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Neste sentido, os Estudos Culturais devem ser entendidos como prática política,
como disposição desconstrutiva que reúne trabalhos de procedências variadas. Ao invés de
se fecharem em referenciais estreitos, seus promotores aliam-se em prol de interesses
comuns, entre os quais se destaca o agenciamento da pluralização. Sendo assim, a rejeição
de encerramentos teóricos não significa imparcialidade ou ausência de posicionamento
crítico. Ao contrário, implica, sempre, escolhas, mesmo que não definitivas, porque
localizadas, conjunturais e estratégicas.
Trata-se de uma opção pelo envolvimento e de uma vontade de intervenção. Posição
combativa que retém teorias por contestação, ou seja, não rejeita suas proposições, mas as
desencadeia, no sentido largo de tirar do cárcere e desenvolver ou ampliar. Para além de
considerar a intervenção dos contextos sobre as teorias, trabalha-se com teorias contextuais,
já que a cultura aparece como área de deslocamento, campo simbólico de representações e
mediações – indiretas, descentradas, subjetivas. Tal constatação revela o caráter arbitrário
das totalizações e a incompletude qualquer abordagem.
Pode-se compreender que o que esteve em questão no debate aqui levantado, foram
os processos de reordenação identitária pelo qual estão passando as culturas periféricas, e
os deslocamentos de tradições refletidos tanto na arte quanto na crítica cultural. No interior
dessa discussão ampla, procuramos identificar as categorias e os recortes conceituais que
fundamentaram as diferentes formas de organização e intervenção construídas por atores
sociais envolvidos com a movimentação cultural de um centro urbano periférico. Ou seja,
os confrontos entre movimento/cena, nação/periferia, localização/deslocamento,
oposição/subversão, nos levaram a reconhecer a diversidade de percepção sobre a qual se
fundam discursos variados de reivindicação de autonomia cultural e de valorização das
expressões populares.
Assim como a música de Chico Science, a literatura de Ariano Suassuna nos serve à
comprovação da permanência do apelo simbólico do subalterno. Autores, como tantos
outros, interessados pela riqueza estética exibida pelas formas rechaçadas e por suas
estratégias criativas, se envolvem na afirmação política das alternativas apresentadas aos
modelos hegemônicos pelos grupos subordinados.
Trilhando caminhos diversos, muitas vezes opostos e conflitivos, essas duas
personagens nos põem diante das reordenações culturais pelas quais estão passando as
sociedades periféricas e nos fazem enxergar a centralidade da relocação do popular neste
processo. Como nos descreve Science:
Quando eu era bem mais novo, lá pelos 12 anos, dançava ciranda. A ciranda veio do
interior, da Zona da Mata, para o litoral. Meus pais tinham uma ciranda. Elas geralmente
eram feitas na frente dos botecos ou nas mercearias da região. Os caras pagavam os
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tocadores de ciranda para chamar mais clientes para as barraquinhas. Isso foi proliferando
cada vez mais e chegando ao litoral. Então, eu já dancei ciranda na praia, no bairro, e vi os
maracatus também. Assisti na minha infância os maracatus fazendo o “acorda povo”, que
acontece na época de São João, sempre lá pela meia-noite. As pessoas saem cantando:
“Acorda povo/Acorda povo/Que o galo cantou/São João já te acordou”. Então eu vi todas
estas coisas que nos ensinaram como folclore, como uma manifestação já passada, mas que
não é bem desta maneira que você tem que ver. Existem ritmos ali que podem ser
aproveitados. E você pode aprender a tocar porque é da sua terra, é do Brasil e é uma coisa
que você entende – é a tua língua. Nesse tempo a gente consumia a música estrangeira
também, nos bailes da periferia. (...) Tinha coisas que eu escutava naquele período que
guardo até hoje em meu inconsciente. Acontece que os maracatus estão esquecidos, a
ciranda quase ninguém vê, a embolada, os caras ficam nas praças, mas é para pegar uma
grana. O coco ainda tem também, mas está desaparecendo. Então, o que a gente pretende é
mostrar alguma coisa nova a partir disso. Se a gente for tocar maracatu do jeito que ele é, a
galera vai pegar no nosso pé. Então, a idéia básica do manguebit é colocar uma parabólica
na lama e entrar em contato com todos os elementos que você tem para fazer uma música
universal. Isso faz com que as pessoas futuramente olhem para o ritmo como ele era antes.
(Science In: Garrido, 1994)
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para a desconstrução de discursos e para o estabelecimento de um diálogo simétrico entre
os projetos em confronto.
Por fim, gostaríamos de deixar claro que nosso objetivo aqui não foi apresentar uma
leitura sistemática ou definitiva das criações de Science e Suassuna, nem esgotar as
possibilidades de análise das propostas formuladas por armoriais e mangueboys, mas, como
já foi dito, aproveitar o mote oferecido por tal disputa simbólica e política para abrir uma
discussão acerca do lugar do popular na cultura contemporânea e das formas de atuação
possíveis diante de tal contexto.
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