Comemoramos em 2004 os trinta anos da Revolução de 64. Comemorar não é
celebrar a desordem e a falta de bom senso. É recordar que nossa consciência nacional está comprometida pela gênese de nossas lembranças mais caras e, no presente momento, mais esquecidas. Comemorar, portanto, é lembrar junto. As utopias revolucionárias dos estudantes e intelectuais dos anos sessenta eram boas idéias, mas, contudo, careciam de uma força propulsora que a esquerda política da época não foi capaz de implementar. O desejo de mudança do mundo, à moda dos guerrilheiros tupiniquins, pareceu mais com um conto maravilhoso do que com um conjunto de medidas sérias e necessárias para o país. As mitologias estão repletas de conteúdo bonito e com aparência de útil, entretanto, sem pragmática executória alguma. Um ditado popular sintetiza bem isso, e com palavras mais acessíveis: “de boa intenção o inferno está cheio!”. O golpe de 64 foi um espetáculo dissonante protagonizado por uma orquestra desafinada, regida pelos interesses reconhecíveis do capital hegemônico. A estrutura desordenada da arquitetura do golpe militar no Brasil está bem evidente na trilogia do jornalista Hélio Gaspari (A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, e A Ditadura Derrotada). Lembra-nos Gaspari que, em outros lugares da América Latina, a desorganização não foi tanta, mas, aqui, o golpe foi uma desordem. Mormente, ordenada ou desordenamente, o que deve ser ressaltado, é que, quer do lado da esquerda, que pretendia demover os golpistas mobilizando um exército utópico – o povo -, quer do lado da direita política, que dispunha de um aparato de inteligência e de repressão amedrontador, o golpe deu certo – para quem? Cada brasileiro, segundo a pretensão mágica da esquerda, seria uma espécie de “fiscal do Sarney” (fiscais populares que, na vigência do Plano Cruzado, saíram pelas ruas, investidos oralmente de um poder de polícia místico outorgado pelo então presidente José Sarney, fechando supermercados e prendendo gerentes de lojas). Ou seja, o que se desejava do povo, durante o Plano Cruzado, ou no episódio de 1964, é que ele saísse espontaneamente pelas ruas e depusesse os opressores sinistros da sociedade. Constatamos isso, ainda, no pensamento atual de Fernando Gabeira, expresso no seminário da ABL (Academia Brasileira de Letras) sobre os “Novos olhares sobre o golpe de 64”, realizado em 29/03/04, que disse que o que se esperava em 64, é que “as idéias generosas da esquerda”, por sua força própria, isto é, idéias recheadas de boas intenções, tivessem uma potência demiúrgica de mudar a contingência sufocante do mundo, uma vez que eram dotadas de uma fabulosa capacidade de auto-realização, que, entretanto, não se concretizou. Nas salas de aula, hoje, sou indagado por meus alunos sobre a necessidade de que se tenha uma nova revolução armada no país. Embora, confesso, sinta-me tentado, às vezes, em vestir uma farda e revolucionar o mundo, não consigo esquecer que, apesar dos esforços engendrados pelos ativistas dos anos sessenta, uma nova revolução não se faz necessária, pois, aquela, ainda não terminou, não obstante à aparência de ter sido inútil.