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Assim, é possível fazer uma história dos algarismos, e uma história universal. Pois,
mesmo se é descontínua e hesitante, ou se a conhecemos apenas de modo
fragmentário, ela converge para os algarismos que utilizamos hoje e para o sistema de
numeração de posição que se propagou por todo o planeta. Esta é a história de uma
grande invenção, ou melhor, de uma série de invenções, distribuída por vários
milênios, talvez por várias dezenas de milênios.
Não se trata – é bom que se diga – de uma história abstrata e linear, composta de uma
sucessão impecável de conceitos encadeados uns aos outros. Ao contrário, é a história
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das necessidades e preocupações de grupos sociais ao buscar recensear seus
membros, seus bens, suas perdas, seus prisioneiros, ao procurar datar a fundação de
suas cidades e de suas vitórias utilizando os meios disponíveis, às vezes empíricos,
como o entalhe, às vezes estranhamente mitológicos, como no caso dos egípcios. E,
assim fazendo, estes grupos manifestam amplamente seus preconceitos. Alguns se
revelam utilitaristas e limitam suas ambições a objetivos puramente contábeis;
outros, para se situar no ilimitado e na eternidade, buscam inventariar o céu e a terra,
exprimir a quantidade de dias, de meses e de anos desde a criação do mundo, ou pelo
menos a partir de qualquer data original cujo sentido desde então se perdeu. Aos
nossos olhos, são estes últimos que gostaríamos de chamar de sonhadores que têm
razão, pois, ao se impor a obrigação de representar números muito grandes, são
levados a ultrapassar a multiplicação dos símbolos e colocados no caminho da
numeração de posição e do zero.
Mas estas descobertas nunca estão para sempre asseguradas: uma civilização se
apaga – a dos babilônios ou a dos maias – e, junto com sua casta de sacerdotes
rigorosamente recrutados, é um pouco da técnica dos números que desaparece, toda
uma invenção a refazer. Trata-se, pois, de uma historia caótica e tumultuada, cheia de
avanços fulgurantes e de recaídas, em que o passo incerto, errático, feito de
tentativas e de erros, de impasses, de esquecimentos e de renúncias da espécie
humana, parece (para nós, que conhecemos seu coroamento, pelo menos em relação a
esse ponto) com o de um bêbado.
Aliás, é impressionante o fato de que, nas mitologias, o dom da escrita dos homens
seja geralmente associado a um deus, mas que isto não aconteça com os algarismos,
mesmo que sua invenção tenha sido certamente anterior a das letras. O que não
significa que os números tenham tido um papel reduzido no pensamento místico e
religioso. Muito pelo contrario, é conhecido o medo supersticioso que os homens têm
deles desde os tempos imemoriais a tal ponto que eles foram identificados com
forças, e até com divindades – benéficas ou maléficas, segundo o caso – e sua
simbólica foi inserida como um elemento essencial do nome e do indivíduo. Sabe-se,
por exemplo, que os magos da Babilônia atribuíam um número a cada deus de seu
panteão, segundo uma ordem decrescente que traduzia a hierarquia das personagens
(60 associado a Anu, deus do céu; 50 a Enlil, deus da terra; 40 a Ea, deus das águas
etc.). Talvez eles quisessem, desse modo, acusar a superioridade ontológica dos
deuses sobre os homens, emprestando-lhes como figuração os conceitos mais
abstratos a seu alcance: os números cujos algarismos constituem precisamente o seu
revestimento.
A lógica não foi, assim, o fio condutor desta história. Foram as preocupações de
contadores, mas também de sacerdotes, de astrônomos-astrólogos e somente, em
último lugar, de matemáticos, que presidiram à invenção e à evolução dos sistemas de
numeração. E estas categorias sociais, notoriamente conservadoras – pelo menos no
que diz respeito às três primeiras – sem dúvida retardaram tanto seu derradeiro
aperfeiçoamento quanto sua vulgarização. Quando um saber, mesmo tão rudimentar
aos nossos olhos, mas tão sutil aos de nossos ancestrais, confere um poder, parece
temível e até ímpio partilhá-lo. Sobre este ponto, mas em outros domínios, os
costumes de certo mandarinato talvez não tenham mudado.
No entanto, um fato é certo: houve um tempo em que o ser humano não sabia contar.
A prova: atualmente existem ainda homens incapazes de conceber qualquer número
abstrato e que não sabem nem que dois e dois são quatro!
Inúmeras hordas "primitivas" se encontram, ainda hoje, nesse “grau zero” – se assim
podemos dizer – quanto ao conhecimento dos números. É, por exemplo, o caso dos
zulus e dos pigmeus, da África, dos aranda e dos kamilarai, da Austrália, dos
aborígines das i1has Murray e dos botocudos, do Brasil. Um, dois e... muitos
constituem as únicas grandezas numéricas desses indígenas que ainda vivem na
idade da pedra.
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Eles só conhecem dois “nomes de números” propriamente ditos: um, para a unidade e
outro para o par. Dentre eles, os melhores em aritmética chegam certamente a
exprimir os números 3 e 4, articulando algo como: dois-um e dois-dois. Mas não
avançam mais. Além daí é a imprecisão, a confusão: empregam então palavras ou
expressões que poderíamos traduzir por muitos, vários, uma multidão. E é tão difícil
para eles imaginar um número superior ou igual a 5 quanto é para nós representar
quantidades como um trilhão de bilhões. De tal modo que, quando se trata de mais de
3 ou 4, alguns deles se contentam em mostrar a cabeleira, como se dissessem: “E tão
inumerável quanto os cabelos da cabeça!”.
Na verdade, o numero não é concebido por eles sob o ângulo da abstração. Ele e
“sentido”, de modo um tanto qualitativo, um pouco como percebemos um cheiro,
uma cor, um ruído ou a presença de um indivíduo ou de uma coisa do mundo exterior.
O número se reduz, no espírito deles, a uma noção global bastante confusa – a
“pluralidade material” – e assume o aspecto de uma realidade concreta indissociável
da natureza dos seres e dos objetos em questão. Isto significa que estes indígenas
não têm consciência, por exemplo, de que um grupo de cinco homens, cinco cavalos,
cinco carneiros, cinco bisões, cinco dedos, cinco cocos ou cinco canoas apresentam
uma característica comum, que é precisamente “ser cinco”.
Sem dúvida não mais dotado que esses indígenas, o homem das épocas mais remotas
desta história devia também ser incapaz de conceber os números em si mesmos. E
suas possibilidades numéricas deviam, do mesmo modo, resumir-se numa apreciação
global do espaço ocupado pelos seres e pelos objetos vizinhos.
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Nosso ancestral remoto devia no máximo poder estabelecer uma diferença nítida
entre a unidade, o par e a pluralidade.
É verdade que um e dois são os primeiros conceitos numéricos inteligíveis pelo ser
humano. O Um é, com efeito, o homem ativo, associado à obra da criação. É ele
próprio no seio de um grupo social e sua própria solidão face à vida e à morte. É
também o símbolo do homem em pé, o único ser vivo dotado desta capacidade, como
também do falo ereto que distingue o homem da mulher. Quanto ao Dois, ele
corresponde a evidente dualidade do feminino e do masculino, à simetria aparente do
corpo humano. É também o símbolo da oposição, da complementaridade, da divisão,
da rivalidade, do conflito ou do antagonismo. E ele se manifesta, por exemplo, na
ideia da vida e da morte, do bem e do mal, do verdadeiro e do falso etc.
ou
“Um
escaravelho” “Escaravelhos”
Existe na língua francesa uma aproximação evidente entre a palavra trois (três), o
advérbio très (“muito”, que marca, para um adjetivo ou advérbio, uma intensidade
elevada a seu mais alto grau) e a preposição de origem latina trans, que significa
especificamente “além de”. Em francês antigo, o termo tres era empregado como
preposição, com o sentido de “até”, e o verbo transir significava “falecer” (no sentido
de “ir para o alem”).
Em inglês, a palavra thrice tem também duas significações: “três vezes” e “vários”.
Enquanto as palavras three (três), throng (multidão) e through (através) têm
visivelmente a mesma raiz etimológica. Do mesmo modo, o antigo termo anglo-saxão
thria (“três”, do qual derivaram, no sentido indicado, a palavra inglesa three e as do
germânico antigo dri, drio e driu, que por sua vez deram origem ao termo drei, do
alemão atual) tem uma raiz comum com a palavra throp (amontoado), outrora
utilizada em frâncico (língua dos antigos francos aparentada com o velhosaxão e com
as línguas germânicas ocidentais). Deste último termo derivam, de um lado, o
advérbio frances trop (muito) e seu homologo italiano troppo (no sentido de “muito”,
“dernais”), e, de outro, o antigo termo do latim medieval troppus (rebanho, bando),
que deu origem, por sua vez, aos termos franceses troupe (grupo de pessoas ou tropa)
e tropeau (rebanho), ao espanhol tropa, ao italiano truppa, ao inglês troop e ao
alemão Trupp.
Entre seis e doze meses, um bebê adquire mais ou menos uma certa capacidade de
apreciação global do espaço ocupado pelas coisas ou pelas pessoas próximas. Ele
assimila então agrupamentos relativamente restritos de seres e objetos que Ihe são
familiares pela natureza e pelo número. Em geral, nesta idade ele pode também reunir
num único grupo alguns objetos análogos previamente separados. E, se falta algo a
um desses conjuntos familiares, o bebê logo percebe. Mas o número simplesmente
sentido e percebido não é ainda concebido por ele de modo abstrato, e ele nem sequer
terá a ideia de se servir de seus dez dedos para designar um dos primeiros números.
Entre doze e dezoito meses, a criança aprende, pouco a pouco, a fazer distinção entre
um, dois e muitos objetos, e a discernir com um só golpe de vista a importância
relativa de duas coleções reduzidas de seres ou de objetos. Mas sua capacidade
numérica ainda permanece no interior de limites tão estreitos que lhe é impossível
fazer uma diferença nítida entre os números e as coleções das quais eles são parte.
Um fato admirável: entre dois e três anos, quando a criança já adquiriu o uso da fala e
aprendeu a nomear os primeiros números, ela esbarra durante certo tempo numa
grande dificuldade de conceber e dizer o número 3. Ao contar, ela começa pelo 1 e 2,
mas esquece em seguida o terceiro numero: 1, 2, 4!
Assim, um pintassilgo que aprendeu a escolher seu alimento entre dois pequenos
montes de grão geralmente consegue distinguir três de um, três de dois, quatro de
três e seis de três. Mas ele confunde quase sempre quatro e cinco, sete e cinco, seis e
oito, dez e seis.
Seria um erro pensar que poderíamos fazer muito mais se nos deixássemos guiar
apenas por nossas faculdades naturais de reconhecimento imediato dos números. Na
prática, quando queremos discernir esta ou aquela quantidade, recorremos à memória
ou a procedimentos como a comparação, a decomposição, o agrupamento mental ou,
mais ainda, à faculdade abstrata de contar. Se bem que em geral é difícil termos
consciência dos verdadeiros limites de nossas próprias aptidões a esse respeito.
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Distinguimos sem erro, no primeiro golpe de vista, um, dois, três e até quatro
elementos. Mas aí se detém nosso poder de identificação dos números. Porque além
de quatro tudo se confunde em nosso espírito, e nossa visão global não serve para
mais nada. Há quinze ou vinte pratos nessa pilha, treze ou quatorze carros alinhados
na calçada, onze ou doze arbustos nesta moita, dez ou quinze degraus nesta escada,
nove oito ou mesmo seis janelas nesta fachada? È preciso contar para saber. O olho
não é um “instrumento de medida” suficientemente preciso: seu poder de percepção
direta dos números ultrapassa muito raramente – para não dizer nunca – o número 4!
Uma primeira ilustração deste fato nos é dada pela existência de várias tribos na
Oceania com o costume de declinar as formas gramaticais do singular, dual, trial,
quaternal e... do plural. No seio desses povos, a capacidade de individuação dos
nomes comuns limita-se a quatro, Até quatro, com efeito, os nomes do seres e dos
objetos são nitidamente expressos em cada uma das línguas e designados por uma
característica própria; mais além, tanto os nomes como os números são provados de
declinação e de personalidade, e assumem o caráter vago e pouco preciso da
pluralidade material. Mais ou menos como se, por exemplo, em francês,
exprimíssemos a diferença entre u, dois, quatro e vários jumentos, dizendo algo como
baudet (jumento) para um jumento, baudeta para dois jumentos e baudets (com um
“s” no final) para “jumentos”.
Outro exemplo: em latim, os nomes dos quatro primeiros números (unus, duo, tres,
quatuor) eram os únicos declináveis; a partir do quinto, os nomes de número não
tinham mais declinação nem gênero.
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Da mesma forma, os nomes que os romanos costumavam dar a seus filhos do sexo
masculino (as meninas não recebiam nome na época) eram, até o quarto, designações
particulares e normalmente compostas, como Appius, Aulius, Gaius, Lucius, Marcus,
Servius etc. Mas, a partir do quinto, eles se contentavam em chamar seus filhos por
simples números: Quintus (o quinto), Sextus (o sexto), Octavios (o oitavo), Decimus (o
décimo), ou mesmo Numerius (numeroso). Pensamos, por exemplo, no matemático
Quintus Fabius Pictor, no poeta Quintus Horatius Flaccus (mais conhecido pelo nome
de Horácio), em Sextus Pompeius Magnus (filho do Grande Pompeu), assim como no
poeta satírico Juvenal, que se chamava na verdade Decimus Junius Juvenalis.
Mas eles abandonaram rapidamente este princípio, pois tais series de sinais idênticos,
para os números superiores a quatro, em nada facilitavam, ao olho de um “leitor
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0 ano romano primitivo (304 dias) compreendia apenas dez meses e começava com Martius (março).
Em seguida ele foi prolongado por mais dois meses suplementares, aos quais se deu os nomes de
lanuarius e Februarius, que se tornaram nossos atuais janeiro e fevereiro. Quando Julio Cesar fez sua
reforma do calendário, o inicio do ano passou de 1º de março para 1º de janeiro e o ano romano passou
a ter 365 dias. Depois se decretou que o mês Quintilis (o quinto do ano primitivo), quando nasceu César,
receberia em sua honra o nome de Julius, origem de nosso julho. Um pouco mais tarde, o mês Sextilis (o
sexto do ano primitivo) foi denominado Augustus (que se transformou em seguida em nosso agosto
atual), em homenagem aos serviços prestados pelo imperador do mesmo nome durante este mês.
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apressado", a adição imediata das unidades correspondentes. Para contornar a
dificuldade, os egípcios e os cretenses tiveram a ideia de reunir seus algarismos-
unidades segundo um princípio que se poderia denominar decomposição:
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1 I 6 IIII I 11 IIII IIII I
2 II 7 IIII II 12 IIII IIII II
3 III 8 IIII III 13 IIII IIII III
4 IIII 9 IIII IIII 14 IIII IIII IIII
5 IIII 10 IIII IIII 15 IIII IIII IIII
É a mesma coisa que fez um prisioneiro ao contar seu tempo de prisão, gravando na
parede de sua cela os traços correspondentes aos dias de detenção.
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