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Deve-se a Enrico Tullio Liebman, estudioso italiano que lecionou em São Paulo
durante a Segunda Guerra Mundial, a distinção, vitoriosa no Brasil, entre eficácia da
sentença e autoridade da coisa julgada. A sentença, enquanto comando do juiz, emana
seus efeitos mesmo antes da coisa julgada e, com o trânsito em julgado (momento em que
a sentença se estabiliza), impõe-se a todos. Trata-se aquí da eficácia natural da sentença,
distinta da coisa julgada.
A coisa julgada, ainda segundo Liebman, é uma qualidade da sentença e de seus
efeitos, qualidade esta que consiste em sua imutabilidade. E a autoridade da coisa julgada
só é oponível às partes do processo, sendo que o terceiro juridicamente prejudicado pela
sentença pode opor-se a ela, pelos meios postos à sua disposição pelo direito processual.
No entanto, há diferenças entre preclusão e coisa julgada formal. A preclusão, como perda de
faculdades processuais (aqui, pela utilização das vias recursais – preclusão consumativa – ou pela falta de
sua utilização – preclusão temporal), constitui antecedente da formação da coisa julgada formal, mas esta é
mais do que preclusão:é a imutabilidade da sentença dentro do processo.
A coisa julgada material, ao contrário, projeta seus efeitos para fora do processo,
impedindo que o juiz volte a julgar novamente a questão, sempre que a nova ação tenha
as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir: ou seja, sempre que as
ações sejam idênticas, coincidindo em seus elementos.
Embora a garantia constitucional da coisa julgada pareça dirigida somente ao legislador, os Códigos
processuais se incumbem de estender a garantia em relação ao juiz, que não poderá voltar a julgar a mesma
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ação. Trata-se da função negativa da coisa julgada, consubstanciada também no princípio do ne bis in idem.
Para tanto, o Código de Processo Penal contempla a exceção de coisa julgada (art. 110, par. 2o do CPP),
que na verdade é uma objeção, pois pode ser conhecida de ofício.
No processo civil, a sentença, de qualquer espécie, pode ser rescindida no prazo de dois anos, a contar
do trânsito em julgado, nas hipóteses previstas pelo art. 485. Mas existe uma tendência, conhecida sob a
denominação de “relativização da coisa julgada”, que propugna, em casos excepcionais, que, mesmo
vencido o prazo da rescisória, a coisa julgada possa ceder quando a sentença for inconstitucional,
vulnerando princípios constitucionais. Tratar-se-ia, no fundo, de desconsiderar o valor “segurança”, ínsito
na coisa julgada, em face de valores constitucionais mais elevados, utilizando o princípio da
proporcionalidade.
Nessa linha de pensamento, para quem adota a teoria da chamada “relativização da coisa julgada” –
que conta, aliás, com ferrenhos opositores - , a coisa julgada representaria sempre a estabilidade e não a
imutabilidade da sentença.
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5. Limites objetivos da coisa julgada.
A questão dos limites objetivos da coisa julgada consiste em saber quais as partes da
sentença que fazem coisa julgada material. Como vimos, só o dispositivo da sentença, ou
seja o comando do juiz é apto a revestir-se da autoridade da coisa julgada, tornando-se
imutável (ou estável).
O art. 469 do CPC tem a seguinte redação: “Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que
importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II – a verdade dos fatos,
estabelecida como fundamento da sentença; III – a apreciação da questão prejudicial,decidida
incidentemente no processo”. Cumpre lembrar que, no processo civil, a questão incidental pode ser
decidida de forma autônoma, por meio de ação declaratória incidental, fazendo assim coisa julgada. Mas no
processo penal inexistem questões prejudiciais internas, que possam revestir-se da autoridade de coisa
julgada, havendo exclusivamente questões prejudiciais externas, que formam objeto de processo civil
autônomo. Toda questão prejudicial, no processo penal, é apreciada incidenter tantum.
O “fato principal” a que se refere o par. 2o do art. 110 do CPP nada mais é do que o
fato material imputado ao acusado, independentemente de sua qualificação jurídico-
penal. As circunstâncias do crime, os elementos acessórios e complementares, não
influem no fato principal descrito na imputação, pois esta é que constitui a causa de pedir
que identifica o pedido acusatório e a ação penal.
Outra visão sobre os limites objetivos da coisa julgada liga-a ao objeto do processo,
tal como definido pelo pedido e pela causa de pedir. O objeto da sentença modela-se
sobre o pedido. O juiz deve responder ao pedido do autor, numa correlação necessária
entre o pedido e a sentença. O que é objeto do processo torna-se também objeto da
sentença, pelo que se pode falar em objeto da demanda, objeto do processo e objeto da
sentença como de três aspectos do mesmo fenômeno.
Mas é preciso salientar que a coisa julgada alcança a parte dispositiva da sentença e
mais o fato constitutivo do pedido (a causa petendi). As questões que se situam no âmbito
da causa petendi se tornam igualmente imutáveis, no tocante à solução que lhes deu o
julgamento, quando essas questões se integram no fato constitutivo do pedido (José
Frederico Marques). Isso é particularmente importante em relação à ação penal
condenatória, onde o pedido é sempre genérico (à condenação) e o fato imputado ao
acusado é a causa de pedir.
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Assim, quando se fala em objeto do processo, como determinante dos limites e do alcance da
autoridade da coisa julgada – pensa-se na pretensão de direito material contida no pedido apresentado ao
juiz, isto é no mérito. Só a sentença de mérito é idônea a revestir-se da autoridade da coisa julgada.
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Finalmente, cabe examinar o fato novo. No processo civil, podem surgir – e
surgem – dúvidas e controvérsias, distinguindo-se as sentenças que tenham decidido
sobre elementos permanentes e imutáveis da relação jurídica e as que tenham
decidido sobre elementos temporários e mutáveis da relação jurídica. As primeiras
são infensas aos fatos novos, mas as segundas, quando houver variações nos
elementos quantitativos e qualitativos, curva-se e não resiste ao fato novo (assim
ocorre, por exemplo, nas relações jurídicas continuativas, como na condenação em
alimentos).
No processo penal, a questão é mais simples. A sentença condenatória julga
sempre a respeito de um determinado fato principal, e só este é acobertado pela coisa
julgada. Outro fato, posteriormente ocorrido, pode ser perfeitamente constituir objeto
de novo pedido, fundado em outra causa de pedir, e, consequentemente, de nova
sentença.
É o que se vê no número seguinte.
A persecução penal pode ter por objeto infrações múltiplas, ligadas entre si de modo a
constituírem infrações em concurso, ou então ligadas pela conexão. Estas últimas não
formam uma unidade delituosa, sendo que os vínculos que as unem são exclusivamente
de direito processual, em face da reunião de processos pela conexão. Cada fato principal
ficará, assim, coberto pela autoridade da coisa julgada, tratando-se, no caso, de diversos
capítulos da sentença, cada um com sua parte dispositiva.
Mas em relação ao concurso de infrações penais podem surgir dúvidas quanto aos
limites objetivos da coisa julgada.
No concurso aparente de normas, o fato imputado enquadra-se em mais de uma
norma penal, de modo que a sentença passa em julgado, impedindo nova ação, ainda que
a imputação tenha sido examinada apenas sob o ângulo de uma dessas normas.
Mas no crime progressivo – que também se inclui no concurso aparente de normas –
parece acertada a posição segundo a qual, quer se tenha julgado em primeiro lugar o
delito mais grave da linha progressiva, quer o menos grave, é impossível o reexame do
fato em nova ação penal.
Porém, ocorrendo concurso formal de crimes, o julgamento de um dos delitos em
concurso não impede nova ação penal em relação ao outro.
Quanto ao crime permanente, a coisa julgada incide sobre um só crime constituído
por um estado delituoso cujo momento consumativo se protrai no tempo. A clara unidade
jurídica e material constitui uma única infração, não podendo o acusado ser perseguido
mais de uma vez.
O crime habitual indica a reiteração da mesma conduta, de modo que a coisa julgada
cobre todo o fato delituoso, em relação às ações anteriores do acusado. Mas, depois da
sentença, podem ser praticadas novas condutas que possam formar outro crime habitual e,
nesse caso, será possível nova acusação, quando e se as novas condutas sejam totalmente
desligadas do conjunto de fatos anteriormente praticados. Tratar-se-á, nesse caso, de novo
crime habitual.
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Em relação ao crime continuado, a melhor opinião é a que considera esse crime uno
somente em virtude de uma ficção, tendo por objetivo atenuar a medida da sanção penal.
Desse modo, a coisa julgada não impede a acusação relativa a outros fatos componentes
da continuação, desde que descobertos após a sentença. É que, neste caso, os fatos novos
não constituíram objeto do processo e, por isso, não foram julgados.
A regra geral, que se pode extrair dos casos expostos, é a de que a coisa julgada não
cobre os fatos naturalísticos posteriores à sentença, atuando tão somente para o passado e
para o presente e incidindo apenas sobre a realidade existente à época da sentença. Em
outras palavras, a coisa julgada opera sempre rebus sic stantibus.
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condenação do primeiro acusado não constitui obstáculo para a condenação do
segundo.
Mas, quando há co-autoria, a absolvição do autor principal pode, em
alguns casos, importar em absolvição do co-autor. O art. 580 do CPC prescreve
que “no caso de concurso de agentes (Código Penal, atual art. 29), a decisão do
recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de
caráter exclusivamente pessoal, aproveita aos outros.” Mutatis mutandis, isso
significa que se co-autor não foi processado juntamente com o primeiro, a
absolvição deste aproveitará ao outro, desde que os fundamentos da absolvição
não sejam de caráter exclusivamente pessoal.
Assim, por exemplo, o credor do réu, condenado acessoriamente à perda dos bens, tem
mero interesse de fato, e não pode opor-se à coisa julgada.
É o que ocorre com o responsável civil, em relação à execução civil da sentença penal
condenatória passada em julgado (infra, n. 9).
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Machado Guimarães procedeu a interessante construção, que não afasta o
princípio tradicional da inaptidão das questões de fato para se revestirem da autoridade da
coisa julgada: o art. 1.525 do CC de 1916 (atual art. 935) consagraria um tipo de eficácia
preclusiva não identificável com a coisa julgada. Barbosa Moreira, apoiado em José
Frederico Marques, arrolou a exeqüibilidade civil da sentença penal entre os chamados
efeitos secundários desta sentença.
Nossa visão é outra: a lei opera a ampliação do objeto do processo (penal), para
nele incluir o julgamento implícito sobre o dever de indenizar ou a declaração da
inexistência do direito à reparação do dano ex delicto. Essa posição indica que a questão
da reparação civil passa dos motivos ao próprio dispositivo (implícito) da sentença penal,
como resposta à ampliação do objeto do processo, que abrange a condenação - ou a
imunidade - à indenização.
Esta lei suprime o processo autônomo de execução em relação às sentenças condenatórias civis. A
execução agora é apenas uma fase do processo de conhecimento, não havendo mais citação, mas mera
intimação, para o início da liquidação ou execução. Todavia, com relação à sentença arbitral, à sentença
estrangeira homologada e à sentença penal condenatória, arroladas entre os títulos executivos judiciais, a
lei exige citação para a liquidação ou execução (parágrafo único do art. 475-N do CPC). Deriva daí que,
em relação à sentença penal condenatória, o devedor será citado para a liquidação, sempre necessária para
quantificar os danos provocados pelo réu (e que se efetivará mediante liquidação por artigos, pois haverá
induvidosamente fatos novos a serem alegados e provados (art. 475-E do CPC). Entendemos que, uma vez
liquidada a sentença condenatória penal, sua execução se fará nos termos do disposto na lei n. 11.232, não
se exigindo nova citação. Mas a esse respeito a doutrina ainda é incipiente e inexistem decisões judiciais
sobre o assunto.
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Código de Processo Civil, segundo a qual a legitimidade passiva, na execução, é atribuída
ao devedor, reconhecido como tal no título executivo (art. 568, I, do CPC), de modo que
o terceiro, civilmente responsável pelo dano, é parte ilegítima na execução civil da
sentença penal.
Deriva daí a interpretação a ser dada ao art. 91, I, do CP (art. 74, I, do estatuto
anterior): efeito secundário da condenação penal é tornar certa a obrigação de indenizar o
dano resultante do crime. Mas, evidentemente, em relação ao réu do processo penal e não
ao responsável civil, terceiro juridicamente interessado que não é alcançado pela
autoridade da coisa julgada. Assim também deve ser interpretado o atual art. 935 do CC
(correspondendo ao art. 1.525 do Código de 1916): “A responsabilidade civil é
independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou
sobre quem seja seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo
criminal.” Quem não pode mais questionar essas questões é, igualmente, aquele que foi
parte no processo penal –o réu – e não o responsável civil.
Assim, quando a vítima pretender ser ressarcida pelo responsável civil, deverá
mover ação de conhecimento, e não processo de execução, em face do terceiro. E, nessa
ação de conhecimento, o terceiro poderá questionar livremente a existência do fato e a
autoria, não lhe se podendo opor a coisa julgada penal, que não o alcança.
Se, todavia, o processo de execução for intentado contra o responsável civil, este
poderá – quando citado para a liquidação – opor a chamada “exceção de pré-
executividade”, fundada nos argumentos supra elencados, e que serve exatamente para
bloquear a execução, antes da penhora.
A lei n. n.11.232, de 22 de dezembro de 2005, a que aludimos no n. 10, não aboliu a exceção de
pré-executividade, instrumento utilizado antes da penhora, que surgiu e é utilizado na práxis judiciária, com
o reconhecimento da doutrina e da jurisprudência.
Observe-se, finalmente, que no regime anterior italiano, que previa um sistema de efeitos civis da
sentença penal condenatória igual ao brasileiro, permitindo expressamente que a sentença condenatória
fosse executada contra terceiros (art. 27 do cpp), a Corte Constitucional considerou inconstitucional a parte
do referido dispositivo que assim dispunha (sent. n. 55, de 22.03.1971 e sent. n. 99, de 27.06.1973)
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do art. 66 restringe-se aos casos em que o juiz declarar não ter o autor cometido o fato
delituoso de que é acusado, por não haver praticado a conduta comissiva ou omissiva
imputada.
A absolvição por atipicidade não exclui, evidentemente, a responsabilidade civil,
pois o fato imputado pode não constituir crime, mas sim ilícito civil. É que o ilícito penal
pressupõe sempre o ilícito civil, mas o contrário não é verdadeiro. O mesmo ocorre com a
extinção da punibilidade (art. 67 do CPP).
Nos casos de exclusão da antijuridicidade, a vinculação da responsabilidade civil
à sentença absolutória penal é regulada pelo art. 65 do CPP, que estabelece fazer coisa
julgada no juízo cível a sentença penal que reconheça ter sido o ato praticado em estado
de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no
exercício regular de um direito.
A respeito da pretensa extensão da coisa julgada aos motivos, nos casos indicados pelos
dispositivos em comento, ver supra, n. 9.
Mas o art. 65 do CPP não afirma que o réu fica isento de responsabilidade civil
nas hipóteses nele previstas. Indica apenas que não se poderá mais discutir, no juízo cível,
a respeito das justificativas penais que elidem a antijuridicidade. No entanto, será o
direito civil que regulará a responsabilidade nessas hipóteses.
Por sua vez, o Código Civil excluiu da esfera da ilicitude os atos praticados em
legítima defesa, no exercício regular de um direito reconhecido ou em estado de
necessidade (art. 188 do CC). Desse modo, em princípio, a responsabilidade civil também
será excluída nos casos do art. 188 do CC, não se caracterizando neles nem ilícito penal,
nem ilícito civil.
Em princípio, afirmamos, porque a responsabilidade civil não é excluída, nos
termos do Código Civil, em relação à pessoa lesada que não for culpada pela situação de
estado de necessidade ou legítima defesa, dispondo nesse caso o autor do dano de ação
regressiva em relação ao responsável (arts. 929 e 930 do CC).
Observe-se, finalmente, que o art. 188 do CC não exclui expressamente o ilícito
civil no caso de estrito cumprimento do dever legal. No entanto, a hipótese pode ser
perfeitamente subsumida ao exercício regular de um direito reconhecido.
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