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Colcha de Retalhos

O homem tem buscado, continuamente, entender o universo, a origem da vida


e a si próprio e, talvez por isso mesmo, cada homem tenha uma visão de
mundo particular, baseada na maneira como registrou as informações
disponíveis no acervo sócio-cultural e histórico da humanidade, estruturado
como linguagem. Cada indivíduo – indivisível – representa uma forma única de
diferenciação deste acervo, com memórias próprias construídas ao longo da sua
história de vida.
Este texto tem a intenção de chamar à discussão, diferentes formas de
produção e validação de conhecimentos e como elas são estruturantes de seres
humanos.

No universo

Em algum lugar no passado, que eu não deveria chamar nem de lugar nem de
passado, porque não existia matéria, nem espaço e nem tempo, alguma falha
rompeu o eterno equilíbrio do “nada” em uma violenta explosão de trilhões de
graus Kelvin, criando espaço, tempo e toda matéria e energia que conhecemos
como “universo”.
De acordo com os modelos cosmológicos aceitos pela comunidade científica,
esta explosão da “singularidade” – momento antes da criação – que criou o
universo, ocorreu há cerca de 13,7 bilhões de anos e a conhecemos como “Big
Bang”.
Cosmologistas e astrônomos admitem que um tipo peculiar de energia existente
no vácuo do espaço, no nada, tenha se mobilizado e por um processo chamado
“inflação”, o universo se expandiu muito rapidamente nas primeiras frações de
um segundo, terminando esta expansão inflacionária quando esta energia
peculiar foi transformada em formas mais familiares de matéria e energia.
No seu primeiro segundo de existência, o universo era composto de partículas
fundamentais: quarks, elétrons, fótons e neutrinos e continuava se expandindo
com uma velocidade menor que a do momento inflacionário. Os prótons e
neutrons começaram a se formar nos segundos seguintes.
Nos próximos minutos, prótons e neutrons se juntaram para formar os núcleos
dos mais simples elementos: Hidrogênio, Hélio e Lítio. O universo permaneceu
por mais 500.000 anos, como uma enorme nuvem de gases em expansão e sua
temperatura já havia baixado a cerca de 10.000 oK. Nestas condições, elétrons
foram capazes de combinar com núcleos de H, He e Li. Fótons emitidos deste
período podem ainda ser detectados sob a forma de radiações cósmicas de
micro-ondas.
O universo continuava a se expandir e esfriar, até que a força de gravidade
começou a exercer sua influencia e ampliar irregularidades sutis na densidade
do gás primordial, fazendo aparecer bolsões de gás cada vez mais densos, até
que as primeiras estrelas tiveram seus pontos de ignição dentro destes bolsões
de gás. Grupos de estrelas tornaram-se as primeiras galáxias. Neste ponto, o

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universo tinha seu primeiro bilhão de anos e representava não mais que 7% do
seu tamanho atual.
Até o terceiro bilhão de anos, a temperatura do universo baixou para cerca de
10 oK. Galáxias menores fundiram-se em galáxias maiores de maneira tão
violenta, que estrelas e gases se contraíam em um centro comum de tão alta
densidade que formavam grandes “buracos negros” no centro destas galáxias
maiores. Gases fluindo para dentro destes buracos negros se tornavam tão
quentes que emitiam um brilho intenso antes de desaparecer. Os brilhos destes
“quasars” podem ser observados nas profundezas do universo.

Nos bilhões de anos seguintes o universo tornou-se muito frio e chegou a sua
temperatura atual de cerca de 3 oK. Dentro das galáxias, estrelas nasciam,
enquanto outras mais velhas terminavam de queimar suas reservas de
Hidrogênio, Hélio e Lítio em elementos mais pesados e morriam em explosões
cataclísmicas chamadas “Super Nova”, que distribuíam no espaço interestelar,
elementos resultantes da explosão, como Oxigênio, Carbono, Nitrogênio, Cálcio
e ferro. A explosão de estrelas de grande massa produzia, também, elementos
mais pesados como Ouro, Prata, Estanho e Urânio. Estes novos elementos
constituíram a matéria prima para as novas gerações de estrelas.

Se os modelos cosmológicos estiverem corretos, se as observações cósmicas de


que as galáxias estão de afastando umas das outras em velocidade acelerada
também estiverem corretas, o universo continuará a se expandir e esfriar por
trilhões e trilhões de anos, até a aniquilação total das partículas de matéria e
sua morte térmica.

No sistema solar

Pela existência de elementos pesados em nosso sistema solar, sabemos que o


sol é uma estrela de segunda geração, formado a cerca de 4,5 bilhões de anos
dentro de uma nuvem de gases contaminados com restos de estrelas primitivas,
num braço espiral da galáxia “Via Láctea”. Um imenso disco contendo gás e
escombros, que girava em torno do recém-nascido sol, condensou-se formando
planetas, luas e asteróides.

A Via Láctea é apenas uma entre cerca de 200 bilhões de outras galáxias de
formas e tamanhos variados no universo e possui pelo menos 100 bilhões de
estrelas de mesma grandeza, menores e maiores que o nosso sol. Uma parte
destas estrelas parece ter planetas em sua órbita, que podem ou não reunir
condições para a existência de vida primitiva ou inteligente.
Para que tenhamos uma idéia do tamanho da Via Láctea, uma viagem da terra
até o sol à velocidade da luz (300.000 km/seg) duraria 8 minutos. Até “Próxima
Centauro” que, depois do sol, é a estrela mais próxima da terra, a viagem
duraria 4,2 anos, enquanto uma viagem em direção ao centro da galáxia à
velocidade da luz, duraria 24.000 anos.

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A terra se formou, em sua maior parte, de elementos pesados incluindo os
elementos básicos para a vida, carbono e oxigênio, produzidos dentro destes
reatores de fusão nuclear chamados estrelas.
Existem evidencias da existência de vida primitiva na terra a cerca de 3,5
bilhões de anos atrás, quando o universo tinha 10 bilhões de anos. Neste
período, a terra já tinha se resfriado e se estabilizado o suficiente para
suportar o início da vida. Mas que tipo de vida?
A terra primitiva era um lugar com inúmeras erupções vulcânicas, chuvas
torrenciais, pouco oxigênio livre e sem a camada protetora de ozônio para
absorver a radiação ultravioleta do sol. Moléculas orgânicas simples foram
produzidas nestas condições.
Em experimentos laboratoriais, não se pode criar todas as características
ambientais da terra em seus primórdios, mas se misturas de gases como
metano (CH4), gás carbônico (CO2), amônia (NH3) e hidrogênio (H) são
aquecidas com água e energizadas com descargas elétricas ou radiação ultra-
violeta, estes gases reagem e formam pequenas moléculas orgânicas. O mais
interessante é que são geradas, entre outras, as quatro classes de pequenas
moléculas orgânicas encontradas em células: aminoácidos, nucleotídeos,
açúcares e ácidos graxos.
As moléculas de aminoácidos e nucleotídeos apresentam a capacidade de se
associarem em polímeros maiores, ou seja, aminoácidos se ligam e formam
polipeptídios que representam a estrutura básica das proteínas. Nucleotídeos
se ligam e formam polinucleotídeos que representam a estrutura básica dos
ácidos ribonucléico (ARN) e desoxirribonucléico (ADN), moléculas capazes de
dirigir sua própria síntese e auto-replicar.
Estes experimentos sugerem que a vida pode ter sido gerada espontaneamente,
quando a terra apresentava as condições necessárias. A primeira molécula
auto-replicável deve ter sido o ARN que, além de ser mais simples que o ADN,
pode construir uma molécula de ADN.
O processo de evolução biológica foi muito lento no início da vida e precisou de
2,5 bilhões de anos para evoluir das primeiras células aos vegetais e animais
pluricelulares. Pelo menos mais um bilhão de anos se passou para que os peixes
e répteis evoluíssem até os mamíferos. A evolução dos primeiros mamíferos até
nós foi como uma afinação de tudo que a natureza tinha construído até então e
gastou cerca de 100 milhões de anos.
No atual estágio de desenvolvimento das espécies ou “filogenia”, chegamos a
um ponto, que nos últimos 10 mil anos de história registrada, não se percebe
diferenças importantes no processo de evolução filogenética. Este é um
processo lento que depende de mutações genéticas adaptativas ao ambiente,
que são transmitidas aos descendentes como uma herança genética. As
mutações na estrutura dos genes ou de regiões dos cromossomos ocorrem ao
acaso e de acordo com agentes mutagênicos no ambiente. Podem ser neutras,
quando não causam alterações na estrutura das proteínas produzidas pelos
genes e apenas criam diversidade, ou não-neutras quando alteram a estrutura
das proteínas produzidas.

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As mutações não-neutras podem criar genes mutantes que produzem proteínas
iguais, piores ou melhores, em termos de função e eficiência, que aquelas
produzidas pelos genes originais. Se uma proteína produzida é menos adaptada
para sua função, dizemos que a mutação genética que a produziu foi deletéria
e, normalmente, é eliminada antes de ser disseminada. Se, ao contrário, a
proteína produzida é mais eficiente, dizemos que a mutação foi benéfica, o
que ocorre de maneira extremamente rara. As mutações genéticas, em sua
maioria, não são benéficas nem deletérias e, apenas criam diversidade. A
diversidade de proteínas é importante porque proteínas novas, ainda que não
necessárias no momento de origem, podem assumir alguma função no futuro,
como uma forma de adaptação do organismo ao ambiente em modificação.

O universo precisou de 10 bilhões de anos para criar as condições para a vida e


permitiu que a terra fosse um planeta que, em sua formação, reunisse estas
condições. Depois, preservou a terra de desastres cósmicos que extinguiriam
completamente a vida, por tempo suficiente para que esta vida evoluísse até a
sua forma mais sofisticada, o primata “Homo sapiens”, um animal inteligente
que representou uma ruptura com a “filogenia”. Este primata foi capaz de
começar a construir um patrimônio sócio-cultural histórico que servia de matriz
para estruturar outros da sua espécie. Surgia o fenômeno humano capaz de
transmitir informações não apenas através dos genes, mas através da
linguagem. A história da humanidade começava a ser escrita e uma nova forma
de evoluir se inaugurava, a geração do ser humano.
Homem, humano e humanidade são instancias do mesmo fenômeno
estruturante que cria homens a partir do animal filogenéticamente mais
desenvolvido, o “Homo-sapiens”. Este processo de humanização é representado
pelo acesso ao patrimônio sócio-cultural histórico da humanidade pela
aquisição da linguagem. Mas de que patrimônio estruturante de seres humanos
estamos falando?
Imaginemos, por exemplo, “homo sapiens” primitivos cavando a terra com as
próprias mãos a procura de alimentos. Um dia, um elemento do grupo
descobriu que poderia ser muito mais eficaz se cavasse a terra com uma pedra
pontiaguda e adotou este procedimento. Outros elementos do grupo,
percebendo a eficiência do procedimento, também o adotaram. O ato criativo
de um elemento do grupo transcendeu seu próprio criador e foi compartilhado,
passando a ser estruturante de outros elementos do grupo e a fazer parte de
um patrimônio sócio-cultural que começou a crescer e ficar complexo com a
história dos homens. O registro histórico deste acervo estruturante de homens
é a linguagem, que representou a grande ruptura do homem com o animal.
De uma maneira simplista, uma criança recém-nascida reúne todas as
condições evolutivas da espécie para se tornar um homem, mas só será humano
quando começar a internalizar o patrimônio da humanidade registrado sob a
forma de linguagem. Humanizar é se inscrever na ordem da linguagem; é
tornar-se sócio do outro impessoal e viver em sociedade; é forjar uma
personalidade e construir uma identidade.

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A ordem da linguagem é tão estruturante quanto a ditadura genética. Um gene
mutante deletério carrega uma informação genética que pode produzir uma
anomalia ou uma doença no organismo. Símbolos de linguagem internalizados
de forma inadequada podem gerar distúrbios de comportamento.

A forma de armazenar e transmitir informações, pela linguagem, é


extremamente rápida e acumulativa. Aumenta continuamente o acervo de
informações que constituem o patrimônio sócio-cultural e histórico da
humanidade e aprimora a matriz de forjar seres humanos cada vez mais
capazes de se superarem, porque aprenderam a pensar. Pensar é um exercício
linguístico; não existe pensamento fora da linguagem. Se compararmos um
homem da pré-história com um homem atual, veremos que seu conjunto de
informações genéticas – genoma – continua, praticamente, o mesmo. Já os
fenômenos humanos da pré-história e o atual são incomparáveis. O
conhecimento produzido e armazenado ao longo da história do homem na terra
vem ampliando de forma acelerada os horizontes do pensamento humano e,
como consequência, sua capacidade de questionamento. Perguntar e buscar
respostas sempre foi a mola propulsora na produção de conhecimento cada vez
mais apurado.

O pensamento humano evoluiu e modificou nossa visão de mundo. Hoje, o


conceito científico de mundo é, sem dúvida, o mais avançado. A ciência nos
permitiu ir além dos nossos sentidos, que são limitados e induzem a erros
perceptuais que geram erros conceituais.
Até meados do século XVII, o conhecimento humano vinha de uma
contemplação e tentativa de explicar o mundo (natureza), o homem e sua
relação com o absoluto (Deus). As idéias vinham de uma percepção estética de
mundo, ou seja, o mundo concebido através dos sentidos humanos e de uma
lógica baseada neles. Assim, se vemos o sol nascente e poente no espaço de um
dia e acreditamos no que vemos, admitimos que o sol gira em torno da terra.
Esta era a lógica dos sentidos, a lógica aristotélica.
Galileu Galilei inaugura a investigação científica quando, através de um
método experimental, demonstra que os nossos sentidos mentem para nós e
que apesar de termos a sensação que o sol gira em torno da terra, a verdade é
que a terra gira em torno do sol. Isto que hoje nos parece óbvio, só foi possível
de ser concebido através de um método e uma lógica científica.
A ciência rapidamente se distinguiu da filosofia. O conhecimento contemplativo
tornou-se um conhecimento produtivo e capaz de interferir no mundo. A
ciência é capaz, não apenas de compreender melhor o mundo, mas de
modificá-lo. A lógica da ciência é dialética, onde uma verdade é provisória e
deverá ser negada como uma forma de sua superação. Uma verdade científica
é uma tese válida em um momento histórico até ser negada por uma antítese
e, dialeticamente, superada em uma síntese que se torna uma nova tese válida
em outro momento histórico.
Os métodos científicos se diversificaram e se especializaram, buscando objetos
de investigação cada vez mais específicos. O conhecimento científico da

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humanidade ampliou-se de maneira exponencial sobre todos os objetos de
ciência. O homem, através da ciência, vem criando um mundo novo cada vez
mais tecnológico e confortável, mas que ao mesmo tempo, se torna cada vez
mais artificial, mais complexo e mais difícil de ser compreendido pelos
homens.

Uma nova relação com o absoluto transformou seus deuses em criações


culturais humanas e, são tratados como antropologia.
A angústia de finitude que tortura os seres humanos e que os leva a criar
fantasias culturais sobre o “pós-morte”, é também, a mola propulsora para a
produção científica contra a morte. Viver é superar a morte e não concebê-la.
Aumentar o tempo de vida dos homens é uma forma de superação da morte e
uma necessidade. Imaginem se homens como Galileo, Newton, Hegel, Strauss,
Feuerbach, Karl Marx, Freud, Einstein, entre muitos outros, tivessem vivido
pelo menos o dobro do que viveram!

No futuro, viagens interplanetárias ou intergalácticas serão tecnologicamente


possíveis, mas as distâncias são tão grandes que, mesmo viajando à velocidade
da luz, a vida do homem seria demasiado curta para percorrê-las.
Cientistas têm trabalhado no sentido de aumentar o tempo de vida dos
humanos pela cura de doenças, por manipulações genéticas para controle dos
genes do envelhecimento, entre outras ações. Num futuro mais distante, a
terra não mais suportará a vida sobre ela e a única alternativa será buscar
outro lugar no universo para garantir a continuidade do fenômeno humano, em
um corpo melhorado pela ciência ou em uma máquina capaz de pensar.

O problema da finitude humana

A finitude do homem não é apenas um problema de ordem prática que limita


sua produção de saber, mas algo que o incomoda permanentemente, porque o
homem é o único animal que sabe que morre.
Até uma certa idade, uma criança é totalmente onipotente e não tem
consciência da sua finitude. A sua inserção na ordem da linguagem é que irá
criar as condições materiais para que possa formar um conceito de morte e,
simultaneamente, nasce uma angústia de morte que influenciará todo o seu
processo de humanização.
A palavra angústia se refere a uma sensação de possibilidade de um evento vir
a ser e que se traduz fisicamente como um aperto no peito. A grande angustia
do homem é, sem dúvida, a possibilidade da morte, que tomará diferentes
configurações ao longo da sua vida. Sentimentos de perda de coisas ou pessoas
importantes são configurações cotidianas da angústia de morte.
Esta angustia existencial é propulsora do pensamento humano, seja na criação
de mitos e idéias religiosas sobre o “pós-morte” que, de alguma forma aliviam
o medo intrínseco da morte, seja na busca de formas cada vez mais avançadas
de se perpetuar no universo.

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É bem verdade que o desenvolvimento tecnológico tem propiciado ao homem
uma vida útil cada vez mais longa, mas sua angustia permanece como
estruturante imutável da sua identidade.
Uma vez, um amigo ao ser interrogado pelo filho de sete anos sobre para onde
irá depois que morrer, respondeu que ele irá para o mesmo lugar que estava
em 1940. O filho achou estranho e disse que neste ano ainda não tinha nascido
e, portanto, não estava em lugar algum. Pois é lá mesmo, respondeu o pai.
O lugar nenhum de todos nós precisa ser ocupado com alguma estrutura que
harmonize vida e morte em um viver sem medos. Esta estrutura tem forma de
linguagem e é forjada sob medida em cada indivíduo como constituinte de sua
personalidade. Nela estão as certezas que construímos baseadas na fé ou no
conhecimento e que de alguma maneira atenuam os nossos medos, além das
fantasias psicológicas que criamos contra as possibilidades de perdas.
A fé aparece como um conjunto de idéias aceitas, de maneira dogmática, como
uma crença na possibilidade de que um ser divino, que sabe de tudo que não
sabemos, ao final, irá nos resgatar desta vida terrena. Aqui a transcendência
sobre a morte aparece como uma certeza dogmática, que alivia a angustia
existencial daqueles que crêem. As diversas crenças religiosas elaboram
construtos coerentes de linguagem que são apresentados aos seus seguidores
como verdades absolutas e imutáveis, mas com a condição de que aceitem o
dogma de fé sobre o qual a religião se fundamenta. Se o dogma não for aceito
como uma premissa válida, tudo o que se construir sobre ele é falso.
O pensamento científico, não apenas contemplativo, mas produtivo, representa
o ápice do pensamento filosófico e, ao mesmo tempo, se distingue dele. O
projeto da ciência é conhecer, modificar a realidade e criar realidades novas,
numa superação dialética do homem pelo homem novo de cada dia.
A evolução do pensamento científico e, consequente acúmulo de conhecimento
científico contribuiu, não apenas para um aumento exponencial, mas para o
aprimoramento do patrimônio sócio-cultural histórico da humanidade que é
como o inconsciente da humanidade e estruturante de pessoas,
potencialmente, cada vez mais qualificadas para viver num mundo em
constante processo de mudança.

A diversidade do fenômeno humano

O processo de se humanizar inicia quando nascemos. Começamos a perceber o


mundo com nossos sentidos conscientes e, simultaneamente, a significação do
que percebemos, por um processo individual de aprendizagem e inserção na
ordem da linguagem, que durará toda a nossa vida.

Linguagem não é apenas língua. Língua é a parte social da linguagem


representada pelos símbolos e caracteres que compõem números, palavras e
expressões compartilhadas por um grupo de pessoas. A linguagem é mais ampla
e se refere à significação dos símbolos linguísticos dentro de um contexto
sócio-cultural e histórico. Aprendemos os significados das palavras
relacionando-as com as coisas ou idéias que elas significam e formando uma

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espécie de imagem acústica das palavras. Ao longo da vida, vamos formando
um acervo próprio de palavras significantes de coisas ou idéias e que vai
forjando nossa identidade no mundo, nossa personalidade. Somos o que
pensamos e o que falamos, o que significa que não somos humanos fora da
linguagem. Quando compartilhamos com outros o que pensamos e o que
falamos, compartilhamos o que somos e determinamos nosso lugar no mundo.
A maneira como cada homem se inscreve na ordem da linguagem define sua
personalidade e o modo como se relaciona em sociedade e, depende de fatores
extrínsecos: históricos, culturais, sociais, econômicos e intrínsecos: físicos e
psicológicos.
Os fatores extrínsecos nos permitem entender porque o fenômeno humano é
diferente em cada momento histórico, em cada contexto cultural e tem
diferentes possibilidades, de acordo com seu lugar sócio-econômico. Os fatores
intrínsecos se referem a saúde física e a coerência psicológica que habilitam o
homem a se inscrever na ordem da linguagem e se diferenciar como uma
personalidade.
Um homem pode, por exemplo, estruturar uma personalidade psicótica por
apresentar deficiências fisiológicas. Como nossos comportamentos são
controlados, fisiologicamente, por hormônios, certos distúrbios hormonais são
estruturantes de comportamentos psicóticos.
Um surdo-mudo de nascença, que não foi diagnosticado, não estará habilitado
para a aquisição da linguagem e será percebido por outros como psicótico.
A coerência psicológica pode sofrer uma ruptura quando fazemos associações
de símbolos linguísticos a significados diferentes, por vezes opostos, aos
originais. Psicopatas estruturam sua personalidade internalizando valores
opostos àqueles aceitos socialmente, como um distúrbio de linguagem. Talvez,
seja melhor nos referirmos aos psicopatas como sociopatas.

As marcas de linguagem, estruturantes da personalidade de cada homem, criam


uma diversidade tão grande, que não podemos encontrar dois homens iguais. O
genoma de um homem, representado por todos os seus genes, é a sua
identidade genética que faz dele um ser quase único, mas encontramos
genomas similares em gêmeos univitelinos; mas mesmo gêmeos univitelinos
têm personalidades diferentes e são homens únicos.

Se compararmos a quantidade de pacotes de informações veiculadas pelo


conjunto de todos os nossos genes, cerca de 35.000, com a quantidade de
pacotes de informações em uma biblioteca nacional de grande porte, a
biblioteca veicula milhares de vezes mais informações que o nosso genoma. Isto
nos dá uma idéia do quão eficiente é a troca de informações pela linguagem e,
ao mesmo tempo, da velocidade acelerada com que o homem modifica sua
linguagem e se modifica pela linguagem na sua história de vida.
A linguagem é como um tecido vivo, em constante desenvolvimento, do qual
nos diferenciamos como indivíduos humanos, mas ao qual estamos
intrinsecamente ligados. Mudanças individuais são incorporadas e implicam em
mudanças do tecido como um todo.

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Seres do Desejo

Desde o nascimento que o homem é um poço de desejos. Antes da aquisição da


linguagem, os desejos são primitivos e não passam de instintos sexuais, de
sobrevivência e de perpetuação. No processo de humanização, os desejos
primitivos tomam forma de linguagem e assumem inúmeras configurações
capazes de produzir alguma forma de prazer no sujeito do desejo. Nomear é
dar estatuto de existência as coisas ou idéias e, da mesma forma, nomear o
desejo é uma condição para se desejar. Desejamos na medida em que temos
nomes para os objetos de desejo, o que significa que quanto mais amplo for o
universo temático do sujeito, mais diversificados serão seus objetos de desejo.
Um ganhador na loteria, depois de receber uma pequena fortuna, comprou o
carro do vizinho que ele sempre desejou. Apesar de ter dinheiro suficiente para
comprar uma Mercedes Benz ou uma BMW, ele não tinha em seu repertório de
temas desejos assim nomeados.
Desejar já é um processo de linguagem e não apenas um instinto. Por isso,
desejar não é fazer, mas antes criar um espaço na realidade para sua expressão
e, na maioria das vezes, aprender a adiar, simbolizar ou substituir o desejo.
O homem, como ser do desejo, inserido numa ordem simbólica – linguagem –,
cujo acervo cresce exponencialmente, cria novas formas de nomear o desejo e,
portanto, novas formas de desejar e de produzir prazer. O grande perigo desta
estrutura é que ela traz como possibilidade inerente e, bastante provável, uma
espécie de “hedonismo”, busca do prazer individual imediato a qualquer custo,
ainda que ameace a própria existência do indivíduo ou dos outros.

O desequilíbrio ecológico mundial, pelo uso inadequado de bens naturais, é


uma forma de “hedonismo” da humanidade que coloca em risco o sucesso do
projeto humano sobre o filogenético. Nós, humanos, buscamos formas de nos
perpetuarmos no universo quando a terra não puder mais suportar nossas
existências, mas paradoxalmente, aceleramos nosso processo de desocupação.

Sujeito da história ou zumbi

Forjar uma personalidade é formar uma identidade psicológica e sócio-cultural,


é fazer história. Chega um momento em nossas vidas que nos sentimos ou, pelo
menos deveríamos sentir, habilitados para atuar e determinar os rumos da
nossa própria história. Alguns indivíduos são, realmente, capazes de estruturar
identidades tão marcantes, que se diferenciam do “senso comum” e criam
novos parâmetros estruturantes de outros indivíduos. Estes são os homens que
fazem a história da humanidade. A maioria dos indivíduos, no entanto,
representa o “senso comum” e vai a reboque da história, internalizando
símbolos de linguagem de maneira acrítica.

Paulo Freire falava de níveis de consciência do indivíduo, referindo-se ao seu


modo de inserção na linguagem, pela educação. A consciência “intransitiva” é
a dos indivíduos que não tiveram acesso a escola e nenhum tipo de educação

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formal ou informal e que, portanto são analfabetos e se comunicam pela
linguagem falada, mas não pela escrita. Vivem, principalmente em sociedades
rurais, onde conseguem sobreviver com atividades de subsistência e à margem
de sociedades urbanas, já que não conseguem competir no mercado de
trabalho.
A consciência que chamou de “transitiva”, daqueles sujeitos que tiveram
acesso a algum tipo de educação formal ou informal, pode ser “ingênua” ou
“crítica”. A “transitividade ingênua” se refere a percepção da realidade pelos
indivíduos alfabetizados e que ganharam acesso à linguagem escrita, mas de
uma maneira ingênua. Estes indivíduos, através da linguagem falada e escrita,
recebem as mais variadas informações sobre a realidade, mas não conseguem
elaborá-las e julgá-las. As informações são, literalmente, engolidas inteiras e
sem discernimento, levando estes indivíduos a se comportarem de maneira
massificada e cristalizada. São como zumbis que morreram de “parada
histórica”, mas que seguem vivos como massas de manobras.
A “transitividade crítica” se refere a uma percepção mais sofisticada de
realidade, onde os sujeitos são capazes de filtrar as informações, fazendo-as
passar por um crivo de discernimento que é sua própria estrutura de
personalidade naquele momento histórico. A consciência crítica permite ao
indivíduo forjar, de maneira coerente, uma personalidade histórica que amplia
e melhora, na medida que este indivíduo toma consciência dos seus limites e
atua para superá-los.

Os homens críticos são senhores das suas próprias histórias de vida e modificam
a história da humanidade, fazendo-a se deslocar para além dos seus limites,
enquanto os homens ingênuos participam da história com movimentos
repetitivos, por vezes intensos, mas que não produzem deslocamentos.

A solidão conquistada

A educação como prática da liberdade, como postulava Paulo Freire, é


libertadora na medida que conduz o sujeito à superação de si mesmo. A cada
dia recebemos mais vinte e quatro horas de informações e somos diferentes do
ontem que fomos e, assim sucessivamente, enquanto vivemos. O homem de
hoje é a negação do homem de ontem, que será negado pelo homem de
amanhã, num movimento dialético, que diferencia um homem do outro e de si
mesmo.

Este processo de se tornar indivíduo e se superar a cada dia é, também, uma


forma de busca da solidão. Num nível de discurso “gol do flamengo”,
participam bilhões de pessoas, mas se o discurso for um pouco mais sofisticado,
existirão menos pessoas neste nível. Quanto mais sofisticado for o discurso,
mais rarefeito de pessoas será este nível, até que existam níveis tão
sofisticados de discursos que poucas pessoas participam deles. Esta é uma
solidão conquistada e não um abandono, uma vez que o nível seguinte
representa a superação do anterior e o contem. Dessa forma, Einstein não

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perdeu a capacidade de frequentar outros níveis e de falar “gol do flamengo”,
mas um indivíduo no nível “gol do flamengo” não pode dizer que E= mc2.

O acúmulo de conhecimento

Se entendermos por conhecimento a apropriação do objeto pelo pensamento,


não importando se essa apropriação é estética (com os sentidos) ou conceitual,
o acúmulo histórico de conhecimento da humanidade ocorre por diferentes
vias.
Mitos, crenças religiosas, narrativas fabulosas, lendas, etc., são formas
superadas de produção de conhecimento, que pretendem explicar e harmonizar
realidades percebidas da natureza com os cinco sentidos humanos, sobre um
pano de fundo de fé e dentro de uma ideologia.
Estes conhecimentos contemplativos assumem diferentes configurações de
acordo com os contextos sócio-culturais em que são produzidos, formatando
comportamentos característicos de determinadas culturas. Não se tratam de
conhecimentos universais, no sentido de abrangência e suas verdades tendem a
se cristalizarem em dogmas trans-históricos localizados. Este conhecimento é
filosófico? Se considerarmos como filosofia a história do pensamento humano e
a busca incessante de compreender e apreender a realidade em sua totalidade,
este conhecimento é filosófico, assim como a própria ciência.

A ciência, no entanto, se distinguiu dessa massa de conhecimentos, como uma


nova maneira de pensar o mundo, através de uma metodologia própria de
pesquisa que vai além das limitações dos sentidos, permitindo a busca de
características do objeto de pesquisa que não podem ser percebidas, mas que
podem ser deduzidas ou inferidas pelo método científico. Perseguimos
realidades que devem existir para que o método seja coerente. A ciência, além
de poder superar os sentidos na compreensão da realidade do seu objeto, pode
prever fatos plausíveis de vir a ser de acordo com o método científico e pode
intervir na realidade, criando novas realidades.
O pensamento científico opera com modelos teóricos de representação do
objeto de pesquisa, que se desenvolvem e se aprimoram, em função das
respostas e, principalmente, de novas questões que formulamos sobre o objeto.
De que são feitos os modelos científicos?
A matéria prima para a construção de um modelo científico é, por suposto, a
linguagem, não apenas por representar o registro histórico do modelo, mas por
constituir a própria dinâmica do pensamento que reorganiza, incessantemente,
os dados da memória, que é estruturada como linguagem.
Em resumo, colocamos nomes nas coisas que constituem uma realidade e o
pensamento opera com os nomes e não com as coisas. Num modelo teórico, os
nomes das coisas podem ser rearranjados, mudando a ordem das coisas e
construindo novas realidades. O átomo deixou de ser indivisível e a fissão
nuclear, para produção energia, se tornou uma realidade, sem nunca termos
visto um átomo, mas a partir de um modelo atômico demonstrado
experimentalmente. A fissão nuclear foi feita, primeiramente, com palavras,

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números e outros símbolos de linguagem, como realidade teórica, antes da sua
concretude.

Se nos perguntarmos se a ciência é neutra, no sentido de não sofrer


interferência de outros empreendimentos humanos, certamente que a resposta
será não. Como qualquer empreendimento humano, o pensamento científico se
desenvolve dentro de um contexto econômico, social, ideológico, político e de
direito, não sendo uma atividade lúdica. A ciência caminha, sob encomenda, na
direção dos desejos e necessidades humanas, nos diferentes momentos
históricos. A metodologia científica, no entanto, mantém uma coerência
interna, pela objetividade dos métodos, pela proteção contra o subjetivismo e
pela universalidade e intersubjetividade de uma verdade científica, enquanto
durar como verdade.

Existe uma grande diversidade de objetos científicos, cada vez mais pontuais e
métodos mais especializados, mas nem tudo pode ser objeto de ciência. Todo o
rigor da metodologia científica tem que ser aplicável ao objeto de
investigação, caso contrário, este objeto não pode ser estudado
cientificamente. Opiniões e crenças não são objetos de ciência, embora
frequentemente sejam apresentados como tal, para se beneficiarem do status
de verdades universais. Estudar os mecanismos de formação dos mitos e
crenças é antropologia e é científico, mas tratar os próprios mitos e crenças
cientificamente é cientificismo. É como “matar a cobra e mostrar o pau”, ao
invés de mostrar a cobra morta.
Alguns objetos de ciência são, realmente, mais difíceis de serem estabelecidos
e tratados com o rigor metodológico, por exigirem um maior nível de abstração
dos sujeitos pensantes. A ciência inaugurada por Freud – psicanálise -, por
exemplo, tem como objeto o “inconsciente” que só ganhou contornos mais
concretos com o advento de uma nova ciência, a linguística, que apresenta o
“inconsciente” estruturado como linguagem e os efeitos de se humanizar como
efeitos da aquisição da linguagem. De qualquer maneira, num retorno à Freud,
veremos que a psicanálise já apresentava todos os requisitos de ciência, ou
seja, baseava-se numa prática (cura analítica), numa técnica (método de cura)
e numa teoria fundamentando a prática e a técnica. O modelo teórico evoluiu e
tem se tornado cada vez mais consistente, como é o processo de qualquer
ciência.

Ousadia e criatividade fazem parte do pensamento científico para a própria


ruptura de limites, mas se o novo não apresenta consistência metodológica,
então não representa a superação de uma verdade científica.

Crença e Ciência

Pode-se crer ou não em diversas concepções de mundo, ou mesmo na ciência,


já que crer é um processo subjetivo. Em ciência, no entanto, crer não tem
significância, já que a metodologia pretende, exatamente, eliminar

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subjetivismos no trato com o objeto científico. Por exemplo, acreditar ou não
em átomos, células, genes, etc., não altera o status destas verdades
científicas, que não são objetos de crença.
Crer parece um ato de defesa e as crenças são como suturas que suportam as
certezas que aliviam as angústias pessoais. Contra o medo da morte, a crença
num pós-morte em lugares metafísicos; contra a imperfeição humana, a crença
em deuses perfeitos, onipotentes, oniscientes e onipresentes.
Os métodos científicos aplicados constituem ferramentas de trabalho para
profissionais com formação acadêmica em áreas específicas, embora isto não os
torne cientistas. Pensar cientificamente é diferente de aplicar métodos
científicos, além de ser a condição para que verdades sejam superadas em
modelos científicos que se desenvolvem com a pesquisa continuada. Os
profissionais de ciência, em sua grande maioria, aprendem a usar modelos
científicos já validados, através de técnicas aplicadas aos objetos destes
modelos, para se atingir o objetivo social de cada profissão científica.
É comum entre estes profissionais, a crença em divindades que não cabem no
campo científico, mas que ocupam um lugar absoluto no pensamento destes
pretensos cientistas e exercem um poder enorme de interferência tendenciosa
na abordagem do objeto científico.
Um cientista que crê não é nem cientista, nem crente, porque não se pode
operar com duas formas tão desarmônicas de pensamento ao mesmo tempo.
Expurgar as marcas dos mitos e crenças da personalidade de um indivíduo que
ingressa no projeto científico de mundo, não é possível, mas negá-las faz parte
da própria razão dialética que norteia o pensamento científico.
No entanto, negar é, ao mesmo tempo, dar estatuto de existência a coisa
negada, já que negar uma coisa que não existe é uma dupla e vazia negação.
Neste sentido, para a pergunta - deus existe? – e não importa qual, a resposta é
sim e esta é a razão da negação. Existe porque assim foi nomeada uma idéia
compartilhada e, nomear é dar estatuto de existência. Mas se deus existe
porque assim foi nomeado, então deus é uma criação humana, não o contrário
e esta é a negação do dogma. Como criação humana, deus deixa de ser
absoluto e passa a ser relativo a uma fé, a uma religião, a um povo e mesmo a
um indivíduo. A configuração individual de deus é tão própria quanto a própria
personalidade. O deus de um certo jogador de futebol é terráqueo, brasileiro,
carioca, do flamengo e o ajudou a fazer o gol que definiu o campeonato.

A teogênese

Entendendo-se os deuses como criações humanas, presentes dentro das


diversas culturas como um fenômeno de linguagem comum, parece legítimo
pensar que este processo de teogênese - geração de deuses – funciona como o
grande coringa que cobre lacunas dos questionamentos humanos sobre si
mesmos e o mundo, ao longo da história.
Em culturas primitivas, do ponto de vista do evolucionismo social e mental, em
função da quantidade de lacunas no entendimento da natureza e do mundo,
existe uma liberdade de teogênese. Os deuses são múltiplos e coincidem com

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realidades que não podem ser apreendidas por completo, mas que são
imprescindíveis à vida. O sol, a lua, o mar, o vento, o trovão, etc., são seus
deuses concretos e que interagem com os humanos.
Nas culturas mais sofisticadas, em relação ao grau de desenvolvimento
econômico, intelectual e tecnológico, os deuses são próprios e únicos e ocupam
lacunas mais abstratas no pensamento humano, preenchendo-as com idéias que
suturam as falhas do conhecimento, que ameaçam a integridade estrutural de
uma cultura e da personalidade dos seus membros. A integridade tem que ser
mantida a qualquer custo, mesmo com estruturas provisórias, sob pena da
perda de identidade, se o tecido de linguagem que estrutura uma cultura
apresenta pontos vazios, ou seja, pontos não nomeados.

O homem normal

Socializar é tornar-se sócio do outro impessoal, que constitui uma sociedade e


uma cultura, pela internalização de valores e normas que possibilitam a
convivência entre as pessoas. É a submissão do ser do desejo ao princípio da
realidade, que apresenta os limites da liberdade individual.
Normalidade, no entanto, não significa sanidade. Para a maioria dos indivíduos,
as normas são internalizadas de uma maneira completamente acrítica, criando
uma sensação de liberdade, porque as normas se tornaram invisíveis. É como se
a polícia não fosse mais necessária, porque cada um é polícia de si mesmo.
Aquele motorista que para num semáforo, só, de madrugada, em uma região
com alto risco de assaltos e fica tamborilando nervosamente no volante do
carro e, embora esteja desprotegido, não consegue transgredir a norma e
avançar o semáforo, sofre de normalidade.
Sanidade, no entanto, não representa anormalidade, mas as normas como
referencias de comportamento para o homem crítico, que consegue criar
espaços na realidade para se expressar, sem burlar as normas.
Uma parte dos indivíduos reage contra as normas de maneira autoritária e,
simplesmente suprime as normas quando estas não interessam. São aqueles
indivíduos que burlam as regras do jogo em benefício próprio. O pai que não
permite que sua filha faça sexo porque é, ainda, muito jovem, mas ele próprio
tem relações sexuais com meninas da mesma idade de sua filha. Não houve um
questionamento da norma, que continua existindo para o mencionado pai, mas
ele é capaz de burlar esta norma quando lhe convier.
A corrupção entre políticos, magistrados e executivos, tão comum nos tempos
atuais, representa uma das formas mais vis de fraudar a regra do jogo da
convivência em sociedade e, o que é mais grave, esta fraude torna-se estrutura
e estruturante de outros corruptos e corruptores.
A violência urbana é, sem dúvida, a mais vil de todas as fraudes. Aqui, a reação
contra a normalidade parada usa o poder de vida ou morte sobre os indivíduos
e, por isso, é extremamente eficaz.
Corrupção e violência urbana burlam, mas não questionam as normas. O
político corrupto e o criminoso urbano têm péssimos conceitos um do outro,
baseados nas mesmas normas.

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Infelizmente, fraudadores apresentam alto índice de sucesso em seus
objetivos.
A loucura, por vezes, é a forma extrema de negação da síndrome de
normalidade, geradora de sofrimento ao homem normal, que não consegue
criticar as normas e, tampouco, fraudá-las. A sanidade e a loucura estão, na
verdade, mais próximas do que parecem estar, não sendo uma o oposto da
outra, mas duas formas distintas de se distinguir da normalidade parada.

Memória e memórias

A memória de um indivíduo é constituída por circuitos elétricos estabelecidos


no seu cérebro como registros de idéias, imagens e conhecimentos. As
memórias de um indivíduo dizem respeito à significação das idéias, imagens e
conhecimentos registrados. Grosso modo, a memória é elétrica e as memórias
são linguagem.

Por um raciocínio silogístico, mas que neste caso penso que se aplica, se os
humanos são fenômenos de linguagem e as memórias são linguagem, então os
humanos são, também, memórias. Eu sou minhas memórias em um banco de
dados com enorme capacidade de armazenamento e que se atualiza
continuadamente, mas este banco de dados é biológico e morre. Aqui está a
ruptura entre as memórias que podem ser eternas e acumulativas e a memória
que é finita e degenerativa. Como superar esta contradição? Será possível criar
um suporte, se não eterno, pelo menos durável, para as memórias?
O homem, talvez em função da sua angustia existencial, do medo de morte que
estrutura sua vida, tem investido muito mais na melhoria da sua estrutura
biológica, como um aprimoramento e refinamento da filogênese. A busca de
um corpo melhor e mais durável não tem, apenas, o propósito de
aperfeiçoamento do suporte de memórias, mas da fonte dos sentidos e do
prazer imediato, numa espécie de culto ao corpo, onde as experiências
sensoriais se tornam fins e não meios.
A tecnologia tem se desenvolvido de maneira exponencial, como o próprio
fenômeno humano, numa corrida contra o tempo. Quem sabe num futuro, o
homem possa migrar com suas memórias para um corpo meio máquina, porque
não sensual, capaz de se aventurar em longas viagens interplanetárias, na
busca de um lugar para continuidade da humanidade e contrariar o inevitável
recomeço após cada inevitável extinção em massa. É verdade que são causas
em longo prazo e que existem milhares de outras causas imediatas a serem
trabalhadas, mas o imediato e o longo prazo dependem de um foco
estabelecido sobre o que se pretende como resultado. Neste caso, preservar o
animal humano ou a humanidade define o imediato e o longo prazo.

José Alisson dos Santos - Lagoa Santa - MG

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