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África e Diásporas: Divergências, Diálogos e Convergências
África e Diásporas: Divergências, Diálogos e Convergências
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África e Diásporas: Divergências, Diálogos e Convergências

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África e diásporas: divergências, diálogos e convergências pretende rever as tradições ancestrais africanas e resgatar seus valores fundamentais com finalidade de instigar e indicar os africanos, afrodescendentes, a humanidade de se reencontrar com suas próprias raízes identitárias, muitas vezes, negligenciadas pelas diversas circunstâncias da "modernidade tardia" e imposta. É a dinâmica de "Sankofa: se wo were fi na wo sankofa a yenkyi" (se você esquecer, não é proibido voltar atrás e reconstruir) ou simplesmente: "volte e busque o que ficou atrás". Qualquer que tenha sido perdido, esquecido, renunciado ou privado, pode ser reclamado, reavivado, preservado ou perpetuado. Trata-se do conhecimento dos povos africanos, expressando a busca de sabedoria em aprender com o passado para entender o presente e moldar o futuro. Os estudos africanos e da diáspora que abordamos nesta obra constituem lições de decolonialidade, práticas emancipatórias e alternativas de conhecimento e vivências para a contemporaneidade. Por outro lado, revela-nos, a experiência africana e diaspórica, como uma abertura para a heterogeneidade real do saber humano, para que possamos observar o mundo de formas diferentes. E, por conseguinte, perceber os nossos problemas de outros modos e com outros saberes.
LanguagePortuguês
Release dateJul 31, 2020
ISBN9786555234428
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    África e Diásporas - Luís Tomás Domingos

    Luis.jpgimagem1imagem2

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Dedico esta obra aos meus pais, in memoriam, aos ancestrais africanos e

    afrodescendentes que dedicaram as suas vidas para o bem do ser humano,

    da humanidade.

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço a Mulungu, Nzambi, Olorulum (Deus). Ele é grande Muntu, a pessoa grande, quer dizer, a grande força viva, o sábio que domina todas as coisas e conhece a essência de todo ser, que sonda a matéria e a natureza de todas as forças na sua profundeza. Nzambi (Deus) é a força que possui, para ele mesmo, a energia criadora e que faz surgir todas as outras forças. Que seja agradecido plenamente!

    Os meus profundos agradecimentos endereço à minha família, que sempre está presente na minha vida privada e profissional/acadêmica.

    PREFÁCIO

    Sabemos tão pouco do mundo de lá, mas lá estão as nossas origens, nossos antepassados, o princípio de tudo, ainda que o mundo de cá tenha insistido que o esquecêssemos, isso nem sempre foi possível. Na memória, no corpo, no olfato, no paladar, no olhar e no modo como brasileiros/as sentem e vivem a vida e comunicam-se uns com os outros e com o sagrado, estão as marcas das coisas de lá, que no mundo de cá foram reinventadas e os formaram. Os nossos passos vêm de longe. O atlântico que, à primeira vista, separou África e Brasil foi o que os uniu, o oceano de lágrimas, suor e sangue que, por anos, formou-se entre esses dois territórios também se compôs de suaves palavras que contam a história de uma gente africana e afro-brasileira.

    Na obra África e diásporas: divergências, diálogos e convergências, o professor Luís Tomás Domingos usa das palavras que une África e Brasil e recorre à escrita para contar a história da relação entre a África e o Brasil. Na narrativa construída, traz reflexões relevantes sobre essas duas culturas, que se fundem, entremeada pelo oceano de histórias, ainda por serem escritas e conhecidas pela gente de lá e de cá. Este livro possibilita aos/as africanos/as e brasileiros/as conhecer a história e cultura afro-brasileira e africana, e conhecer-se, e, assim, perceber o quanto estamos longe de chegar, mas próximos de algum lugar. O livro aponta uma possibilidade. Qual será?

    No transcorrer da narrativa composta composta por 11 trabalhos que ora convergem e divergem entre a África e o Brasil, o professor Luís, neste livro, tem como ponto de partida o universo religioso africano, a relação entre os mundos sagrados e profanos, princípio da cosmovisão africana, evidencia que tudo está interligado e interfere na vida dos homens e mulheres na terra.

    No percurso que faz, recorre ao modo de ser e estar dos africanos, e mostra o quanto nem sempre foram entendidos pelos europeus, que os capturaram e os fizeram atravessar para o lado de cá. A diáspora africana possibilitou o contato dos africanos com o Brasil, o diálogo e a construção de pontos convergentes e divergentes entre as culturas africanas e as culturas europeia e ameríndia.

    Em meio à escuridão dos navios negreiros, Luís Tomás Domingos mostra que saberes e fazeres tradicionais africanos não foram apagados, pois estavam gravados no corpo e na memória, sobretudo, os aspectos religiosos e o saber médico tradicional. Trata-se de um saber que associa homem e natureza, e a satisfação das necessidades materiais.

    De acordo com esse professor, foi essa relação que possibilitou aos africanos a construção de um universo simbólico que responde ou não às coisas da vida. Na tradição africana, o corpo é fonte de comunicação entre mundos e pessoas, portanto, trata-se de um corpo político que diz algo e afirma a identidade de quem fala. É um corpo que está e diz para o que veio ao mundo. Ainda que o tenha escravizado, desejou e fez-se livre.

    Segue sua narrativa e afirma: se o corpo é expressão de comunicação e rebeldia, a escrita também, o que faz da literatura africana meio de afirmação e construção de identidades, uma vez que o exercício de escrever é um ato político, portanto, trata-se de uma literatura nacionalista, cuja perspectiva é a relação da escrita literária com os aspectos da vida cotidiana e, por extensão, a liberdade e a formação cidadã.

    Assim como no universo da escrita, a arte africana também está relacionada ao universo da vida cotidiana, e aponta para a relação indivíduo natureza e sociedade, cujo fim é despertar no outro algo nem sempre consciente.

    No Brasil contemporâneo, apesar de as pessoas negras terem o corpo livre e poderem locomover-se para onde ousarem, algumas permanecem com a mente presa no cativeiro de outrora. Por isso, conhecer a história dos africanos traficados para o Brasil é um caminho para pessoas negras no Brasil libertarem-se do cativeiro mental.

    Ainda que tenham sido traficados para o Brasil, os africanos mantiveram vivos os referenciais trazidos da África e, por isso, reinventaram-se e as suas culturas, e fizeram surgir no lado de cá pequenas Áfricas.

    O fim do cativeiro não representou a inclusão das pessoas negras na sociedade de classe, o que as levou à mobilização e organização de ações contra o racismo e a exclusão a que foram submetidas. Nesse exercício, a educação foi tomada como principal arma para combater esses males, o que levou a gente negra brasileira a desejar conhecer-se e a desvendar as africanidades, desde outrora fincadas no Brasil, e, assim, retomar o diálogo com as nações africanas e reencontrar-se.

    O professor aponta que nossos passos vêm de longe, ora se encontram e se desencontram, por isso, pessoas negras no Brasil nem sempre se encontravam na história que lhes era ensinada nas escolas. Depois que alguns intelectuais negros/as começaram a rever as fontes e repensar as perspectivas metodológicas e abordagens dadas à história da África e do Brasil, os estudos realizados incorporaram outros parâmetros para se pensar os africanos e as pessoas negras no Brasil e suas trajetórias históricas.

    Da condição de escravizados, pessoas negras passaram à condição de construtores de ciências e conhecimentos na África e no Brasil, e passaram a revelar os saberes e fazeres dos grupos étnicos africanos. Assim, passaram a evidenciar não a somente proximidade entre África e Brasil, mas também o distanciamento devido à falta de conhecimento sobre a África, os africanos e a cultura afro-brasileira, que ainda se mantém entre brasileiros/as. Essa condição é fruto do preconceito dos/as brasileiros/as, não só restrito às pessoas negras, mas também aos seus saberes e fazeres.

    Luís Tomás Domingos finaliza a narrativa por onde começou: pelo Atlântico, e mostra o quanto esse oceano, que geograficamente separa África e Brasil, desde outrora, também une esses dois territórios, e foi quem permitiu que conhecimentos de lá aportassem cá.

    No entanto, alerta, os/as brasileiros/as, que saber sobre os ancestrais africanos é uma possibilidade de conhecer a filosofia e a religiosidade africanas reinventadas no Brasil. Por isso, a leitura deste livro é recomendada e indispensável a todos/as brasileiros/as. Lê-lo é uma oportunidade de se conhecer, afinal nossos passos vêm de lá.

    Prof. Waldeci Ferreira Chagas

    Departamento de História/UEPB/Campus Guarabira.

    APRESENTAÇÃO

    Nas minhas viagens pelo Brasil e pela África, sempre encontrei certos traços culturais semelhantes, aquilo que existia entre os dois espaços geográficos e que me suscitava muita curiosidade e estranhamento.

    África é um continente de identidade complexa e de interdependência recíproca. Os diferentes mundos, diversas visões do mundo, as diferentes religiões (islamismo, cristianismo etc.) inseridas nas diversas culturas, mentalidades e os diferentes períodos sobrepõem-se, interferindo uns nos outros. Às vezes, influenciando mutuamente, nem sempre se compreendem. Por outro lado, o traumatismo cultural, enfim, foi este lento e longo trabalho de invenção, reinvenção, construção e reconstrução das identidades que se realizou ao longo das décadas e séculos a ponto de os africanos terem chagado a duvidar de seus próprios valores e de não conceber mais a evolução ou o progresso fora da imitação total dos antigos colonizadores, e em quase todos os campos, domínios da existência humana. Quantos problemas atuais na África não se devem somente a esse fenômeno... Pois, como diz o proverbio africano: um pedaço de pá, por mais que flutue na água, nunca se formará um crocodilo. Todavia há necessidade de uma melhor articulação entre tradição e modernidade. Rever as tradições ancestrais africanas e resgatar seus valores fundamentais têm como finalidade reencontrar suas próprias raízes identitárias, muitas vezes, negligenciadas pelas diversas circunstâncias da modernidade tardia e imposta. O que quer que seja que tenha sido perdido, esquecido, renunciado ou privado, pode ser reclamado, reavivado, preservado ou perpetuado. Trata-se do conhecimento dos povos africanos, expressando a busca de sabedoria em aprender com o passado para entender o presente e moldar o futuro. É Sankofa. Os estudos africanos e da diáspora que abordamos nesta obra constituem lições alternativas de conhecimento e vivências para a contemporaneidade. Por outro lado, revela-nos, a experiência africana e diaspórica, como uma abertura para a heterogeneidade real do saber humano, para que possamos observar o mundo de formas diferentes. E, por conseguinte, perceber os nossos problemas de outros modos e com outros saberes.

    Como consta, Amadou Hampâté Bâ:

    A iniciação, fugindo das grandes centros urbanos, buscou refúgio na floresta, onde devido à atração das grandes cidades e ao surgimento de novas necessidades, os anciãos encontram cada vez menos ouvidos dóceis a quem possam transmitir seus ensinamentos, pois, segundo uma expressão consagrada, o ensino só pode dar de boca perfumada a ouvido dócil e limpo (ou seja inteiramente receptivo).¹

    E, diante dessa perversidade da história dos africanos, as surpresas e os questionamentos perseguem-me e permanecem: como foi possível os africanos trazidos forçados para as Américas, em especial ao Brasil, souberam conservar e transmitir, em geral, com muitas divergências, diálogos e convergências, as línguas, os hábitos alimentares, a religiosidade, rituais religiosos etc., de tal forma que estão bem presentes na sociedade brasileira? Todavia, como afirma Ali Mazrui:

    Essa brutalidade [o trafico de escravos] foi uma forma de universalização, uma vez que o comercio escravo criou uma presença permanente em países como os Estados unidos, Brasil, ilhas do Caribe, Península Árabe e, mais recentemente, na Europa. Por causa do comercio escravo, tem havido uma africanização parcial do mundo ocidental, em especial nas Americas. Os filhos e filhas exportados da África têm sido, em parte, um elo de transmição da cultura e dos mitos africanos, da música e da dança africana. Jazz, reggãe, [Samba], rumba, calipso e mesmo o rock’n’roll, são ritmos provenientes, em parte, da experiencia africana e transmitida à cultura mundial atrávez da Diápora Africana².

    Nesta dinâmica, a presença africana no Brasil, Pierre Verger constata: Esta presença dos costumes de habitantes do Golfo de Benin é tanto mais notável na Bahia quanto as influências bantas do Congo e de Angola são mais aparentes no resto do Brasil.³. E segundo Luiz Viana Filho:

    Bantu foram os primeiros negros exportados em grande escala para Bahia e aqui deixaram de modo indelével os marcos de sua cultura. Na língua, na religião, no folclore, nos hábitos, influíram poderosamente. O seu temperamento permitiu um processo de aculturação tão perfeito que quase desapareceram confundidos pela facilidade de integração.

    É importante salientar que durante todo esse período de colonização, o processo de escravidão da África e do Brasil, o tráfico desenvolvia-se entre Rio de Janeiro com Angola e Congo, conforme os critérios comerciais estabelecidos naquela época. E no período em que o tráfico era clandestino, as regiões bantas intensificaram o tráfico de escravos para o Brasil.

    Essa predominância dos negros bantu sobre os da Costa da Mina é indicada, no Rio de Janeiro, por cifras encontradas nas listas de Cartas de Alforria fornecidas entre 21 de junho e 26 de agosto de 1864⁵. Em uma lista de 504 escravos libertos, 481 eram bantu, e somente 23, ou seja, cinco por cento, da região do Golfo de Benin.

    No que concerne à presença de africanos no Brasil, procuramos estudar, nesta obra, os vestígios da herança das culturas africanas e seus descendentes na sociedade brasileira, apesar de seu conflito, como valores e crenças da elite dominante e da perda de contato com as fontes de origem. Entre vários autores que estudam o negro no Brasil, destacam dois iniciadores: o médico Raimundo Nina Rodrigues, que era ele próprio descendente de africanos, deixou cuidadosas descrições de tradições, heranças culturais de origem africana. O segundo foi o desenhista e arquiteto Manuel Raimundo Querino, que contribuiu no sentido de mostrar a diversidade de culturas que vieram com os escravos e seus locais de origem, na África, sucumbiu, por outro lado, às noções das correntes antropológicas evolucionistas, sobretudo, o darwinismo social, então vigente de superioridade e inferioridade racial. Dante Moreira Leite⁶, que também dedica algumas páginas a Nina Rodrigues e o racismo ao examinar sua obra, bem como as de Silvio Romero e de Euclides da Cunha, repara, nos três, o conflito entre a realidade de determinismo racial que aplicavam em suas interpretações, de outro, Thomas Skidmore⁷ também comenta as ideias de Nina Rodrigues. Porém são Augusto Lins e Silva⁸ que dedica todo um livro à figura do famoso pesquisador.

    Os aspectos culturais, sobretudo a religiosidade, as crenças, os mitos e os ritos formam objetos de pesquisa. Nesses estudos de mudança social e cultural ou aculturação, destacaram-se vários pesquisadores, dentre os quais: Artur Ramos, Melville Herskovits, Roger Bastide, Edson Carneiro etc. E outros estudiosos procuraram pesquisar como se estabeleciam as relações entre negros e brancos na vida cotidiana no Brasil. Esses foram Donal Pierson⁹, Thales da Azevedo¹⁰, Luiz de Aguiar Costa Pinto¹¹, Charles Wagley, Marvin Harris, Harry Hutchinson e Bem Zimmerman, sobre raça e classe no Brasil rural; Roger Bastide e Florestan Fernandes¹² etc. Tais pesquisas constataram a existência do preconceito racial no Brasil, as barreiras impostas à ascensão social dos negros e as dificuldades que procuravam superar.

    A outra fase dos estudos da presença africana no Brasil foi marcada pelas pesquisas que dedicava sobre o próprio sistema escravocrata, procurando nele e na ideologia racial que sobreviveu, parte da explicação para os problemas das relações raciais na atualidade. Fernando Henrique Cardoso¹³ escreve Capitalismo e escravidão no Brasil meridional; Octavio Ianni¹⁴ usa a mesma abordagem sobre a escravidão do Paraná, na sua obra As metamorfoses do escravo. Outros autores, na mesma época, analisaram o sistema escravocrata: Emilia Viotti da Costa¹⁵, Vicente Salles¹⁶, João Baptista Borges Pereira¹⁷. Enfim, Octavio Iani¹⁸ apresenta uma bibliografia dos textos mais importantes, tal como Laraia. Mas Solange Martins Couceiro elaborou uma bibliografia¹⁹ que abrange vários textos. As diferentes referências aqui apresentadas não se limitam apenas às heranças africanas no Brasil, mas sim às pesquisas sobre negros desde o final do século passado. Também existem referências que tratam, especialmente, das pesquisas promovidas pela Unesco²⁰. Enfim, tudo indica que a história da sociedade brasileira foi, ao longo de seus cinco séculos, caracterizada pelos encontros e choques de culturas e civilizações: dos indígenas, dos europeus, dos africanos. Os negros originavam-se principalmente da costa ocidental da África, pertencendo a três grandes grupos culturais, sudaneses, incluindo-se nesse grupo os Yorubás, os Daomé e os Fanti/Achanti (minas) e os grupos menores da Gambia, Serra Leoa, Costa de Marfim; os islamizados, como Fula, os Mandengue e os Haussas, de norte de Nigéria; as diversas etnias Bantu, do grupo Congo-angolés, provenientes do Congo, de Angola e da África Oriental Bantu, os makondes, makuas, senas, nhambanes etc. provenientes da região de Moçambique.

    O contraste entre as origens dos africanos trazidos para várias regiões do Brasil é claramente entre vários registros de tráfico de escravos existentes nos arquivos históricos ultramarinos:

    Esta colônia [Brasil] pela produção de tabaco que lhe é própria, tem o privilégio exclusivo do comercio na Costa da Mina, tendo como consequência, no ano passado, a importação de 8037 escravos jejes, ussás, nagôs, nações das mais guerreiras da costa d"África e, em consequência, os riscos de sublevação.²¹

    Entretanto muitas dificuldades persistem para o estudo da escravidão, porque uma grande parte dos documentos sobre o processo da escravidão no Brasil foi destruída em 1891, após a sua abolição em 13 de maio de 1888.

    Essa iniciativa de Ruy Barbosa, o ministro das Finanças da época, ainda é controversa entre os estudiosos dessa questão:

    Dizem alguns que a nova República brasileira queria apagar para sempre a lembrança e os traços da escravidão no país. Outros, entre os quais Américo Lacombe, crêem perceber a preocupação de um ministro da Finanças, colocado diante da iminente ameaça de uma petição feita pelos antigos proprietários de escravos, solicitando indenização ao Governo pela perda de capitais resultante da abolição, assim como ocorrera com os proprietários ingleses e franceses quando da emancipação dos escravos nas colônias daqueles países. Eles pediam que a comunidade brasileira tomasse a seu encargo os gastos de uma reforma em que eles seriam as únicas vítimas.²²

    De acordo com Pierre Verger²³, Joaquim Nambuco, um dos abolicionistas dessa época, em um dos seus discursos na Câmara dos Deputados, apresentou a seguinte petição de seus eleitores:

    [...] os livros de matrícula geral dos escravos do Império sejam cancelados ou inutilizados, de modo a que não possa mais haver pedido de indenização. Indenização monstruosa...porque uma grande parte desses escravos eram africanos ilegalmente escravizados, já que haviam aportado ao Brasil posteriormente à Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831.

    Enfim, o ancião e sábio de Bandiagara, África dos velhos iniciados avisa o jovem pesquisador:

    Se queres saber quem sou,

    Se queres que te ensine o que sei,

    Deixe um pouco de ser o que tu és,

    E esqueça o que sabes.

    Sumário

    1

    Uma breve introdução da cosmovisão africana 23

    1.1 A ligação entre o homem e a terra 31

    2

    Legba no universo religioso africano: princípio de ordem e desordem na cosmovisão africana 37

    2.1 A concepção da ordem e desordem no pensamento africano 43

    2.2 Legba e a dinâmica da desordem cósmica 49

    2.3 Legba, Èsù e suas funções 52

    2.4 Unidade na diversidade da herança da cultura africana no Brasil 55

    3

    Religiosidade e/ou Filosofia africana: uma maneira específica de ser e estar no mundo 65

    3.1 O mundo simbólico africano 66

    3.2 A Religiosidade africana 71

    3.2.1 Tempo e espaço na visão africana 82

    3.2.2 Deus, Mulungu, Nzambi 85

    3.2.3 Bazimu: os espiritos 86

    3.2.4 Muntu, O ser humano 91

    3.2.5 Pinhama, os animais 94

    3.2.6 Mithi: as plantas 95

    3.2.7 Miala: os minerais 95

    3.2.8 O mundo de fenômeno, que interfere o destino de ser humano 97

    3.2.9 Conceito de Destino 98

    3.2.9.1 Processo Divinatório 99

    4

    Religiosidade africana na Diáspora: a religiosidade de matriz africana no Brasil 101

    4.1 Práticas religiosas, entre ritos e rituais 114

    4.2 Ritos e rituais 126

    4.3 A dimensão religiosa da medicina africana tradicional 133

    4.3.1 A relação do homem no mundo visível e invisível 135

    4.3.2 Concepções de saúde e doença nas sociedades africanas 139

    4.3.3 Médico tradicional africano 143

    4.3.4 O Poder da palavra 151

    4.3.5 A Religiosidade e o pensamento africano 153

    4.3.6 O papel das ervas nos rituais 157

    4.3.7 Possessão 159

    4.3.8 Sacrifício 165

    4.3.9 Dom e contradom 169

    4.3.9.1 A doença 170

    4.3.9.2 A palavra 172

    4.3.9.3 A Morte 176

    4.3.9.4 Rituais funerários 177

    5

    O corpo e a corporeidade na cosmovisão africana: um recurso pedagógico ao ensino de história e cultura afro-brasileira. 179

    5.1 Saberes da cosmovisão africana sobre corpo e corporeidade de negro/as enquanto elemento e traço cultural dos valores civilizatórios afro-brasileiros 180

    5.2 Corpo e corporeidade negra: recurso pedagógico para o ensino de história e cultura afro-brasileira 183

    5.3 Breve relato de experiências 185

    5.4 Sexualidade e Religiosidade 188

    6

    Breves considerações sobre a literatura negro-africana 197

    6.1 Distinção da literatura negro-africana 198

    6.2 Literatura africana ou literatura nacional? 200

    6.2.1 A tomada de consciência dos intelectuais 201

    6.2.2 Negro-renascença nos Estados Unidos 201

    6.2.3 Movimento da Negritude 202

    6.2.4 Depois das independências africanas 204

    7

    Arte e cultura africana e afro-brasileira 207

    7.1 A arte africana: o imaginário no simbolismo gráfico 210

    7.2 A dimensão simbólica da arte africana 215

    7.2.1 Algumas reflexões sobre a arte e cultura africana 217

    7.3 Questão linguística 219

    7.3.1 Dança 221

    7.4 Música 224

    7.4.1 A música 227

    7.5 Culinária 234

    8

    A questão da mobilidade do status social e da alienação 239

    8.1 Racismo silencioso ou camuflado 243

    9

    Os desafios da educação na África, Moçambique: a busca de alteridade, africanidade em face da globalização 245

    9.1 O impacto da educação colonial na África 253

    9.2 O papel ambíguo de educação na formação de identidades 256

    9.3 A educação na fase Pós-Colonial 258

    9.4 Uma necessidade de ruptura epistemológica e metodológica dos estudos dos afro-brasileiros 263

    10

    A concepção filosófica e religiosa de ser humano em África: uma breve abordagem comparada dos povos fula, bambar, Ioruba e bantu 275

    10.1 Breve abordagem comparada sobre ser humano nas tradições Fula e Bambara, Ioruba e Bantu 277

    10.2 Dimensões complexas do ser humano nas tradições africanas 281

    11

    Ancestralidade: Filosofia e/ou religiosidade africana

    no Brasil 285

    11.1 Identidade afro-brasileira: uma questão complexa e delicada na sociedade brasileira 292

    11.2 A necessidade de ruptura epistemológica e metodológica para estudos africanos e afrodescendentes 295

    REFERÊNCIAS 301

    7.2 A dimensão simbólica da arte africana 215

    7.2.1 Algumas reflexões sobre a arte e cultura africana 217

    7.3 Questão linguística 219

    7.3.1 Dança 221

    7.4 Música 224

    7.4.1 A música 227

    7.5 Culinária 234

    8

    A questão da mobilidade do status social e da alienação 239

    8.1 Racismo silencioso ou camuflado 243

    9

    Os desafios da educação na África, Moçambique: a busca de alteridade, africanidade em face da globalização 245

    9.1 O impacto da educação colonial na África 253

    9.2 O papel ambíguo de educação na formação de identidades 256

    9.3 A educação na fase Pós-Colonial 258

    9.4 Uma necessidade de ruptura epistemológica e metodológica dos estudos dos afro-brasileiros 263

    10

    A concepção filosófica e religiosa de ser humano em África: uma breve abordagem comparada dos povos fula, bambar, Ioruba e bantu 275

    10.1 Breve abordagem comparada sobre ser humano nas tradições Fula e Bambara, Ioruba e Bantu 277

    10.2 Dimensões complexas do ser humano nas tradições africanas 281

    11

    Ancestralidade: Filosofia e/ou religiosidade africana no Brasil 285

    11.1 Identidade afro-brasileira: uma questão complexa e delicada na sociedade brasileira 292

    11.2 A necessidade de ruptura epistemológica e metodológica para estudos africanos e afrodescendentes 295

    REFERÊNCIAS 301

    1

    Uma breve introdução da cosmovisão africana

    O homem liberta-se pela sua inteligência e suas invenções diante das necessidades da vida. Ele sonha substituir por outras normas aquelas que foram impostas pela natureza. Na Grécia antiga e em Roma, por exemplo, a ascese estoiciana foi praticada apenas por pequena minoria da população. Os discípulos de Zeno, de Epicteto, de Marco Aurélio, foram sempre pouco numerosos. As revoltas sempre existiram, em várias sociedades, contra os não conformistas. Em todas as épocas, os heréticos foram queimados, assassinados, perseguidos, mortos e exilados etc.

    Até os nossos dias, os inventores, muitas vezes, morrem na miséria, os profetas são lapidados e alguns homens sábios tradicionais continuam no descrédito, em nome da dita ciência. Na verdade, aqueles que obedecem às leis da vida, da natureza, que implicam a queda da ordem existente no presente são, inevitavelmente, considerados pela sociedade moderna como tradicionalistas, supersticiosos, enfim, irracionais. Eles são considerados como impostores, inimigos, pela multidão incitada por um punhado de medíocres que vivem na ilusão, em uma sabedoria corrupta; e desenvolvem, em nome da ciência, as habilidades que servem aos seus interesses particulares.

    A finalidade da existência do homem na cosmovisão africana está estabelecida no universo e é influenciada pela ordem dos seres na natureza. Essa finalidade é independente dos desejos do homem, mesmo das suas aspirações mais sublimes. Alguns homens dão sentido à sua existência, orientados pela condição da sua riqueza simbólica, de sua família e pelas suas qualidades hereditárias, pelo poder religioso, acompanhados pelas doutrinas mitológicas e filosóficas etc.

    A relação do homem tradicional africano com a natureza é, portanto, uma relação de viva participação, e não de uma pura utilização ou exploração de meios que a natureza oferece-nos. Todavia, na cultura africana, existe o parentesco original entre o homem e a natureza. Um dos fundamentos da arte de viver do africano é a participação ou a comunhão profunda com a Natureza. Podemos situar as diferenças entre a arte de viver dos Ocidentais, europeus e a arte de viver dos africanos.

    Para o ocidental, de uma maneira geral, o projeto maior da vida é dominar e transformar a natureza e obter o proveito, o capital, o poder econômico a todo custo. E o objetivo desse esforço, nessa lógica utilitarista, é, muitas vezes, para impor e ostentar o seu "status social" na sociedade, mesmo sem os meios técnicos necessários, mas sempre com a arte de vencer sem ter a razão.

    Por outro lado, como constatou Jean Brun: Todas as tentativas especulativas da ciência européia através das técnicas são produtos para ultrapassar a experiência da separação, para curar o homem do deslocamento, para abri-lo a um céu novo e uma terra nova, ao longo da sua trajetória na natureza.²⁴. Enquanto na concepção tradicional africana, o projeto maior da vida do homem é encontrar o equilíbrio, a harmonia entre o homem e a natureza no universo. Mesmo engajado na obra moderna de transformação, sempre guarda certa docilidade profunda com a natureza. Trata-se de uma dimensão relacional de homem/natureza na sua individualidade e coletividade integrada.

    Esta docilidade fraternal aos ritmos da natureza é um dos aspetos mais originais da cultura Africana. Nesta atitude respeitosa para com a natureza se encontra um conjunto de valores positivos: a confiança na natureza infra-humana; a certeza pacifica de quem vivendo em harmonia com sua sabia conselheira, poderá usufruir das riquezas e repousar em seu doce ritmo; a primazia dos valores da natureza sobre os da técnica; a superioridade da fecundidade espontânea da natureza sobre as produções e técnicas artificiais; a estima da humilde comunhão com a vida, respeitada em seu profundo mistério.²⁵

    A cultura africana pode ajudar-nos a conceber e viver as relações do homem com a natureza para que não sejam puramente relações técnicas, mas estéticas; não relações do homem conquistador da natureza, mas sim relações de respeito recíproco, de participação e de complementaridade. E essa forma de relação íntima tem como finalidade realizar e manter um equilíbrio harmonioso entre homem e o universo.

    A desintegração e a separação da natureza constituíram, para o homem africano, o obstáculo do desenvolvimento integral do muntu, ser humano.

    O homem participa e faz parte da grande família que compreende os ancestrais, vivos e os que hão de vir no tempo potencial. É a participação total da vida humana no tempo e espaço. Na África, qualquer que seja a estrutura da família africana, geralmente alargada e complexa, e qualquer que seja a sua condição social, mesmo em profunda transformação, a família africana continua a ser o enraizamento e constitui o refúgio da pessoa diante de situações adversas da vida.

    As relações de parentesco africanas desempenham funções na lógica social de solidariedade entre as pessoas, as comunidades e etnias. A solidariedade entre as comunidades é atribuída às relações de parentesco nuclear e da família alargada. A hospitalidade e solidariedade são baseadas na reciprocidade. As trocas comerciais e econômicas fundamentam-se na responsabilidade social. E as relações sociais dentro e fora da comunidade são definidas e fundamentadas na justiça, equidade e equilíbrio. Nessa constante procura do equilíbrio, os conflitos sociais não estão ausentes. A dinâmica de relações sociais africanas contribui para a criação de bases para o humanismo e, de acordo com Julius Nyerere, é uma atitude da mente e é o fundamento do socialismo africano, baseada na ideia de Ujamaa ou familiaridade. A família estendida não está definida, apenas, pelo sangue nem pela linhagem. A tradição cultural africana considera que todos os homens constituem uma única irmandade /humanismo – em que cada homem é membro integrante da família humana alargada. Esse constitui o fundamento dos valores da hospitalidade e solidariedade africana, Ujamaa, é o humanismo africano.²⁶

    Estar isolado, na sociedade africana, é estar morto. Assim, o africano vê-se em harmonia com o próprio homem, com aqueles que estão vivos, com os que já partiram, os mortos. Neste contexto, a religião tradicional africana é destinada a manter as relações com os ancestrais, as entidades que existem na natureza, os Orixás. E é nessa dinâmica de relação participativa que o africano-bantu preserva a sua existência com o ser Supremo, Nzambi, (Deus), Bazimu (os espíritos), Banthu (os seres humanos, homens), Pinhama, (os animais), os vegetais, os minerais e fenômenos e objetos sem a vida biológica. Expressando, antropocentricamente, Zambi (Deus) é gerador e mantenedor do homem. A sabedoria africana sobre Deus é expressa nos provérbios, nas canções, orações, nomes, mitos, histórias, ritos, rituais e nas diversas dimensões das cerimônias religiosas. Ninguém espera longas dissertações sobre Deus. Mas Deus não é estranho para o povo africano. Nas sociedades tradicionais africanas, é inconcebível a existência de um homem ateu, que não acredita em Ser Supremo, Olorum, Nzambi, Deus. Como diz o provérbio dos Ashanti: ninguém viu o filho do Ser Supremo, mas todos conhecem a existência de Deus pelo instinto, em todo caso, as crianças conhecem Ser Supremo, Deus.

    Bazimus, os espíritos, explicam o destino do homem; o homem é o centro dessa ontologia; animais, vegetais e fenômenos naturais e objetos sem a vida biológica constituem o meio ambiente onde o homem vive, provisiona, extrai os meios de existência e, se for necessário, o homem estabelece relações místicas com ele. Essa ontologia antropocêntrica é uma unidade completa. É uma relação de solidariedade na qual não pode haver ruptura ou destruição. E, se acontecer o contrário, causa desequilíbrio do próprio homem, da natureza, enfim, de todo o universo. Destruir ou remover uma dessas categorias é destruir toda a existência, incluindo a destruição do Criador. A soma desses elementos constitui uma força, poder, energia que penetra em todo o universo. E Deus, a Fonte Controladora dessa força, mas os espíritos têm acesso a uma parte dela. Poucos seres humanos têm a sabedoria e habilidade de lidar, manipular e usar essa energia/força, como nganga, babalórixá, ialorixá, babalaô, etc., que uns usam para o bem, e outros para as doenças das suas comunidades.

    A noção do espaço e tempo é importante para os africanos. A noção do tempo é fundamental para a compreensão dos conceitos básicos religiosos e filosóficos. O conceito do tempo ajuda-nos a explicar crenças, atitudes, práticas e, em geral, o sentido da vida dos povos africanos, não somente no contexto tradicional, mas também na situação moderna (seja na política, economia, educação etc.). Na tradição africana, o tempo é simplesmente a composição dos eventos que ocorreram, que estão ocorrendo agora, que imediatamente e inevitavelmente ocorrem. Os eventos que ainda não ocorreram estão na categoria do "Não tempo". Nesse caso, o futuro é praticamente ausente porque os eventos ainda não aconteceram, não se realizaram, portanto, não constituem o tempo. Mas os eventos que não seguem o ritmo natural dos fenômenos estão na categoria de inevitável ou o tempo potencial.

    Há tempo de experiência pessoal na sua própria vida pessoal, na sociedade que se prolonga de gerações em gerações anteriores do seu nascimento. À medida que o futuro não foi vivido, experimentado, não faz sentido e não constituiu parte de tempo e o povo africano não sabe o que pensa sobre este assunto – desconhecido, pois é uma coisa que vai acontecer, que não segue o ritmo do fenômeno natural. O tempo está ligado aos acontecimentos dos eventos, as pessoas não reconhecem o vácuo (sem eventos).

    Trata-se do "tempo oscilante"²⁷ que junta sempre um pouco mais: um tempo relacional, participativo, em espiral, que avança por intermédio de ciclos e ritos sem constituírem um ciclo fechado. Um tempo ativo dinâmico,

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