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Por Contardo Calligaris (In: VVAA. Clínica do Social. Ensaios. Pp. 1107-118. São Paulo:
Escuta, 1991).
Acredito, apesar de tudo (isso pode ser discutido), que uma parte do horror,
particularmente o genocídio, foi-lhe revelado no próprio processo pelos documentos
produzidos pela acusação. Pelo menos acho que sobre isso ele conseguira uma forma
particularmente exitosa de repressão, de modo que podia dizer sem mentir que “não
sabia”. Mas certamente estava envolvido nos crimes de guerra, pois, enquanto ministro
dos armamentos, por exemplo, o dito Programa TOT — programa maciço de deportação,
a partir dos territórios ocupados, de populações civis como trabalhadores para o esforço
bélico alemão — tudo isso estava diretamente ligado à sua administração. De qualquer
forma, Speer reivindica a própria responsabilidade até para o horror que ele afirma não ter
“sabido”.
Mas voltemos ao seu primeiro cuidado. A explicação de Speer sobre o que
aconteceu está no título das entrevistas que citei. O que aconteceu teria sido um efeito do
desenvolvimento da técnica moderna: sua resposta é esta. E desde sua autodefesa no
processo de Nuremberg, a sua posição poderia ser resumida assim: a guerra era
inevitável porque havia os meios técnicos para fazê-la. Um argumento tanto mais
interessante, que poderia ser imediatamente retomado pela posição pacifista hoje; pois se
concluiria que, na medida em que existem os meios para uma guerra atômica, então ela
vai acabar se produzindo. E é certamente bem nesta época que se origina algo que vai ser
chamado um pouco mais tarde, particularmente nos anos 60, de tecnocracia. Ninguém
esquece, particularmente, que, segundo a confidência de Oppennheimer, na primeira
experiência atômica americana, antes de Hiroshima, a equipe científica não dispunha de
uma certeza teórica que a reação atômica desencadeada parasse. E que, apesar disso, a
experiência foi realizada numa decisão onde talvez contasse mais o fascínio para o
funcionamento da técnica do que o imperativo bélico. Aliás a expressão mesma ‘os
técnicos’, para designar as pessoas que estavam organizando o genocídio, é uma palavra
comum no vocabulário nazista.
A posição de Speer não é sem relação com muitas posições filosóficas conhecidas,
posições contra a técnica, desde os Heideggerianos até Hannah Arendt etc., e já em
Jaspers na verdade existem coisas nesta direção, e coisas ótimas. Mas, apesar disso, acho
que a proposição, segundo a qual a técnica enquanto tal implicaria o seu exercício (porque
é disso de que se trata: se existem os meios técnicos para fazer a guerra, a guerra é
inevitável), é problemática, e mais do que isso, inacreditável. Em outras palavras, não
acho suficiente pensar que o desenvolvimento técnico enquanto tal seja alienante. Acho, e
vou me deter um momento sobre este ponto, que para explicar “o que aconteceu”
precisamos introduzir algo a mais na concepção de uma certa forma específica de
alienação do sujeito, específica porque vou usar o termo de alienação num sentido que
não é nem marxiano, nem marxista, nem propriamente lacaniano.
Speer tinha tudo para ser um antifascista estético, mas não foi: foi arquiteto de
Hitler primeiro e finalmente ministro dos armamentos, sabendo o que tudo isso implicava,
desde a manipulação cenográfica das massas até as deportações maciças, e os sonhos
destrutivos da pesquisa de armamentos. O que pensar sobre isso?
***
Na relação sexual as coisas não são mais simples, salvo procurar o consolo em
uma teoria do amor genital que nos prometeria o harmonioso desenredo do nosso
desenvolvimento sexual até o encontro com o semelhante. Salvo este recurso
exclusivamente teórico, constatamos que a vida sexual diz respeito a uma singularidade
fantasmática que não promete encontro com os nossos semelhantes. O parceiro que
encontramos na cama é um puro pretexto, pois cada um copula através de um fantasma
que se organiza graças ao mesmo saber do qual falamos antes, ou seja, um saber suposto,
ignorado, singular e portanto não compartilhável.
Sem entrar aqui em mais explicações, nos interessa notar que se o saber suposto ao
pai pudesse por milagre ser propriamente sabido, isso resolveria a nossa incerteza. Mais
ainda, se, por ser sabido, pudesse então ser compartilhado, isso pareceria nos abrir a porta
de uma relação possível com os nossos semelhantes, pois de repente poderíamos
conseguir praticar juntos um mesmo fantasma.
É este milagre que persegue o que chamo de saída perversa da neurose. Sendo
impossível chegar a conhecer o saber paterno suposto, a opção é abdicar a própria
singularidade de sujeito, aliená-la, construindo — de preferência coletivamente — um
semblante de saber paterno que por isso mesmo seja sabido e compartilhado. Que isso nos
garanta a certeza nos atos e a prática possível de uma fantasia comum é o prêmio da
operação. O seu custo é a transformação do sujeito em instrumento do saber assim
estabelecido.
Para quem escolhe sair da neurose pelo lado da perversão, o semblante de saber
construído pode ser qualquer: o essencial é que seja “sabido” e compartilhável e que de
repente nós fiquemos funcionando, sabendo o que temos que fazer, como instrumentos
deste saber. Isto é o essencial: o “conteúdo” deste saber não tem a mínima importância,
pois ele é um artifício que não pode nem pretende corresponder a qualquer saber suposto
singular.
***
Apesar de ter escolhido um exemplo no fundo do horror, considero que a paixão pela
instrumentalidade é o ordinário da vida social, a sua inércia natural.
Entende-se então que, do meu ponto de vista, o ideal político nunca é mais do que
a procura de um equilíbrio instável entre uma alienação necessária para a vida social e a
resistência à sua inércia totalitária.
***
Expressei a idéia que a estrutura neurótica possa ser descrita pela referência fundante a
um saber paterno sempre suposto e então pelo fracasso relacional e a incerteza do querer.
Mas existe uma diferença, sobre a qual vale a pena pensar um pouco, entre o “querer ser”
e o “querer ter”. Consideramos habitualmente que o “querer ser” esteja mais do lado da
mulher, e o “querer ter” mais do lado do homem. A partir desta diferença e com o auxílio
das observações que seguem, poderíamos entender, por exemplo, porque a paixão da vida
associativa está mais com os homens do que com as mulheres — o que é um ponto a
favor das mulheres. Mas não é sobre este aspecto que eu queria me deter.
Pense, por exemplo, na questão, específica não só do nosso tempo, mas das
sociedades capitalistas ditas avançadas, da adesão à droga como tipo de relação a um
objeto que possa ser sabido como o único bem. O que há de interessante neste tipo de
fenômeno é que por um lado ele aparece como marginalidade, fundada na recusa de uma
sociedade na qual os ideais fálicos estariam do lado do ter e portanto sabidos. Por outro
lado, no entanto, na recusa mesma, a prática adotada vai ser justamente a procura de um
objeto que possa ser designado, sabido.
Deixo como hipótese final a idéia de que talvez o horizonte da nossa vida social já
seja um horizonte totalitário no sentido que sustentei, totalitário sem a aparência ditatorial
do que chamamos historicamente de fenômenos totalitários. Um horizonte que introduz a
promessa de um gozo satisfatório no semblante ao prometer o acesso a um saber comum
sobre o que queremos, promessa tanto mais fácil na medida em que o que queremos esteja
do lado do ter. Se for assim, o nosso fato político estaria entre, por um lado, a inércia do
fenômeno totalitário, ou seja, a transformação progressiva do sintoma neurótico num
sintoma social perverso e, por outro lado, uma marginalidade que leva ela mesma a marca
justamente do que ela está recusando.