrencial, o que encheu de alegria o pai
abnegado. As águas escorreram na folhagem e logo se
acumularam também no interior do crânio.
Orações envolviam com força as raras preocupações
do peregrino, de olhos concentrados na obtenção do
medicamento. Realizara as condições da água de chuva

117
recolhida no interior do crânio sob a constelação
estabelecida. Trazia no coração a firme certeza de que,
em breve, completaria todos os pressupostos e curaria o
filho sob a orientação do santo homem.
Nisso, pulou sobre o crânio, procedente de arbustos
em volta, um caçote arisco. Demorou pouco mais e
surgiu rápida serpente no encalço do infeliz animal,
rasgando-lhe a pele e lançando dentro do crânio as
gotas necessárias de veneno, o que totalizava a receita
abençoada.
Cheio de gratidão, o ansioso pai exclamou: Senhor,
por Tua Graça todas as coisas impossíveis são possíveis.
Agora sei que a vida de meu filho será salva, diz o autor.
Essa história contada por Ramakrishna exemplifica
o valor da convicção verdadeira naquilo que se pretende,
estabelecido vínculo efetivo com o Poder Superior e sua
magnitude, a propiciar as realizações dos ideais de cada
alma. A Ele nada é impossível!

118
A partilha
(tradição oral)
Episódios históricos do Rei Salomão atravessam os
séculos, trazidos pela tradição popular, acrescentando
mais detalhes à legenda guardada nos livros bíblicos
quanto aos seus julgamentos exemplares. Fruto das
gerações, repassado na força viva da oralidade, eis mais
um episódio que reflete a força do mito desse monarca.
No reino de Israel, dois filhos haviam herdado a
fortuna de seu rico pai. O vultoso patrimônio provocava
grave dissensão familiar. Por mais que buscassem aclamar
os ânimos em conflito, parecia inexistir forma ideal de
realizarem a divisão do espólio dos muitos bens herdados,
fazendas, rebanhos, jóias, escravos, esposas, etc.
Andaram de juiz em juiz, nos considerandos das
sentenças, e nada de formarem senso comum naquilo que
lhes tocavam, a necessária conciliação dos interesses, no
mundo velho das coisas perecíveis.
Esse processo de partilha arrastava-se há tempos,
feito cavalo lerdo, a cobro das dificuldades que ninguém
sabia dominar com exatidão.
Até que, no sentido de resolver com justiça, recorreram
ao tino inesgotável de Salomão, a fim de achar a resposta
ideal para o impasse.
Marcaram audiência e, reverentes, apresentaram-
se no palácio.
O rei, atencioso, ouviu nas mínimas particularidades
a questão, perante sua corte reunida. Os aspectos
particulares de cada bem da herança vieram calculados,
no monte das posses numerosas.
A seguir, chamados os dois, o soberano se dirigiu a
um deles e determinou o seguinte procedimento:
– Em face do que seu pai lhes deixou, divida, meio
a meio, à justa partilha dos haveres. Fixe, pois, em dois

119
tantos todos legados ora reunidos, isto sob o critério
do maior equilíbrio que puder considerar.
O moço examinou com extremo zelo a riqueza que o
pai deixara. Somou peça por peça, ouro, pedras preciosas,
lagares, semoventes e imóveis, numa minuciosa operação
de conta que demorou longos minutos, para depois
repartir em proporções equivalentes, sob o olhar
cuidadoso do rei e de seus súditos.
Por fim, estabelecidos os dois quinhões equilibrados,
resumo das escrituras e dos cabedais de sucessão, o
soberano se dirigiu ao outro dos irmãos e disse:
– Agora, entre essas duas partes que seu irmão
dividiu os bens, escolha a que melhor lhe convier. E a
parte que restar pertencerá ao que determinou as duas
parcelas. Um dividiu e o outro escolhe.
Naquela hora, as pessoas presentes contemplaram
admiradas a lição de justiça eqüitativa para solução
imediata do litígio, quando, satisfeitos, os dois se
despediram da audiência perfeita.

120
Passar com a verdade
Existem histórias que perpetuam, através dos séculos,
registros da vida de Jesus os quais passam de geração
a geração, suprindo lacunas bíblicas e enriquecendo
as pessoas de detalhes instrutivos quanto ao Mestre
divino e sua caminhada entre os humanos.
Uma dessas histórias sem origem definida descreve
o episódio da fuga para o Egito, ocasião do morticínio
das crianças praticado a mando de Herodes, capítulo
abominável daqueles tempos.
Ao notarem a estrela que surgira no céu do Oriente,
os três reis magos haviam se dirigido a Jerusalém à
procura do Rei dos Judeus. Com suas estadas na
capital da província, segundo Mateus, Herodes
perturbou-se e toda Jerusalém com ele. Por isso,
chamou os magos e pediu que, quando voltassem de
Belém, lhe trouxessem as notícias de onde nascera
Jesus, para que ele também pudesse adorá-lo.
Após as palavras do rei, puseram-se a caminho. E a
estrela, que tinha visto no Oriente, ia adiante deles, até
que, chegando ao lugar onde estava o menino, parou. Ao
ver a estrela sentiram grande alegria, e entrando na
casa viram o menino com Maria, sua mãe. Prostraram-
se, adoraram-no e, abrindo os cofres, ofereceram-lhe
presentes: ouro, incenso e mirra (Mateus, 2, 9-11).
Avisados em sonho, no entanto, os magos deixaram
de atender ao soberano.
José, por sua vez, depois de receber avisos de um
anjo, pegou Maria e o Menino, e com eles fugiu na direção
do Egito.
Nesse meio tempo, vendo-se enganado pelos magos,
Herodes mandou executar todas crianças de dois anos
abaixo, nascidas em Belém e suas proximidades.

121
No transcurso da longa viagem, ainda em solo
palestino, a Família Sagrada se aproximava de uma
barreira policial. Mediante a revista de todos viajantes,
aflita, Maria ouviu em si a voz do anjo lhe dizia:
– Passe com a verdade!
Quando abordados pelos soldados romanos, que
indagaram do conteúdo do cesto na lua-da-sela da
montaria, ela respondeu:
– Vai aqui uma criança.
Ao ouvir a resposta, os guardas se entreolharam e
riram, enquanto um deles considerava:
– Caso fosse mesmo uma criança o que levasse no
cesto jamais teria coragem de revelar isso neste
momento.
E deixaram que eles continuassem a jornada sem
qualquer interrupção.

122
O patinho feio
Um belo conto infantil recebe este título. Seu autor,
Hans Christian Andersen, escritor dinamarquês de rara
imaginação, que escreveu lindas páginas da literatura
universal, nasceu a 02 de abril de 1805, na cidade de
Odense. Mesmo que se achando venturoso e
qualificasse a própria vida como um belo conto marcado
pela sorte e pelo êxito, viveu pobre e, por mais que
procurasse um amor ideal, morreu sem descobrir sua
doce amada.
O conto denominado O patinho feio narra a história
de um cisne de raça formosa que o acaso destinou a
ninhada de pato comum, cujo ovo matriz não abriu no
tempo dos outros, aborrecendo a mãe que o chocou e
teve de esperar pelo filhote tardão, a quem cuidou como
dos demais. Porém esse patinho era feioso de causar
medo, vista a diferença de hábitos e tipo, junto dos
outros irmãos do ninho.
Tal destino marcar-lhe-ia a caminhada, pois todos,
no brejo, riam dos percalços que ele acarretava e de como
pouco se identificava com os parentes, naquele meio.
A história se desenrola sob as situações de desajuste
em que o pato exótico protagoniza repetidas vezes. Em
tudo evidenciava características diversas, ocasionando
constrangimento aos pais, que se examinavam à procura
de compreender o que acontecia em volta daquilo.
Assim viveu, espécime fora de órbita, naquele
habitat, longos e longos meses, enquanto o bicho
crescia e mostrava plumagem vistosa e porte avantajado
em relação aos parentes.
Qual pato-ovelha negra, acabou por se afastar do
grupo, ficando a sós pelos cantos, inventando um jeito
de sumir, dar um tempo por um largo período, velejando

123
através de lugares distantes.
Em face de inverno rigoroso que o arrastou para mais
longe ainda, numa noite escura, tempestuosa,
desapareceria do bando.
Isolado, triste, certo dia, maravilhado, assistiu pousar
para descanso sobre o lago aonde vivia, gansos maiores,
de família vistosa, que até então ignorava existir,
ocorrência esta que lhe alterou os planos todos. Nesse
ponto, chegaram dois belos gansos reais, de plumagem
diferente dos patos comuns.
– Mas que viu ele na superfície transparente?,
indaga Andersen: – Viu a sua própria imagem por baixo
dele: não era já uma ave deselegante, de um cinzento-
escuro, feio repelente; ele próprio era um cisne!
Em seguida, acrescenta que não faz mal se ter nascido
numa capoeira quando se sai de um ovo de cisne.
Com isso, o patinho feio enxergava outro padrão de
realidade, atualizando seus conceitos, revendo seus
sonhos pessoais de apenas imaginar a felicidade aos
moldes antigos, das épocas em que se vira discriminado
por ser diferente dos demais.
Agora se sentia feliz por todos os seus sofrimentos e
por todos os seus desgostos; agora, pela primeira vez, vivia
uma felicidade plena contemplando a magnificência que o
rodeava e os grandes cisnes que nadavam à sua volta e o
acariciavam com os seus bicos.
Portas douradas abriram um outro futuro,
reaquecendo nele sonhos melhores, além do que, resultou
num conto de final feliz e apreciado pelas crianças do
mundo inteiro.

124
Pitias e Damon
Conta uma história da tradição européia, atribuída a
Santo Agostinho, que Pitias, jovem prisioneiro romano
condenado à morte, enquanto aguardava o
cumprimento da pena quis muito rever seus pais, que
moravam distante e dos quais era arrimo, sem, contudo,
receber do tirano Dionísio o crédito de confiança
imprescindível a empreender tão longa jornada.
Ao saber do desejo extremo do amigo, outro jovem,
de nome Damon, buscou o palácio e ofereceu-se para
substitui-lo na ausência, propondo que, caso Pitias não
retornasse na hora estabelecida, prestar-se-ia ele mesmo
para ficar no seu lugar no momento derradeiro da
execução pública, cuja data se previa poucos dias adiante.
O imperador considerou a oferta, dando o amparo
suficiente a que Pitias viajasse à remota província, onde,
saudosos e debilitados, viviam seus genitores. Em face
disto, pôs nas grades o voluntário Damon.
O tempo transcorreu célere, pouco demorando até o
prazo fixado da condenação.
Nesse dia, o imperador e muitos outros cidadãos
acordaram voltados ao pacto dos dois amigos. A cidade
fervia de comentários visto o completo desaparecimento
de Pitias, de quem mais nenhuma notícia souberam desde
que partira.
As solenidades previstas dar-se-iam de qualquer
modo, conforme estabelecido. Cedo da manhã, largas
manifestações sacudiram a Capital estertorosa, nas
arquibancadas do círculo logo começou a chegar gente.
Gritos histéricos feriam os ouvidos ansiosos de Damon,
trazido a ferros para o meio da arena, exposto aos ânimos
exaltados da multidão impaciente. Renderia homenagem
ao compromisso firmado em amor da amizade fiel.

125
Enquanto que, diante da exigüidade do prazo
restante e nos limites das forças físicas, de um dos
portões do estádio superlotado, exangue, esquálido,
surge Pitias, causando espasmos de emoção silenciava
a todos, com o forte gesto demonstrado por ambos os
jovens.
Perante a platéia estática, o condenado dirigiu-se
aos seus carrascos, libertando Damon.
Também assustado com o que via, Dionísio, de pronto
ordenou a suspensão dos atos punitivos e desceu, solene
e sensibilizado, a tribuna, indo abraçar os dois amigos,
numa reverência profunda ao cumprimento da palavra
dita.
Por causa da ação meritória, o imperador ordenou a
absolvição de Pitias, afirmando:
– Tudo, nesta vida, não vale esta amizade que hoje
aqui posso testemunhar.

126
O poder da fé
(tradição oriental)
Numa cidadezinha do interior da Índia, viviam senhora
viúva e um filho, pessoas muito religiosas que se
dedicavam de corpo e alma à prática do budismo,
crença asiática fundada por Gautama Sidarta. Ambos
alimentavam o sonho de visitar a cidade do Nepal, onde
nascera o grande mestre. Durante anos seguidos
juntaram economias visando esse propósito.
No que pesasse o sacrifício, só o filho reuniu
condições físicas de fazer a peregrinação. Arrumados
os preparativos, chegou o desejado momento.
– Meu filho, ao voltar de tua experiência, traga para
mim uma relíquia da terra em que veio ao mundo o grande
príncipe – pediu a senhora.
Na viagem, o rapaz percorreu as diversas estradas
que levavam a Kapilavastu, no sentido de conhecer as
belíssimas edificações dedicadas ao Senhor Buda em seu
torrão de origem. Admirou-se com a beleza das cerimônias
religiosas, rituais cheios de luz e harmonia inigualáveis.
Permaneceu ali o tempo suficiente de realizar suas
oferendas e orações.
Ao retornar para casa, a mãe quis saber o que lhe
trouxera do lugar sagrado: - Nada, minha mãe. Quando
me envolvi nas festas de adoração, me enlevei, esqueci
de tudo, sem trazer o que a senhora me pediu.
A mulher desculpou o gesto negligente e tratou de
reunir outros recursos para que o filho, na primeira
oportunidade, fizesse nova expedição ao país distante, o
que demorou pouco e também aconteceu.
Nessa época, um tanto mais amadurecido, o moço
recebeu a mesma incumbência de, ao retornar da pátria
do Buda, trazer a ansiada relíquia, em atenção à velha
mãe.

127
No entanto, fica difícil de explicar os motivos, de
novo regressou sem corresponder ao pedido de sua
genitora. No auge da bondade, outra vez a senhora
relevou o descaso do filho.
Algum tempo adiante, nova chance se apresenta a
que ele seguisse rumo ao Nepal. Com zelo carinhoso,
de novo a mãe recomendou o presente, igual fizera das
vezes anteriores:
– Que nessa ocasião lembre de mim e traga o que
sempre te pedi, qualquer relíquia me servirá, pois.
Logo ao chegar na cidade, o homem se viu cercado
por bando faminto de ferozes cães, contra os quais mediu
forças num duelo encarniçado, ferindo de morte uma das
feras. Em seguida, abriu a boca desse animal e retirou-
lhe uma das presas, trazendo-a de presente para sua
mãe. Eis aqui, minha mãe, a lembrança que me pediste,
um dente que obtive de sacerdote do templo, na pátria do
Buda venerável.
A senhora sentiu satisfação profunda com a atitude
do filho. Adquiriu um santuário e nele instalou a relíquia,
que desde esse dia tornou-se o principal objeto das suas
habituais reverências.
Decorridos alguns meses, espalhou-se no meio do
povo a notícia de que o dente brilhava como sendo pedra
preciosa. Por essa razão, multidões afluíram de muitos
lugares, na intenção de contemplar o fenômeno
maravilhoso.
Tempos depois, quando a fervorosa dama deixou este
mundo, seu filho, pesaroso face ao desenrolar daqueles
acontecimentos, revelou a verdadeira procedência da
presa luminosa, gerando daí o motivo do provérbio hindu,
que ainda hoje persiste, de ter tamanha força a fé que
pode cintilar mesmo um simples dente de cachorro.

128
A porta
Era uma vez um mestre carpinteiro de nome Pedro,
que vivia com a família em pequena povoação do interior
sertanejo. Tirava o sustento das artes da madeira,
fabricando peças primorosas, admiradas por quem as
conhecesse, fama que lhe propiciava constantes
trabalhos.
Além de dedicar-se com carinho ao trabalho, mestre
Pedro demonstrava profundo interesse pelas coisas
religiosas, praticando o bem, zelando pelos semelhantes,
orientando, servindo e dando exemplos daquilo em que
acreditava.
Certa feita, recebeu em sua morada ilustre caravana
de pessoas ligadas ao governo querendo que ele fizesse a
porta de templo em construção numa cidade distante.
Essa peça deveria merecer cuidados especiais, porquanto
a tal igreja representaria agradecimentos ao santo
padroeiro pela cura de uma das filhas de homem
poderoso.
O artífice aceitou o pedido a ser feito em madeira de
lei, a cumprir com folga o projeto da porta bem trabalhada.
Alguns meses se passaram até localizar na floresta
um tronco adequado à encomenda. Movimentou pessoas
e trouxe para a oficina mogno linheiro e maciço. Outro
tempo demorou serrando e planando as tábuas, quando,
belo dia, iniciou a montagem, juntando e colando as peças
em lastro precioso.
Medidas exatas e eacabamento primoroso... Restava
cumprir o desenho que imaginara fixar no rosto da
madeira, fruto dos detalhes de um sonho do qual
acordara no meio da noite cheio de júbilo, com o que
só enriqueceria a beleza do artefato encomendado.

129
A porta do céu deteria características de semelhante
perfeição, imaginavam extasiadas as pessoas, querendo
ver de perto o efeito magistral conseguido pelo mestre
na superfície da madeira.
A essa altura dos desdobramentos, haviam
transcorrido três anos. O profissional ultimava os
apuros do trabalho, pousado sobre os joelhos e
cotovelos, suado, afilando formas milimétricas, quase
invisíveis, com estilete afiado a sulcar nas riscas das
tábuas, daí resolveu erguer a peça de lado para, pela
primeira vez, observá-la na posição vertical.
Ao levantar a porta do chão, no lugar onde ela ficara
tanto tempo abriu-se fenda de proporções iguais ao seu
tamanho, cratera de fundura ilimitada.
Diante daquilo e face ao impacto do inesperado,
mestre Pedro caiu no espaço aberto, sumindo cavidade
adentro, sem que ninguém presenciasse o acontecimento.
Fim da tarde e só então os familiares notaram-lhe a
ausência. Vieram à oficina procurar por ele. Nada
encontraram além da porta confeccionada com esmero e
as ferramentas deixadas pelo chão e o mais completo
silêncio em volta. Nenhum sinal que fosse do artista,
apesar de examinarem toda a redondeza e espalharem a
notícia do misterioso desaparecimento.
Alguns contemporâneos do mestre Pedro quiseram
admitir, no entanto, que depois daquele dia, sempre nos
inícios de noite, sobre a humilde oficina brilhava estrela
de cintilações intensas, a clarear por bons momentos os
céus da redondeza.

130
Prestígio insuficiente
Vamos contar uma das histórias típicas do humorista
cearense José Quintino da Cunha, desaparecido no
ano de 1943, em Fortaleza, aos 78 anos, após vida
intensa de realizações poéticas e ativa prática
advocatícia pelas comarcas do Nordeste e do Norte. Um
dos motivos de sua consagração, nas rodas boêmias
do tempo em que viveu, foram as tiradas espirituosas
como interpretava situações, costumes e pessoas.
Católico de origem, nutria pela sua religião devoção
fervorosa. Certa vez, defronte do Café Riche, tradicional
estabelecimento da capital cearense, ponto de encontro
dos intelectuais da época, discutiu com um pastor
protestante. Ambos avaliavam os diversos aspectos da
crença, dentre os quais a importância da caridade na
prática do verdadeiro cristianismo.
Nisso, achegou-se deles mendigo alquebrado, de
mãos trêmulas e voz sumida, recorrendo pelo pão de
cada dia. Corria a pungente petição de um a um, nada
colhendo que lhe correspondesse o gesto penalizado.
Sensível, Quintino Cunha catucou bolsos a dentro,
lá encontrando feliz moeda que, prestimoso, transferiu
ao esmolé. Este, agradecido, emocionou-se numa longa
resposta:
– Que Deus retribua o gesto, meu doutor. Vou pedir
que Ele sempre multiplique os seus ganhos.
Ao escutar do pobre homem essas palavras, logo
Quintino deu um passo atrás, demonstrando
contrariedade com aquilo, e na mesma hora saiu-se
dizendo:
– Quero não, senhor! Para mim não peça a Deus
coisa nenhuma, não! – isso falando até meio agastado.

131
Por perceber a cena brusca, amigos cobraram
compreensão dos modos inesperados que testemunhavam
do célebre causídico.
– O que quer dizer com isso, Quintino? – perguntou
um deles. – Pois nunca é demais receber as graças divinas,
para si ou para quem couber o pedido. Sabe bem disso,
porque respeita a convicção dos outros.
Nessa hora, Quintino Cunha baixou a cabeça e, sério,
quis explicar as razões daquele gesto:
– Ao invés desse homem ficar gastando seu prestígio
pelos outros, deve pedir em seu próprio benefício. Ainda
assim, caso ele tivesse algum favor junto de Deus, não
vivia na vida miserável que apresenta – e mais calmo o
poeta deu por terminada a conversa.

132
Uma primeira lição
(conto zen)
Ao ver o filho mais velho aproximar-se da idade adulta,
tempo de encontrar o jeito de sobreviver por conta
própria, um arrombador temido de certa região da
China resolveu encaminhá-lo através dos tortuosos
segredos da profissão criminosa que exercitava desde
a juventude. O pai criminoso chamou seu filho para
uma longa conversa e, depois disso, resolveram os dois
iniciar as aulas das práticas viciosas.
Na primeira noite, identificaram destacada mansão
habitada por nobres proprietários da redondeza.
Envoltos na sombra da noite escura, forçaram os
pontos vulneráreis à empreitada delituosa e viram-se
nos cômodos suntuosos, passeando entre peças de raro
gosto. Dentro do amplo quarto do casal entregue às
delícias do sono, abordaram o guarda-roupa,
rompendo as trancas e descortinaram inúmeras
variedades da mais fina procedência, ao dispor dos
intrusos meliantes.
O aprendiz abismado na frente dos despojos meteu-
se no meio dos tecidos que apalpava ansioso, com eles
enchendo larga bolsa que trazia consigo. A atividade
febril do jovem, no entanto, viu-se interrompida de
surpresa, quando gesto rápido do pai, que ficara do
lado de fora, fechou as portas do móvel do quarto. Ao
proceder desse modo, o ladrão veterano correu, jogou
no chão algumas tralhas que conduzia, no chão do
cômodo e, em seguida, saltou pela janela que deixara
aberta, pondo-se a fresco.
Atrás, deixara o filho preso no guarda-roupa,
enquanto despertava os membros da família por conta
do barulho ensurdecedor que fizera. Sem compreender
o que se passava, o rapaz agiu com furor imenso,

133
querendo a qualquer custo se livrar do apuro em que
se metera.
Só quase no clarear do dia conseguiu chegar de
volta à casa do velho pai, trazendo no corpo as marcas
adquiridas na aventura imprevista: costas rasgadas de
arranhões profundos, cabelos desgrenhados, trajes em
frangalhos e diversos hematomas distribuídos da cabeça
aos pés. Por cima, arrastava uma perna e lhe escorria
nos ombros o suor frio da aflição que vivera. Quando viu
o pai adormecido, aos berros tratou de perguntar:
– Quais motivos levou o senhor a me deixar fechado
naquela casa?
E seguiu furioso:
– Depois de descoberto pelos donos da casa e não
adotasse todos os meios de que dispunha, jamais sairia
inteiro dali. Na hora, esqueci de minhas limitações, do
medo, da timidez, e me dediquei até o pescoço na peleja
de fugir, senão, adeus. O professor fora-da-lei abriu a
cara numa larga risada e, jocoso, respondeu ao filho:
– Isso mesmo, safou-se com bravura na primeira
lição da escola de gatunagem. A seguir desta forma,
nas outras oportunidades veremos pronto, em tempo
breve, o herdeiro das nossas tradições familiares.

134
O profeta Jonas
Um dia, o Senhor dirigiu-se a Jonas, filho de Hamitai,
e determinou que ele fosse a Nínive, cidade pagã de
reprováveis costumes, levar aos seus habitantes
palavras de salvação.
No entanto, Jonas o que fez: arrepiou caminho.
Desceu a Jope, onde, no porto, avistou fundeado navio
de arribada para Társis e meteu-se no rol dos passageiros,
disposto a fugir de qualquer modo da face do Senhor.
Em alto mar, porém, quando a viagem parecia
transcorrer em perfeita normalidade, sem transtornos
ou percalços, cresceu monumental tempestade, a todos
apavorando de causar dó e piedade.
Nessa hora difícil, a sono solto, Jonas repousava no
porão do navio, isento de quaisquer preocupações
terrenas. O comandante que lhe conhecia os dotes
espirituais, pediu que orasse em favor dos aflitos,
naquele instante de perigo.
De logo reunidos no convés, os membros da
tripulação jogavam a sorte e reconheceram na figura do
profeta o motivo da iminente tragédia que rondava a
expedição.
Daí quiseram conhecer mais a respeito do passageiro,
origem, profissão e detalhes úteis que falassem dos
presságios trazidos no tempo ruim.
Ele lhes respondeu: – Sou hebreu e adoro o
Senhor, Deus do céu, que fez os mares e a terra” –
Livro de Jonas l, 9.
Cresceu-lhes ainda mais o medo, porquanto
descobriram a intenção do profeta de esquivar-se perante
compromisso firmado com o Pai de Tudo, levando Jonas
a mostrar que jeito havia de escaparem daquilo, devendo
por isso jogá-lo às ondas fatais do mar revolto, o remédio

135
certo na ocasião difícil que viviam.
Eles ainda resistiram à idéia e clamaram aos céus
misericórdia pelo impasse estabelecido. Todavia acabaram
por lançar o profeta ao mar.
A seqüência dos acontecidos leva a narrativa ao
que se conhece, hoje de domínio público. Nas águas
convulsas, Jonas foi engolido por baleia descomunal,
em cujo interior permaneceu três dias e três noites,
que é do conhecimento da humanidade.
Na barriga do peixe, readquiriu forças e pediu ao
Senhor, com sofreguidão, que pudesse voltar à luz do
dia. Na aflição, reafirmou sua obediência aos ditames
do Bem.
De volta a chão firme, repete-se a ordem que recebera
no início desta história, que seguisse na direção de Nínive,
a salvar-lhe o povo, reino aonde chegou após três dias de
marcha constante.
Nas ruas da cidade, pregou com abnegação os rigores
da mensagem extrema que o conduziu até lá: Ainda
quarenta dias, e Nínive será subvertida, sensibilizado
clamava aos ninivitas.
De almas arrasadas, o soberano do lugar e toda a
população resolveram seguir os caminhos da virtude.
Unidos, jejuaram, privaram-se, converteram-se
arrependidos e oraram.
Por conta desse feito, revogou Deus o futuro cruel
destinado a Nínive, caso de transformação coletiva que
se deve aos antigos profetas.

136
A prova da riqueza
(tradição oral)
Quando Jesus viajava pelo mundo, certa vez, tarde da
noite, chegou com Pedro a uma humilde choupana.
Traziam os corpos macerados depois de longa travessia.
Recebidos com amizade pelos donos da casa, puderam
desfrutar das melhores acomodações, de refeição farta
e reparadora noite de sono.
Ao raiar do dia, viam-se na estrada a comentar
entre si:
– Senhor, que pessoas agradáveis, simples e
solidárias – avaliou Pedro, em seu modo extrovertido. –
Bem merecem mais do que possuem. Por que, Mestre,
não lhes permite a bênção da fortuna, concedendo a
elas mais dinheiro e propriedades? – lembrou o
apóstolo.
– Mas, Pedro, os haveres nem sempre acrescentam
mérito às criaturas, sujeitando-as, em muitas ocasiões,
a graves riscos – considerou Jesus.
– Sei disso, Mestre. No entanto acho essas pessoas
bem equilibradas e, de certeza, usariam com experiência
aquilo que viessem a receber por acréscimo.
Jesus silenciou e seguiram a viagem.
Passados alguns anos, aconteceu de voltarem os
peregrinos a percorrer aquelas mesmas cercanias. No
lugar da residência modesta da vez anterior, o que
avistaram? Uma bela herdade que dominava a
paisagem, preenchida de vinhedos frondosos, os
melhores de toda a redondeza. Mansão digna dos
nobres se lhes apareceu, ao invés da rústica construção
aonde antes se hospedaram envoltos nas atenções
carinhosas dos seus donos. Para lá se dirigiram.
– Ô de casa! – repetiu Pedro algumas vezes no portão
principal.

137
– Ô de fora! – respondeu a voz do serviçal que
atendeu após longa demora. – O que desejam aqui? –
perguntou. Pediram rancho para ficar na noite de
jornada. Em seguida, o homem entrou para consultar
os proprietários das terras.
Transcorrido algum tempo, voltou com a resposta.
Teriam, sim, o pouso. Daí, foram levados para a
estrebaria e instalados de forma precária entre bichos
e rações, a algumas braças da casa grande engalanada
em grande estilo, prevendo festa naquela noite.
Enquanto improvisavam o leito, os visitantes
recordaram do que haviam encontrado na primeira visita
àquela casa:
– Jesus, por que mudaram tanto os moradores
daqui? – considerou Pedro. – Pareciam bem melhores
quando nos receberam da outra vez.
Após leve sorriso, o Divino Mestre observou: - Bem,
Pedro, agora que as coisas se mostraram claras aos teus
olhos, por tudo isso que observaste, digo que a riqueza
sujeita levar à perdição muitos dos seus donatários.
Enquanto a pobreza, do seu jeito, pode trazer salvação
aos que dela se acham dependentes.

138
Rainha depois de morta
Naquele tempo, as relações entre os reinos de Portugal
e Castela seguiam-se tensas. Vale dizer que Portugal
resultara do desmembramento de parte do reino de
Castela, hoje Espanha, esta que muito e sempre quis
reintegrá-lo, desde que houvesse chance.
Desse contexto, as desconfianças profundas do
soberano português Afonso IV face ao tempestuoso
romance do príncipe herdeiro dom Pedro e Inês de Castro,
linda jovem de importante família de Castela, dama de
companhia da princesa Constança, esta escolhida para
noiva do filho.
Afonso olhava, destarte, com profunda antipatia
crescerem as suas preocupações políticas. A arrebatadora
paixão, no entanto, resultaria em alguns filhos do casal
de amantes.
Em 1435, após dom Pedro ficar viúvo de Constança,
casar-se-ia às escondidas com Inês, segundo afirmaria
em épocas posteriores, ao justificar sua firme disposição
de se manter sozinho no exercício do reinado que chegou
a ocupar com a morte do seu pai.
Por temer o filho conspirar a favor da reintegração a
Castela, pela influência de Pérez de Castro, pai da bela
Inês, dom Afonso organizou o episódio trágico, perenizado
por Luiz Vaz de Camões, no canto III de Os Lusíadas.
Numa ocasião em que o príncipe amante viajava para
caçar longe das cercanias de Coimbra, onde vivia com
Inês, D. Afonso maquinou cruel sentença e invadiu o lar
da jovem, prendendo-a e matando-a, de modo torpe
cortando-lhe o pescoço.
Tais contra Inês os brutos matadores, / No colo de
alabastro, que sustinha / As obras com que Amor matou
de amores / Aquele que despois a fez Rainha, / As

139
espadas banhando e as brancas flores, / Que ela dos
olhos seus regados tinha, / Se encarniçavam, fervidos
e irosos, / No futuro castigo não cuidosos.
Dor imensa feriu D. Pedro, ao retornar e descobrir o
infausto crime. Em razão, a partir desse homicídio,
conflito sem precedentes desenrolaria nas relações entre
ele e o pai.
Anos depois e dom Pedro se tornaria o rei de Portugal.
Uma de suas primeiras providências quando chegou
ao poder foi ordenar a completa exumação dos restos
mortais de Inês de Castro, desenterrando-lhe o cadáver
e determinando a sua coroação no trono de rainha, em
meio a pompas do cerimonial palaciano, exposto à
reverência de toda a corte estupefata, rito acompanhado
de perto pelos olhos frios do monarca endurecido.
Eis a história de quem depois de morta tornar-se-ia
rainha de Portugal.

140
Razão da competência
Quando saia de sua casa, certa manhã, Rui Barbosa
foi abordado por alguém a lhe pedir orientação a
respeito de processo que transcorria numa comarca do
interior baiano.
– Muito bem, posso atender ao amigo – respondeu
o jurista, pedindo, no entanto, que o interessado
voltasse noutra ocasião, posto, naquela hora, dirigir-
se ao fórum para participar de audiência e não dispor
do tempo necessário de estudar o assunto.
– Preciso ouvir as particularidades da matéria, para,
só então, tecer os meus comentários – quis, assim,
concluir o assunto, daquela vez.
– Mas, seu Rui, todo mundo sabe da sua
indiscutível capacidade - retrucou o homem,
demonstrando meia contrariedade pela demora que
teria de aceitar. - Em poucos minutos responde aquilo
que preciso, escrevendo até na perna, numa ponta de
papel, e vai demonstrar proveito, sei disso, visto fazer
perfeito tudo que faz. Quem há de questionar a sua
conhecida competência?
Sem pretender alongar a conversa, Rui sorriu e disse
com seriedade:
– Por isso mesmo, velho amigo, adquiri essa fama
de fazer bem feito o que me é dado fazer. Porque eu
paro, examino em profundidade os assuntos que
estudo e construo as minhas interpretações. E o povo
diz com absoluta propriedade que a pressa é inimiga
da perfeição.
Neste mundo de Deus, mediante a velocidade dos
formigueiros humanos, nas cidades contemporâneas,
o imediatismo predomina e reduz a força da
concentração, dificultando resultados melhores nos

141
propósitos individuais.
O anzol do oportunismo, com aparente facilidade,
desmonta as preocupações dos que buscam o sentido
da exatidão. Por tais motivos, a criatividade perdeu
espaço precioso no ritmo acelerado das máquinas.
Interessa sobremaneira aos competidores o lucro, a
multiplicação, invés de coerência e harmonia, porquanto
as cifras dominaram a hegemonia da vontade, no placar
entre quantidade versus qualidade.
Poucos desejam levar em conta os preceitos da
formulação correta dos propósitos, e a invenção mal
cozinhada ocupa o lugar do mérito e dos inventores.
Existem agora ciências originárias das próprias
máquinas, que passaram a desvendar mistérios antes
desconsiderados. A título de exemplo, observar a
neurolingüística, que desperta reais possibilidades de se
programar a mente das criaturas do modo como se faz
nos computadores.
Nessas divagações pensavam os profetas da
sociedade mecânica chegar-se ao mundo robotizado e
das coisas dependentes de meios artificiais, na
realização que prevenira a ficção, demonstração cabal
do que acontece nas grandes cidades contemporâneas.
Quase nunca, portanto, as pessoas avaliam que os
gênios crescem ao sabor da Providência.
Numa oportunidade, indagaram de Thomas Edison
quais as razões do seu talento e dos inesgotáveis
inventos que fizeram sua fama, ao que respondeu:
– Cinco por cento vem da inspiração. Noventa e
cinco, da transpiração.

142
Rei Artur
No ano de 410 d.C., os visigodos, sob às ordens de
Alarico, conquistavam Roma, sacudindo as estruturas
do império poderoso e desmantelando a administração
das suas colônias, dentre elas a Britânia, que rechaçava
o assédio ferrenho de saxões, anglos, pictos e escotos,
povos bárbaros invasores em luta constante pela posse
das ilhas onde hoje se instala o reino da Grã-Bretanha.
Largados, pois, à própria sorte, os bretões
houveram de prevalecer a qualquer custo, fase de
árduas e intermitentes batalhas sob aflição desmedida.
No auge desse longo período, pelo ano de 475, nasceu
Artur, filho e sucessor do nonagésimo rei bretão Uther
Pendragon.
Nesse tempo, na Catedral de Londres, existia uma
bigorna de aço sobre um rochedo com misteriosa espada
cravada nela. A respeito disso, certo oráculo comunicara
que chegaria alguém com poderes de retirar a espada e
liderar seu povo na guerra cruel de resistência contra os
agressores.
Inúmeros cavaleiros quiseram realizar o feito, sem,
no entanto, lograrem êxito. Estabeleceu-se, então, num
dia de Ano Novo, torneio para escolher guerreiros que
merecessem ao menos tentar a conquista da espada. Ao
evento também compareceu Kay, assistido pelo seu irmão
e escudeiro Artur.
No decorrer dos combates, Kay perdeu a própria
espada e solicitou uma outra. Em resposta ao pedido,
lembrou-se Artur daquela que vira em cima da pedra na
igreja, indo arrastá-la com normal facilidade. À visão do
acontecimento, pessoas maravilhadas reunir-se-iam
diante de Artur, logo o sagrando rei da Inglaterra.

143
Raros registros históricos falam de uma batalha
posterior e feroz, em 517, na colina de Badon, oeste do
país, durante três dias e três noites, quando a cavalaria
dos bretões venceu os saxões, dizimando de vez com
seus exércitos, levando-os a desistir, por quarenta anos,
do propósito de dominar as ilhas. Estima-se, por
conseguinte, a valentia de Artur, nesses combates à frente
das tropas.
Só mais adiante, pelos finais do século VI, os
invasores anglo-saxões viriam dominar a Britânia, daí o
nome de ingleses dos atuais habitantes da localidade.
O reinado de Artur marcara, contudo, a reconstrução
de seu povo. Estabeleceu-se no Castelo de Camelot e
desenvolveu o período arturiano, de existência consagrada
pelas narrativas medievais, através das sagas de
cavaleiros vestidos de cota de malha, portando espadas
e lanças, montando corcéis imponentes, a envergar
armaduras prateadas e pelejar torneios em honra das
damas da corte.
A lenda descreve, nesse meio tempo, o
funcionamento da ordem dos cavaleiros que se reuniam
em volta de uma mesa denominada Távola Redonda,
afeitos a expedições audazes na busca do Santo Graal
– o cálice em que José de Arimatéia recolhera gotas do
sangue de Jesus, que ele mesmo trouxera da Palestina
e depositara em algum lugar da Britânia.
Em 538, no transcorrer da Batalha de Camlann, o
Rei Artur seria ferido. Levado para a ilha de Avalon, no
intuito de se restabelecer, jamais lhe encontrariam o
corpo, originando, na voz dos trovadores e monges
historiadores das épocas futuras, a crença de que um
dia retornará ao governo de sua pátria e libertará do
jugo da morte toda a Humanidade.

144
Sísifo
(mitologia grega)

Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa


montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A
própria luta para atingir os píncaros basta para encher
um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.
Albert Camus.

Sem idade, nos sulcos da mesma montanha, subia


Sísifo tangendo o trabalhoso rochedo, carnes banhadas
no suor macilento de bronze derretido na lama das
eras.
Rei de Corinto, ele decidira enfrentar os deuses e seus
roteiros caprichosos e nostálgicos no momento em que,
escondido, testemunhou Zeus raptando Egina, bela filha
de Ásopo, o senhor dos rios, cena que assistiu com
insatisfação.
Em Corinto, de tempos em tempos, crises de
abastecimento de água sacudiam a população. Via nisso,
portanto, oportunidade rara de saber de Ásopo por uma
fonte de águas permanentes – o que não seria pedir
muito – pensou. E disse ao pai infeliz onde encontrar
sua filha.
Por tal motivo, Zeus, superior também nas respostas
severas que usava para punir quem lhe ferisse os brios,
determinou a Tânatos, deusa da morte, que eliminasse
Sísifo. Astucioso, este desenvolveu modo de enganar a
mensageira do fim, oferecendo-lhe um colar de contas,
que prendeu no pescoço da deusa qual coleira de
amolados dentes, tirando-a de circulação por algum
tempo, prisioneira que ficou nas matas, longe do
conhecimento dos outros deuses do Olimpo.

145
Na função monótona de rolar a pedra enorme
montanha acima e vê-la sempre retornar ao início da
jornada, Sísifo via passar, na lente dos pensamentos,
imagens da vida passada, fase por fase, a ritmos
desordenados, febris.
Em pouco, os deuses perceberiam a ausência de
Tânatos, devido à percepção de Ares, o deus da guerra, e
de Hades, o responsável pelo reino dos mortos. Onde
andariam seus pacientes, que haviam sumido das
estatísticas diárias? Ninguém morria mais entre os
humanos com a prisão de Tânatos. Alguma mudança,
pois, se registrara na rotina dos acontecimentos.
Aprofundadas investigações, logo descobriram em
Sísifo o autor da traquinada. Vieram-lhe no encalço.
Dessa vez, ele ria de si para consigo, a coisa fora longe
demais. O poder das potestades exigiu de reparação que
morresse e chegasse no Inferno, sem qualquer dó ou
piedade.
Morrer, morreu; mas antes pôs a teste Mérope, sua
doce companheira. Que ela atirasse seus restos mortais
na praça principal de Corinto, sob as vistas dos súditos,
deixando de encomendar o corpo no ritual sagrado.
Assim, passo a passo, ia lembrando o dia em que
chegara no Inferno, magoado pelo gesto da esposa aceitar
de bom grado a sua proposta rebelde. Em consequência,
buscou Hades para protestar, reclamando punição à
esposa pela indiferença às leis do seu reino.
Lembrou, então, seu retorno à Terra por conta do
artifício utilizado, e do período que viveu escondido, nos
braços carinhosos dela, de Mérope, até os extremos da
resistência física.
No dia estabelecido, chegara de volta ao Inferno.
Desconfiado, zanzava pelos corredores, quando Hades
chamou-o a termo pelas antigas presepadas. Todavia
jamais imaginara que o justiçariam como o fizeram,

146
com esse castigo de repetir o gesto constante de
erguer, ladeira acima, ladeira abaixo, o bloco granítico
que no alto não permanecia, contundindo-lhe dedos,
mãos, braços, ombros, pernas, pés, na sucessão
interminável dos séculos, tudo fruto da sua
desatenção para com os deuses severos.
Incontinenti, ergueu aos céus olhos famintos de
alegrias, batendo-se na fronteira da liberdade, por força
dos eternos vínculos. Passou a mão pela testa ressequida,
observou ao longe o vale de rara beleza penetrando os
íntimos do horizonte e respirou fundo. Saboreava cada
detalhe mínimo do tempo que vivera. Sorriso matreiro
franziu o canto dos lábios, quando repetia mais uma vez
a rigorosa tarefa, qual subisse pela primeira vez a estrada
íngreme, tingida no vermelho alaranjado da manhã.

147
Sócrates
De 470 a 399 a.C., viveu o filósofo grego Sócrates, filho
de Sofrônico, um escultor, e de Fenáreta, uma parteira.
Nascido em Atenas, de pais remediados, nenhuma linha
deixou escrita de sua própria lavra. Tudo o que dele se
conhece restou nos livros de Platão (Apologia de
Sócrates e Fédon) e Xenofonte (Apologia de Sócrates e
Feitos Memoráveis de Sócrates).
Educador popular, andava pelos locais públicos,
mercados e praças, a pregar suas idéias aos quantos
quisessem ouvir. Casado com Xantipa, que lhe deu três
filhos, pouco parava em casa. Prestou serviço militar nas
campanhas de Potidéia, Delos e Anfipólis. Estudou com
afinco os mistérios da alma humana.
Atarrancado, feio, calvo, barrigudo, de olhos
esbugalhados, nariz arrebitado, possuía afetividade
suficiente a manter em torno de si multidões de
admiradores, sobretudo de jovens que lhe respeitavam o
pensamento quase às raias da devoção, em frontal
concorrência aos deuses do Estado.
Por contar coisas ditas por vozes que só ele ouvia e
atribuía a entes superiores (vozes interiores divinas), os
maiorais da aristocracia acusaram-no de sacrílego
(introduzir novos deuses), além de corromper a juventude
e recusar culto aos deuses oficiais, expondo-se, por isso,
ao célebre julgamento perante a magistratura formada
de juízes do povo.
A simples retratação de suas práticas pedagógicas e
o desterro preservariam sua integridade física, contudo,
recusados pelo sábio, porque isso lhe trairia os princípios
ditados pela sua consciência.
O rito processual de seu julgamento constou de duas
fases. Na primeira, Sócrates viu-se condenado por 280 a

149
220 sufrágios. A lei facultava outra oportunidade ao
réu. No segundo julgamento, porém, veredicto mais
rigoroso selou o destino do filósofo sob o escore de 360
a 140, condenando-o à pena capital.
De alma tranqüila, aguardou o dia da morte
promovendo longos diálogos com os seus discípulos.
No momento da execução por cicuta, veneno que os
gregos adotavam para eliminar os condenados, recebeu
de um escravo a taça derradeira:
– Depois de beber, ao caminhar, irás sentindo as
pernas dormentes... Pesadas...
Mediante aquilo, com decisão, rápido levou a taça
aos lábios e ingeriu-lhe o conteúdo.
Os discípulos silenciosos observavam a cena.
Sócrates ainda seguiu em suas conversas. Alguns
presentes não dominaram o choro convulso. No que
pesassem os esforços para minorar o sofrimento do
mestre, lágrimas inundavam as faces. Soluços
espasmódicos sacudiram a todos, quando Apolodoro caiu
num pranto estridente e amargurado.
Calmo, Sócrates caminhava e apalpava ambas as
pernas. Poucos instantes mais, ao sentar na cama,
considerou:
– Quando chegar ao coração, será o fim –
acrescentando: - Críton, eu devo um galo a Esculápio. Vais
lembrar de pagar a dívida?
– A dívida será paga – disse Críton.
Logo após, desaparecia aquele considerado o sábio
dos sábios, que um dia afirmara: – Só sei que nada sei.

Nota: Trechos em itálico retirados das obras citadas.

150
Sopa esquisita
Quem me contou essa história foi Manoel Patrício, ao
avaliar as conseqüências nefastas do vício do
alcoolismo, fator de pouca sorte e destruição de muitos
lares, sejam pobres, sejam ricos, no mundo inteiro.
Um casal vivia fase difícil, mediante as repetidas farras
do chefe da família, bebedor contumaz, boêmio assíduo
freqüentador de bares e botecos, gerando abatimento
na esposa fiel, sempre a recebê-lo prestimosa a cada
retorno das suas rondas viciosas.
Para manter a ordem da casa, era ela que lutava as
pelejas de apurar dinheiros escassos e remediar os
negócios, bordando, cortando cabelo, arrumando casas,
criando um bicho aqui, fazendo um bolo ali, um salgado
acolá; forçando os filhos a saírem vendendo aonde
pudessem, contudo que nunca lhes faltasse o sustento.
Pessoa de fibra só o tanto, dessas que existem aos
milhares pela vida afora, de preservar o corpo da prole
unido, chovesse, fizesse sol.
No entanto, doíam aos filhos as voltas incertas do
pai, cada noite. Por vezes, ele chegava mais cedo,
entrava aos tombos, revirava a cozinha na procura do
jantar, sentava no chão, forrava o bucho, bebia água e
caía na cama feito pedra, até o amanhecer do outro
dia. Isso quando não teimava com a mulher, dando-
lhe empurrões, quebrando alguns dos raros trastes da
morada e terminando o roteiro da cozinha para o quarto
da choça.
Outras ocasiões, no avançado de horas silenciosas,
tropeçava na cadeira que escorava a porta da frente,
sacolejava no escuro as redes dos filhos, armadas no meio
da sala, todos adormecidos, ou fazendo de conta, nisso
chegando ao fogão para pegar o prato, comer e dormir

151
ali mesmo, abandonado pelos cantos.
Dessa vez, trombudo, rumou à cozinha, caçou o
alimento e avistou coisa parecida em cima do armário.
De tão bêbado, achou ser aquele o prato a ele reservado.
Sentou e comeu, ainda que percebesse ruim à beça o
de comer, mas comeu. Reclamou por dentro, vez que,
houvesse o que houvesse, jamais deixava de passar bem,
aos cuidados da esposa. Reservou protestos ao dia
seguinte:
– E que comida esquisita foi aquela sopa que tu
deixou pra mim ontem de noite, Maria? – logo cedo
indagou agressivo, olhos avermelhados e boca
gosmenta da ressaca.
– Sopa? Que sopa, Zé?! A janta não foi nem de
sopa! – retrucou de resposta a esposa pesarosa.
– Sopa, sim. E cheia dumas misturas meio azedas,
meio adocicadas, tipo gororoba.
Intrigada com isso, a mulher dirigiu-se à cozinha e
abriu o forno do fogão, achando intacto o bocado que
deixara de noite para o marido. Olhou em torno e lembrou-
se da lavagem do porquinho que, há meses, vinha cevando
no quintal, a fim de vender no fim do ano e auxiliar nas
despesas dos meninos, durante término da escola.
– Mas, Zé, tu comeu foi a lavagem do bacorim, homê!
Precisa isso? É criar mais juízo e procurar melhor as
coisas dentro dessa casa, marido.
Aquilo mexeu na consciência dele e, de vergonha, a
partir daquela data, nunca mais quis saber de botar um
gole de bebida alcoólica na boca, livrando-se do costume
ingrato pela força dos bons propósitos, decisão e
personalidade de causar espanto aos velhos camaradas
da perigosa brincadeira.

152
A tartaruga
(tradição oriental)
Certa manhã, quando Chuang Tzu pescava solitário
nas águas de um rio profundo de sua terra natal,
vieram procurá-lo dois serviçais do príncipe de Chu, a
província onde habitava. Eles vinham cumprir as
formalidades de propor ao sábio a incumbência de ser
o administrador do tesouro da corte.
Silencioso, tranqüilo, qual o leito daquele rio, o
discípulo de Lao Tzu apenas ignorou a presença dos
visitantes e seguiu concentrado no seu ofício, indiferente
aos acontecimentos em volta.
Preocupados com o tratamento recebido, os
funcionários reais insistiram e, de novo, mais veementes,
transmitiram a proposta do soberano. Nesse momento,
reverencioso, Chuang Tzu cumprimentou aqueles
embaixadores para, em seguida, afirmar:
– Um dia chegou ao meu conhecimento existir na
capital da província o casco de uma tartaruga sagrada,
morta há mais de 300 anos. E que Sua Alteza conserva
essa relíquia debaixo de sete chaves, numa arca de
ouro instalada no altar mor do templo, costume já
originário dos seus ancestrais.
Os dois funcionários balançaram a cabeça em
confirmação ao que ouviam, enquanto aguardavam o
desfecho das palavras do sábio.
- Pois bem, ouvindo esse convite do soberano destas
terras, quero fazer uma pergunta aos senhores: Caso
houvessem dado a essa tartaruga uma outra
oportunidade, no lugar de ela morrer e virar instrumento
de veneração, que pudesse continuar vivendo e
arrastando o rabo no lodaçal dos pântanos, será que
escolheria o sacrifício ao qual se viu submetida?

153
Os emissários nem careceram de muita demora até
responderem quase numa só voz:
– Asseguramos, sem duvidar, que, se pudesse, ela
preferiria continuar vivendo e arrastando o rabo no
lodaçal dos pântanos.
– Eu imagino também que desse modo escolheria –
retrucou o mestre, acrescentando:
– Por isso, desejo aos senhores que retornem e
transmitam ao príncipe meus agradecimentos pelo
honroso convite. Pois também pretendo seguir vivo e
permanecer aqui em meu lugar, arrastando o rabo na
lama escura destes sítios felizes aonde moro!

154
Tempo certo de viver
(conto zen)
Ainda pequenos, eles revelaram vocação para a vida
religiosa. Filhos de pais pobres, os dois irmãos
venceram com ardor a oposição da família e buscaram
o convívio dos monges. Na província chinesa aonde
habitavam, preso nas encostas íngremes dos
penhascos, havia secular monastério que oferecia esta
oportunidade.
Empenhados chegaram e prosseguiram afeitos ao
serviço contemplativo, na ordenha das cabras,
cumprindo tarefas na lavoura, nos jardins, na limpeza
das celas, petição de esmolas, viagens, cuidando de
canteiros, videiras, orações, meditação, cozinha,
banheiros, etc.
Exímios instrumentistas, cantavam e tocavam nas
cerimônias diárias e nos dias de festa; sempre alegres,
dispostos, amigos.
Naquele lugar de tradições, conservavam-se sob
chaves, em armário vetusto, algumas peças de rara
porcelana, patrimônio só entregues ao zelo dos noviços
de maior confiança.
Lá um dia, o superior houve de empreender distante
missão, largando por algumas semanas a rotina
comunitária.
Ao irmão mais moço, coube, nesse período, a
manutenção das louças. Foi quando aconteceu o
acidente desventuroso. No que pesassem todos os
esforços e cuidados, escorregou-lhe pelos dedos uma
das finas tigelas, presentes do Imperador aos primeiros
devotos do lugar.
Gelado, sem cor, arrastando magoados temores, o
noviço correu à procura do irmão e, aos prantos,
contou o infausto sucedido. Depois de estudar o que

155
pôde, este resolveu levar o caso ao chefe do templo,
que lhes aplicou admoestações e ameaças face ao
ocorrido.
Passados alguns dias, o superior retorna ao
mosteiro. Logo no dia seguinte, antes mesmo de avistar
o substituto que ficara na sua função, compareceu à
sua presença o irmão do noviço que quebrara a tigela
preciosa, e nisso indagou:
– Mestre, todo ente que existe neste mundo passa,
ou não, pelo fenômeno da morte?
– Morre, sim, qualquer de nós – respondeu sem
titubear o religioso. - O próprio Buda vivo cumpriu dita
experiência – acrescentou.
– Certo, compreendo – seguiu o noviço. – E as
coisas, mestre, entes esses que habitam as outras
existências, animais, vegetais, minerais, objetos
inanimados, também descrevem igual itinerário de
morte?
Cerimonioso, o mestre deixou os olhos absortos no
vazio distante e poucos momentos depois retornou:
– Sim, sim! Toda existência temporal cumpre as
três fases-limite de nascer, viver e, um dia, desaparecer
nas sombras inescrutáveis da ausência de forma.
– Por isso, diante do desaparecimento de pessoas,
bichos ou coisas, cabe-nos, sem revolta ou
constrangimento, aceitar com naturalidade o que
acontece nas surpresas desta vida, assim podemos
concluir? – prosseguiu no diálogo o discípulo.
– É a pura verdade pensar do jeito que fazes.
Bem nessa hora preparada pelo futuro monge, de
sorriso maroto, ele abriu as bordas do hábito e mostrou
ao superior os cacos da antiga tigela que transportava
junto do corpo, afastando-se com gestos reverentes.

156
O touro valente
(conto popular)
Era uma vez, numa floresta longínqua, touro selvagem
que se considerava o bicho mais valente da Terra, até
que soube existir animal que lhe superava na força.
Escutou dos outros bichos que o homem possuía
coragem do tanto de superar os seus poderes de fera
indomável, motivo pelo qual devia concordar em ser
menor do que ele no reino da criação.
Isso, entretanto, só aguçou mais ainda a curiosidade
do touro, que tratou de empreender difícil jornada à
civilização, na procura do bicho homem, com quem
pretendia manter um encontro e provar quem seria, na
verdade, o mais valente dos animais.
Depois de viajar muitos meses, aproximou-se da
cidade dos homens, avistando um menino, a quem se
dirigiu:
– És tu o famoso bicho homem, rei da valentia? –
perguntou.
– Não, sou ainda não - respondeu-lhe o garoto. –
Só daqui a pouco chegarei a ser homem.
Adiante, o touro avistou um ancião encurvado pelo
tempo, a quem fez idêntica pergunta.
– Não, não sou mais esse bicho tão valente – ouviu
de resposta. - Um dia, que vai bem distante, pude assim
me considerar, mas as energias ficaram para trás, na
idade que hoje carrego.
Seguiu o touro na sua busca incansável, até se
deparar com um caçador munido de ameaçadora
espingarda, de quem foi logo indagando sobre o homem,
como das vezes anteriores.
Poucas palavras trocaram e logo quis o touro provar
dos dois qual seria o campeão, avançando contra o
homem que, em legítima defesa, disparou carga

157
grossa de chumbo no meio das fuças do bovino,
remetendo-o aturdido de volta ao mundo de onde
viera, em desesperada fuga.
Tempo depois, chegou ele ferido na floresta em que
habitava, causando espanto nos outros bichos que
quiseram saber o resultado de sua procura e se existia
mesmo quem pudesse igualá-lo em valentia, no que tratou
de explicar:
– O homem é o mais valente de todos os animais.
Vejam vocês que apenas um espirro dele quase que me
arrebentou a cara – dando-se por satisfeito com as
experiências de comparar sua valentia.

158
As três vezes
A partir do dia em que O avistara pela primeira vez,
quando consertava redes de pesca na praia do Mar da
Galiléia, percebeu não se tratar de indivíduo comum,
desses do povo, iguais entre si, encontradiços nos becos
e vilas. Seu sorriso puro, a sublimidade dos seus gestos
e das palavras com que sacudia os corações de ânimo,
jamais experimentara noutros momentos felizes, ainda
que mantivesse constante a busca de viver sob os
princípios mosaicos e acalentasse o sonho de chegar,
um dia, a ser perfeito.
Rendera-se logo à Sua personalidade ímpar. Aceitara
sem tergiversar o convite de semear grãos eternos na
lavoura das almas. Deixara profissão, família,
compromissos mundanos, prazeres indébitos, e se pusera
ao Seu lado pelos caminhos da Palestina, a ouvi-lO e
também a pregar as novidades do Amor.
De modo semelhante, novos discípulos aceitaram
segui-lO a garimpar vidas e se transformar para o Bem,
excursionando através de lugares atrasados, multidões
famintas e injustiça social.
Vezes inúmeras presenciara curas maravilhosas, que
extasiavam comunidades inteiras, aumentando a certeza
de nEle avistarem Deus vivo habitar os chãos ressequidos
daquelas terras, indicando aos homens a luz imortal.
Vira, em certo momento, trazer de volta um amigo
que dias atrás passara ao outro mundo, corpo já a exalar
os odores fétidos da morte. Retornou Lázaro (lembrou o
nome do ex-defunto) ao claro do dia, são e salvo, alegrando
os seus parentes estarrecidos com o que viam.
Abriu os olhos aos cegos, devolveu movimentos a
paralíticos, sarou hemorrágicas, devolveu juízo a
dementes, e discursava como ninguém mais há de ver

159
entre os humanos, contando histórias belíssimas de
libertação, transcendência, felicidade para sempre
prometida nos páramos espirituais.
Falava de um Reino esplendoroso, realizações
definitivas, oceanos de paz. Suas falas contagiavam a
todos, não importava o nível de compreensão intelectual,
parecido coisas das dimensões imemoriais, naquilo que
transmitia com maestria rara e prudente saber.
Numa dessas ocasiões, longe de qualquer localidade
urbana, alguns milhares, que Lhe seguiam os passos e
ouviam Suas palavras, tiveram fome. Pediu, então,
restos de alimentos e os multiplicou, saciando-lhes o
apetite. Depois, sobrara nos cestos mais do que antes
reuniram.
Quantos mistérios anotara numa só existência
através daquele Homem prodigioso.
Contudo, no decorrer da jornada salvadora,
despertou a inveja criminosa dos maiorais do Sinédrio,
a seguirem seus passos. Ao aproximarem-se de
Jerusalém, no tempo da Páscoa, crescera o furor da
conspiração que rondava. O poder de Roma, nas terras
palestinas, perseguia as lideranças populares, visando
descaracterizar, ao máximo, influências judias e tornar
o povo presa fácil dos colonizadores.
Nessa hora, portanto, após Sua prisão, soldados
vorazes caçavam quem O conhecesse. Aos primeiros
clarões da madrugada, alguns da turba chegaram perto
de Pedro e reconheceram o discípulo.
– Eis aqui um dos seguidores do rabino – gritaram
no pátio frio da masmorra aonde retinham Jesus.
– Não! Não! Eu nunca me acompanhei desse
homem! – rebateu o apóstolo pela terceira vez. Em
seguida, largou-se em ríspidas passadas, escutando
distante, no canto de um galo, a melodia angustiosa
que lhe rasgava de dor o peito compungido.

160
A vaquinha
(conto popular)
As histórias do povo alimentam-no de virtudes
exemplares, conduzindo valores essenciais que de outro
modo passariam despercebidos, isolados, não fossem
os contos e as metáforas para levá-los adiante. Vem
disso a continuação dos mitos orais, nas diferentes
culturas.
A propósito, perante situações adversas que a vida
impõe, existe uma tendência ao contraditório, à teimosia,
da parte das pessoas envolvidas, disputa interna que,
por vezes, recusam evidências, quais fatalidades injustas
do que se convencionou chamar destino.
Em passe de mágica, de um e a outro momento, os
ventos giram a roleta da sorte e sujeitam mudar projetos
elaborados há séculos, antes considerados perfeitos, que
esvaem feito espuma, a nutrir as mentes mais fracas. Só
depois, vêm perceber, nas dobras do futuro, que se
tornaram herdeiros das perspectivas venturosas,
imprevistas, benfazejas.
Conhecem-se, através da tradição popular, histórias
que, na prática, demostram na prática o que dissemos.
Eis uma delas, pois:
Há décadas, no sertão nordestino, em fazenda típica
do semi-árido, mourejava um agregado e sua família;
esposa e cinco filhos. Amarguravam a estrutura medieval
do interior, onde os moradores fazem parte integrante
da gleba. De seca e inverno, esperassem além do
necessário, reduzidos ficavam à rude sobrevivência.
O pai rasgava a terra, plantava legumes, no período
das chuvas. Durante o estio, servia apenas de braço ao
dono do chão. Dispunha de poucos bens: eles próprios,
os instrumentos de ganhar o pão, os trens da cozinha e
um animal de leite, ganho de meação, vaquinha que

161
remediava os filhos, neutralizando a penúria.
Um animal peçonhento, porém, triste dia, colheu
de surpresa a pobre vaquinha, morta do dia à noite,
refugada na pele e nos ossos.
Com o infausto, chegou o matuto na casa do
proprietário, pediu suas contas, reuniu mulher, filhos e
coisas, e largou-se no oco do mundo.
...
Inteirava trinta anos e um pouco mais, quando o
antigo senhor da fazenda viajou a terras do Paraná e
encontrou sem esperar o ex-agregado e sua família.
Diz a história, ter o migrante enriquecido; possuía
fazenda bem equipada, produzia fartas lavouras e
educara os filhos nas melhores escolas.
Admirado de ver o progresso daquelas criaturas, o
ex-patrão se aproximou e quis saber por onde andaram
desde que foram embora.
– O senhor lembra da vaquinha que eu tinha lá no
sítio? – perguntou o velho agregado. – Quando ela morreu,
daí fui forçado a correr e procurar as saídas, daí, andei
mundo – continuou. – Nos começos, trabalhava feito
doido, mas serviço não faltava. Os meninos cresceram e
ajudaram no pesado. Ganhos melhores, economizei o
quanto pude e comprei uma bola de chão. Mais alguns
cobres, juntei uns gados. Atravessado o pior, hoje, vejo
que, o que pensava ser uma desgraça, transformou-se
em vontade de vencer e superar os limites. Por isso,
agradeço a perda de minha vaca, que me tirou de sua
fazenda e me botou noutro lugar.

162
O vendedor de flores
(tradição oriental)
Em montanha de país distante, vivia um camponês a
colher flores silvestres e levá-las para vender na cidade
mais próxima. Obediente a essa rotina, todos os dias
acordava bem cedo, descia ao vale, cruzava um rio e
buscava o mercado da cidadezinha para fazer o
comércio. Ao final da tarde, ao retornar para casa,
deixava nas águas do rio as flores que não vendera;
dessa maneira trabalhava para a viver.
Certa vez, em época de grandes cheias, o camponês
achou-se impedido de fazer o percurso rotineiro, porque
o rio descia com muita água, tornando-se perigoso,
intransponível.
Na ocasião, sem alternativa, viu aparecer enorme
tartaruga, que se ofereceu para levá-lo ao outro lado
da indomável correnteza. Ele subiu no casco do animal
e, para seu espanto, foi transportado às profundezas
do rio, até suntuoso palácio em que morava a rainha
das águas.
No reinado misterioso, achou-se em meio a uma
animada recepção comandada por linda princesa. Com
isso, ela agradecia as flores que toda tarde lhe
chegavam, lançadas pelo camponês no rio. Na sacada
do palácio, acolhia-as como oferendas daquele homem
desconhecido. Desse modo, o rico cerimonial de
banquetes, música e folguedos, homenageava o
visitante, numa festa alegre que se estendeu por largo
tempo.
Depois, estabeleceu-se feliz convivência entre os
dois, ele e a princesa, o que continuou meses seguidos,
enquanto o vendedor de flores ali permaneceu. Todavia,
ao sentir saudades dos velhos amigos que deixara para
trás, decidiu retornar ao seu lugar de origem.

163
Procurou os superiores do reinado, contou-lhes os
planos de partida, no entanto foi orientado de que deveria
seguir sob a companhia de uma criança modesta, de
singelos trajes, a quem, segundo combinado, caberia
educar, missão outorgada pela princesa, dizendo ao
camponês que perante qualquer necessidade recorresse
ao menino e ele atenderia a todos os seus pedidos.
Chegados ao velho casebre onde morava, notou que
havia limitação de espaço para habitarem os dois.
Lembrou a recomendação da princesa, e pediu ao
menino uma casa maior. De imediato viu posta à sua
disposição uma mansão de muitos cômodos.
Noutras ocasiões, não foi diferente. Sempre que
precisava de alguma coisa, solicitava do menino
maltrapilho. E nesse passo recebeu bens de riquezas mil.
Desse modo, senhor de muitas posses, um dia quis que
o menino melhorasse os modos de se apresentar, que
vestisse roupas de acordo com as exigências dos
freqüentadores do meio em que viviam, cercados de fausto
e nobreza, pois havia queixas das vestes maltrapilhas
que usava nos salões luxuosos.
Em virtude dessa imposição, o menino contrariou-
se, entristeceu e, afinal, transmitiu ao camponês sua
vontade de ir de volta para o rio, no que se viu atendido
sem que o homem demonstrasse qualquer apego ao amigo
fiel.
Porém, logo depois da ocorrência, o rico proprietário
se surpreendeu com o brusco desaparecimento das
coisas que antes ganhara do garoto mediante a
apresentação dos seus desejos.
Ao perceber-se outra vez pobre, apressado correu
na direção do rio aonde deixara o menino, mas
observou que ele desaparecera sem deixar qualquer
vestígio.

164
A vidente de Endor
Depois do sucesso de Davi contra Golias, no vale do
Terebinto, quando as forças de Israel tornaram, por
isso, a crescer de ânimo na luta contra os filisteus, o
rei Saul viu nítida a liderança do humilde pastor junto
ao povo, numa fase de abatimento e muitas
contradições.
De início, o jovem até então desconhecido chegara
trazendo bons presságios, todavia isso logo se reverteu,
na impressão do soberano, em ameaça flagrante, pelas
qualidades e frieza demonstradas contra o gigante a
que ninguém se dispusera enfrentar.
Outrossim, ainda que notasse as limitações pessoais
de Saul para estabelecer pacto honroso com o inimigo
e cessar de vez com os turnos de animosidades e
incoerência, David mantinha-se à distância de
quaisquer pretensões políticas.
Saul, contudo, amargava as perdas da guerra e
sentia-se distante do amparo divino, por conta de
anteriores desobediências.
Naquele período, Israel ainda sofria pela morte de
Samuel, há pouco sepultado em Ramá, sua cidade
natal. Saul expulsara do país os feiticeiros e adivinhos,
e acumulara as tropas em Gelboé, enquanto os filisteus
acampavam em Sunão.
Diante de tais acontecimentos, às vésperas de
outros pesados confrontos, Saul sentiu medo. Nem
sacerdotes, profetas ou sonhos respondiam às suas
preces. Nisso, em arrepio ao que ele mesmo
determinara, resolveu consultar uma vidente, na
localidade de Endor, querendo a todo custo conhecer o
que o futuro lhe reservava.
E na companhia de dois servos, segundo o Primeiro

165
Livro de Samuel, 28, 3-25, à noite, disfarçado, chegouaté
a casa dessa mulher, em Endor.
Após jurar pelo Senhor que jamais a denunciaria
por causa daquela consulta, pediu que ela lhe
trouxesse à presença o espírito do próprio Samuel,
recém desaparecido, com quem queria conversar.
Concentrada, então, a vidente sentiu-se face a face
com o antigo juiz dos judeus, figura ilustre que se
manifestava, e prostrou-se sobre a terra.
Estabeleceu-se grave diálogo, onde Samuel
admoestava Saul por lhe perturbar o repouso, ao que
ele justificava narrando a sua aflição, fruto da guerra e
do silêncio de Deus para consigo. Angustiado, pedia
orientação, e, por fim, ouviu estas palavras:
– Saul, ainda amanhã o Senhor entregará a ti e a
teus filhos, junto com o exército de Israel, nas mãos
dos filisteus – diante daquilo, Saul concluiu que tudo
estava perdido e morreria no fragor da próxima batalha.
Tonto, desolado, caiu exausto, pois jejuara dias
seguidos, querendo merecer de Deus misericórdia pelos
seus desatinos.
Passado o transe, a médium dele se aproximou,
convidando-o a que o soberano se alimentasse e
refizesse as energias. Providenciou refeição de pães e
carne, e os visitantes partiriam antes do amanhecer.
No mesmo dia, no confronto de Gelboé, os filisteus
perseguiriam de perto Saul e seus três filhos, Jônatas,
Abinadab e Melquisua. Ferido de morte na luta, Saul
pediu a seu escudeiro que lhe terminasse os dias. Fiel,
o guerreiro negou-se a fazê-lo, restando ao rei, ele só,
tirar a própria vida.

166
A xícara de chá
(conto taoísta)
De comum, as pessoas vivem cheias, abarrotadas de
conceitos a propósito de quase tudo, espaços
ambulantes preenchidos até as bordas, quartos de
despejo sem caber nem mais um dedal, lotados
intelectos de mil divagações. Para onde se deslocam,
arrastam tralhas, cacarecos zoadentos a emitir sons,
opiniões superabalizadas, senhoriais, batendo portas
na cara das novas chances, produtos acabados de
roteiros fora de moda, nos circuitos comerciais das
estradas velhas no mesmo lugar.
Isso lembra um episódio experimentado pelo mestre
japonês de nome Nan-In, que viveu na era Meiji, período
situado entre 1868 e 1912, quando, certa feita, veio visitá-
lo sapiente pesquisador, na busca de respostas prontas
as dúvidas relativas ao zen-budismo.
Nessa hora, introduzido nos aposentos do mosteiro
a fim de comungar da tradicional cerimônia do chá
daqueles religiosos, primeiro o visitante desmanchou-se
em longas falas quanto a como trabalhar o assunto de
suas pesquisas espirituais.
De antemão, sabia de tudo o que viera aprender.
Falou... Falou... Falou mais ainda... Ao tempo em que o
mestre despejava com zelo, na xícara do visitante, o chá
cheirava a ervas perfumadas. As palavras ditas em
quantidade inundavam o ambiente, envolvidas na fumaça
do bule fervente, vibrações múltiplas que preenchiam o
sítio discreto da cela do monge calmo.
Sem conter a mão, o mestre prosseguiu no gesto de
derramar o chá e encher a xícara, após saber que esta já
transbordava e o líquido escorria farto pelas bordas,
inundando o pires e a mesa pequena, em volta de onde
se reuniam.

167
Nesse momento, o visitante externou impaciência
com aquilo e reclamou: – A xícara encheu! Não cabe
mais nada.
– Isto mesmo, semelhante ao que se dá com esta
xícara, – disse Nan-in – o senhor se encheu de tantos
pensamentos que anula as alternativas dos outros
estudos que quer desenvolver. Daí sua resistência em
parar e ouvir algo a respeito do que veio à procura.
E, de quebra, acrescentou:
– Antes de receber coisas novas, primeiro, cabe
esvaziar o interior, qual se esvazia uma xícara onde
queiramos beber as luzes do conhecimento.

168
Zadig
Dentre os livros escritos por (François-Marie Arouet)
Voltaire, há pelo menos dois que significam momentos
excelentes da boa literatura universal, dados o estilo
claro, humorado, e a pura diversão que representam,
espelhos primorosos da condição humana. São eles,
Cândido ou o Otimismo, e Zadig ou o Destino. Neste,
dividido em capítulos curtos que descrevem a vida
tumultuada de um babilônio através de alguns povos
orientais (cheio das saídas astuciosas do Pedro
Malasartes nacional), o personagem-título, depois de
vendido escravo a mercador árabe de nome Setoc,
acompanha seu proprietário na cobrança de 500 onças
de prata emprestadas a um hebreu mau pagador.
Na ocasião do empréstimo, duas outras pessoas
presenciaram a transação, porém elas morreriam no
período, ocorrência favorável ao instinto velhaco do
devedor. Chamado pelo credor a honrar o compromisso,
o judeu alegou não devê-lo, porquanto havia absoluta
falta de provas da conta.
Desapontado, Setoc dirigiu-se a Zadig, cativo de sua
confiança, e segredou os pesares do acontecimento, na
busca de apoio.
Após ciente do desgosto do senhor, Zadig quis saber
em que lugar os dois tinham realizado a negociação do
empréstimo.
- Em cima de uma grande pedra – tornou-lhe o
mercador – que fica ao pé do monte Horeb, conta Voltaire.
Em seguida, inteirou-se a propósito das principais
características do devedor, indo ambos comparecer em
juízo, instância que restava para promover a cobrança.
Exposta a causa na audiência, o magistrado
solicitou as provas do débito, no caso, o depoimento

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das testemunhas. Zadig alegou, em defesa, que estas
não mais existiam, porém enorme a pedra poderia
substituí-las, restando apenas ao julgador emitir ordens
para que a procurassem e trouxessem, e tudo se
resolveria.
Intrigado com a proposta, o juiz prosseguiu nos
despachos da sua atividade judicante. Ao término dos
trabalhos, em tom de gozação, dirigiu-se a Zadig e
perguntou:
- Então, ainda não chegou a vossa pedra?
Nisso, o hebreu tratante embarcou na galhofa do
magistrado e, rindo, considerou que ela não chegaria nem
no dia seguinte, vez localizar-se a mais de seis milhas e
serem necessários quinze homens para removê-la.
Hábil, Zadig manifestou de pronto o seu triunfo,
reafirmando que a pedra, sim, serviria de testemunha do
empréstimo. Ao identificar o sítio em que achá-la e
conhecer a sua dimensão, assim o réu confessava a
autenticidade do débito sobre cuja pedra contraíra.
Diante do encaminhamento lógico dos
acontecimentos, outra alternativa não restou ao
devedor senão reconhecer a dívida que negara,
recebendo a sentença de permanecer amarrado à pedra,
sem comer, nem beber até pagar a conta.
O célebre autor francês conclui acrescentando que,
depois do sucedido, Zadig e a pedra passaram a ser muito
celebrados na Arábia.

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